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Manipulação de material genético e as suas consequências práticas e jurídicas
O presente artigo científico versa sobre as ciências biomédicas em confronto com o Direito, demonstrando-se o complexo ônus do equipamento jurídico prático se mostra desatualizado e despreparado para equacionar em plenitude eventuais complicações decorrentes da carência de textos legais que tratem sobre a genética humana. Quando pensamos no direito em relação à saúde, temos que considerar a judicialização desta. Assim, com o presente, objetiva-se encorajar meios para previsão e precaução ante o surgimento de consequências prejudiciais que a prática deliberada de manipulação do DNA humano pode, irreversivelmente, trazer. Resta assim, evidente, o papel das Ciências jurídicas em estruturar, prevenir e reverter tais possibilidades de modo a contribuir para a segurança jurídica na saúde e todos os demais direitos a todos nós. Certo é, que o fato sempre vai anteceder a norma, dificilmente, senão impossível, uma norma irá prever e anteceder na plenitude das possibilidades, um fato futuro. Sendo essa uma regra geral, tanto para o direito, até mesmo medicina e etc. Diante do avanço da biotecnologia e da biomedicina, nos vemos diante de práticas avançadas de intervenções de natureza biológica e genética, que constituem patrimônio coletivo da humanidade, que devem ser tuteladas e regulamentadas para que não ocorra equivocadamente consequências prejudiciais e irreversíveis, de ordem jurídica, social e ontológica na sociedade contemporânea. O método de pesquisa usado no referente artigo foi utilizando-se de bibliográfias, artigos científicos e outros documentos de especialistas da área.
Biodireito
INTRODUÇÃO Práticas de natureza eugênica já eram utilizadas desde a Grécia antiga nos moldes da polis espartana, remontando a busca pelo aprimoramento físico dos soldados do exército desde os primórdios. Onde, os anciões instrumentavam através da seleção de crianças consideradas perfeitas, o melhoramento do patrimônio genético de seus cidadãos. Descartando assim, os considerados portadores de qualquer tipo de deficiência, deformidade ou imperfeição seguindo um rigoroso critério utilitarista para combate (SNELL, 2012). Em meados do século XVIII, uma norma universal trazia embutido uma nova visão ontológica aplicada à ciência que em contato com o mundo financeiro e empresarial implanta na sociedade e na cultura por meio das instituições políticas, diretrizes que contribuiram para a destruição do real conceito ontológico de ser do ser humano (PIETRO 2002). Assim, é retirado o ser do ser humano, e no lugar é implantado o sujeito e a razão. Arrancando, o homem da sua realidade apofática, divina e lançando-o no mundo material. E com isso, a consequente destruição de ser do ser humano, tornando-o mais materialista e trazendo decadência à pureza humana (PIETRO 2002). Contudo, a teoria eugênica surgiu e se institucionalizou no século XIX, apesar de a eugenia ser muito atrelada a Hitler, o termo eugenia foi criado em 1883, pelo inglês antropólogo chamado Francis Galton, primo de Charles Darwin, fascinado pela genialidade, herança biológica e pela teoria da seleção natural capaz de aprimorar a genética humana, ou seja, de que utilizando-se de cruzamentos seletivos, obter as rédeas da evolução humana (CRUZ, 2012). No final do século XIX e início do século XX, nos Estado Unidos, 30 (trinta) estados adotaram leis que buscavam a ideia de reprodução seletiva. E previam, a esterilização de pessoas acometidas de epilepsia, retardos mentais, tendências criminais ou consideradas indignas, para que não se reproduzissem (CRUZ, 2012). No ano de 1927, foi proferida uma decisão histórica sobre a constitucionalidade de se esterilizar uma pessoa por eugenia. Carie Buck era uma mulher, de Virgínia, e vivia como interna em uma colônia estatal para epiléticos e débeis mentais. O superintendente dessa Colônia era Jhon Bell, que acreditava que ela e sua família não deveriam se reproduzir. O caso chegou à suprema Corte americana e os juízes acreditaram que, tanto a Carie Buck como a mãe dela eram “débeis mentais” e “delinquentes moral” (CRUZ, 2012). Então emitiram uma decisão com 8 votos a favor da esterilização, contra apenas um voto que não foi a favor. Um dos votos, em específico chamou mais atenção.[1] O juiz Oliver Wendell Holmes Jr., acrescentou uma declaração que acabou ficando famosa: “Três gerações de imbecis são suficientes” (JUSTIA, 2019). Portanto, presume-se que tal prática respaldada na jurisprudência era permitida, ou seja, o expresso entendimento de que qualquer pessoa que viesse a ser considerada como um obstáculo à sociedade pudesse ser esterilizada. Dados da época apontam que cerca de 60 a 70 mil pessoas foram esterilizadas. Não sendo um fato isolado, mas que repercutiu à época na sociedade científica de todo o mundo (CRUZ, 2012). Chegando-se após, ao ponto, em que a teoria eugenista foi tão aceita na busca da pureza racial que, certo ex-líder partidário alemão, também desejou a criação de uma raça superior, a Ariana. E sabe-se que o seu intento era ser clonado junto com a sua raça, para tanto recorreu à busca de tecnologias. O que culminou no holocausto alemão. Há quem diga que isso jamais ocorreria novamente, mas há quem tenha medo dessa, terrível ideia voltar à tona. O que evidencia tamanha importância de preventivamente tutelar esse assunto com muita precaução.   1.1 Clonagem de ovelha Por muito tempo, a clonagem se restringia à época apenas a plantas e protozoários. Muitos sequer acreditavam na possibilidade de clonagem em mamíferos, porém no ano de 1996 um feito chocou muitas pessoas do mundo da genética. O Doutor Escocês Sir Ian Wilmut, do Instituto Roslin de Edimburgo, havia acabado de realizar o impossível. Era criada a ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado a partir de uma célula somática. Depois dela outros mamíferos também foram clonados (PEREIRA, 2015).   1.2 Clonagem de primatas Em 2018, pela primeira vez cientistas na China clonaram dois macacos chamados Zhong Zhong e Hua Hua, através da mesma técnica utilizada com a ovelha. Esse método também já tinha sido aplicado à outros animais, como cães e ratos, mas estes são os primeiros primatas clonados a partir da transferência nuclear das células somáticas. Sendo um grande passo no caminho para sua utilização em seres humanos (PEREIRA, 2015).   1.3 Manipulações genéticas em humanos No final do ano de 2018, surgiu a notícia de um Congresso que ocorreu em Hong Kong, o caso do cientista geneticista chinês He Jiankui[2] ganhou repercussão após obter êxito em modificar geneticamente os embriões de três bebês. Para entender a técnica, imagine  uma espiral dentro de nossas células formada por compostos orgânicos, como se fossem “pecinhas” que encaixadas uma, nas outras, formam o código que chamamos de DNA. Este código genético define nossas características e o que nós vamos passar para nossos filhos. Enfim, animais, plantas, todos os seres têm o seu próprio DNA. Sendo a técnica de extrema precisão. É possível mudar uma única letra entre centenas de milhares de códigos. E mutações de uma única letra podem causar mudanças bruscas por exemplo (DOUDNA; CHARPENTIER, 2014). As aplicações são infinitas. Com isso, podem editar o DNA de plantas, animais e até seres humanos. Um biólogo brasileiro da UNESP, que dentre outros cientistas não está sozinho, utiliza o CRISPR para alterar carrapatos, mosquitos como Aesdes Aegypt e anopheles, no futuro produzir insetos resistentes à vírus como o da Zika, malária, dengue, bem como da febre maculosa. Um estudo recente que usou o CRISPR contra a AIDS mostrou que é possível reduzir o material genético viral dentro das células brancas do sangue. Com isso, teria nascido 2 (duas) meninas gêmeas, fruto dessa modificação após as experiências. E ainda, há um menino em gestação, portanto o DNA deles foi modificado para que eles sejam naturalmente resistentes ao vírus HIV e outors, já que seus pais eram soropositivos. A técnica conhecida como tesoura dos genes, traz a possibilidade de editar e escolher a cor e tipo do cabelo do bebê, dos olhos, da pele e que sejam sempre saudáveis. O CRISPR abre espaço para criação de humanos trangênicos com potencial de auto cura ampliada. Essa auto regeneração ampliada poderia solucionar a questão internacional do comércio ilegal de órgãos (DOUDNA; CHARPENTIER, 2014). É também capaz de acabar com tumores dos mais variados, assim como, problemas genéticos como epilepsia, glaucoma, diabetes, parkinson, dores crônicas, escleorose mútipla, autismo e a Síndrome de Donw, dentre outras (NAMBA, 2009). Uma equipe Chinesa já começou a testar as técnicas em pessoas com câncer no pulmão, modificando seu sistema imunológico. Há também, um caso, marco bem postivista para o avanço, de uma menina que foi salva da leucemia ao tirarem seu sangue, editá-lo, e colocá-lo de volta por um precursor do CRISPR. A citada técnica, aparentemente, seria mais acessível, economicamente falando, em face das outras técnicas que já existiam para modificação genética. O que poderia facilitar o acesso de algumas pessoas da população para este tipo de procedimento (DOUDNA; CHARPENTIER, 2014).   1.4 Quimera humana Em meados de 2019, cientistas espanhóis reproduziram, na China, um ser que é a mistura do genes humanos com o genes de macacos, visando o transplante de órgãos. Bem sucedido, o experimento só foi interrompido por vontade dos cientistas, que assim o fizeram, com a validade vital limitada para até o 14º dia (MUNHOZ; MAIA, 2019). Suponhamos, que semelhantemente ao bebê de proveta, tal técnica criasse tamanha repercussão em nossa realidade. Sem dúvidas, daqui algum tempo ela se tornaria comum. Devemos nos preocupar com a questão da consciência que esse ser possivelmente terá? Qual das consciências (humana ou animal) predominaria nesta personalidade e tendo isso em vista, qual a possibilidade aceitável de se extrair órgãos? Qual seria o critério determinante para essa diferenciação? Esse ser teria personalidade jurídica plena para reger sozinho os atos de sua vida civil ou ficaria restringido aos direitos dos animais? Se, possuidor de capacidade jurídica, teria a faculdade de ter seus órgãos transplantados? Analisando superficialmente, em tese, não seria possível obter tal diferenciação do que ocorre no subjetivo deste ser e dos subsequentes. A quem esse tipo de recurso seria acessível em nossa realidade extremamente capitalista? Isso poderia se tornar um novo mercado clandestino (biohackers)? São indagações ainda sem respostas atualmente para cientistas, filósofos e autoridades que acompanham o avanço da biotecnologia e a diversidade humana em experimentos manipulado pelo homem, não existindo respostas suficientemente concretas. Seria viável essa estreia, em detrimento da inovação da impressora de órgãos em 3D, ao invés de gerar um ser criado para isso? Essa discussão é pertinente, ante a chance de se imprimir um órgão específico, sem a necessidade de sacrificar um organismo vivo para tanto (MUNHOZ; MAIA, 2019). Atinente a este panorama explanou DARWIN (1826) que não seria o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças (NAMBA, 2009).   Em recente convenção da ONU sobre a moratória no propulsor genético. Target Malaria recebeu permissão do governo de Burkina Faso para conduzir o primeiro teste com mosquitos alterados geneticamente em 2019. Nova Zelândia bateu recordes de calor em 2018, levando a uma maior população de roedores, por isso o governo atual deteve o financiamento dessa tecnologia em prol de outros métodos para resolver a questão do desequilíbrio ambiental até 2050. No Brasil o então saudoso embaixador Antônio Augusto de Lima, bem como o ex ministro das relações exteriores, o ministro Figueiredo, tiveram papeis decisivos em alguns artigos, onde pautava-se que a saúde não era um bem a ser adquirido e sim um direito fundamentalmente humano, gerando grande contrariedade face aos países do hemisfério norte. Assim, a bioética latino americana se consagrou anti hegemônica (GARRAFA, 2003). Um dos percussores da bioética aqui no Brasil publicou o projeto chamado “mercado humano: o estudo bioético da compra e venda de partes do corpo”, publicado pela UNB conjuntamente com Giovani Beringheli um italiano, umas das maiores autoridades da saúde pública e patrono da reforma sanitária brasileira (GARRAFA, 2003). Com isso, o estudo dessa matéria evoluiu, e adquiriu conceitos e classificações doutrinárias, como por exemplo, a diferenciação dos métodos eugênicos, que se distinguem como eugenia negativa e eugenia positiva (SUBTIL; 2016). Com essas duas atitudes na eugenia é possível influenciar no papel do próprio direito em relação à espécie humana. Isso desvela também, a problemática da relação entre o direito e a ética, no sentido de que o direito poderia servir como um instrumento de contra eugenia, quando detectada essa vontade do ser humano de instrumentalizar a própria espécie, através de uma eugenia positiva, no sentido de alterar a própria genética humana, na intenção de atingir a perfeição (SUBTIL; 2016). Novos estudos jurídicos foram realizados, trazendo descobertas fundamentais na atuação das ciências biomédicas que são hoje examinadas ao lado dos Direitos Fundamentais devido ao furor da repercussão causada por este tema que paraleliza o vital equilíbrio entre a vida humana, a ética e os direitos dos cidadãos (CARDIA, 2000). Para tanto que as gerações dos Direitos Fundamentais. A busca é o equilíbrio: as normas não podem impedir o progresso científico, e este, não pode passar por cima dos direitos que foram conquistados (CARDIA, 2000).   2.1 Dos princípios de direitos fundamentais envolvidos Basicamente, os instrumentos de proteção do indivíduo em face da atuação do Estado. É o mínimo necessário para que o indivíduo tenha uma vida digna. Os direitos fundamentais estão previstos em nossa carta magna, tratados internacionais, acordos, princípios, dentre outros (JUNIOR, 2017); A título, temos o artigo constitucional que ressalta em seu art. 225, §1º, II e §4º que:   Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;   Dos princípios, estes são divididos pela doutrina em gerações, com base em momentos e conquistas históricas. Assim, as dimensões são indivisíveis e preceituadas por lemas revolucionários surgidos no século XVIII, da revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. E com fulcro nesse desenvolvimento é possível acomodar a cada uma das dimensões dos direitos que classificam-se em:   2.2 Do Patrimônio genético nacional A lei nº 13.123/2015 (Lei do Patrimônio genético) junto ao Decreto nº 8.772/2016, constituem o novo marco legal da biodiversidade, que autoriza independentemente de licenças prévias as pesquisas com patrimônio genético, assim como fabricação de produtos usando de biodiversidade brasileira, bastando apenas seja feito um cadastro eletrônico. Para então serem realizadas pesquisas de desenvolvimento tecnológico realizado sobre amostra ou informações de origem genética de espécies vegetais, animais, microbianas, incluindo espécies de outra natureza e substâncias oriundas do metabolismo destes seres vivos, que estarão nos termos fixados, sob a gestão, controle e fiscalização da União (art. 2°, §único). Proibindo expressamente em seu art. 4º que tais direitos e obrigações relativas a esta Lei se apliquem ao patrimônio genético HUMANO. Vedando ainda o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado para práticas nocivas ao meio ambiente, à reprodução cultural, e à saúde humana e para o desenvolvimento de armas biológicas e químicas. A legislação contempla, regula e protege os interesses de nativos e comunidades locais, bem como confere segurança jurídica à interesses de empresas que pretendam explorar produto resultante do acesso às biotecnologias do patrimônio genético nacional e do conhecimento tradicional associado.   2.3 Pesquisas científicas em humanos A proteção dos participantes de experimentos com seres humanos, é feita pelo sistema CEP/CONEP, integrado pela Comissão Federal de Ética em pesquisa do Conselho Nacional de Saúde e pelos Comitês de ética em pesquisa, dois órgãos que cooperam de forma coordenada e descentralizada por meio de um processo de acreditação (MUNHOZ; MAIA, 2017). Atualmente, a Resolução que norteia as pesquisas com seres humanos é a 466/2012 e também a conjuntamente com a Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de saúde, que estabelecem diretrizes bases para as pesquisas das ciências humanas e sociais, e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, apoiadas na resolução 196/1996 que determinará como irá funcionar a Comissão de ética em pesquisa que é a CONEP (SAÚDE, 2012; 2016). A princípio, a resolução de 2012 estabelece que estão incorporados à resolução, os princípios da teoria da bioética principialista, como autonomia; não maleficência; beneficência; justiça; equidade; dentre outros (SAÚDE, 2012). Essa resolução é pertinente, pois demonstra que os órgãos de controle e fiscalização da medicina, já estão se debruçando e estudando, de forma a buscar o bom andamento desse processo evolutivo (MUNHOZ; MAIA, 2017).   2.4 Manipulação de genes Para manipulação genética, a resolução 2168 do Conselho Federal de medicina publicada em 2017, determina que não pode ser feita reprodução assistida para escolha das características fenotípicas, como o sexo do bebê, a cor do cabelo, a cor dos olhos e etc. (MEDICINA, 2017). Por serem antiético e ilegais, é vedado esse tipo de manipulação. Somente sendo permitida a manipulação, para, por exemplo, se extirpar uma doença da família, conforme a resolução do Conselho Federal de medicina (MEDICINA, 2017). Isso para viabilizar que a reprodução seletiva ocorra de forma natural, para que assim a evolução da espécie ocorra naturalmente e não crie um cenário antiquado (MUNHOZ; MAIA, 2017).   2.5 Doação de embriões No Brasil, não temos uma lei especifica que trate da doação de embriões, somente há uma norma administrativa que é a Resolução 2121/2015, ela fala especificamente sobre a reprodução assistida e viabiliza a doação de gametas e embriões, porém vedando a comercialização, em outras palavras, a saúde não pode ser mercantilizada. Dos artigos 5º e 15 da Lei de Biossegurança publicada em 2005, extrai-se mesmo entendimento (LEI Nº 11.105/2005):   Art.5º. É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: Art. 15. Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano. Pena: reclusão, de 3 a 8 anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa.   3.1 Convicções religiosas Com tal intervenção humana, dilemas morais, éticos e religiosos, passaram a ser discutidos. Muitos condenam, como por exemplo, alguns religiosos que consideram como uma ação de brincar de Deus e contrária aos aspectos éticos que nos regem. Desde os primórdios, a criação de uma pessoa vem sendo tradicionalmente feita através da união de um homem e uma mulher, e ambos geram um filho. Isso tem sido assim desde quando começamos a ouvir e falar sobre o assunto e nunca tivemos relato de um processo diferente desse, da qual desconsidera-se qualquer intervenção Divina. E quando o homem julga e sente ser Deus ele desestabiliza e prejudica a si próprio (VOGT, 2001). O Fundador do projeto Genome Evolution, o doutor Youseff Edwardo afirma, que não estaríamos criando vida, mas apenas, a melhorando. E como defensor da fé no Criador e Salvador, sou defensor da vida e de tudo que é feito para seu benefício (VOGT, 2001). O filósofo materialista francês SPONVILLE (1999), disse que a humanidade é recebida antes de ser criada ou criadora. Ela é natural antes de ser cultural. É-se homem por ser filho do homem. Ser filho de um homem e uma mulher faz do ser humano uma experiência única, irrepetível. Manipular isso seria acabar com essa singularidade. Estaríamos diante da nova era na Medicina, próximos, quem sabe, de descobrir o segredo da imortalidade.   3.2 Dignidade Conforme o filósofo alemão KANT (2001), o homem é um fim em si mesmo e não um meio. Essa intervenção transformaria o homem em um meio, um produto. E a medida que fazemos isso retiramos dele toda sua dignidade. Ainda mais quando fazemos dele um meio doador de órgãos. Esta seria a razão para as ações tendenciosas do ser humano, já que o conceito ontológico e filosófico de ser do ser humano veio sendo desconstruído gradativamente através da fragilização das relações humanas no tempo, prejudicando assim, a transmissão de valores que realmente importam (PIETRO 2002). Com isso, a ideia de se criar uma nova biotipologia para a humanidade, dentro de um novo mundo racial foi facilmente concebida como um dos principais tópicos dos movimentos revolucionários, destruindo assim o conceito ontológico de ser humano (PIETRO 2002). Diante deste panorama iminente e gravíssimo, necessário se faz frisar que não podemos confundir os meios os quais toda essa proposta de ontologia foi sendo implantada, com os fins. Preceito este constitucionalmente tutelado, conforme dispositivo legal abaixo (CF/88 BRASIL, 2019): Art. 1º da CF: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana;   3.3 Perfeccionismo Isso desvela a problemática da relação entre direito e ética, no sentido de que o direito poderia servir como um instrumento de contra eugenia, quando detectada essa vontade do ser humano de instrumentalizar a própria espécie, através de uma eugenia positiva, a fim de alterar a própria genética humana, na intenção de atingir a perfeição (ROCHA, 2019). Essa brusca mudança irreversível advém da proposta da criação de um novo biótipo humano em laboratório, sob o controle estrito e restrito de empresas multinacionais autorizadas pelo ordenamento normativo jurídico internacional que foi sendo implantada pelos governos e autoridades locais e tudo isso em nome da declaração universal sobre o genoma humano e os direitos humanos adotada pela conferência geral da UNESCO na sua 29ª sessão (UNESCO, 2006). No mesmo sentido desse descaso coletivo, existe uma vasta literatura, iconografias e filmes posicionados inequivocamente frente a direção da construção de um novo tipo de ser humano, porém limitados a tratar do assunto sob o selo de ficção, como se fosse teoria da conspiração, mesmo tendo ciência de que este processo já está em andamento, portanto é de se presumir a já existência de uma nova raça humanoide dentro do planeta. Pretensão essa que quase passou despercebida. (ROCHA, 2019). O que está em pauta é a criação de um novo tipo de ser humano que não é um ser humano, e sim um tipo humanoide criado em laboratório, bem como pelo pesar de que esse novo tipo de ser humano se tornará uma patente, modelo de uma multinacional. Assim, estamos falando de uma humanidade robótica, construída em cima do DNA humano, que será um produto de laboratório, onde uma empresa internacional será dona desse produto perfeito, um robô, baseado no código genético humano (ROCHA, 2019).   3.4 Ganância Por exemplo, imagine que alguém desejasse viver para sempre, através da clonagem de si próprio, de forma que quando viesse a morrer, direcionasse esse clone a dar continuidade no seu trabalho (NAMBA, 2009). Existem também, outras teorias muito mais sombrias. Imagine a possiblidade de uma pessoa muito rica ou com muito poder clonar a si mesma. Essa pessoa poderia manter esse clone, uma cobaia, congelado de forma a utilizá-lo simplesmente como uma fonte doadora de órgãos. Ou até mesmo, desenvolver super-homens, super-soldados ou pessoas super-intelectuais (NAMBA, 2009). Podemos facilmente deduzir também que a clonagem poderá ser alvo do mercado ilegal, clínicas clandestinas e de pessoas corruptas (NAMBA, 2009). Muitos poderiam perverter os interesses da comunidade científica almejando dinheiro para fins um tanto quanto macabros e sabemos que quando estamos à falar de ganância, ela não tem freios. Em outubro de 2019, foi encontrado, 39 pessoas mortas em um caminhão frigorífico perto de Londres, eram cidadãos chineses, conforme as autoridades britânicas (PRESSE, 2019). A tragédia faz recordar um incidente parecido ocorrido em junho de 2000, quando 58 pessoas em situação irregular foram encontradas mortas, asfixiados, em um caminhão no porto de Dover (sul da Inglaterra), (PRESSE, 2019). Uma grande investigação feita pela força policial britânica está em andamento para determinar as circunstâncias que levaram a essas mortes. Portanto, resta evidente e presumível até onde o ser humano pode chegar para conseguir alcançar seus interesses próprios (PRESSE, 2019). Parece ficção ou um futuro distópico, mas mesmo assim, sabemos muito bem do lado obscuro que a ganância por dinheiro aflora nas pessoas. Tendo em vista, que as pesquisas científicas nem sempre são pautadas pela ética e moral, como já vivenciado historicamente.   3.5 Corrupção Devemos ter muito cuidado, porque os riscos dessa intervenção humana são enormes, como por exemplo, nas mãos de quem esta técnica poderia cair, como já ocorrido na história. Imagine um novo e modernizado modelo Hitler surgindo? Pensem nos riscos que isso poderia trazer. A corrupção foi um fato que sempre existiu e sempre irá existir. Sabemos que existem pessoas ruins em todo lugar e em todo momento. Não surpreenderia, se, empresas clandestinas fossem abertas e utilizassem clones para o tráfico de órgãos. Ou até mesmo, utilizassem esses clones como cobaias para experimentos científicos. Isso transformaria pessoas em verdadeiros ratos de laboratório.   3.6 Imprevisibilidade Existem sérios riscos imprevisíveis de que esse processo eugênico venha a comprometer algo muito importante na natureza, a variabilidade genética. Bem como, também a possibilidade de surgirem implicações biológicas irreversíveis que a manipulação genética poderia acarretar. Em tese, tem poder tanto para criar, quanto para destruir. À título de exemplo, seria, caso a edição genética resultasse uma criança saudável, mas por outro lado, poderia resultar uma criança cheia de anomalias, lesões, tumores e inclusive com envelhecimento precoce (PEREIRA, 2015). Um exemplo verídico seria a própria ovelha Dolly, que acabou sofrendo um processo de envelhecimento precoce e morrendo poucos anos depois da sua clonagem  (PEREIRA, 2015). Por isso, os pesquisadores ainda têm um longo caminho a percorrer, diante dessa imprevisibilidade que devem buscar contorná-la.   3.7 Dilema jurídico Esta revolução dos genes, implica em verdadeiros impasses para o Direito colocando em pauta discussões acerca de relações de trabalho, previdenciárias, sociais, contratuais; documentos de identificação de pessoas naturais; exercício de direitos personalíssimos, autorais, sucessórios, do consumidor; responsabilidade civil e penal; transferências de técnologia genética; reprodução assistida pós mortem; relações interpessoais entre os indivíduos desse novo tipo de sociedade; direito dos animais (extração de órgãos), dentre outras hipóteses (DINIZ, 2017).   3.8 Omissão jurídica Consoante dizeres de VOGT (2001), tudo o que o homem pode fazer ele o fará, mesmo que a custo de muitas vidas e arrependimento tardio, como foi o caso para os autores da bomba atômica. Existem documentos internacionais, que proíbem intervenções genéticas em seres humanos, como a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da UNESCO de 1997; a Constituição Europeia de 2004; e a Declaração das Nações Unidas, porém, até o presente ano, não existe norma ou lei nacional, regulamentando o processo de clonagem em seres humanos, deixando inércia, com essa lacuna, a brecha perfeita para o surgimento da exploração ilegal por laboratórios clandestinos poe exemplo (UNESCO, 2006). Pois, conforme Eduardo Oliveira leite (1997) prediz em seu livro Bioética ao Biodireito: o homem não pode viver sem regras, pois o vazio jurídico torna tudo possível. Resta evidente a necessidade de reflexões sobre a necessidade e emergência de uma legislação específica. (HIRONAKA, 2003). Apesar das proibições normativas internacionais, em 2008 aconteceu um experimento na Califórnia, da qual o pesquisador conseguiu levar células humanas clonadas até a fase de blastocisto, que somente fora interrompida pela destruição proposital através de um processo natural do próprio experimento, com certa validade. (HIRONAKA, 2003).   A lei de brasileira de biossegurança nº 11.105/2005, proíbe essa prática, interpretando-a como crime, apenando a violação com o cerceamento de liberdade de 2 a 5 anos nos incisos do artigo 6º, nos seguintes termos (LEI Nº 11.105/2005): Art. 6º. Fica proibido: III- engenharia genética em célula germinal, zigoto e embrião humanos; IV- clonagem humana   Sendo, igual estipulação reafirmada pelo art. 4º da Lei nº 13.123/2015 (Lei do Patrimônio genético) que veda utilização de técnicas congêneres. De qualquer forma, não temos muita escolha. Se o homem colocar em sua cabeça que a clonagem é um feito que deverá ser alcançado, ele certamente o fará.   3.9 Dilema ético e moral Este iminente cenário, em tese, poderia acarretar implicações na saúde do sujeito geneticamente modificado em vista da imprevisibilidade que essa técnica pode vir a trazer futuramente. Por outro lado, os sucessos da utilização dessas técnicas poderiam trazer grande melhoramento e muitos benefícios no patrimônio genético humano. Podendo inclusive, afastar o acometimento de graves doenças iminentes, presentes em nosso código genético, trazendo melhorias no genótipo como, físico, aparência, inteligência e até mesmo na memória. A edição do código genético pode ser solução para ultrapassarmos muitas barreiras, limites e desafios no futuro. Não cabe ao Estado editar regras segundo as quais todos os homens de ciência deveriam se conformar, mas também não cabe aos pesquisadores decidirem sozinhos, assim como, a sociedade não pode se desobrigar de uma responsabilidade que é de todos (SAUWEN, 2008). O direito frente a uma perspectiva contra ou pró eugênica, caracteriza a importante discussão que é a proibição das eugenias, surgindo daí também, a problemática do controle de uma ciência sobre a outra (SUBTIL, 2016). Diante dessa proibição, tanto da eugenia positiva quanto da negativa, o direito muito contribuiria numa análise preliminar e introdutória à manutenção das relações igualitárias entre indivíduos que são conscientes da sua autoria genética (SUBTIL, 2016). Assim, teoricamente a clonagem seria uma boa ação de acordo com a linha de raciocínio consequencialista e utilitarista do filósofo e economista britânico John Stuart Mill, autor do livro On Liberty, de 1869, de que uma boa ação seria aquela que trouxesse boas consequências, ou seja, que melhor contribuísse para o bem-estar e felicidade da maioria (SUBTIL,2016). Para Mill uma ação deve ser avaliada por suas consequências, e não pelos seus motivos ou intenções uma vez que estes não se referem a ação em si, mas unicamente ao caráter de seu agente. Também não podemos nos esquecer, que o agente nem sempre trará boas consequências; “Hitler”. As práticas biomédicas, tornadas mais audaciosas, graças a um desenvolvimento tecnológico inusitado, envolvem, a partir de agora, a vida humana de forma integral, apreendendo-a, dominando-a e corrigindo-a, de acordo com os interesses em questão, isto é, procurando melhorar sua qualidade e fazendo suas fronteiras recuarem, como se fôssemos aprendizes de Deus (VOGT, 2001). Assim, põe-se em pauta questões éticas, médicas, científicas e problemas morais de se manipular ou melhorar geneticamente seres humanos ou manter-se em oposição a isso.   3.9.1 Pretexto lógico: Silogismo aristotélico prático da manipulação de material genético 3.9.1.1 Argumentos a favor da melhoria genética: 1) O ARGUMENTO DA INCAPACIDADE   2) O ARGUMENTO DO CONTINUUM DANO-BENEFÍCIO   3.9.1.2 Argumentos contra a melhoria genética: 1) O ARGUMENTO DA SEGURANÇA   2) ARGUMENTO DA DISTRIBUIÇÃO INJUSTA   3) O ARGUMENTO DA CRIANÇA FEITA DE MERCADORIA   Segundo o filósofo francês SARTRE (2014), todo homem é condenado a ser livre. Condenado, porque não criou a si mesmo e livre, pois uma vez lançado no mundo pode fazer aquilo que deseja, sendo responsável pelos seus atos. Seguindo essa linha de raciocínio, se todo clone é um ser humano, logo, todo clone estará condenado a liberdade. Falar isso, significa dizer que são indivíduos cópias apenas físicas de alguém. Porém, são pessoas com vontade própria, interesses, experiências, emoções e características específicas. Pessoas destinadas à vida, da forma como desejarem viver.   3.10 Desigualdade Em tese, racionalmente podemos facilmente prever que tal privilégio genético fomentará a desigualdade social e econômica, por se tratar de técnicas avançadas, o custo certamente será elevado. Colocando em vantagem pessoas economicamente favorecidas para acessar a edição dos genes (IBGE, 2019). O que acabaria causando uma espécie de assimetria racial, social e de gênero entre as pessoas que não tem nenhuma intervenção de terceiros em seus códigos genéticos, e nem possibilidades financeiras para isso e, aquelas pessoas que justamente sofreram essa hetero determinação, irreversível de quem serão a partir de uma terceira pessoa, pois não seria mais possível modificar a própria identidade da pessoa com os seus próprios gostos (IBGE, 2019). Por conseguinte, distanciando culturalmente as pessoas melhoradas das comuns que não puderem passar por esse mesmo procedimento. Acarretando, assim, o surgimento de grupos cada vez mais elitizados em detrimento de pessoas carentes de recursos e meios para o acesso (IBGE, 2019). Com isso, em nossa sociedade onde, por exemplo, a igualdade é um princípio constituinte das relações, resta incerto como é que isso afetaria as pessoas que não se consideram como autoras da própria vida. Bem como, a regulação dessa relação entre pessoas tão assimétricas entre si. Como o direito lidará com pessoas que se sentem diferentes e ao mesmo tempo geneticamente diferenciadas em nossa sociedade extremamente competitiva? Poderiam elas conviver de forma igual e justa com pessoas comuns? Sabemos que a desigualdade é um dos principais fatores de discriminação. Seriam somente as pessoas geneticamente modificadas as vítimas disso? Por certo haverá práticas de bulling por ambas partes. O problema é que até agora, fazer isso ainda era muito caro e demorado, mas isso mudará muito rapidamente graças à descoberta revolucionária dos cientistas da técnica chamada Krispr/cas 9. Conforme inteligência do dispositivo constitucional constata-se violação de direito fundamental para tal hipótese (CF/88 BRASIL, 2019): Art. 5º da CF: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança (…)   3.11 Liberdade Veja bem, se um indivíduo tem uma hetero determinação externa, irreversível, através de uma alteração genética não escolhida por ele e, sim escolhida por exemplo por seus pais. Como esse indivíduo se sentiria em uma sociedade onde outros indivíduos não tem essa hetero determinação externa? Isso violaria sua própria identidade natural. Como se dará a auto compreensão da natureza e qual será o papel do direito diante deste panorama iminente e gravíssimo. Imprescindível que não se confunda os meios os quais toda essa proposta de ontologia vem sendo implantada, com os fins (PIETRO 2002). Como as pessoas que não desejavam ter determinadas suas características físicas ou genéticas se relacionarão com as outras, de características naturais e sem nenhuma determinação externa? Poderia ser usada tais ou outras técnicas para outras diversas doenças genéticas, congênitas que a humanidade carrega? Mas, qual o limite disso? São esses dilemas que enfrentará o legislador e operadores do direito. E é justamente nesse momento que se dará a interseção entre o direito, a genética e a biologia, fazendo com que essa discussão interdisciplinar se torne tão importante para aqueles que estudam o direito e demais matérias atinentes, bem como, também para as pessoas em geral no seu dia a dia prático (NAMBA, 2009). Por isso, esse debate configurado como extremamente complexo, atual e iminente, que não é para o futuro e, sim, deve ser realizado a partir de agora. Concluindo, nos deparamos ainda com a ideia trazida pela máxima utilizada por Thomas Hobbes de que, o homem é o lobo do próprio homem (CHAUÍ, 2015). E assim, nos vemos diante das contradições à objetivos fundamentais preconizados em nossa Carta Magna (CF/88 BRASIL, 2019): Art. 3º da CF Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.   Esforços buscando aliarmos tecnologias em proveito da saúde é a melhor maneira de se utilizar da manipulação genética, como por exemplo a impressora de órgãos e tecidos artificiais em 3D. Compreender que existe uma pluralidade moral na humanidade para assim, harmonizar e abranger todas as crenças e valores existentes, visando respostas éticas e morais adequadas o suficiente para uma sociedade humanizada e para o desenvolvimento científico e tecnológico no seu amplo sentido. Visar a ampla positivação jurídica dos princípios básicos da bioética e do biodireito, de forma a regulamentar e impor limites. Equilibrando assim, entre normas que não atenuem benfeitorias trazidas pelo avanço tecnológico, e a preservação dos direitos fundamentais para proteção de todas as formas de vida e meio ambientes em geral. Para tanto, necessita-se de regulamentação legislativa específica e abrangente da matéria por autoridades competentes, para delimitar e definir na plenitude das possibilidades e consequências, o que é legal e eticamente aceito e, o que não é. E então, tomar medidas efetivas que fiscalizem e combatam as possíveis violações. Investir em infraestrutura e educação para permitir pesquisas legalizadas e aprofundadas sobre a matéria, e acessíveis, à população e comunidade científica local para exploração dessa revolução biotecnológica. Então, submeter todas as pesquisas com seres humanos à apreciação e fiscalização dos sistemas CEP/CONEP, a fim de garantir a devida proteção e respeito à dignidade e autonomia da vontade do ser humano, comprometendo-se à máxima prevalência de benefícios e mínima de riscos e danos previsíveis. Por fim, dar a devida relevância sócio humanitária às pesquisas dessa área realizando-as somente quando o conhecimento que se pretende obter não possa ser obtido por outro e fundamentá-las na lógica científica, sempre respeitando os valores culturais, sociais, morais, religiosos e éticos, bem como dos hábitos e costumes locais.   CONSIDERAÇÕES FINAIS Observando-se todos os avanços científicos dos últimos anos, certo é que coisas muito maiores virão nos próximos. Necessário se faz nos prepararmos para o que está por vir, pois a qualquer momento essa prática pode vir a sair do controle. Se isso acontecer e não houver possibilidade alguma de interromper este processo, caberá a nós inserir esses novos indivíduos dentro da sociedade. Manipular o código genético pode ser a chave para inúmeras melhorias, como aumentar a produção de alimentos, prevenir doenças, viver mais e com melhor qualidade. Porém, com o avanço da biomedicina, surge a possibilidade de se criar homens perfeitos que servirão como cobaias para extração de órgãos, livres de qualquer tipo de doença e com características fenotípicas mais próximas de um modelo ideal que se imagina que é. Apesar de aparentemente parecer ficção científica ou coisa de filme, não é o caso. Estamos falando de uma ideia já antiga. Tais hipóteses, colocam em pauta questões éticas de se manipular e explorar a genética humana e a possibilidade da seleção racial de quem deva ou não existir. A filosofia como um dos pilares da bioética, muito auxilia na resolução de dilemas éticos e morais, tal como o segundo imperativo categórico de KANT (2001), afirmando que o ser humano nunca pode ser tratado simplesmente como meio, mas, ao mesmo tempo e simultaneamente como fim. Esta máxima ajuda a direcionar a conduta do homem Por fim, ou recuperamos o conceito de ser do ser humano, ou nada poderá ser feito. Afinal apenas assim, será possível encaminhar o desenvolvimento e o uso das inovações tecnológicas, e garantir o alcance de um resultado positivo tanto para o planeta quanto para nós.
