11247_10229_000000 foice cortou o pescoço do animal a cabeça ficou segura na carne da vítima e das artérias rotas jorrava o sangue não havia mais cães a matar o terreiro ficara alastrado de corpos decepados mutilados de membros esparsos os homens maltratados doloridos deitavam 11247_10229_000001 névoa fugiu o céu espanou-se e dilatou-se em maravilhosa limpidez a mancha móvel sobre a planície definiu-se no perfil de um pobre cavalo que passeava na verdura os seus olhos de velhice e fadiga tristes e longos de passada com os 11247_10229_000002 viviam unidos em uma só comunhão de desânimo e de espanto na casinha feita de madeira tosca com teto de telhas de pau incendiada pelo sol nos dias quentes 11247_10229_000003 trabalhadores até que uma manhã o agrimensor e os seus ajudantes sentados á porta do barracão viram uma mancha preta passar velejando majestosa serena no céu claro urubu disse felicíssimo ah temos carniça por aqui opinou joca 11247_10229_000004 até então não se trabalhara os homens corriam as vizinhanças caçavam vagavam pelos montes e iam aos povoados as mulheres viviam no lar quando caía a sombra o cigano deitava-se sobre a relva a beira do rio e pregava os olhos preguiçosos no poente 11247_10229_000005 fugira para os montes levada pela brisa como se fosse o imperceptível véu que envolvesse alguma deusa errante e retardada um raio de sol porém descera a brincar-lhe nos olhos e incendiava-lhe a pupila meiguices da natureza um dos jovens magiares levando uma corda caminhou 11247_10229_000006 faz perguntou joca ao agrimensor ora vamos a enterrar o velho deus lhe perdoe a alma nós lhe cuidaremos do corpo disse decisivo o cearense os homens não hesitaram mais agora inspirados pelo impulso de piedade de felicíssimo e todos caminharam para dentro do cercado 11247_10229_000007 varada pelo vento invadida pela chuva nos dias de tormenta aí cumpriam o ritual dos costumes pátrios sob a pressão covarde do isolamento apegavam-se como a um refugio as intactas tradições transportadas de sangue a sangue 11247_10229_000008 e percebia num grande desalento que o conjunto tropical do país do sol o deixava estático errante e incompreensível e que a sua alma emigrava dali incapaz de uma comunhão perfeita de uma infiltração definitiva com a terra o que sou eu então 11247_10229_000009 o rio sem horizonte sem limite como uma grande pasta cinzenta ligava-se ao céu baixo e denso o desenho apagara-se a bruma mascarava os perfis das coisas e o colorido surgia com a sombra numa sublime desforra por toda a parte manchas esplendidas 11247_10229_000010 admirou ao longe o corte das montanhas a negrura da mata a fronte das árvores debaixo dos seus pés a terra vermelha como embebida de sangue e das plantas tenebrosas o cheiro que tonteia e excita 11247_10229_000011 onde leis imperiosas perversas me dominam me vencem o novo sangue outros vizinhos vieram algum tempo depois se estabelecer no rio doce na campina que saindo da mata morre sobre as águas 11247_10229_000012 morrendo a outra rapariga transportada em êxtase a cabeça loura reclinada sobre o ombro do noivo numa vertigem aérea respirava a pequenos haustos com a boca entreaberta sua boca vermelha como o sangue úmida como o orvalho a turma de felicíssimo voltara 11247_10229_000013 não podia esquecer a desgraça de maria não há sofrimento cismava ele tão insignificante que não clame aos que passam piedade e reparação com o alarido de cem mil bocas 11247_10229_000014 e nem mesmo a ele confiava os passos do seu martírio milkau respeitava esse pejo e sem insistir em desnudar-lhe o coração 11247_10229_000015 um repouso suave um esquecimento devia adormecer-lhe os pensamentos lá vinha ainda nesses instantes o tormento da piedade o contínuo testemunhar da desgraça alheia como uma mancha na sua visão radiante 11247_10229_000016 e como abandonado a vomitar sangue fora por um acaso acolhido na estrada desde então dera baixa e emigrara para o brasil 11247_10229_000017 compassos a principio langorosos iam ganhando movimento e a largos impulsos do som arrastavam os figurantes faziam rápidas voltas meias luas harmónicas enroscavam os braços uns nos outros e balouçavam se cadenciados como suspensos sobre as notas formando 11247_10229_000018 os olhos tinham sido devorados e as cavidades imensas e rubras escancaravam-lhe a testa alucinados em seu gozo satânico os corvos sem dar fé da gente continuavam a picar a comer avidamente embebidos os cães esquecidos deles faziam frente aos invasores 11247_10229_000019 a limpidez do azul e daí a pouco se ia baixando e restringindo a um ponto da mata o voo dos infectos urubus que os trabalhadores acompanhavam curiosos e divertidos em suas almas infantis mas ali naquele ponto é a 11247_10229_000020 recomendava a gente da casa a maior caridade para a desgraçada pedindo que velassem por ela e a não desamparassem na próxima crise os colonos prometiam-lhe tudo mas na verdade o sentimento deles era outro tratavam a miserável com desdém 11247_10229_000021 voltara para novas medições o agrimensor depois do trabalho ia todas as tardes conversar na colônia de milkau e com a sua vivacidade e alegria entretinha os dois emigrados contando episódios da sua vida aventureira cenas do norte desse ceará trágico em cuja 11247_10229_000022 de alguma arvore assistindo aquelas festas no silencio da grande solidão o musico era o cigano com o inseparável violino sentado ao lado do velho dado o sinal os pares punham se em ordem e iniciavam as marchas polacas a musica tangia á festa 11247_10229_000023 flagelador veio-lhe uma histérica insensibilidade uma rudimentar anestesia uma assassina obsessão estonteou-o uma vertigem mas o açoite não parou os sulcos na carne abriam-se mais fundos o sangue escorria frouxo mofino de dor o cavalo prosseguia arrastado regando a terra 11247_10229_000024 e eu tenho que o estudo das coisas antigas o prestígio das próprias letras mortas são outros tantos venenos que acovardam a alma do homem de hoje e dão um encanto crescente ao mistério da autoridade 11247_10229_000025 maria não se queixava aos antigos tormentos juntava o desprezo e o ódio dos novos patrões e ainda assim se agarrava a essas raras migalhas de uma desdenhosa condescendência humana 11247_10229_000026 a calça de veludo e a cinta uma larga faixa de seda carmesim enlaçavam as raparigas cujo corpinho meio aberto ao colo vestia o busto esbelto e cujas saias ornadas de veludo e seda lhes envolviam as formas poderosas 11247_10229_000027 se todo esse sangue essas flores esses frutos não são bálsamos para aquela ferida estranha que bem fariam a cor o perfume e o sabor das coisas 11247_10229_000028 ora milkau tu não sabes é a raça uma civilização particular que nos fala no sangue o nosso eu a nossa própria projeção no mundo a soma de nós mesmos multiplicados ao infinito 11247_10229_000029 amemos o sacrifício feito pelo amor humano a ciência a arte mas aquele amor inconsiderado por tudo o que é passado tudo o que foi é um dos sopros mais poderosos para a desordem universal 11247_10229_000030 não é no trabalho que está a salvação da miséria nem o estimulo para o desalento que importa que nos fatiguemos que ensopemos a terra com o nosso suor que cubramos o mundo de flores sabidas das nossas mãos infatigáveis si alli adeante ao nosso lado vive a dor 11247_10229_000031 vendo morrer o sol aos domingos a família se reunia na varanda o velho a um canto bonnet enterrado até os olhos cachimbo na boca quilotava repousadamente as longas barbas amarelas e as rugas da cara 11247_10229_000032 pelo terreiro perseguidos estes trataram logo de se unir traçando com os instrumentos um círculo de defesa não afrouxem ordenava felicíssimo avança avança para dentro para dentro recuaram os cães ante a energia do ataque e correndo sumiram-se como por encanto os 11247_10229_000033 indagando com os olhos atilados o voo do corvo a grande ave solitária descia vagarosa boiando negligente num vasto círculo do espaço como um barco de velas negras logo depois outra subia no horizonte e não tardou muito que outras mais viessem sujar a 11247_10229_000034 cavalo para a frente de chicote em punho o cigano seguia atrás e a primeira vergastada cortando o ar num sibilo caiu em cheio sobre o animal este como arrancando-se de si mesmo pinoteou assustado novas lambadas foram arremessadas por mão vigorosa estirou 11247_10229_000035 fazendo parte de uma guarnição exigira dos moradores da casa onde se acampara uns cobertores e essa extorsão além do que era permitido reclamar ele ia pagando com a vida 11247_10229_000036 dos pastores para lavrar o campo e buscar na cultura a satisfação da vida sacrificaram aos deuses o velho companheiro de peregrinação nos brancos estepes e assim a imolação ficou sempre no espírito dos descendentes como um dever cujas raízes se estendem até ao fundo da alma 11247_10229_000037 irrompeu brusco sonoro o canto de guerra dos velhos tártaros o chicote cruel e rápido marcava o compasso desse ritmo estranho o contagio do furor apoderou-se dos outros que imobilizados assistiam ao sacrifício e embriagados pouco a pouco pelas frases da música pela sugestão do rito pelo 11247_10229_000038 cachorros feitas catitús para desenterrar e ressuscitar o velho demônio formava-se assim um novo mito no rio doce nas noites de tempestade ainda hoje quando o catitú matraca no mato todos se recolhem medrosos melancólicos 11247_10229_000039 milkau e lentz passeando aquela hora passaram perto do roçado e viram chegar aí o grupo dos vizinhos ainda bem disse milkau eles vão trabalhar fazia-me dó ver esta gente apática irresoluta entorpecida na preguiça mas para que trazem eles quase arrastar 11247_10229_000040 e negros beiços afagava a erva triturando-a com fastio e desânimo enquanto a sua atenção de cavalo experimentado estava voltada para a cabana a cuja porta os seus donos os novos colonos magiares o miravam com interesse a neblina leve veloz 11247_10229_000041 a discussão da véspera e sentia um mal estar lembrando-se da viva contrariedade que opusera aos sentimentos do amigo não há duvida pensava ele penitenciando se é assim por natureza quando dois homens se colocam frente a frente 11247_10229_000042 uma instintiva animalidade surge entre eles perturbando a simpatia é o querer inato de subjugar ou pela força ou pela superioridade da inteligência ou pela consciência da própria perfeição 11247_10229_000043 ajoelhavam se e de chapéu na mão tristes acabrunhados em face da morte que só agora se lhes revelava rezaram depois mudos encheram a cova de terra a medida que o cadáver ia sendo coberto remontavam os urubus um a um ás alturas secretas naquela noite quando 11247_10229_000044 a pátria é pequenina mesquinha uma limitação para o amor dos homens uma restrição que é preciso quebrar entraram em casa e durante a noite largo tempo debateram essas ideias no dia seguinte quando milkau trabalhava solitário rolava-lhe na cabeça 11247_10229_000045 desaparecera a coivara o terreno semelhava um verdejante parque cercado das árvores imensas da floresta apenas interrompida e a humilde casinha dos dois emigrados estava coberta de trepadeiras 11247_10229_000046 o seu espirito sempre retrogrado buscava expandir se nessa forma inicial e selvagem da civilização caçava lutava com os animais devastava as matas 11247_10229_000047 era uma pequena família magiar composta do pai viúvo duas filhas e um filho a que se juntaram outro rapaz da mesma raça que era noivo de uma das raparigas e um cigano 11247_10229_000048 em uma persistente impressão de assombro e de pavor e a orla de terra que se lhe escapou ao longe e para onde se volta incessante recebe os queixumes da saudade 11247_10229_000049 convivência com esses sertanejos milkau apaziguava as ânsias em que se vinha debatendo o seu espírito a espontaneidade de raça a coragem e a bondade deles eram novos arrimos para a ilusão nenhum incidente perturbava o calmo viver de imigrantes e trabalhadores 11247_10229_000050 prosseguia sem interrupção fogoso lúgubre o canto que feria asperamente o ar e era o eco da melodia satânica da morte o cavalo deu mais alguns passos cambaleando como um alucinado e afinal prostrou-se sobre a terra arquejante resfolegando num espaçado estertor 11247_10229_000051 diante do alarido da luta os urubus esbordoados largaram a presa e abrindo as asas espalhando com o voo ainda mais o fedor incapazes de se afastarem daquela nauseabunda atmosfera pousaram morosos pesados mas através da casa e aí se postaram fúnebres 11247_10229_000052 e mantidas pelo temor religioso desde os antepassados o cigano partira também arrastado pelo instinto vagabundo na longa travessia o eterno caminhante da planície imaginava-se prisioneiro no vapor que lhe parecia uma jaula movediça e endemoninhada 11247_10229_000053 assim pensava milkau enquanto a enxada manejada pelos braços inconscientes cavava a terra várias vezes fora a colônia onde maria se empregara para levar-lhe algum conforto ela se retraía cada dia mais 11247_10229_000054 lentz aplaudiu então a força imortal que comandava e era temida e sorria como havia muito tempo não lhe era dado entusiasmado o veterano ergueu-se e caminhando trôpego levou os vizinhos para dentro da casa mostrar-lhes velhos retratos de reis 11247_10229_000055 corpo a corpo se feriam se despedaçavam como num combate de doidos os homens estavam estraçalhados e sobre as pernas nuas e brancas de muitos deles corria um sangue quente guinchando os cães morriam estortecendo-se como possessos e atirando-se sobre o cadáver 11247_10229_000056 homens indo-lhes no encalço penetraram na casa brandindo as armas mas entontecidos pelo cheiro sufocante estacaram indecisos e apavorados diante de um quadro medonho dentro os urubus comiam um cadáver humano que jazia por terra o corpo do solitário e abandonado imigrante 11247_10229_000057 afinal pela estrada vieram correndo esbaforidos joca e os companheiros carregados de enxadas foices e paus cada um se armou e felicissimo ordenou com entusiasmo agora avança meu povo e os homens resolutos e raivosos precisam 11247_10229_000058 furor do açoite naquele sacrifício cumpria-se uma missão sagrada ligava-se a nova terra o nervo da tradição da terra antiga quando os antepassados tártaros desceram do planalto asiático e no solo europeu renunciaram a vida errante 11247_10229_000059 areias sedentas e implacáveis se vasam se fundem na resignação na dor na energia e na esperança a alma dos homens quando não havia serviço urgente joca juntava-se a lentz e os dois se embrenhavam no mar a caçar na convivência 11247_10229_000060 tu não estás em mim ainda assim eu te amo mas tu não és eu numa dor funda milkau devorado de mágoa combalido sentiu-se também expatriado 11247_10229_000061 atormentada pelo medo do doloroso momento que se aproximava por aquele tempo a vida de milkau continuava a ser minada pela tristeza e também para o companheiro fora a caça nada havia na colônia capaz de encher-lhe a imaginação 11247_10229_000062 xô xô canalha atroou um grito de joca desesperado de nojo e num ímpeto de compaixão avançou para o cadáver para livrá-lo dos urubus agarrando pelas canelas e pelas roupas os cães o detiveram os camaradas acudiram prontos em sua defesa 11247_10229_000063 dois os outros ficaram atirando pedras aos cães que estacados na cancela não se arredavam furiosos e tremendos os urubus descendo em maior número dos ares continuavam em cortejo a penetrar na casa um horrível e crescente fétido mesmo a distância 11247_10229_000064 que verme que átomo miserável que se não governa que não pôde amar o que quer que se não pôde identificar com todas as moléculas do mundo que sou eu 11247_10229_000065 que se abriam em flores dando aquele jardim ali nos trópicos um perpétuo ar festivo à vivenda milkau era um agricultor por instinto e todas as suas faculdades de atenção de imaginação 11247_10229_000066 como testemunhas do combate dos homens e dos cães quando joca conseguiu tocar o cadáver recrudesceu o furor das feras não temiam mais os ferros e os cacetes e atacavam os inimigos que se apossavam do amo foi um desvario homens e animais se batiam 11247_10229_000067 vinha distraí-lo daquela postura de curiosidade humilde e acariciava num frio elétrico o seu pelo ralo e falhado estremecia num gozo manso e estendendo o focinho arregaçando os beiços sensual e grato beijava o ar não mais encontrava a névoa que 11247_10229_000068 restavam não esmoreceram e mais alucinados investiam um deles cravou as presas na coxa de um homem com tal fúria que este picando-o com o ferro e tentando arrancá-lo com as mãos não conseguiu o cão cada vez mais se enterrava pelas suas carnes adentro correu outro homem em seu socorro e com um certeiro e violento golpe de 11247_10229_000069 estavam no auge do prazer a mais moça das raparigas amparada nos braços do irmão deslizava alegre feliz com o rosto iluminado embevecida a fitar o músico amado com aveludados e longos olhos que sorriam primeiro que a boca e quando a música ia morrendo 11247_10229_000070 um offerecia ao mundo façanhas matanças sacrifícios de sangue e o outro simples lavrador fructos da terra flores do seu jardim 11247_10229_000071 lentz se interessava pelos pormenores dessas histórias e o velho falava satisfeito e vaidoso de entreter os jovens na sua narrativa imaginosa passavam cidades estranhas desfilavam exércitos estrondeava o tumulto das batalhas 11247_10229_000072 as empregava com desvelo e ardor no trabalho com as próprias mãos que enobrecia o seu destino humano lentz era o caçador restringido a um círculo de limitada atividade 11247_10229_000073 falaram da alemanha e o ancião narrou-lhes sem demora traços da sua vida era um veterano do exército prussiano cuja memória estava cheia de lembranças da última grande guerra 11247_10229_000074 mas longe do ódio da luta fratricida entre esses dois interpretes sucessivos da vida formara-se uma atração uma solda inquebrantável 11247_10229_000075 durante o dia trabalhavam mudos e abismados nas suas cismas e era com um passo moroso e incerto que vagavam às tardes pelas habitações vizinhas 11247_10229_000076 vendo-os aproximar-se a matilha de cães abandonou os urubus e avançou como uma só massa atroadora furibunda terrível contra os homens aproveitando a diversão os corvos caminhavam no terreiro e numa dança macabra iam invadindo a casa num 11247_10229_000077 casa do bruxo observou um dos homens designando assim a morada do intratável e velho caçador que habitava aquelas margens do rio vai ver que é algum dos cachorros que morreu também que o diabo os leve a todos praguejou o mulato que a peste os acabe malvados 12626_10229_000000 mas para isso que soma de energia de fluído nervoso não precisava de consumir valeria a pena as suas poucas forças o traíram e a inteligência fina distinta descortinou lhe pérfida o desenrolar de uma luta com os seus colegas 12626_10229_000001 o juiz municipal sem dar-lhe resposta olhou-o com grande nojo em pé no meio do terreiro de chapéu na mão a cabeça ao sol o colono via com os olhos desvairados a justiça sumir-se na estrada 12626_10229_000002 dizem que a alemanha tem planos dizem o colega sabe que em questões desta ordem não convém falar sem toda a segurança comentou profundamente o dr itapecurú e a sua cobardia solene punha uma certa brandura na discussão 12626_10229_000003 a mulher ficou pensativa sem responder naturalmente tem algum amigo que substitui o defunto disse pantoja para se vingar do interesse do juiz o que ele habituado a fazer tudo considerava como uma invasão dos seus privilégios 12626_10229_000004 ia passando fazendo-as gemer rumorosamente no vão das trevas de espaço a espaço pelas frestas descia a claridade e do jorro de luz se formava dentro da floresta uma coluna alevantada do chão para o céu atravessando o teto ondeante e docemente iluminada pelos reflexos das árvores 12626_10229_000005 cada um de nós a soma de todos nós exprime a força criadora da utopia e em nós mesmos como num indefinido ponto de transição que se fará a passagem dolorosa do sofrimento purifiquemos os nossos corpos nós que viemos do mal originário que é a violência o que seduz na vida 12626_10229_000006 e num esmorecido colapso ela vacilou e veio se apoiar nos braços de milkau que a foi arrastando vagarosamente enlaçados caminhavam pela cidade calada e adormecida iam morosos os passos dela eram vacilantes e os pés por tanto tempo entorpecidos tropeçavam nas pedras soltas da 12626_10229_000007 paulo maciel ficou sem saber o que dizer diante de tais atitudes o seu sentimento era suspender prender esse escrivão insolente seu subordinado legal era dispensar o inventário era ainda por cima dar dinheiro do seu bolso a desgraçada e mandá-la embora envolvendo-a num clarão de bondade 12626_10229_000008 com ela sereno e forte ao lado da sentinela conduzindo-a para a noite e para a liberdade fora o ar subtil e frio que lhe penetrava nas carnes sonolentas e tépidas o céu cristalino a cintilação das estrelas a largueza a imensidade do espaço davam a fugitiva uma deliciosa vertigem 12626_10229_000009 sentimento da perpetuidade nós nos prolongaremos desdobraremos infinitamente a nossa personalidade iremos viver longe muito longe na alma dos descendentes façamos dela o vaso sagrado da nossa ternura onde depositaremos tudo o que é puro e santo e divino 12626_10229_000010 capitão deixe de conversa fogo no estrangeiro nativista sempre abala paulo maciel parecia desinteressar-se da discussão e descuidado foi se afastando na direção da casa 12626_10229_000011 os braços de maria retesaram-se de novo e apertaram os de milkau havia um rumor contínuo e aflitivo de vento mau nas folhas da grande massa iam inquietos afundando os olhos na infindável negrura de onde vinha o clamor do mistério e do sofrimento das árvores castigadas e o vento implacável 12626_10229_000012 depois do almoço os animais estavam selados para a partida o dia era abafadiço e dominado pelo sol que mantinha sempre com a luz poderosa um grande silêncio 12626_10229_000013 o pouco que temos hipotecado as rendas das alfandegas nas mãos dos ingleses vapores não temos estradas de ferro também não tudo do estrangeiro e ou não o regime colonial com o nome disfarçado de nação livre escute 12626_10229_000014 olhou-a com os olhos desvairados agarrou-a pela cintura e com um sorriso diabólico feroz e resoluto gaguejou estrangulado não ha mais nada mais nada só só a morte maria resistia com fúria debatendo-se nas mãos fortes do homem rolaram por terra confundidos 12626_10229_000015 mas senhor pode ser que tenha mais ou menos não contei um por um meu defunto marido avaliava em quatrocentos eu plantei uns cem nesses dois anos bem eu arredondo a cifra 12626_10229_000016 que eu te ia mostrar e que também ansioso buscava não a vejo mais ainda não despontou à vida paremos aqui e esperemos que ela venha vindo no sangue das gerações redimidas não desesperes sejamos fieis à doce ilusão da miragem aquele que vive o ideal contrai um empréstimo com a eternidade 12626_10229_000017 como uma zoada infernal vinham os urros do santa maria acorrentado no fundo do cavado e fragoso vale e este se ia estreitando e as ribas mais angustas pareciam se terminar confundidas no horizonte sobre rochedos escarpados e negros milkau desanimou vendo-se perdido naquele 12626_10229_000018 trezentos mil réis trezentos mil réis meu senhor não tem meu senhor nem nada aqui não se faz esmola e dê-se por muito feliz porque não houve demanda si tivesse de meter um advogado é que havia de ser bonito trezentos mil réis nada de conversa e bico calado 12626_10229_000019 são uns miseráveis que têm o que perder disse fora de si brederodes ali há mais amor ao dinheiro às minas do que à honra os brasileiros não não temos nada a perder felizmente e isto decide o povo bravo doutor o senhor é dos nossos 12626_10229_000020 vista do cachoeiro em baixo aos seus pés coberto pelo manto cinzento e vaporoso da bruma sobre que passava a luz exausta da noite úmida levantando ali uma fosforescência vaga de nebulosa e debaixo desse manto se desenhavam seres fantásticos colossais gigantescos sem forma ainda imaginada 12626_10229_000021 ele deitou-se de manso e pôs-se à espera de que a noite avançasse tornava-se-lhe o sangue impetuoso de desejos e na mente neurótica passavam perturbadoras miragens sensuais levantou-se sorrateiro e apenas alumiado pela frouxa luz de um candieiro de