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Diretivas antecipadas de vontade, efetividade real?
Este artigo tem por objetivo trazer à discussão os efeitos jurídicos da eventual inobservância do conteúdo das diretivas antecipadas de vontade por uma determinada equipe médica. Em razão da inexistência de normas específicas a esse respeito, a análise do objeto de estudo será realizada por meio do estudo dos aspectos filosóficos que norteiam as diretivas antecipadas de vontade e da jurisprudência internacional sobre o tema.
Biodireito
INTRODUÇÃO O término da Segunda Guerra Mundial é um marco importantíssimo para que se compreenda, em boa medida, os fundamentos do pensamento contemporâneo. Como consequência das desumanidades cometidas nesse período, foi trazida à evidência a necessidade de normatizar a dignidade da pessoa humana, reafirmando a importância da sua proteção incondicional, e também a necessidade de que cada indivíduo tenha a oportunidade de realizar suas próprias escolhas, que deverão ser respeitadas pelos demais. A relação estabelecida entre médicos e pacientes sofreu profundas transformações em razão dos efeitos sociológicos da Segunda Guerra Mundial. Pacientes passaram a ter voz e, o mais importante, a serem ouvidos pelos seus médicos na escolha dos métodos empregados no cuidado com a sua saúde. Contudo, ao deliberarmos sobre os cuidados com a nossa saúde, até que ponto podemos crer que a liberdade de escolha e a capacidade de autodeterminação que nos é inerente pode ser sobreposta à nossa própria vida? Devem ser impostos limites às nossas interferências nos prognósticos médicos? Nos anos 60 surgiu, nos Estados Unidos da América, a figura das diretivas antecipadas de vontade – popularmente conhecidas como testamento vital (living will) – como forma de garantir o exercício da liberdade individual de cada paciente, ainda que este se encontre incapacitado de exprimir sua vontade. Além de protegerem a vontade dos pacientes, as diretivas antecipadas de vontade também constituem um instrumento de exclusão de responsabilidade civil e penal dos profissionais da saúde que cumprirem a vontade de seus pacientes. Diante desse caráter protetivo dúplice das diretivas antecipadas de vontade, nos ocuparemos de analisar a sua efetiva oponibilidade aos profissionais de saúde e as consequências jurídicas da sua inobservância.   O estudo da abrangência e do significado do princípio da dignidade da pessoa humana é indissociável de qualquer discussão jurídica ou filosófica que, de alguma maneira, tangencie as noções de vida, bem-estar e, inclusive, a chamada “morte digna”. Ainda que não se trate de um conceito estático, para que seja possível compreender o atual significado da dignidade – amplamente difundida pelos operadores do direito sem que, muitas vezes, se tenha em mente qual a carga axiológica existente por trás desse princípio – faz-se necessário recobrar, ainda que brevemente, a sua concepção histórico-filosófica. A noção de “dignidade”, apesar de não ter sido objeto de proteção jurídica durante boa parte da história do direito, filosoficamente se faz presente na sociedade ocidental desde o estoicismo da Antiguidade Clássica. À época, a chamada dignitas estava dissociada da autonomia subjetiva de cada indivíduo, verificando-se por meio da posição que este ocupava publicamente dentro da sociedade em que estava inserido, evidenciando-se pelos títulos e honrarias que ostentasse perante os demais entes integrantes desse convívio social. Assim, tem-se que, dentro das sociedades greco-romanas:   “o homem não se afirmava propriamente como personalidade individual, mas enquanto integrante da onipotente comunidade cívica plasmada na polis helênica e na urbs latina; que absorvia, praticamente por inteiro, a sua vida física e espiritual, o seu corpo e a sua alma, refletindo, portanto, as aptidões e virtudes pessoais de sua existência”.[1]   A percepção filosófica de que a dignidade abarca concomitantemente as posições moral e social dos indivíduos surge a partir do pensamento de Marco Túlio Cícero, na obra Dei Officcis, na qual se defende que os homens, por serem dotados de igual dignidade cósmica, possuem o dever de respeitar e considerar aos seus pares. Essa noção se fez presente durante séculos da Idade Média. Além da estrutura filosófico-social greco-romana, a tradição judaico-cristã também pode ser considerada como um pilar preponderante na construção da atual carga axiológica que permeia o princípio da dignidade da pessoa humana. Sob esse prisma, não se pode deixar de analisar os ensinamentos de São Tomás de Aquino, segundo o qual a dignidade humana se funda, de um lado, no fato de que os homens foram criados à imagem e semelhança de Deus e, portanto, não poderiam ser desumanizados ou coisificados. Por outro lado, o pensamento tomista é responsável por trazer à evidência que a dignidade humana também deriva da capacidade de autodeterminação de cada indivíduo, pelo uso da razão no cumprimento das leis naturais que decorrem da autoridade divina. Com o desenvolvimento do pensamento renascentista, o centro das concepções filosóficas desloca-se de Deus para o homem, sem que isso implicasse, contudo, em uma completa ruptura com o pensamento cristão. Nesse contexto, Giovanni Pico Della Mirandola, na obra Oratio de Hominis Dignitate, destaca que a capacidade de autodeterminação de cada indivíduo – já evidenciada pelo pensamento tomista – permite que o homem seja dono do seu próprio destino e utilize-se do seu livre-arbítrio para recriar sua realidade e atingir aos seus objetivos.[2] Apenas a partir do século XVIII, com o desenvolvimento do pensamento iluminista, é que a dignidade passou a ser vista como uma característica inerente ao homem para proteção da integridade e inviolabilidade da sua perspectiva existencial de maneira ampla. Assim, emerge uma concepção laicizada da dignidade humana onde o seu caráter transcendental dá lugar à valorização do homem em si mesmo. A dessacralização da noção de dignidade consolidou-se a partir do pensamento de Immanuel Kant.[3] De acordo com esse filósofo, a racionalidade inerente ao ser humano lhe conferiria autonomia e liberdade, de modo que lhe seria lícito traçar seu próprio destino, independentemente de causas externas que o determinem. O homem passa a ser considerado como um fim em si mesmo, distanciando-se de toda concepção utilitarista que o caracterize como um mero instrumento para que se atinja um fim perseguido por outrem.[4] Contudo, é importante notar que, dentro do pensamento kantiano, a autonomia humana não pode ser colocada em prática à revelia dos direitos de outrem. É necessário que cada indivíduo observe as leis e os preceitos éticos que permeiam a sociedade em que se inserem. Assim, pode-se afirmar que, para Immanuel Kant, a dignidade humana consiste na capacidade que cada indivíduo possui de autodeterminar-se eticamente. Surge, então, a noção ocidental contemporânea de dignidade humana, por meio da qual esta pode ser considerada como “a fonte ética dos direitos, das liberdades e das garantias pessoais, sociais, culturais e econômicas”,[5] na medida em que é o vetor que possibilita que sejam feitas as ponderações necessárias para que se atinja um equilíbrio entre os diferentes interesses que se chocam diuturnamente em cada uma das relações sociais estabelecidas entre diferentes indivíduos. Apesar de, como se viu, ter sido objeto de estudos filosóficos desde os primórdios da sociedade ocidental, a dignidade da pessoa humana passou a ser objeto de proteção jurídica apenas na metade do Século XX, por força das atrocidades cometidas pelos regimes totalitários que se instalaram na Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Em razão das inadmissíveis barbaridades cometidas nesse período, a comunidade mundial viu-se obrigada a criar, de forma rápida e eficiente, mecanismos que reafirmassem que os homens são sujeitos de direitos que transcendem o arbítrio dos Estados em que estão de inseridos, e, consequentemente, é dever de cada uma desses Estados zelar pela dignidade e pelos demais direitos fundamentais dos seus cidadãos. No âmbito internacional, criou-se, em 1945, a Organização das Nações Unidas, organismo cujo objetivo é preservar a paz mundial e “reafirmar a fé nos direitos fundamentais no homem, na dignidade e no valor humano”,[6] que, alguns anos mais tarde, levou à elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Apesar de não possuir caráter cogente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos serviu como base dos ordenamentos jurídicos de diversos países – inclusive do Brasil[7] – e motivou a celebração de diversos tratados internacionais, todos com o objetivo de concretizar e ampliar os direitos humanos salvaguardados no cenário internacional. As relações estabelecidas entre indivíduos e Estado não foram as únicas que sofreram profundas alterações após o término da Segunda Guerra Mundial. Diversas relações interpessoais modificaram-se em razão da conscientização dos seres humanos da importância de levar ao debate as suas necessidades enquanto indivíduos nos diversos matizes dessas relações. Em especial, alteraram-se expressivamente as relações estabelecidas entre os médicos e os seus pacientes, como se verá a seguir.   A medicina é, sem sombra de dúvidas, um dos ofícios mais antigos da história da humanidade. Muito provavelmente, o acúmulo milenar de saber que permitiu a formação do que hoje conhecemos como “ciência médica” se deve ao fato que a preocupação do homem em cuidar da sua sobrevivência se faz presente na civilização há, ao menos, 10.000 anos.[8] Primordialmente, o médico não era visto como um especialista em determinada matéria, mas sim como um mago ou sacerdote. Isso se dava essencialmente porque a habilidade de cuidar da saúde de terceiros, levando à cura de moléstias, era vista como um dom divino ou sobrenatural. Portanto, os diagnósticos médicos eram elevados a um patamar em que eram considerados inquestionáveis pelos seus pacientes, em razão da sacralidade do seu ofício. Apenas na Antiguidade Clássica, com o pensamento de Hipócrates, é que surgiu a ideia que os conhecimentos médicos poderiam ser dotados de contornos científicos, dissociando-se, ainda que timidamente, do caráter naturalista da medicina. A visão hipocrática da medicina foi abandonada pela civilização romana e durante a Idade Média, sendo retomada apenas no período renascentista, em razão do distanciamento filosófico que se deu entre o Deus e o homem. Ainda assim, em que pese a retomada do viés científico da medicina, o pensamento renascentista não se prestou a humanizar a figura do paciente, fazendo-o ser percebido como um sujeito autônomo de direitos além de ser objeto dos cuidados do seu médico. A relação médico-paciente manteve-se verticalizada. Muitas vezes as decisões médicas não eram questionadas porque tinha-se a genuína confiança de que o profissional da saúde sempre defenderia os melhores interesses de seus pacientes, aplicando as melhores técnicas e tratamentos possíveis para extirpar determinada moléstia e restabelecer a saúde destes. Como já mencionamos anteriormente neste artigo, esse cenário de total subjugação do paciente ao entendimento do seu médico perdurou até o término Segunda Guerra Mundial quando, em razão das atrocidades acometidas contra o ser humano em pretensos experimentos científicos, tomou-se a consciência da importância de impor limites à atuação médica por meio do reconhecimento da capacidade de autodeterminação de cada paciente. Nas palavras de Cassel (1991, X):   “a tarefa da medicina no século XXI será a descoberta da pessoa – encontrar as origens da doença e do sofrimento, com este conhecimento desenvolver métodos para o alívio da dor, e ao mesmo tempo, revelar o poder da própria pessoa, assim como nos séculos XIX e XX foi revelado o poder do corpo”.   Abandonam-se, então, as relações estabelecidas de modo paternalista entre médicos e pacientes, que passam a decidir de modo conjunto quais técnicas e tratamentos serão utilizados em cada caso concreto. Para que esse sistema de decisões conjuntas pudesse ser efetivamente implementado na rotina médica, o paciente deixou de ser considerado apenas sob o ponto de vista biológico e passou a ser visto em sua integridade física, psíquica e social. O médico, por sua vez, passa a ser um profissional que, além de ter os deveres de atenção, cuidado e zelo em relação ao paciente, passa a ter também o dever de informá-lo e esclarecê-lo antes do início de qualquer tratamento. É a partir deste dever de informação – atualmente chamado de “consentimento informado” – que cada paciente exerce a sua capacidade de autodeterminação. O consentimento informado pode ser definido como a “decisão voluntária, realizada por pessoa autônoma e capaz, tomada após um processo informativo e deliberativo, visando à aceitação de um tratamento específico ou experimentação, sabendo da natureza do mesmo, das suas consequências e dos seus riscos”.[9] Como forma de garantir a observância desse dever de esclarecimento pelos profissionais da saúde criaram-se diversos mecanismos normativos, inclusive de abrangência internacional. A primeira norma a tratar do tema foi o Código de Nuremberg, documento elaborado em 1947 por juízes norte-americanos que, posteriormente, julgariam os crimes cometidos por médicos nazistas em campos de concentração. Em linhas gerais, o Código de Nuremberg destinava-se à imposição de limites éticos e morais às práticas científicas com seres humanos e já em seu primeiro tópico traduz a imprescindibilidade de se observar e respeitar a vontade do paciente em cada caso concreto, segundo os limites da sua dignidade e o exercício da sua autonomia. In verbis:   “O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão lúcida. Esse último aspecto exige que sejam explicados às pessoas a natureza, a duração e o propósito do experimento; os métodos segundo os quais o experimento será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos sobre a saúde ou sobre a pessoa do participante, que eventualmente possam ocorrer, devido à sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um experimento ou se compromete nele. São deveres e responsabilidades pessoais que não podem ser delegados a outrem impunemente” (grifos nossos).   Posteriormente foram editadas diversas normas internacionais ressaltando a imprescindibilidade da observância, pelos médicos, do consentimento livre e esclarecido dos seus pacientes, como é o caso da Declaração de Helsinki, datada de 1946 e da Declaração de Lisboa sobre a Ética da Urgência Médica, de 1981, ambas aprovadas pela Associação Médica Mundial. O ordenamento jurídico brasileiro, por sua vez, imprime a obrigatoriedade do consentimento informado no artigo 15, do Código Civil que determina que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. Além disso, há também o Código de Ética Médica que protege a capacidade de autodeterminação do paciente em seus artigos 22 e 24. A Resolução 1931/2009, do Conselho Federal de Medicina, não deixa dúvidas que é vedado aos médicos “deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em casa de risco iminente de morte” (art. 22), bem como “deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo” (art. 24). Como já mencionado neste artigo, assegurar ao paciente a observância da sua autonomia nos tratamentos médicos significa dizer que serão preservados, pelo médico, os seus limites éticos e a sua dignidade. Evidentemente, tanto os limites éticos, quanto a noção de dignidade de cada indivíduo, são conceitos extremamente subjetivos que podem modificar-se completamente a depender das convicções sociais, religiosas e filosóficas de cada um. Nesse cenário, para que seja assegurado o exercício da autonomia do paciente em tempo integral, surge a necessidade de criarem-se mecanismos que permitam que os valores de cada paciente sejam observados ainda que se esteja diante de uma situação na qual não possa exprimir sua vontade. Nascem, então, as “diretivas antecipadas de vontade” – popularmente conhecidas como “testamento vital”, que estudaremos no tópico a seguir.   As diretivas antecipadas de vontade são o produto (i) da acertada valorização da dignidade humana e da autonomia inerente a cada indivíduo no contexto pós Segunda Guerra Mundial, e (ii) do individualismo que particulariza a sociedade pós-moderna, responsável por fazer com que os seres humanos objetivem expandir cada vez mais o âmbito da liberdade que possuem para fazerem suas próprias escolhas. Atualmente, pretende-se que essa liberdade de escolha permeie não só o modo como cada indivíduo conduz a sua própria existência, como também seja estendida ao modo pelo qual essa existência findará caso alguém entenda que sua vida tornou-se “indigna” e, portanto, não vale mais a pena ser vivida. Para que possamos compreender as possíveis escolhas que um indivíduo pode fazer quanto ao que considera ser um modo digno de morrer, é preciso fazer uma breve distinção entre os conceitos de eutanásia, ortotanásia e distanásia. A eutanásia (do grego, “morte boa”), consiste em um ato interventivo por meio do qual é causada a morte, sem dor, de um paciente que esteja em estado terminal, ou seja portador de doença incurável que lhe cause graves dores. O ordenamento jurídico brasileiro não admite a prática da eutanásia, tipificando-a como homicídio privilegiado, por meio do art. 121, § 1º, do Código Penal. A ortotanásia (do grego, “morte certa”), por sua vez, consiste no “comportamento de abstenção de qualquer intervenção médica no prolongamento da vida de uma pessoa, propiciando ao paciente uma morte conforme o curso causal natural da doença ou incapacitação que o aflige”.[10] Por fim, a distanásia (do grego, “morte ruim”), define o tratamento interventivo que visa o prolongamento artificial da vida do paciente, ainda que isso implique no prolongamento do seu sofrimento em razão das circunstâncias vitais que, fatalmente, o levariam a óbito. Tanto a ortotanásia quanto a distanásia são admitidas pelo ordenamento brasileiro, tendo em vista que não há nenhum comando legal em sentido contrário e, como visto anteriormente, é assegurada ao paciente a liberdade de escolha dos procedimentos que serão realizados pelo seu médico no tratamento de determinada moléstia. Entretanto, muitas vezes não é possível que um indivíduo expresse a sua vontade com relação a determinado procedimento médico ou tratamento, especialmente quando é acometido por uma doença terminal ou está inconsciente. Nesse contexto, diante da necessidade de assegurar a autonomia do paciente mesmo nos casos em que este se encontre inconsciente, surgiu nos Estados Unidos da América, em 1967, o testamento vital (living will). O testamento vital objetiva “instrumentalizar o paciente para expressar seus desejos em situações futuras em que isso não seja possível, preservando a sua autonomia e a sua dignidade mesmo em situações em que se encontre incapacitado para agir”.[11] Renata de Lima Rodrigues conceitua o testamento vital da seguinte maneira:   “(…) são determinações prévias dadas por certas pessoas – estando elas ou não na condição de pacientes no momento de sua elaboração -, que devem ser cumpridas, ante uma situação na qual elas se tornem incompetentes para decidir o cuidado de si mesmas, indicando suas preferências de tratamento ou até mesmo autorizando uma terceira pessoa a tomar decisões por elas”.[12]   Portanto, o paciente pode valer-se do testamento vital para indicar quais tipos de tratamento aceita ou recusa, em determinados casos. É possível também que o paciente nomeie um procurador para os cuidados da sua saúde (durable power of attorney for health care), hipótese em que um terceiro poderá tomar decisões concernentes a sua saúde se estiver incapacitado de decidir por si. Muitos países já normatizaram as diretivas antecipadas de vontade, de modo a (i) reafirmar o dever de os médicos observarem e cumprirem as determinações prévias de seus pacientes, caso estes não possam, por qualquer razão, manifestar sua vontade, e (ii) estabelecer parâmetros que deverão ser observados pelos pacientes na edição dessas diretivas. Como era de se esperar, os Estados Unidos da América também foi o primeiro país a normatizar as diretivas antecipadas de vontade – tanto na forma do living will, quanto na forma do durable power of attorney for health care. Na legislação norte-americana, as diretivas antecipadas de vontade, de um lado, protegem a autonomia dos pacientes que as adotam e, por outro lado, concedem imunidade civil e penal aos profissionais da saúde que respeitam o testamento vital.[13] O exemplo norte-americano, no sentido de regular as diretivas antecipadas de vontade, foi seguido por diversos países anglo-saxões (Austrália, Nova Zelândia e Canadá), nórdicos (Dinamarca, Alemanha, Suíça e Países Baixos) e latinos, como a Espanha. Outro marco legislativo no que tange ao testamento vital é a Lei 25/2012 de Portugal, que estabelece que as diretivas antecipadas terão validade de cinco anos, podendo ser renovadas e veda as (i) práticas que contrariem o ordenamento jurídico português, e (ii) intervenções que levem deliberadamente à morte não natural e evitável (artigos 5º e 7º). Além disso, a lei portuguesa estabelece que as diretivas deverão ser registradas perante o Registro Nacional do Testamento Vital, de forma a assegurar que os profissionais da saúde possam ter acesso às diretivas antecipadas de terminado paciente em quaisquer circunstâncias. Em que pese o avanço internacional na discussão e regulamentação das diretivas antecipadas de vontade, no Brasil as discussões a esse respeito ainda se encontram em fase embrionária. Apesar de ter atraído a atenção de diversos doutrinadores, o testamento vital não é objeto de nenhuma regulamentação legal, o que dificulta a abordagem do tema no país. De fato, há dados que comprovam que, nos Estados Unidos da América, a normatização do testamento vital por meio do Patient Self-determination Act (1991) foi preponderante para que o tema fosse difundido entre a população norte-americana. Isso porque, ao se estabelecerem parâmetros legais ao testamento vital criou-se um cenário que permitiu que a população norte-americana se sentisse segura ao debater sobre o tema e efetivamente adotar as diretivas antecipadas de vontade ao decidirem sobre questões relacionadas a sua saúde. De todo modo, é possível dizer que, no Brasil, as diretivas antecipadas de vontade são admitidas, de um lado, em razão dos princípios legais que regem a relação médico-paciente, sendo eles a autonomia e a dignidade. E, por outro lado, também são administrativamente admitidas por meio da Resolução 1.995/2012, do Conselho Federal de Medicina, que determina expressamente que o médico deverá levar o seu conteúdo em consideração nos casos em que o paciente que não puder exprimir sua vontade, salvo se as diretivas estiverem em desacordo com o Código de Ética Médica (art. 2º, §§ 1º e 2º). Ao condicionar o cumprimento das diretivas antecipadas de vontade a sua consonância com o Código de Ética Médica, a Resolução 1.995/2012, do Conselho Federal de Medicina, evidencia a problemática que nos propomos a tratar neste artigo: as diretivas antecipadas de vontade são de fato oponíveis aos médicos?   Em uma primeira análise, parece-nos que as diretivas antecipadas de vontade são um mecanismo dúplice de proteção jurídica: de um lado, estão salvaguardados os interesses do paciente que, por qualquer razão, esteja incapacitado de expressar sua vontade. Por outro lado, proporciona-se segurança jurídica ao médico que, por observar o conteúdo das diretivas antecipadas, cumpre manifestações de vontade que potencialmente conflitam com outros valores ou interesses, impedindo sua posterior responsabilização por abster-se de utilizar determinada técnica ou tratamento, em uma conduta que poderia ser reputada como negligente. Assim, para que se preserve a razão de ser desse instituto, é imprescindível que lhe sejam conferidos efeitos vinculantes. Afinal, desse modo, se evitaria o surgimento de verdadeiras batalhas jurídicas caso o médico não queria cumprir as diretivas antecipadas de vontade do seu paciente ou, ainda, um familiar se oponha à efetivação da vontade do doente. A esse respeito, esclareça-se que o efeito vinculante do testamento vital não impede que o médico deixe de cumpri-las em razão de eventual objeção de consciência fundada em razões éticas, morais ou religiosas. Contudo, nessa hipótese, o médico deverá justificar a sua recusa e encaminhar o paciente a outro profissional que não tenha objeções ao cumprimento da sua vontade. Ao invocar a objeção de consciência o médico não pode, em hipótese alguma, agir à revelia do seu paciente ou deixá-lo desprovido de cuidados. Uma vez posta a premissa dos efeitos vinculantes das diretivas antecipadas de vontade, nos resta analisar os pressupostos da responsabilidade civil do médico e o tratamento que se tem dado ao tema pelos tribunais em casos que, por circunstâncias diversas, a vontade do paciente não foi observada. Embora a questão da responsabilidade civil do médico ser de suma importância na sociedade contemporânea, especialmente porque os profissionais da saúde lidam rotineiramente com um dos bens mais valiosos do ser humano: a vida, o tema não é nenhuma inovação dos ordenamentos jurídicos modernos. O Código de Hamurabi já previa a aplicação da pena de talião ao médico que, de alguma maneira, prejudicasse o seu paciente. De igual modo, o Direito Romano também punia o profissional da saúde que agisse de modo negligente ou imperito.[14] Os moldes adotados atualmente para que o médico seja civilmente responsabilizado por suas condutas delinearam-se na França, em 1832 quando foram fixadas, de um lado, normas obrigacionais do médico perante os seus pacientes e, de outro lado, a obrigação de o Judiciário fiscalizar e punir os erros profissionais. Dentro do ordenamento jurídico brasileiro atual, a responsabilidade civil dos profissionais da saúde é regulada pelo tanto pelas regras gerais de responsabilidade contidas no Código Civil, quanto pelas disposições Código de Defesa de Consumidor. No âmbito do Código Civil, a responsabilidade civil é regrada pelos seus artigos 186, 187 e 927, caput. Além disso, há também o artigo 951, que dispõe sobre a indenização devida pelo médico nos casos em que o paciente vem a óbito, em consequência de conduta imprudente, negligente ou imperita do profissional da saúde. O Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, por meio de seu artigo 14, § 4º, não deixa dúvidas que a responsabilidade civil dos profissionais liberais, dentre os quais se inclui o médico, depende da existência de culpa. Tem-se, portanto, que a responsabilidade do profissional da saúde é subjetiva, sobretudo em razão da natureza da obrigação assumida pelo médico perante o seu paciente que, em via de regra, é de meio de não de resultado. Isso porque, o médico tem o dever de aplicar os meios adequados para obter o melhor resultado possível dentro das circunstâncias do caso concreto a ele apresentado, sem que isso implique, contudo, na obrigação de que, ao final do tratamento ministrado, se obtenha a cura do paciente. Esse racional é, inclusive, reforçado pelo art. 1º, do Código de Ética Médica, que dispõe ser “vedado ao médico: causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência”. O parágrafo único desde dispositivo estabelece ainda que: “a responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida”. A subjetividade da responsabilidade civil do médico excepciona-se apenas quando tratamos dos profissionais contratados para a realização de cirurgias plásticas, tendo em vista que, nesses casos, o paciente espera que atingir um resultado específico por meio da prestação de serviços médicos. Nessas hipóteses, portanto, tem-se que a responsabilidade civil do profissional da saúde é objetiva. Em qualquer dos casos, a responsabilização do médico depende, necessariamente, da prática de uma conduta ativa, decorrente de uma obrigação de fazer assumida perante o paciente. Sendo assim, quais os pressupostos legais devem ser utilizados para responsabilizar o profissional de saúde quando este infringe uma obrigação de não fazer assumida perante o paciente, em decorrência da existência de diretivas antecipadas de vontade por meio das quais se recusa a administração de determinados tratamentos? A legislação brasileira possui dispositivos que são claros ao determinar que o paciente não possa ser indenizado pelos prejuízos que lhe forem causados quando este se recusar a se submeter a exame médico necessário (Código Civil, artigo 231). De modo que é patente a proteção jurídica conferida ao profissional da saúde nesses casos. Entretanto, inexistem leis que versem especificamente sobre as consequências jurídicas que eventualmente serão enfrentadas pelos médicos caso estes, em ato de mera arbitrariedade, ajam à revelia de seus pacientes, desconsiderando por completo a sua manifestação prévia de vontade, consubstanciada no testamento vital. Aliás, essas consequências jurídicas poderiam ser, inclusive, aplicadas a eventuais familiares que impeçam que a equipe médica cumpra com a vontade de um paciente que se encontre inconsciente ou em estado terminal, apesar dessa hipótese não ser objeto da análise deste estudo. Em casos tais, na ausência de regras específicas, não nos resta alternativa que não analisar a solução dada a essa hipótese em casos concretos. Considerando que essa situação ainda não foi enfrentada diretamente pelos tribunais brasileiros, nos socorreremos de julgados proferidos por cortes estrangeiras para análise do tema, mais especificamente, Canadá e Estados Unidos da América. O primeiro caso que comentaremos é Anderson v. St. Francis-St. George Hospital, processado perante os tribunais do Estado de Ohio, EUA. Nesse processo, discutiam-se as diretivas antecipadas de um indivíduo que declarou não desejar ser submetido ao procedimento de desfibrilação, caso viesse a enfrentar quaisquer problemas cardíacos no futuro. Em que pese a sua diretiva antecipada de vontade, ao ser vítima de um ataque cardíaco, o paciente foi submetido a esse procedimento e, alguns dias depois, foi vítima de um derrame cerebral que o deixou em estado vegetativo por um longo período, impondo-lhe uma situação de grande sofrimento. Nesse caso, é inegável que o paciente sofreu inúmeros danos físicos, psíquicos e morais, em razão da desconsideração das suas diretivas antecipadas de vontade pela equipe médica que o socorreu. Ainda assim, o Tribunal de Ohio entendeu que a equipe médica não poderia ser responsabilizada pelos danos sofridos pelo paciente meramente pela desconsideração das suas diretivas antecipadas de vontade, tendo em vista que a condição de saúde que o acometeu posteriormente à desfibrilação não poderia ser admitida como consequência direta do procedimento realizado à sua revelia. Igualmente, no caso Margot Bentley, processado perante as cortes de British Columbia, Canadá, as diretivas antecipadas da paciente foram desconsideradas pela equipe médica que lhe fornecia cuidados, sem que essa conduta dos médicos levasse à aplicação de qualquer espécie de sanção. Nesse caso, apesar de a paciente ter indicado expressamente que não desejava ser submetida a tratamentos que incluíssem a administração de alimentação artificial caso viesse a ser diagnosticada com a doença de Alzheimer, as suas diretivas antecipadas foram desconsideradas pela equipe médica sob a alegação que o hospital não poderia deixar de alimentar alguém que está sob seus cuidados. Como já mencionado, os tribunais canadenses entenderam que a equipe médica não poderia ser responsabilizada pela desconsideração das diretivas antecipadas da paciente no caso concreto. Mais uma vez, a atuação médica prevaleceu sobre a capacidade de autodeterminação inerente a cada indivíduo, tão aclamada e veementemente defendida na atualidade. Possivelmente, os protagonistas de ambos os casos mencionados nesse estudo foram submetidos a condições de sobrevivência que, de acordo com os seus julgamentos pessoais, seriam consideradas indignas. Contudo, é visível que, em ambos os casos, a decisão das cortes canadense e norte-americana pautou-se na ponderação de dois direitos fundamentais dos pacientes: vida e liberdade. Em que pese a noção contemporânea de liberdade estar umbilicalmente ligada à dignidade da pessoa humana, como vimos no decorrer deste artigo, não nos parece ser de todo injustificável a proteção do valor “vida” pelos tribunais nos casos que comentamos. Afinal, para que seja possível o surgimento de qualquer discussão jurídico-filosófica sobre a capacidade de autodeterminação dos seres humanos é imprescindível que haja vida. Ademais, admitir a relativização do valor da vida humana, ainda que em prol das liberdades individuais de cada um, poderia, em alguma medida, levar à banalização do seu valor, de modo que qualquer choque principiológico que envolva a vida humana deve ser analisado com cautela.   CONCLUSÃO Em razão de tudo quanto foi exposto, podemos concluir que as diretivas antecipadas de vontade são um instrumento de suma importância na condução das relações estabelecidas entre médicos e pacientes que, por alguma razão, se deparem com circunstâncias que os impeçam de manifestar sua vontade em relação à adoção de determinados tratamentos. Entretanto, é necessário que sejam editadas normas que, além de conferir-lhe efeitos vinculantes, delineiem de modo claro os limites que serão impostos às declarações de vontade do paciente, de modo a evitar a edição de testamentos vitais que, por alguma razão, não poderão ser devidamente cumpridos pela equipe médica responsável. Somente a partir da criação desses mecanismos legais é que se assegurará que as diretivas antecipadas de vontade efetivamente terão os efeitos que são inerentes a esse instituto: (i) a salvaguarda dos interesses do paciente, e (ii) a garantia de que os médicos que respeitarem essas declarações de vontade não serão indevidamente responsabilizados por absterem-se de utilizar determinada técnica ou tratamento.
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Mistanásia: A Morte Precoce, Miserável e Evitável Como Consequência da Violação do Direito à Saúde no Brasil
A Mistanásia, é o oposto da Eutanásia, sendo caracterizada pela bioética e biodireito brasileiros como modalidade de termino de vida, a qual, se concretiza quando um indivíduo vulnerável socialmente é acometido de uma morte precoce, miserável e evitável como consequência da violação de seu direito a saúde. Na maioria dos casos, a Mistanásia atinge indivíduos excluídos do seio social que dependem das políticas públicas de saúde na garantia de sua dignidade, e mesmo assim, são expostos a situações de risco, em razão da burocracia exagerada, má gestão hospitalar, financeira e governamental, além da omissão estrutural. Sendo assim, esse estudo objetiva examinar a eficiência das políticas públicas de saúde na prevenção da incidência dos casos de Mistanásia. Metodologicamente, é uma pesquisa básica, objetivando explicar o tema de forma qualitativa, baseando-se numa análise bibliográfica explicando a Mistanásia por intermédio de obras que discutem a temática, com principal foco as obras e citações dos autores: Ricci (2017), Namba (2015), Canotilho (2004), Brasil (2015). Ainda, no decorrer deste escrito, demonstra-se o quanto essa condição social é cruel, analisando o conceito, diferenciação, causas e consequências da Mistanásia, propondo soluções possíveis com base no ordenamento jurídico brasileiro.