azeite que estava na sala 12626_10229_000022 ela me paga deixe estar ainda que tudo isto aqui arrebente corja de alemães vossa senhoria não se zangue vou ver se ainda dou uma volta no caso e desapareceu na direção da casa fugindo do desabafo do promotor e este ficou só 12626_10229_000023 casa meio escura no corredor a claridade da noite que entrava pela porta da rua aberta como de costume deixava ver o corpo dum soldado negro dormindo numa postura brutal como uma figura tosca e arcaica a prisioneira alarmada quis recuar milkau tomou-lhe as mãos com império e passou 12626_10229_000024 que lhe revelasse a estrada da promissão e tudo era silêncio e mistério corriam corriam e o mundo parecia sem fim e a terra do amor mergulhada sumida na névoa incomensurável e milkau num sofrimento devorador ia vendo que tudo era o mesmo horas e horas fatigados de voar 12626_10229_000025 qual é a verdadeira moeda que nos domina onde o nosso ouro para que serve o nosso miserável papel senão para comprar a libra inglesa onde está a nossa fortuna pública 12626_10229_000026 um trecho do santa maria lívido morto cortava como um gladio fumegante a várzea do queimado onde as colinas baixas semelhavam corpos deitados de heróis antigos e mutilados corcundas e aleijões depois nada mais viram subiram ainda e entraram no bojo da mata 12626_10229_000027 e fica na ia revelar-se a nova luz sem mistério chegou e esclareceu a várzea milkau viu que tudo era vazio que tudo era deserto que os novos homens ainda ali não tinham surgido com as suas mãos desesperançadas tocou a visão que o arrastara ao contato humano ela parou e maria vou 12626_10229_000028 espavorida sentindo-se em liberdade deitou a correr veloz pela vereda de pedra que aos seus pés medrosos e vivos se tornava macia e segura milkau reanimando-se seguiu-a e as duas sombras enormes na obscuridade da treva iam desfilando sinistras e rápidas pela aresta da barranca num momento galgaram 12626_10229_000029 capitão não duvide dos meus sentimentos disse interessado o juiz de direito o escrivão encolheu os ombros com desprezo os senhores falam independência observou então cáustico o juiz municipal mas eu não a vejo 12626_10229_000030 depois de algum tempo disse a colona agora pode ir daqui a duas semanas apareça no cachoeiro no meu cartório para receber os seus papeis a mulher ia se retirando radiante de alívio espera lá que desembaraço ainda não disse o principal observou com acento escarninho o maracajá 12626_10229_000031 e nada variava e nada lhe aparecia corriam corriam apenas na sua frente uma visão deliciosa era a transfiguração de maria animada transmudada pelo misterioso poder do sonho a mulher enchia de novas carnes o seu esqueleto de prisioneira e mártir novo sangue batia 12626_10229_000032 mas não posso arranjar tanto dinheiro venda a casa sim meu senhor vou vender o que tenho para pagar as dividas de meu marido dividas da moléstia e depois trabalhar para outras novas 12626_10229_000033 como capitão perguntou cortês e lisonjeiro o juiz de direito esperando com ar admirativo a resposta como respondeu o escrivão com uma satisfação sinistra tocando fogo nas casas no mato nas cidades 12626_10229_000034 nas torturas do pesadelo parecia-lhe que beiços roxos sedentos e viscosos lhe buscavam os lábios maria sou eu repetiu milkau ela abriu os olhos e ficou deslumbrada a sua mão agora branda e lânguida tateava incerta para se certificar da súbita e estranha aparição do amigo 12626_10229_000035 há um ano apenas meu marido que já vinha doente do peito não durou muito estavam principiando a vida não é verdade apenas houve tempo de levantar a casa fazer o roçado para a plantação não se plantou nada é triste e como vive você inquiriu compassivo 12626_10229_000036 nos despedaçar com ela no universo desagregar-nos dissolver-nos na estrada dos céus não nos separemos para sempre um do outro nessa atitude de rancor eu te suplico a ti e a tua ainda inumerável geração abandonemos os nossos votos destruidores 12626_10229_000037 quando mais tarde a palestra esmoreceu o juiz de direito disse aos companheiros meus senhores que propõem para matar o tempo vamos uma partida de manilha paulo maciel não temia o tempo e ao contrario dos companheiros era mais feliz quando o deixavam só com os seus pensamentos 12626_10229_000038 gestos infantis e leves roçavam pela barba de milkau numa inconsciente carícia vamos levanta-te disse-lhe ele baixo e com firmeza sacudindo o morno carinho recolhendo e enfeixando com energia as suas forças mais intensas obedecendo maria ergueu-se e pela mão de milkau foi seguindo pela 12626_10229_000039 assim nessa postura os dois desgraçados lutaram longamente mas a força dele que a queria levar para a morte teve de ceder a dela que os prendia a vida e milkau fraqueou por fim caiu num súbito desfalecimento aniquilado confuso e dos seus braços esvaiados desprendeu maria ela lívida 12626_10229_000040 os juízes vieram para montar ajudados pelo meirinho e pelo dono da casa pantoja chegou-se ao grupo e disse ao promotor apontando o colono ainda não tive a minha conversa aqui com o amigo e batendo no ombro de franz kraus que o fitou espantado da intimidade acrescentou num gesto de irônica cortesia 12626_10229_000041 a raça essa associação degradada se quiserem mesquinha sim fraca quase a esfacelar-se mas amorável boa e amada apesar de tudo porque é nossa nossa oh muito nossa caminhando assim chegaram á casa onde eram esperados para jantar 12626_10229_000042 numa meia alucinação ruminando vinganças na casa tudo se aquietara os dois parceiros mortos de sono tinham-se resignado a deixar o baralho e estavam deitados nos quartos 12626_10229_000043 em seguida passou a tomar as primeiras declarações da viúva que triste e subjugada por aquele aparato judiciário ia respondendo docilmente a tudo o juiz municipal e o promotor despreocupados da audiência 12626_10229_000044 o colono olhava-o mudo e abatido muito bem agora tudo está em ordem fiquemos bons amigos procure os papeis no cartório no fim do mês e montou a cavalgada partiu parabéns disse itapecurú a paulo maciel está chovendo na sua roça 12626_10229_000045 o escrivão ficou embaraçado no seu duplo sentimento de chefe de partido na localidade e de nativista mas esses alemães não fazem nada são muito respeitadores e mansos um rebanho de carneiros por esses respondo eu 12626_10229_000046 pode afirmar sem medo disse o escrivão que estamos sendo cercados pela cobiça dos alemães o próprio imperador paga do seu bolsinho missionários e professores no rio grande e em santa catarina e o governo que faz a tudo isso perguntou brederodes e ele mesmo respondeu cruza os braços cuida de eleições de politicagem 12626_10229_000047 não dou tréguas ao estrangeiro aqui para nós sou até jacobino mas divertiu-se bem na europa e com certeza se pudesse não sairia de lá objetou maciel 12626_10229_000048 aproximemo-nos uns dos outros suavemente todo o mal está na força e só o amor pode conduzir os homens tudo o que vês todos os sacrifícios todas as agonias todas as revoltas todos os martírios são formas errantes da liberdade 12626_10229_000049 paulo maciel para evitar uma discussão com o subalterno no fundo de todos eles temido fingiu não ouvir a colona afinal disse estou em trato para vender a minha casa e vou me empregar como criada em outra colônia no fim de contas seu pantór 12626_10229_000050 depois de alguma demora que os ia impacientando apareceu o velho kraus tinha os olhos vermelhos as faces inchadas e rubras chorara pantoja recebeu o dinheiro e contou 12626_10229_000051 nunca abandonaria minha pátria não nego que a europa tenha alguma coisa de bom aqueles que como o senhor sentem desgosto de ser brasileiros devem dar uma vista de olhos ao velho mundo é salutar creia os meus sentimentos nacionais confesso estavam enfraquecendo 12626_10229_000052 isto é uma novidade para iludir a lei aqui está o formulário oficial e vossa senhoria não me mostra esses arrolamentos inventário é inventário senhor doutor respondeu o escrivão apossando-se da situação que o superior lhe abandonava 12626_10229_000053 e essas expressões desesperadas angustiosas passam no curso dos tempos morrem passageiramente esperando a hora da ressurreição eu não sei se tudo o que é vida tem um ritmo eterno indestrutível ou se é informe e transitório os meus olhos não atingem os limites inabordáveis 12626_10229_000054 puseram-se à mesa e o meirinho já de volta das intimações ajudava o serviço saindo do seu esconderijo maria rodava pela sala sempre perseguida pelos homens a pobre porém parecia fria e indiferente às frases atrevidas imorais com que a cobriam os sujeitos da justiça 12626_10229_000055 tirando de passagem folhas das laranjeiras que ia aspirando nervoso os companheiros o seguiam empenhados no assunto maciel pensava é o debate diário da vida brasileira ser ou não ser uma nação 12626_10229_000056 vitorioso nas artérias inflamando-as os cabelos cresciam-lhe milagrosos como florestas douradas deitando ramagens que cobriam e beneficiavam o mundo os olhos iam iluminando o caminho e milkau envolto no foco dessa gloriosa luz acompanhava em amargurado êxtase a sombra que o arrebatava 12626_10229_000057 a mulher vestida de luto muito baixa e ainda jovem com um ar apatetado e longínquo o ar da miséria aproximou-se uma filha de cinco anos segurava-lhe o vestido e ela carregava ao colo outra cuja cabeça dourada se realçava radiante por entre a pretidão das roupas da mãe 12626_10229_000058 o negócio não é para manifesto nem para eleições isto é coisa a parte coisa do interesse dos partidos dos amigos respondeu o escrivão tomando a sério o que dizia maciel 12626_10229_000059 outra vez para milkau a primitiva face moribunda os mesmos olhos pisados a mesma boca murcha a mesma figura de mártir vendo-a assim na miseranda realidade ele disse não te canses em vão não corras e inútil a terra da promissão 12626_10229_000060 brederodes recuou para o corredor e deixando a porta aberta deslisou nas pontas dos pés num instinto salvador que lhe fazia adivinhar no escuro o caminho do quarto no dia seguinte às nove da manhã o meirinho anunciava ao toque de campainha a audiência dos inventários dos vizinhos de kraus 12626_10229_000061 o brasil é e tem sido sempre colônia o nosso regime não é livre somos um povo protegido por quem interrompeu brederodes gesticulando com a luneta espere homem ouça diga-me você onde está a nossa independência financeira 12626_10229_000062 temos sobre o continente projetada a sombra dos estados unidos isto reconheço mas um dia fatigados de impedir que outros se apossem de nós eles nos comerão como fizeram a cuba 12626_10229_000063 o alto da montanha e pasmaram a vista dos livres descampados por onde descia a estrada a agonia de milkau se desmanchava a vista da planície dilatada e benfazeja os ruídos desesperados e atraentes do rio morriam atrás o abismo negro e assombroso passava como o tormento de uma vertigem 12626_10229_000064 e quando ela desapareceu e tudo voltou ao sossego profundo ficou ele longo tempo com a vista pregada na mesma direção subitamente numa raiva imensa e covarde murmurou olhando medroso para os lados ladrões 12626_10229_000065 todo este continente está destinado ao pasto das feras sul américa ridículo mas não haverá uma salvação não haverá um deus ou uma força que paralise o raio armado contra nós 12626_10229_000066 primeiro a justiça se não quiser nos pagar não venderá a casa nem o roçado eu prendo os papéis e agora vamos ver capitão pantoja ia dizendo o juiz municipal 12626_10229_000067 enfim vá lá minha culpa e está acabado temos o que merecemos daí pode ser que seja melhor a terra prosperará melhor administração mais polícia e é só vale a pena e o mundo é só isso vale a pena viver para ter mais polícia e a 12626_10229_000068 e a grande américa cruzaria os braços não sei até que ponto se meteriam nisso os estados unidos depois que lucro teríamos nessa intervenção passaríamos de um senhor para outro nada mais e a doutrina de 12626_10229_000069 paulo maciel cansado de estar em pé veio sentar-se no seu lugar e interessou-se um pouco por esse grupo é viúva há pouco tempo perguntou ele dois meses respondeu a moça e desde quando está no brasil 12626_10229_000070 vá amigo não se espante olhe que o negocio podia ser pior advogados demandas penhoras sob aquela pressão o colono foi caminhando automaticamente para a casa bravo capitão o senhor é de força observou lisonjeiro o juiz de direito ainda não viram nada respondeu o escrivão estimulado 12626_10229_000071 seguido pelo sorriso zombador dos que ficavam viúva schultz chamou pantoja depois de alguma hesitação uma camponesa alta ainda moça se aproximou 12626_10229_000072 planície se estendia pelo seio da noite e se confundia com os céus milkau não sabia para onde o impulso os levava era o desconhecido que os atraía com a poderosa e magnética força da ilusão começava a sentir a angustiada sensação de uma corrida no infinito canaã canaã suplicava ele em pensamento pedindo á 12626_10229_000073 deixe o caso comigo atalhou o escrivão colérico e intratável vossa senhoria é rapaz não entende disso veio ontem ao mundo mas a mim ninguém me embaça lágrimas todas elas choram 12626_10229_000074 disse trêmula que milkau ia falando fujamos para sempre de tudo o que te persegue vamos além aos outros homens em outra parte onde a bondade corra espontânea e abundante como a água sobre a terra vem subamos aquelas montanhas de esperança repousemos depois na perpétua alegria 12626_10229_000075 num papel escreveu várias parcelas somou-as resmungando e disse consigo afinal cento e oitenta mi réis está direito olha leve consigo o dinheiro das custas trezentos mil réis ouviu 12626_10229_000076 com esse escrivão chefe politico mandão da localidade luta inglória em que ele não se queria estragar os juízes passam e os escrivães ficam está bom 12626_10229_000077 tudo vai acabar e se transformar pobre brasil foi uma tentativa falha de nacionalidade paciência e que nos adiantam os estados unidos será sempre um senhor 12626_10229_000078 espectrais estreitados um ao outro aspirando o aroma capitoso e perturbador que se desprendia das flores noturnas caminhavam velozmente milkau repetia no ouvido da companheira o seu apelo de sedução e a felicidade que te prometo ela é da terra e havemos de achá-la quando vier 12626_10229_000079 seguiu pela casa a dentro e quando na volta do corredor o clarão se acabou às apalpadelas foi tateando as paredes ao dai com alguma porta punha-se à escuta para ver se por um movimento um sinal qualquer reconhecia o quarto de maria 12626_10229_000080 muito obrigado pela hospedagem camarada mas ainda falta alguma coisa que é interrogou inquieto o colono às nossas custas meu amigo você pode e por isso dê-nos logo está me cheirando mal o fiado vá buscar quatrocentos mil réis 12626_10229_000081 há quanto tempo seu marido é morto perguntou o escrivão iniciando o interrogatório diante da apatia do juiz municipal há dois anos sempre o mesmo ninguém cumpre a lei aqui todos herdam sem a menor cerimônia isto vai acabar juro 12626_10229_000082 presunção não lhe falta mas no fim de contas que tem feito sim desembuche para vermos o que tem tão escondido escarneceu o escrivão uma coisa afirmo nada sabe do ofício 12626_10229_000083 cheguemos a um acordo faça-se apenas um arrolamento sumario dos bens em vez de um inventario formal propôs com uma voz fatigada pantoja mediu-o triunfante 12626_10229_000084 quando gonçalves dias e alencar deram o grito de alarma pelo brasil pelo caboclo nós estudantes respondemos ao nosso modo eu me chamava manoel antônio de sousa e só 12114_10229_000000 vamos procurá-lo propôs milkau é tempo mesmo porque já podíamos ir jantando acedeu lentz já aquela hora o sol esfriando transformava magicamente o panorama graduando a cor que parecia surgir pouco a pouco do seio secreto das coisas 12114_10229_000001 outros entravam e saíam do armazém cantarolando com a voz rouca e a gesticulação de embriagados o estrondo dos pés que dançavam no sobrado ecoando no vasto armazém e o som langoroso de um realejo incessante desciam do alto atordoando a gente 12114_10229_000002 no terreiro já não havia quase ninguém as crianças tinham debandado os grandes haviam partido para as colônias ou se tinham recolhido ao salão do baile subiram ao sobrado onde na sala da frente se começava a dançar 12114_10229_000003 de fato no sobrado enquanto a sala da frente se achava quase deserta e apenas com algumas pessoas à janela vendo o baile das crianças a sala do fundo estava num grande burburinho 12114_10229_000004 era um sobrado branco no fundo de um vale e à margem de um endiabrado ribeiro que descia em tropel infindo do morro para o santa maria a roda dele o terreno estava limpo de plantação e havia um pequeno campo de relva tenra e fresca que brilhava ao sol 12114_10229_000005 por aqui mesmo neste banco ou na janela quando a jovem partiu arrebatada pelo par maria disse a milkau não lhe parece tão boazinha é filha de um colono do luxemburgo há muito tempo não nos víamos e hoje tem sido um regalo oh desde manhã andamos nesta roda viva 12114_10229_000006 e achegava-se a alguma mulher quase de rastos suspenso querendo arrebatá-la numa volúpia contida mas que se adivinhava febril vertiginosa depois erguia-se num salto de tigre retomava a sua doidice como num grande ataque satânico 12114_10229_000007 os músicos instalaram-se num dos ângulos do pátio largo liso lavado que recebia em seu lajedo para irradiá-la a força do sol num momento ficou coalhado da gente simples e fácil de contentar desses que são amados da alegria e em quem ela não encontra atropelo para reinar livremente 12114_10229_000008 durante algum tempo ninguém se moveu e a música prosseguia solitária nos seus largos e chorosos compassos mas de repente como um fauno antigo 12114_10229_000009 onde cada um parece possuído do espirito do demônio solto sobre a face do mundo devastando-a nos seus impulsos de loucura e estrebuchando para morrer num espasmo de maldade aqui ao menos é a serenidade é a calma é a alegria 12114_10229_000010 o nosso interesse é misturarmo-nos a alegria deste povo compreender a sua vida e felicidade felicíssimo olhou-o com os olhos miúdos caídos e vagos depois com uma cara feita de um riso complacente e velhaco arrastando a voz 12114_10229_000011 todos se precipitaram para indagar do que se passava havia grande discussão em vozes altas e agudas mas tudo cortado por atroadoras e bruscas gargalhadas todavia maria e a companheira não estavam tranquilas pensando que uma grande rixa se travava ali 12114_10229_000012 e se expandir mais livre a superfície luminosa a aragem refrescava o tempo passando volátil pelas cabeças louras das mulheres brincando-lhe nos cabelos num leve arrepio que lhes descia da nuca 12114_10229_000013 qual o camarada não me conte rodelas então você mesmo você que lá na sua língua procura misturar-se á alegria desta gente que quer mais senão o pior meu amigo que com esta discussão são nós vamos ficando sem jantar cortou lentz 12114_10229_000014 junto de milkau no mesmo banco sentaram-se duas mulheres uma delas reconheceu ele a mesma que na capela o fitara durante o seu sono estavam ali 12114_10229_000015 seria para esquecer tantos aborrecimentos que desejaria um grande sono acabou a frase com uma voz sumida e vagarosa aborrecimentos imagino a que coisas simples dá este triste nome observou milkau ela não respondeu e ligeiramente abaixou os olhos 12114_10229_000016 oh pensei que fosses o último a deixar essa casa gritou lentz recebendo jovial o companheiro não sabia que eras tão grande apaixonado de festas distraí-me vendo os outros alegres e quis te dar a liberdade de te divertires ao teu modo 12114_10229_000017 mas eu estou comprometido professor como com quem com augusta feltz mas não é possível você tão miúdo e ela tão crescida replicava o velho tremendo-lhe as mandíbulas moles no círculo as mães intervinham acompanhadas por outras vozes de mulheres 12114_10229_000018 enquanto outra música outra dança invadia o cenário era a valsa alemã clara larga fluente como um rio na sala os pares voavam num frenesi e entre estes se foi a amiga de maria fora havia mais luar as sombras minguando se resumiam mais fixas 12114_10229_000019 era isto que eu procurava e que enfim achei viver no meio de gente simples partilhar com ela o seu doce esquecimento da dor matar o ódio compara esse povo com os homens de outras terras 12114_10229_000020 seu chefe se encarregou disso referiu lentz mas sumiu-se de nós e esqueceu-se de nos dizer o que arranjou ah mas ele há de voltar concluiu confiante milkau 12114_10229_000021 os movimentos eram tardos e pesados dentro de sapatos grossos ferrados batendo fortemente os pés no assoalho arrastando-se com esforço faziam um barulho seco enorme que dominava as vozes dos instrumentos 12114_10229_000022 e entraram no mato debaixo de uma carregada sombra um par amoroso cochichando descansava com a presença dos estranhos o jovem abaixou a cabeça enleado disfarçando a remexer nos gravetos esparsos no chão 12114_10229_000023 milkau saiu para ver o que se passava e pouco tempo depois voltou não é nada o agrimensor felicíssimo entende que já basta dessas danças estrangeiras e que agora se deve passar as danças brasileiras 12114_10229_000024 o que não falta é comida olhem só lá para dentro do armazém por cima das cabeças desta gente vejam que povo está ali agarrado ao balcão parece urubu cercando carniça e atrás nas salas as mesas já estão apinhadas para a hora do jantar o que é preciso é marcar os lugares desde já 12114_10229_000025 maria estremeceu ouvindo o canto de amor e sem saber o que fazia fitando com os olhos ardentes o céu apontou a lua dizendo com voz sumida e trêmula que tristeza 12114_10229_000026 a criançada agora sobre ele girava doidamente a rodar a rodar como se fosse movida por um pé de vento a música acabou a marcha e deu o sinal de uma quadrilha 12114_10229_000027 felicíssimo não saía da sala de jantar onde com amigos alemães continuava a cantar e a beber de vez em quando ao menor silêncio da música as vozes deles alegres entoadas entravam num grande alvoroço 12114_10229_000028 a torrente rolava borbulhando um vento manso balançava os ramos e destes as sombras ainda longas dançavam inquietas que é isto interrogou maria meio assustada por um grande barulho de vozes que vinha da sala de jantar para o lugar do baile 12114_10229_000029 anda meu velho ajuda-me que tenho de atender a freguesia olha vai tomar um copo lá dentro era o argumento irresistível e proveitoso porque a miragem desse copo afastava o homem daí e dava algum lucro ao armazém o lugar ficou limpo da gente grande que se enfileirou aos lados formando o quadro do pátio 12114_10229_000030 um cheiro de alho de vinagre e pimenta excitava a multidão e entretinha a sua voracidade felicíssimo estava numa cabeceira da mesa com dois lugares vazios de cada lado e quando avistou os companheiros chamou-os num sobressalto aqui aqui 12114_10229_000031 alguns minutos depois tocou de novo a música uma valsa e quase todos foram dançar milkau então falou a vizinha não dança ela não se intimidou ouvindo a voz dele até então silencioso e tranquilo 12114_10229_000032 ali estavam negociantes do cachoeiro com as mulheres caixeiros da cidade tropeiros lavradores criadas e todos reunidos numa grande promiscuidade sem separação de classes 12114_10229_000033 de charuto ou cachimbo ao queixo e chapéu na cabeça enquanto as mulheres amarravam lenços ao pescoço por causa do suor que lhes escorria da fronte milkau estava só o seu informante tinha-o abandonado farto de lhe relatar coisas da colônia 12114_10229_000034 milkau que se tinha conservado mudo a contemplar satisfeito o prazer alheio viu um rosto amigo que se aproximava era joca que em mangas de camisa de lenço ao pescoço e um cinturão de couro segurando a calça vinha saudá-lo abrindo a boca em que se apertavam os dentes felinos 12114_10229_000035 depois deste acordo os músicos vieram para os seus lugares e a gente ansiosa correu para a sala num borborinho de risadas para conseguir um bom lugar depois sucedeu um silêncio de espera ninguém se movia mais na sala livre para a dança 12114_10229_000036 muitos saíam até ao terreiro para se refrescar namorados passeavam ali no escuro abraçados velhos fumavam o seu cachimbo resmungando conversas preguiçosas até que de novo a música dava o sinal e todos voltavam à sala em ordem sem o menor embaraço passando a dançar automaticamente 12114_10229_000037 o pensamento de milkau como obedecendo a um chamado estranho subiu ao astro morto ela imaginou a solidão de um mundo sem vida essa terra deserta marchando como um cadáver fantástico na estrada do infinito 12114_10229_000038 um velho alto com uma longa sobrecasaca preta e surrada de óculos azuis e uma cara de jenipapo murcho entrou no terreiro pra dirigir o baile infantil foi um instante de sossego 12114_10229_000039 a mulher aconselhou-os a subir à sala do fundo onde se servia o jantar pois talvez aí o encontrassem e falou-lhe dos lugares encomendados para três 12114_10229_000040 das pessoas grandes muitas ficavam entretidas acompanhando a festa das crianças outras porém fatigavam-se da atenção e punham-se a passear pelo arraial indo a beira do rio deitando-se na relva para verem passar a água 12114_10229_000041 com os olhos pregados no espaço abismados em melancolia no terreiro as crianças fatigadas estavam serenas intimidadas pelo silêncio que elas mesmas faziam e as mais pequenas cabeceando de sono encostavam-se as mães sentadas no chão 12114_10229_000042 por um instante uma ligeira sobre-excitação coloriu as faces de lentz que tremia em pensar no vago da distancia ainda à sua frente e naquela vida estranha que levava ah agora a coisa vai ser mais animada disse em sobressalto o mulato olhando alvoroçado para o fundo lá vem a banda 12114_10229_000043 oh é verdade gritou o agrimensor erguendo-se apoiado nas mãos em pé berrava chamando os criados afinal uma rapariga atendeu postando-se em frente ao cearense a espera de uma ordem 12114_10229_000044 o dono da casa todo de branco em mangas de camisa e com um grande chapéu de palha na cabeça apareceu no pátio e depois de se entender com o mestre da banda principiou a falar dando ordens 12114_10229_000045 alguém perguntou ao agrimensor o que ia ele dançar felicíssimo cambaleando com os olhos tortos e compridos saiu para o meio da sala gritando com voz difícil é o chorado meu povo 12114_10229_000046 uma imensa risada dos grandes o recebeu e os meninos pararam a dança meio espantados abrindo o círculo o palhaço começou a cabriolar a gritar imitando animais e daí a pouco no meio da algazarra geral metia-se na roda das crianças de olhos tapados a diverti-las 12114_10229_000047 também da sua parte ela não deixou de acompanhar a furto o vizinho e as vezes mesmo com certa ousadia o mirava nos olhos plácida e inocente havia nela certa beleza uma distinção maior do que era comum nos colonos 12114_10229_000048 venham venham meus amigos e felicíssimo gritando corria para eles arrastando-os os outros espantados da efusão do agrimensor perguntavam para onde os levava vamos a um copo de cerveja 12114_10229_000049 milkau e lentz começaram a jantar dos pratos rústicos que serviam no meio de algazarra e de desordem muitos caixeiros da cidade mais bem trajados que os camponeses recusavam a comida ordinária e pediam aves em conserva de que se serviam bebendo o vinho do reno 12114_10229_000050 afinal o professor conseguia arranjar as quadrilhas e a música rompia a dança os pequenos estavam exercitados de modo que tudo corria em ordem sem confusão 12114_10229_000051 distinguindo se do resto das outras raparigas desengonçadas ou morosas arrastadas com estrépito pelos seus pares um homem de tosca figura que estava ao lado de milkau referiu se a ela 12114_10229_000052 não se passou muito tempo sem que o baile entrasse em plena animação a sala depois que a noite avançara fora mais iluminada e a música não cessava de tocar e todos se divertiam alegremente agora é que se podia ver a variedade de gente aglomerada na casa de jacob 12114_10229_000053 perseguia um bando de raparigas louras coradas que fugiam rindo num fingido susto alguns velhos já ébrios de cachimbo ao queixo arrastavam as vozes fazendo mesuras às mulheres que riam destemperadamente as crianças invadiam o terreiro vindo em grupo abrindo espaço aos empurrões 12114_10229_000054 os camponeses o admiravam numa alegria infantil os rapazes da cidade o deprimiam com aplausos irônicos com frases insultuosas ditas no meio de risadas 12114_10229_000055 ali a música tocava uma valsa arrastada e langorosa e pouca gente dançava pois muitos ainda permaneciam a mesa ou se postavam encostados as portas e as janelas tímidos e negligentes 12114_10229_000056 e nas janelas muitas pessoas com ar indiferente debruçavam-se para o terreiro olhando a agitação em volta e fitando pasmadamente a paisagem que parecia também mover-se toda arrebatada pela celeridade do regado 12114_10229_000057 o agrimensor ordenou por sua conta mais cerveja que mandava distribuir em torno disputava-se cada garrafa das mãos das criadas e na confusão na desordem na desatenção o líquido espalhava-se pela mesa dos copos entornados na sofreguidão da conquista 12114_10229_000058 e eles foram entrando no meio do ruído da agitação dos alemães a sombra da varanda quando a tarde começava a refrescar e a luz a esmorecer 12114_10229_000059 as mãos ora baixas estalando castanholas ora unidas saindo dos braços retesados ora espalmadas no ar e nesse gesto ébrio de música perfilado nas pontas dos pés ele parecia com os braços abertos querer voar 12114_10229_000060 milkau desistiu de segui-lo e voltou a lentz procurando ambos um lugar para descansar acharam no enfim em um banco debaixo de uma laranjeira em frente á casa 12114_10229_000061 todo o seu corpo se agitava num só ritmo a cabeça erguida tomava uma expressão de prazer ilimitado a boca entreaberta com os dentes em serra sorria 12114_10229_000062 aproximaram-se do baile das crianças que prosseguia vivo e animado agora havia uma grande roda dos dançantes que ora célere ora vagarosa se ia movendo aos cantos infantis estridentes e desafinados 12114_10229_000063 aqui estive a conversar sobre a alemanha com estes amigos e falamos também de outra alemanha que há de vir no futuro não é verdade camaradas os outros aplaudiram a profecia 12114_10229_000064 alguns de braço como noivos iam se perdendo pelo mato adentro e outros se reuniam ao balcão a beber e a cantar as velhas estrofes do prazer e do convívio humano que na ilusão instantânea os transportavam à terra abandonada 12114_10229_000065 milkau acompanhou-o para lhe dar uma explicação da recusa mas o outro levado pelo rompante lá se foi metendo-se pelos grupos e entrando no armazém 12114_10229_000066 e quando a meninada estava muito entretida um sujeito mascarado saltou no pátio disfarçado em palhaço maltrapilho besuntada de alvaiade a cara e beiços e faces pintados de vermelhão 12114_10229_000067 um rapaz se aproximou e sem dizer uma palavra a moda do lugar tomou pelo pulso a outra moça arrastando-a para a dança a rapariga ergueu-se e voltando-se para a amiga disse radiante e rápido maria onde me esperas não quero me separar de ti tenho tanto que te dizer 12114_10229_000068 a paz da tarde avançando sutil reinava sobre as gentes entorpecendo-as com a sua doce perfídia mas onde se meteu o agrimensor onde se meteu ele ia dizendo lentz passando de grupo em grupo e mirando por toda a parte 12114_10229_000069 ora respondeu lentz não mude os papeis foi você exatamente que nos deixou e meio amuado não se importou mais conosco que sem nenhum conhecimento temos andado vagando á matroca 12114_10229_000070 foi um delírio para o maranhense que começou a dar outros vivas ao povo do cachoeiro a jacob miller a união da rapaziada todos se divertiam gesticulavam dançavam descompassados acompanhando a banda 12114_10229_000071 em geral os pares compunham-se de raparigas que enlaçadas umas as outras rolavam provocadoras sacudindo com os seus movimentos o torpor dos rapazes até que esses estimulados viessem separá-las tomando uma delas para seu par fixo 12114_10229_000072 e com gesto de carinho quase maternal pegou na mão da outra rapariga que se deixou acariciar negligentemente como habituada aquelas maneiras da amiga milkau ficou meio confuso e desculpou-se confessando que não sabia dançar e a sua interlocutora 12114_10229_000073 a descansar bem perto dele aqueles mesmos olhos meigos e infinitos sobre os quais via boiar imagens doloridas que seriam a vida e o amor da rapariga esta respirava ofegante tinha um ar fatigado e sentava-se num pesado abandono 12114_10229_000074 deixe lá replicou meio confiada e íntima que às vezes seria melhor passar a vida a dormir já vejo que converso com uma grande preguiçosa eu nunca volveu com vivacidade a rapariga não é por preguiça 12114_10229_000075 naturalmente é uma colona não é criada no cachoeiro e o patrão dela é aquele mesmo que é o seu par martin fidel não conhece não pois admira é um dos negociantes mais ricos da cidade a família está toda aqui a mulher já é velha como ele 12114_10229_000076 felicíssimo deu mais algumas voltas e afinal como numa guinada de navio o seu corpo se arrojou rápido violento contra a parede foi uma barafunda todos gritavam de susto uns fugiam abandonando os lugares outros riam do espetáculo 12114_10229_000077 nas cercanias da casa de jacob muller a paisagem tinha o realce e a vida comunicada pelo movimento da gente que se ia reunindo muitos a pé ou montados vinham da capela do jequitibá outros de santa teresa e outros do cachoeiro 12114_10229_000078 a rapariga porém numa tranquilidade altiva com seus olhos serenos e francos expulsou os perturbadores quando tornaram á clareira desistiram de procurar felicíssimo no arraial e se encaminharam para a casa 12114_10229_000079 os dançantes continuavam no compasso marcial da polaca executando variadas figuras ora desenhando meias luas ora separando-se em alas marchando frente a frente ora fazendo evoluções de homens e mulheres separados para se reunirem depois de diferentes voltas 12114_10229_000080 puxou o copo de cerveja e bebeu olhou a garrafa que esvaziara bateu na mesa pedindo que lhe trouxessem outras seis nós não tomamos tanto objetou milkau se vocês fizeram voto eu não fiz beberei todas seis 12114_10229_000081 estou certo de que temos tudo arranjado e você joca que fim levou rolando amigo de um lado para outro a fazer medição agora lá para o guandu isto é esses dias nós descemos ao cachoeiro para folgar um pouco e como vão lá no prazo já sei que a casa está bonitinha e o cafezal 12114_10229_000082 plantado no roçado que fizemos sim ao lado da casa e quando beberemos d'esse café a resposta foi um gesto largo de mão indicando o tempo remoto 12114_10229_000083 um momento depois de passarem por um grande cafezal belo em sua viçosa negrura na encosta de uma montanha majestosa começaram a ver cruzes pretas e pedras brancas por entre os pés de café que é isto perguntou lentz um cemitério respondeu milkau e acrescentou 12114_10229_000084 quando a contradança parava os pares voltavam-se num mesmo instante como por uma combinação mágica e todos livres se moviam vagarosamente procurando os bancos encostados às paredes das salas ou aos cantos das janelas 12114_10229_000085 felicíssimo mirou-a com malícia piscando os olhos para o companheiro e depois como a alemã enleada quisesse partir ele resolveu-se a falar meu bem meu amor você traga jantar igual ao que me tem trazido para estes dois amigos comecemos por um caldo de ervas 12114_10229_000086 o sobrado ficava destacado das grandes massas de árvores e de folhagem que vestiam as pedras dos morros ao chegarem ao terreiro da casa já as vozes da festa vinham ao encontro dos dois novos colonos 12114_10229_000087 o peito ofegava as pernas morenas não se retesavam com a mesma energia de pouco antes com a flexibilidade vigorosa do pão d'arco exausto ele derreou o corpo combalido e o último intérprete das danças nacionais foi cedendo o terreno aos vencedores 12114_10229_000088 a gente movia-se muito bandos de moças de branco passavam de mãos dadas rapazes corriam pelo campo em mangas de camisa em apostas brincalhonas uma pequenada vadia espalhava-se guinchando pelo terreiro como um bando desesperado de maitacas 12114_10229_000089 o porte era gracioso o busto erguido porém de um contorno farto e as mãos brancas talvez longas demais saíam dos braços como cabeças de galgo 12114_10229_000090 algumas velhas aplicavam-lhe palmadas nas costas outras puxavam-lhe levemente a barba ele respondia aos socos berrando a festa é das crianças limpa o terreiro arreda vocês têm baile à noite e depois persuasivamente virava-se para os mais teimosos 12287_12742_000000 constituíam uma destas fisionomias que se sente que vão ficar na galeria da história e que servirão a futuros historiadores para explicar um destino e um gênio em novo 12287_12742_000001 lord granville na câmara dos lords na câmara dos comuns gladstone fizeram em sessão solene o seu panegírico público e durante dias toda a imprensa inglesa a imprensa de todo o mundo civilizado 12287_12742_000002 mas que os críticos mais benévolos falam como dum volume de duzentas páginas sem uma só linha tolerável e cousa curiosa este homem tão fino tão cético tão experiente nunca perdeu a candura quase cômica de se considerar um grande poeta como virgílio ou como dante 12287_12742_000003 mas uma criação subjetiva da sua própria vontade e como um enredo de romance talhado pela sua pena senão veja-se tendo nascido judeu tornou-se o chefe de uma aristocracia saxônia e normanda a mais orgulhosa da terra 12287_12742_000004 benjamin disraeli tornou-se bem depressa um dos heróis deste salão onde desde logo se mostrara com esse ar de tranquila superioridade de correto desdém que foi um dos segredos da sua força 12287_12742_000005 de raça oriental teve sempre o amor do fausto das pedrarias dos ricos tecidos da pompa os seus romances transbordam de descrições de palácios de festas perante as quais as mais ricas galas de salomão são como desbotados cenários de teatro de feira 12287_12742_000006 num dia de crise política em que lord beaconsfield devia fazer um discurso decisivo encontrou-o momentos antes num dos salões da câmara ocupado a encher d'água o tubozinho de cristal que por trás da botoeira da casaca conservava frescas as suas rosas todo o homem está neste traço 12287_12742_000007 onde expirava o homem que sessenta anos antes era um pobre escrevente de cartório pode-se dizer que nesta carreira tão feliz a morte mesma foi feliz 12287_12742_000008 e quando as modas românticas o permitiam vestia-se de cetim e veludo recobria-se dum luxo de medalhões e joias as suas próprias calças tinham bordados d'ouro agora era mais sóbrio de toilette usava apenas esses casacos compridos como túnicas 12287_12742_000009 tinham ainda outros distintivos usavam o cabelo à nazarena mostravam a coragem enorme nesse tempo de admirar o odiado byron e procuravam elevar e aperfeiçoar a arte da cozinha em inglaterra 12287_12742_000010 qualquer inglês medianamente educado a quem se pergunte a sua opinião sobre lord beaconsfield dirá foi um homem extraordinário extraordinário é como ele se nos representa agora que se vê o conjunto da sua existência que não parece ter sido um produto natural dos fatos ou das ocasiões 12287_12742_000011 hoje não me quisestes ouvir um dia virá em que eu me farei escutar e um dia veio em que não só a câmara dos comuns mas a inglaterra todo o continente a terra civilizada escutavam com ansiedade as palavras que iam cair dos seus lábios 12287_12742_000012 e um dos poetas mais elegiacos do seu tempo e notavel ainda por não ficar na historia nem como banqueiro nem como poeta mas como um requintado gourmet o grande lucullus de londres que deu os mais celebres os mais finos jantares da europa 12287_12742_000013 as duas dominantes figuras de londres dessa época e que tinham de sociedade o mais seleto mais inteligente mais apetecido salão de inglaterra estes dous formavam um tipo destinado a reinar 12287_12742_000014 ainda dilatou o peito lançou os braços ao ar como costumava fazer nos grandes debates da câmara depois recaiu sobre o travesseiro estendeu as mãos a lord rowton e lord barrigton seus secretários e murmurou debilmente 12287_12742_000015 os noivos vieram viver com lady blenington e bem depressa entre seu brilhante marido e sua resplandecente mãe a pobre condessa d'orsay foi como uma pálida lâmpada bruxuleando entre dous astros fez então uma cousa sensata e espirituosa apagou-se de todo desapareceu e o conde d'orsay e lady blenington 12287_12742_000016 durante a doença aos acessos agudos da dor respondia ele com esses sarcasmos mordentes e rebrilhantes que tinham sido sempre a sua desforra querida perante um adversário mais forte 12287_12742_000017 e todavia nada parece mais injustificado que uma tal apoteose lord beaconsfield por fim foi um homem de estado que fez romances 12287_12742_000018 recomeçando hoje estas cartas de inglaterra que eu não podia escrever de lisboa onde estive alguns meses gozando os ócios de tityro sub tegmine fagi á sombra dessa faia constitucional que se chama o grêmio devo memorar ainda que tarde a morte de benjamin disraeli 12287_12742_000019 nas universidades nos institutos nas academias os professores comemoraram aquela carreira soberba pelas plataformas dos meetings nas assembleias comerciais em qualquer parte onde se juntam homens alguma voz se ergueu a honrar os seus serviços e seu gênio 12287_12742_000020 o seu olhar recolhido e como concentrado em pensamentos muito fundos o nariz de pura raça israelita a boca descaída na sua eterna curva sarcástica o beiço inferior muito recurvo e muito pendente e a sua estranha pera de mefistófeles 12287_12742_000021 pague à vista ao portador tanto ouro quanto seria necessário para reconstruir os quatro leões de ouro maciço que ornavam a porta direita do templo de salomão também muito chique estou certo que um dos grandes prazeres de lord beaconsfield 12287_12742_000022 um irresistível encanto pessoal tudo isto envolvido como numa atmosfera luminosa por alguma coisa de brilhante de rico de largo de imprevisto que era ou fazia o efeito de ser o seu gênio 12287_12742_000023 prodigiosa finura de espírito uma vontade de aço uma coragem serena de herói uma infinita veia sarcástica um fogo ruidoso de eloquência o absoluto conhecimento dos homens a luminosa penetração no fundo dos caracteres dos temperamentos um poder sutil de persuasão 12287_12742_000024 esse era o homem que durante vinte anos governou a moda o gosto as maneiras com a mesma indisputada autoridade com que hoje o príncipe de bismarck arbitra na europa 12287_12742_000025 assim marcado com o rotulo cristão benjamin disraeli largou a caminhar pela vida fora mas foi encalhar bem depressa num cartório de tabelião onde se diz que durante dos anos este moço orgulhoso que já então se considerava um semideus redigiu procurações e testamentos 12287_12742_000026 mas nesse tempo o belo disraeli júnior era ainda radical ou tomara ao menos essa atitude meditava mesmo a sua epopeia da revolução a sua única obra em verso uma vaga rapsódia que eu nunca li 12287_12742_000027 homem de imaginação de poesia de fantasia foi o ídolo das classes médias de inglaterra as mais práticas e utilitárias que jamais dirigiram uma nação comercial 12287_12742_000028 e a esperança fantástica de que as gerações futuras poriam a epopeia da revolução ao par da eneida ou da divina comédia 12287_12742_000029 a que os homens de origem judaica são particularmente afeiçoados e o seu único adorno eram os belos ramos que lhe enchiam o peito um jornalista francês 12287_12742_000030 mesmo quando estava no poder estava ainda no romance as linhas da sua biografia são conhecidas seu pai era um destes literatos medíocres e trabalhadores 12287_12742_000031 usar um modelo de gravata ou admirar um poeta que não tivessem sido aprovados pelo conde d'orsay seria correr o mesmo risco de uma nação que hoje sem autorização secreta do príncipe de bismarck organizasse uma expedição militar 12287_12742_000032 com a mesma pena porém ia escrevendo vivian grey e da tempestuosa sensação que este romance produziu data a sua grande carreira a obra á parte algumas fugitivas cintilações 12287_12742_000033 desaparecia sob corôas ramos e molhos de primroses que a rainha victoria mandara com estas palavras escritas pela sua mão as flores que ele amava 12287_12742_000034 era poder manejar os milhões de inglaterra todos os seus ministérios custaram caudalosos rios de dinheiro gastava o ouro como a água e dava-se ao luxo de realizar por si e a custa do seu país as larguezas épicas do seu banqueiro sidônia 12287_12742_000035 lothario o famoso lothario querendo dar um presente de anos a uma senhora católica oferece-lhe uma catedral toda de mármore branco que ele mandou construir e que dedicou à santa do nome dela 12287_12742_000036 o seu estilo ressente-se deste gosto é um suntuoso estofo com recamos de ouro cravejado de joias cintilante e espesso caindo em belas pregas ao comprido da ideia 12287_12742_000037 já lhe chamavam sempre vivian querido vivian o conde dorsay fizera-lhe o retrato a sépia honra que ele dava raramente e a mais apetecida nesse curioso mundo 12287_12742_000038 o caminho que lá levava ia por entre jasmineiros e rosais em vez do dobre dos sinos de westminster teve o gorjear das suas aves e o caixão seguido pelos príncipes de inglaterra por todos os embaixadores pela aristocracia que ela governara 12287_12742_000039 todos estes triunfos de disraeli junior não deixavam de surpreender disraeli sénior um dia dizendo-lhe alguém que seu filho estava compondo um romance em que entravam duques e toda a sorte de grandes o velho e laborioso literato exclamou 12287_12742_000040 benjamin tinha então dezessete anos e o seu padrinho na pia batismal foi um certo samuel rogers notável por ser ao mesmo tempo um dos mais ricos banqueiros da city 12287_12742_000041 o seu custo excederia decerto dois mil contos fortes confessemos que é chic pois bem presentes destes dava aos lothario todos os dias 12287_12742_000042 dirigiu anos e anos a inglaterra o país mais hostil ao espírito estrangeiro e que conhecia bem que não era compreendida pelo homem que a governava tudo isto parece paradoxal e a existência de lord beaconsfield foi com efeito um perpétuo paradoxo em ação 12287_12742_000043 quereriam ver o povo feliz contanto que estivessem eles no poder para promover essas felicidades e traço decisivo das suas maneiras e da sua pose quando se escreviam uns aos outros tratavam-se por my darling meu amor 12287_12742_000044 de um gênio ainda desequilibrado é no seu conjunto ao mesmo tempo pesada e vaga mas satisfazia aos gostos escandalosos e intrigantes da sociedade de então pondo em cena todas as individualidades marcantes de londres 12287_12742_000045 sem religião e sem moral governou um protestantismo que não concebe ordem social possível fora da sua estreita religião e da sua estreita moral confessando o seu desprezo pela omnipotência da ciência moderna 12287_12742_000046 lady blenington entre outras coisas embaraçadoras tinha uma filha e o belo d'orsay não sei porque nem ele o soube jamais casou com essa menina 12287_12742_000047 o banqueiro sidônia uma das mais curiosas criações de lord beaconsfield dando ao seu amigo tancredo uma carta de crédito para os banqueiros da síria redige-a deste modo 12287_12742_000048 e assim parecia quando tempo depois disraeli já deputado por wycombe fez o seu primeiro discurso e o viu sufocado pelas gargalhadas e pelos apupos como não podia dominar o tumulto calou-se dizendo apenas estas palavras mais 12287_12742_000049 lady blenington era uma mulher de graciosa e olímpica beleza de uma extrema audácia de carácter e de alta energia intelectual o conde dorsay 12287_12742_000050 oferecia o espaço de uma boceta e no quarto da criança entre a acumulação vetusta dos calhamaços havia apenas espaço para uma cadeira e para um berço o velho disraeli era judeu mas felizmente para os destinos futuros de seu filho rompeu com a sinagoga e todos os disraeli se fizeram cristãos 12287_12742_000051 disposição estranhável num homem que mais que tudo amou a pompa e os grandiosos cerimoniais mas não teve também o lúgubre cenário da morte os crepes as plumas negras as tochas os fumos as caveiras bordadas 12287_12742_000052 foi o grande homem de uma sociedade que quer dar a todo o progresso uma base puramente científica enfim sendo o menos inglês possível tendo