Biodireito
INTRODUÇÃO A Mistanásia é uma condição social desumana que atinge, em grande parte, os indivíduos vulneráveis socialmente, sendo consequência de eventos violadores do direito à saúde, no qual, poderiam ter sido evitados. A nomenclatura que traduz essa condição foi criada em 1989 pelo teólogo moralista brasileiro, Márcio Fabri dos Anjos, como um neologismo ao antigo termo “Eutanásia Social” pelo fato de possuir incoerências entre a terminologia e a condição, tendo em vista, que Eutanásia significa a morte tranquila e planejada para poupar um indivíduo do sofrimento causado por alguma enfermidade incurável. Nesse sentido, o tema Mistanásia: a morte precoce, miserável e evitável como consequência da violação do direito a saúde no Brasil, possui o intuito de solucionar o seguinte problema: Como as dificuldades encontradas pelo indivíduo, que depende das políticas públicas de saúde na garantia de seu direito, pode favorecer na incidência dos casos de Mistanásia? De modo geral, a contribuição maior para a sua ocorrência são as dificuldades que o cidadão passa para ter acesso aos serviços de saúde, e por isso, este estudo promove objetivos específicos para classificar a qualidade dos serviços de saúde como parte do mínimo existencial do cidadão, identificar a invocação do princípio da reserva do possível como forma de ocultar a má gestão de equipamentos médico-hospitalares, analisar a postura e o conceito de bioética como forma de evitar qualquer restrição ao exercício pleno da liberdade individual na garantia do caráter inviolável da vida humana em todas as suas fases e condições e apontar métodos afirmativos para garantir a sadia qualidade de vida de pessoas vulneráveis socialmente. Já o seu objetivo primordial procura examinar por meio de uma reflexão crítica a eficiência das políticas públicas de saúde na prevenção da incidência dos casos de Mistanásia com base em análises de obras que discutem a temática para a formulação de respostas ao problema levantado, com principal foco as obras e citações dos autores: Ricci (2017), Namba (2015), Canotilho (2004), Brasil (2015). Construiu-se este escrito com base na análise do conceito, diferenciação, causas e consequências da Mistanásia, motivado a propor soluções possíveis com base na postura do moralismo bioético. Portanto, justifica-se por sua relevância, explicando a mistanásia e demonstrando o quanto essa condição social é cruel em relação a sua forma de ocorrência, sendo consequência da violação do direito à saúde, tendo em vista a constante restrição ao exercício pleno da liberdade individual na garantia do caráter inviolável da vida humana.   Primeiramente, para melhor compreensão, é necessário contextualizar o leitor sobre o que é a bioética e o biodireito, sendo assim, a bioética é o ramo responsável pela discussão moral advinda do estudo dos avanços, descobertas e problemas da biologia e medicina, já o biodireito é um ramo do direito, considerado de direito público, responsável pela comparação dialética entre as relações jurídicas com as discussões morais propostas pela bioética, levando em consideração a dignidade da pessoa humana. A bioética adota uma postura moralista que buscando, incansavelmente, soluções para os diversos problemas e implicações morais decorrentes das condições sociais, biológicas e jurídicas, envolvendo, é claro, as modalidades de término de vida. Curiosamente, quando se fala em moralismo, a primeira coisa que se pensa é em algum instrumento normativo sistemático que propõe diversas regras rígidas impondo limites na investigação científica e nos progressos da ciência e tecnologia, mas, para a surpresa do leitor, é o contrário. No sentido filosófico da palavra, o moralismo é o estudo e análise da natureza humana nas suas diversas manifestações e nas relações sociais, como nas maneiras de pensar, sentir ou agir, dentre outros impulsos básicos levemente imperceptíveis, comum a todos os seres humanos e que não sofrem alterações pelos mais variados ambientes, ou seja, de grande importância no estudo do impacto e alterações maléficas impostas por pessoa contra pessoa e Estado contra pessoa em momentos vulneráveis, principalmente no fim da vida.   Nos estudos da bioética e do biodireito observa-se 5 (cinco) formas de término de vida, embora o foco deste ensaio ser em apenas um deles, é necessário uma breve explicação para o melhor entendimento, o que será de suma importância para o desenvolvimento de uma reflexão crítica e, também, para compreensão do quão grave é a Mistanásia. Assim sendo, as modalidades de término de vida se dividem em: 1) Eutanásia: Morte tranquila e serena, planeada para poupar um indivíduo do sofrimento causado por uma enfermidade ou condição incurável. 2) Distanásia: Prolongamento artificial da vida, mas por um pequeno período e de forma dolorosa. 3) Ortotanásia: Morte natural, sem nenhuma intervenção médica ou artificial. 4) Suicídio assistido: Morte auxiliada por terceiro, sendo um fato típico, ou seja, um ato criminoso. 5) Mistanásia: Morte prematura, dolorosa e miserável, que poderia ter sido evitada. Inquestionavelmente, a principal diferença entre a Mistanásia e as outras formas, é a crueldade, onde se explica pela forma como ocorre para sua caracterização, sendo necessário analisar alguns fatores que aconteceram com o indivíduo antes da morte propriamente dita, ou seja, o indivíduo deve se encontrar em uma situação vulnerável, dolorosa e miserável, como uma doença grave curável, machucado ou faminto, tendo em vista, a possibilidade da reversibilidade de sua condição, e por fim, sua morte prematura decorrente de uma ação ou omissão humana e/ou estatal, como maus tratos, abandono ou violência. Por fim, é importante salientar que o indivíduo deve possuir a vontade de permanecer vivo, valendo lembrar, que nem toda morte provocada por ação ou omissão humana é Mistanásia, sendo necessária a análise e confirmação das situações supracitadas, diferentemente da morte comprovadamente provocada por ação ou omissão estatal que será, em todos os casos, Mistanásia.   A forma mais comum da Mistanásia ocasionada pela ação ou omissão estatal, é a omissão de socorro estrutural que se resume na ausência de atenção do Estado em fornecer os insumos necessários para o adequado serviço de saúde ao indivíduo, como a falta de medicamentos de uso emergencial, onde o não atendimento imediato levará ao óbito, por exemplo: Soros antiofídicos (antídoto para picadas de cobras), antiescorpiônicos (antídotos para picadas de escorpiões), antiloxoscélicos (antídoto para picadas das aranhas mais comuns no Brasil), antiapílicos (antídoto para picadas de abelhas) e dentre outros, caracterizando uma imensurável consequência da violação do direito à saúde. Sem dúvidas, o descaso estatal, comum atualmente, é extremamente preocupante devido o importante papel que deveria estar atuando de defender o valor social, a dignidade e o caráter inviolável do direito à saúde em todas as classes sociais da população, principalmente ao cidadão que paga onerosos impostos. Além do grande aparato burocrático desnecessário e, em algumas vezes, inútil, que atrapalha um adequado atendimento, onde apesar das políticas públicas de saúde sejam implementadas de forma descentralizada nos municípios, a sua coordenação se mantém sob o âmbito federal e em decorrência disso menos contato com as regiões interioranas que carecem de melhores condições. Outrossim, a forma mais comum de Mistanásia ocasionada por ação ou omissão humana, é por erro médico (apesar da nomenclatura, é o ato causador de dano ao paciente provocado por qualquer profissional da saúde), imprudência (quando o médico age precipitadamente sem os devidos preparos ou exames), imperícia (ausência de conhecimento médico ou de atualização técnica) e negligência (quando o médico deixa de prestar seus serviços, omitindo-se, sem motivo justo). A Mistanásia por ação ou omissão humana mostra-se a mais cruel dentre suas causas, pois, é nela que o caráter indiferente do ser humano ganha materialidade pela ausência de valorização da vida de seu semelhante.   A morte mistanásica no Brasil ocorre como sequela da violação das condições mínimas para uma considerável qualidade de vida, tendo como principal fator a omissão de socorro estrutural como efeito da ineficiente gestão financeira e organizacional do setor responsável pelo sistema de saúde pública, em comparação às necessidades dos pacientes que utilizam dos serviços estatais. Deste modo: “Um exemplo seria o caso de idosos internados em hospitais ou hospícios onde não se oferecem alimentação e acompanhamento adequados, provocando, assim, uma morte precoce, miserável e sem dignidade”. (NAMBA, 2015, p. 224). Sendo assim, a má administração federal em oferecer condições adequadas de saúde, faz com que as direções dos estados e municípios elaborem novas condições, por intermédio de políticas públicas locais, para adaptação e melhoria da situação da saúde populacional respectiva a determinada região, aumentando os gastos e a necessidade de mão de obra qualificada. Porém, na maioria dos casos não funciona pela grande demanda, tendo em vista que, além das doenças e endemias, a violência em todo o território nacional gera vítimas todos os dias, preenchendo as vagas e lotando os leitos de hospitais e postos de saúde, obrigando a instauração de um controle baseado na relevância do estado clínico do paciente, gerando a possiblidade na incidência de mortes mistanásicas pela baixa qualidade dos serviços. “Emblemático é o caso da cidade de Bauru-SP. Trata-se de um inquérito inédito, instalado pela polícia civil, para apurar causas e responsabilidades de 581 mortes, ocorridas em três anos por ausência de internação hospitalar. Um óbito a cada três dias por falta de vagas na rede pública de saúde. São mortes mistanásicas que precisam ser apuradas e evitadas. Trata-se da “politização da morte”. (RICCI, 2017, p. 49). Ainda convém lembrar-se do reflexo comportamental que a mistanásia gera na população, onde, o indivíduo que presencia com frequência situações análogas, cria um sentimento apático entre ele para com outro indivíduo, ou seja, gera um exagero na valoração do individualismo pela insensibilidade em determinadas situações, o que prejudica ainda mais a situação do indivíduo vulnerável socialmente que precisa de ajuda cotidianamente ou quando necessita de um atendimento emergencial de qualidade. “A eutanásia social situa-se no campo econômico-sanitário quando a sociedade decide a sorte do doente, considerando apenas os recursos econômicos administrados com critérios de custo-benefício. Refere-se, particularmente, ao risco permanente de morte antecipada e prematura nas camadas pobres da população por falta de condições mínimas de vida e inadequado atendimento sanitário.” (RICCI, 2017, p. 44). Portanto, o descaso estatal somado a indiferença social favorece diretamente o surgimento de ambientes que atrapalham o desenvolvimento adequado da coletividade, ocasionando, direta e indiretamente a violação ao direito à saúde das pessoas pertencentes as regiões mais pobres da sociedade, cujas vidas não são devidamente valorizadas, surgindo o abominável fenômeno social conhecido como Mistanásia, e também, outras consequências colaterais.   Os aspectos jurídicos diversos que envolvem as modalidades de término de vida são de grande relevância para o surgimento de teses jurídicas e discussões científicas a respeito da conservação da sadia qualidade de vida, e principalmente a conscientização sobre a preservação da visão mística e romanceada da vida humana. A bioética e o biodireito, sendo os ramos responsáveis em originar essa modalidade de termino de vida, ocupam um pequeno espaço na grande galeria de outras matérias jurídicas públicas em debate no Brasil nos últimos anos, mas vem crescendo gradativamente a medida que as discussões sobre a saúde pública se desenvolvem, tais como: A judicialização da saúde e o conflito ideológico entre os institutos do mínimo existencial e da reserva do possível. Ademais, respectivamente, a judicialização da saúde caracteriza-se pela busca ao poder judiciário como último recurso do cidadão em obter medicamentos, no qual não tem acesso financeiramente, ou tratamento médico, quando negado pelo SUS, na esfera pública, ou por algum plano de saúde, na esfera privada.   “É comum que o Estado condicione sua efetivação aos limites financeiros fáticos e à escassez de recursos. O direito, portanto, passa não mais a ser visto de forma absoluta, podendo ser relativizado sob o argumento da insuficiência de recursos. Tanto em tribunais quanto no próprio âmbito dos juristas, o debate acerca da relação entre direitos e custos econômicos tem crescido e, inclusive, tem sido objeto de defesa do Estado em diversas ações judiciais” (BRASIL, 2015, p. 132).   Não apenas, o conflito ideológico entre os institutos jurídicos do Mínimo existencial e da reserva do possível, tem como origem pelo debate de suas respectivas funções e aplicação, pois o mínimo existencial pressupõe a garantia universal da proteção da integridade física e psíquica de todos os seres humanos, em todas as suas dimensões, gerando obrigação ao Estado em fornecer os recursos necessários para devida aplicabilidade dessa garantia. Em contrapartida, surge a reserva do possível como um limitador dessa obrigação, possuindo a premissa de que o Estado deve oferecer somente os recursos que entender necessários de acordo com sua capacidade orçamentaria, ou seja, uma forma de protecionismo econômico. “No Brasil, portanto [a reserva do possível], passou a ser fática, ou seja, possibilidade de adjudicação de direitos prestacionais se houver disponibilidade financeira, que pode compreender a existência de dinheiro somente na caixa do Tesouro, ainda que destinado a outras dotações orçamentárias! Como o dinheiro público é inesgotável, pois o Estado sempre pode extrair mais recursos da sociedade” (CANOTILHO, 2004, p. 481). Os três institutos jurídicos listados acima tem total interdependência, tendo em vista que para o conflito ideológico do mínimo existencial e da reserva do possível ter sido notado ao ponto de ganhar espaço no debate jurídico, precisaria (não necessariamente) de uma anterior postulação de ação que caracterizava um caso de judicialização da saúde. Dessa maneira, nota-se o grau de repercussão geral dos acontecimentos jurídicos descritos acima e também, mesmo que implícito, a sua relação com a Mistanásia, já que, no caso da judicialização da saúde, a demora no trâmite processual poderá levar o cidadão vulnerável, que necessita de medicamentos ou de tratamento médico, ao óbito de uma forma miserável e dolorosa. Porém, a solução do conflito ideológico entre o mínimo existencial e a reserva do possível pode ser decisivo no combate a incidência de mortes mistanásicas em casos de judicialização da saúde, pois o núcleo garantidor dos princípios debatidos aqui, baseiam-se na proteção a dignidade da vida humana, indo ao encontro do protecionismo dos direitos coletivos e difusos proposto pelo ordenamento jurídico brasileiro.   Mister se faz relevar os importantíssimos resultados desta pesquisa, as quais, demonstrou-se, por intermédio de pesquisa bibliográfica baseada em notícias em jornais de variados estados do Brasil, e em mídias sociais de fácil acesso, relatando que no Brasil, entre 2015 à 2018, foi enfrentado uma grande instabilidade política e econômica, repercutindo até os dias atuais como uma forma de “dano colateral”. Em consequência disso, nota-se o aumento exponencial de transtornos nos setores governamentais essenciais ao cidadão necessitado, em especial, o sistema público de saúde, provocando mortes em filas de hospitais e postos de saúde, por maus tratos, abandono e violência, caracterizando a Mistanásia. Portanto, o desequilíbrio econômico pela péssima gestão financeira e administrativa e a ineficiência das políticas públicas de saúde, ocasiona uma estagnação das estruturas públicas de hospitais e postos de saúde em todo o território nacional, e consequentemente, a decadência na qualidade dos atendimentos, gerando as circunstâncias ideais para acontecimento de mortes mistanásicas.   CONSIDERAÇÕES FINAIS Pelo exposto anteriormente neste estudo, observa-se, no geral, o quanto a Mistanásia é cruel, suas formas de incidência e como é caracterizada, e por isso, percebe-se o quão a natureza humana pode ser fria, devido ao sentimento generalizado de indiferença em uma situação de vulnerabilidade. Sendo assim, pode-se elencar medidas para redução no número de casos de mistanásia, começando: Primeiramente, pela publicidade sobre o que é a Mistanásia, suas causas, consequências e seu impacto na sociedade, com a finalidade de provocar o debate sobre o assunto em universidades, faculdades e/ou escolas, conscientizando o maior número de pessoas. Outra possibilidade poderia ser a tipificação penal, aumento de pena ou agravante de pena, em casos que comprovadamente encaixam-se nos requisitos determinadores da Mistanásia, punindo com rigor os agentes causadores. Por fim, uma medida radical e talvez utópica, que seria uma alteração estrutural drástica, sendo a privatização dos serviços de saúde, promovendo a desvinculação da dependência orçamentária estatal e evitando desvios de dinheiro e corrupção, diminuindo a burocracia existente, deixando somente algumas unidades públicas de saúde estrategicamente posicionadas nas regiões mais pobres no Brasil. Portanto, conclui-se com este ensaio, a explicação sobre a cruel condição social denominada Mistanásia, além de possíveis soluções, destacando sua importância no debate público e conscientização popular, na qual, espera-se que o tema seja difundido, mesmo em pequeno número, tendo a possibilidade de um dia servir de base na aplicação de medidas preventivas locais contra esse mal e que as liberdades individuais sejam devidamente respeitadas.
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Consentimento livre e esclarecido: obrigação ética e jurídica do médico
O médico tem o dever de prestar ao paciente todas as informações relativas a seu tratamento, tais como potenciais riscos, possíveis intercorrências ou eventuais efeitos adversos, ocorrências clínicas imediatas e tardias que possam ser razoavelmente previstas, cuidados necessários durante todas as fases do tratamento proposto e ainda uso de medicações e mudanças de hábitos e estilo de vida. Esse dever de informar é imposto ao médico por determinação do Código de Ética exarado elos Conselhos de Medicina e também por imposição de Lei. Além de informar, o médico deve se certificar que o paciente, ou seu responsável, entendeu de forma totalmente clara as informações. O descumprimento desse dever acarreta, para o médico, infração ética e também responsabilidade jurídica do profissional, sendo, nessa última esfera, ensejadora de responsabilidade civil objetiva.
Biodireito
INTRODUÇÃO A Medicina é profissão regulamentada pela lei 3.268/1957, que institui os Conselhos de Medicina, e também pela lei 12.842/2013 (lei do ato médico). A lei 3.268/1957, por sua vez, dispõe que os Conselhos de Medicina são órgãos que fiscalizam e disciplinam a atividade da Medicina e também a classe médica. A mencionada lei ainda dá ao Conselho Federal de Medicina (CFM) a prerrogativa de criar o código de regras e normas que regem a Medicina e os médicos. Assim: “Art . 2º O conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são os órgãos supervisores da ética profissional em tôda a República e ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente.   Art . 5º São atribuições do Conselho Federal: (…) É dever do médico obedecer aos mandamentos constitucionais, às disposições do Código de Ética Médica (CEM; Resolução CFM 2.217/2018), criado pela já citada lei 3.268/1957, às determinações da lei do ato médico e também às determinações do Código Civil brasileiro (CC/2002), uma vez que se formam vínculos contratuais e obrigacionais entre o médico e o paciente.   1          O CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA E DEVER DE INFORMAR É dever do médico, conforme o Princípio Fundamental XXI do Capítulo I, e arts. 22, 31 e 34, todos do CEM, informar ao paciente sobre o tratamento e seus eventuais riscos. “XXI – No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas. É vedado ao médico: (…) Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte. Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.”   Assim, é obrigação ética do médico obter o consentimento do paciente antes do início do tratamento, salvo em situações de emergência. A atual importância do consentimento do paciente decorre da própria evolução da relação médico-paciente, antes paternalista e hoje com maior ênfase à sua autonomia. Essa evolução deve-se à ampliação dos direitos civis e dos princípios bioéticos. A vontade do paciente deve ser respeitada, tendo ele autonomia para aceitar e mesmo recusar o tratamento proposto.   2 O DEVER DE INFORMAR NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO O ordenamento jurídico determina, ao médico, o dever de informar, ao paciente, sobre o tratamento e dele obter consentimento prévio. A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88) traz, em seu art. 3º, I, a solidariedade como fundamento; desse fundamento deriva a lealdade que deve pautar as relações humanas. O dever de informar prestigia essa lealdade. O CC/2002 diz, em seu art. 15, que pessoa nenhuma será obrigada a submeter-se, com risco de vida, a tratamento contra a sua vontade, deixando clara a necessidade, ainda que implícita, de obter-se o consentimento do paciente, previamente ao início do tratamento. Literis: Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. Ainda: estabelece-se uma relação jurídica obrigacional entre o médico e o paciente, pois o primeiro assume a obrigação de dedicar seu conhecimento e zelo nos cuidados com a saúde do paciente, enquanto o segundo se obriga a remunerar o médico e também seguir as orientações recebidas. O CC/2002 também dá à relação médico-paciente natureza contratual, pois há, neste contexto, uma convergência de vontades, que é a melhora clínica do paciente. Nesse sentido, os art. 113 e 422 determinam que: “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. I – for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; II – corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; III – corresponder à boa-fé; IV – for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e V – corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” O vínculo jurídico que se estabelece entre médico e paciente, que pode ser entendido como relação obrigacional, contrato e ainda negócio jurídico, deve se pautar na boa fé objetiva, que inclui o dever de informação como fundamento lógico. O Código de Defesa do Consumidor (CDC – lei 8.078/1990), que esta autora entende ser inaplicável ao trabalho do médico, haja vista a existência de leis especiais, as já citadas leis 12.284/2013 e 3.268/1957, também impõe o dever de informar, denotando a preocupação do legislador brasileiro com a lealdade e a boa-fé das relações humanas. “Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (…) III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; (…)”   A jurisprudência também dá ao consentimento conotação obrigacional, imputando ao médico o dever de obtê-lo previamente ao início do tratamento, sob pena de privar o paciente do direito de autodeterminar-se e escolher se deseja submeter-se ou não àquele tratamento. Vejamos: “REsp 1540580/DF; RECURSO ESPECIAL 2015/0155174-9; Relator Ministro LÁZARO GUIMARÃES; Relator(a) p/ Acórdão Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO; Órgão Julgador T4 – QUARTA TURMA; Data do Julgamento 02/08/2018; Publicação/Fonte DJe04/09/2018; RJTJRS vol. 311 p. 69 EMENTARECURSO ESPECIAL. (…) RESPONSABILIDADE CIVIL DO  MÉDICO POR INADIMPLEMENTO DO DEVER DE INFORMAÇÃO.   (…) OFENSA AO DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO. VALORIZAÇÃO DO SUJEITO DE DIREITO. DANO EXTRAPATRIMONIAL CONFIGURADO.  INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. BOA-FÉ OBJETIVA. (…)(…) 2.  É uma prestação de serviços especial a relação existente entre médico e paciente, cujo objeto engloba deveres anexos, de suma relevância, para além da intervenção técnica dirigida ao tratamento da enfermidade, entre os quais está o dever de informação.3. O dever de informação é a obrigação que possui o médico de esclarecer o paciente sobre os riscos do tratamento, suas vantagens e desvantagens, as possíveis técnicas a serem empregadas, bem como a revelação quanto aos prognósticos e aos quadros clínico e cirúrgico, salvo quando tal informação possa afetá-lo psicologicamente, ocasião em que a comunicação será feita a seu representante legal.4. O princípio da autonomia da vontade, ou autodeterminação, com base constitucional e previsão em diversos documentos internacionais,  é fonte do dever de informação e do correlato direito ao consentimento livre e informado do paciente e preconiza a valorização  do sujeito de direito por trás do paciente, enfatizando a sua  capacidade  de  se  autogovernar,  de fazer opções e de agir segundo suas próprias deliberações.(…)6. O dever de informar é dever de conduta decorrente da boa-fé objetiva e sua simples inobservância caracteriza inadimplemento contratual, fonte de responsabilidade civil per se. A indenização, nesses casos, é devida pela privação sofrida pelo paciente em sua autodeterminação, por  lhe  ter  sido  retirada  a  oportunidade de ponderar  os  riscos  e vantagens de determinado tratamento, que, ao final,  lhe  causou  danos, que poderiam não ter sido causados, caso não fosse realizado o procedimento, por opção do paciente.9. Inexistente legislação específica para regulamentar o dever de informação, é o Código de Defesa do Consumidor o diploma que desempenha essa  função,  tornando bastante rigorosos os deveres de informar  com  clareza,  lealdade e exatidão (art. 6º, III, art. 8º, art. 9º). (REsp 1540580/DF; RECURSO ESPECIAL 2015/0155174-9; Relator Ministro LÁZARO GUIMARÃES; Relator(a) p/ Acórdão Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO; Órgão Julgador T4 – QUARTA TURMA; Data do Julgamento 02/08/2018; Publicação/Fonte DJe04/09/2018; RJTJRS vol. 311 p. 69) (grifou-se).”   Do julgado transcrito acima, concluímos que o consentimento do paciente é obrigação do médico, salvo em situações de emergência, e prestigia a boa fé objetiva, além de cumprir a determinação imposta pelo CEM, como declinado acima. Pode-se, ainda, imputar ao dever de informar e obter consentimento prévio ao início do tratamento, conotação de responsabilidade objetiva. O descumprimento desse dever já acarreta inadimplemento obrigacional, como bem se pode concluir da leitura do julgado transcrito acima. E mais: mero descumprimento do dever de informar já caracteriza inadimplemento sem necessidade de verificação de culpa. A imputação de responsabilidade civil independente do elemento culpa corresponde à responsabilidade civil objetiva, que prescinde da culpa. Para Sérgio Cavalieri: “Todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou independente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de nexo de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa”.  (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 137). Chama a atenção o crescente aumento de processos contra médicos, na Europa e nos Estados Unidos da América, com especial relevância para aqueles originados pelo descumprimento do dever de informar e obter prévio consentimento do paciente, conforme destaca Dias Pereira. (DIAS PEREIRA, 2004) Conforme a autora Lívia Haygert Pithan, o primeiro julgado brasileiro sobre essa matéria é recente, em relação à jurisprudência estrangeira. Vejamos: No Brasil, somente no ano de 2002 a expressão “consentimento informado” é  utilizada em uma decisão judicial. Em acórdão pioneiro, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), afirma-se a responsabilidade civil do médico e da instituição hospitalar pelos danos causados em uma paciente que se submeteu a um procedimento cirúrgico oftalmológico, sem ter sido informada devidamente de risco de cegueira, que acabou por ocorrer, gerando dano. Considerou-se a falta de informação como violadora das regras éticas que cercam a relação médico-paciente. Esta decisão é diferenciada em relação as que a sucedem sobre o tema, em especial por um aspecto: considera o consentimento informado derivado de uma exigência ética e não somente  de  uma regra  de  consumo. Posteriormente,  vários tribunais   estaduais   passaram   a   julgar   demandas  similares. ( PITHAN, 2012) Do exposto, pode-se concluir que o consentimento é instrumento para a concretização da boa-fé e da lealdade nas relações subjetivas, pois tutela os direitos personalíssimos do paciente. Vale dizer que o consentimento prestigia a dignidade da pessoa humana e a autonomia do paciente, princípios caros à CRFB/1988. A interlocução entre Direito e Medicina é cada vez maior. O médico diligente e atento às normas legais e éticas deve dar ao dever de informação peso de dever anexo à relação médico-paciente, como enfatizado em acórdão transcrito acima. Deve-se lembrar que a Medicina não é ciência exata e traz consigo riscos e imprevisibilidades.  Nem todas as possíveis complicações clínicas podem ser previstas. Assim, o médico deve informar ao paciente que o tratamento acarreta riscos e eventuais complicações. Essas informações prestadas pelo médico permitirão que o paciente exerça sua autonomia e escolha de forma livre e consciente se quer se submeter ou não àquele tratamento. Como corolário desse entendimento, de ser o consentimento prévio do paciente prestígio à sua autonomia e dignidade humana, a falha ou mesmo falta de informação caracteriza lesão aos seus direitos de personalidade, caracterizando verdadeiro descumprimento contratual. Atualmente, os Tribunais brasileiros entendem que o dever de informar é obrigação autônoma do médico, cujo descumprimento acarreta responsabilidade civil, ainda que o procedimento médico não tenha ocasionado complicações clínicas. Confira-se o julgado a seguir: (…)APELAÇÕES CÍVEIS. RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. (…) RESPONSABILIZAÇÃO SOLIDÁRIA DOS RÉUS PELA FALHA NO DEVER DE PRESTAR CORRETA INFORMAÇÃO. DANOS MATERIAIS MANTIDOS. DANOS MORAIS CARACTERIZADOS.(…)3. Falha no dever de informar. Contudo, possível a responsabilização dos réus em virtude da falha no dever de prestar correta informação à paciente com relação aos riscos e possíveis consequências dos procedimentos a que pretendia se submeter. Caso em que evidenciado que a paciente não foi alertada das cicatrizes que apresentaria, notoriamente da grande possibilidade de que elas ficassem alargadas em razão da tensão da pele, vindo a necessitar de procedimento reparatório no futuro, ou mesmo de que teria outras opções de incisão cirúrgica. Violação do dever de informação que permite a condenação solidária dos réus nos moldes do parágrafo único do art. 7° do CDC. (…) (AREsp 1347109; Relator Ministro MOURA RIBEIRO; Publicação 27/08/2019; Decisão Agravo em Recurso Especial nº 1.347.109-RS (2018/0209529-0) (grifou-se)   Deve-se notar que o consentimento deve ser livre de coações e precedido dos esclarecimentos e das informações pertinentes ao tratamento médico proposto e ser dado por agente capaz. Pode ser verbal ou escrito, conforme a complexidade do tratamento. O médico deve provar que cumpriu seu dever de informar, mediante elaboração de termo de consentimento livre e esclarecido ou mesmo anotações no prontuário do paciente. Noutras palavras, há inversão do ônus da prova, em relação à obtenção de consentimento prévio do paciente. Como abordado adiante, neste trabalho, pode-se atribuir conotação de responsabilidade objetiva ao dever de informar, uma vez que seu inadimplemento acarreta responsabilidade civil, mesmo que o médico não tenha incorrido em conduta culposa e mesmo que o paciente não tenha apresentado qualquer intercorrência clínica ou cirúrgica. A obtenção do consentimento prévio encontra exceção: situações de emergência e urgência, uma vez que a obtenção de consentimento prévio em tais situações poderia  comprometer a boa evolução clínica. Rui Stoco ensina que: Outro aspecto importante a ser evidenciado é que a intervenção médica há, sempre, de estar precedida do consentimento do paciente ou de seu responsável, salvo, evidentemente, os caos de atendimento de emergência, quando haja risco de vida ou de dano físico irreversível ou quando, durante a intervenção cirurgíca, surge um fato novo, a exigir imediata providência, sem tempo para interrompê-la e consultar os familiares (STOCO, 2007). A falha no dever de informar caracteriza inadimplemento obrigacional e implica dever de indenizar.  Mesmo que não ocorram complicações clínicas ou cirúrgicas e o tratamento médico tenha sido bem sucedido, a falha ou falta de informação, o dever de indenizar estará presente, uma vez que o dever de informar é obrigação autônoma, conforme depreende-se do exposto nos parágrafos anteriores.   CONCLUSÃO É dever ético e legal do médico esclarecer previamente, ao paciente, ou a seu representante legal, sobre o tratamento proposto, assim como seus eventuais riscos, complicações e possíveis intercorrências. Para tanto, o médico deve explicar ao paciente, em linguagem acessível, todas as informações relativas ao tratamento, certificando-se que o paciente compreendeu. O objetivo é possibilitar que o paciente, com autonomia, decida se quer ou não submeter-se àquele tratamento. O consentimento pode ser verbal ou escrito, conforme a complexidade do tratamento médico. Resoluções do Conselho Federal de Medicina propõem forma escrita para tratamentos invasivos, mediante termo de consentimento livre e esclarecido, individualizado e com as informações pertinentes àquele tratamento específico. O Judiciário brasileiro entende, de forma majoritária, que cabe ao médico provar que cumpriu adequadamente o dever de informar, prova esta que poderá ser produzida com as anotações no prontuário médico, no caso de tratamentos ambulatoriais, consultas e exames simples e não invasivos, ou por meio de termo de consentimento livre e esclarecido, no caso de cirurgias e exames/tratamentos invasivos e complexos. É fundamental que o consentimento seja específico para o tratamento proposto e de fácil entendimento para o paciente, sendo vedados consentimentos genéricos e incompreensíveis. O descumprimento do dever de informar traz responsabilidade civil para o médico, por ofensa à autonomia do paciente, acarretando dever de indenizar. Ainda, extrai-se, dos argumentos expostos neste trabalho, que a responsabilidade civil decorrente do dever de informar é objetiva, pois o não cumprimento desse dever gera inadimplemento, ainda que o paciente não tenha apresentado qualquer intercorrência ou complicação ou mesmo que o médico tenha agido com perfeita técnica e diligência.
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Obrigação de Meios e Descabimento da Inversão do Ônus da Prova em Cirurgia Plástica Estética, em Anestesiologia e Odontologia
Artigo de revisão da doutrina e da jurisprudência afetas ao tema da modalidade obrigacional assumida por dentistas, anestesiologistas e cirurgiões plásticos, em cirurgia estética, e análise dos aspectos jurídicos frente aos aspectos clínicos e biológicos dos pacientes, para concluir que é descabida a atribuição de obrigação de resultado ao trabalho dos profissionais abordados neste artigo.