um modo de ser e de sentir quase estrangeiros 12287_12742_000053 duques senhores mas meu filho nunca viu um sequer viu muitos depois viu-os todos e governou-os com uma vara de ferro 12287_12742_000054 no dia a noite caiu pouco a pouco numa sonolência comatosa e assim permaneceu até ao romper da manhã momentos antes de morrer agitou-se ergueu-se 12287_12742_000055 livres daquela senhora que entristecia regelava as salas com o seu ar honesto e frio começaram então a cintilar tranquilamente como constelações conjuntas no firmamento social de londres 12287_12742_000056 a jovem inglaterra consistia num grupo de rapazes ardentes e aristocratas que se tinham embebido da revolução através da literatura falavam muito da humanidade e queriam sobretudo um burgo podre que os nomeasse deputados cultivavam pelos salões o amor platônico 12287_12742_000057 começando em um obscuro circulo literário e vegetando algum tempo em um cartório de londres veio a ser o mais famoso primeiro ministro de um grande império não possuindo senão dívidas bem cedo se tornou o inspirador das grandes fortunas territoriais 12287_12742_000058 o dinheiro o ouro preocuparam-no sempre menos pela sua influencia social que pelo mero esplendor da sua amontoação os seus heróis possuem fortunas tão prodigiosas que seriam impossíveis nas condições econômicas do mundo moderna 12287_12742_000059 para realizar tudo isto era necessario que o seu genio por um lado por outro a sua habilidade fossem grandes e realmente em dons pessoais nada lhe faltou 12287_12742_000060 podia-se as vezes sorrir das suas fantásticas obras d'arte protestar contra as suas teatrais combinações politicas mas através de protestos e sorrisos a sua própria personalidade nunca deixou de maravilhar e de fascinar 12287_12742_000061 tudo isso que deveria ser tão antipático ao seu luminoso espírito foi sepultado no seu querido castelo d'hughenden no meio das árvores do seu parque por uma fresca manhã de maio na capela toda ornada de flores como para uma alegria nupcial 12287_12742_000062 poucos homens têm produzido um tão curioso conflito de apreciações diz-se dele que foi um grande homem de estado e diz-se também que foi apenas um charlatão a crítica tem-no apresentado como um romancista de gênio e como um mau alinhavador de novelas 12287_12742_000063 este incidente insignificante nunca impediu lord beaconsfield de celebrar nas suas obras de impôr pela sua personalidade a superioridade da raça judaica e por outro lado nunca obstou a que o judaismo europeu lhe prestasse absolutamente o tremendo apoio do seu ouro da sua intriga e da sua publicidade 12287_12742_000064 beaconsfield que nas primeiras páginas partem para sobre-humanos destinos como os antigos cavaleiros da távola redonda sucede-lhe que casa com uma linda e honesta menina e que tem muitos filhos no meio de muita felicidade 12287_12742_000065 no bush da australia entre os mesmos montanheses bárbaros das highlands e que quando ele se dirigia ao congresso de berlim atraía as estações do caminho de ferro as populações da alemanha a contemplarem o grande inglês 12287_12742_000066 a sua assombrosa popularidade parece-me provir de duas causas a primeira é a sua ideia que inspirou toda a sua política de que a inglaterra deveria ser a potência dominante do mundo 12287_12742_000067 o meio em que os seus romances se passam tem quase sempre um ar feérico tudo são como disse há pouco palácios dum fabuloso e sombrio luxo festas como as não tiveram os médicis fortunas de banqueiros de duques perante as quais os crésus os monte cristos os rothschild 12287_12742_000068 em que das sarças do murmúrio dos rios e do eco dos desertos surgiram as leis novas dando à humanidade destinos novos o moço tancredo parte para que lá nesses lugares deus lhe fale um raio de luz o divinize uma religião lhe seja revelada 12287_12742_000069 descomedidamente poéticas e de contornos flutuantes esses tipos reais adquirem um relevo maior como perfis da verdadeira humanidade mostrando-se por entre o nebuloso de uma mitologia são eles os que interessam e da vasta galeria de lord beaconsfield só eles ficarão lembrados 12287_12742_000070 os seus romances nunca deixam de interessar direi mesmo nunca deixam de cativar atravessa-o sempre um entusiasmo sincero em que se sente o amor poético com que ele segue os seus generosos heróis as suas belas mulheres nesses destinos fora da realidade 12287_12742_000071 foi considerado então como o instrumento da grandeza exterior da inglaterra como o homem que a fazia dominante e temida que mantinha alta e reluzindo terrivelmente aos olhos do mundo a espada de john bull gladstone bright 12287_12742_000072 depois de hesitar entre estas três paixões decide-se como um bom inglês por casar com o protestantismo quero dizer com a loura conservando um culto vago e secreto pela democracia quero dizer pela soberba americana de perfil marmóreo 12287_12742_000073 mas uma celebridade não encontra só dificuldades em transpôr a fronteira acha-as sobretudo e quase insuperáveis em fixar a atenção da grande turba dos seus concidadãos 12287_12742_000074 jornalistas críticos artistas homens de estudo e de curiosidade literária julgamos quase impossível que haja alguém na europa que não tenha lido victor hugo ou que pelo menos não conheça esse nome de sílabas fáceis que há meio século fere a grande estrondo o ouvido humano 12287_12742_000075 pois bem pode-se dizer que fora de frança apenas cinco mil pessoas talvez terão lido victor hugo e que não passará decerto de dez mil o numero de criaturas que lhe saibam o nome incluindo mesmo a vasta massa democrática de que ele é o épico oficial 12287_12742_000076 em novo é o dinheiro judeu que lhe paga as suas dívidas depois é a influência judaica que lhe dá a sua primeira cadeira no parlamento é a ascendência judaica que consagra o êxito do seu primeiro ministério 12287_12742_000077 é enfim a imprensa nas mãos dos judeus é o telégrafo nas mãos dos judeus que constantemente o celebraram o glorificaram como estadista como orador como escritor como herói como gênio 12287_12742_000078 havia tanta prosápia britânica em conceber um tal império como em o condenar e em dizer com um ar de nobre renunciamento não nos convém a responsabilidade de governar o mundo lord beaconsfield sendo a encarnação oficial desta ideia imperial tornou-se naturalmente tão popular como ela 12287_12742_000079 morre como um suspiro dentro da área humilde dum corrilho ou duma coterie e nada viaja com uma lentidão igual a da fama um fardo de fazendas gasta quatro dias a vir de londres a lisboa e os nomes de tennyson browning simon 12287_12742_000080 uma espécie de império romano alargando constantemente as suas colônias apossando-se dos continentes bárbaros e britanizando-os reinando em todos os mercados decidindo com o peso da sua espada a paz ou a guerra do mundo 12287_12742_000081 homem de partido sofreu em política e em literatura ora a idolatria ora o rancor da parcialidade partidária uma coisa porém tinha a seu favor é que todos os medíocres o detestavam 12287_12742_000082 a grande escola liberal conhecida pela escola de manchester era agora acusada de ter com a sua politica de abstenção só ocupada de melhoramentos materiais de finanças de civilização interna deixado definhar morrer o prestigio inglês na europa 12287_12742_000083 os vagares portugueses ou espanhóis em que se está de barriga ao sol pronto a olhar a admirar o menor foguete que estala nos ares em inglaterra 12287_12742_000084 moral a felicidade dum povo está na posse duma forte moral cristã aliada a um uso moderado da liberdade isto dava um excelente e aparatoso fresco na sala dum parlamento e lord beaconsfield acentua os detalhes alegóricos com uma tal ingenuidade que faz por vezes sorrir 12287_12742_000085 e fez romance no governo que parecia muitas vezes um cenário de drama sobre o qual ele estava de pena na mão combinando os lances de efeito seja como for a inglaterra perdeu nele um dos seus gênios mais pitorescos e mais originais 12287_12742_000086 e lá está com efeito por entre as suas grandes criações simbólicas de indisciplinada imaginação tancredo lothair sibyl move-se todo um mundo real 12287_12742_000087 esta linguagem de resto convém as ideias aos sentimentos as aventuras que ele atribui aos seus tipos principais tudo o que é humano e real fica absolutamente de fora dessas transcendentes criações falando como poetas comportam-se naturalmente como chimeras 12287_12742_000088 foi formoso foi amado foi rico teve a melhor esposa de inglaterra como ele dizia deixou uma vasta obra literária foi o confidente escolhido da sua rainha governou a sua pátria pesou nos destinos do mundo e findou numa apoteose 12287_12742_000089 depois a sua fina sensibilidade o seu idealismo um pouco convencional mas de grande elan os requintes dum gosto supremo levam-no a dotar os seus personagens e a ação em que eles se movem de uma tal beleza espiritual 12287_12742_000090 apesar deste abuso do gongorismo na ficção do vago e ao mesmo tempo do amaneirado das suas concepções destes enredos e destes personagens que por vezes parecem uma mistificação 12670_13396_000000 e já os cigarros de ótimo bragança fumegavam enquanto ao arruído da palestra juntava-se à meia nau o ranger dos moitões e cabos do velame desfraldado 12670_13396_000001 e seus olhos percorrendo a coberta beijavam também com ternuras de pai os âmbitos do iate podia-se afirmar que estava ali um homem verdadeiramente experimentado herdeiro único de grande fortuna que o pai amoedara na vida comercial em belém 12670_13396_000002 sem deter-se ultrapassou o istmo desceu mais ao sul transpondo os alcantis dos andes e remirou as faces emaciadas na fria onda marulhosa do estreito de magalhães 12670_13396_000003 enlevado voga nymphéa voga meu hiate além duma enseadazinha da costa assoalhada e calma é o sossego infinito que nos aguarda a ti os beijos cadenciados das vagas a mim os ósculos da unica mulher verdadeiramente sincera que já encontrei 12670_13396_000004 e toda a vida das matas alevantava-se em gorjeios grasnidos e aromas a bordo do ninfeia na diminuta coberta acabara agora mesmo o serviço do café matinal xícaras disseminadas pelos bancos da amurada rescendiam ainda do alegre cheiro da infusão escaldante 12670_13396_000005 e a convicção de que mais uma vez andara errada a balofa ignorância do chauvinismo brasílico trouxe-lhe aos olhos duas lágrimas sinceras e uma nova desilusão ao fundo da alma angustiada foi após este derradeiro desgosto que regressou ao brasil 12670_13396_000006 manhã clara duma beleza diáfana e prazenteira o rio tinha cintilações prateadas fluindo numa suavidade infinita aqui e ali 12670_13396_000007 eis a sua maior dita viajar no pequeno iate veleiro e gracioso nem a certeza dos bens pecuniários herdados anos antes nem a sedução das valsas em que rodopiara outrora pelos salões à moda enlaçando frágeis bustos de morenitas capitosas 12670_13396_000008 sequioso de novidade partida da terra paraense com a pasta pejada de cartas d'ordens sobre bancos de além mar e a alma transbordante da ânsia de tudo ver e fruir 12670_13396_000009 fossem lá dizer-lhe que as seduções da tapuia paraense mimosa e ingênua duas vezes adorável pela graça e pela ignorância tímida seriam capazes de o transportar aos requintes da ventura absorvendo-o de corpo e alma perenemente e purificando-o dos primitivos contatos como numa piscina miraculosa 12670_13396_000010 velas soltas bandeira topetada no mastro grande o minúsculo iate de alfredo singrava galhardo as águas do guajará em rumo do oceano 12670_13396_000011 a febre do açodamento juvenil espicaçava-lhe a indômita curiosidade viajou toda a europa num grande gozo de intelectual aproveitado passou depois ao oriente cujo exotismo tamanhas tentações lhe oferecera desde a adolescência e assim percorreu estranhos países de lenda 12670_13396_000012 a simples gentia sul-americana melancólica e bondosa na sua passividade fatalista e havia também flores de opostos climas fitas amuletos cartas um delicado museu de objetos desbotados trescalando o vago odor das coisas esquecidas 12670_13396_000013 de irrepreensível corte a nave oferecia interior e externamente uma perfeição de linhas e uma limpeza completa nela estava a mirar-se orgulhoso o proprietário ali deitado à popa em fina rede branca de fio de carretel 12670_13396_000014 sempre estendido na rede a baloiçar-se fumando consecutivas cigarrilhas o moço passava em revista no caleidoscópio da alma as peregrinações de antanho 12670_13396_000015 a matéria podia agir com afinco maior mas o espírito sofria de idênticas enfermidades a sede das aspirações irrealizadas o embate dos preconceitos a agrura das competências políticas e industriais toda a emaranhada engrenagem das misérias 12670_13396_000016 a própria lembrança de antigos amores não tinha mais a força de desviar-lhe a atenção por longos minutos nem de arrancar-lhe um suspiro mais acentuado e contudo se noutros tempos lhe afirmasse alguém que tal houvera de suceder quiçá arriscasse ouvir experta reprimenda 12670_13396_000017 tiveram jamais para alfredo similhante dom de encantamento esta vertigem ineffavel que recebia ao deslizar á flor das ondas caminho do atlântico a bordo da sua adorada miniatura de navio 12670_13396_000018 ao princípio teve um deslumbramento sem par aquela admirável atividade das populações operosas congregadas à voz do capital onipotente em torno às fornalhas às bigornas às máquinas às retortas 12670_13396_000019 o mancebo sorvia em largos altos a brisa esperta do largo e impelindo a rede com o bico do pé de encontro a antepara metálica da amurada exclamava num solilóquio enlevado 12670_13396_000020 não permite mais um instante de folga sem prejuízo imediato contudo um curto exame de poucos dias revelou-lhe que os mesmos vícios de origem lá campeavam também trazidos no sangue europeu 12670_13396_000021 aquela atividade unica chegou a fazer-lhe vertigens de entusiasmo ali encontrava ele alfim o ideal da raça humana buliçosa na incessante produção colmeia enorme compenetrada de que a rapidez da vida 12670_13396_000022 rebuscando embalde as fantasias dos poetas nas decepções da desilusória realidade mas cansado o próprio ideal tornou a civilização do ocidente cujas requintadas complicações ainda mais o intrigaram após a recente digressão às terras do paganismo 12670_13396_000023 protestaria de certo e com veemência mas a realidade era essa entretanto no decorrer das viagens claro está que o amor ao menos o que pensamos dever ser o amor aos vinte e cinco anos ocupou-lhe boa parte dos sonhos e vigílias 12670_13396_000024 e por vezes revolvendo papéis velhos quedava-se interdito quase envergonhado ao lobrigar uma florzinha murcha ou triste cacho de cabelos descorados 12670_13396_000025 suas aspirações de reformas radicais seus impulsos para a propaganda em prol dos ideais regeneradores da sociedade perderam também o ardor militante de outrora 12670_13396_000026 alfredo não lamentava este resultado pelo contrário sentia-se feliz ao verificar que o coração liberto de antigas peias estava apto a consagrar toda a energia afetiva ao doce culto de um só amor espontâneo e livre no seio olente da floresta compassiva 12670_13396_000027 alfredo vira-se emancipado independente e cheio de saúde aos vinte anos de idade os primeiros tempos decorridos após a morte de seu progenitor foram para ele uma incessante peregrinação pelos mais remotos países 12670_13396_000028 interdito por ter-lhes esquecido a procedência envergonhado de havê-los guardado por tanto tempo assim avaramente quando nem o coração conservara o sentimento que os tornara valiosos nem a memória volúvel pudera reter-lhes a lembrança 12670_13396_000029 tudo passara na dissolvência dos sonhos na voragem dos anos ilusões patrióticas e entusiasmo pelos gozos instáveis tragara-os o tempo impassivelmente 12670_13396_000030 era tudo isto que desfilava pela mente de alfredo nesse mesmo instante aprazia-lhe às vezes no capricho da sua volúpia evocar assim antigas épocas e rememorar passadas peripécias prazenteiras 12670_13396_000031 evidentemente a noção de uma exata justiça é o paradoxo mais estranho que a razão ilógica do homem criou num dia de sarcasmo para o próprio engodo então de nada valia esbofar-se em santo frenesi conclamando a necessidade da restauração dos princípios equitativos 12670_13396_000032 com a alucinação das grandezas fora apenas o meio de realizar aspirações de isolamento que o afastassem com intermissões felizes do convívio comum e cada vez que assim velejava sobre a água na manhã triunfal 12670_13396_000033 a maldade humana predominaria para todo o sempre irresistível vencedora restava-lhe pois submeter-se ao embate da onda larga da convenção 12670_13396_000034 de toda a parte surdiam-lhe dúvidas ponderáveis terríveis incógnitas dos problemas sociológicos que a sua alma de tendências equitativas em vão queria resolver 12670_13396_000035 e vencido era nos arcanos de um novo amor que ele ao mesmo tempo incrédulo e piedoso levado velozmente pelo minúsculo iate na clara manhã assolhada ia buscar o doce bálsamo dos beijos sinceros 12670_13396_000036 das sensações antigas nem o ressabio lhe ficara ao toque do intenso afeto de hoje tão fundo lhe invadira ele a alma com a obsidiação abençoada de predileta tirania 12670_13396_000037 para melhor fruir a atual ventura do seu grande e saboroso amor da maturidade nenhuma paixão fora comparável a esta que tamanhas atenções lhe merecia 12670_13396_000038 era com efeito um júbilo veemente e incomparável uma sensação de liberdade que o exaltava em deliciosos arroubos julgava-se então um ser a parte um privilegiado da vida predestinada criatura para quem o dinheiro longe de tornar-se elemento de desequilíbrio mental 12670_13396_000039 com os quais pretende reger-se chegou-lhe então o primeiro engulho do primeiro enfaro aos vinte e cinco anos foi por causa desta decepção que resolvera fugir da europa embarcou para o novo mundo em direção aos estados unidos 12670_13396_000040 para os lados da foz os panos das embarcações tapuias espalmavam-se no horizonte destacadas em vivo contraste sobre o azul resplandecente do céu em terra traquinando borboletas enormes polvilhavam sobre os aningais das margens a luminosa poeira das asas pintalgadas 12670_13396_000041 onde está a justiça na prática humana esta hesitação esta irresoluta indecisão que nada satisfazia bem lhe dava a entender quão mesquinhas e oscilantes são as bases em que a sociedade assenta os princípios 12670_13396_000042 suas conversas com o mestre eram menos uma palestra coordenada do que expansões da alma entusiasmada por estas fugas marítimas em meio a rude gente da faina 12670_13396_000043 só lhe interessava agora o presente que ele resumia no iate e em certa caboclinha amante estremecida para esta última eram os seus garbos de cavalheiro e os seus mais assíduos pensamentos de namorado de que servia o passado se representava apenas a sombra de emoções extintas 12670_13396_000044 onde pensava achar povos depauperados e cidades estacionárias encontrou uma raça viril e ardorosa e capitães magníficas e belos núcleos urbanos de feição moderna amplamente revolvidos e reedificados sob a direção de inteligentes patriotas 12670_13396_000045 o seu álbum de recordações amorosas oferecia uma admirável serie complexa de perfis femininos coleção cosmopolita que abrangia desde a irresistível parisiense até á fascinante bayadera da mousmé estranha na coloração estridente dos garridos arrebiques 12670_13396_000046 vogava sempre a embarcação águas abaixo impelida na dupla força do vento e da correnteza andava na claridade do espaço a hilariante alegria dos belos domingos nortistas a natureza em torno possuía nessa manhã uma aparência de tranquilidade edênica propícia às meditações de alfredo 12670_13396_000047 como essa quadra agitada sumira-se fugace perdia-se agora nos longos esbatidos das simples recordações da primeira juventude viagens vai vem no bulicio humano em grandes centros populosos cavalgatas pelas lezirias do tejo e nas estepes russas 12670_13396_000048 de um século de egoística injustiça a arrastar e esmagar os fracos os desprotegidos os simples abalou por isso terras a fora veio á américa central emblema da inconstância da vida na inconstância dos seus governos e leis 12670_13511_000000 mas que foram combatidos e ainda hoje não são completamente admissíveis por esta maldita necessidade de transigirmos com as conveniências 12670_13511_000001 é possível que a imaginação singular do narrador alemão preenchesse muitas lacunas dos dramas reais de que o seu lápis tomava apontamentos lhe desse depois uma outra vida mais poética mais ideal mais conforme à sua organização de visionário de poeta e caricaturista 12670_13511_000002 deveras saber porque é a ti a quem compete a vingança ele pretendeu por todos os meios desposar hernanda tua irmã lembras-te era rico e teu pai desejava com todas as veras da alma este enlace a infeliz menina resistiu sempre até que se viu obrigada a professar em um mosteiro a 12670_13511_000003 e por fim o último cânon da sua lógica era uma gargalhada irritante que fazia gelar de medo ele mesmo se doía de sua crueldade era o primeiro a acusar-se e a procurar corrigir-se 12670_13511_000004 abandonada da família não é verdade isto ferido no orgulho ele meteu-se a padre disfarçou-se debaixo da cúgula monástica e fez-se seu diretor espiritual matou-a lentamente com jejuns e macerações com a lembrança contínua da tentação e da condenação eterna 12670_13511_000005 distraídas com a festividade aparatosa a frente das confrarias e irmandades os carvoeiros traziam a lenha para a fogueira imitando o passo da escritura em que isaac caminhava para a montanha do sacrifício seguiam-se em filas extensas os frades dominicanos arvorada na 12670_13511_000006 rasgae oh rasgae por um momento o manto de frieza com que vos cobris por que tenho um favor supremo a solicitar-vos uma confissão dilacerante a fazer-vos 12670_13511_000007 antipatia hereditária que tinha à irlanda mais se agravou com esta restrição e o seu humor naturalmente melancólico tornou-se sombrio e feroz 12670_13511_000008 e morreu de desgosto contava-me isto como uma grande verdade como doutrina que professava admirava o costume de esparta que mandava despenhar de uma rocha as crianças disformes 12670_13511_000009 cada traço radiante que se projeta nos ares lá vai perder-se num fascículo mais intenso pensamento de amor energia inextinguível que voa a despertar e embalar um devaneio ditoso que não finda 12670_13511_000010 hóstia branca erguida na reconcentração íntima dos mundos a luz diáfana e branda que devaneios principiados e interrompidos no vago das aspirações que não têm realidade 12670_13511_000011 é possível porque todos os verdadeiros artistas têm sentido estas taciturnas horas de misantropia incurável e este profundíssimo desgosto da ordem regular das cousas 12670_13511_000012 quebrar os vínculos da carne e acordar no empíreo este corpo que me deste é a prisão em que a alma suspira e anseia por soltar-se ela é a escrava da escritura que vaga a míngua de uma gota de água no deserto 12670_13511_000013 enfim os gritos dilacerantes que quebravam por intervalos o profundo e frio silêncio que reinava naquela casa afirmavam suficientemente que se estava representando ali uma cena de agonia 12670_13511_000014 o sentimento religioso uma tradição da ignorância primitiva o amor de mãe uma impertinencia que só se dá entre os animais da classe dos mamíferos pela conversão do hábito em instinto 12670_13511_000015 as flores de aromas mais esquisitos o céu mais admiravelmente cravejado de estrelas o azul o espaço aberto causam-me o desgosto que havia sentir moisés do alto da montanha vendo ao longe a terra prometida 12670_13511_000016 lope de vega fugiu as tempestades da vida envolvendo-se no burel de uma ordem penitente unindo a contrição e a poesia no misticismo radiante das efusões líricas com que desabafava nas horas contemplativas 12670_13511_000017 a vinha entrançada aos plátanos dourada pelo sol de agosto bustos entre a ramagem espessa sátiros que se adormecem ao som da linfa fugitiva ninfas travessas errando na relva macia que tapeta o recinto 12670_13511_000018 eu deixo e lego a soma anual de dez libras esterlinas para serem pagas perpetuamente pelos meus sucessores essa soma tal é a minha vontade e o meu gosto será empregada em comprar um certo licor chamado vulgarmente whisky 12670_13511_000019 quando o espírito solitário descia a terra e se deixava tocar pela dor tinha então o encanto da sua prole dos filhos que estremecia 12670_13511_000020 ao patético eleva-se todo o que sofre só o riso é a força das grandes individualidades ri-te de tudo o riso denota sempre uma superioridade 12670_13511_000021 é isto o que vos quis confessar antes de descer ao sepulcro e o que me causa dores mais atrozes do que as da agonia sede clemente mylord a expiação sucedeu logo a culpa sinto arderem-me as entranhas deus encarregou-se de vos vingar 12670_13511_000022 mesmo o direito primitivo teve um caráter panteísta a natureza é animada é testemunha na acusação é pura como no ordálio firma o contrato 12670_13511_000023 os ferros cruzaram-se faiscando eram os rivais que se encontravam ali levados pelo mesmo amor e pelo mesmo ódio a grande contrariedade deste sonho da vida não se ouvia um gemido os botes eram a fundo 12670_13511_000024 depois mão ignota a dedilhar veementemente com força nas cordas de uma guitarra as auras levavam as melodias ais de um peito que gemia de amor em segredo 12670_13511_000025 era marcela chorando a morte do pai talvez pungida pelo abandono em que o tinha deixado instantes depois sumiu-se na escuridão da cela 12670_13511_000026 o cuidado que se havia tomado de estender por todos os corredores uma espessa cama de palha e feno a fisionomia alterada dos criados que atravessavam maquinalmente as câmaras e os corredores como para fugirem a um indomável terror 12670_13511_000027 revoltas-te contra a natureza o que é a natureza diante da obra da arte e elevando-se em um hegelianismo de sectário ele próprio respondeu 12670_13511_000028 a curiosidade o orgulho de criança a impelia começava a sentir-se bela formosa debruçou-se desprevenida ao balcão mirou prescrutou nas sombras a guitarra fascinadora emudecera 12670_13511_000029 não sei qual o torturara primeiro se a dúvida ou o sarcasmo ele submetia à análise fria os sentimentos mais puros e íntimos volatilizava-os pelos processos de uma dialética irretorquível 12670_13511_000030 a vibração argentina do sino ondulando na calada da noite fazia escoar se pelo corpo um estremecimento gelido como o pingo de agua que se infiltra das 12670_13511_000031 o luar tornava-a mais bela como em uma transfiguração repentina será uma realidade a existência deste tipo divino 12670_13511_000032 não é chegado o momento a este tempo o frade estava na peroração do discurso a turba batia nas faces consternada por terra os dois vultos permaneciam de pé insensíveis o pregador desceu do púlpito e vinha acercando se deles com um olhar ameaçador para repreendê-los 12670_13511_000033 segunda aos coríntios fala deste terror naquela virgindade tímida da alma o corpo foi caindo em inanição tinha uma imobilidade beatifica apesar de todos os flagícios e macerações o rosto conservava ainda a frescura da rosa entre 12670_13511_000034 e é minha vontade que isto tenha lugar todos os anos a dezessete de março ou de de outubro a razão por que assim determino isto é para que os habitantes grosseiros da irlanda cada vez que se juntem nunca lhes escasseiem armas para se destruírem 12670_13511_000035 recordações mal extinguidas que mais direi não vos acháveis aqui para me defenderdes da minha fraqueza para me proteger contra o meu coração sucumbi 12670_13511_000036 de mântua diante de uma imagem linda caía em êxtases estas figuras de jesus radiantes de candura e fascinação belas falavam aos sentidos é por isso que o amor divino tem na sua veemência e transporte um caráter sensual como o espremido 12670_13511_000037 arrebatava-me a melhor parte da minha alma e eu era o único a lamentar nesta multidão de espectadores tornamos à igreja 12670_13511_000038 todas as criações na arte saem destas duas paixões opostas uma é o natural a outra é o não natural como natural uma sustenta o sublime a outra o ridículo 12670_13511_000039 marcela nada discriminou nas sombras sentia apenas o fragor de uma luta porfiada o outro rival alçou o punhal também arrojaram-se aos braços um do outro espumando de raiva cozeram-se de facadas desapiedadamente até que escoados em sangue 13063_13511_000000 só tarde esses símbolos foram compreendidos tinham sido como o enigma da esfinge que devorava os que iam passando o cristianismo ao ideal do trabalho pena ligou a universalidade 13063_13511_000001 a verdadeira doutrina é um catecismo popular de economia social é por esta ciência que nos há de vir a libertação desde que o homem reconheça que produz mais do que consome 13063_13511_000002 e o destituía de importância que um descuido qualquer o expunha aos apupos da vadiagem assim explicava comigo aqueles ares afetados de elegância que despertaram a risada que ressoou só dentro em mim 13063_13511_000003 trazia uma vestimenta velha esfarrapada que produzia uma antítese perfeita com a sua idade mais ao pé vi que tinha um fulgor de vida nos olhos 13063_13511_000004 o movimento a expressão de uma intensa atividade interior eu tinha caminhado para ele com um um riso mofador com pretensões a observá-lo este casquilho em quinta mão 13063_13511_000005 e tenho ainda não sei que terror de me ver perdido atropelado entre as massas vivo assim desde criança como criança fui também poeta cantei porque tinha medo queria distrair-me eu chamo-lhe meu amigo porque me escuta 13063_13511_000006 era quanto bastava para lhe ficar reconhecido a maior parte das pessoas que me ouvem riem-se de mim falo sobre a gênese das religiões a origem dos governos as relações da arte com a sociedade 13063_13511_000007 um dia saí para respirar o ar livre de uma bela manhã de verão uma veia sarcástica provocadora não deixava harmonizar-me com a serenidade da natureza vinha pelo mesmo passeio um sujeito magro fumando uma ponta de cigarro 13063_13511_000008 outras vezes descrevo a formação da terra procuro explicar as evoluções da antropogenia com a cosmogonia o aperfeiçoamento dos seres e a sua decadência pelo grau do calor que a matéria conserva e vai irradiando 13063_13511_000009 o homem ao destacar-se do último elo da cadeia dos seres sentiu-se forte e senhor da terra a natureza oferecia-lhe por toda a parte seus peitos uberantes e este regozijo de harmonia ligava a sua existência a vida panteística do universo 13063_13511_000010 de uma animalidade inferior não está terminada a sua progressão ascensional esta teoria explica já a prodigiosa atividade e precocidade intelectual deste século a voz foi-se-lhe 13063_13511_000011 quantas risadas se escutam perdidas no ar que as vezes são um punhal invisível brandido por mão diabólica 13063_13511_000012 este vácuo da existência amputava-me para todas as distrações via em tudo uma futilidade sentia-me mal com uma vontade de torturar de contradizer de estar sempre em hostilidade com todas as ideias que não fossem as minhas 13063_13511_000013 deus sabe quanto custa afazer-me a solidão absoluta a solidão é verdade devasta o espírito porque obriga a representação interior dando-lhe um relevo maior do que a realidade serão utopias tudo quanto tenho na cabeça 13063_13511_000014 então mata mais do que a ponta de um estilete penetrante embebida no acônito baço que fere e não deixa ver a cicatriz 13063_13511_000015 ia se me esclarecendo o mistério daquela existência por fim chegamos a um quarto pequenino e baixo com um ar mefítico saturado de fumo de tabaco 13063_13511_000016 eu tanto mais porque a tenho visto sempre usada como pretexto para dizer insultos impunemente acho-me solitario no meio da sociedade 13063_13511_000017 quanto mais estudo disse-me ele cansado de andar e de falar tanto mais se me alarga a solidão do espírito cada dia encontro menos pessoas com quem prive caminho e a cada passo me vão ficando mais longe 13063_13511_000018 obedeço á pressão da causalidade que me obriga a explicar a mim mesmo os fenômenos que vejo e riem-se perguntam me onde estudei que diplomas tenho das academias e voltam me as costas ludibriando me 13063_13511_000019 a escuridão da noite não deixava ler-lhe no rosto a volubilidade da expressão de repente parou a porta de um casebre velho situado em uma viela estreita e infecta 13063_13511_000020 aí a pressa para comprar em uma espelunca uma posta de peixe quando voltei a luz bruxuleava quase a extinguir-se o pobre rapaz estava voltado para a parede sacudi -o achei-o frio 13063_13511_000021 máquinas ganha o homem tempo à custa da força mas força dispendida pela natureza virá uma época em que ele se liberte do trabalho material abre-se então outro horizonte mais vasto o trabalho da inteligência 13063_13511_000022 o riso é a expressão mais enérgica do desespero quando ele tem um timbre satânico que gela e se repercute na alma como o estampido de uma detonação que fulmina 13063_13511_000023 apenas a mitologia responde com uma divindade alegórica um saturno perdice pan e triptolemo o pobre rapaz falava de um modo precipitado convulsivo como se lhe faltasse o ar 13063_13511_000024 então já não é outro homem que o sobrepuja cristo é uma ideia transmitida às gerações que elas concretizaram em um nome para compreendê-la 13063_13511_000025 e depois porque um homem igual a nós a manifestava o egoísmo salva-se fazendo o filho de deus arranca-se a ilíada das mãos de homero porque o orgulho do homem não consente que o homem o exceda 13063_13511_000026 tinha ainda a mesma compostura esse apuramento que fazia rir os que não soubessem penetrar os dolorosos mistérios da sua existência 13063_13511_000027 a ingenuidade simples que não sabe aliar a amizade com as pragmáticas a franqueza deste modo admira-se 13063_13511_000028 não estranhe ver-me nesta trapeira há uma analogia entre ela e a minha cabeça onde as ideias refervem em tropel confuso e se conflagram e se destroem 13063_13511_000029 as vezes tendo passado a noite em vigília a pensar cheio de frio com fome canso-me a falar para receber ao cabo de um esforço inaudito uma gargalhada brutal 13063_13511_000030 a dialética fora para mim uma arma que ao passo que a manejava com mais presteza me tornava mais intolerante 13063_13511_000031 neste primeiro dia foi o homem como os anjos via e falava face a face com a divindade neste primeiro dia foi um gigante da terra dominava pela força ciclópica 13063_13511_000032 eis outros tantos passos para a elevação do homem perdidos hoje completamente nas sombras imperscrutáveis do mito nos trabalhos de jason e dos argonautas está simbolizada a inauguração do comércio de toda a raça jônica 13063_13511_000033 ambos os dois mitos têm um fundo de verdade revelada pela inspiração e intuição do passado aos profetas da história senhor e rei da criação o homem deixou-se enlear no seio voluptuoso da natureza admirou e caiu adorando 13063_13511_000034 sou como plauto que fazia rodar um moinho e nas horas de descanso escrevia as suas comédias como spinosa que gravava vidros para se alimentar nas horas em que se absorvia no quietismo do pensamento 13063_13511_000035 é a primeira vez que conversamos o meu amigo deve estranhar esta liberdade sou assim amo a franqueza quando não busca rodeios para convencer e tem a força da expansão sincera 13063_13511_000036 quando o homem se vê compelido a reconhecer uma superioridade no seu semelhante forma dele um semideus porque 13063_13511_000037 vico representa na sua hipercrítica a humanidade perguntamos quem inventou a alavanca antes de arquimedes demonstrar a sua lei 13063_13511_000038 quem há de realizar o que não ideou bem sei que um grande poeta disse antes de mim uma grande vida é um pensamento da mocidade realizado na idade madura 13063_13511_000039 era também criança tinha uma figura trigueira uma certa vivacidade de movimentos uma timidez que se não acusa e se transforma em reconhecimento à menor consideração 13063_13511_000040 e o pobre rapaz parou em meio de cansado depois recomeçou fazendo-me a história do trabalho 13063_13511_000041 a reprovação dos juros o stigma impresso sobre o judeu elemento industrial na sociedade nascente eram a inércia do capital e do espírito de empresa 13063_13511_000042 porque não querem admitir a ciência sem a autoridade vêem como profanação um leigo explicar o que só está à altura da inteligência dos catedráticos 13063_13511_000043 foi o trabalho o sinal da reabilitação será o caminho para a apotheose sic itur ad astra nos mitos do oriente tenebrosos e trágicos o trabalho é um stigma que pesa sobre o homem 13063_13511_000044 suavizou o golpe da espada flamejante que lançou o homem fora do éden exagerou a culpa para perdoar o castigo suscitou no interior do homem uma luta luta escura e tremenda um eu a combater outro eu 13063_13511_000045 a influência manifesta do cristianismo é a comuna o abraço dos povos pelo trabalho do comércio e da indústria eis o segredo das riquezas de pisa grand veneza genova bruges e florença ao pé da barbárie dos estados feudais 13063_13511_000046 a meditação é como um segredo que pesa quando não há a quem se conte mas se eu encontrasse uma mulher a falar-me de amor sacrificava-me a ela para vê-la mais ditosa que a pobre frederica de goethe 13063_13511_000047 quem descobriu o parafuso a serra bases de toda a mecânica o egoísmo ocultou quanto pôde o segredo 13063_13511_000048 via naquele fato esfarrapado de escovado a luta de uma alma que arcava com a miséria de um homem que aspirava a decência e que prosseguia temeroso como conhecendo que a vestimenta o degradava 13063_13511_000049 é a dor a atribulação é a terra produzindo cardos e espinhos fecundada pelo suor do seu rosto é o enigma da vida a ser iniciado pelo sofrimento e o sofrimento a retratar a vida nômada da raça primitiva na sua passagem 13063_13511_000050 convém não rir desapiedadamente de todas as teorias da mente febril da mocidade porque ao aproximar-se da idade estéril da força 13063_13511_000051 um veneno propinado a ocultas que infunde na vida o desalento o tédio a indiferença por todos os grandes sentimentos que nos agitam e nos elevam 13063_13511_000052 o pobre rapaz não sei que franqueza leu no meu rosto que se chegou para mim pôs-se a comentar o espetáculo pouco depois estiou e partimos juntos até aqui nada de interessante 13063_13511_000053 uma impiedade que ninguém talvez acredita a esmola a onzena sobre a bem-aventurança era o principio da dependência e da desigualdade a aniquilação do trabalho e da atividade 13063_13511_000054 saía para as ruas a luz oprimia-me a multidão atropelava-me sentia-me olhado como nos tempos do absolutismo teocrático aquele que vergava ao peso do anatema 13063_13511_000055 tenho tido muitos destes desgostos da vida os homens que têm certa bondade também me dizem que a idade me fez todo idealista que os anos me darão um caráter prático de que careço 13063_13511_000056 desta ideia proveio um dilúvio de sangue para reabilitar a raça futura foi o sangue dos mártires a arca flutuante a igreja o ramo de oliveira representando a paz universal e a fraternidade a cruz 13063_13511_000057 o outro mito mais violento e terrível para filiar nessa queda o naturalismo e antropomorfismo falo mergulhar no bruto e o sátiro o minotauro é o homem a confundir-se na categoria inferior dos primatas 13063_13511_000058 a solidão dera-me por um excesso de vida subjetiva uma suscetibilidade tátil tornava-me perscrutador 13063_13511_000059 nesse instante descobriu a sua nudez e escondeu-se sentiu a fome e a sede e as dores do desterro 13063_13511_000060 de mais perto representava me uma encarnação do grotesco do cômico objetivo como se encontra nas goteiras das catedrais da idade media 13063_13511_000061 a distância ainda comecei a analisá-lo cada vez que o fitava sentia em mim uma hilaridade irrepressível parecia-me uma cara insignificativa 13063_13511_000062 um dia ri também desse modo é remorso que ainda hoje me punge eu vivia ignorado obscuro trabalhando na minha água furtada alimentado pela febre da aspiração pelo pensamento de exageradas vigílias 13063_13511_000063 quem não há soltado uma vez na vida uma dessas risadas que não seja uma loucura uma impiedade uma provocação uma mentira talvez um crime 13063_13511_000064 estas teias de aranha são às vezes a minha distração nas horas de enfado divirto-me como o máscara de ferro como spinosa magliabechi e silvio pellico é em que me pareço com os grandes homens 13063_13511_000065 prometheu ergue-se dos rochedos caucásicos não para roubar o fogo celeste porque é deus mas para atear aquele que ocultou longo tempo no encéfalo o homem desprender-se-á na animalidade para absorver-se no anjo se ele se destacou 13063_13511_000066 o suco gástrico é bastante corrosivo e dilacera-me as fibras do estômago conheci que era a fome que lhe dava esse aspecto essa consumpção em que o via prostrar-se disse-lhe que esperasse um instante e sai 13063_13511_000067 a grandeza do homem neste ciclo genesíaco simbolizaram-na os escritores sagrados do reflexo de graça e de inocência que descia das alturas sobre a sua fronte 13063_13511_000068 são as maquinas que vão conseguindo pouco a pouco esta realeza do homem sobre o universo o hino do trabalho eleva se por toda a parte e as estrofes perpetuam se no estrepito das grandes descobertas de galvani fulton watt pascal pelas 13063_13511_000069 por um acaso feliz deparei a meu lado com o mesmo sujeito que um dia soube inverter-me um riso insignificativo em remorso 13063_13511_000070 porque só ella faz o accordo incondicional das vontades por uma emoção universal como chegar um dia a esta perfectibilidade 13063_13511_000071 eu estava indisposto comigo procurava equilibrar a vida de modo que pudesse alcançar essa virtude sublime da bondade filha quase sempre da serenidade e da superioridade de espírito 13063_13511_000072 era ainda cedo pra mim não tornará mais a vê-lo julguei-o uma aparição diabólica que viera inverter uma ação inocente da vida em uma preocupação que me perturbava a tranquilidade 13063_13511_000073 era a contumácia da desesperação que me dava forças e me fazia caminhar incansável sem saber para onde 13063_13511_000074 a arte sobre tudo é ela só que nos pode alcançar conjuntamente a perfeição plástica assim a anarquia a negação absoluta de todo o governo fora de nós constitui o ideal do estado 13063_13511_000075 quando deixássemos de praticar uma ação que vai contra as máximas do direito ou da religião não por ser injusta ou imoral mas porque repugna ao sentimento do belo 13063_13511_000076 pediu-me para subir eu não podia resistir-lhe cada palavra vibrava-me cá dentro como um arranco fomos tateando nas sombras por um caracol de escadas carcomidas que nos faltavam aos pés 13063_13511_000077 na idade média a ordem social era classificada pela propriedade territorial a posse era a característica do senhor o trabalho da cultura o ferrete do servo a idade média feudal é uma antinomia na história 13063_13511_000078 todos os grandes problemas que nos agitam abanam a cabeça e dizem com ar compassivo utopias dos vinte anos 13063_13511_000079 enfraquecendo até que se calou estava macilento tiritando de frio a vista com um brilho fosforescente felino depois de alguns instantes de silêncio disse-me com um modo seco que não compreendi logo 13063_13511_000080 através do deserto nos mitos do ocidente é sublime o ideal do trabalho aí é a glória dos semideuses é a vida errante mas heroica chiron ensina o mistério da força os trabalhos de hércules os trabalhos de teseu 13063_13511_000081 analista pretendia ler em todas as fisionomias deprimi-las ante a minha consciência como um juiz boçal que não pode convencer-se de que o réu que interroga esteja inocente 13063_13511_000082 mas só encontro essa perfeição no momento em que os vínculos do direito que prendem as nossas relações sociais e os mistérios e terrores que as religiões incutem fossem excluídos pelo desenvolvimento completo da ideia do belo 13063_13511_000083 e fui-lhe ao encontro a pretexto de acender um charuto conheci então o valor da frase com que o povo exprime um desgosto íntimo e repentino caiu-me o coração aos pés 13063_13511_000084 tinha vontade de confessar-me seu amigo era-o nesse instante com todas as veras de alma dias e noites a imagem do pobre rapaz a flutuar-me na mente 13063_13511_000085 não se vai lá de repente a natureza não dá saltos as revoluções pela ideia podem tudo não se confia nelas nem se empreendem porque os resultados só os goza o futuro 13063_13511_000086 deixemos isto conversemos a serio diante de quem não sabe rir-se de mim eu também tenho pensado na organização de uma sociedade perfeita como platão e cicero campanella thomaz morus e fenelon 3050_2941_000000 deus ao mundo deu a guerra a doença a morte as dores mas para alegrar a terra basta haver-lhe dado as flores umas criadas com arte outras simples e modestas 3050_2941_000001 ama esta casa pede a deus que a guarde pede a deus que a proteja eternamente porque talvez em lágrimas mais tarde te vejas triste desta casa ausente e já homem já velho e fatigado te lembrarás da casa que perdeste 3050_2941_000002 gente pobre invejando a gente que é mais rica quer como ela gastar e inda mais pobre fica gasta tudo o que tem o que não tem consome e por querer ter mais vem a morrer de fome 3050_2941_000003 e ainda não dá frutos como o outono pois só dá flores como a primavera fim do poema 3050_2941_000004 um dia caiu doente carlinhos junto ao colchão vivia constantemente triste e abatido o plutão vieram muitos doutores em vão toda a casa aflita era uma casa de dores era uma casa maldita 3050_2941_000005 reina a flor pois quis a sorte que a flor a tudo presida e também enfeite a morte assim como enfeita a vida amai as flores crianças sois irmãs dos esplendores porque há muitas semelhanças entre as crianças e as flores 3050_2941_000006 é a idade da força e da beleza olha o futuro e indo não tem passado e encarando de frente a natureza não tem receio do trabalho ousado ama a vigília aborrecendo o sono tem projetos de glória ama o quimera 3050_2941_000007 mamãe como sou ingrata com tantos mimos me trata tão boa tão delicada dá-me vestidos e fitas dá-me bonecas bonitas e eu mamãe não lhe dou nada tolinha 3050_2941_000008 dentro da casa em que nasceste és tudo como tudo é feliz no fim do dia quando voltas das aulas e do estudo volta quando tu voltas a alegria 3050_2941_000009 sobrem hinos de amor ao céu profundo homens jesus nasceu natal natal sobre esta palha está quem salva o mundo quem ama os fracos quem perdoa o mal natal natal 3050_2941_000010 há flores por toda a parte nos enterros e nas festas nos jardins nos cemitérios nos paúes e nos pomares sobre os jazigos funéreos sobre os berços e os altares 3050_2941_000011 a mãe diz num beijo as festas que eu mais desejo ó minha filha são estas a tua meiga bondade e a tua felicidade não quero melhores festas fim do poema 3050_2941_000012 ando triste e arrepiado sem ter onde cair morto gozas de todo o conforto e estás cada vez mais moço e eu para matar a fome nem acho às vezes um osso esta vida me consome dize-me tu companheiro onde achas tanto dinheiro disse-lhe o cão 3050_2941_000013 na água do rio que procura o mar no mar sem fim na luz que nos encanta na montanha que aos ares se levanta no céu sem raias que deslumbra o olhar 3050_2941_000014 e à luta renhida tocava a avançar e disse meu dono é justo que a espada tu quebres assim mas que no abandono fique eu sossegada não quebres a mim 3050_2941_000015 março que se adianta traz a semana santa em que jesus morreu foi pela humanidade que ele todo bondade viveu e padeceu há luto na cidade quem se humilhar não há-de pensando na paixão 3050_2941_000016 o céu por cima do monte fica todo cor-de-rosa daí a pouco infamado numa claridade intensa se desdobra avermelhado como uma fogueira imensa 3050_2941_000017 desce a noite o luar fulgura sobre os campos cessa a vida rural há estrelas no céu na terra há pirilampos e o boi para dormir regressa ao seu curral 3050_2941_000018 olha estas velhas árvores mais belas do que as árvores moças mais amigas tanto mais belas quanto mais antigas vencedoras da idade e das procelas 3050_2941_000019 é que às vezes amarrado me deixam durante o dia amarrado adeus amigo disse o lobo não te sigo muito bem me parecia que era demais a riqueza adeus inveja