Biodireito
INTRODUÇÃO A jurisprudência majoritária e parte da doutrina entendem que a cirurgia plástica estética, a odontologia e a anestesiologia são obrigação de resultado, o que acarreta para o médico e o dentista o ônus de provar a improcedência da acusação feita contra eles. Esse ônus probatório é conhecido como inversão do ônus da prova, uma vez que inverte a regra de que a prova do fato alegado compete àquele que acusa, conforme a regra do art. 373, inciso I[2] do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015). Esta autora entende que a cirurgia plástica estética, a odontologia e a anestesiologia carregam de forma indissociável o elemento da imprevisibilidade, dada a variabilidade de respostas orgânicas individuais às intervenções. O fator de álea terapêutica não permite ao médico ou ao dentista controlar todo o tratamento, pois existem intercorrências clínicas e cirúrgicas imprevisíveis e incontroláveis, que escapam à atuação do profissional. Exatamente por serem a cirurgia plástica estética, a odontologia e a anestesiologia campos de atuação sujeitos ao fator aleatório e da imprevisibilidade, não é razoável exigir que aquele que foi acusado prove sua “inocência”. O médico e o dentista apenas podem ser responsabilizados pelo que depende exclusivamente deles. A inversão do ônus probatório é, portanto, antijurídica. Compete àquele que acusou provar sua alegação. Portanto, a única conclusão possível é que a obrigação assumida pelo médico, na cirurgia plástica estética e na anestesia, e pelo dentista, nos tratamentos odontológicos, é de meios, não sendo cabível a inversão do ônus probatório. Palavras-chave: Responsabilidade civil. Obrigação de meio. Obrigação de resultado. Ônus da prova.   1 REVISÃO SOBRE O REGRAMENTO JURÍDICO DA RESPONSABILIDADE CIVIL   1.1 RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO E DO DENTISTA – OBRIGAÇÃO DE MEIO Em nosso ordenamento jurídico, há dois tipos de obrigação: a de meios e a de resultado. Na primeira, existe o compromisso de usar os recursos disponíveis para obter-se um desfecho favorável, sem, no entanto, existir o compromisso de obter aquele determinado resultado. Vale dizer que, sem a culpa do médico/dentista não haverá responsabilidade civil. Na obrigação de resultado, há o compromisso de atingir um determinado resultado, que, não obtido, implica descumprimento da obrigação, que acarreta ao médico/dentista o dever de assumir a responsabilidade pelo inadimplemento. Obrigação de meio, para Pablo Stolze Gagliano (2017, p.144), é: “[…] aquela em que o devedor se obriga a empreender sua atividade, sem garantir, todavia, o resultado esperado […]”. O autor exemplifica obrigação de meio com o trabalho do médico, que deve usar os conhecimentos e recursos à sua disposição na assistência aos pacientes, sem obrigar-se a atingir determinado resultado. Na obrigação de meios, o médico e o dentista se obrigam a prestar assistência com diligência e segundo as melhores técnicas e conhecimentos a seu dispor. A promessa de cura não é exigida, mesmo porque tal promessa é inexeqüível, pois “O restabelecimento do doente nem sempre depende do médico. Alguns males são mais fortes que a ciência” (Ovídio, 43 a.C, In POLICASTRO, Décio. Erro médico e suas conseqüências jurídicas. 4 ed. ver, atual e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2013). A obrigação de meios, modalidade obrigacional imposta ao médico e ao dentista, não impõe ao profissional o ônus probatório; este entendimento é acertado, pois não é razoável exigir que alguém prove o que não depende apenas dele (caso da Medicina e da Odontologia, temas que serão desenvolvidos nos próximos tópicos). Existe, na responsabilidade do médico e do dentista, obrigação de meio, vale dizer, de diligência, contexto em que, do profissional, exige-se zelo, sem promessa de resultado, devendo ele se dedicar e empregar os recursos necessários e disponíveis. Se o médico e o dentista ocasionarem dano mediante atuação culposa ( tema que será desenvolvido adiante), surgirá responsabilidade civil, pois, segundo De Plácido e Silva: Dever jurídico em que se coloca a pessoa, seja em virtude de contrato, seja em face de fato ou omissão, que lhe seja imputado, para satisfazer a prestação convencionada ou para suportar as sanções legais, que lhe são impostas. Onde quer, portanto, que haja obrigação de fazer, dar ou não fazer alguma coisa, de ressarcir danos, de suportar sanções legais ou penalidades, há a responsabilidade, em virtude da qual se exige a satisfação ou o cumprimento da obrigação ou da sanção (SILVA, 2010, p.642). O ordenamento jurídico pátrio determina que seja feita reparação àquele que sofreu um dano decorrente de conduta de outrem. O art. 927 do Código Civil (CC/2002) diz que: Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem[3] (BRASIL, 2002). O médico deverá usar todos os conhecimentos científicos e recursos disponíveis para controlar a doença e obter o melhor desfecho clínico possível, conforme comando contido no art. 32 do Código de Ética Médica (CEM)[4], alinhado com o conceito de obrigação de meio da doutrina civilista. A obrigação do médico é, portanto, classificada como obrigação de meio, pelo Código de Ética Médica. Vejamos o julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP): Na obrigação de meio, o devedor obriga-se a fornecer os meios necessários para a realização de um fim, sem se responsabilizar pelo resultado. Nela, o devedor obriga-se tão-somente (SIC) a obrar com prudência e diligência normais na prestação de certo serviço para atingir um resultado, sem, no entanto, vincular-se à sua obtenção. Incumbe ao devedor tão-somente (SIC), desenvolver todos os esforços, todos os cuidados necessários à consecução do resultado, mas não se obriga ao resultado. E o que ocorre, basicamente, com o contrato de prestação de serviços médicos, pelo qual o profissional se compromete a cuidar do enfermo. O médico, é evidente, não pode garantir a cura do paciente. O credor da obrigação (no caso o paciente ou a pessoa que o contratou) tem o direito de exigir do médico o melhor tratamento possível, mas não poderá afirmar o inadimplemento da obrigação do médico, a não ser que se demonstre conduta negligente, imprudente ou desleal (BRASIL, 2000)[5]. A obrigação de meio é relacionada à responsabilidade subjetiva: Isto porque a obrigação que tais profissionais assumem é uma obrigação de “meio” e não de “resultado”. O objeto do contrato médico não é a cura, obrigação de resultado, mas a prestação de cuidados conscienciosos, atentos […] os médicos se comprometem a tratar com zelo, usando os recursos adequados, sem comprometer-se com a cura. Somente serão responsabilizados na forma culposa em suas 3 modalidades. Daí o rigor da jurisprudência na exigência da produção dessa prova. Ao prejudicado incumbe a prova de que o profissional agiu com culpa, a teor do estatuído no art. 951 do Código Civil (GONÇALVES, 2018, p.266). Também o capítulo que trata dos Princípios Fundamentais, do CEM, afirma que a responsabilidade do médico é subjetiva: XIX – O médico se responsabilizará, em caráter pessoal, e nunca presumido, pelos seus atos profissionais, resultantes de relação particular de confiança e executados com diligência, competência e prudência (CFM, 2018). Em outras palavras, na obrigação de meio, a responsabilidade é subjetiva e exige comprovação de culpa, em suas três modalidades (imprudência, negligência ou imperícia). Na obrigação de resultado, a responsabilidade é objetiva e a culpa, presumida (POLICASTRO, 2013, p.9-10). Para Croce (2002, p.3) o médico assume obrigação de meio, obrigando-se a cuidar do doente com adequados conhecimentos, cuidado e diligência. Não obtenção de cura ou eventual morte do paciente não significa que o médico praticou ato ilícito. Matielo (1998, p.66) diz a regra é a necessidade de provar a culpa do médico, diante da alegação de suposto erro médico, uma vez que a este incumbe empregar todos os cuidados possíveis para uma boa evolução clínica; não obtenção desse objetivo não acarreta responsabilidade civil, pois esta exige a comprovação de culpa. O médico deve empregar zelo e cuidado. O erro somente ficará caracterizado com a demonstração de culpa, nas suas modalidades imprudência, negligência e imperícia. A responsabilidade civil do médico não decorre do mero insucesso ou insatisfação com o tratamento (MORAES, 2003). Assim, por ser a responsabilidade do médico subjetiva, deverá ser demonstrado, por quem pleiteia indenização ou mesmo demonstração de suposto “erro médico”, que o médico agiu com culpa. Não há presunção de culpa devido a uma não obtenção de determinado desfecho clínico. É necessário frisar que o desfecho da conduta médica e odontológica não é previsível, pois características próprias e inerentes ao organismo do paciente o influenciam, por mais correta que seja a conduta clínica.   1.2 DESCABIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE RESULTADO NO TRABALHO DO PROFISSIONAL LIBERAL DA ÁREA DE SAÚDE Como mencionado anteriormente, a obrigação de resultado é aquela que determina que o agente cumpra um resultado pré-determinado. Essa modalidade prevê que a não satisfação do resultado caracteriza inadimplemento obrigacional. O não atingimento daquele resultado desconsidera o elemento culpa, componente indissociável do trabalho do médico e do dentista, nos termos dos já citados artigos do CC/2002 e também do art. 14§ 4º do Código de Defesa do Consumidor (CDC).[6] A responsabilidade civil do médico e do dentista é subjetiva, por força de determinação legal e, principalmente pela presença do fator álea, representado pela possibilidade de ser o desfecho do tratamento médico ou odontológico determinado por condições fisiológicas e patológicas intrínsecas do paciente. Há, portanto, necessidade de comprovar-se conduta culposa do profissional para a configuração de responsabilidade. O trabalho do médico e do dentista é influenciado por diversos fatores inerentes ao próprio paciente, a chamada álea terapêutica. Exige-se, do médico e do dentista, uma atuação diligente e em conformidade com os conhecimentos científicos. Vale dizer, estes têm obrigação de diligência, dever este desconsiderado na obrigação de resultado, que se importa tão-somente com o resultado determinado. A obrigação de resultado e a responsabilidade objetiva são incompatíveis com o trabalho do médico e do dentista, justamente em razão do já mencionado fator álea terapêutica. Assim, percebe-se que a adoção da responsabilidade objetiva e de seu corolário, obrigação de resultado, afrontam a razoabilidade e a legalidade, quando da analise do trabalho do médico e do dentista. O Direito deve refletir o fato social. Regras e normas jurídicas que retirem a razoabilidade e ignorem a natureza dos acontecimentos humanos traduzem-se em instrumento de injustiça e geração de conflitos.   2 CONSIDERAÇÕES CLÍNICAS SOBRE CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA, ANESTESIOLOGIA E ODONTOLOGIA As três áreas de atuação abordadas neste trabalho são afetas a cuidados curativos e preventivos de saúde, cercados da imprevisibilidade que lhes impõe o organismo humano, com respostas terapêuticas variadas e por vezes anômalas e imprevisíveis. As ciências da saúde não são exatas, pois: (…) há acontecimentos inevitáveis, fora do controle do profissional, mostrando que nem todo mau resultado está diretamente associado ao agir do médico ou a ato de outro prestador de serviços da saúde. Ocasionalmente surgem no doente reações imprevisíveis, intercorrências, complicações, sem que a causa possa ser atribuída ao atendimento médico em seu amplo significado. Uma terapia pode estar certa e a resposta decepcionar. Uma intervenção cirúrgica pode redundar em fracasso, embora realizada com aplicação das melhores e mais avançadas técnicas(…) (POLICASTRO, Décio. Erro médico e suas conseqüências jurídicas. 4 ed. ver, atual e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2013, p.3). Ainda: A nosso ver deveria ser óbvio que, quando a prestação obrigacional se desenvolvesse em um campo aleatório, sua conceituação deveria situar-se dentro da categoria de uma obrigação de meio, já que não seria razoável garantir um resultado em seara onde o fator álea estivesse presente, o que, conseqüentemente, propiciaria algo imprevisível. (GIOSTRI, Hildegard Taggesell. Responsabilidade Médica: as obrigações de meio e de resultado: avaliação, uso e adequação. Curitiba: Juruá, 2004.) Os trechos acima demonstram a acertada visão sobre a classificação da obrigação assumida pelo dentista, pelo anestesiologista e pelo cirurgião plástico, na cirurgia estética, como obrigação de meios, exatamente pela existência do falor álea. O médico e o dentista só podem ser responsabilizados pelo que depende exclusivamente deles. Exigir que esses profissionais produzam prova de intercorrência alheia à atuação deles seria o mesmo que exigir-lhes prova de difícil ou impossível produção. Antes de prosseguir com os debates jurídicos sobre a modalidade obrigacional assumida por anestesiologistas, dentistas e cirurgiões plásticos no contexto da cirurgia estética, é oportuno analisar alguns aspectos dessas três áreas de atuação.   2.1 CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉTICA A cirurgia plástica é uma das diversas especialidades estabelecidas pelo Conselho Federal de Medicina (Resolução CFM nº 2.221/2018)[7] e se constitui em modalidade que utiliza técnicas cirúrgicas com o objetivo de reconstruir partes do corpo para tratar  doenças  e  deformidades  anatômicas, objetivando  proporcionar aos  pacientes  bem-estar físico, psíquico e social  e melhoria de sua saúde. A cirurgia plástica, seja a realizada com o objetivo de aprimoramento da aparência física (chamada de cirurgia plástica estética), seja aquela cujo objetivo é corrigir sequelas físicas de doenças (chamada de cirurgia plástica reparadora), está sujeita às mesmas circunstâncias imponderáveis que cercam a Medicina como um todo, pois seu campo de atuação é o corpo humano, com todas as suas peculiaridades biológicas individuais. Toda intervenção cirúrgica desencadeia uma reação orgânica conhecida como resposta endócrino-metabólica ao trauma, que nada mais é que o “(…) estresse causado pelo trauma cirúrgico, incluindo alterações endócrinas, metabólicas e imunológicas (…)”, ou seja, o conjunto de reações fisiológicas deflagradas pelo organismo submetido ao stress cirúrgico.[8] A resposta endócrino-metabólica ao trauma é, em outras palavras, a resposta fisiológica do paciente frente ao trauma (caso das cirurgias). Percebe-se que esse stress cirúrgico pode interferir acentuadamente no desfecho da cirurgia, com eventual complicação não decorrente da atuação do cirurgião e sim inerente à resposta do paciente à já citada resposta (endócrino-metabólica ao trauma). Do mesmo modo, o período pós operatório pode sofrer a influência de outros fatores exclusivos do paciente, como doenças associadas, que podem apresentar descompensação clínica, interação medicamentosa com remédios que não tenham sido informados ao médico e não adoção das recomendações do cirurgião. Assim, percebe-se que variáveis alheias à atuação do cirurgião podem determinar eventuais complicações, contexto em que a complicação não decorreu da conduta do médico e sim de reação orgânica do paciente ou mesmo de seu comportamento. É possível que ocorra uma complicação cirúrgica mesmo que a conduta do cirurgião tenha sido tecnicamente perfeita. Portanto, pode-se concluir que a cirurgia plástica estética está sujeita à imprevisibilidade (álea terapêutica). O desfecho de uma cirurgia estética não depende apenas do cirurgião plástico, mas também dos cuidados pré e pós operatórios do paciente, cuidados estes que apenas ele (paciente) controla, não tendo o cirurgião capacidade de neles atuar de forma direta, podendo fazê-lo apenas mediante recomendações. Do mesmo modo, o desfecho cirúrgico depende da resposta individual de cada pessoa, com suas características orgânicas próprias e inerentes de resposta endócrino-metabólica ao trauma, cicatrização e resposta farmacológica. Nesse sentido é o acórdão exarado pelo Superior Tribunal de Justiça, que tem a seguinte ementa: DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO. CIRURGIA PLÁSTICA. OBRIGAÇÃO DE  RESULTADO.  SUPERVENIÊNCIA    DE    PROCESSO    ALÉRGICO.    CASOFORTUITO. ROMPIMENTO DO NEXO DE CAUSALIDADE.(…)4. Recurso especial não conhecido.[9] (grifou-se)                Apesar de ter o Magistrado adotado o entendimento de ser a obrigação do cirurgião plástico de resultado, do que esta autora discorda, ficou claro que a reação própria do organismo do paciente, neste caso a alérgica, foi fator alheio à atuação do cirurgião e classificado como caso fortuito e imprevisível. Como já anteriormente mencionado, o que não depende do médico não pode por ele ser provado. Assim, a única conclusão possível é que a obrigação do cirurgião plástico, na cirurgia estética, deve ser de meios. O atual entendimento majoritário do Superior Tribunal de Justiça é de que a cirurgia estética é obrigação de resultado (BORGES, Gustavo. Erro médico nas cirurgias plásticas. São Paulo: Atlas, 2014, p.252), conforme se extrai do julgado a seguir. “nas obrigações de resultado, como na cirurgia plástica embelezadora, a responsabilidade do profissional da medicina permanece subjetiva, mas transfere para o médico o ônus de demonstrar que os eventos danosos decorreram de fatores externos e alheios à sua atuação durante a cirurgia”. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça Recurso Especial 1.180.815/MG. Tal entendimento não pode prevalecer, pois ignora as peculiaridades biológicas do organismo humano e as alterações fisiológicas decorrentes do procedimento cirúrgico, assim como as intercorrências clínicas desencadeadas por fatores exclusivos do paciente. O Direito, ciência que cria regras para organizar o convívio social, não pode se afastar dos acontecimentos biológicos e naturais que impactam a vida das pessoas, sob pena de perder seu papel de pacificação das relações humanas e tornar-se instrumento de injustiça.   2.2 ANESTESIOLOGIA A anestesiologia é uma das diversas especialidades reconhecidas pelo CFM, nos termos da já citada Resolução CFM nº 2.221/2018 e tem como campo de atuação “ (…) a responsabilidade do médico de anestesiar o paciente e, após, recuperá-lo, dentro de suas condições (…), devolvendo-lhe (…) os sentidos”. (Apud Sergio Domingos Pittelli e Mário Flávio Seixas – Saúde, Ética & Justiça. 2012;17(1):21-5). (grifou-se). Nas sábias palavras de Genival Veloso de França: “(…) não significa apenas um procedimento mecânico ou a decisão preferencial do anestesista, mas uma questão eminentemente clínica, cuja avaliação se dê caso (…). Para tanto, leva-se em conta seu estado físico e mental, seu diagnóstico, suas condições fisiológicas, as influências farmacológicas e o tipo de operação (…). Em suma: a indicação de uma anestesia é antes de tudo uma decisão clínica”. (FRANÇA, Genival Veloso. http://www.portalmedico.org.br/Regional/crmpb/artigos/Anest_meio.htm) Para executar sua tarefa, o anestesiologista utiliza diversos fármacos com o objetivo de induzir inconsciência no paciente. Esses fármacos têm o potencial de interagir com medicamentos usados pelo paciente e terem seu metabolismo influenciado por doenças associadas. Em outras palavras, as condições prévias inerentes ao organismo do paciente têm grande influência sobre a ação e metabolismo das substâncias anestésicas. Percebe-se que a atuação do anestesiologista também está sujeita a álea terapêutica e imprevisibilidade, da mesma forma que aquelas observadas na cirurgia plástica estética. O ato anestésico é um ato médico[10], nos termos da Lei do Ato Médico ( lei nº 12.842/ 2013) e, como tal, sujeito a toda sorte de intercorrências clínico-cirúrgicas e interações fisiológicas e medicamentosas. Não é a mera supressão da consciência, com posterior restauração do estado de consciência prévia. Essa seria uma visão muito simplista de um ato médico tão complexo. Alegar que o atual avanço dos aparelhos e das substâncias farmacológicas usados atualmente seria motivo hábil para impor ao anestesiologista a garantia de obtenção de um determinado resultado, como entendem Sant’ana[11] e Matielo[12], seria ignorar por completo as possíveis intercorrências clínicas desencadeadas por fatores exclusivos do paciente e exigir do médico que ele controle o que escapa à sua atuação. Seria menosprezar o imponderável que permeia toda a atividade médica.  O ato anestésico é cercado por álea e imprevisões. A única conclusão coerente, portanto, é que não é possível impor ao anestesiologista a obtenção de um determinado resultado, mas apenas o emprego de zelo, diligência e dos melhores conhecimentos científicos em prol do paciente, o que se amolda ao conceito de obrigação de meio. Por derradeiro, as prudentes e sábias palavras de Genival Veloso de França, já citado nesta obra: “Exigir-­se deles uma obrigação de resultado é, no mínimo, desconhecer os princípios mais elementares dessa especialidade”. Acrescenta que: “A obrigação do anestesiologista é de meio porque o objeto do seu contrato é a própria assistência ao seu paciente, quando se compromete empregar todos os recursos ao seu alcance, sem, no entanto, poder garantir sempre um sucesso. Só pode ser considerado culpado se ele procedeu sem os devidos cuidados, agindo com insensatez, descaso, impulsividade ou falta de observância às regras técnicas. Não poderá ser culpado se chegar à conclusão de que todo empenho foi inútil em face da inexorabilidade do caso, quando o especialista agiu de acordo com a “lei da arte”, ou seja, se os meios empregados eram de uso atual é sem contra-indicações. Punir-se, em tais circunstâncias, alegando obstinadamente uma ‘obrigação de resultado’, não seria apenas um absurdo. Seria uma injustiça”. O autor entende, muito acertadamente, que as condições fisiológicas e patológicas do paciente e as decorrentes da própria limitação da ciência impõe dever de diligência sem promessa de resultado, como já extensamente abordado anteriormente. Dessa forma, esta autora entende que o posicionamento da doutrina de ser a anestesiologia obrigação de resultado (POLICASTRO, Décio. Erro médico. 4 ed. rev, atual e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2013, p.105) é equivocada. A correta e justa classificação, como exaustivamente demonstrado, é que a obrigação é de meios.   2.3 ODONTOLOGIA A odontologia tem como área e campo de atuação a saúde bucal humana e patologias a ela correlatas e também está permeada pelo fator álea. Em outras palavras, o dentista tem sua atuação cercada de possíveis intercorrências e situações imprevisíveis, a exemplo do anestesiologista e do cirurgião plástico: descompensação de patologias associadas, variações anatômicas apresentadas pelo paciente, resposta anômala a fármacos e, com especial relevância, cuidados do paciente com higiene bucal, cuidados estes que podem determinar o sucesso ou insucesso do tratamento e que escapam à atuação direta do dentista, que pode apenas orientar o paciente quanto a esses cuidados. O atual entendimento doutrinário (KFOURI NETO, Michel. Responsabilidade civil do médico. 10 Ed rev, atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda, 2019, p.336) e jurisprudencial, conforme transcrição abaixo, de ser a odontologia obrigação de resultado, sob o argumento errôneo de serem as patologias dentárias limitadas a pequena área, é totalmente descabido, sob pena de se menosprezar as condições fisiológicas e patológicas intrínsecas dos pacientes. Confira-se a transcrição do julgado citado no parágrafo anterior: TJSP, Ap. 3000623-42.2012.8.26.0309. Rel. Des. A.C. Mathias Coltro.  j 15/03/2017. A doutrina entende assim: “(…) a patologia das infecções dentárias corresponde etiologia específica e seus processos são mais regulares e restritos, sem embargo das relações que podem determinar com desordens patológicas gerais; consequentemente, a sintomatologia, a diagnose e a terapêutica  são muito mais definidas e é mais fácil para o profissional comprometer-se a curar”. (DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, v. 1, n. 121, p. 319). A conclusão lógica e razoável é que a odontologia, por ser área do conhecimento que trabalha com a saúde, encerra imprevisibilidades e riscos a ela inerentes; adotar a modalidade de obrigação de resultado seria desconsiderar essa realidade inexorável e incorrer em extrema injustiça para com os profissionais.   3 ENTENDIMENTO DA ÁLEA TERAPÊUTICA NO DIREITO COMPARADO No Brasil, observa-se entendimento jurisprudencial majoritário de ser a obrigação assumida pelo cirurgião plástico em procedimentos estéticos, do dentista e do anestesiologista, de resultado, com total desconhecimento dos conceitos médicos e odontológicos. Nota-se, porém, que em outros países o tema recebe tratamento diverso. Em 1962, Henri Lalou já apresentava o entendimento que: cada vez que o resultado buscado pelas partes é tido por elas como aleatório, a obrigação é uma simples obrigação geral de prudência e diligência (meio); se este resultado é, ao contrário, considerado como possível de ser alcançado sem álea, então a obrigação é determinada (resultado) (LALOU, Henri. Traité pratique de la responsabilité civile. 6 éd. Paris: Sirey, 1962, p. 279, v. 1). Em 1977, o autor Jean Penneau resumiu o assunto da seguinte forma: A jurisprudência admitiu, ainda que com uma certa hesitação, que a obrigação do cirurgião estético não era, fundamentalmente, diferente da obrigação de qualquer outro cirurgião, em virtude da álea inerente a todo ato cirúrgico. (PENNEAU, Jean. La responsabilité médicale. Paris: Sirey, 1977, p. 35). E acrescentou, em 1992: Alguns atos médicos têm dado lugar, sob este ponto de vista, a algumas hesitações. Foi assim com a cirurgia estética, mas ela permanece submetida ao regime das obrigações de meios, por estar inserida, fundamentalmente, na álea de todo ato cirúrgico (PENNEAU, Jean. La responsabilité du médecin. Paris: Dalloz, 1992, p. 9). Os franceses, estudiosos do instituto jurídico da responsabilidade médica, desde a década de 1970, já haviam superado o equivocado entendimento de ser a atividade médica, em certos tipos de procedimento, uma obrigação de resultado, adotando atualmente a correta classificação de obrigação de meios. Outro não pode ser o entendimento, dada a imprevisibilidade da fisiologia humana; toda a intervenção sobre o corpo humano é aleatória. Certo e justo o entendimento da doutrina e da jurisprudência francesas. Fica nítido o descompasso do ordenamento e da doutrina brasileiros, com claro desconhecimento da fisiologia humana. Mais que necessária a mudança no pensamento jurídico pátrio. Alguns autores brasileiros, no entanto, já adotavam esse entendimento, a exemplo do Desembargador Sylvio Capanema, em 1990: Não nos parece, data venia, que se possa classificar uma cirurgia, e nesse plano as cirurgias plásticas se equiparam às de qualquer outra espécie, de obrigação de resultado, porque, como se sabe, quando se trata de mexer com a fisiologia humana, além da técnica empregada pelo médico, havida no conhecimento científico, há sempre um outro componente que o homem, frágil e impotente diante do desconhecido, chama de imprevisível. Então, ninguém pode se obrigar pela realização plena de uma tarefa que em parte, ou até em grande parte, está fora dos limites de atuação ou deliberação(…) ( Rio de Janeiro. Tribunal de Justiça. Ac. Apel. nº 1.329/90. Rel. Des. Carpena Amorin. J. 6 nov. 1990). O Ministro Carlos Alberto Direito, em palestra durante o 3º Seminário da Câmara Técnica de Cirurgia Plástica, assim se manifestou: para concluir, em relação à rigidez pretoriana em estabelecer sem questionamentos a natureza da obrigação do cirurgião plástico, na cirurgia embelezadora ou estética, sempre, como sendo de resultado, sem levar em conta o fator álea existente em todos os processos invasivos do organismo humano, com ênfase que: ‘O que não se pode admitir é a repetição, a meu ver, de um standard jurisprudencial que está em desalinho com a realidade mais moderna dos avanços da ciência médica e da ciência jurídica’(In Apel. Cív. citada, nº 863/98. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Voto vencido do Des. Roberto Wider, p. 76). Em 1997, Ruy Rosado de Aguiar Jr., então Ministro do Superior Tribunal de Justiça, disse sobre a cirurgia estética: O acerto está, no entanto, com os que atribuem ao cirurgião estético uma obrigação de meios. Embora se diga que os cirurgiões plásticos prometam corrigir, sem o que ninguém se submeteria, sendo são, a uma intervenção cirúrgica, pelo que assumiriam eles a obrigação de alcançar o resultado prometido, a verdade é que a álea está presente em toda intervenção cirúrgica, e são imprevisíveis as reações de cada organismo à agressão do ato cirúrgico (AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Responsabilidade civil do médico. In Revista Jurídica. Porto Alegre: Síntese. Ano XLV, nº 231, jan/97 – Assunto Especial –, p.131). Claro está que o entendimento ainda dominante na esfera judicial brasileira exige urgente modificação, pois seria um grande erro conceituar o trabalho do médico (e do dentista) como uma obrigação de resultado, considerando o inegável fator álea inerente às cirurgias (e demais tratamentos).   CONCLUSÃO          Por serem a cirurgia plástica estética, a odontologia e a anestesiologia passíveis de álea terapêutica, não é razoável exigir que estes profissionais assumam obrigação de resultado, com o ônus de provar a improcedência de acusação contra eles deduzida. Ao contrário, a obrigação desses profissionais é de meios, não comportando exceções para a cirurgia plástica estética, a odontologia e a anestesiologia, na visão desta autora. Desses profissionais se exige uma atuação zelosa, diligente e conforme diretrizes e protocolos aceitos pelas respectivas sociedades científicas. O médico e o dentista só podem ser responsabilizados pelo que depende exclusivamente deles, motivo pelo qual não é possível presumir culpa em caso de insucesso terapêutico. Inverter o ônus da prova seria o mesmo que exigir a prova de difícil ou impossível produção, situação vedada pelo art. 373 § 2º do CPC/2015.[13] Por ser a obrigação desses profissionais de meios, vale a regra prevista no art. 373 I do já citado CPC/2015, de que compete àquele que acusa provar o alegado. Assim, é descabida a inversão do ônus probatório quando da verificação da responsabilidade dos três profissionais citados nesta obra, por impor a eles responsabilidade sobre intercorrências imprevisíveis, pois não se pode exigir previsão, e conseqüente responsabilização, do extraordinário e imprevisível. No ensinamento de Michel Kfouri Neto (KFOURI NETO, Michel, p. 217), desfecho “adverso que se deve exclusivamente à reação imprevisível e inevitável (…) inexistirá o dever de indenizar”, tendo a palavra indenizar conotação de ser responsabilizado. Inversão do ônus da prova imposta por obrigação de resultado e presunção de culpa dos profissionais ignora a fisiologia humana e é, portanto, desarrazoada, além de ser antijurídica, pois afronta o comando do art. 14 §4º do CDC, que impõe demonstração de culpa ao profissional liberal, sem fazer distinção entre eles. O fator álea estará sempre presente e não pode ser ignorado. A diligência do profissional, fator fundamental, não elimina a possibilidade de mau desfecho clínico, que pode se dever a fatores fisiológicos e patológicos exclusivos do paciente ou mesmo de seu comportamento. Nunca é demais dizer que é arbitrário atribuir obrigação de resultado a áreas cercadas por imprevisibilidade. Tanto é assim que autores mais atualizados sobre a acertada visão do Direito comparado e atentos ao obrigatório conhecimento da fisiologia humana já manifestaram o correto entendimento de ser a obrigação do anestesista e cirurgião plástico, em cirurgia estética, obrigação de meios. O mesmo entendimento deve ser aplicado à odontologia, pelos argumentos anteriormente expostos. Oportuno lembrar as palavras de Fachin: “Há um vazio na doutrina civilística brasileira, que vai do desconhecimento à rejeição de novas idéias”, para, em seguida, concluir que “a técnica engessada das fórmulas acabadas não pode achar guarida em um Direito que se propõe aberto e sensível às modificações das realidades sociais” (FACHIN, Luiz Edson. (Coord.) Repensando fundamentos do Direito Civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 318). Por derradeiro, o ensinamento do médico Prof. Dr. Irany Novah Moraes, “se o erro só pode ser avaliado pelo resultado, o médico só deve responder pelo que depende exclusivamente dele e não da resposta do organismo do paciente”, com o que a autora deste trabalho concorda totalmente. (MORAES, Irany Novah. O erro médico e a lei).
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Dos Estudos Sobre o Canabidiol e as Políticas Públicas de Saúde Voltadas Aos Portadores de Epilepsia
RESUMO: Apesar de existir protocolo próprio do SUS para diagnóstico, tratamento e acompanhamento da epilepsia, cerca de 30% são refratários. Em virtude dessa resistência medicamentosa, novos horizontes têm surgido, abrindo espaço para a investigação científica sobre os efeitos do canabidiol (CBD) nos pacientes epiléticos. Estudos apontam que o Canabidiol tem sido eficaz na melhora seja na frequência, duração ou gravidade gravidade das crises epilépticas, havendo em alguns casos remissão total da doença. Até a presente data, não existe nenhuma medicação à base de Canabidiol incorporada à lista do SUS, o que por evidente acaba por “brecar” um tratamento adequado aos portadores de epilepsia que não dispõem de recursos financeiros para sua importação. Assim sendo, propõe-se um repensar do poder público, sobre a política pública de saúde atual, para que vislumbre uma cobertura dessas medicações por parte do Estado.
Biodireito
INTRODUÇÃO A epilepsia é uma alteração temporária e reversível do funcionamento do cérebro, que não tenha sido causada por febre, drogas ou distúrbios metabólicos, sendo uma das doenças neurológicas mais comuns do mundo[2]. No que tange ao controle/cura da doença, o Ministério da Saúde possui protocolo onde se estabeleceu métodos de diagnóstico, tratamento e acompanhamento da doença, estando dentre as medicações previstas: clobazam, levetiracetam, vigabatrina, dentre outros. Ocorre que tais medicações, por vezes, são insuficientes para a finalidade que as destinam, considerando cerca de 30% portadores de epilepsia refratária[3]. Em virtude dessa resistência medicamentosa, novos horizontes têm surgido, abrindo espaço para a investigação científica sobre os efeitos do canabidiol (CBD) nos pacientes epiléticos. Estudos apontam que o Canabidiol tem sido eficaz na melhora seja na frequência, duração ou gravidade das crises epilépticas, havendo em alguns casos remissão total da doença. Assim sendo, pode-se pensar em medicações com tal substância seriam uma boa alternativa para o tratamento tradicional ofertado. No Brasil, a aceitação do Canabidiol está sendo de forma gradativa, tendo a Anvisa reclassificado-o em substâncias reconhecidas e controladas pela agência, não sendo mais de uso proscrito (proibido). Apesar de não ter qualquer medicação destinada aos epilépticos registrada no Brasil à base de CBD, a ANVISA permite a sua importação. Mesmo com tais avanços, até hoje nenhuma medicação à base de Canabidiol foi incorporada à lista do SUS, o que por evidente acaba por “brecar” um tratamento adequado aos portadores de epilepsia que não dispõem de recursos financeiros para sua importação. Sugere então um repensar sobre tal situação pelo Poder Público. O presente artigo está estruturado em seis partes: primeiro se traz a introdução ao tema pesquisado; segundo se apresenta dados sobre a epilepsia; no terceiro fala das atuais políticas públicas voltadas aos portadores de epilepsia; quarto traz os experimentos com canabidiol; no quinto mostra como o poder público vem se comportando frente às evidencias do canabidiol e, por fim, a conclusão.   A epilepsia é um distúrbio genético ou adquirido (por trauma ou outras doenças) que leva à atividade excessiva e anormal das células nervosas do cérebro, causando eventualmente episódios conhecidos por convulsões[4]. Para que seja diagnosticada a epilepsia, há necessidade de ocorrência de pelo menos uma crise epilética. Todavia, na prática, a epilepsia é diagnosticada quando preenche um dos seguintes requisitos: a)  pelo menos duas crises não provocadas (ou reflexas), ocorrendo com intervalo maior que 24 horas; b) uma crise não provocada (ou reflexa) e que o cérebro, por qualquer motivo, demonstre uma tendência patológica e duradoura de gerar novas crises epiléticas, nos próximos 10 anos, similar ao risco de recorrência geral (pelo menos 60%) após duas crises não provocadas; c) quando se tem um diagnóstico de síndrome epilética específica[5]. O termo “não provocado” implica na ausência de um fator temporário ou reversível que tenha reduzido o limiar e produzido uma crise naquele momento, como por exemplo: febre, drogas ou distúrbios metabólicos[6]. Não provocada é, no entanto, um termo impreciso, porque nunca podemos ter certeza de que não houve um fator provocativo. Durante uma crise epilética, o indivíduo apresenta comportamento, sintomas e sensações que não podem ser controlados por ele, tais como: movimentos descoordenados, confusão mental, e em algumas vezes, perda de consciência[7]. A epilepsia é um dos transtornos neurológicos mais frequente que existe, atingindo cerca de 50 milhões de pessoas no mundo, 40 milhões delas em países em desenvolvimento[8], ficando atrás apenas da enxaqueca[9]. A probabilidade de um indivíduo ser afetado pela epilepsia ao longo da vida é cerca de 3%[10]. Nos Estados Unidos, estima-se que existem 3 milhões de pessoas com epilepsia, sendo cerca de 500 mil pessoas não são ajudadas por medicamentos atuais, de acordo com The American Epilepsy Society. Cerca de 50.000 morrem a cada ano por causa das convulsões[11]. Segundo estimativas do Ministério da Saúde, são diagnosticados cerca de 157.070 casos novos de epilepsia a cada ano no Brasil[12]. Estudos feitos, apontam uma prevalência da doença de 11,9/1.0000 pessoas, na grande São Paulo[13]; já em Porto Alegre, apontam que 16,5/1.0000 pessoas possuem a doença[14]. Tais dados alertam que a epilepsia deve ser encarada com seriedade e que se trata, sem sombra de dúvidas, de uma questão de política pública relevante.   A epilepsia é doença que possui tratamento com regulamentação própria pelo SUS, através da Portaria Conjunta nº 17, de 21 de junho de 2018, do Ministério da Saúde. Nesta portaria, estão estabelecidos os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas para diagnóstico, tratamento e acompanhamento dos indivíduos com esta doença. Dentre as medicações fornecidas pelo SUS para tal enfermidade estão: carbamazepina, clobazam, clonazepam, levetiracetam, etossuximida, fenitoína, fenobarbital, gabapentina, topiramato, lamotrigina, vigabatrina, ácido valproico e primidona[15]. Ocorre que tais medicações podem apresentar diversos efeitos colaterais, tendo como principais, por exemplo: ácido valproico/valproato de sódio, que pode causar tremor, alterações da função do fígado, diminuição das plaquetas, ganho de peso e queda de cabelos; já o carbamazepina pode causar náusea, vômitos, problemas para caminhar, transtorno de memória; o fenobarbital: tontura, depressão, mudança no comportamento, transtornos de memória e de concentração[16]. Além de todos esses efeitos colaterais, as medicações que são fornecidas pelo SUS têm, por muitas vezes, se mostrado insuficientes para a cura/melhora dos pacientes que apresentam epilepsia, sendo tal doença considerada refratária- difíceis controle medicamentoso. Apesar de ter um arsenal de diversos fármacos disponíveis para tratamento, estima-se que cerca de 30% dos pacientes sejam refratários, que continuam a ter crises epiléticas, sem remissão, apesar de tratamento adequado com medicamentos anticonvulsivantes[17]. Na definição proposta pela International League Against Epilepsy, as epilepsias resistentes a tratamento são aquelas em que ocorre falha de resposta ao adequado  ensaio clínico com dois anticonvulsivantes tolerados e apropriadamente usados (seja como monoterapia ou em combinação) para alcançar remissão de crises de modo  sustentado.[18] Em virtude disso, o campo científico tem buscado outras alternativas ao tratamento, visando sempre atender a três critérios: risco de recorrência de crises, consequências da continuação de crises para o paciente e eficácia e efeitos adversos do fármaco escolhido para o tratamento[19]. Diante de tal cenário, uma nova medicação vem ganhando destaque, que são a base de canabidiol, oriundo da Cannabis Sativa.O canabidiol (CBD) apresenta um mecanismo de ação distinto dos fármacos anticonvulsivantes convencionais e, a princípio, têm efeitos colaterais bem tolerados pelos pacientes[20], principalmente pela ausência de efeitos psicóticos e risco de desenvolvimento de dependência típicos do Δ-9tetraidrocanabinol (THC). Estudos apontam que medicações à base de Canabidiol têm sido eficazes na melhora na frequência, duração e gravidade das crises epilépticas e, em alguns casos, há remissão total da doença, sendo considerada uma boa alternativa aos tratamentos tradicionais, até mesmo por que seus efeitos colaterais são menores (sem alterações psicosensoriais, baixa toxibilidade e alta tolerabilidade).   Podemos citar o experimento de Cunha[21], que avaliou numa primeira fase o uso do canabiol em pacientes saudáveis, sem alterações nos exames clínicos e laboratoriais. Todos os pacientes e voluntários toleraram CBD muito bem e nenhum sinal de toxicidade ou efeitos colaterais graves foram detectados no exame. 4 dos 8 indivíduos com CBD permaneceram quase livres de crises convulsivas ao longo do experimento e 3 outros pacientes demonstraram melhora parcial em sua condição clínica. O CBD foi ineficaz em apenas 1 paciente. A condição clínica de 7 pacientes com placebo permaneceu inalterada, enquanto a condição de 1 paciente melhorou claramente. Outro estudo interessante foi de Hess[22], que analisou a eficácia, segurança e tolerabilidade do canabidiol junto aos pacientes portadores de complexo de esclerose tuberosa- TSC (que é um distúrbio genético, sendo sua maior manifestação neurológica através da epilepsia, afetando certa de 85% dos pacientes dos quais 63% desenvolvem epilepsia resistente ao tratamento). Como resultado, verificou que houve uma redução para 50% nas crises convulsivas, após 3 meses de tratamento, com uso de canabidiol. Em ambos estudos- Cunha e Hess, os pacientes continuaram a tomar os medicamentos antiepiléticos prescritos antes dos experimentos. Estudo mais recente, foi realizado por Dr. Orrin Devinsky, médico da New York University School of Medicine, que foi autorizado pela Food and Drug Administration (FDA), sendo conduzido um estudo aberto com um produto contendo 98% de CBD, cujo nome comercial é Epidiolex fabricado pela GW Pharmaceutical, em crianças com epilepsias raras, com 2 anos de idade ou mais, associada com síndrome de Lennox-Gastaut e síndrome de Dravet. A síndrome de Dravet é uma disfunção genética rara do cérebro que começa no primeiro ano de vida. Já a síndrome de Lennox-Gastaut (LGS) é uma forma de epilepsia com múltiplos tipos de convulsões que começam na primeira infância, geralmente entre 3 e 5 anos.[23] Mais de 500 pacientes com Dravet e LGS participaram de estudos clínicos da referida medicação por 14 semanas. Os participantes dos estudos geralmente falharam em 4 a 6 medicamentos convulsivos anteriores[24].  93% dos pacientes estavam tomando pelo menos 2 outros medicamentos para convulsões durante o estudo, porém suas crises ainda não eram controladas. Clobazam, valproato e estiripentol foram os mais comuns.  O epidiolex, tomado junto com outros medicamentos, mostrou-se eficaz na redução da frequência de crises quando comparado ao placebo. Pacientes com Dravet, tiveram uma redução de 39% das convulsões contra 13% daqueles que tomaram placebo (dados mensais) e 7% dos pacientes que tomaram, não relataram mais convulsões, em comparação com 0 pacientes que receberam placebo[25]. Os pacientes com LGS, tiveram uma redução de 42% das convulsões contra 17% daqueles que tomaram placebo (dados mensais) e 7% dos pacientes que tomaram a droga não relataram mais convulsões, em comparação com 1% dos pacientes que receberam placebo[26]. Os efeitos colaterais mais comuns do epodiolex incluem sonolência, diminuição do apetite, diarreia, aumento das enzimas hepáticas, sensação de cansaço e fraqueza, erupção cutânea, problemas de sono e infecções.   Em janeiro de 2015, o Canabidiol (CBD) deixou de ser substância de uso proscrito (F2) no Brasil, sendo reclassificada pela ANVISA, para ser incluída na lista C1 da Portaria 344/98- substâncias reconhecidas e controladas pela agência. Ocorre que o canabidiol não consegue ser isolado totalmente de outros canabidiódes que são proibidos no Brasil, tais como o THC, embora estejam em quantidades menores. Assim, a ANVISA, por meio da Resolução – RDC nº 66, de 18 de março de 2016, permitiu a importação, em caráter de excepcionalidade, por pessoa física e para uso próprio de substâncias que contenham canabidiol (CBD) e/ou tetrahidrocannabinol (THC)- apesar desta ser de uso proscrito no Brasil, para tratamento de saúde, mediante prescrição médica, desde que as concentrações não seja superior a 30 mg, de cada uma[27]. Por outro lado, o Conselho Federal de Medicina, através de sua Resolução 2.113 de 30 de outubro de 2014, aprovou o uso compassivo para o uso do canabidiol para tratamento, exclusivo, de pacientes com epilepsia refratária aos tratamentos convencionais, na infância e adolescência. Tal determinação restringiu a área de neurologia e psiquiatria. Um dado curioso é que a prevalência da epilepsia, nos países desenvolvidos, aumenta proporcionalmente com o aumento da idade. Já nos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, geralmente atinge seu ápice na adolescência e na fase adulta[28]. Pode-se concluir que os adultos acabaram sendo prejudicados na referida resolução. No ano de 2017, a ANVISA aprovou o registro da medicação Metavyl,  que é um fármaco derivado do CBD e THC, com indicação apenas para esclerose múltipla.Todavia, o Mevatyl não é indicado para o tratamento de epilepsia, pois o THC, uma de suas substâncias ativas, possui potencial de causar agravamento de crises epiléticas[29]. Assim, em tese, os portadores de epilepsia dependem necessariamente da importação dos produtos de CBD, face a ausência de fármacos autorizados/registrados no Brasil. Consulta feita junto à ANVISA[30], os pedidos de medicações à base de canabidiol, entre os anos de 2016 a 2018 quadruplicaram, sendo 901 pedidos em 2016, 2.181 em 2017 e 3.613 em 2018. Nesta mesma pesquisa, a ANVISA informou quais eram as principais patologias que requisitaram medicações à base de canabidiol, entre os anos de 2016 a 2018, sendo o resultado alarmante, ficando a epilepsia no 1º lugar do ranking:     Apesar dos avanços paulatinos, em que vêm permitindo a importação de medicamentos à base de Canabidiol, até a presente data, nenhum medicamento foi incorporado pela União a lista do SUS. O alto índice de epilepsia refratária, que são resistentes a medicação disponível no sistema de saúde, bem como a eficácia do CBD, faz com que sejam repensadas as políticas públicas de saúde. Não se pode olvidar que a Constituição Federal, prevê que incumbe aos entes públicos envolvidos de cuidarem da saúde e assistência pública (art. 23), sendo a saúde um direito social de todos (art. 6º), cabendo ao Estado garantir, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art. 196). Além disso, no texto constitucional, em seu art. 198, I, fez previsão de que as ações e serviços públicos de saúde devem contemplar atendimento integral, não fazendo em nenhum momento restrição aos medicamentos ou forma de tratamento a serem utilizados. Por outro lado, para o sistema de saúde há reflexos em redução de custos, eis que pacientes com convulsões refratárias graves irão reduzir o número de internamento em hospitais e custos com ambulâncias, por exemplo[31].   CONCLUSÃO O canabidiol é um canabinóides que tem demonstrado sua eficácia como um anti-convulsivo. A medicina vem considerando o uso do CBD como uma alternativa viável aos tratamentos tradicionais fornecidos pelo SUS para os pacientes portadores de epilepsia. Apesar da evolução quanto a permissibilidade de aquisição de tais produtos, tal medida ainda é insuficiente, face aos diversos entraves burocráticos da importação. Por outro lado, mesmo com a importação, são medicações custosas à população, o que, por vezes, acaba sendo um fator impeditivo na sua obtenção, impossibilitando a concretização do princípio da dignidade humana, previsto constitucionalmente. O presente trabalho propõe então que o poder público repense nas suas políticas públicas, face às evidências demonstradas, analisando-se o custo x benefício do canabidiol, para que seja incluída no rol do SUS.
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Os Desenvolvimentos e Obstáculos Que a Inteligência Artificial Vem Enfrentando na Medicina e no Direito
RESUMO: Este artigo propõe uma reflexão das ideias apresentadas no primeiro dia do ‘’III Congresso Internacional de Biodireito e Desenvolvimento Tecnológico – A Interface entre o Direito e a Medicina’’ ocorrido na Universidade Presbiteriana Mackenzie, com um foco especial na inteligência artificial. O encontro teve por finalidade discutir como a tecnologia vem alcançando a área da saúde para propor soluções que facilitem o trabalho dos profissionais da saúde, e que ao mesmo tempo não venham a ser um entrave com equívocos médicos e tampouco um fermento de intervenções jurídicas.
Biodireito
INTRODUÇÃO No decorrer do último século, foi nítida a evolução da tecnologia e consequentemente das mudanças que ela trouxe para a sociedade em inúmeros aspectos. Na área da saúde, viu-se necessário o desenvolvimento dessa ciência, visto que a medicina tende a se aprimorar cada vez mais devido a sua importância e necessidade dentro do contexto global atual. Essa erupção de conhecimentos tecnológicos que foram dispostas aos médicos, principalmente nas áreas médicas-hospitalares e ambulatoriais, não deram intervalo de tempo suficiente para que estudos mais aprimorados e incisivos fossem realizados para uma completa regularização. Consequentemente, muitas dessas inovações médicas, ainda hoje, trazem questionamentos e desconfianças quanto a seguridade. A inteligência artificial é um dos apêndices que estão atingindo a medicina e o direito ao mesmo tempo. Para RICH (1988) a IA pode ser definida como ‘’o estudo de como fazer os computadores realizarem tarefas em que, no momento as pessoas são melhores.’’. Desse modo, compreende-se que essa tecnologia tem a capacidade de armazenar e manipular os dados e conhecimentos que são coletados, podendo gerar experiência com esses ‘’estudos’’. RICH SCHUTZER (1987) propôs um diagrama que visa exemplificar a relação dos componentes de funcionamento da inteligência artificial, como podemos ver na figura 1. Por ser uma inovação tecnológica que imerge em potenciais que desmembram o acompanhamento humano, há uma simulação do ser humano em seu funcionamento. Portanto há muitas questões éticas, morais, jurídicas e de segurança envolvidas nessa discussão, o que gera muitos desdobramentos. Entretanto, apesar desses reflexos trazidos pela rápida evolução científica, muitas importantes técnicas e máquinas foram desenvolvidas para a área médica. Durante esse artigo serão citadas algumas dessas grandes descobertas, que não apenas trouxeram um grande impacto positivo no que tange á praticidade de atendimentos médicos, quanto nos resultados econômicos que veem a trazer. De igual modo, FREITAS DRUMMOND (2007) aponta que as mudanças que a tecnologia proporciona na medicina podem ser tanto benéficas quanto nocivas á população como um todo, ‘’o setor saúde tem características peculiares que, de um lado o vincula intimamente ao desenvolvimento científico-tecnológico, gerando impactos na economia e na sociedade em geral e, de outro, promove consequências diretas sobre a saúde individual e na qualidade de vida das populações.’’ (FREITAS DRUMMOND, 2007, P.25)   A palestrante Kátia Galvane[2] teve por princípio discorrer em sua apresentação sobre o conceito de Data-Driven Intelligence, que nada mais é do que a inteligência baseada em dados. Entretanto, antes de se aprofundar nesse tema, Kátia recorre às premissas da tecnologia e ciência para chegar ao seu ponto de vista a favor do progresso científico. Em um país com a densidade demográfica que o Brasil possui (25.18 pessoas por km2), seria muito difícil oferecer atendimentos médicos específicos e de qualidade para todas as regiões, ainda mais para as áreas mais remotas do país. Muitas das vezes, pacientes com sintomas simples de serem decifrados e com casos muito comuns não tem condições, tanto econômica quanto de locomoção e tempo para conseguir uma orientação médica direta. Portanto, com a evolução tecnológica e a inteligência artificial pensou-se na criação de um mecanismo que pudesse dar suporte para as pessoas que necessitem de uma orientação médica simples que não requeresse uma visão próxima e aprofundada desses casos. Há uma diferença entre orientação médica e consulta médica que cabe citarmos. A orientação médica é o meio pelo qual uma pessoa pode tirar dúvidas sobre sintomas simples, remédios e receber auxílio em caso de situações emergenciais. Já uma consulta médica, segundo o CFM (Conselho Federal de Medicina) ‘’compreende a anamnese, o exame físico e a elaboração de hipóteses ou conclusões diagnósticas, solicitação de exames complementares, quando necessários, e prescrição terapêutica como ato médico completo e que pode ser concluído ou não em um único momento.’’ Portanto, a consulta médica não será feita a distância com o crescimento da tecnologia, mas a orientação sim. Data-Driven Intelligence é o conceito que une a inteligência artificial e o aprendizado de máquinas. Em outras palavras, LOBO (2007) define esse termo como: ‘’a inteligência artificial em medicina é o uso de computadores que, analisando um grande volume de dados e seguindo algoritmos definidos por especialistas na matéria, são capazes de propor soluções para problemas médicos.’’ (LOBO, 2007, p.187). Esse sistema vem ajudando a área da saúde a ser mais imediata, já que facilita tanto a vida dos pacientes quanto dos médicos. Vemos as seguintes aplicações da IA na saúde: A cirurgia robótica é uma das gigantes inovações da Inteligência Artificial e que vem sendo usada nos hospitais mais modernos do mundo. Essa técnica consiste na substituição das mãos humanas para a realização de procedimentos cirúrgicos. Há um dispositivo de câmera que realiza a movimentação e visão do médico, e um dispositivo motor que é responsável pelo instrumental cirúrgico que o médico irá simular como se tivesse realizando a cirurgia na pessoa, porém em um outro ambiente. O uso de impressoras 3D na área médica é também uma grande descoberta. Hoje em dia é possível ‘’imprimir’’ órgãos humanos de protótipos com características muito reais e similares às humanas, e portanto, realizar transplantes de órgãos e demais usos que substituam a utilização de órgãos realmente humanos. Essas impressoras utilizam células (retiradas de cada paciente e multiplicadas por células-tronco) para imprimir órgãos que sejam necessários. Outra, e não menos importante novidade que a tecnologia nos proporcionou foi a Telemedicina, que é uma especialidade médica que oferece serviços e assistência médica a distância por meio da tecnologia. Ela tem grande importância nos dias atuais devido a praticidade e rapidez, além de ser muito benéfica para as instituições de saúde e para os pacientes. A prontidão de ter um robô para auxiliar com perguntas básicas que podem ser resolvidas de maneiras simples e pode diminuir os atendimentos em hospitais, além de evitar a exposição de pessoas a um pronto-socorro que pode conter diversas doenças virais no ambiente. É oportuno lembrar que a telemedicina, apesar de benéfica, não substitui o tradicional atendimento médico, porem é uma potente ferramenta para os médicos. FREITAS DRUMMOND (2007) ainda salienta que ‘’as tecnologias modernas só estarão plenamente justificadas se estiverem condicionadas a uma efetiva melhoria da qualidade de vida e da saúde do ser humano, e não representar uma forma de dominação e usurpação da cultura médica pela máquina ou, ainda, pela submissão do paciente à ideologia do cientificismo ou à lógica de mercado, que contribuem para a ampliação dos lucros da indústria da saúde, enquanto se olvida de avaliar prudentemente a relação entre custo, riscos e os possíveis benefícios a serem auferidos pelo paciente.’’ (FREITAS DRUMMOND, 2007 p.31) Cabe citar também um elemento da tecnologia que se imerge em todos as questões tecnológicas: os dados. Na área da saúde, os dados são fundamentais pois são através deles que são compiladas todas as informações de pacientes, casos, sintomas, soluções, etc. Desse modo, quando se sabe, por exemplo, em que bairro certo doença é mais predominante; qual o sexo, faixa etária que mais contraí esse tipo de doença, cria-se uma reunião de informações que serão extremamente úteis para dar orientações para um paciente. A isso damos o nome de Data Science, que é o ato de reunir dados adjacentes à tomada de decisões, enriquecendo os dados para fazer análises assertivas. Ainda sobre Data Science, segundo CURTY (2008) ‘’Como resultado destas transformações na ciência e no mundo dos negócios, e como forma de responder às demandas existentes, observamos a expansão de uma área de estudo, relativamente recente, interdisciplinar e intensivamente computacional: a ciência de dados (data science). A ciência orientada a dados se vale do potencial de robustas ciberinfraestruturas de informação e comunicação, incluindo tecnologias de grids, e padrões que possibilitam a interoperabilidade e a interligação de dados (linked data) (…) para a resolução de problemas práticos e reais.’’ (CURTY 2008, p.1) Todavia, ao se pensar sobre esses dados e o amparo que exercem na medicina, é aberta uma discussão: qual a confiabilidade para se apoiar nos resultados desses compilados de dados? SABBATINI (1993) explica um dos motivos pelos quais é tão difícil confiar 100% nos dados coletados para a medicina: ‘’Um dos obstáculos ao maior uso de sistemas de apoio à decisão médica é a dificuldade em se criar e atualizar a base de conhecimentos. Muitas das tarefas associadas à decisão são de difícil sistematização e caem no domínio do que chamamos problemas mal definidos, ou seja, que não podem ser expressos por formalismos matemáticos, estatísticos ou lógicos.’’ (SABBATINI 1993, p.6) Na contramão das diversas dificuldades que o sistema de dados enfrentem, devemos nos atentar que os dados são o novo petróleo, é um ‘’mineral’’ muito valioso que se não for refinado não vale ser usado. Isto é, os dados podem ser usado para inúmeros fins que podem trazer benefícios, entretanto, se esses dados não forem analisados, enriquecidos e monitorados, para nada serve eles. É necessária que dados coletados sejam utilizados com muita sabedoria e inteligência. LOBO (2007) vê o uso dos dados como uma potencial faísca para fermentar um avanço na medicina, pois segundo ele, ‘’Um sistema único e padronizado de dados em saúde poderia ser o trunfo essencial a garantir a qualidade da atenção prestada em saúde no Brasil.’’ (LOBO, 2017, p.190). É claro o ponto evolucionista que Lobo enxerga desse elemento. Ao se compartilhar dados para a comunidade ética, muita informação pode ser extraída de casos, e portanto, gerar proveitos acima disso. Muitos autores, tanto nas áreas médicas, quanto na área jurídica defendem o uso de dados para fortalecer a tecnologia. DONEDA ET AL (2018) acreditam que ‘’A utilização de dados pessoais para alimentar os novos sistemas de inteligência artificial e a sua utilização para tomar decisões proporcionam uma acurácia bastante significativa para um número crescentes de aplicações.’’ (DONEDA ET AL, 2018, p.3) Por fim, há um exemplo prático que apoia uma defensa ponderada da tese que a Data-Driven Intelligence é promissora: o trabalho das enfermeiras. Em uma pesquisa realizada pela sua empresa em um hospital privado de classe média-alta de São Paulo, verificou-se que as enfermeiras estavam realizando 70% de atendimentos não assistências, que são aquelas tarefas que não são expressivamente urgentes e não necessitam de uma comunicação presencial do profissional como pedir uma água, tirar dúvidas e etc. Assim, apenas 30% dos atendimentos realizados pelos enfermeiros se tratavam de questões assistenciais. Percebeu-se, dessa forma, que um robô poderia substituir essas funções meramente simples e assim facilitar a vida dos enfermeiros e aumentar a disponibilidade deles para inquisições que necessitem a presença deles. Portanto, foi criado um robô-aplicativo que fica nos quartos hospitalares e que atende as questões não assistências, e até então esta demonstrando sucesso e trazendo diversos benefícios para o hospital em questão. O sistema de inteligência artificial, dessa maneira, além de trazer rapidez em análises liberou o tempo dos enfermeiros, podendo esses exercerem funções assistenciais.   Samanta Dall’ Agnese[3] resgata as ideias expostas anteriormente por Kátia Galvane para observa-las sob a ótica de um profissional da saúde, e saber na prática, como a tecnologia está impactando no dia-a-dia do médico. Levando-se em conta o que foi observado, como o relato é feito por uma médica, é possível extrair por meio de sua fala se a intervenção da tecnologia está auxiliando positivamente o trabalho deles. Para sustentar a tese de que a tecnologia está contribuindo a área médica podemos citar um desafio que é enfrentado todos os dias nos hospitais: a gestão de espaço do centro cirúrgico. O centro cirúrgico de um hospital pode ser visto como uma das áreas mais complexas dentro meio hospitalar. Isso porque, para que essa unidade funcione com excelência é necessária uma boa gestão, pois é necessária muita cautela e atenção em vários aspectos logísticos para alocar procedimentos e profissionais em uma área muito inesperada que funciona 24 horas por dia nos sete dias da semana. Como título de exemplo, podemos citar cirurgias que tiveram complicações e ultrapassaram o tempo que era planejado, ou até uma cirurgia que foi necessária médicos de outras áreas durante o procedimento. DUARTE ET AL (2006) apontam que ‘’o bom desempenho de um centro cirúrgico está diretamente relacionado com a qualidade de seus próprios processos e com os processos dos serviços que o apoiam, como consequência de uma combinação entre instalações físicas, tecnologia e equipamentos adequados, operados por mão de obra habilitada, treinada e competente.’’(DUARTE ET AL, 2006, p.64). Os autores médicos entendem que, para que haja um funcionamento prático e funcional de um centro cirúrgico, diversos fatores são colocados na balança, e no final acabam dependendo da tecnologia. Portanto, um programa foi desenvolvido para que organizasse a dinâmica e disposição das cirurgias nos centros cirúrgicos. Consequentemente percebeu-se que a rotina cirúrgica se tornou mais prática com uso desse sistema e evitou diversos entraves que pudessem acontecer diante da movimentada área. Samanta também usa como exemplo de evolução tecnológica na medicina o uso de aplicativos que auxiliam no exame dos pacientes, principalmente para a área em que é especialista, a Medicina do Sono. A Polissonografia é um exame médico realizado em pacientes que possuem distúrbios de sono, como a apneia. O exame consiste no paciente ir até uma clinica passar a noite com aparelhos que vão monitorar a qualidade do sono. Entretanto, o fato de ter que dormir em uma clínica pode atrapalhar a realização do exame, e consequentemente o resultado do exame. Desse modo foi criado um aplicativo que faz esse monitoramento pelo próprio celular do paciente sem ter que sair do conforto de sua casa. Todos esses exemplos de inovações tecnológicas aplicadas na saúde tem um significante impacto também na economia. FREITAS DRUMMOND (2007) salienta que ‘’Os estudiosos da economia da inovação têm apontado para uma relação estreita entre ciência e tecnologia no setor saúde, cujo desenvolvimento tem propiciado melhoria tanto na quantidade quanto na qualidade de tratamentos e nos métodos de diagnóstico, embora esta relação seja, concomitantemente, responsável pela elevação dos custos da assistência médica.’’ (FREITAS DRUMMOND, 2007 p.29). Por conseguinte, Albuquerque et al promovem uma dicotomia para analisar o efeito da economia inserido na evolução da tecnologia. Por um lado os autores esclarecem que a saúde deve ser vista como um fator mundial que necessita de constantes pesquisas de aprimoramento, e por outro lado resgata a necessidade de avigoramento de incentivos a pesquisas científicas em países em desenvolvimento, não podendo esses estarem distantes do avanço tecnológico. A medicina deve ter uma visão otimista da tecnologia, e não pessimista. Os médicos não podem ter uma postura passiva da ascensão científica e ficarem vendo essas mudanças acontecendo sem medir esforços, sendo assim necessária uma abordagem ativa desses para se atentarem das mudanças e consequentemente estuda-las e aplica-las. O desejo que os médicos devem ter diante do atual cenário tecnológico é de que essas novidades possam criar ferramentas científicas para ajudar a gerir melhor as instituições médicas. LOREZENTTI ET AL (2012) reconhecem o ceticismo por parte da turma médica quanto a tecnologia: ‘’O setor saúde (…) tem sido sensível à incorporação tecnológicas do tipo material, para fins terapêuticos, diagnósticos e de manutenção da vida, utilizando os conhecimentos e produtos da informática, novos equipamentos e materiais , mas tem sido menos agressivo na utilização de inovações do tipo não material, em especial das inovações no campo da organização e relações de trabalho.’’ (LORENZETTI ET AL, 2012 p.436). É notável pela síntese do autor a ceticismo dos médicos nas inovações em suas áreas. Todavia, é necessário um panorama muito mais confiante tendo em conta todos os saldos que retornam pelo uso de tecnologias que facilitem o trabalho dos médicos. Essas inovações, isto posto, devem ser enxergadas como sendo algo que aproxima os médicos dos pacientes (e não que os afaste) propiciando um ofício mais eficiente da medicina.   Lara Rocha Garcia[4] discorre das barreiras que a Inteligência Artificial vem entretanto no que tange ás questões legais e regularização nos países. Com a ascensão da IA nos diversos setores, muitas empresas viram uma grande oportunidade de investimento para que em um futuro não distante essa tecnologia possa ser aplicada em suas instituições. Entretanto, por ser uma realidade contemporânea, os países não possuem um regimento que controle e limite a Inteligência Artificial. A Comissão Europeia foi a primeira a dar um passo a frente no quesito legal. Em 2019 apresentou as diretrizes para o desenvolvimento e implementação de padrões éticos de Inteligência Artificial. Dentro as principais normas formuladas, destacam-se: – Intervenção e supervisão humana: os sistemas de IA devem possibilitar sociedades equitativas, apoiando a ação humana e os direitos fundamentais, e não diminuir, limitar ou desorientar a autonomia humana. – Robustez e segurança: a IA confiável requer que os algoritmos sejam seguros, confiáveis e robustos o suficiente para lidar com erros ou inconsistências durante todas as fases do ciclo de vida dos sistemas de IA. – Privacidade e governança de dados: os cidadãos devem ter controle total sobre seus próprios dados, para que não sejam usados para prejudicá-los ou discriminá-los. – Transparência: a rastreabilidade dos sistemas de IA deve ser assegurada. – Diversidade, não discriminação e equidade: os sistemas de IA devem considerar toda a gama de habilidades e requisitos humanos, garantindo a acessibilidade. – Bem-estar social e ambiental: os sistemas de IA devem ser usados para melhorar a mudança social positiva e aumentar a sustentabilidade e a responsabilidade ecológica. – Prestação de contas: mecanismos devem ser colocados em prática para garantir a responsabilidade pelos sistemas de IA e seus resultados. Entende-se, pelas diretrizes que a Comissão Europeia publicou, que a há um reconhecimento que a Inteligência Artificial é irrefreável e que vai mudar o bem estar social das pessoas e deve interferir em 3 componentes: legal, ético e sólido. No quesito legal, a IA deve ser pautada nos direitos legais e na legislação que cada país segue; Na ética deve haver uma prática dos princípios constitucionais e no sólido resgata o tópico quanto a segurança tecnológica. Não obstante, todos esses quesitos são apoiados em alguns imperativos importantes: o respeito á autonomia humana, a prevenção de danos, a equidade  e a explicabilidade. Como bem citado por DONEDA ET AL (2018), ‘’O debate sobre robôs inteligentes, cada vez mais, importa para o Direito. Conceder à máquina uma personalidade jurídica autônoma, nem que seja para dotá-la de patrimônio para compensar eventuais danos, é uma solução que desponta seriamente no horizonte. Todavia é importante ir além da dinâmica da responsabilidade civil e investigar o que significa dotar robôs inteligentes de personalidade à luz do ordenamento jurídico.’’ (DONEDA ET AL, 2018, p.9). No Brasil, assim como em muitos outros países, não há ainda uma regulamentação incisiva quanto ao progresso e implementação de IA. Da mesma forma, o uso dessa ferramenta tecnológica apesar de benéfica deve ser acompanhada de ordenações que determinem até onde ela pode chegar. DAMILANO (2019) aponta que ‘’o uso da IA deve ser regulamentada internacionalmente para fixar padrões e limites ao seu uso, resguardando os direitos humanos e fazendo com que a máquina de fato seja utilizada para ajudar e servir aos seres humanos e não torná-los escravo dela.’’ (DAMILANO, 2019, p.17) Na área da medicina, a Inteligência Artificial vem sendo aplicada por robôs em diversos setores. Um dos mais polêmicos uso da IA na medicina se da pelo uso do Symptom Checker, pois trás diversos pontos de vista quanto a confiabilidade desse dispositivo e os possíveis resultados legais de um mau uso deste. O Symptyom Checker consiste no uso de programas que podem aprender através de dados médicos, livros técnicos, diagnósticos, pesquisas e artigos vários padrões e casos para a tomada de uma decisão. Ao analisar um novo caso, este analisa todos esses dados ‘’estudados’’ e coletados para chegar a um diagnóstico. Ou seja, é um ‘’robô médico’’ que pode analisar pacientes e possivelmente prescrever remédios para tal problema. No entanto, ainda há muitas lacunas a serem resolvidas antes de uma implementação de fato da Inteligência Artificial na área da medicina. LORENZETTI ET AL (2012) citou muito bem algumas etapas necessárias para chegar a um melhor aproveitamento dessa tecnologia: ‘’Faz-se necessário desenvolver, fortalecer, aplicar e exigir que as tecnologias e inovações tecnológicas sejam submetidas permanentemente a critérios éticos para evitar e/ou minimizar as maleficências das mesmas.’’ (LORENZETTI ET AL, 2012, p.438) A ética no uso da Inteligência Artificial interage tanto com a esfera jurídica quanto aos sujeitos que as utilizam. DONEDA ET AL (2018) veem que ‘’O recurso a elementos éticos pode ainda proporcionar a possibilidade de considerar com o devido cuidado situações que ainda não possam ser efetivamente objeto de regulação ou de atuação direta de institutos jurídicos, mas que, seja pela importância dos sujeitos e valores envolvidos, seja pelos seus potenciais efeitos, demandam uma resposta ágil e ponderada sobre opções a serem tomadas.‘’ (DONEDA ET AL, 2018, p.15).   CONCLUSÃO De acordo com RIBEIRO (2008), ‘’a inteligência artificial é uma ciência multidisciplinar que busca desenvolver e aplicar técnicas computacionais que simulem o comportamento humano em atividades específicas” (RIBEIRO 2008, p.8). Na medicina, entretanto, o fato de ‘’simular o comportamento humano’’ ainda é uma realidade que carrega muitas inconveniências de diversos lados. É possível confiar em um robô ? Quem responde pelas atitudes de uma inteligência não-humana? O quão longe essa inteligência pode chegar ? A área médica, apesar de indagar todas essas questões, não pode considerar que evolução da tecnologia na medicina seja um problema, pois diante de todos os tópicos trabalhados do decorrer desse trabalho tem-se uma visão mais confiante do assunto. COIERA (1998) cita que ‘’uma das tarefas mais importantes que os desenvolvedores de sistemas baseados na IA enfrentam hoje é caracterizar de forma acurada os aspectos da prática médica que são mais adequados para a introdução de sistemas inteligentes.’’. O autor ressalta a dificuldade que a tecnologia enfrenta em caracterizar de forma acurada os casos por ser um sistema que se desenvolve diariamente. Devido a falta de parâmetro que a Inteligência Artificial vem tomando nos dias atuais, podemos considerar que ela ainda irá gerar uma série de diligências mundiais que visaram estabelecer diretrizes éticas que possam regular a direção dessa fatia da tecnologia. Acredita-se que com essas futuras e efetivas padronizações, a IA poderá ser segura, no que diz respeito a supervisão do ser humano, a confiabilidade dos dados e algoritmos sendo usados, e acima de tudo isso, o controle e acesso pelas pessoas que utilizem. Por fim, as diversas áreas englobadas estão em constate interação com o direito, e por isso não devem ser considerados isoladamente, mas sim, suas relações de interdependência -mesmo que essas sejam heterogêneas-. Assim, tanto a evolução da tecnologia e suas divisões quanto ao desenvolvimento da inteligência artificial (principalmente na medicina) são permeados por essa relação estreita com o direito, e é essa associação que faz com que ambos os conceitos se preservem com importância e ao mesmo tempo se modernizem.
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A Função Socio-Ambiental do Direito à Propriedade
RESUMO
Biodireito
INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objeto a função socioambiental do direito à propriedade. Desatendida esta, inexistente direito de propriedade amparado pela Constituição Brasileira. Desta forma, o cumprimento da função social é condição sine qua non para o reconhecimento do direito em tela. Para tanto, o artigo está dividido em três itens. No primeiro tratando do Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado, seguido da Função Socioambiental do Direito à Propriedade, e por último, trata dos importantes instrumentos de Proteção ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado. Assim, neste trabalho aborda-se o conceito de direito de propriedade com adição da função social e ambiental, ou seja, enfatiza-se o seu caráter coletivo. Vale dizer, que “sobre toda a propriedade privada pesa uma hipoteca social” e que deixa de ser individual e egoísta e passa a ter o fim primeiro de ser um meio de crescimento de toda a sociedade. Entretanto, a faceta privatista permanece, continua o proprietário com todos os seus direitos (usar, gozar, dispor e persegui-la de quem quer que injustamente a detenha). A adequação do direito e seus institutos aos novos anseios sociais é importante para a sua própria existência, não fosse assim, ter-se-ia que conviver com um direito fossilizado, feito para os mortos, inservível para a sociedade.  A sociedade contemporânea, com suas necessidades e em constante mutação, anseia por um direito plástico, que regule situações passadas e presentes, não hermético. Dentro dessas atuais necessidades sociais destaca-se a necessidade de assegurar-se de um meio ambiente equilibrado, propicio à sadia qualidade de vida a operar como princípio informador de todo o ordenamento jurídico. O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as Considerações Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões sobre a função socioambiental do direito à propriedade. Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase de Investigação[4] foi utilizado o Método Indutivo[5], na Fase de Tratamento de Dados o Método Cartesiano[6], e, o Relatório dos Resultados expresso no presente Artigo é composto na base lógica indutiva. Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as Técnicas do Referente[7], da Categoria[8], do Conceito Operacional[9] e da Pesquisa Bibliográfica[10].   1. Meio ambiente Ecologicamente Equilibrado O contexto ambiental é cada vez mais relevantes no ordenamento jurídico brasileiro, tendo a matéria relação aos inúmeros acontecimentos históricos no mundo. No Brasil, por exemplo, podemos citar que as questões ambientais já estavam relacionadas, inclusive, antes da própria independência brasileira, quando na oportunidade postulou-se maior controle para extração do pau-brasil, demostrando assim preocupação com o futuro. A classificação dos direitos fundamentais em três gerações (dimensões) obedece ao critério histórico dos direitos, ou seja, à ordem cronológica que eles foram sendo conquistados. Tem-se por direito de 1ª geração[11] (liberté), ou direitos negativos por conterem uma proibição ao Estado. Simplificadamente, trata-se de impor ao Estado obrigações de não-fazer. Exemplos deles são os direitos à liberdade, igualdade e propriedade. Daniel  Sarmento,  nesse   particular,   assere: Dentro deste paradigma, os direitos fundamentais acabaram concebidos como limites para a atuação dos governantes, em prol da liberdade dos governados. Eles demarcavam um campo no qual era vedada a interferência estatal, estabelecendo, dessa forma, uma rígida fronteira entre o espaço da sociedade civil e do Estado, entre a esfera privada e a pública, entre o ‘jardim e a praça’.  Nesta dicotomia público/privado, a supremacia recaía sobre o segundo elemento do par, o que decorria da afirmação da superioridade do indivíduo sobre o grupo e sobre o Estado. Conforme afirmou Canotilho, no liberalismo clássico, o ‘homem civil’ precederia o ‘homem político’ e o ‘burguês’ estaria antes do ‘cidadão’.  (…) No âmbito do Direito Público, vigoravam os direitos fundamentais, erigindo rígidos limites à atuação estatal, com o fito de proteção do indivíduo, enquanto no plano do Direito Privado, que disciplinava relações entre sujeitos formalmente iguais, o princípio fundamental era o da autonomia da vontade”.[12] Os direitos de 2ª geração[13] (egalité), positivos por importarem em uma obrigação de fazer pelo Estado. Tais direitos podem ser listados como os de saúde, educação e segurança. Por sua vez, os direitos de 3ª geração (fraternité) e também chamados de transindividuais são aqueles que pertencem a todos, mas nunca a uma só pessoa, são eles o direito   ao   meio   ambiente ecologicamente   equilibrado, direito   à   paz, ao   desenvolvimento, direitos   dos consumidores, etc. Alguns autores referem a existência de direitos fundamentais de 4ª geração. Segundo João Trindade Cavalcante Filho ainda não há consenso na doutrina sobre qual o conteúdo desse tipo de direitos.  Há quem diga tratarem-se dos direitos de engenharia genética (é a posição de Norberto Bobbio), enquanto outros referem à luta pela participação democrática (corrente defendida  por  Paulo Bonavides). Outros ainda falam em direito de 5ª e 6ª gerações, assunto que não abordaremos por não consistir em objetivo do presente trabalho. Dentro desta classificação, trabalha-se com o direito de 3ª geração. A construção do conteúdo da função ambiental da propriedade está inserida no macro conceito “função social da propriedade” que parte da própria Constituição Federal, especificamente nos dispositivos contidos no Capítulo I do Título II (dos direitos e deveres individuais e coletivos), do Capítulo I do Título VII (dos princípios gerais da atividade econômica), do Capítulo III do Título VII (da política agrícola e fundiária e da reforma agrária) e do Capítulo VI do Título VIII (do meio ambiente). O Código Civil Brasileiro o artigo 1.228, § 1o, traz o seguinte:  (…) § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. § 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.[14] Ainda assim, como visto alhures, a Constituição Federal Brasileira não conceituou o que chamou de função social da propriedade, de modo que se intui ter o legislador constituinte, no afã de construir uma constituição forte, deixado de engessar institutos a par de promulgar um documento histórico e ao mesmo tempo, propiciando à sociedade o preenchimento dos conceitos de acordo com o seu tempo. Environmental principles also offer a different kind of legal hope for environmental law scholars, adding another dimension to their popularity as legal concepts. Rather than offering legal solutions to environmental problems, environmental principles offer legal solutions to legal problems in environmental law. In this alternative sense, environmental principles can perform an important function in representing new norms that are emerging within and across legal systems.[15] Para João Trindade Cavalcante Filho[16], o movimento constitucionalista atual busca, dentre outros objetivos, o desenvolvimento econômico e ambiental. Desta forma, impossível se apresenta a concretização de um direito dissociado da necessária preservação ambiental, ao passo de chegar-se à conclusão que é da essência do sistema brasileiro que o direito de propriedade só seja reconhecido pela ordem jurídica do Estado se for cumprida a função social, dentro dela a função ambiental. Contudo, é possível concluir que a disciplina do direito de propriedade é uma simbiose de normas de direito privado e público, em que este último implica em uma limitação daquele[17]. Assim, repita-se, a propriedade só existe enquanto direito se respeitada a sua função social ambiental. Desatendida esta não existe direito de propriedade amparado. O cumprimento da função social é condição sine qua non para o reconhecimento do direito de propriedade. Nesta senda, quando se diz que a propriedade privada tem uma função social ambiental, na verdade está se afirmando que ao proprietário se impõe o dever de exercer o seu direito de propriedade, não mais unicamente em seu próprio e exclusivo interesse, mas em benefício da coletividade, sendo precisamente o cumprimento da função ambiental que legitima o exercício do direito de propriedade pelo seu titular. Nesses termos, ao estabelecer no art. 186, II, que a propriedade rural cumpre a sua função social quando ela atende, entre outros requisitos, à preservação do meio ambiente, na realidade, a Constituição Brasileira está impondo ao proprietário rural o dever de exercer o seu direito de propriedade em conformidade com a preservação da qualidade ambiental. E isto no sentido de que, se ele não o fizer, o exercício do seu direito de propriedade será ilegítimo. Tal interpretação decorre diretamente do texto constitucional de 1988, vindo – mais tarde- ser previsto no direito privado através de previsão constante do Código Civil Brasileiro de 2002. Com a evolução dos direitos e a emergência de categorias como os direitos coletivos, os interesses da sociedade como um todo, mesmo que seus titulares não possam ser individualizados, devem prevalecer sobre os interesses dos particulares que, desta maneira, precisam ser adaptados às características do momento atual. In the other hand, also is understood that the State dominate environmental law because of the need for a comprehensive exercise of authority in response to a collective action problem within any jurisdiction. [18] Assim, na tentativa de conceituar a função social da propriedade, em sentido amplo, pode-se tê-la como a riqueza econômica que se destina imediatamente às necessidades sociais e mediatamente aos interesses do proprietário. No entanto, muitos doutrinadores e principalmente a jurisprudência ainda não têm clara quais são as características do direito de propriedade incompatíveis com a proteção do meio ambiente. Talvez pela formação eminentemente civilista que se recebe[19]. Outros não são sensíveis às necessidades da sociedade contemporânea e insistem em seguir atribuindo aos proprietários as faculdades que eles tinham nos dois últimos séculos (XVII e XIX). Ou têm consciência sobre a inadequação do exercício do direito de propriedade como está disposto no Código Civil Brasileiro, mas não se sentem seguros sobre o que e como redefinir para atender ao interesse difuso de proteção ambiental. Não obstante, a propriedade só poderá existir enquanto direito se for respeitada a sua função social na sua faceta ambiental. Desatendida esta não existe direito de propriedade amparável, seja pela Constituição, seja pela lei civil. Portanto, com o intuito de esclarecer a coexistência entre o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, corolário do direito à vida, juntamente com o direito real à propriedade privada, objetivou-se analisar duas frentes do direito, quais sejam, a de direito público e de direito privado para extração da posição prevalente sob a luz dos mecanismos de interpretação das leis. Sob a ótica do direito eminentemente privado o instituto propriedade não mais é o mesmo. O Código Civil Brasileiro de 2002, em seu artigo 1.228, parágrafo primeiro, assevera que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”. Por seu turno, o direito público brasileiro, capitaneado pela Constituição de 1988 é categórico em afirmar que “a propriedade atenderá a sua função social”, ex vi legis do art. 5º, XXIII, da CF e que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e a coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, art. 225, caput, da CF. Dentro do arcabouço de direito público, tem-se, ainda, as normativas de direito ambiental que densificam a proteção ambiental, tais preceitos legais podem ser visitados no Código Florestal, Lei dos Recursos Hídricos, Lei dos Crimes Ambientais e instruções normativas do CONAMA, dentre outros.   2. A Função Socioambiental do Direito à Propriedade A sociedade contemporânea, com suas necessidades de manutenção de um meio ambiente equilibrado, propício à sadia qualidade de vida, vem transformando, aos poucos, a concepção privatista do direito de propriedade em direção à propriedade como sendo um direito-dever e enxergando o meio ambiente como bem jurídico autônomo e direito fundamental do homem. O meio ambiente foi reconhecido como bem jurídico autônomo pelo art. 3º, I, da lei 6.938/81, que o definiu como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, obriga e rege a vida em todas as suas formas,” posteriormente vindo a ser alçado ao patamar constitucional (art. 225 da CF). A partir do reconhecimento do direito ambiental como bem jurídico autônomo, não fragmentário, passou-se a exigir o cotejamento com os demais institutos jurídicos, não de maneira a suprimir ou ser suprimido, mas para que se alcance o desenvolvimento sustentável, isto é, o direito dos povos de se desenvolverem materialmente sem olvidar da preservação ambiental. Por desenvolvimento sustentável, conforme definição dada pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, se entende aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das gerações futuras satisfazerem as suas próprias necessidades, podendo também ser empregado com o significado de melhorar a qualidade de vida humana dentro dos limites da capacidade de suporte dos ecossistemas. Dessume-se, portanto, que a função social da propriedade não tem outro fim senão o de dar sentido mais amplo ao conceito econômico de propriedade encarando-o como uma riqueza que se destina à produção de bens que satisfaçam as necessidades sociais, maiores que as necessidades individuais. Portanto, deve ser ínsito ao instituto do direito de propriedade que o seu reconhecimento pela ordem jurídica do Estado só se dará se for cumprida a função socioambiental paralelamente ao proveito pessoal. O cumprimento da função social, repita-se, é condição sine qua non para o reconhecimento do direito de propriedade. Tal reconhecimento decorre diretamente da Constituição da República do Brasil, in verbis: Art. 5º, XXII. É garantido o direito de propriedade. Art. 5º,XXIII. A propriedade atenderá à sua função social. Art. 170, II, III, VI. A ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: propriedade privada, função social da propriedade e defesa do meio ambiente. Art. 186, I, II. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente. Art. 225, caput. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e a coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Art. 225, § 1º. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: III. definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; VII. proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade. Art. 225, § 3º. As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais ou administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. A doutrina, por sua vez, não destoa. Toma-se, preliminarmente, a lição do Prof. José Afonso da Silva: A função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade. Estes dizem respeito ao exercício do direito, ao proprietário; aquela, à estrutura do direito mesmo, à propriedade [ ] Com essa concepção é que o intérprete tem que compreender as normas constitucionais, que fundamentam o regime jurídico da propriedade: sua garantia enquanto atende sua função social, implicando uma transformação destinada a incidir, seja sobre o fundamento mesmo da atribuição dos poderes ao proprietário, seja, mais concretamente, sobre o modo em que o conteúdo do direito vem positivamente determinado; assim é que a função social mesma acaba por posicionar-se como elemento qualificante da situação jurídica considerada, manifestando-se, conforme as hipóteses, seja como condição de exercício de faculdades atribuídas, seja como obrigação de exercitar determinadas faculdades de acordo com modalidades preestabelecidas. Enfim, a função social se manifesta na própria configuração estrutural do direito de propriedade, pondo-se concretamente como elemento qualificante na predeterminação dos modos de aquisição, gozo e utilização dos bens. Ainda: O certo, e ninguém hoje nega isso, é que a propriedade privada (e a pública também) sujeita-se a limites que são impostos como pressupostos para seu integral reconhecimento pela ordem jurídica e outros que lhe são agregados casuisticamente, diante de fatos que só se manifestam no instante em que o direito, consolidado e plenamente ajustado ao ordenamento, é exercitado… De uma maneira simplificada, o direito de propriedade dá ao seu titular o poder de exclusão (reivindicação), uso, gozo, disposição e transmissão. Esses aspectos derivam, genérica e abstratamente, da previsão constitucional da propriedade, mas têm seu conteúdo final definido pela legislação infraconstitucional, fundamentalmente pelo Código Civil e normas extravagantes. Ou seja, a lei é que determina o conteúdo normal do direito de propriedade, excluindo, assim, certas faculdades que teriam fundamento no conceito de propriedade, encarado sob um critério abstrato. Da lição do saudoso Hely Lopes Meirelles[20], em comentários sobre o poder de polícia dos municípios frente ao direito do proprietário de construir pode-se extrair que: […] As limitações urbanísticas, como as administrativas, se embasam no art. 170, III, da CF, que condiciona a utilização da propriedade à sua função social. São, portanto, limitações de uso da propriedade, e da propriedade em sua substância; são limitações ao exercício de direitos individuais, e não aos direitos em si mesmos. E, exatamente por não atingirem a substância da propriedade, nem afetarem o direito individual em sua essência constitucional, é que as limitações urbanísticas podem ser expressas por lei ou regulamento de qualquer das entidades estatais, desde que observem e respeitem as competências institucionais de cada uma delas No Código Civil vigente também há referência à função social da propriedade, indo além, estabelecendo uma definição seguro do que seria a festejada função, tem-se o seguinte: Art. 1.228. §1º. O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. Paulo Affonso Leme Machado[21] arremata: “a propriedade não poderá ser utilizada da maneira desejada unicamente pelo proprietário” Nesta toada, quando se diz que a propriedade privada tem uma função social, na verdade está se afirmando que ao proprietário se impõe o dever de exercer o seu direito de propriedade, não mais unicamente em seu próprio e exclusivo interesse, mas em benefício da coletividade, sendo precisamente o cumprimento da função social que legitima o exercício do direito de propriedade pelo seu titular. Nesses termos, por exemplo, ao estabelecer no art. 186, II, que a propriedade rural cumpre a sua função social quando ela atende, entre outros requisitos, à preservação do meio ambiente, na realidade, a Constituição está impondo ao proprietário rural o dever de exercer o seu direito de propriedade em conformidade com a preservação da qualidade ambiental. E isto no sentido de que, se ele não o fizer, o exercício do seu direito de propriedade será ilegítimo. No plano jurídico o então Ministro da Suprema Corte, Eros Grau, concluiu que: a admissão do princípio da função social (e ambiental) da propriedade tem como consequência básica fazer com que a propriedade seja efetivamente exercida para beneficiar a coletividade e o meio ambiente (aspecto positivo), não bastando apenas que não seja exercida em prejuízo de terceiros ou da qualidade ambiental (aspecto negativo). Por outras palavras, a função social e ambiental não constitui um simples limite ao exercício do direito de propriedade, como aquela restrição tradicional, por meio da qual se permite ao proprietário, no exercício do seu direito, fazer tudo o que não prejudique a coletividade e o meio ambiente. Diversamente, a função social e ambiental vai mais longe e autoriza até que se imponha ao proprietário comportamentos positivos, no exercício do seu direito, para que a sua propriedade concretamente se adeque à preservação do meio ambiente. A impossibilidade do uso intolerável do meio encarta-se no macro e generoso conceito da “dignidade da pessoa humana”. Neste passo, o não uso do bem em decorrência de motivos ambientais não o transforma em propriedade improdutiva e por consequência, suscetível de desapropriação para fins de reforma agrária, uma vez que atenda à função social de proteção ao meio ambiente. Destarte, o meio ambiente conceituado como res nullius privilegia apenas o aspecto econômico, concepção não mais aceita nos países democráticos e respeitosos de princípios supra positivos, ou seja, de direito internacional, ligado ao direito universal do homem. No entanto, no ordenamento jurídico brasileiro ainda não está  maduro o conceito de direito à propriedade que traz em seu âmago a função social, neste pormenor e em especial a função socioambiental. Não obstante, a instituição da função ambiental avançou e provocou alterações nas funções do Estado, passando este a repartir as responsabilidades pela proteção do meio ambiente com toda sociedade, excluindo a função ambiental do âmbito essencialmente público. Chega-se ao ponto de ter que fazer rearranjos jurídicos para abarcar os novos direitos, notadamente os transindividuais ou metaindividuais, com os direitos preexistentes, principalmente com direito de propriedade, tem-se: […]O meio ambiente, ecologicamente equilibrado, é direito de todos, protegido pela própria Constituição Federal, cujo art. 225 o considera “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”. [[…] Além das medidas protetivas e preservativas previstas no § 1º, incs. I-VII do art. 225 da Constituição Federal, em seu § 3º ela trata da responsabilidade penal, administrativa e civil dos causadores de dano ao meio ambiente, ao dispor: “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. Neste ponto a Constituição recepcionou o já citado art. 14, § 1º da Lei n. 6.938/81, que estabeleceu responsabilidade objetiva para os causadores de dano ao meio ambiente, nos seguintes termos: “sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente de existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade.” ” [grifos nossos] (Sergio Cavalieri Filho, in “Programa de Responsabilidade Civil”) 2. As penalidades da Lei n.° 6.938/81 incidem sem prejuízo de outras previstas na legislação federal, estadual ou municipal (art. 14, caput) e somente podem ser aplicadas por órgão federal de proteção ao meio ambiente quando omissa a autoridade estadual ou municipal (art. 14, § 2°). A ratio do dispositivo está em que a ofensa ao meio ambiente pode ser bifronte atingindo as diversas unidades da federação[22]. Sob a regência dos princípios da “prevenção” e da “precaução”, o Judiciário deve, como regra e com larga margem de discricionariedade, atuar sempre na defesa antecipada dos valores a que o Direito Ambiental visa proteger, orientando-se pela premissa in dubio pro meio ambiente.” [23] [24] Assim, o patrimônio ambiental é concebido como um bem de interesse público, pertencente a todos e a ninguém individualmente, nem mesmo ao Estado. O meio ambiente não constitui patrimônio público, enquanto compreendido como de propriedade estatal. Patrimônio ambiental e Patrimônio público não se confundem. O meio ambiente não é propriedade estatal, é bem de todos. Para Hely Lopes Meirelles[25], o meio ambiente pode ser considerado bem de domínio público se este for entendido como: “o poder de dominação ou de regulamentação que o Estado exerce sobre os bens do seu patrimônio (bens públicos) ou sobre os bens do patrimônio privado (bens particulares de interesse público), ou sobre as coisas inapropriáveis individualmente, mas de fruição geral da coletividade (res nullius)”. Ao lado de outras normas brasileiras que tratam, também, da função ambiental da propriedade, o Código Florestal (Lei nº. 12.651/2012), a Lei nº. 6.902/81, o Decreto nº. 99.274/90, a Lei 9.985, de 18 de julho de 2000, para mencionar apenas alguns dos principais, legam-se importante conceitos de densificação da função socioambiental da propriedade, como o das áreas de reserva legal, áreas de preservação permanente, parques, reservas biológicas, estações ecológicas, áreas de proteção ambiental, florestas públicas e particulares, patrimônio nacional e outros. Ademais, apenas para citar um dos temas mais conflituoso para aqueles que ainda pensam o direito de propriedade como supremo e absoluto, convém lembrar da lei nº. 12.651/2012 (Código Florestal) que trata da proteção da vegetação, áreas de Preservação Permanente e as áreas de Reserva Legal; a exploração florestal, o suprimento de matéria-prima florestal, o controle da origem dos produtos florestais e o controle e prevenção dos incêndios florestais, e prevê instrumentos econômicos e financeiros para o alcance de seus objetivos. No seu art. 3º, da supramencionada legislação, há clara afirmação acerca da limitação do direito à propriedade em prol da necessária proteção ambiental: I – Amazônia Legal: os Estados do Acre, Pará, Amazonas, Roraima, Rondônia, Amapá e Mato Grosso e as regiões situadas ao norte do paralelo 13° S, dos Estados de Tocantins e Goiás, e ao oeste do meridiano de 44° W, do Estado do Maranhão; II – Área de Preservação Permanente – APP: área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas; III – Reserva Legal: área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, delimitada nos termos do art. 12, com a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa; IV – área rural consolidada: área de imóvel rural com ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008, com edificações, benfeitorias ou atividades agrossilvipastoris, admitida, neste último caso, a adoção do regime de pousio; V – pequena propriedade ou posse rural familiar: aquela explorada mediante o trabalho pessoal do agricultor familiar e empreendedor familiar rural, incluindo os assentamentos e projetos de reforma agrária, e que atenda ao disposto no art. 3 º da Lei n º 11.326, de 24 de julho de 2006; VI – uso alternativo do solo: substituição de vegetação nativa e formações sucessoras por outras coberturas do solo, como atividades agropecuárias, industriais, de geração e transmissão de energia, de mineração e de transporte, assentamentos urbanos ou outras formas de ocupação humana; VII – manejo sustentável: administração da vegetação natural para a obtenção de benefícios econômicos, sociais e ambientais, respeitando-se os mecanismos de sustentação do ecossistema objeto do manejo e considerando-se, cumulativa ou alternativamente, a utilização de múltiplas espécies madeireiras ou não, de múltiplos produtos e subprodutos da flora, bem como a utilização de outros bens e serviços; A matéria é controversa, tanto que produziu e produz acaloradas discussões sociais em tono da aprovação do Código Florestal Brasileiro de 2012. De um lado os chamados “ambientalistas” de outro os “ruralistas”; os primeiros alegam que a proteção ambiental diminuirá, os segundos que a produção rural recrudescerá e pesará sobre os ombros do pequeno proprietário rural. Especificamente no estado Brasileiro de Santa Catarina, primeiro estado da federação a fazê-lo, foi aprovado o Código Florestal Estadual, Lei 14.675 de abril de 2009. A legislação nasceu sob os aplausos dos pequenos proprietários rurais que viram nele a solução para a legalização de suas propriedades e sob as críticas dos “ambientalistas”, tendo sido, ainda, inquinada de inconstitucional por não cumprir a lei federal (Código Florestal Brasileiro de 1965) que recomendava a preservação de uma faixa de mata maior que a estabelecida pelo código catarinense. Sobre o ponto, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador-geral da República.   O Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, instituído pela Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981, regulamentada pelo Decreto nº 99.274, de 06 de junho de 1990, sendo constituído por órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e pelas Fundações/Institutos organizadas pelo Poder Público, responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental. Cabendo aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a regionalização de medidas para elaborar normas supletivas e complementares. Dentro deste aspecto, pode-se destacar os mecanismos de tutela preventiva, tais como os elencados pela Política Nacional do Meio Ambiente (lei 6.938/81) e manejados pelo CONAMA, IBAMA, ICMBIO e os órgão seccionais e locais. O controle repressivo administrativo do IBAMA/ICMBIO e órgãos Seccionais e locais, a responsabilidade criminal, com a sua inovadora responsabilização da pessoa jurídica e a responsabilidade civil, da qual tecer-se alguns comentários. A responsabilidade civil pelo dano ambiental fundamenta-se no art. 225, 3º, da Constituição Federal, o qual recepcionou o art. 14, 1º, da lei 6.938/81, segundo o qual: “Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade.” Para o regime de responsabilização objetiva, todo aquele que desenvolve uma atividade passível de gerar riscos para a saúde, para o meio ambiente ou para a incolumidade de terceiros, deverá responder pelo risco, não havendo necessidade de ser provada a culpa ou dolo do agente. No entanto, a responsabilidade objetiva não é ilimitada, é informada pela teoria do risco criado e não do risco integral. Para a teoria do risco criado, há responsabilização objetiva apenas em relação às atividades perigosas, sendo o perigo inerente à atividade e fator de risco a ser prevenido, admitindo, ainda, as excludentes de responsabilidade do fato externo, imprevisível e irresistível. É com base nisso que os doutrinadores têm sustentado a possibilidade de imposição ao proprietário o dever de recomposição de áreas de preservação permanente e reserva legal, mesmo não tenha sido ele o responsável pelo desmatamento. Na certeza que tal obrigação possuí caráter – propter rem -, isto é, ligada ao bem, portanto, do titular do direito real, seja ele quem for, bastando para tanto sua simples condição de proprietário ou possuidor. Seguem posicionamentos jurisprudenciais acerca da responsabilidade ambiental objetiva das pessoas submetidas ao regime do direito e privado e a subjetiva dos entes públicos em fiscalizar: A alegação de que já havia no local uma construção (fls. 121 e 127) não afasta a responsabilidade do adquirente, que é objetiva e corresponde a obrigação propter rem. Como se vê, ficou provado que o ora apelante ocupou área de preservação permanente e ali fez várias edificações irregularmente; o fato de já não haver ali vegetação nativa, quando da ocupação, não o libera da responsabilidade objetiva e correspondente a obrigação propter rem de reconstituir essa vegetação. Terceiros eventualmente prejudicados poderão defender seus interesses pelas vias próprias.[26] Cuida-se de agravo regimental interposto pelo Estado de Minas Gerais contra decisão que entendeu: a) inexistir ofensa ao artigo 535 do CPC; b) não ter sido a divergência jurisprudencial demonstrada conforme os ditames do CPC e do RISTJ; c) harmonizar-se o entendimento do acórdão recorrido com a jurisprudência deste STJ. Sustenta a agravante, em síntese, que: a) embora tenham sido apresentados embargos declaratórios, o Tribunal a quo não analisou questão relevante pertinente à responsabilidade objetiva do poluidor (art. 14, § 1º, da Lei n. 6.930/81) e subjetiva da Administração Pública; b) a doutrina e a jurisprudência são favoráveis à sua tese; c) a responsabilidade do Estado, em se tratando de fiscalização, é subjetiva, dependendo da verificação de culpa; d) o dissídio pretoriano foi devidamente comprovado. 2. A matéria central sobre a responsabilidade objetiva do poluidor, presente no art. 14, § 1º, da Lei n. 6.930/81, e subjetiva da Administração Pública, foi analisada no acórdão vergastado. Não há de se falar em violação do art. 535, II, do CPC. 3. A conclusão do acórdão exarado pelo Tribunal de origem está em consonância com a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça que se orienta no sentido de reconhecer a legitimidade passiva de pessoa jurídica de direito público para responder por danos causados ao meio ambiente em decorrência da sua conduta omissiva quanto ao dever de fiscalizar. Aplicável, portanto, a Súmula 83/STJ.[27] Por fim, conclui-se que a propriedade privada reconhecida na Constituição Federal veio vinculada à função social, que dentre suas múltiplas facetas encontra-se o direito fundamental do homem em ter o meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225). Fazendo coro a este direito constitucional e, como verifica-se, supra positivo, a propriedade no Código Civil de 2002 plastificou-se para atender aos anseios da sociedade. Assim, os dispositivos do Código Civil (sobretudo o art. 1.228) não configuram óbices para que se cumpra a função socioambiental da propriedade, nem constituem garantia da manutenção da propriedade que não atente para a sua função social. Ao contrário, o legislador civil trouxe para o direito eminentemente privado um conteúdo ético ambiental, ao exigir que o proprietário preserve, não ofenda, não espolie a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico, o patrimônio histórico e artístico e evite poluir a água e o ar. Com isso, até mesmo o conceito de propriedade improdutiva veio a ser mitigado para que o não uso do bem em decorrência de motivos ambientais, não o transforme em propriedade improdutiva e por consequente suscetível de desapropriação. Contudo, a natureza passou a se comportar como um bem jurídico autônomo e corolário do próprio direito à vida e, por isso, não se pode falar qualquer direito à exploração ambiental. Outrossim, a função socioambiental da propriedade é cumprida quando a propriedade atende ao requisito de preservação do meio ambiente. Se a função social significa o exercício do direito em benefício de outrem, se visa comprometer a propriedade com as complexas relações sociais e com o progresso humano, isto se efetiva com muito mais razão quando o exercício da propriedade atende à preservação do meio ambiente, que é bem de uso comum do povo, garantido às presentes e futuras gerações. Contudo, embora ainda não seja este o entendimento da maioria, o direito de propriedade, após o advento da Constituição Federal de 1988, que, além de trazer dispositivos expressos sobre a função ambiental da propriedade, fundamenta a legislação ambiental infraconstitucional, passa prever um direito-dever ou uma propriedade-função, cujo regime jurídico extrapola a disposição civilista sobre o tema. Para aplacar os inconformismos com a proteção ambiental, a legislação atual traz instrumentos suficientes para a política de proteção ao meio ambiente. Com a sua implementação, a propriedade não apenas cumpriria sua função ambiental, mas ela mesma, sendo desta forma utilizada, configurar-se-ia como mais um instrumento voltado para a necessária manutenção do equilíbrio ecológico e do desenvolvimento sustentável.   CONSIDERAÇÕES FINAIS A propriedade privada reconhecida na Constituição Federal veio vinculada à função social, que dentre suas múltiplas facetas encontra-se o direito fundamental do homem em ter o meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225). Fazendo coro a este direito constitucional e, como viu-se, supra positivo, a propriedade no Código Civil de 2002 plastificou-se para atender aos anseios da sociedade. Assim, os dispositivos do Código Civil (sobretudo o art. 1.228) não configuram óbices para que se cumpra a função socioambiental da propriedade, nem constituem garantia da manutenção da propriedade que não atente para a sua função social. Ao contrário, o legislador civil trouxe para o direito eminentemente privado um conteúdo ético ambiental, ao exigir que o proprietário preserve, não ofenda, não espolie a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico, o patrimônio histórico e artístico e evite poluir a água e o ar. Com isso, até mesmo o conceito de propriedade improdutiva veio a ser mitigado para que o não uso do bem em decorrência de motivos ambientais, não o transforme em propriedade improdutiva e por consequente suscetível de desapropriação. Contudo, a natureza passou a se comportar como um bem jurídico autônomo e corolário do próprio direito à vida e, por isso, não se pode falar qualquer direito à exploração ambiental. Outrossim, a função socioambiental da propriedade é cumprida quando a propriedade atende ao requisito de preservação do meio ambiente. Se a função social significa o exercício do direito em benefício de outrem, se visa comprometer a propriedade com as complexas relações sociais e com o progresso humano, isto se efetiva com muito mais razão quando o exercício da propriedade atende à preservação do meio ambiente, que é bem de uso comum do povo, garantido às presentes e futuras gerações. Contudo, embora ainda não seja este o entendimento da maioria, o direito de propriedade, após o advento da Constituição Federal de 1988, que, além de trazer dispositivos expressos sobre a função ambiental da propriedade, fundamenta a legislação ambiental infraconstitucional, passa prever um direito-dever ou uma propriedade-função, cujo regime jurídico extrapola a disposição civilista sobre o tema. Para aplacar os inconformismos com a proteção ambiental, a legislação atual traz instrumentos suficientes para a política de proteção ao meio ambiente. Com a sua implementação, a propriedade não apenas cumpriria sua função ambiental, mas ela mesma, sendo desta forma utilizada, configurar-se-ia como mais um instrumento voltado para a necessária manutenção do equilíbrio ecológico e do desenvolvimento sustentável.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/biodireito/a-funcao-socio-ambiental-do-direito-a-propriedade/
Pesquisa Com Animais
RESUMO: Trabalho realizado através de pesquisas bibliográficas, livros e artigos científicos. O presente trabalho tem por objetivo tratar de um tema polêmico, observando o ponto de vista ético, a evolução histórica, as legislações brasileira e de outros países com o direito comparado, apresentando também pontos positivos e negativos do uso desses animais, bem como as alternativas disponíveis para substituição destes animais. A pesquisa mostra também a evolução nos métodos de pesquisa e no tratamento para com os animais, portanto, queremos mostrar porque não podemos deixar de utilizar animais nas pesquisas cientificas.
Biodireito
INTRODUÇÃO A contínua evolução do conhecimento humano, especialmente o da biologia, bem como das medicinas humana e veterinária, repercute no desenvolvimento de ações envolvendo a criação e a experimentação animal, o que por sua vez resulta em uma constante e necessária atualização de suas técnicas e procedimentos. Desde a muito tempo atrás, animas vem sendo usados em pesquisas com a intenção de obter-se vacinas, antibióticos, avaliação e o controle de produtos biológicos, estudos de farmacologia e toxicologia, entre muitos outros. É incalculável o valor da contribuição dos animais de laboratório às novas descobertas para a prevenção de doenças e para a sua cura, bem como para o desenvolvimento de novas técnicas de tratamento cirúrgico. Os assuntos que aqui serão abordados proporcionaram a quem quer que estude o conteúdo uma visão ampla sobre o tema. Partindo desde o ponto de vista ético, passando pela legislação, controle de qualidade, barreiras sanitárias, criação e manejo de cobaias. Observando ainda os benefícios gerados pelas pesquisas feitas com animais, bem como as alternativas que estão surgindo para sua substituição.   A ética é ciência da moral, ou seja, saber distinguir o certo do que é errado. Verdadeira atitude ética é saber quem tanto os animais como os homens, crescem, reproduzem e morrem, contudo, os últimos são dotados de raciocínio Os cientistas muitas vezes sentem-se senhores da vida e da morte quando estão fazendo experimentos com animais, pois estes nem sempre podem se defender do experimento a ser realizado com ignorância cientifica e técnica do profissional responsável. Com a ética, procura-se um caminho para que o homem volte seus olhos para a natureza, ensinando-o a respeitar as diferenças existentes entre as espécies. Desde o século passado que o homem vem adotando um novo ethos, um novo comportamento ético com relação as questões ligadas a natureza. Ele é responsável pelo os bens de nosso planeta, e como tal está tentando não explorar os recursos naturais de forma desordenada e aleatoriamente, mas sim preservá-los para as gerações vindouras. Cabe a ele a exploração mais racional dos recursos naturais disponíveis na natureza. O homem está também revendo o seu modo de fazer ciência, esta tem que ser utilizada de maneira mais racional, porém é muito difícil pensar em ciências quando a mesma envolve experiências com animais, pois há cientista que valorizam a vida dos animais, tratando-os como seres vivos sensíveis, procuram sempre que possível diminuir o sofrimento destes, mas já outros tratam os animais com o mesmo valor que um vidro de substancia química utilizada em seus experimentos. As menções éticas relacionadas as experiências com animais são bastantes remotas no decorrer da história da humanidade. A bíblia tanto a judaica com a cristã e a doutrina mulçumana, ao estimular o sacrifício de animais, impõe que esse ato seja praticado somente por pessoas escolhidas, utilizando da forma mais rápida e menos dolorosa possível. Outras religiões seguem essas normas, incumbindo os sacerdotes desse procedimento. Esta atitude demonstra a consciência do mal, ao se matar sem ser para sobreviver, pois esse sacrifício era proibido ao povo, evitando assim que este não desenvolva os instintos agressivos, qualidade inata dos seres humanos O mal-estar causado pela utilização de animais em experimentos nas diferentes atividades humanas obrigou a uma atitude moral explicita. Dentro da religião católica, no século IV, Santo Agostinho teceu comentários favoráveis ao livre uso de animais em experiências, de acordo com a livre consciência de cada homem. Na mesma época São Crisóstomo ensinou que os animais deveriam ser tratados com gentileza, por terem a mesma origem que nós. De outra forma, São Tomaz de Aquino afirmou, no século XII, que a lei moral era atribuída pela razão humana, excluindo assim os direitos dos animais, por não terem alma. Desta forma, segundo o Teólogo Pe. Ritchie, os animais poderiam ser igualados a madeira e as pedras estando a mercê dos homens para os vários abusos, como se observou nos séculos seguintes. No século XVII, Rene Descartes teve grande influência sobre a ciência até então. Este afirmava que os animais não tinham alma, eram automatas e, portanto, incapazes de sentir ou sofrer. Já no século XVIII, propôs o “princípio da autonomia”, pelo qual o homem teria o poder sobre todos os animais, agindo de acordo com os seus valores. Vários trabalhos científicos como o Charles Darwin, ajudam a derrubar esse conceito de quem os animais não possuem valores, perderiam a sua liberdade e estariam à disposição dos seres humanos. Charles Darwin, chocou as religiões com a sua teoria da evolução, em que coloca o homem como um descendente dos primatas, indicando assim que os seres dotados de razão também são animais e que logo, as preocupações morais deviam se estender aos animais. No começo do século XIX, emergem vários movimentos que indicam o desejo de mudar as ações até então empregadas pelo homem no trato com os animais, chegando a um grau elevadíssimo de sentimentos, retratados em vários quadros como do pintor Lander no qual mostrava cães velando os corpos dos seus donos. Na Inglaterra, durante a época vitoriana, vigorava um grande paradoxo em que se começou a supervalorizar a vida dos animais e desvalorizar a vida humana. Crianças faziam trabalhos escravos em minas de carvão sem que nenhuma atitude fosse tomada para acabar com isso, enquanto no Parlamento se tentava passar uma lei contra a crueldade para com os animais, posteriormente foi designada The Cruelty to Animals, 1875. (ANDRADE,2002; p 21) Nesse processo de supervalorização de animais, os movimentos antiviviseccionista tiveram importante papel. O que essas pessoas queriam era que a experimentação cirúrgica fosse feita somente com anestesia, o que era possível, já que as propriedades do clorofórmio haviam sido descobertas. A primeira sociedade antiviviseccionista criada foi a Vitoria Street Society, em Londres. Logo outras sociedades foram criadas, a Liga Alemã contra a Tortura Animal, em 1879: La Societé contre a Vivisection, em 1882 etc. Todas essas sociedades continuam ativas até hoje e sabem explorar a mídia em seu favor. O problema é que a maioria desses grupos é formada por fanáticos, com métodos agressivos, que cada vez mais aprimoram seus ataques. Porém, devemos reconhecer que tiveram importante papel, pois alertaram os cientistas de que algo deveria ser feito para proteger os animais da crueldade e evitar seu sofrimento. (ANDRADE, 2002, P 22) Em 1926, Carles Humes fundou a sociedade University of London Animais Welfare (hoje Universities Federation for Animais Welfare), numa tentativa de fazer com que os cientistas pensassem racionalmente sobre suas atitudes para com os animais. E no meio da briga que se posicionavam cientistas versus antiviviseccionistas, estes a colocar o bem-estar animal em situação ridícula, Hume (apund Rempry, 1987) disse: “o que o bem-estar animal precisa é de pessoas educadas com cabeças frias e corações quentes preparados para ver o sofrimento dos animais e procurando meios práticos de alivia-los”. (ANDRADE, 2002, p 21) Em colaboração com outros cientistas, Hume publicou a primeira edição do Ufaw Handbook on the Care and Management of Laboratory Animals, em 1947, mostrado assim a preocupação, cientificamente embasada, com o bem-estar do animal. (ANDRADE,2002, p 22) É um axioma o fato de que necessitamos dos animais, seja para pesquisas, trabalhos, diversão, companhia, alimentação. O homem, como animal superior, considera-se no direito de usar os animais, porém esse “direito de usar é inseparável do dever de não abusar desse direito”. (ANDRADE,2002, p 22) Em 1959, Russell e Burch afirmam que a boa experiência com animais deve respeitar três princípios: replacement, reduction e refinamento. Defendiam substituição das experiências com animais vivos por materiais sem sensibilidade, como a coleta de tecidos ou modelos em computadores. A redução seria a utilização do menor número possível de animais em experimentos com o maior custo-benefício possível. E por fim o aprimoramento, que seria a utilização no manejo com animais de técnicas menos invasivas somente por pessoas treinadas para tal fim. Sem dúvida estamos muito longe de atingirmos os princípios dos 3 Rs, pois sabe se que em alguns experimentos é indispensável a utilização de animais. Na atualidade, a grande maioria da comunidade cientifica envolvida com experiências com animais conduzem suas pesquisas com o respeito a vida e se preocupam em não causar qualquer tipo de dor ou sofrimentos aos animais.   A primeira legislação de que se tem notícia a respeito da experimentação animal foi regulamentada no Reino Unido. Já que em 1876, foi normatizada, na Inglaterra, a British Cruelty to Animal Act, que permitiu o uso de animais em pesquisa e serviu de exemplo para os outros países. Em 1986, essa Act foi substituída pela Animal Scientific Procedures Act, que atualizou as legislações anteriores, e segundo este os experimentos devem ser submetidos à chancela do chamado Home Office, junto ao Ministério do Interior. O cientista precisa se credenciar previamente a uma instituição de reputação ilibada e enviar ao já citado órgão do governo a documentação que justifique qualquer experiência em animais em curso, com a finalidade de que seja comparado o custo-benefício do trabalho do ponto de vista científico e ético Na Europa Ocidental, a Comunidade Europeia, através do Convênio Europeu Sobre Proteção de Animais Vertebrados Utilizados Para Fins de Experimentação, firmado em 18 de março de 1986, estabelece regras referentes à questão que envolve a vivissecção de maneira conjunta, sem desconsiderar a norma interna de cada nação e sem perder o caráter necessário da experiência, caso não seja possível a aceitação de opções. Na Alemanha, a legislação interna a respeita da experimentação animal foi modificada em 1987 para ir de encontro à britânica. No entanto, há uma cláusula que requer do governo alemão detalhes a respeitos dos experimentos com animais a cada dois anos para o Bundestag, com o escopo de documentar o desenvolvimento na execução de medidas para a proteção animal. Na Holanda, vigora a Act on Animal Experimentation, adotada em 1977 que, entre outras obrigações legais, exige um profundo conhecimento dos profissionais e técnicos relacionados diretamente na experimentação em animais, o que inclui, indispensavelmente, o conhecimento da ética e das alternativas ligadas aos experimentos com animais. Além disso, regulamenta que o uso de anestesia somente não será indispensável caso comprometa a finalidade do experimento. Nos Estados Unidos, nação líder na experimentação animal, tal prática é imposta pela Animal Welfare Act (Lei do Bem-Estar Animal), de 1966. Cada instituição de pesquisa deve ter uma comissão de ética, responsável por avaliar os supostos experimentos com animais, nos contornos da legislação em vigor na Inglaterra (custo-benefício do experimento).   O Brasil vem tentado acompanhar o Primeiro mundo, no campo da experimentação animal, no que se refere a normatização da problemática que envolve experimentos de animais em laboratório. Contudo, a legislação sobre o assunto é ainda incipiente. Atendo-se  as normas para a prática didático-científica da vivissecção de animais, fixadas por meio da Lei nº 6.638 de 1979, que posteriormente foi revogada com a regulamenta o inciso VII do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, estabelecendo procedimentos para o uso científico de animais, e com a criminalização da realização de  “experiência dolorosa ou cruel em animal vivo” como crime ambiental, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos, de acordo com a Lei nº 9.605 de 1998 (Lei dos Crimes Ambientais), em seu artigo 32, § 1º, conforme será visto em momento oportuno.   2.1.2. O decreto federal nº 24.645, de 10 de julho de 1934 O decreto em questão foi o primeiro que normatizou a matéria com relação a problemática com os animais no nosso país, editado no Governo Provisório Getúlio Vargas, mesmo que de forma genérica, pois este se direcionava para os animais de grande porte como os equinos e bovinos conforme demostra o seu artigo 3º: Artigo 3º: Consideram-se maus tratos: Praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; […] […] XXVII. Ministrar ensino (adestrar) a animais com maus tratos físicos. Entretanto, o decreto 24.645 não possuía nenhum artigo com relação a experimentação animal, o que viria ocorrer só na década de 40 com a lei de Contravenção Penal, que vem reforça a legislação de 34.   2.1.3. A lei das contravenções penais (decreto-lei nº 3.688 de 1941) Com a edição dessa Lei, em 1941, o constituinte brasileiro pôde tratar do assunto em seu artigo 64, já que dispõe sobre a crueldade dispensada aos animais. Tratar animais com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo: Pena – prisão simples, de 10(dez) dias a 1 (mês) ou multa; 1º- Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza em lugar público ou exposto ao público, experiência dolorosa ou cruel em animais vivos. 2º- Aplica-se a pena com aumento de metade se o animal é submetido a trabalho excessivo ou trabalho com crueldade em exibição ou espetáculo público. Com essa reação percebe-se que o legislador pecou no aspecto em que a vivissecção poderia ser feita em locais privados. Até então toda a legislação, no Brasil, tratava de questões abrangentes, nada de muito especifico com relação a experimentação animal. A primeiro instituto que veio tentar estabelecer normas sobre o tema foi a lei federal 6.638, que regula as práticas didático-cientifico da vivisseção em animais.   2.1.4. A lei federal nº 6.638, de 08 de maio de 1979 Com essa lei o Brasil passar a normatizar a prática de vivissecção, antes disso o Brasil assinou a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, em 27 de janeiro de 1978. A lei prever no seu artigo 5º a punição aos seus infratores com base no artigo 64 na Lei de Contravenção Penal. Entretanto a lei 6.638 demostra a sua finalidade já no seu artigo 1º “Fica permitida, em todo o território nacional, a vivisseção de animais, nos termos desta lei. No entanto proíbe a vivissecção na forma do seu artigo 3º: I- Sem o emprego de anestesia; II- Em centros de pesquisas e estudos não registrados em órgão competente; III- Sem a supervisão de técnico especializado; IV- Com animais que não tenham permanecido mais de 15 (quinze) dias em biotérios legalmente autorizados; V- Em estabelecimentos de ensino de 1º e 2º graus e em quaisquer locais frequentados por menores de idade. Esta lei é vaga e incompleta, pois permitiu que os vivissecdores agissem livremente e sem observá-la. O ponto positiva desta norma foi a proibição da prática   da vivissecção em estabelecimentos de ensino de 1º e º2 graus e em quaisquer locais frequentados por menores de idade. Durante vários anos, a vivissecção esteve tipificada nesta lei, o que foi alterado com o advento da lei 9.605/98.   2.1.5. A lei de crimes ambientais (9.605/98) A lei de crimes ambientais, que entrou em vigor em no dia 30 de março de 1998, veio com um grande avanço legislativo com relação a legislação anterior, pois tornou o que era apenas uma contravenção penal em crime, caso não adotado métodos e alternativas existentes. Esta lei criminalizou os maus tratos com animais em experiências em laboratórios que ficou tipificado no artigo 32, § 1º: Artigo 32: Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa. Está evidente que os legisladores com o passar dos anos demostram a preocupação em relação a preservação, manutenção com os animais que compõe a natureza. As leis, decretos e a legislação de uma forma em geral deixa bem claro a essencialidade dos animais para a vida dos seres humanos. Com a regulamentação do VII parágrafo primeiro do artigo 225 da Constituição Federal através da lei 11.974 de 2008 revogou-se a lei 6638, de 8 de maio de 1979 que até então estabelecia procedimentos para o uso cientifico de animais.   Com a instauração do controle da produção dos animais de laboratório primeiramente na Universidade de São Paulo-FCF-IQ/USP, veio o estabelecimento correto dos sistemas de reprodução para as diferentes espécies existentes no Biotério, a aplicação dos conceitos de ética e bem-estar animal as orientações para a segurança no trabalho. Além das melhorias aplicadas na área de higienização dos materiais, inclusive com a aquisição da primeira autoclave de barreira, foram possíveis, em 1988, aprimorar a qualidade sanitária dos animais. A Universidade de São Paulo, FCF-IQ e a Fundação Oswaldo Cruz foram os pioneiros no Brasil a realizar experimentos com a utilização de animais a fim de produzir conhecimento cientifico aos seres humanos, como: a elaboração de novas drogas, novos métodos cirúrgicos, experimentos para comprovar a eficiência de produtos como vacinas, cosméticos, medicamentos, insulinas, anestesias, marca-passo e antibióticos. A regulamentação brasileira sobre o tema pesquisa com animais é recente, foi sancionada a partir de 8 outubro de 2008.  A lei 11.794 regulamenta o inciso VII do art. 225 da Constituição Federal que revoga a lei 6.638. É também conhecida como lei Arouca, devido a influência de Antônio Sérgio da Silva Arouca Ex. presidente da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e Ex. Deputado Federal. Essa lei regulamenta a criação e a utilização de animais em atividade de ensino e pesquisa científica em todo o território nacional. Com o advento dessa lei, foram criados o Conselho Nacional de Experimentação Ani­mal (CONCEA), o Sistema de Cadastro das Instituições de Uso Científico de Animais (CIUCA) e as normas para funcionamento das Comissões de Éticas em Uso Animal (CEUAS), cujo objetivo é garantir o atendimento ético e humanitário do uso de animais para fins científicos. Existem normas nacionais e internacionais que regem a experimentação animal. Todo projeto, no Brasil, precisa ser enviado a um Comitê de Ética, cabe à comissão analisar, emitir parecer e expedir certificado sobre os protocolos de experimentação para que este o aprove os projetos de acordo com critérios preestabelecidos de princípios éticos na experimentação animal e compatíveis com a legislação vigente, ou seja, cada instituição possui seus critérios, regras e estatuto. Essa comissão tem o poder de aprovar ou não os protocolos expe­rimentais analisados segundo o cumprimento das normas éticas. São artigos presentes na Constituição Federal relacionado as Comissões de Ética no Uso de Animais, dentre eles: Art. 8o: É condição indispensável para o credenciamento das instituições com atividades de ensino ou pesquisa com animais a constituição prévia de Comissões de Ética no Uso de Animais- CEUAS. Art. 9: As CEUAS são integradas por: I – Médicos veterinários e biólogos; II – Docentes e pesquisadores na área específica; III – 1 (um) representante de sociedades protetoras de animais legalmente estabelecidas no País, na forma do Regulamento. Art. 10.  Compete às CEUAS: I – Cumprir e fazer cumprir, no âmbito de suas atribuições, o disposto nesta Lei e nas demais normas aplicáveis à utilização de animais para ensino e pesquisa, especialmente nas resoluções do CONCEA; II – Examinar previamente os procedimentos de ensino e pesquisa a serem realizados na instituição à qual esteja vinculada, para determinar sua compatibilidade com a legislação aplicável; III – manter cadastro atualizado dos procedimentos de ensino e pesquisa realizados, ou em andamento, na instituição, enviando cópia ao CONCEA. IV – Manter cadastro dos pesquisadores que realizem procedimentos de ensino e pesquisa, enviando cópia ao CONCEA; V – Expedir, no âmbito de suas atribuições, certificados que se fizerem necessários perante órgãos de financiamento de pesquisa, periódicos científicos ou outros; IV– Notificar imediatamente ao CONCEA e às autoridades sanitárias a ocorrência de qualquer acidente com os animais nas instituições credenciadas, fornecendo informações que permitam ações saneadoras. Esses comitês são internos, ou seja, da própria instituição que realiza a pesquisa, para atender suas necessidades na área de saúde e desenvolvimento de pesquisas, entre outros, sendo essa instituição a responsável pela fiscalização.  Na Câmara existe várias propostas de lei que preveem, entre outros pontos, a obrigatoriedade de informar sobre testes em animais nas embalagens dos cosméticos. Para criação e manutenção de animais em laboratórios são necessárias instalações adequadas, uma vez que suas necessidades básicas deverão ser atendidas, para que possam sobreviver e tenham assegurados seu desenvolvimento fisiológico. As instalações de um biotério devem ser projetadas de forma a atender ás recomendações para criação e/ou manutenção de animais, bem como ás necessidades particulares de cada instituição. Alguns requisitos são necessários para a construção de um biotério, como: Não devem haver fontes poluidoras nas proximidades e a área deve permitir ampliação das instalações e modernização dos equipamentos. A instalação moderna deve ser constituída por um edifício reservado para criação animal e para experimentação, com total independência de suas áreas. Além disso, deve ter tamanho suficiente para assegurar que não haja criação de espécies diferentes em um mesmo ambiente. Outros requisitos da estrutura física são três elementos básicos: salas de animais, corredor de distribuição e corredor de recolhimento. As condições ambientais de um biotério devem ser adequadas a cada espécie e mantidas em níveis sem variações. A manutenção de condições ambientais estáveis assegura o padrão sanitário dos animais. O relacionamento dos vários fatores que compõem a atmosfera do biotério, tais como temperatura, umidade relativa, ventilação, luminosidade e ruído, é tão interdependente que se torna praticamente impossível estudá-los separadamente, além do fato de que são os principais fatores limitantes para criação e manutenção de animais de laboratório. Visam a impedir que agentes indesejáveis, presentes no meio ambiente, tenham acesso às áreas de criação ou experimentação animal, bem como agentes patógenos em teste venham a se dispersar para o exterior do prédio. As barreiras de proteção de um biotério compreendem vários elementos, desde os materiais usados na construção até os equipamentos mais sofisticados para filtração de ar ou esterilização de materiais. Essas barreiras devem ser determinadas pela quantidade de animais, tipos de materiais, fluxos de pessoal e de material, e serão mais sofisticadas quanto maior for a exigência microbiológica. O conceito de barreira inclui a divisão entre as Barreiras Externas ou Periféricas: Paredes Externas, Portas com Exterior, Telhado, Tratamento de água etc. E as Barreiras Internas: Higienização Corporal, Pressão Diferencial entre ambientes etc. Assim sendo, barreira sanitária compreende todo um conjunto de elementos físicos, químicos, de instalações, de procedimentos de pessoal e uso de equipamentos, que tende a impedir a entrada de enfermidades que possam afetar os animais.   