não sinto quero viver como vivo deixa-me com a pobreza 3050_2941_000020 e o sol quando aparece já o encontra robusto e manso a trabalhar forte e meigo animal que bondade serena tem na doce expressão da face resignada 3050_2941_000021 ano bom de madrugada bebê desperta e assustada avista um vulto na cama que será que medo e tonta eis que bebê se amedronta chora grita chama chama 3050_2941_000022 a terra eu sou esse outro mundo a lua me acompanha por este céu profundo mas é destino meu rolar assim tamanha em torno de outro mundo que ainda é maior do que eu 3050_2941_000023 vive até no seu sono a pedra bruta tudo vive e alta noite na mudez de tudo essa harmonia que se escuta correndo os ares na amplidão perdida essa música doce é a voz talvez 3050_2941_000024 porém fora a tristeza em breve a natureza dá flores ao jardim abramos a janela outra estação mais bela já vem depois de mim 3050_2941_000025 vede bem um favor feito aos que estão sofrendo pode sempre trazer em paga outro favor e o mais forte de nós do orgulho esquecendo deve os fracos tratar com caridade e amor 3050_2941_000026 e cintilando sobre os tufos de verdura em cada ramo põe uma fruta madura a noite é como a morte o dia é como a vida ó sol quando te vais a alma vaga perdida os pensamentos mais são os filhos da treva fogem quando a brilhar no horizonte se eleva 3050_2941_000027 dás-lhe então por esplêndida morada a gaiola dourada dás-lhe alpiste e água fresca e ovos e tudo porque é que tendo tudo há de ficar o passarinho mudo arrepiado e triste sem cantar 3050_2941_000028 são tímidos são covardes têm pejo têm confusão parai quando os encontrardes e dá-lhes a vossa mão guia-lhes os tristes passos dá-lhes sem hesitação o apoio de vossos braços metade de vosso pão 3050_2941_000029 é uma boneca vestida que linda é gorda e corada tem cabeleira dourada e olhos cor do firmamento põe-na no colo a criança e de olhá-la não se cansa beijando-a a todo o momento 3050_2941_000030 então com frases pausadas conta histórias de quimeras em que há palácios de fadas e feiticeiras e feras e princesas encantadas e os netinhos estremecem os contos acompanhando 3050_2941_000031 não choremos jamais a mocidade envelheçamos rindo envelheçamos como as árvores fortes envelhecem na glória da alegria e da bondade agasalhando os pássaros nos ramos dando sombra e consolo aos que padecem 3050_2941_000032 homem porque no céu profundo não há-de parar mais o vosso movimento astros qual é o mundo em torno ao qual rodais por esse firmamento todos os astros não chega o teu estudo ao centro disso tudo que escapa aos olhos teus 3050_2941_000033 o homem a fera e o inseto à sombra delas vivem livres de fomes e fadigas e em seus galhos abrigam-se as cantigas e alegria das aves tagarelas 3050_2941_000034 com todo o seu vigor as cordas não partiu então o mesmo fraco e pequenino rato chegou viu a aflição do robusto animal e não querendo ser ingrato tanto as cordas roeu que as partiu afinal 3050_2941_000035 os pássaros que dormiam nas árvores orvalhadas já a alvorada anunciam no silêncio das estradas as estrelas apagando a luz com que resplandecem vão tímidas vacilando até que desaparecem deste lado no horizonte numa névoa luminosa 3050_2941_000036 da guerra cansado com nojo da guerra as armas quebrou entre elas estava trombeta esquecida era ela que no ar os toques soltava 3050_2941_000037 e toda a vida universal palpita dentro daquela pobre estrebaria não houve sedas nem cetins nem rendas no berço humilde em que nasceu jesus 3050_2941_000038 terrível irado jogou-a por terra sem dó a quebrou e o velho soldado cansado da guerra por fim repousou fim do poema 3050_2941_000039 lá vai pausadamente o grande boi marchando e por ele puxado larga e profundamente o solo retalhando vai o possante arado 3050_2941_000040 a avó que tem oitenta anos está tão fraca e velhinha teve tantos desenganos ficou branquinha branquinha com os desgostos humanos hoje na sua cadeira repousa pálida e fria 3050_2941_000041 mimos e felicidade na boa casa em que vivo foram-se os dois em caminho disse o lobo interessado que é isto por que motivo tens o pescoço esfolado 3050_2941_000042 chama os netos adorados beija-os e tremulamente passa os dedos engelhados lentamente lentamente por seus cabelos doirados 3050_2941_000043 a lua sou um pequeno mundo movo-me rolo e danço por este céu profundo por sorte deus me deu mover-me sem descanso em torno de outro mundo que ainda é maior do que eu 3050_2941_000044 tal como a chuva caída fecunda a terra no estio para fecundar a vida o trabalho se inventou feliz quem pode orgulhoso dizer nunca fui vadio e se hoje sou venturoso devo ao trabalho o que sou 3050_2941_000045 e diz o pai já com tédio menina você apanha se não toma este remédio e nada a menina grita sem querer obedecer mas nisto a mamãe aflita põe-se a gemer e a chorar 3050_2941_000046 dás flores ao verdor das moitas orvalhadas os ninhos aquecendo as gargantas das aves dás gorjeios de amor e harmonias suaves 3050_2941_000047 o boi de olavo bilac quando ainda no céu não se percebe a aurora e ainda está molhando as árvores o orvalho sai pelo campo afora o boi para o trabalho com que calma obedece caminha sem parar 3050_2941_000048 nem se revolta quando o lavrador sem pena para o instigar lhe crava a ponta da aguilhada cai-lhe de rijo o sol sobre o largo cachaço 3050_2941_000049 não receies que algum dia vos assalte a ingratidão o prêmio está na alegria que tereis no coração protegei os desgraçados órfãos de toda a afeição e sereis abençoados por um pedaço de pão 3050_2941_000050 é preciso desde a infância ir preparando o futuro para chegar à abundância é preciso trabalhar não nasce a planta perfeita não nasce o fruto maduro e para ter a colheita é preciso semear 3050_2941_000051 no astro maior na mais humilde planta na voz do vento no clarão solar no inseto vil no tronco secular a vida universal palpita e canta 3050_2941_000052 o berço em que adormecido repousa um recém-nascido sob o cortinado e o véu parece que representa para a mamãe que o acalenta um pedacinho do céu que júbilo quando um dia a criança principia aos tombos a engatinhar 3050_2941_000053 domingo os sinos repicam na igreja constantemente e todas as ruas ficam alegres cheias de gente todo um dia de ventura como o domingo seduz o homem cansado procura ter paz ter ar e ter luz 3050_2941_000054 mais vale o mérito próprio sentir guardar e ocultar porque o verdadeiro mérito não gosta de se mostrar fim do poema 3050_2941_000055 era preciso fazer qualquer coisa simples acessível à inteligência das crianças e quem vive de escrever vencendo dificuldades de forma fica viciado pelo hábito de fazer 3050_2941_000056 fazendo as ter medo de coisas que não existem era preciso achar assuntos simples humanos naturais que fugindo da banalidade não fossem também fatigar o cérebro do pequenino leitor exigindo dele uma reflexão demorada e profunda 3050_2941_000057 trazendo uma borboleta volta alfredo para casa como é linda é toda preta com listas douradas na asa tonta nas mãos de criança 3050_2941_000058 pensa alfredo e de repente solta a borboleta e ela abre as asas livremente e foge pela janela 3050_2941_000059 é a primeira que apanho mamãe vê como é bonita que cores e que tamanho como voava no mato vou sem demora pregá-la por baixo do meu retrato numa parede da sala 3050_2941_000060 inda que um dia no desespero e na agonia mais desgraçado que ninguém te vejas pobre e injuriado de toda a gente desprezado perdoa o mal e crê no bem e crê no amor se pode a guerra cobrir de sangue toda a terra 3050_2941_000061 assim meu filho perdeste a borboleta dourada porém na estima crescente de tua mãe adorada que cada um cumpra a sorte das mãos de deus recebida pois só pode dar a morte aquele que dá a vida 3050_2941_000062 este que desde a sua mocidade penou suou sofreu cavando a terra foi robusto e valente e em outra idade servindo à pátria conheceu a guerra combateu viu a morte e foi ferido 3050_2941_000063 nas casas ferve a panela sobre o fogão nas cozinhas a mulher chega à janela atira milho às galinhas meio-dia o sol escalda e brilha em toda a pureza nos campos cor de esmeralda e no céu cor de turquesa 3050_2941_000064 e a voz do sino ecoando longe de atalho em atalho vai pelos campos cantando a vida a luz o trabalho fim do poema 3050_2941_000065 hoje pratiquei o bem não tive um dia vazio trabalhei não fui vadio e não fiz mal a ninguém fim do poema 3050_2941_000066 batendo as asas num susto quer fugir porfia cansa e treme e respira a custo contente o menino vita 3050_2941_000067 ao leitor quando a casa alves e companhia me incumbiu de preparar este livro para uso das aulas de instrução primária não deixei de pensar com receios nas dificuldades grandes do trabalho 3050_2941_000068 mas a dificuldade maior era realmente a da forma em certos livros de leitura que todos conhecemos os autores querendo evitar o apuro do estilo fazem períodos sem sintaxe e versos sem metrificação 3050_2941_000069 e fica alegre quando vê que os netos ouvindo-o e vendo-o e lhe invejando a sorte batem palmas extáticos e inquietos amando a pátria sem temer a morte 3050_2941_000070 e abandonando a carabina e a espada veio depois do seu dever cumprido tratar das terras e empunhar a enxada hoje a custo somente move os passos tem os cabelos brancos não tem dentes porém remoça quando tem nos braços 3050_2941_000071 outro perigo a possibilidade de cair no extremo oposto fazendo um livro ingênuo demais ou o que seria pior um livro como tantos há por aí falso cheio de histórias maravilhosas e tolas que desenvolvem a credulidade das crianças 3050_2941_000072 levando a tudo a assolação mais pode límpida e sublime caindo sobre um grande crime uma palavra de perdão fim do poema 3050_2941_000073 o filho ó mamãe quando adormecem todos num sono profundo há mesmo almas do outro mundo que aos meninos aparecem a mãe não creias nisso é tolice fantasmas são invenções para dar medo aos poltrões não houve ninguém que os visse 4405_3604_000000 que crédito que dá tão facilmente o coração aquilo que deseja quando lhe esquece o fero seu destino oh deixem-me enganar que eu sou contente que posto que maior meu dano seja fica me a glória já do que imagino 4405_3604_000001 erros meus má fortuna amor ardente em minha perdição se conjuraram os erros e a fortuna sobejaram que para mim bastava o amor somente 4405_3604_000002 mas segundo o que o céu me tem mostrado já sei que deste meu buscar ventura achado tenho já que não a tenho fim do poema 4405_3604_000003 amor fero cruel fortuna dura bem tendes vossa força experimentada assolai destruí não fique nada vingai-vos desta vida quinda dura 4405_3604_000004 o tempo cobre o chão de verde manto que já coberto foi de neve fria e enfim converte em choro o doce canto e afora este mudar-se cada dia outra mudança faz de mor espanto que não se muda já como soía 4405_3604_000005 continuamente vemos novidades diferentes em tudo da esperança do mal ficam as mágoas na lembrança e do bem se algum houve as saudades 4405_3604_000006 se cuido nas passadas que já dei custa me esta lembrança só tão cara que a dor de ver as mágoas que passara tenho pola mor mágoa que passei 4405_3604_000007 grão tempo há já que soube da ventura a vida que me tinha destinada que a longa experiência da passada me dava claro indício da futura 4405_3604_000008 a vida sim que uma áspera mudança não deixa viver tanto um coração e eu na morte tenho a salvação sim mas quem a deseja não a alcança 4405_3604_000009 e se de qualquer áspera mudança toda a vontade isenta amor castiga como eu vi bem no mal que me condena e se em vós não se entende haver vingança será forçado pois amor me obriga que eu só de vossa culpa pague a pena 4405_3604_000010 sacrifiquei a vida a meu cuidado que amor não quer cordeiros nem bezerros vi mágoas vi misérias vi desterros parece-me que estava assim ordenado contentei me com pouco conhecendo que era o contentamento vergonhoso só por ver que cousa era viver ledo 4405_3604_000011 que poderei do mundo já querer que naquilo em que pus tamanho amor não vi senão desgosto e desamor e morte enfim que mais não pode ser 4405_3604_000012 tempo é já que minha confiança se desça de uma falsa opinião mas amor não se rege por razão não posso perder logo a esperança 4405_3604_000013 se uma cor de morto na aparência um espalhar suspiros vãos ao vento em vós não faz senhora movimento fique meu mal em vossa consciência 4405_3604_000014 mudam-se os tempos mudam-se as vontades muda-se o ser muda-se a confiança todo o mundo é composto de mudança tomando sempre novas qualidades 4405_3604_000015 forçado é logo que eu espere e viva ah dura lei de amor que não consente quietação numa alma que é cativa se hei de viver enfim forçadamente para que quero a glória fugitiva de uma esperança vã que me atormente 4405_3604_000016 mas por que meu destino me mostrasse que nem ter esperanças me convinha nunca nesta tão longa vida minha cousa me deixou ver que desejasse mudando andei costume terra e estado por ver se se mudava a sorte dura a vida pus nas mãos de um leve lenho 4405_3604_000017 sempre a razão vencida foi de amor mas porque assim o pedia o coração quis amor ser vencido da razão ora que caso pode haver maior 4405_3604_000018 tudo passei mas tenho tão presente a grande dor das cousas que passaram que as magoadas iras me ensinaram a não querer já nunca ser contente 4405_3604_000019 quando uma sombra vã me assegurava que algum bem me podia estar guardado em tão fermosa imagem que o treslado na alma ficou que nela se enlevava 4405_3604_000020 quarenta e seis no mundo quis um tempo que se achasse de luís vaz de camões no mundo quis um tempo que se achasse o bem que por acerto ou sorte vinha e por experimentar que dita tinha quis que a fortuna em mim se experimentasse 4405_3604_000021 em prisões baixas fui um tempo atado vergonhoso castigo de meus erros inda agora arrojando levo os ferros que a morte a meu pesar tem já quebrado 4405_3604_000022 pois logo se está claro que um tormento dá causa que outro na alma se acrescente já nunca posso ter contentamento mas esta fantasia se me mente oh ocioso e cego pensamento ainda eu imagino em ser contente 4405_3604_000023 ponha-me enfim em baixo ou alto estado que até na dura morte me acharão na língua o nome nalma a vista pura fim do poema 4405_3604_000024 novo modo de morte e nova dor estranheza de grande admiração que perde suas forças a afeição porque não perca a pena o seu rigor pois nunca houve fraqueza no querer mas antes muito mais se esforça assim um contrário com outro por vencer 4405_3604_000025 pois vida me não farta de viver pois já sei que não mata grande dor se cousa há que mágoa dê maior eu a verei que tudo posso ver a morte a meu pesar me assegurou de quanto mal me vinha já perdi o que perder o medo me ensinou 4405_3604_000026 errei todo o discurso de meus anos dei causa que a fortuna castigasse as minhas mal fundadas esperanças de amor não vi senão breves enganos oh quem tanto pudesse que fartasse este meu duro génio de vinganças 4405_3604_000027 na desesperação já repousava o peito longamente magoado e com seu dano eterno concertado já não temia já não desejava 4405_3604_000028 onde lembranças mata a longa ausência em temeroso mar em guerra dura ali a saudade está segura quando mor risco corre a paciência mas ponha-me fortuna e duro fado em nojo morte dano e perdição ou em sublime e próspera ventura 4405_3604_000029 soube amor da ventura que a não tinha e por que mais sentisse a falta dela de imagens impossíveis me mantinha mas vós senhora pois que minha estrela não foi melhor vivei nesta alma minha que não tem a fortuna poder nela 4405_3648_000000 para justificar a precipitação dos fatos digamos que laura mulher de vinte e seis anos romântica e nervosa casara-se muito nova ainda com o comendador viana homem quinze anos mais velho que ela curto e positivo 4405_3648_000001 no dia em que o século completou o seu primeiro aniversário esmeralda lembrou ao pai a aposta e o nosso comendador teve que se submeter fez-se o casamento e passados alguns dias o sogro lamentava-se em conversa com sua esposa 4405_3648_000002 aconteceu que o novais apanhou um resfriado e foi obrigado a ficar alguns dias de cama ardendo em febre quando se levantou pronto para outra o seu primeiro cuidado foi necessariamente mostrar-se a helena esperou com impaciência pela hora costumada que nunca lhe tardou tanto 4405_3648_000003 e naturalmente o conselheiro andava em tudo isso com tanta manha e hipocrisia que ninguém suspeitava daquele trabalhinho de quinze anos a teresa que estimava deveras a rosalina lembrou-se de que não se lembram as mulheres 4405_3648_000004 o sonho do conselheiro de arthur azevedo o conselheiro lapa era o chefe de família mais austero que naquele tempo havia no rio de janeiro funcionário de elevada categoria nunca ninguém o viu por essas ruas senão de sobre casaca preta e chapéu alto 4405_3648_000005 com efeito exclamou laura agarrando rapidamente no binóculo deve ser um homem excepcional não é melhor que o não vejas ponderou o marido tomando-lhe o binóculo das mãos que interesse tens tu 4405_3648_000006 barreto que fora sempre um pobretão nada entendia de pedras finas e por isso achava que as de sua mulher apesar de falsas eram bonitas mas no íntimo ele envergonhava-se daquela fulgurante exibição no pescoço nos braços nos dedos e nas orelhas de francina 4405_3648_000007 vizinha bela vizinha vizinha por quem padeço pois tais palavras mereço que me fizeram chorar o prometido é devido para que o peito me aquietes ou dá-me quanto prometes ou não prometas sem dar 4405_3648_000008 o passageiro de vinte e cinco anos ergueu-se e desceu ao compartimento do paquete onde ficava o seu camarote bateu levemente à porta abriu-lhe uma linda mulher que se lançou nos seus braços era a mariquinhas 4405_3648_000009 mas as suas esperanças foram cruelmente frustradas pela fatalidade a criança extraída a ferros nasceu morta e francina morreu de eclampsia o barreto sentiu tanto tanto que quase morreu também 4405_3648_000010 talvez mas o que é preferível ser amante da mulher de um amigo sem que este o saiba ou passar aos olhos dele por amante dela sem o ser em risco de pagar com a vida um crime que não praticou 4405_3648_000011 antes de levá-la ao marido que esperava na sala de jantar contemplou-a durante algum tempo como para despedir-se dela para sempre e então notou que alguém escrevera num canto estas palavras com letra miúda nunca mais te verei querida nota 4405_3648_000012 este rio de janeiro menina é a terra da maledicência deus me livre de que alguém se lembre de espalhar por aí que eu roubei o sino de são francisco 4405_3648_000013 aquele peralta faz versos e os jornais levam a dizer todos os dias que ele tem muito talento e que é muito inspirado lembra-me agora que já tenho lido esse nome de passos nogueira oh menina vê lá se também tu 4405_3648_000014 mas pouco a pouco foi se desenvergonhando e por fim já lhe dizia bom dia seu novais boa tarde seu novais certa manhã em que o rapaz acordou muito cedo e foi para a janela antes que abrissem o armazém viu cair-lhe na manga do paletó um pequeno círculo de saliva muito alvo 4405_3648_000015 não te compreendo vizinha tu mesma não te compreendes faz-te te amar e pretendes que eu fuja e te deixe em paz mas não vês que é negativo este sistema que empregas tudo escrevendo me negas e olhando tudo me dás 4405_3648_000016 este por expressa recomendação da amante nunca mais apareceu no caramanchão fatídico isto fez com que o marido tornasse às boas uma tarde perguntou ó menina então o poeta já ali não mora 4405_3648_000017 ora tu nada sofres acudiu um dos colegas com um sorriso impertinente nada sofro ora esta por quê porque és rico rico eu naturalmente se não fosses rico tua mulher não poderia andar coberta de brilhantes 4405_3648_000018 mas meu caro senhor as joias de minha mulher são falsas falsas ora essa e é a mim que o senhor diz isso a mim que lhe as vendi a sua senhora seria incapaz de pôr uma joia falsa 4405_3648_000019 o barreto ficou petrificado entretanto disfarçou como pôde a comoção e despediu o joalheiro dizendo que o procuraria na loja 4405_3648_000020 sou constantemente abordado por indivíduos que me oferecem assuntos e aos quais não dou atenção porque eles em geral não têm uma ideia aproveitável entre esses indivíduos há um funcionário aposentado que na sua roda é tido por espirituoso 4405_3648_000021 uma cocote francesa cujo nome era muito conhecido nas rodas alegres e se prestava aos trocadilhos mais interessantes quer em francês quer em português 4405_3648_000022 ela nunca perdoou ao marido o mau passo que deu seria ainda hoje o modelo das esposas se o comendador não se lembrasse de fazer raclame ao poeta 4405_3648_000023 se viver no dia em que ele completar o primeiro aniversário papai consentirá no meu casamento com seu sousinha o comendador soltou uma gargalhada e disse pois está dito 4405_3648_000024 casamos a pequena com criançola hás de ver que aquele maricas tão cedo não nos dará um neto a filha que passava e ouviu acudiu prontamente 4405_3648_000025 a moça que gostava de contrariar o autor dos seus dias redarguiu logo pois eu estou convencida de que este jornal tem vida para muito tempo por que minha filha porque tem veremos 4405_3648_000026 o caixeiro pensou e pensou bem não ser coisa muito natural que desejando espairecer à janela a rapariga deixasse a sala pela cozinha a frente pelos fundos e logo se convenceu de que era ele o objeto que a atraía todas as tardes a um lugar tão impróprio 4405_3648_000027 cruzou as mãos sobre o ventre atirou olhar pela janela escancarada que enchia de ar e luz a sala de jantar e no jardim vizinho um homem a escrever sentado à sombra de caramanchão 4405_3648_000028 que existem aqui herdeiros cujos nomes ele não revelará ao simplório sem que este mande pelo correio tantas mil pesetas o simplório manda-lhe o dinheiro e fica eternamente à espera dos nomes dos herdeiros que tal 4405_3648_000029 este grito quer dizer que dona margarida tinha lido a frase nunca mais te verei e o seu acréscimo nem eu que foi perguntou o cavalcanti a nota é a mesma 4405_3648_000030 entretanto um simples escriturário do tesouro teve um dia a ventura de fazer falar o coração da moça animado pelas intenções mais puras e competentemente autorizado pela sua bela 4405_3648_000031 sentia-se atraída pela figura daquele horrendo sedutor de solteiras casadas e viúvas e duas vezes ao dia reclinada à janela olhava longamente para o poeta 4405_3648_000032 se eu soubesse que aquele patife morava ali não tínhamos vindo para cá mas que importa que ele more ali importa muito aquilo é sujeitinho capaz de manchar a reputação de uma senhora com um simples cumprimento ele algum dia já te cumprimentou 4405_3648_000033 o seu patrão o cerqueira na janela do segundo andar munido também de um binóculo namorava a sua namorada a coisa explica-se o negociante surpreendendo alguns dias antes os beijos da rapariga supôs que eram para ele e correspondeu imediatamente 4405_3648_000034 imaginem agora os leitores com que interesse esmeralda e o sousinha acompanhavam a vida de o século a moça comprava todas as tardes um número da folha e colocava-o bem à vista sobre a mesa de jantar para que o pai o visse 4405_3648_000035 deixe estar que tenho um magnífico assunto para você escrever um conto qualquer dia destes quando eu estiver de maré lá lh'o mandarei há dias tomando o bonde para ir ao leme espairecer as idéias 4405_3648_000036 já lhe tenho dito um milhão de vezes que se deixe disso que não use joias uma vez que não pode usá-las verdadeiras que ela somente a si mesma se ilude tornando-se ridícula aos olhos do mundo mas não há meio aquilo é mania 4405_3648_000037 a mulata resistia a todas as investidas libidinosas do amo dizia-lhe que tomasse juízo que respeitasse o seu lar doméstico que a senhora e a menina podiam reparar et cetera 4405_3648_000038 e todas as tardes repetiu ingenuamente a criada e foi para a cozinha viana obtemperou laura aproveitando a ausência da criada você faz umas coisas esquisitas esta mulher vai ficar convencida de que meu marido tem ciúmes de um homem que eu nem sequer conheço 4405_3648_000039 acha então que temos o direito sobre a mulher do próximo desde que a mulher do próximo nos provoque se o próximo é nosso amigo paciência