O uso de animais com objetivos científicos é uma prática comum que vem sendo empregada desde a Antiguidade, mas para que essa prática seja aceitável do ponto de vista ético e exponha resultados eficazes, é dever do especialista a consciência de que o animal que está sendo utilizado como cobaia é um ser vivo e como tal possui instinto, além de ser sensível à dor. A cobaia é conhecida, por muitos, como símbolo representativo dos animais de laboratório. Todos os animais que serão utilizados em laboratório são nascidos e criados em Biotério para experiências científicas. São geralmente ratos, coelhos e cachorros. As cobaias são animais sociais, tímidos, dóceis e raramente mordem ou arranham, assustam-se facilmente. Outra característica marcante das cobaias é a de que são extremamente susceptíveis a estímulos estressantes, sobretudo a alterações ambientais. O fato é que durante séculos a utilização de animais como cobaias foi um grande trunfo para pesquisadores, fisiologistas e outros estudiosos auxiliando na compreensão dos mecanismos de doenças e desenvolvimento de vacinas. Várias vacinas foram desenvolvidas a partir de animais como: Varíola, Tétano e a vacina contra a raiva desenvolvida por Louis Pasteur em 1885, que já salvou milhões de vidas, foi desenvolvida após a utilização de diversas cobaias. Contudo, a legitimidade de tais testes é polêmica e frequentemente promove embates entre parte da comunidade científica que apoia os teste e grupos de defesa dos direitos animais. Diversos grupos atuam na libertação desses animais, seja por meio da invasão dos laboratórios, como o grupo britânico ALF, seja atuando na divulgação das condições que tais animais são submetidos nessas pesquisas.   O descarte de carcaças é um ato que requer um grande senso de responsabilidade por parte do profissional que o executa. Esse grande cuidado é necessário pelo fato de que toda e qualquer carcaça estando ou não contaminada por agentes patológicos são consideradas resíduos sólidos, de acordo com a legislação em vigor em nosso País. As carcaças dos animais mortos de forma natural ou sacrificados devem ser descartadas o mais rápido possível, após a necropsia e colheita de material indicado, para que se evite qualquer tipo de contaminação do meio ambiente por meio dos fluidos e secreções que são excretados pelos cadáveres. O profissional que trabalha com isso deve sempre ter em mente que existe o risco potencial de contaminação, por isso deve se proteger de forma adequada, usando uniformes, luvas e máscaras que são utensílios essenciais. Cuidados especiais também devem ser tomados quando ao armazenamento das carcaças, a proteção do profissional que a manuseia e a forma de transporte das carcaças. O transporte dessas carcaças deve ser feito em sacos plásticos ou em caixas hermeticamente fechadas, de forma muito rápida e segura, para que não haja nenhum tipo de contaminação do meio ambiente por meio de sangue ou excrementos do cadáver animal. No que diz respeito ao armazenamento, é essencial o uso de sacos plásticos, compatíveis com o tamanho e peso da carcaça, e devidamente identificado de acordo com a simbologia adotada internacionalmente. O ideal é que a carcaça seja mantida em uma câmara fria e descartada em no máximo 24 horas, ou colocada em freezers a -18ºC, caso esse descarte não seja feito. Quanto ao destino das carcaças pode ser de três formas: aterro sanitário, autoclavação e incineração.   5.1. Aterro sanitário Antes de se utilizar do aterro sanitário, deve-se analisar se ele foi construído dentro das normas de segurança, para que não haja contaminação do solo, do ar. Pois a intenção não é causar problemas e sim evita-los.   5.2.Autoclavação             Nesse caso a carcaça é esterilizada e deixa de ser um risco de contaminação, e pode ser descartada junto com o lixo comum. Quando se tem conhecimento de que a carcaça está contaminada a autoclavação é obrigatória. Esse procedimento só pode ser dispensado quando existe um incinerador no próprio laboratório. Dois problemas são enfrentados nesse processo, primeiro a capacidade limitada das autoclaves, que não suportam uma grande quantidade de animais, principalmente quando se trata de animais de grande porte. O outro problema refere ao odor produzido pelo processo, por isso é indicado que seja feito em apenas um dia da semana próximo ao horário de saída dos funcionários.   5.3.Incineração             Este é considerado o melhor destino para as carcaças. Pois trata-se de um modelo eficiente, seguro, e dependendo do modelo ainda pode servir de fonte de calor para caldeiras. O local de instalação deve ser de fácil acesso e próximo aos laboratórios que farão uso dele. Requer estudos prévios sobre sua capacidade, índice de poluição, tipo de combustível e métodos de seleção do material a ser incinerado. O sistema mais moderno de incineração conta com uma dupla câmara e recuperação de calor. Está provido, também, de filtros de manga em sua chaminé, que filtra toda a fumaça, evitando a poluição do ar e diminuindo, consideravelmente, o odor. Esse processo é capaz de destruir qualquer agente patogênico, chegando a atingir temperaturas de até 1.200ºC, levando a calcinação de qualquer matéria orgânica.               Nos dias de hoje podemos ver de forma bem nítida as manifestações feitas ao redor do mundo em defesa dos animais de laboratório, mas ao contrário do que se imagina, esse discursão é bem antigo. Em 1760, Fergusson já demonstrava preocupação com os métodos bárbaros em testes animais. No século XIX, Jeremy Benthan lançou a máxima “a questão não é se os animais raciocinam, ou se eles podem falar, mas se eles sofrem”. Nesse mesmo século XIX houve a primeira tentativa de se fazer um código de ética na prática de pesquisa com animais. Onde era proposto que a dor imposta aos animais fosse diminuída, além de se fazer a substituição de animais grandes por outros inferiores na escala geológica. Também fazia referência a repetição desnecessária de experimentos. Em 1842, foi fundada o que podemos chamar de primeira sociedade protetora dos animais, a British Society for the Prevention of Cruelty to Animals (Sociedade Britânica para a Prevenção da Crueldade aos Animais), mais tarde chamada de Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals.   6.1.Métodos alternativos Métodos alternativos são procedimentos que podem substituir o uso de animais em experimentos, reduzir o número de animais necessários, ou refinar a metodologia de forma a diminuir a dor ou o desconforto sofrido pelos animais. São alguns exemplos de substituição no uso de animais: Uso de informação obtida no passado – Em virtude da coleta de dados históricos em experimentação animal ou mesmo de ocorrências em seres humanos, determinados experimentos podem não ter necessidade de serem repetidos. Uso de técnicas físico-químicas – Com o aumento do conhecimento na área química, bem como por meio do desenvolvimento de métodos e equipamentos sofisticados, algumas substâncias que só antigamente poderiam ser testadas em animais podem ser ensaiadas por métodos químicos ou físico-químicos. Uso de modelos matemáticos ou computacionais – Recurso em que se utiliza um banco de dados que pode predizer determinadas ações de substâncias no organismo. O banco é formado por meio de informações obtidas no passado. Uso de organismos inferiores não classificados como animais protegidos – A utilização de larvas de camarão ou o uso de pulga d’água (Daphnia pulgans) são considerados como possibilidades de substituição ao uso de animais de laboratório. Em geral, esses invertebrados são muito utilizados em experimentos de ecotoxicologia, mas alguns trabalhos apresentam a sua utilização como proposta de alternativas ao teste de irritação em coelhos. Uso de sistemas in vitro – O sistema in vitro, como veremos adiante, pode ser considerado como uma substituição total ou parcial, sendo algumas vezes também classificado como uma redução. Uso de estágios iniciais do desenvolvimento de espécies animais protegidos – É o caso, por exemplo, do teste da HET-CAM no qual se utiliza o ovo embrionado aos 9 dias, tempo este em que não há o desenvolvimento do sistema nervoso do embrião, o que, teoricamente, não causaria a ele dor ou sofrimento. Vigilância pós-mercado e estudos epidemiológicos – Os dados obtidos nessas situações irão compor o conjunto de informações, que poderão subsidiar os bancos de dados, e as demais, que poderão ser utilizadas para se evitar a experimentação em animais. Uso de voluntários humanos – Outra questão polêmica que deve ser encarada com muito cuidado. É importante frisar que a utilização de humanos não se destina a estudar a toxicidade, mas, sim, a demonstrar a ausência da mesma. Cabe ressaltar a necessidade de uma ampla discussão ética quando da utilização de seres humanos em experimentação. Hoje em dia, buscamos alternativas tanto na área experimental quanto na educacional. Basicamente, em termos de ensino, a experimentação animal já pode ser substituída, praticamente, sem causar prejuízos muito sérios ao aprendizado. Na área de educação veterinária, já contamos com diversos modelos para o ensino e o treinamento de cirurgias, suturas e demais procedimentos. São modelos de cães e gatos, de diversos tamanhos, simulando, inclusive, respiração e outros parâmetros fisiológicos. Cabe ressaltar que a utilização de bonecos já é prática na medicina humana e em treinamentos de primeiros socorros, simulando diversos tipos de queimaduras, forma correta de respiração artificial etc. Um outro recurso, muito utilizado na área da farmacologia, são os simuladores em CD-ROM. Com eles, podemos ‘administrar’ diversos agonistas e antagonistas e visualizar seus efeitos em diversos parâmetros fisiológicos, tais como respiração ou pressão arterial. Na área experimental, muitos ensaios têm sido propostos. Alguns deles já estão em estágio avançado de validação, enquanto outros estão ainda sendo muito estudados para se verificar as possibilidades de substituir ou reduzir o uso de animais em experimentação. Segundo reportagem publicada no portal da FIOCRUZ no dia 23 de março de 2017, cujo tema refere-se: “Uso de animais em pesquisa abrange desafios éticos e compromisso com novas tecnologias”, escrita por Elisa Batalha para a Revista Radis. Nesse sentido: Redução e substituição “É importante entender que, quando se pratica um teste, muitas vezes se está entregando a vida de um animal em prol da vida de pessoas e também de outros animais. Isso tem que ser respeitado. Trabalhamos com a vida e a vida não tem preço”, declarou a pesquisadora. No entanto, ela enxerga muitos avanços garantidos pelo movimento de proteção animal para a sociedade. “Até mesmo momentos extremos estimularam o desenvolvimento de leis que realmente protegem os animais que estão sendo utilizados em pesquisa”, comentou. Uma das técnicas utilizadas no ICTB — e ensinada no mestrado profissional — é a Criopreservação. Trata-se de uma técnica de congelamento de embriões e sêmen, que contribui para diminuir a produção de algumas linhagens, salvaguardar o patrimônio genético e reduzir o número de animais mantidos em colônias nos biotérios. “Os 3 Rs e o bem-estar animal são uma postura filosófica da própria instituição”, afirmou Etinete Nascimento, coordenadora do Ensino no ICTB.  “Nas nossas aulas usamos bichos de plástico ou de pelúcia ou filmagens para demonstrações sobre manejo. Sempre que é possível, evitamos retirar o animal da gaiola para não estressá-lo sem necessidade”, contou ela, lembrando que os métodos alternativos são uma disciplina do curso, e que o ICTB oferece ainda outros cursos de extensão e especialização. Etinete defende mais investimentos nos métodos alternativos e no bem-estar animal. “É caro descobrir, desenvolver e validar métodos alternativos, mas a partir do momento que ele está desenvolvido, sai mais barato do que utilizar animais”, explica a pesquisadora. Sobre recursos financeiros, Carla esclareceu um ponto sobre o qual, segundo ela, existe um mito: “No Brasil quase todos os biotérios são públicos. Não se lucra com eles. Para se manter os animais, é preciso manter toda uma estrutura, e isso requer recursos para manter o bem-estar animal e ter modelos fidedignos”, finalizou. (Referência Bibliográficas: https://portal.fiocruz.br/pt-br/content/uso-de-animais-em-pesquisa-abrange-desafios-eticos-e-compromisso-com-novas-tecnologias).   CONCLUSÃO Visto tudo que foi colocado em discursão, percebe-se que muito já foi feito, desde quando o homem passou a utilizar animais em experiências até os dias de hoje já evoluímos bastante, tanto no que diz respeito as formas e criação e tratamento dos animais com leis que os protegem, como na busca por métodos capazes de substitui-los de forma eficiente. Muito ainda há de ser feito, mas não podemos esperar que tudo se resolva logo, pois ainda não é possível substituir totalmente os animais por outros métodos alternativos. Até porque levam-se anos para encontrar um método, e temos experimentos que nem sequer apresentam propostas de substituição. Outro ponto importante que se deve ter em mente, é que nesse meio não cabem discursões entre protecionistas e cientistas sob seus respectivos pontos de vista. É necessário que ambas as partes se juntem e discutam seus pontos de vista e possibilidades de estudos. É preciso que cada um compreenda e respeite a forma com que o outro olha e entende o tema. Discursões atoa, pensamentos radicais, acabam por não dá em nada. É importante entender que não devemos deixar de usar os animais somente porque assim queremos. Se não existe um meio adequado de substituição, animais devem continuar sendo usados, porém de acordo com as legislações que regulamento a forma como as pesquisas devem ser feitas.
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Eutanásia E Mistanásia: A Hipocrisia do Estado
RESUMO: O presente artigo irá trabalhar com os conceitos da eutanásia e mistanásia, partindo da observação dos Diretos Humanos e seus princípios, os quais são essenciais para a análise destes termos. Fundamentando-se a partir desta base realizada pelos Direitos Humanos será analisado o conceito da eutanásia, um tema delicado, complexo e polêmico, que divide opiniões a respeito de sua prática. Nesta parte, evidenciando qual a disposição legal que o Estado brasileiro determinou para a ocorrência da prática da eutanásia. Por fim, será exposto a observação realizada sobre o conceito de mistanásia ou também chamada de eutanásia social, esta, se concretizando quando há a ocorrência da morte miserável dos indivíduos devido a diversos fatores, assim, será analisado neste ponto suas causas, consequências e o papel do Estado na temática, o qual evidencia uma contradição por parte do Estado ao compararmos a temática da eutanásia com a mistanásia.
Biodireito
Este artigo irá abordar a temática referente a eutanásia e a mistanásia. A eutanásia é um tema que gera muita polêmica na sociedade e, atualmente, tem-se como sua definição sendo a morte provocada por um médico em um paciente incurável, objetivando evitar dores e sofrimento prolongados ao mesmo. Já a mistanásia ou também chamada de eutanásia social é aquela em que ocorre a morte miserável, isto é, por diversos fatores, incluindo a ineficácia do Estado, não há condições suficientes para o indivíduo viver, assim, ocasionado a mistanásia. O presente trabalho irá trabalhar, primeiramente, os direitos humanos e alguns princípios a este relacionado, sendo estes o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana, os quais são fundamentais para a análise da eutanásia e a mistanásia. Ademais, será observado e analisado o termo eutanásia, evidenciando de que maneira o Estado brasileiro julga e determina as consequências da prática da eutanásia. Por fim, a mistanásia será apresentada, demonstrando suas principais causas e de que modo o Estado é essencial e importante tanto na prevenção da mistanásia, como também no agravo a sua ocorrência. A 2ª Grande guerra foi catastrófica, gerou incontáveis vítimas, teve um enorme custo e proporcionou grandes modificações no mundo. Desde o início da guerra em 1939 até seu fim em 1945, a humanidade vivenciou o aniquilamento de muitos seres humanos, além do avanço tecnológico da indústria bélica, como por exemplo o desenvolvimento da bomba atômica. Devido aos horrores testemunhados no período em que o mundo estava em guerra, ao seu fim, os indivíduos foram obrigados a dar atenção aos direitos humanos.[3] Neste período também se evidenciou a ascensão e decadência do nazismo e de Hitler na Alemanha, esta era germânica foi marcada pela completa desconsideração e desrespeito do ser humano.[4] Mesmo com todos os esforços a liga das nações não foi possível evitar a segunda guerra mundial, comandados por Hitler os alemães massacraram seus vizinhos, além de exterminar populações que por eles não eram adoradas, como por exemplo, os Judeus, protagonizando o famoso Holocausto, além disso, a explosão da famosa bomba de Hiroshima e Nagasaki fez se refletir sobre várias questões. Algo precisava ser feito para garantir direito a todos, e foi justamente depois da segunda grande guerra que foram criados sistemas para a proteção dos Direitos Humanos ao redor do mundo.[5] Até o término da 2ª grande guerra (GM), o personagem principal na esfera internacional se restringia ao estado soberano, não atribuindo qualquer relevância ou importância para o povo ou indivíduo. O ponto central abrangia a relação dos estados soberanos, assim, os indivíduos subordinados a estes não tinham qualquer destaque ou importância nesta relação.[6] Devido a iminente necessidade da estruturação dos direitos humanos após o término da 2ª GM, pôde-se verificar a criação de inúmeras entidades internacionais que tinham por finalidade proporcionar a “cooperação internacional”. Dentre todas, é importante dar ênfase a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945.[7] Após a formação da Organização das nações unidas os direitos humanos começaram a ter mais ênfase e ganharam maior importância e notoriedade.[8] A ONU surgiu com inúmeras finalidades, como a continuidade da paz, segurança e preservação internacional, “o alcance da cooperação internacional no plano econômico, social e cultural”, além da defesa dos direitos humanos internacionalmente, etc.[9] No ano de 1948, é inaugurada e apresentada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), na qual estabelecia direitos e garantias individuais como fundamento estruturador e humanizador do vínculo entre governantes e governados.[10] Assim sendo, o indivíduo é protegido pelo simples fato de ser um ser humano, portanto, sujeito de Direito Internacional. Afinal, antes de ser cidadão de seu país, ele é cidadão do mundo, e dessa condição decorrem direitos universalmente protegidos, que não devem ser violados nem mesmo pelo Estado do qual ele é um nacional, sob pena de responsabilização daquele pelo mal sofrido. Em suma, basta a condição de pessoa para que se possua a titularidade desses direitos, pois desde o nascimento todos os homens são livres e iguais em direitos.[11] Os direitos humanos compõem-se em um agrupamento de direitos apontados como fundamentais e indispensáveis para o ser humano, estes direitos pautados na igualdade, liberdade e dignidade.[12] Estes direitos podem ser positivados ou não, os quais tem por objetivo garantir que ocorra o respeito à dignidade da pessoa humana, isto ocorrendo mediante a contenção do arbítrio do estado, além da implantação da igualdade nas fases iniciais dos indivíduos.[13] Não existe um índice predeterminado deste agrupamento mínimo de direitos fundamentais para uma vida digna. Cada lugar tem suas necessidades humanas próprias, assim, estão ligadas ao contexto histórico de determinado local e época. Deste modo, quando necessário são inseridos juridicamente para atender à necessidade social.[14] Apesar das diferenças em relação ao conteúdo, os direitos humanos têm em comum quatro ideias chaves ou marcas distintivas: universalidade, essencialidade, superioridade normativa (preferenciabilidade) e reciprocidade.[15] Primeiramente, a questão da universalidade constitui no ato de reconhecer os direitos humanos como direitos universais, isto é, os quais englobam todos os indivíduos, desse modo, confrontando o ponto de vista que vê pessoas em estamentos superiores e por isso detém privilégios.[16] A essencialidade se estabelece na questão de que os direitos humanos são concepções indispensáveis e fundamentais e que, por isso, todos têm de defendê-los. Ademais, tem por característica a questão da superioridade, isto é, os direitos humanos têm superioridade as outras normas, assim, não há possibilidade de renúncia de um direito fundamental para satisfazer as “razões de estado”, assim, há a preferência dos direitos humanos com relação as demais normas.[17] Por fim, aos direitos humanos tem por característica a reciprocidade, o qual é produto da organização de direitos que liga toda a sociedade. Esses quatro pontos convertem os direitos humanos em condutores de uma sociedade organizada a partir da igualdade e na consideração do interesse geral e não apenas de alguns.[18] Os direitos humanos são essenciais e indispensáveis para uma vida digna e, por esta razão, determinaram uma condição mínima, o qual todos os estados têm de respeitar, sob possibilidade da punição de responsabilidade internacional. Desta forma, estes direitos estão além da esfera interna de um estado, isto é, as “instâncias internacionais de proteção”.[19] Na questão referente a proteção dos direitos dos indivíduos, compreende-se os chamados direitos humanos como algo de maior amplitude que os direitos fundamentais. Estes são positivados nas normas jurídicas de determinado estado, assim, tendo um âmbito interno e, desta forma, não detém uma esfera de aplicação tão ampla como os direitos humanos (internacional).[20] Deste modo, pode-se reiterar, dentro deste pensamento, que os direitos fundamentais são expressamente reconhecidos e constituídos no ordenamento jurídico de determinado Estado, os quais tem por característica serem espaciais e momentaneamente delimitados. Por outro lado, os direitos humanos são aqueles declarados nos documentos de esfera internacional, não dependendo da participação de um indivíduo em um ordenamento constitucional, “Isto porque os direitos humanos são posições jurídicas reconhecidas aos seres humanos, independentemente de seu vínculo jurídico estatal”.[21] Os direitos fundamentais são os direitos do homem jurídico, institucionalizados e amparados objetivamente em determinada ordem jurídica concreta, ou seja, os direitos fundamentais são os direitos do homem, garantidos e limitados espaço temporalmente, o que implica no reconhecimento de que enquanto os direitos do homem são decorrentes da própria natureza humana, possuindo, destarte, caráter inviolável, intemporal e universal, os direitos fundamentais são os direitos vigentes numa específica ordem jurídica.[22] A Constituição Federal de 1988 traz em seu artigo 5º direitos fundamentais referentes aos cidadãos brasileiros: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […].[23] Neste mesmo artigo da Constituição Federal tem-se algumas especificações em referência aos direitos fundamentais e tratados internacionais. O direito à vida ganhou grande importância e destaque, principalmente, após o fim da Segunda Guerra Mundial, já que a mesma proporcionou acontecimentos catastróficos para a humanidade, como por exemplo o holocausto, o bombardeamento de Hiroshima e Nagasaki, entre outros. Por isso, ao ser produzida a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), um dos temas retratados foi a questão da proteção da vida.[24] Este novo pensamento que se instaurou no pós-guerra resultou em diversas manifestações referentes ao tema, um destes é a já citada Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 3º: “Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”[25], outro exemplo é expresso na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), em seu artigo 4º: “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”[26], tem-se também o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), o qual expressa em seu artigo 6º o seguinte: “§ 1. O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela Lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida”.[27] No Brasil, o direito à vida, é expresso no artigo 5º da CF/88, o qual exprime que é garantido tanto aos brasileiros, como também aos estrangeiros que residem no Brasil a “inviolabilidade do direito à vida”.[28] O direito à vida comporta várias significações, como o direito de nascer, ter uma vida digna, permanecer vivo, entre outros. Este direito envolve a vida humana e, por isso, está produzindo inúmeras discussões relacionados ao biodireito.[29] Atualmente no Brasil, é tratado algumas questões relacionadas ao direito à vida, como a “impossibilidade da pena de morte”, a proibição da tortura, do aborto e da eutanásia.[30] A vida é primordial e necessária para a existência de outros direitos, além de dar sentido aos mesmos. Este, sendo uma das razões que faz com que o direito à vida seja julgado como o mais importante, essencial e fundamental.[31] No tocante ao princípio da dignidade da pessoa humana, primeiramente, é importante destacar que qualquer pessoa, apenas por ser do gênero humano já é possuidora de dignidade, como afirma Andrade Um indivíduo, pelo só fato de integrar o gênero humano, já é detentor de dignidade. Esta é qualidade ou atributo inerente a todos os homens, decorrente da própria condição humana, que o torna credor de igual consideração e respeito por parte de seus semelhantes.[32] A dignidade consiste em um “valor universal”, não impedindo as diferenças e diversidades socioculturais das populações. Mesmo que haja distinções intelectuais ou físicas, os indivíduos são possuidores de igual dignidade, isto é, estes indivíduos podem ter sua individualidade diferente dos demais, mas devido ao fato de ser humano, detém as mesmas necessidades.[33] A dignidade da pessoa humana trata-se de um princípio constitucional, o qual não se limita, somente, a condição normativa, mas também compreende em sua constituição concepções “ético-valorativos”.[34] A ideia da dignidade do ser humano presume a igualdade entre os indivíduos, isto sendo uma de suas bases. É com base na ética que deriva o princípio de que os interesses dos indivíduos devem ser igualmente respeitados e considerados, independentemente de qualquer característica individual desta pessoa.[35] É importante ressaltar que esta consideração igualitária dos interesses não compõe uma “igualdade absoluta”, visto que isto é inviável e inalcançável, mas aborda a questão de um “princípio mínimo de igualdade”, o qual poderá estabelecer até um tratamento ou uma abordagem desigual entre os indivíduos, caso seja necessário para atenuação de determinada desigualdade.[36] Outra base da dignidade é a ideia da liberdade. “É a liberdade, em sua concepção mais ampla, que permite ao homem exercer plenamente os seus direitos existenciais”. Nesta perspectiva, a censura é considerada um grave abuso e ofensa à dignidade humana. Isto não significa que qualquer indivíduo pode realizar as ações que queira, há limites.[37] O exercício da liberdade em toda a sua plenitude pressupõe a existência de condições materiais mínimas. Não é verdadeiramente livre aquele que não tem acesso à educação e à informação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, ao lazer.[38] A DUDH, em seu artigo 1º traz estas bases referentes a dignidade da pessoa humana: “Artigo 1°: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.[39] A dignidade é constituída pela soma de “direitos existenciais”, os quais são compartilhados por todas as pessoas igualmente. Neste sentido, não há a possiblidade em citar menor ou maior dignidade.[40] Dessa forma, é importante ponderar a respeito da constante e frequente transformação do conceito da dignidade da pessoa humana e também é significativo considerar a ideia de uma “dignidade em expansão”.[41] No brasil, a Constituição de 1988 instituiu a ideia da dignidade da pessoa humana como um princípio fundamental e essencial do Estado brasileiro.[42] O constituinte de 1988, com a finalidade de restaurar o estado de direito após o regime ditatorial, ressaltou que o Estado Democrático de Direito que instituía tinha como fundamento a dignidade da pessoa humana, conforme previsão no Artigo 1º, inciso III. Assim, a Constituição brasileira de 1988 inovou com transformações profundas e antes não registradas na história do constitucionalismo brasileiro, representando um grande marco jurídico na redemocratização do país. Ademais ela consagrou o valor da dignidade da pessoa humana como princípio máximo e o elevou a uma categoria superlativa em nosso ordenamento, na qualidade de norma jurídica fundamental.[43] O princípio da dignidade da pessoa humana põe o indivíduo como protagonista do ordenamento jurídico, assim, sendo utilizado como garantia de um “mínimo existencial” que levará esta pessoa a viver dignamente.[44]
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Função Social do Contrato na Gestação de Substituição (Doação Temporária do Útero)
Cada vez mais a nossa sociedade tem se tornado ciente de seus direitos. Por essa razão, na utilização das técnicas de reprodução assistida, especialmente nas questões de infertilidade, e também nos relacionamentos homoafetivos, em que há o desejo de procriarem, é importante estabelecer as condições para a chamada “gestação por substituição”, em que será utilizado o útero de uma terceira pessoa. Neste aspecto, como serão preservados os direitos e os deveres das partes envolvidas nessa técnica? Ao nascer, a certidão de nascido vivo será entregue a quem? Em nome de quem a criança será registrada? Nesse contexto, procuraremos abordar a importância da função social nesta espécie de contrato, tanto no aspecto jurídico quanto da medicina, de modo que fiquem resguardados os direitos dos envolvidos na utilização da técnica de RA, assim como as obrigações que serão assumidas.
Biodireito
INTRODUÇÃO A medicina tem avançado significativamente nas suas mais variadas situações, seja por meio de pesquisas científicas, na busca de novos medicamentos e no processo de procriação humana. Sob esse aspecto, no campo da reprodução humana, novas técnicas têm sido introduzidas no aperfeiçoamento das práticas médicas, a exemplo do que acontece na reprodução assistida, como elemento facilitador do processo de procriação, evidentemente, que em respeito aos princípios éticos e do Biodireito. Para tanto, fez-se necessário regulamentar a utilização das técnicas de RA para assegurar os direitos das partes envolvidas, sejam os profissionais que se dedicam a tal prática como as pessoas que buscam guarida para seus mais íntimos anseios de procriarem seus filhos diante da referida técnica, fixando, ainda, as obrigações que deverão ser implementadas por escrito, a fim de garantir a ampla segurança e o dever ético e contratual das partes.   A gestação por substituição (doação temporária do útero), também conhecida como “barriga de aluguel”, tem seus procedimentos atualmente ditados pela Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 2.168, de 21 de setembro de 2017, que adotou normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida (RA), como dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos. Não há lei no Brasil regulando as técnicas de reprodução assistida (RA), embora a iniciativa de alguns projetos do executivo, a exemplo do Projeto de Lei do Senado de autoria do senador Lúcio Alcântara (PLS nº 90/1999)[1], que intencionou regulamentar o uso das técnicas de RA para a implantação artificial de gametas ou embriões humanos, fertilizados in vitro, no organismo de mulheres receptoras. Sem aprovação, o projeto foi arquivado em 28 de fevereiro de 2007. Na Câmara dos Deputados, a iniciativa do Deputado Federal Luiz Moreira, autor do Projeto de Lei nº 54/2002[2], também arquivado em 4 de abril de 2007, tentou criar normas para a utilização de técnicas de reprodução assistida. Sem sucesso. Diante da ausência de regulamentação pelo legislativo, o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou a Resolução CFM nº 2.168, de 21 de setembro de 2017, revogando a então Resolução CFM 2.121, de 17 de julho de 2015, para adotar normas éticas para a utilização das técnicas de RA.   Constituindo, assim, o conjunto de princípios e regras de condutas e deveres para a sociedade médica envolvida na prática das técnicas de RA, atualmente essa resolução tornou-se o único dispositivo deontológico a ser observado pelos médicos brasileiros, visando contribuir na procriação da espécie humana. Nos trabalhos de revisão da nova regra, sob a coordenação do conselheiro federal José Hiran da Silva Gallo, a Comissão destacada pelo CFM atuou em conjunto com representantes da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida, da Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia e da Sociedade Brasileira de Genética Médica, E nessa tendência de facilitar o processo de procriação, as técnicas de RA têm sido muito utilizadas no tratamento de infertilidade humana, uma das causas que tem atingindo boa parte da população brasileira, evidenciando um grave problema de saúde, com implicações médicas e psicológicas. Assim, havendo probabilidade de que a utilização da técnica de RA não cause risco para a saúde da paciente e do possível descendente, a mesma será permitida, desde que, sejam observados os critérios abaixo e outros que serão abordados mais adiante: I – a candidata à gestação deverá contar com idade máxima de 50 (cinquenta) anos, e terá que pertencer à família da doadora genética ou seu parceiro, até o 4º grau de parentesco (primeiro grau – mãe/filha; segundo grau – avó/irmã; terceiro grau – tia/sobrinha; quarto grau – prima). II – obrigatório firmar um termo de consentimento livre e esclarecido, devendo ser elaborado em formulário específico e por escrito, contendo todas as descrições para a utilização da referida técnica, não se esquecendo também de abordar no termo o caráter biológico, jurídico e ético, contando, ainda, necessariamente com a assinatura de todos os participantes, assegurando todos os envolvidos na referida técnica, tanto na garantia de seus direitos como nas obrigações assumidas. III – não será permitido utilizar a técnica para selecionar o sexo (presença ou ausência de cromossomo Y), exceto para evitar doenças do filho que venha a nascer. IV – é permitido o uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras, respeitado o direito a objeção de consciência por parte do médico; V – é permitida a gestação compartilhada em união homoafetiva feminina em que não exista infertilidade. A resolução estabelece ainda que, essa técnica não poderá ser utilizada como forma de se obter alguma vantagem financeira, não possuindo caráter lucrativo ou comercial, daí  porque se atribuiu o nome científico de “barriga solidária” ao invés do popular “barriga de aluguel”, que é muito utilizada em Anand, na Índia, conhecida como a “capital da barriga de aluguel”, além, é claro, de outros países que aceitam essa prática com certas restrições, como, por exemplo, a Inglaterra e os Estados Unidos. Antes da edição das resoluções abordadas acima, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) havia aprovado, no ano de 2006, na 3.463 reunião plenária realizada em 4 de abril de 2006, o Parecer-Consulta nº 126.750[3], definindo alguns parâmetros, inclusive, quanto “a garantia de registro da criança pelos pais genéticos, devendo a documentação ser providenciada durante a gravidez, além de contrato entre as partes estabelecendo claramente esta situação”. Em 4 de outubro de 2011, o CREMESP baixou a Resolução nº 232[4], estabelecendo requisitos nos quais devem ser atendidos pelos interessados na utilização das técnicas de RA, de “doadoras temporárias de útero” que não pertencem à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, para fins de autorização do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. São eles: – Termo de Consentimento Informado assinado pelos pacientes (pais genéticos) e pela doadora temporária do útero, consignado. Obs.: gestação compartilhada entre homoafetivos onde não existe infertilidade; – relatório médico com o perfil psicológico, atestando adequação clínica e emocional da doadora temporária do útero; – descrição pelo médico assistente, pormenorizada e por escrito, dos aspectos médicos envolvendo todas as circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA, com dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico, bem como os resultados obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta; – contrato entre os pacientes (pais genéticos) e a doadora temporária do útero (que recebeu o embrião em seu útero e deu à luz), estabelecendo claramente a questão da filiação da criança; – os aspectos biopsicossociais envolvidos no ciclo gravídicopuerperal; – os riscos inerentes à maternidade; – a impossibilidade de interrupção da gravidez após iniciado o processo gestacional, salvo em casos previstos em lei ou autorizados judicialmente; – a garantia de tratamento e acompanhamento médico, inclusive por equipes multidisciplinares, se necessário, à mãe que doará temporariamente o útero, até o puerpério; – a garantia do registro civil da criança pelos pacientes (pais genéticos), devendo esta documentação ser providenciada durante a gravidez; – se a doadora temporária do útero for casada ou viver em união estável, deverá apresentar, por escrito, a aprovação do cônjuge ou companheiro. A Lei de Registros Públicos, nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 é omissa, logo, tais requisitos devem ser respeitados para fins de registros de nascimento ou morte da criança, quando da emissão da respectiva certidão de nascido vivo ou óbito. Considerando a necessidade de uniformização em todo o território nacional do registro de nascimento e da emissão da respectiva certidão para os filhos havidos pela técnica de RA, de casais heteroafetivos e homoafetivos, a então Corregedora do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Ministra Nancy Andrighi, em 14 de março de 2016, baixou o Provimento nº 52[5] determinando que os cartórios procedam ao assento das crianças geradas pela referida técnica, sob pena de responder por medidas disciplinares cabíveis. Segundo afirmou a Ministra, “a medida dá proteção legal a uma parcela da população que não tinha assegurado o direito mais básico de um cidadão, que é a certidão de nascimento”. O provimento se baseou nas disposições do artigo 227, § 6º, da Constituição Federal e 1.609 do Código Civil Brasil, in verbis: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (…) (…) Art. 1609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito: Precedentes do Supremo Tribunal Federal[6], em que se reconheceu a união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família, com eficácia erga omnes e efeito vinculante para toda a Administração Pública e demais órgãos do Poder Judiciário, também serviram de subsídios para a recomendação baixada pelo CNJ. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça[7], o direito ao casamento civil assegurado às pessoas do mesmo sexo também foi determinante para a aprovação do Provimento 52 pelo CNJ. Em suma, na ausência de lei em sentido estrito, são válidas as diretrizes baixadas pelo Conselho Federal de Medicina, desde que observados todos os critérios para a utilização do útero de substituição por todos os casais interessados nas técnicas de reprodução humana.   O Capítulo I, do Título V, do Código Civil, que aborda as disposições gerais dos contratos, prestigia a liberdade contratual, que será exercida nos limites de sua função social[8]. Dada a sua natureza de cláusula geral na definição do Enunciado 21[9] do Centro de Estudos Judiciários (CEJ) do Conselho da Justiça Federal, a função social do contrato prevista no artigo 421 do Código Civil impõe a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros. Mesma definição adotada pelo Enunciado 22[10] do CEJ, associa a cláusula geral ao princípio da conservação do contrato. Brilhante lição encontramos no precedente do STJ, que assim se expressou neste aspecto: “O exame da função social do contrato é um convite ao Poder Judiciário, para que ele construa soluções justas, rente à realidade da vida, prestigiando prestações jurisdicionais intermediárias, razoáveis, harmonizadoras e que, sendo encontradas caso a caso, não cheguem a aniquilar nenhum dos outros valores que orientam o ordenamento jurídico, como a autonomia da vontade”.[11] Flávio Tartuce[12] já sinalizava em uma de suas obras sobre a evolução nos contratos, notadamente em relação às alterações do instituto da função social, basilar e fundamental não só para o Direito Civil, como para todo o Direito Privado. Afirmava o mestre também que, “pela função social dos contratos, os negócios jurídicos patrimoniais devem ser analisados de acordo com o meio social. Não pode o contrato trazer onerosidades excessivas, desproporções, injustiça social[13]. Também, não podem os contratos violar interesses metaindividuais ou interesses individuais relacionados com a proteção da dignidade humana, conforme reconhece o Enunciado n. 23 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil.”[14] Nessa toada, podemos considerar que, mais que a autonomia de vontade da pessoa que cederá o útero para gerar filho de outrem, afora os princípios éticos, morais e religiosos, o contrato ajustado assumirá um poder tamanho, que sua função social atingirá muito mais que os mínimos valores do ser humano, pois a essência do ato produzirá efeitos intransponíveis e que não poderão ser futuramente remanejados. Em outras palavras, é aceitar que será gerada uma criança que não será sua, que se alimentará de seu sangue, de sua vida, mas que não terá seu amor, seus ensinamentos, pois a outrem é que competirá essa tarefa. Deveras difícil medir ou mensurar a função que esse contrato atingirá nas partes envolvidas na gestação por substituição, mas como instrumento jurídico que é, deve ser respeitado e cumprindo em sua essência máxima.   CONCLUSÃO: O tema é intrigante. Como dito, ultrapassa valores morais e éticos, mas, certamente, um olhar jurídico deve ser dimensionado a fim de que sejam preservados direitos àqueles que se submetem à essa modalidade de técnica de reprodução humana. Não pretendemos esgotar o assunto, mas trazer uma reflexão positiva diante da mutabilidade e da velocidade com que as ações humanas estão acontecendo e que norteiam a sociedade e nosso ordenamento jurídico.