não se casasse com uma mulher assim 4405_3648_000040 havia um mês que era viúvo quando um dia lhe apareceu em casa um homem que ele não conhecia e se deu a conhecer como um dos joalheiros mais conhecidos da capital o barreto perguntou-lhe o motivo da sua visita 4405_3648_000041 como a esposa do cavalcanti era uma hábil costureira recorreu à sua habilidade para ajudar nas despesas de casa um dia fez um vestido para uma amiga e tão bem feito tão elegante que a sua fama correu de boca em boca e valeu-lhe uma freguesia certa que lhe dava algum dinheiro a ganhar 4405_3648_000042 apesar da reputação que gozava e da qual se fizera eco o próprio comendador passos nogueira jamais inscrevera ao seu canhanho de conquistas fáceis aventura tão interessante e tão considerável como essa que agora lhe desassossegava o espírito e lhe espantava as rimas 4405_3648_000043 não abusou da situação o cerqueira que um ano depois de casado foi pai de uma linda criança não gozou por longo tempo as delícias da paternidade morreu morreu e a viúva passado o luto casou-se com o novais que se tornara o braço direito da casa 4405_3648_000044 uma tarde lembrou-se de assestar contra ela um binóculo de teatro e teve a satisfação de distinguir claramente um sorriso que o estonteou entretanto a moça desde que se viu observada tão de perto fugiu arrebatadamente para o interior da casa 4405_3648_000045 parece é francesa e casada com um banqueiro disse-me ela naturalmente o marido é também francês porque ela chama-se madame leveau leveau repetiu o cavalcânti empalidecendo conheces não 4405_3648_000046 hesitou durante algum tempo em cometer uma baixeza mas acabou cometendo-a já o leitor adivinhou que o miserável pediu à esposa o dinheiro que devia mandar à amante 4405_3648_000047 o barreto pensava bem mas a sua debilidade moral não permitia que ele contrariasse francina um dia o fracalhão percebeu com que alegria que ela estava no seu estado interessante 4405_3648_000048 tomou-o entre as mãos percorreu-o rapidamente com os olhos e disse com aquele ar impertinente e desdenhoso que faz dele benza-o deus um dos negociantes mais antipáticos da nossa praça 4405_3648_000049 sentei-me por acaso ao lado do meu mecenas que na forma do costume começou por invectivar a minha preguiça e prosseguiu assim creio que já lhe disse que tenho um assunto para o amiguinho escrever um conto já m'o disse mais de vinte vezes qualquer dia lá lh'o mandarei 4405_3648_000050 o conselheiro lapa era casado e tinha uma filha que passara dos vinte anos sem que nenhum rapaz a namorasse não porque fosse feia ou antipática vaidosa ou mal educada mas porque ninguém se atrevia a levantar os olhos para a filha de um conselheiro tão grave e tão conspícuo 4405_3648_000051 é muito simples a falecida sua senhora tinha joias é natural que o senhor não precisando delas pretenda desfazer-se de algumas senão de todas venho pedir-lhe que me dê a preferência preferência para quê para comprá-las 4405_3648_000052 o novais imaginou logo que a ofendera aquela engenhosa intervenção da ótica ela porém voltou à janela da cozinha trazendo por sua vez um binóculo que assestou resolutamente contra o vizinho 4405_3648_000053 não não é possível não me persiga esqueça-se de mim bem vê que não sou livre um encontro poderia causar a nossa desgraça 4405_3648_000054 que diabo foi você mesmo que falou da filha do despachante da mulher do negociante e da viúva do coronel disseram-me 4405_3648_000055 então perguntou ela consultaste meu marido consultei que te disse ele aconselhou-me a que não fizesse como josé do egito amigos amigos mulheres à parte e o passageiro de vinte e cinco anos correu cautelosamente o ferrolho do camarote 4405_3648_000056 olhe eu estou perfeitamente tranquilo a respeito da mariquinhas trouxe-a comigo nessa viagem porque ela quis vir se quisesse ficar no rio de janeiro teria ficado e eu estaria da mesma forma tranquilo 4405_3648_000057 logo que ficou só encaminhou-se para o quarto da morta e abriu a cômoda onde se achavam as jóias mas ao vê-las sentiu uma onda de sangue subir-lhe à cabeça e caiu para trás 4405_3648_000058 parabéns sinhazinha continuou a gritar a boa mulata o patrão teve um sonho tão esquisito e ficou tão impressionado que resolveu consentir o seu casamento com o senhor alberto ele veio acordar-me para eu levar a notícia à sinhazinha o conselheiro não teve o que dizer 4405_3648_000059 digamos ainda que o comendador continuava todos os dias a fazer réclame ao namorado referindo-se à sua pessoa em termos desabridos insultando o de modo que ele não ouvisse e finalmente exprobrando a laura por mera presunção que ela o animasse e lhe desse corda 4405_3648_000060 dois dias depois novo bilhete ela abriu-o sôfrega e palpitante e leu estes versos eu não sou livre escreveste 4405_3648_000061 este acabou por notar a insistência com que era contemplado pela vizinha e prontamente correspondeu aos seus olhares lânguidos e prometedores estabeleceu-se logo entre eles um desses namoros saborosos e terríveis ridículos e absorventes que monopolizam duas existências 5739_4739_000000 viajou ainda mais o nosso herói e tudo viu com olhos de quem sabe ver e tudo contava com alma de quem sabe contar azevedo e adelaide passavam horas esquecidas do amor dizia ele 5739_4739_000001 acatado querido descansado tal é o nosso azevedo a quem por cúmulo de ventura coroam os mais belos vinte e seis anos deu-lhe a fortuna um emprego suave não fazer nada possui um diploma de bacharel em direito mas esse diploma nunca lhe serviu 5739_4739_000002 disse diogo louco de contente pois sim adeus até amanhã tenha sonhos cor-de-rosa e desculpe os meus maus modos até amanhã o velho beijou graciosamente a mão de emília e saiu capítulo quatro 5739_4739_000003 pois não serei eu quem o decifre senhor diogo desejo-lhe muita felicidade adeus e os dois separaram-se diogo seguiu para a casa de emília tito para a casa de azevedo tito acabava de saber que a viúva pensava nele todavia isso não lhe dera o menor abalo por quê 5739_4739_000004 supus que pudesse dar-lhe uma felicidade recebendo outra enganei-me tem a glória de retirar-se com todas as honras de guerra eu é que fico vencida paciência pode zombar de mim não lhe contesto o direito que tem para isso 5739_4739_000005 no fim de algum tempo azevedo deteve-se e perguntou queres que paremos aqui como quiseres disse adelaide é melhor disse azevedo fechando o livro as coisas boas não se gozam de uma assentada guardemos um pouco para a noite demais era já tempo que eu passasse do idílio escrito para o idílio vivo deixa-me olhar para ti 5739_4739_000006 trouxe de lá alguns leques e mantilhas passou a itália e levantou o espírito à altura das recordações da arte clássica viu a sombra de dante nas ruas de florença viu as almas dos doges pairando saudosas sobre as águas viúvas do mar 5739_4739_000007 à carta de emília respondeu tito nos seguintes termos minha senhora li e reli a sua carta e não lhe ocultarei o sentimento de pesar que ela me inspirou realmente minha senhora é esse o estado do seu coração está assim tão perdido por mim 5739_4739_000008 houve um tempo prosseguiu emília em que estivemos separadas mas isso não trouxe mudança alguma às nossas relações foi no tempo do meu primeiro casamento ah foi casada duas vezes em dois anos e por que enviuvou da primeira porque meu marido morreu disse emília rindo-se 5739_4739_000009 no primeiro dia da residência de tito em petrópolis a chuva como disse acima impediu que os diversos personagens desta história se encontrassem cada qual ficou na sua casa mas o dia imediato foi mais benigno tito aproveitou o bom tempo para ir ver a risonha cidade da serra 5739_4739_000010 a propósito da qual já tive ocasião de escrever esta máxima que há pessoas elegantes e pessoas enfeitadas olhos negros e rasgados cheios de luz e de grandeza cabelos castanhos e abundantes nariz reto como o de safo boca vermelha e breve faces de cetim colo e braços como os das estátuas tais eram os traços da beleza de emília 5739_4739_000011 perdoe a demora não há que perdoar não podia vir era natural que fosse por algum motivo sério quanto a mim não tenho igualmente de que pedir perdão esperei estava cansado voltaria em outra ocasião tudo isto é natural emília ofereceu uma cadeira a tito e sentou-se num sofá realmente disse ela acomodando o balão o senhor tito é um homem original 5739_4739_000012 tudo e percebi que percebeu meu caro senhor percebi que a senhora ama o tito ah retiro-me portanto mas não quero fazê-lo sem que ao menos fique sabendo de que saio com ciência de que não sou amado e que saio antes de me mandarem embora 5739_4739_000013 adelaide ah é até bom que aprendas em nossa escola a ciência do casamento acrescentou azevedo para quê perguntou tito meneando o chicotinho para te casares hum fez tito não pretende perguntou adelaide 5739_4739_000014 uns aborrecem as laranjas outros aborrecem os amores agora se o aborrecimento vem por causa das cascas não sei o que é certo é que é assim é ferino disse emília olhando para adelaide ferino eu 5739_4739_000015 a lua inteiramente cheia projetava os seus reflexos pálidos e melancólicos na vasta floresta que cobria as colinas próximas e clareava toda a vasta campina que rodeava a casa só se ouvia ao longe o murmúrio de uma cachoeira e ao perto o piar de algumas corujas e o chilrar de uma infinidade de grilos espalhados na planície 5739_4739_000016 azevedo foi a um baile antes de partir aí estava armada uma rede em que ele devia ser colhido que rede vinte anos uma figura delicada esbelta franzina uma dessas figuras vaporosas que parecem desfazer-se ao primeiro raio do sol azevedo não foi senhor de si 5739_4739_000017 não vale a pena mas tu castigaste o outro sim mas não vale a pena dissimulada por que dizes isso porque já te vejo meio tentada a uma nova vingança eu ora qual que tem não é crime 5739_4739_000018 é a minha glória não imagina como eu aborreço as cópias fazer o que muita gente faz que mérito há nisso não nasci para esses trabalhos de imitação já uma coisa fez como muita gente qual foi prometeu me ontem esta visita e veio cumprir a promessa 5739_4739_000019 primeiro não sou bonito oh disse emília agradeço o protesto mas continuo na mesma opinião não sou bonito não sou oh disse adelaide segundo não sou curioso e o amor se o reduzirmos às suas verdadeiras proporções não passa de uma curiosidade terceiro não sou paciente e nas conquistas amorosas a paciência é a principal virtude quarto finalmente 5739_4739_000020 a vaidade impunha no espírito dela com força prodigiosa assim que a bela viúva foi usando todos os meios que era lícito empregar para fazer apaixonar tito mas apaixonado ele o que faria ela 5739_4739_000021 estava no terreno do primeiro dia passeava lia conversava e parecia inteiramente alheio aos planos que se tramavam em roda dele durante esse tempo foi apenas duas vezes à casa de emília uma com a família de azevedo outra com diogo nestas visitas era sempre o mesmo frio indiferente impassível não havia olhar por mais sedutor e significativo que o abalasse 5739_4739_000022 atura desabrido maçante chocarreiro sem fé em coisa alguma sou um conversador muito pouco digno de ser desejado é preciso ter uma grande soma de bondade para ter expressões tão benévolas tão amigas deixe esse ar de mofa e mofa minha senhora ontem eu e minha tia tomamos chá sozinhas sozinhas ah 5739_4739_000023 e despedindo-se do velho disse-lhe que a resposta iria depois diogo retirou-se esfregando as mãos de contente é que a carta cuja leitura os leitores fizeram ao mesmo tempo que o nosso herói não era a que emília lera a diogo 5739_4739_000024 quando calígula traz de manhã o embrulho daniel divide a comida em duas porções uma para o almoço outra para o jantar depois homem e macaco sentam-se em face um do outro na sala de jantar e comem 5739_4739_000025 tito sabia juntar muita jovialidade a muita delicadeza sabia fazer rir sem saltar fora das conveniências acrescia que voltando de uma longa e pitoresca viagem trazia as algibeiras da memória deixem passar a frase cheias de vivas reminiscências tinha feito uma viagem de poeta e não de peralvilho 5739_4739_000026 um piano de erard tudo disposto e arranjado com vida tito gastou o primeiro quarto de hora no exame da sala e dos objetos que a enchiam esse exame devia influir muito no estudo que ele quisesse fazer do espírito da moça dize-me como moras dir-te-ei 5739_4739_000027 o que saberemos mais adiante o que é preciso dizer desde já é que as mesmas suspeitas despertadas no espírito de diogo tivera a mulher de azevedo a intimidade de emília dava lugar a uma franca interrogação e a uma confissão franca adelaide no dia seguinte àquele em que se passou a cena que referi acima 5739_4739_000028 é preciso que o seja para desconhecer que a nossa vida não importa essas exigências da eterna fidelidade e demais pode-se conservar a lembrança dos que morrem sem renunciar às condições da nossa existência agora 5739_4739_000029 deixemos o assunto eu podia fazer um discurso a propósito mas prefiro ficar conosco azevedo atalhou-o está sabido não tenho essa intenção mas tenho eu hás de ficar mas se eu já mandei o criado tomar alojamento no hotel de bragança pois manda contra ordem fica comigo insisto em não perturbar a tua paz deixa-te disso fique disse 5739_4739_000030 era eu quem me sentia doidamente apaixonada ele manifestava por gestos por palavras por tudo e mais crescia nele a indiferença mais crescia o amor em mim mas estás falando sério olha antes para mim quem pensara 5739_4739_000031 sabe que me daria prazer se utilizasse do oferecimento de minha casa ainda se não utilizou foi esquecimento foi é muito amável sou muito franco eu sei que vossa excelência preferia uma delicada mentira mas eu não conheço nada mais delicado que a verdade emília sorriu nesse momento entrou diogo 5739_4739_000032 rogando a deus para que encontre um coração menos frio que o meu a letra vai disfarçada como a sua e como na sua carta deixo a assinatura em branco esta carta foi entregue à viúva na mesma tarde 5739_4739_000033 eu sei que isto não é delicado mas em primeiro lugar eu tenho a coragem das minhas opiniões e em segundo foi vossa excelência quem me procurou é infelizmente verdade eu não creio nos amores leais e eternos 5739_4739_000034 ralha-me de não visitá-la vou visitá-la ocupa-se tanto de mim como de ganimedes ganimedes é o nome de um cãozinho felpudo que eu lhe dei importa-se tanto comigo como com o cachorro é de propósito é um enigma aquela moça 5739_4739_000035 uma como que ruína do passado reconstruída por mãos modernas de modo a ter esse aspecto bastardo que não é nem a austeridade da velhice nem a frescura da mocidade não havia dúvida de que o velho devia ter sido um belo rapaz em seus tempos mas presentemente se algumas conquistas tivesse feito só podia contentar-se com a lembrança delas 5739_4739_000036 encontrando uma delas amanhã azevedo por exemplo um dos meus leitores exclame ah cá vi uma história em que se falou de ti não te tratou mal o autor mas a semelhança era tamanha houve tão pouco cuidado em disfarçar a fisionomia que eu 5739_4739_000037 lendo esta carta tito olhava repetidas vezes para diogo como é que o velho se prestara àquilo era autêntica ou apócrifa a tal carta sobre não trazer assinatura tinha a letra disfarçada seria uma arma de que o velho usara para descartar se do rapaz mas se fosse assim era preciso que ele soubesse do que se passara na véspera tito releu a carta muitas vezes 5739_4739_000038 oh oreis aí uma novidade suspeito apenas ela só me fala do senhor indaga-me vinte vezes por dia de sua pessoa dos seus hábitos do seu passado e das suas opiniões eu como há de acreditar respondo a tudo que não sei mas vou criando um ódio ao senhor do qual não me poderá jamais criminar 5739_4739_000039 lendo esta carta vossa excelência dirá consigo que eu sou o mais audaz cavalheiro que ainda pisou a terra de santa cruz será um engano de observação isto em mim não é audácia é franqueza lastimo que as coisas chegassem a este ponto mas não posso dizer-lhe 5739_4739_000040 peço para me retirar e dizendo isto diogo travou do chapéu para sair lançando um olhar de despeito e ciúme para a viúva que é isso perguntou esta onde vai dou asas às horas respondeu respondeu diogo ao ouvido de emília vão correr depressa agora 5739_4739_000041 nem bate disse tito mas se bem me lembro disse azevedo oferecendo-lhe um charuto houve um dia em que fugiste às teorias do costume andavas então apaixonado apaixonado é engano houve um dia em que a providência trouxe uma confirmação aos meus instintos solitários 5739_4739_000042 deixe-se disso eu não sou nada o senhor diogo sim o senhor vale um urso vale mesmo dois como havia de eu ora aposto que teve ciúmes exatamente mas era preciso não me conhecer não sabe das minhas ideias homem às vezes é pior pior como as mulheres não deixam uma afronta sem castigo 5739_4739_000043 entretanto devo dizer-lhe que eu bem o conhecia nunca lho disse mas conhecia-o desde o dia em que o vi pela primeira vez em casa de adelaide reconheci na sua pessoa o mesmo homem que um dia veio atirar-se aos meus pés era zombaria então como hoje eu já devia conhecê-lo caro pago o meu engano adeus adeus para sempre 5739_4739_000044 sou feito de modo que nada mais lhes posso conceder do que uma estima desinteressada emília olhou para o moço e disse se não é vaidade é doença há de me perdoar mas eu creio que não é doença nem vaidade é natureza 5739_4739_000045 ah sim bem vês que até a felicidade por igual fatiga afinal sempre a razão do meu lado talvez apesar de tudo quer-me parecer que já intentas entrar na família dos casados eu 5739_4739_000046 o marido e a mulher abrem um para o outro a bolsa das confidências sem pensares podes deitar tudo a perder não digas isso vamos lá há novidade não há nada confirmas as minhas suspeitas gostas da emília ódio não lhe tenho é verdade gostas e ela merece é uma boa senhora de não vulgar beleza possuindo as melhores qualidades 5739_4739_000047 diogo soltou um suspiro e disse uf felizmente e depois de um silêncio continuou tive duas ideias uma foi o desprezo mas desprezá-los é pô-los em maior liberdade e ralar-me de dor e de vergonha a segunda foi o duelo é melhor eu mato ou deixe-se disso 5739_4739_000048 sim disse ela tito beijou amorosamente a mão da viúva depois acrescentou mas é preciso medir toda a minha generosidade eu devia dizer aceito a sua mão devia ou não devia 5739_4739_000049 completa não imagino marido de um serafim nas graças e no coração não reparei que estava aqui mas não precisa corar disto me há de ouvir vinte vezes por dia o que penso digo como não te hão de invejar os nossos amigos isso não sei pudera encafuado neste desvão do mundo de nada podes saber 5739_4739_000050 disse a emília o que pensava a resposta da viúva foi uma risada não te compreendo disse a mulher de azevedo é simples disse a viúva julgas-me capaz de apaixonar-me pelo amigo de teu marido enganas-te não eu não o amo somente 5739_4739_000051 esta conversa foi interrompida por azevedo um sinal de emília fez calar adelaide ficou convencionado que nem mesmo azevedo saberia de coisa alguma e com efeito adelaide nada comunicou a seu marido capítulo três tinham-se passado oito dias depois do que acabo de narrar tito como o temos visto até aqui 5739_4739_000052 não me lembro não se lembra ou se recebi essa carta foi em ocasião que a não pude ler e então esqueci esqueci a em algum lugar é possível mas é a última vez não me convida mais para tomar chá não pode arriscar se a perder distrações melhores isso não digo a senhora trata bem a gente e em sua casa passam-se bem as horas 5739_4739_000053 emília executou ao piano os prelúdios de uma sinfonia tito ouvia-a com a mais profunda atenção realmente a bela viúva tocava divinamente então disse ela levantando-se devo ser enforcada deve ser coroada toca perfeitamente outro ponto em que não é original toda a gente me diz isso ah é eu também não nego a luz do sol 5739_4739_000054 é um homem incapaz de amar continuou adelaide não pode haver maior indiferença para o amor em resumo prefere a um amor o quê um voltarete disse-te isso perguntou emília e repito disse tito mas note bem não por elas é por mim acredito que todas as mulheres sejam credoras da minha adoração mas eu é que 5739_4739_000055 não contava com a sua visita disse a viúva eu sou assim apareço quando não me esperam sou como a morte e a sorte grande agora é a sorte grande disse emília que número é o seu bilhete minha senhora número doze isto é doze horas que tenho tido o prazer de ter hoje aqui o sr diogo doze horas 5739_4739_000056 era entretanto uma casa solidamente construída não tinha porta nem janelas tinha um vão quadrado que servia ao mesmo tempo de janela e de porta era por ali que o misterioso morador entrava e saía pouca gente o via sair não só porque ele raras vezes o fazia como porque o fazia em horas impróprias 5739_4739_000057 talvez preferisses que não fosse viúva sim é natural que se embale dez vezes por dia na lembrança dos dois maridos que já exportou para o outro mundo à espera de exportar o terceiro não é dessas afianças quase que posso afiançar ah 5739_4739_000058 que estavas temporariamente em petrópolis descansei mas logo hoje tomei a barca da prainha e aqui estou eu já suspeitava que com o teu espírito de poeta irias esconder tua felicidade em algum recanto do mundo com efeito isto é verdadeiramente uma nesga do paraíso jardim caramanchões uma casa leve e elegante um livro 5739_4739_000059 não saí para casa um demônio oculto me impeliu para cometer um ato infame cometi-o mas tirei dele um proveito estou salvo sei que me não ama ouviu 5739_4739_000060 emília ainda o acompanhou com os olhos por algum tempo da janela da casa mas tito como se o caso não fosse com ele seguiu sem olhar para trás mas exatamente no momento em que emília voltava para dentro tito encontrava o velho diogo 5739_4739_000061 dizem que é excelente para os desgostos amorosos disse emília com intenção isso não sei mas não é só isso depois da invenção do fumo não há solidão possível é a melhor companhia deste mundo demais o charuto é um verdadeiro memento homo 5739_4739_000062 quer dormir perguntou o rapaz é o que eu vou fazer mas a história a história é muito divertida até aqui só temos visto duas coisas um homem e um macaco perdão temos mais dois um macaco e um homem é muito divertida mas para variar o homem vai sair e fica o macaco dizendo estas palavras com uma raiva cômica 5739_4739_000063 um grito de alegria suprema ia saindo do peito de emília mas não sei se um resto de orgulho ou qualquer outro sentimento converteu essa manifestação em uma simples palavra que aliás foi pronunciada com lágrimas na voz 5739_4739_000064 nada moveu a frieza de tito emília jogava um jogo perigoso era preciso decidir entre os seus desejos de vingar o sexo e as conveniências da sua posição mas ela era de um caráter imperioso respeitava muito os princípios de sua moral severa mas não acatava do mesmo modo as conveniências de que a sociedade cercava essa moral 5739_4739_000065 ri mesmo como uma pastorinha alegre e tu teócrito que fazes deixas correr os dias como as águas do paraíba feliz criatura sempre o mesmo disse azevedo o mesmo doido acha que ele tem razão minha senhora 5739_4739_000066 perdão interrompeu emília será depois do chá pois sim daí a pouco servia-se o chá aos três findo ele tito tomou a palavra e começou a história história de um homem e de um macaco não longe da vila no interior do brasil 5739_4739_000067 diogo travou do chapéu e saiu tito soltou uma gargalhada mas vamos ao fim da história que fim minha senhora eu já estava em talas por não saber como continuar era um meio de servi-lo vejo que é um velho aborrecido não é está enganado ah não divirto me com ele 5739_4739_000068 estava nessa posição havia cinco minutos quando assomou à porta a figura do velho diogo o rumor que o velho fez entrando despertou a viúva ainda aqui é verdade minha senhora disse diogo aproximando-se é verdade ainda aqui por minha infelicidade não entendo 5739_4739_000069 emília lançou um olhar a diogo como para tranquilizá-lo este mais calmo então lembrou-se do que adelaide lhe havia dito e voltou às boas afinal de contas disse ele consigo o caçoado é ele eu sou apenas o meio de prendê-lo contribuamos para que se lhe tire a proa 5739_4739_000070 digo isto porque a primeira dúvida que nasceu em meu espírito proveio do portador escolhido pois quê vossa excelência não achou outro senão o próprio diogo confesso que de tudo o que tenho visto em minha vida é isto o que mais me faz rir mas eu não devo rir minha senhora vossa excelência abriu-me o seu coração de um modo que inspira antes compaixão 5739_4739_000071 emília começou a tocar mas era uma música tão triste que infundia certa melancolia no espírito do moço este depois de algum tempo interrompeu com estas palavras que música triste traduzo a minha alma disse a viúva anda triste que lhe importa as minhas tristezas tem razão não me importam nada em todo o caso não é comigo 5739_4739_000072 e há de encontrar qual disse tito abaixando a cabeça e batendo com a bengala na ponta do pé posso afirmá-lo disse emília duvido tenho pena de uma criatura assim continuou a viúva 5739_4739_000073 soube ver e sabia contar estas duas qualidades indispensáveis ao viajante por desgraça são as mais raras a maioria das pessoas que viajam nem sabem ver nem sabem contar tito tinha andado por todas as repúblicas do mar pacífico tinha vivido no méxico e em alguns estados americanos 5739_4739_000074 lembra-me um do mesmo gênero que este disse emília foi já há tempos andava sempre a gabar-se da sua isenção dizia que todas as mulheres eram para ele vasos da china admirava as e nada mais 5739_4739_000075 morava há uns vinte anos um homem de trinta e cinco anos cuja vida misteriosa era o objeto das conversas das vilas próximas e o objeto do terror que experimentavam os viajantes que passavam na estrada a dois passos da casa 5739_4739_000076 e perguntou duvidas receio é tão bom ser feliz sê-lo a sempre e do mesmo modo de outro não entendo eu neste momento ouviram os dois uma voz que partia da porta do jardim 5739_4739_000077 continuou emília um presente que mandou vir da europa e lá dos confins recordações das suas viagens de adolescente diogo estava radiante é uma insignificância disse ele olhando ternamente para emília mas o que é perguntou adelaide é 5739_4739_000078 tinha depois ido à europa no paquete da linha de nova iorque viu londres e paris foi à espanha onde viveu a vida de almaviva dando serenatas às janelas das rosinas de hoje 5739_4739_000079 se ainda não me compreendeu é bem curto de penetração tire a máscara e eu me explicarei esta noite tomo chá sozinha o importuno diogo não me incomodará com as suas tolices 5739_4739_000080 não conhecer o amor é não conhecer a vida há nada igual à união de duas almas que se adoram desde que o amor entra no coração tudo se transforma tudo muda a noite parece dia a dor assemelha-se ao prazer se não conhece nada disto pode morrer porque é o mais infeliz dos homens tenho lido isso nos livros mas ainda não me convenci 5739_4739_000081 isso há de ser mais difícil não tenho tempo e suponha que achasse de que me servia para mim é perfeitamente inútil isso é bom para outros para o diogo por exemplo para o diogo a bela viúva pareceu ter um assomo de cólera depois de um silêncio disse 5739_4739_000082 não está mau e tu entras nesta estratégia como conselheira trama se então contra um amigo um alter ego tá tá tá cala a boca não vás fazer abortar o plano azevedo riu-se a bandeiras despregadas no fundo achava engraçada a punição premeditada ao pobre tito a visita que tito disse ter de fazer à viúva naquele dia não se realizou 5739_4739_000083 e tão apreensivo ficou com a cena que acabava de presenciar que não a contou a ninguém durava esta existência três anos durante esse tempo o homem não envelhecera era o mesmo que no primeiro dia longas barbas ruivas e cabelos grandes caídos para trás usava um grande casaco de baeta tanto no inverno como no verão calçava botas e não usava chapéu 5739_4739_000084 a terra de rafael de virgílio e miguel ângelo foi para ele uma fonte viva de recordações do passado e de impressões para o futuro foi à grécia onde soube evocar o espírito das gerações extintas que deram ao gênio da arte e da poesia um fulgor que atravessou as sombras dos séculos 5739_4739_000085 à proporção que voltava a página dizia comigo é o azevedo não há dúvida feliz azevedo a hora em que começa essa narrativa é ele um marido feliz inteiramente feliz casado de fresco possuindo por mulher a mais formosa dama da sociedade e a melhor alma que ainda se encarnou ao sol da américa dono de algumas propriedades bem situadas e perfeitamente rendosas 5739_4739_000086 pendem das paredes dois retratos um de moça outro de velho a moça é uma figura angélica e deliciosa o velho inspirava respeito e admiração das outras duas paredes pendem de um lado uma faca de cabo de marfim e do outro uma mão de defunto amarela e seca a sala de jantar tem apenas uma mesa e dois bancos a mobília do quarto resume-se num gra grabato 5739_4739_000087 não sei mas seja ou não impossível não é a conversão que eu peço basta-me que seja menos indiferente e mais compassivo mas que pretendes fazer perguntou adelaide sentindo que as lágrimas também lhe rebentavam dos olhos houve alguns instantes de silêncio mas o que tu não sabes continuou emília é que ele não é para mim um simples 5739_4739_000088 a resposta a esta pergunta foi dada pelo próprio tito que assomara à porta do interior tendo visto entrar a viúva de uma das janelas tito desceu abaixo a ouvir a conversa dela com adelaide a estranheza que lhe causava a volta inesperada de emília podia desculpar a indiscrição do rapaz por quê 5739_4739_000089 eu me faço explicar disse o velho tomando um ar risonho dê-me o seu braço pois não e os dois seguiram conversando como dois amigos velhos estou pronto a ouvir a sua explicação lá vai sabe o que eu quero é que seja franco não ignora que eu suspiro aos pés da viúva peço-lhe que não discuta o fato admita o simplesmente 5739_4739_000090 meti-me a pretender uma senhora é verdade foi um caso engraçado como foi o caso perguntou adelaide o tito viu em um baile uma rapariga no dia seguinte apresenta-se em casa dela e sem mais nem menos pede-lhe a mão ela responde que te respondeu 5739_4739_000091 a figura não vem aqui por simples ornato de estilo é uma dedução lógica a mulher de azevedo chamava-se adelaide era pois em petrópolis numa tarde de dezembro de mil oitocentos e sessenta 7925_6390_000000 em outros países ter uma posição elevada é ser sério no brasil ser serio é ter uma posição elevada catão não teve estátua no capitólio eis a sua estátua 7925_6390_000001 a modéstia é a moldura do merecimento que o guarnece e realça não é dado ao saber humano conhecer toda a extensão da sua ignorância cessa a prudência quando lhe falta a paciência 7925_6390_000002 transportando-se em mil oitocentos e setenta e sete para a cidade mineira de mar de espanha onde fora exercer o cargo de promotor da justiça pública deixando o lugar nessa cidade ficou advogando 7925_6390_000003 todo o mal do brasil é que a politica é uma profissão mas os políticos não são profissionais o adulador é como a ave voa porque se agacha 7925_6390_000004 a fronte alta e calma os olhos pequenos e negros e a boca séria tinha uma expressão de melancolia que impressionava à primeira vista teria a natureza estampado naquele rosto o pressentimento de futuras desgraças 7925_6390_000005 o maior banquete não tem senão quatro pratos oxigênio hidrogênio carbono e azoto vemos deus nos olhos de nossa mãe e dizem que ele não existe 7925_6390_000006 em que pensará o pobre tapuya no encanto misterioso da mãe d'água cuja sedutora voz lhe parece estar ouvindo no murmúrio da corrente no curupira que vagabundeia nas matas fatal e esquivo com o olhar ardente cheio de promessas e de ameaças 7925_6390_000007 a vez de ter encontrado beirando o rio em viagem pelo sítios o dono da casa sentado no terreiro a olhar fixamente para as aguas da correnteza 7925_6390_000008 dessa melancolia contínua dão mostra principalmente as mulheres por causa da vida que levam os homens sempre andam veem uma ou outra vez gente e cousas novas 7925_6390_000009 a virtude é comunicável o vício é contagioso os governos fracos fazem fortes os ambiciosos e insurgentes a atividade sem juízo é mais ruinosa que a preguiça 7925_6390_000010 as mulheres passam toda a vida no sitio no mais completo isolamento assim a tapuya rosa que de nada se podia queixar com a vida material segura suprema ambição do caboclo foi sempre dada as tristezas 7925_6390_000011 nomeado promotor em são joão do rio claro são paulo pouco tempo depois voltou a angra dos reis onde funcionou como curador de órfãos capelas e resíduos 7925_6390_000012 os vícios e os crimes andam sempre em companhia quem não tem medo vive sem resguardo e acaba cedo bem merecem o sono da noite os que aproveitam utilmente as horas do dia a realidade nunca dá quanto a imaginação promete 7925_6390_000013 suas obras literárias e jurídicas são entre outras o missionário romance contos amazônicos títulos ao portador o cacaulista romance história de um pescador e etc 7925_6390_000014 presidiu no império as províncias de sergipe e espírito santo e tem escrito e redigido vários jornais e revistas é assíduo colaborador da revista brasileira de josé veríssimo inglês de sousa pertence à academia brasileira de letras e ao instituto dos advogados 7925_6390_000015 para um bem-te-vi que canta na laranjeira para as nuvens brancas do céu levando horas e horas esquecido de tudo imóvel e mudo numa espécie de extasie 7925_6390_000016 quando o povo não acredita na probidade a imoralidade é geral a mocidade viciosa faz provisão de achaques para a velhice o homem que cala e ouve não dissipa o que sabe e aprende o que ignora 7925_6390_000017 a soberba não perdoa a humildade não se vinga homens aprendei a vencer-vos e triunfareis de todos 7925_6390_000018 cada conferência sua é um triunfo para a religião e mais uma coroa de glórias para o propagandista da fé tendo percorrido grande número de cidades do brasil em missão apostólica 7925_6390_000019 o caboclo do amazonas é naturalmente melancólica a gente da beira do rio face a face toda a vida com a natureza grandiosa e solene 7925_6390_000020 não só pela verdade dos quadros e das cenas que pinta como ainda pela naturalidade do seu estilo simples fácil e espontâneo mas terso sóbrio mas seguro e corretíssimo 7925_6390_000021 filho legítimo de firmino júlio de moraes carneiro funcionário em angra dos reis aí nasceu em vinte de agosto na terra do seu berço fez os primeiros estudos rudimentares vindo para niterói onde concluiu os estudos preparatórios 7925_6390_000022 o caboclo não ri sorri apenas e a sua natureza contemplativa revela-se no olhar fixo e vago em que se leem os devaneios íntimos nascidos da sujeição da inteligência ao mundo objetivo e dele assoberbada 7925_6390_000023 quantos doutores cheios de vento e que não sabem o que é vento os favores de certos homens tem um juro exorbitante o seu mau trato 7925_6390_000024 os seus pensamentos não se manifestam em palavras por lhes faltar a esses pobres tapuyas a expressão comunicativa atrofiada pelo silencio forçado da solidão 7925_6390_000025 o notável orador sagrado tem conseguido arrebatar o auditório a pontos de arrancar-lhe palmas dentro dos próprios templos na capital da republica as suas conferencias da assumpção têm constituído verdadeiro sucesso 7925_6390_000026 o padre júlio maria tem publicado apostrofes pensamentos a paixão a graça e etc pensamentos e máximas 7925_6390_000027 mesmo nesse ano o dr júlio césar entrou para o seminário de mariana de onde saiu ordenado em mil oitocentos e noventa e um o que tem sido o trabalho e o esforço do ilustrado missionário apostólico todos sabem 7925_6390_000028 aparência salvar somente é a virtude de muita gente os que não explicam uma gota d'água exigem que se lhe explique o ser infinito 7925_6390_000029 a vaidade de muita ciência é prova de pouco saber os bons folgam quando os maus pelejam a prudência é uma arma inofensiva que supre ou desarma todas as outras a musantropia é a sátira da espécie humana 7925_6390_000030 padre júlio maria estado do rio angra dos reis mil oitocentos e cinquenta o padre júlio maria dr júlio césar de morais carneiro 7925_6390_000031 se nos meus pensamentos e reflexões acharem alguma valia continuarei a pensar e refletir se não acharem nenhuma continuarei também a ciência é a linha curva a fé a linha reta da razão 7925_6390_000032 mas monótona e triste do amazonas isolada e distante da agitação social concentra-se a alma num apático recolhimento que se traduz externamente pela tristeza do semblante e pela gravidade do gesto 7925_6390_000033 dirigiam-se a tasca da rua dos ciganos certos de que encontrariam ali um braço que não tremia e um punhal que não dobrava e mediante a ridícula quantia de uma meia dúzia de dobras o êxito era seguro 7925_6390_000034 flanqueando o campo que mais tarde deveria ser uma formosa e bela praça espaçosa daí seguia-se por um lado e a sair ao grande campo que hoje chamamos da aclamação 7925_6390_000035 a rua dos ciganos que outra coisa não era além de uma larga estrada entre algumas pequenas casas cujas janelas eram guarnecidas de esteiras ou rotulas de taquara em vez das vidraças de hoje e das venezianas 7925_6390_000036 cabo frio mil oitocentos e doze mil oitocentos e sessenta e um romancista dramaturgo e poeta antônio gonçalves teixeira e souza é o autor dos romances as tardes de um pintor ou as intrigas de um jesuíta as fatalidades de dois jovens 7925_6390_000037 o bairro da misericórdia como então se chamava era o principal da cidade e daí até a prainha e das praias de don manoel do peixe e de braz de pina hoje dos mineiros até um tanto acima da rua da vala 7925_6390_000038 ainda hoje os vemos habitando a beira do aterrado ladeira do saco e et cetera ora como este bairro da cidade era o menos frequentado e o mais deserto principalmente de noite 7925_6390_000039 ameaça de dentro em pouco ser um colosso americano crescendo sem descontinuar a olhos vistos há um século que nem a sombra do que é hoje então era 7925_6390_000040 e essas pequenas e irregulares palhoças pareciam mais capoeiras de aves que habitações humanas tanto o campo dos ciganos como a rua não tinham estes nomes porque fossem dados arbitrariamente não 7925_6390_000041 e à proporção que a educação e a civilização avançavam pela cidade dentro esses ciganos recuavam e se iam embrenhando como se fossem antípodas da civilização e bons costumes 7925_6390_000042 enfim toda sorte de bandidos que se uniam com os gitanos para roubarem matarem et cetera muitas pessoas rancorosas que tinham alguma vingança a exercer ou que para seus planos de ambição julgavam que sobre a terra havia alguém demais 7925_6390_000043 a bela praça chamada hoje da constituição era naquele tempo o campo dos ciganos e não passava de um pequeno campo irregular pantanoso cheio de árvores onde algumas pequenas e rasteiras casas rareavam 7925_6390_000044 os seus romances de complicada urdidura tem sem contestação o grande merecimento de descreverem costumes cenas e tipos nacionais 7925_6390_000045 que nesse bairro nascente da cidade e coberto de toda sorte de imundícies é onde se haviam estabelecido uma multidão de ciganos dados a toda sorte de vícios e de maus costumes 7925_6390_000046 maria a menina roubada et cetera e dos cantos líricos e do poema os três dias de um noivado pertence ao seu repertório a tragédia em cinco atos o cavaleiro teutônico ou a freira de marienburgo 7925_6390_000047 é o que era a principal parte da cidade tudo mais eram casas salteadas aqui e ali edifícios que começavam a aparecer e uma nascente cidade que principiava a sair do nada estendendo-se por entre as gargantas das colinas 7925_6390_000048 o campo dos ciganos esta cidade chamada o rio de janeiro assentada sobre a aba ocidental da baía de niterói hoje tão populosa tão comercial tão vasta e como um empório da américa meridional 7925_6390_000049 aproveitando algumas pequenas elevações já entre um já entre outro pântano de águas lamacentas e paludosas de que todo o terreno estava coberto e de cerrado mangue cujos fugitivos restos ainda hoje vemos bordando o aterrado da cidade nova 7925_6390_000050 era também ali onde se homiziavam soldados desertores marinheiros que abandonavam a marinha real escravos fugidos a seus senhores os evadidos de prisões degredados que haviam acabado seu degredo 7925_6390_000051 entre violetas e rosas pequenino e risonho as mãozinhas cruzadas sobre o peito dedê de cinco meses dorme para todo o sempre 7925_6390_000052 nessa tenda guerreira onde todos vinham agora cumprimentá-lo depois da batalha ele ficava apreensivo e triste suspeitando o quebramento das forças e das energias 7925_6390_000053 era um artista e era um pensador esse livro admirável do atheneu cuja forma impecável e o estilo sublime tão fundamente nos impressiona e tão agradavelmente nos encantam 7925_6390_000054 baby de três anos guarda o pequenino irmão sabe que dorme porque lhe o disseram para não acordá-lo pisa de manso cautelosa apertando nos braços colombina 7925_6390_000055 e vinha-lhe a segurança de que o carinho de um sorriso e a meiguice de um olhar lhe pagassem toda essa longa submissão completa e reconhecido tinha então um grande orgulho de ser assim 7925_6390_000056 foi notável jornalista redigindo o combate folha de oposição ao marechal floriano em mil oitocentos e noventa e dois por complicado na sedição de dez de abril foi deportado para tabatinga no amazonas 7925_6390_000057 este livro extraordinário cujo aparecimento foi um acontecimento no nosso meio literário onde marcou uma época esse livro bastava para sagrá-lo um artista um escritor feito original e completo 7925_6390_000058 assomavam-lhe ao espírito dúvidas sobre o valor intrínseco da vitória porque tinha saudades do tempo em que fora simplesmente um rebelde porque fora mais livre nesses tempos e mais feliz 7925_6390_000059 então era ao menos o senhor único de si mesmo senhor absoluto porque não precisava refletir no dia de amanhã e para quem bastava o sentimento da própria independência 7925_6390_000060 passou o tempo sobre o mundo e para nós ficou o legado das cinzas por nossa vida foram imoladas as gerações dos destroços dessas vítimas nós hoje ferozes herdeiros nos alimentamos como o grelo egoísta que vive da podridão do fruto que o gerou 7925_6390_000061 rapsódias capital federal praga balladilhas bilhetes postais inverno em flor rei fantasma miragem são livros de incontestável mérito 7925_6390_000062 além de inúmeros artigos esparsos pelas colunas das revistas e jornais além do belíssimo artigo impressionista e cintilante sobre a exposição de belas artes de mil oitocentos e noventa e quatro foram publicadas ainda algumas das canções sem metro 7925_6390_000063 coelho neto ultimamente voltou-se para o teatro nacional para o qual tem escrito delicadas peças acompanhadas de musica por leopoldo miguez o diabo loteria do amor a noite pelo amor 7925_6390_000064 coelho neto é professor de história das artes na escola de belas artes pertence à academia brasileira de letras o berço 7925_6390_000065 lindíssimos poemetos em prosa concluídos pouco antes de pompeia eliminar-se nem sabemos porquê ainda hoje não estão reunidas em volume é ainda o autor da célebre carta a rodrigo otávio a qual serviu de prefácio às festas nacionais deste escritor 7925_6390_000066 lá vejo a aurora a odiosa aurora escancarada no horizonte como as fauces do monstro fabuloso emboscado no céu ei-lo o ávido futuro que nos espera como uma hiena faminta de mortos 7925_6390_000067 e coitadinha não consegue abafar um grito ao dar com os olhos no africano velho que traz debaixo do braço como um estojo o pequenino esquife cor de rosa e branco cercado de franjas de ouro 7925_6390_000068 veste-lhe o corpinho rechonchudo a mesma cambraieta com que foi a pia a cabecinha loura a mesma touca branca parece que esperam que desperte para levá-lo novamente a igreja 7925_6390_000069 e para convencê-la beija-lhe repetidas vezes a mão magra e a velha soluçando beija-lhe os cabelos louros há dias indo de visita à casa encontrei-a silenciosa 7925_6390_000070 atleta e poderoso muito forte porque podia dobrar o joelho para fazer-se um pedestal de glórias a essa criança morena dos olhos pretos que sabia o segredo da sua escravidão 7925_6390_000071 mas inutilmente numa explosão de revoltas o instinto das liberdades rugia lhe dentro do amor como um leão dentro da jaula porque sempre caia prostrado bracejando a sua fraqueza de escravo 7925_6390_000072 fora no rosal já não cantavam pássaros dentro no interior berços não se balançavam senti que ali faltava alguma cousa não havia barulho 7925_6390_000073 hoje cada página da história é uma lápide e um epitáfio embaixo dessas inscrições dormem os séculos poeira poeira e recordações 7925_6390_000074 às vezes o redemoinho apanha a embarcação temerária que ousou avizinhar-se do circo tremendo onde combatem os leões da tormenta não há mais fugir a vertigem prende a garganta esfomeada do vórtice reclama energicamente a presa 7925_6390_000075 está aí o berço novo de dedê e com voz de choro agarrando-se às saias da avó tremula que vai compondo ramos para o pequenino implora mandas fazer um berço igual pra mim vozinha mandas fazer vozinha 7925_6390_000076 mas dede não desperta dorme as mãozinhas cruzadas sobre o peito como rezando batem palmas de novo babi pisando de mansinho cautelosa vai a porta 7925_6390_000077 o atheneu é uma marca indelével de quanto valia essa mentalidade pujante essa estupenda organização artística que se chamou raul pompeia 7925_6390_000078 batem palmas à porta baby estremece aperta mais colombina e lança um olhar ao irmão receosa de que o tenha despertado 7925_6390_000079 o seu estilo é primoroso e se tem revelado cuidadoso cultor da forma que ele trata com amor e carinho tem publicado um grande número de volumes de contos e romances a maior parte dos quais se pode considerar excelentes 7925_6390_000080 por acaso voltando os olhos descobri colombina sobre uma peanha pobre colombina lembrei-me então de baby e perguntei por ela a velhinha fitou-me a mãe baixou os olhos soluçando 7925_6390_000081 joão carlos de medeiros pardal mallet talento peregrino jornalista panfletário inteligência fulgurante foi um escritor original rico de imaginação encantando pelo seu estilo pela sua frase cuidada e sobretudo pelo seu amor à forma 7925_6390_000082 teria a complacente avó satisfeito o pedido da criança teria a velha dado a baby um berço cor de rosa e branco igual ao do dedê e não foi outra cousa essas velhas avós fazem tantas vontades aos netinhos 7925_6390_000083 a mãe viúva de vez em vez levantando a cabeça punha os olhos no céu e baixava-os molhados a velha não falava senti que ali faltava alguma cousa 7925_6390_000084 o qual teve por órgão o famoso jornal iraçá em que escreveram também augusto de lima alcides lima e outros foi diretor da repartição de estatística dirigiu o diário oficial e a biblioteca nacional de que foi demitido pelo governo doutor prudente de morais 7925_6390_000085 maelstron devora o futuro absorve vingador escrupuloso do passado vai viver de nós como nós vivemos do dia de ontem avante avante 7925_6390_000086 o sol faz um veuzinho translúcido para o rosto risonho de dedê os círios empalidecem e as flores vão murchando junto do corpo frio do defunto 7925_6390_000087 cumpre ceder semelhante ao barco surpreendido pela voragem nós avançamos para o futuro a lei é prosseguir 7925_6390_000088 raul pompeia era ainda o excelente desenhista e escultor digno do maior aplauso em são paulo quando cursava a academia raul empregava a maior parte do seu tempo na propaganda abolicionista com luiz gama seu companheiro do centro abolicionista 7925_6390_000089 todas as alegrias do dia de ontem e todas as lágrimas conquistas decepções louros e espinhos apoteoses e martírios misérias e grandezas fortunas maldições tudo reverteu em nosso proveito 7925_6390_000090 escravo na tenda guerreira desse beduíno que um dia se partira para a remota e apartada meka dos ideais e que fazia a vida de luta em luta num caminhar constante 7925_6390_000091 habituava-se até a ideia de experimentar uma alegria imensa e um enorme conforto com essa abdicação forçada do seu eu vinha-lhe a certeza de que valia mais e melhor vencia porque trazia ao peito o amuleto dos seus afetos