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Legalidade e Eticidade Frente ao Bebê Medicamento.
Resumo
Biodireito
1 INTRODUÇÃO. O ramo civil do Direito de Família engloba todas as responsabilidades do ente familiar. Aborda ainda diversos princípios que as agregam para torná-la eficaz e ter seu desenvolvimento de forma plena e feliz, mesmo sendo esta uma exclusividade conjugal, podendo ou não ocorrer de forma harmônica, mesmo tendo por base os pontos mínimos, moralmente e juridicamente falando. Justamente por decorrer de responsabilidades, as mesmas têm obrigações a serem cumpridas, que, em caso negativo, encontra-se proteção jurídica e meios de requerimento, cuja fundamentação é bastante subjetiva em determinados casos. Desta maneira, devemos sempre pensar no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana para se firmar o planejamento familiar, uma vez que, o primeiro é o básico de todo e qualquer ser humano, devendo ser respeitado desde a concepção. O relato em comento tem por finalidade trazer indagações sobre relacionamentos familiares cuja vontade determinante está na felicidade conjugal e reflete assim em todo o âmbito de uma família realizada. Para um lar assim ser considerado, em regra, para muitos cônjuges, é necessário à chegada de uma criança que reflete amor, paz, harmonia, e tudo de melhor sentimentalmente. Muitos casais se concentram numa realização, cujo aspecto inicial e final,são os filhos. Asseverado alhures, o que todos esperam é além de o bebê trazer toda essa plenitude, é que ele em específico seja pleno e venha com saúde para aproveitar cada momento reservado e de direito a fase de desenvolvimento de uma criança pura, até se chegar, enfim, a sua fase adulta, passando pelo início, meio e fim. Para tanto, os pais buscam de toda maneira e meios possíveis à concretude de um sonho nobre, tendo por base, todo o planejamento familiar que é concedido pela própria Carta Magna, especificamente em seu § 7°, artigo 226. Bem como, pelo Código Civil, “o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas” (BRASIL, 2002). No entanto, diversas formas foram desenvolvidas no mundo medicinal, para melhor propiciar o ato nobre de constituir família, visando o planejamento familiar que tem como fim a organização para a chegada dos filhos. Uma destas formas está correlacionada a um diagnóstico pré-implantacional, o que hoje, é popularmente atendida por bebê medicamento ou, como muitos dizem, bebê que cura. Está é a principal abordagem do trabalho em questão e ao decorrer será relatado como tudo funciona. Será que há respeito ao mencionado princípio da Dignidade da Pessoa Humana? E a autonomia privada? Será que é uma forma ética? Como ela está relacionada frente aos aspectos jurídicos?   2 HISTÓRICO. Havia um tempo em que a plenitude familiar era indiciada pela dádiva de uma mulher fecunda, sendo esta, motivo de comemoração e sinônimo de casar e multiplicar. Segundo Ferraz (2001, p.39), “a infertilidade de um casal era motivo de degradação familiar, podendo, inclusive dar causa à anulação do casamento. A fertilidade era considerada uma dádiva divina”.No decorrer do tempo, perceberam que o projeto de não poder ter filhos, não era exclusividade do sexo feminino, mas sim, também, do sexo masculino, tendo em vista a sua baixa faixa de espermas, e em alguns casos, até mesmo a ausência destes.Saliente-se que, “a esterilidade é considerada o estado em que a gravidez não ocorre, ou seja, caracteriza-se pela incapacidade definitiva de conceber” (MACHADO, 2009, p. 20). Já a infertilidade é atribuída aquele casal em que ocorre a fecundação, mas o produto dessa concepção não é viável (SCALQUETTE, 2010, p. 61).Dado tais fatos, historicamente percebidos, a necessidade de soluções começaram a tomar conta dos indivíduos, principalmente, aos que sofriam a esterilidade, que foi a causa de impedimento de muitas realizações pessoais.Desta maneira, a biotecnologia foi sofrendo vários desempenhos e avançando cada vez mais. Assim, originaram-se os diversos procedimentos de reprodução assistida. A reprodução assistida consiste em uma área do conhecimento científico detentora do saber, das técnicas e dos procedimentos pelos quais se permitem a fecundação artificial na expectativa de tratar de casos de infertilidade e de possibilitar a realização de um projeto familiar (OLIVEIRA, 2014). “Saindo da área não-científica, tem-se como marco inicial das técnicas de reprodução assistida as civilizações babilônicas e árabes que polinizavam palmeiras com o objetivo de produzir mais e melhores furtos.  Refere-se, ainda, que já no século XIV se realizava a inseminação artificial em peixes, e, no século XV, no bicho da seda. Afirma-se que em 1332 se teria obtido a fecundação de uma égua com interferência humana, sendo relatado que a técnica era utilizada como artifício de guerra, seja pela inseminação de éguas dos inimigos com sêmen de cavalos velhos ou doentes, seja por furto do sêmen dos bons cavalos dos adversários. (…) No século XVIII foram produzidas algumas experiências nesta área, sendo que em 1767 o alemão Ludwig Jacobi trabalhava com a reprodução de peixes, enquanto o abade italiano LazzaroSpallanzani, em 1777, logrou obter a fecundação de uma cadela por meio da inseminação artificial, nascendo, daí, três crias. Já no século XIX a inseminação artificial foi aplicada em outros mamíferos como éguas, vacas e ovelhas, destacando-se nas pesquisas com mamíferos o russo Elie Ivanoff. Especificamente no ser humano, as primeiras notícias históricas datam do século XV, quando a técnica teria sido utilizada por D. Joana de Portugal, casado com Henrique IV di Castelo, “o Impotente”. Posteriormente, em 1785, Thouret, decano da Faculdade de Medicina de Paris, fecundou sua mulher estéril, aplicando-lhe uma injeção intravaginal de esperma. Em 1790, o inglês John Hunter obteve a gravidez de uma mulher aplicando-lhe na vagina o esperma do marido hipospádico. O francês Girauld, em 1838, relatou o sucesso em oito casos experimentados, um dos quais com gravidez gemelar.  Jaime Marion Sims, no ano de 1866, obteve sucesso em experimento com a introdução do líquido seminal no canal servical de mulher o que foi repetido em 1871 por Gigon d´Angulême. (…) Durante a II Guerra Mundial milhares de crianças norte-americanas foram geradas com o sêmen de soldados que lutavam no pacífico, tendo o mesmo ocorrido com soldados ingleses durante a Guerra da Coréia. Nos Estados Unidos a Suprema Corte de Nova Iorque declarou a legitimidade dessas crianças, porém, na Inglaterra a Câmara dos Comuns, proibiu a inscrição, como legítimas, de crianças nascidas em razão da doação de sêmen de doador anônimo.  (…)  em 25 de julho de 1978 nasceu na Inglaterra Louise Brown, o primeiro ser humano fruto de uma reprodução in vitro, foi extremamente importante o desenvolvimento de crioconservação, primeiro de esperma, depois de embriões e, recentemente, de óvulos, sendo que a primeira gestação com um embrião congelado foi obtida na Austrália, no ano de 1983, por equipe dirigida pelo cirurgião Wood.” (FERNANDES, 2000, p. 49). Na esteira do que vem sendo defendido pelo próprio Conselho Federal de Medicina, a infertilidade humana é um problema de saúde e é legítimo o anseio de superá-la. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2015). Uma dessas técnicas de reprodução assistida desenvolvida no decorrer dos anos é a reprodução humana assistida. Com tal reprodução, surgiu o chamado bebê medicamento, que, por meio de um diagnóstico genético pré-implantacional, a técnica é realizada, com intermédio do desejo familiar para atingir a curado filho mais velho, portador de grave doença hereditária, da qual a cura é viável por transplante vindo de um doador compatível, neste caso, o “bebê medicamento”, a ser gerado pela mãe do portador da doença, de forma seletiva (selecionam os únicos embriões não portadores da doença e compatível com o (a) irmão (a) mais velho, o implantando no útero materno), devido à probabilidade maioritária representada por este, já que pelo método natural não poderia haver seleção. Daí, o motivo de alguns o denominarem de bebê que cura, ou bebê nascido para curar. (…) como a seleção permite a escolha de embriões histocompatíveis, o casal Nash não teve dúvida: resolveu gerar um filho que pudesse oferecer a Molly uma segunda chance de vida. Se os Nash tentassem ter um filho pela forma natural, haveria um risco de 25% deste nascer com a mesma doença. A seleção de embriões, neste caso, serviu para duas finalidade: afastar a Anemia de Fanconi do futuro filho, permitindo aos Nash o nascimento de uma criança saudável, e, através do cordão umbilical do bebê ( Adam), Molly teve uma segunda chance de vida através das células histocompatíveis. (VIEIRA,  2009, p. 57). Contudo, vejam alguns aspectos jurídicos e éticos a ser abordados no presente artigo no tocante a mencionada técnica realizada a despeito da tenra idade do doador “voluntário”.   3 DO PLANEJAMENTO FAMILIAR. Latu senso, o vocábulo família abrange todas as pessoas ligadas por um vínculo de sangue e que procedem, portanto, de um tronco ancestral comum, bem como as unidas pela afinidade e pela adoção. (GONÇALVES, 2014, p.15). A família constitui o alicerce mais sólido em que se assenta toda a organização social, estando a merecer, por isso, a proteção especial do Estado, como proclama o art. 226 da Constituição Federal, que a ela se refere como “base da sociedade”. (GONÇALVES, 2014, p.21). Destarte,  família em si está elencada a um planejamento familiar, cujo objetivo é sua organização, tanto pessoal quanto social. Social pelo ponto de vista onde a família é considerada um grupo social básico, uma vez que a mesma é cultural por ser criada e desenvolvida pelo afeto e não pelo vínculo consanguíneo. Por isto, não há, por exemplo, a distinção entre filhos, se biológicos ou não. No que tange a organização pessoal, a mesma se interliga ao desejo familiar e suas finalidades conjugais, bem como, o planejamento dos filhos. Por fim, nessa junção, a família nasce para proteger as pessoas e para o desenvolvimento de suas personalidades. Entrementes, “o direito ao livre exercício ao planejamento familiar deve necessariamente estar associado à dignidade da pessoa humana e à parentalidade responsável, pois a decisão de ter filhos importa numa série de responsabilidades para com esta criança (…)”. (SIERRA; MESQUITA, 2006). Como fora visto, o planejamento familiar é concedido pela própria Carta Magna, especificamente em seu § 7°, artigo 226. Bem como, pelo Código Civil, artigo 1565, §2º “o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas” (BRASIL,2002). O planejamento familiar é ainda, estabelecido por uma Lei Ordinária de 12 de janeiro de 1996 que regula o mencionado § 7°, artigo 226 da Constituição Federal. Estabelece penalidades e dá outras providências. Segundo Paulo Lobo, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald: O planejamento familiar é singelamente referido no Código Civil (CC 1.565 §2º). Encontra-se regulamentado na L 9.263/96, que assegura a todo cidadão – não só ao casal – planejamento familiar, que inclui métodos e técnicas de concepção e contracepção. Trata-se de legislação mais voltada à implementação de políticas 5 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direitos das Famílias. 9 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 361. públicas de controle de natalidade. O planejamento familiar de origem governamental é dotado de natureza promocional, não coercitiva, orientado por ações preventivas e educativas e por garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade. (LOBO, Paulo, 2010, p.44). Na trilha da compreensão constitucional, a Lei n° 9.263/96 estabelece uma política de planejamento familiar, entendido como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole (art. 2°) e reconhecido o direito de todo cidadão de organizar-se familiarmente (art. 1°). A citada norma legal, ainda, prevê que o planejamento familiar será orientado por ações preventivas e educativas, além da garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade. (FARIAS; ROSENVALD,  2016, p.114). Nada obstante, o planejamento familiar significa dizer sobre o interesse privado e público de se constituir uma família, devendo ser amparada pelo Estado, mesmo havendo o princípio da não intervenção ou da liberdade, ou seja, intervenção mínima. Ademais, tal planejamento gera responsabilidade, principalmente ao que tange a parentalidade na decisão de ter filhos.   4 DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Conforme entendimento do doutrinador Tartuce: Ora, não há ramo do Direito Privado em que a dignidade da pessoa humana tem maior ingerência ou atuação do que o Direito de Família. Por certo que é difícil a concretização exata do que seja o princípio da dignidade da pessoa humana, por tratar-se de uma cláusula geral, de um conceito legal indeterminado, com variantes de interpretações. (TARTUCE, 2014, p. 45/46). Maria Berenice diz que: A preocupação com a promoção dos direitos humanos e da justiça social levou o constituinte a consagrar a dignidade da pessoa humana como valor nuclear da ordem constitucional.(DIAS. 2011, P. 62) Completa ainda: O princípio da dignidade humana é o mais universal de todos os princípios. É um macroprincípio do qual se irradiam todos os demais: liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade, uma coleção de princípios éticos. (DIAS, 2011, p. 62). Deste modo, bastante abrangente é o princípio da Dignidade da Pessoa Humana e é regulado pela Constituição Federal, em seu inciso III, artigo 1º, a qual expressa: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político.” (BRASIL, 1988). Indiscutível é a importância dos princípios elencados pela Carta Maior, e o princípio supra não seria diferente, sendo este, um dos princípios fundamentais positivado. Com o advento do Estado Democrático de Direito, os princípios foram ganhando forças e repercussão, principalmente o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que acompanha o homem (ser) desde a sua concepção, se tornando, no entanto, referência para as interpretações e aplicações das normas jurídicas, seja nas relações sociais, morais ou pessoais. Afirma Chaves Camargo que: […] pessoa humana, pela condição natural de ser, com sua inteligência e possibilidade de exercício de sua liberdade, se destaca na natureza e diferencia do ser irracional. Estas características expressam um valor e fazem do homem não mais um mero existir, pois este domínio sobre a própria vida, sua superação, é a raiz da dignidade humana. Assim, toda pessoa humana, pelo simples fato de existir, independentemente de sua situação social, traz na sua superioridade racional a dignidade de todo ser. (CAMARGO, 1994, p. 27/28). Nesta senda, sobre dignidade, Sarlet: É inerente aos homens, inata a sua natureza de ser humano, é direito constitucional, sua aplicação e eficácia são imediatas, não pode ser alienada, não sofre prescrição, é bem fora do comércio, e a partir da Constituição Federal de 88 torna-se cláusula pétrea. Observa-se que ela é irrenunciável, inalienável, e deve ser reconhecida, promovida e protegida, não podendo, contudo, ser criada, concedida ou retirada, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente. (SARLET, 2001, p. 26). Moraes: A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que trás consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se de um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. (MORAES, 2002, p.128-129.). O princípio da Dignidade da Pessoa Humana também é devidamente reconhecido pela Declaração Universal de Direitos Humanos, justamente por ser considerado básico para todos os demais direitos fundamentais, estando inclusive, exposto em seu preâmbulo. Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla. (Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948). Contudo, a dignidade da pessoa humana é um direito intrínseco a todos e acompanha cada pessoa desde a sua concepção, devendo ser respeitado devido a sua base mínima de convivência humana. Sendo assim, o mesmo é considerado o princípio mais universal de todos, ou seja, é dele que se irradiam todos os demais princípios constitucionais.   5 DOS PRINCÍPIOS BASILADES DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA QUE REGEM O DIREITO DE FAMÍLIA NO BEBÊ MEDICAMENTO. De acordo com o doutrinador Maurício Godinho Delgado “princípio traduz, de maneira geral, a noção de proposições fundamentais que se formam na consciência das pessoas e grupos sociais, a partir de certa realidade, e que, após formadas, direcionam-se à compreensão, reprodução ou recriação dessa realidade”. (DELGADO, 2011, p. 180). Miguel Reale aduz que: princípios são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, a aplicação e integração ou mesmo para a elaboração de novas normas.São verdades fundantes de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da práxis. (REALE, 2003, p. 37). Por fim, Maria Helena Diniz afirma que os princípios “(…)suprem a deficiência da ordem jurídica, possibilitando a adoção de princípios gerais de direito, que, às vezes, são cânones que não foram ditados, explicitamente, pelo elaborador da norma, mas que estão contidos de forma imanente no ordenamento jurídico”. (DINIZ,  2003, p. 456). Por basilar, entende-se base, no entanto, princípio básico, fundamental, pelo qual, se não respeitado gera ineficácia sobre os pontos os quais os mesmos se correlacionam. Dentre tantos princípios basilares do direito civil que rege o Direito de Família, temos também, aqueles expressos pela Carta Magna, o qual também rege o Direito de Família e todos os demais ramos. Assim, sendo a Constituição Federal hierarquicamente a legislação maior, devendo as demais a ela condizer, o trabalho tratará dos princípios destas, os quais devem ser seguidos por todos na entidade familiar. Todavia, como já fora visto, além de conter princípios de direito de todo e qualquer ser humano, a família é um preparativo social, sendo assim considerada instrumental, a qual é vista como um meio de criação das personalidades, sendo, desta maneira, responsável pela formação do bem comum. Por isso, há o amparo estatal, embora também haja a sua intervenção mínima. Os princípios são denominados de Princípio de Proteção da Dignidade Humana, Solidariedade Familiar, Igualdade entre Filhos, Igualdade entre Cônjuges e Companheiros, Maior Interesse da Criança e do Adolescente e Princípio da Função Social da Família. O mais importante dos princípios contidos na Carta Maior (citados no parágrafo anterior) e que rege o Direito de Família e que aqui fora selecionado para se tratar do bebê medicamento é o Princípio de Proteção da Dignidade Humana, seguido do Princípio da Igualdade entre Filhos e Maior Interesse da Criança e do Adolescente. O primeiro, também chamado de princípio do Respeito à Dignidade da Pessoa Humana, nasce com a pessoa, é inerente ao homem sendo considerado irredutível, cujos direitos a Constituição protege. O princípio do respeito à dignidade da pessoa humana constitui, assim, base da comunidade familiar, garantindo o pleno desenvolvimento e a realização de todos os seus membros, principalmente da criança e do adolescente (BRASIL, 1988). Contudo, deve ser observado em todos os estágios da vida, sendo um direito inerente até mesmo ao feto. Portanto, qualquer técnica com finalidade o qual o engloba como principal, deve seguir todos os direitos a ele inerente sem ferir, singularmente, sua dignidade. O segundo trata-se da igualdade entre filhos, não podendo os mesmos ser distinguidos de qualquer forma, independentemente se de laços sanguíneos e afetivos ou somente laço afetivo. Consubstanciado no § 6º do art. 227 da Constituição Federal “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação” (BRASIL, 1988). Sendo assim, o referido princípio se estende e deve ser observado nas relações onde envolve a técnica do bebê medicamento, o qual se pode preconizar que o mesmo deve ser desejado como um fim em si mesmo e depois como uma alternativa de cura, ou então, embora seja desejado mais a frente, que o mesmo seja antecipado e consequentemente e secundariamente, salvar o irmão. Entretanto, não se pode deixar de lado a igualdade que deve ser gerada entre eles, principalmente no que tange a afetividade familiar, sendo o mesmo abraçado sem distinção e sem objetivar tão somente uma alta probabilidade de cura. O princípio do Maior Interesse da Criança e do Adolescente ao se falar do bebê medicamento, é visto como um empecilho para a aprovação jurídica da técnica, uma vez que, busca escutar a criança e seu real interesse na entidade familiar. Embora seja visto e lembrado apenas nos interesses que tange a separação dos cônjuges e a guarda do menor, o princípio mencionado é muito mais amplo, é uma questão de visão e hermenêutica. No entanto, respaldado no bebê medicamento, como já explanado no presente artigo, alguns estudiosos são discordantes quanto à realização dessa espécie de Reprodução Humana Assistida, tendo em vista a falta de consulta prévia ao ser principal dessa relação, sendo essa uma conclusão lógica, pelo fato de a maioria dos procedimentos serem realizados com o nascimento do bebê ou quando ainda bebês, a depender da enfermidade. Discordam não por causar lesões ao doador, pois o mesmo não é lesionado, mas por uma questão moral e psicológica que pode ser negativamente desenvolvida na criança ao passar dos anos.   6 BEBÊ MEDICAMENTO. Bebê medicamento é o nome utilizado na atualidade para a técnica a qual concede a cura do filho mais velho de um casal através da seleção de embriões saudáveis e livres da doença genética e/ou a mesma doença do primogênito, autorizada pelo Conselho Federal de Medicina com fundamento na Resolução n° 2.121/15 a qual revogou a Resolução 2.013/13. O diagnóstico pré-implantacional trata-se de um exame de alta tecnologia que pode auxiliar os casais que são portadores de doenças genéticas a terem filhos saudáveis. Neste procedimento são utilizadas técnicas moleculares ou de citogenética molecular durante a fertilização in vitro com o objetivo de selecionar embriões saudáveis para serem transferidos ao útero materno (MARTINHAGO; OLIVEIRA, 2010, p. 333). Muitos referem à nomenclatura bebê medicamento ao próprio bebê que tem por finalidade salvar a vida do irmão existente, e não a técnica em si, como fora dito acima. Desta maneira, foram surgindo outras denominações, como “bebê que cura”, “bebê doutor”, “bebês nascidos para curar”. O bebê medicamento começa sua origem quando há a coleta do óvulo de sua genitora e consequentemente do espermatozóide de seu genitor para a fertilização in vitro. Dessa forma há a possibilidade de se observar a saúde dos embriões in vitro e assim os selecionar antes de serem transladados ao útero. O procedimento dessa espécie de técnica assistida é realizada com sucesso quando o embrião selecionado saudável é compatível para a implantação. Havendo a compatibilidade e a equivalência de tecidos entre doador e receptor (bebê e irmão mais velho), poderá ocorrer a transplantação de sangue do cordão umbilical. No caso de leucemia, por exemplo, o transplante do sangue do cordão umbilical serve para substituir a medula óssea que até então não funciona corretamente, não causando prejuízos físicos a ambos, principalmente ao bebê. Também é permitido que fosse realizado em caso de seleção de tipagem do sistema HLA – antígeno leucocitário humano – do embrião. Para seleção de HLA compatíveis com um filho do casal afetado por alguma doença, cujo tratamento efetivo se dá por meio do transplante de células-tronco ou de órgãos. (BRASIL, 2013). Importante salientar que o bebê medicamento não é uma forma absoluta de se alcançar a cura, podendo o mesmo falhar em caso da falta de compatibilidade. Porém, a técnica a qual o mesmo é submetido tem uma probabilidade infinitamente maior frente a terceiros ou outros meios que não demanda de um ente familiar, onde o irmão tem a maior possibilidade de atingir a finalidade do procedimento em comento. Como já fora dito o bebê não sofrerá lesões. O mesmo, não é visto como uma cobaia para uma técnica medicinal e sim como um ser que proporciona a chance de cura de um ente familiar, podendo futuramente se orgulhar, ou não, tendo em vista que é algo extremamente subjetivo, não podendo assim, se ter ideia do sentimento a ser desenvolvido pela criança no decurso da vida. Não se pode afirmar o pensamento de um ser humano, abrindo assim uma discussão de vários pontos, tantos negativos como positivos. É algo muito relativo e por isso é importante à observação de alguns princípios para se chegar ao menos ao respeito da dignidade da pessoa humana, já que os pensamentos pessoais intrínsecos ao doador são inalcançáveis por terceiros avaliadores da RHA (Reprodução Humana Assistida). Todavia, se torna óbvio que no caso em questão não há uma consulta prévia do doador, mas, tão somente, dos seus genitores. Essa afirmação levanta então várias questões para alguns estudiosos do biodireito, bem como, da bioética, fazendo-se pensar que afrontaria a autonomia privada do bebê, que é visto como ser e provedor de direitos fundamentais desde sua concepção, como foi elencado no decorrer do trabalho. Bruno Lewicki, por exemplo, é discordante sobre a falta de consulta prévia no que diz respeito às decisões que atinjam diretamente a pessoa principal, quer seja, nesse caso, a criança. Mas não se pode esquecer de que o interesse da criança deve ser sempre tomado na mais alta conta no que diz respeito às decisões que lhe atinjam diretamente, além de não ser o produto de opções e preferências de outras pessoas, ainda que estes terceiros sejam os seus pais. A pessoa é um valor em si mesma, e não pode ser utilizada como meio de satisfação de aspirações dos pais. (LEWICKI, 2001, p. 147). Por autonomia se pode entender, conforma explana Claudia Regina Magalhães Loureiro, “o princípio da autonomia diz respeito à liberdade individual de a pessoa escolher o que é melhor para si, desde que haja a troca de informações entre o médico e o paciente sobre os tratamentos disponíveis.” (LOUREIRO, 2009, p. 12). Ante o exposto, sobre os pontos positivos: Os principais argumentos favoráveis são: a técnica é melhor, pois caso a concepção de modo natural não resulte na compatibilidade genética entre o feto e o irmão, a gravidez pode resultar um aborto; deve ser respeitada a autonomia dos pais e a sua liberdade reprodutiva; possibilita a salvação de uma vida, por isso é eticamente válido; não se causa um dano, pelo contrário, está se fazendo um bem para uma vida e para toda uma família; permite uma forma de tratamento mais fácil para o irmão enfermo, na medida em que, na maioria das vezes são utilizadas células do cordão umbilical, sem precisar do transplante de medula óssea, o que é menos invasivo para o próprio bebê medicamento (RESTREPO, 2012, p. 307-308). Pontos negativos: Os principais argumentos contrários são: a técnica não é ética, pois utiliza o diagnóstico genético pré-implantacional para selecionar vidas e discriminar embriões saudáveis, na medida em que se deve escolher somente aquele que for compatível geneticamente; a técnica enseja na fecundação de um número maior de embriões, e consequentemente no maior descarte, pois a chance de causar dano ao embrião com a realização do diagnóstico genético pré-implantacionalé muito grande; coloca-se em risco a saúde da mãe submetida à estimulação ovárica; a técnica apresenta baixa eficácia, visto o grande descarte de embriões saudáveis para conseguir encontrar aquele que seja, além de saudável, compatível geneticamente; atenta contra a diversidade genética; por fim, em relação ao bebê nascido, os problemas psicológicos que a técnica pode lhe acarretar no futuro (RESTREPO, 2012, p. 310/311). Acontece que dentre todos os pontos aqui correlacionados, o principal assunto é entorno do bebê nascido por qualquer outro objetivo, senão por ele mesmo. Para muitos ele seria um mero instrumento coisificado pelo meio e não como um fim. Surgem, então, indagações se este seria desejado por ele mesmo ou pelo irmão ou pela cura de um enfermo amado pelos pais. Mais uma vez, é uma visão bastante subjetiva devendo ser interpretada e assim se chegar num denominador comum entre a Ética e o Direito. A instrumentalização do ser humano e, precisamente, do embrião, e seu uso como mero meio, é avesso ao que reza o principialismo personalista. Trata-se de uma visão antropológica considerar o homem um fim absoluto. Logo, o embrião, sob a visão antropológica, é um fim absoluto e não deve ser coisificado, não deve ser tratado como meio. (LOUREIRO, 2009, p. 12). Perante tudo que fora discorrido, o bebê medicamento não deve ser visto como algo negativo e nem como um mero instrumento ou coisa, ou um instrumento coisificado, afinal, não perde sua qualidade de pessoa e nem deixa de possuir dignidade. A visão que o mesmo pode desenvolver futuramente pode ser auxiliada pelos pais, que podem direcioná-lo para os pontos positivos e evitar uma visão distorcida e que não é absoluta, muito menos certa. Embora a técnica tenha que ter amparo do Estado, o amparo maior, que é no âmbito afetivo, os principais desenvolvedores e responsáveis são os pais. Muitos afirmam que a criança vinda ao mundo desta maneira, seria deixada de lado pelo fato da dedicação exclusiva dos pais ao filho doente. Não é necessariamente deixar de lado, é a dependência gerada por um enfermo que precisa de cuidados durante essa fase delicada, dependência de qualquer enfermo, em qualquer fase ou idade. Por exemplo, imaginem os seus pais idosos e com saúde agravada, no momento você tem um (a) esposo (a) o (a) qual merece toda a dedicação, assim como seus filhos, que são crianças e querem muito a sua presença. Pois bem, seus pais seriam deixados de lado ou teriam mais acolhimento? Ou seus filhos e esposo (a) seriam deixados de lado ou ajudariam? Tomariam a causa como se deles fossem pais? Ou simplesmente reclamariam por algo que não se escolhe? Pois é, é algo, mais uma vez, totalmente subjetivo e mais uma vez independe de qualquer procedimento. Independe se se trata ou não de bebê medicamento. No entanto, não se pode descartar o avanço positivo na medicina e na qualidade de vida pessoal e social a ser proporcionada com a RHA através de um bebê que em nada seria prejudicado. Não tem motivo de se acreditar que a criança poderia ser descartada após o nascimento simplesmente por não ser desejada apenas por ela, mas por ela e pela cura ou só pela cura. Afinal, continua sendo biológica. O amor pela mesma e pelo irmão mais velho é plenamente desenvolvido e ambos são originados por meio dos óvulos e espermatozóides dos pais. E qual é a lógica de desprezar um bebê que salvou a vida de um ente tão amado? Por qual motivo o mesmo também não seria amado? Embora não deve haver a distinção entre filhos o bebê pode ser visto como um pilar e infinitamente amado pelos pais e principalmente pelo irmão. O afeto vem de qualquer forma. Um bebê nunca precisou de uma técnica para não ser querido após seu nascimento. Ou se quer, ou não se quer, independentemente de algum procedimento. Há muito mais chances de um filho biológico não selecionado por uma técnica medicinal ser desprezado por ser mero acidente e não ter vindo na hora em que os pais julgavam “certa” ou por nunca terem pensado na possibilidade ou querer a gravidez do que um bebê concedido por uma finalidade nobre. Quando se anda pelos mesmos caminhos e se calça os mesmos sapatos dos pais que necessitam de um desenvolvimento medicinal que os ampare com a esperança de uma última cura é que se entende o anseio de cada um e a eles deve ser dado a chance de planejamento familiar de forma saudável e plena. E isso não é egoísmo e nem falta de pensamento no bebê decorrente da técnica, o mesmo é apenas um ser especial que tem o dom da vida e de dar a vida e sem motivo algum para não ser amado. A criança não deixa de ser amada pela sua própria existência, apenas tem um motivo a mais para ser amada. Conquanto, desde que a técnica seja totalmente decorrida após a observância da dignidade humana e ocorra de maneira segura e sem prejuízos ao bebê, motivo não há de a mesma ser barrada.   7 CONCLUSÃO. Com a finalidade de demonstrar a técnica de Reprodução Humana Assistida que engloba um bebê, denominados por muitos de bebê medicamento e para outros de bebê que cura, bebê nascido para curar ou até mesmo bebê doutor, o artigo inicia introduzindo o ramo do Direito Civil que mais engloba o tema em questão, bem como, o mais avaliado sobre o enfoque da Dignidade da Pessoa Humana, quer seja, o Direito de Família. O Direito de Família decorre da entidade familiar sobre os seus aspectos pessoais e sociais devido à consideração dada à família como instrumental, sendo assim, um meio de criação dos indivíduos o qual reflete diretamente no bem comum. No entanto, há intervenção estatal, mesmo havendo de forma mínima, mas ao menos ao básico. Após breve introdução, a parte histórica veio mostrar a técnica desde sua origem e como o bebê medicamento é um avanço considerável na biomedicina, nos remetendo a alguns aspectos jurídicos e éticos na mencionada técnica realizada a despeito da tenra idade do doador. Desta maneira, foram abordados durante o trabalho os pontos positivos e negativos e, também, o ponto mais discutido que é o bebê nascido por qualquer outro objetivo, senão por ele mesmo. Para chegar num denominador comum entre a Ética e o Direito, o planejamento familiar não fica de lado, uma vez que a técnica é desenvolvida entorno do desejo da organização familiar, o que, em regra, tem por finalidade a criação dos filhos. Os mesmos são merecedores da saúde proporcionada pelo Estado e os pais merecem a concretização do planejamento familiar, sendo este um direito desta entidade. Com a necessidade dessa organização da família objetivada na chegada dos filhos e com alguns impedimentos com a esterilidade, a medicina foi avançando para alcançar os anseios sociais e o bebê medicamento não é uma forma diferente de se alcançar uma melhor qualidade de vida, tendo em vista que o mesmo busca nascer de forma saudável e com compatibilidade para aumentar as chances de cura do irmão mais velho. Asseverado alhures, fora descrito os princípios basilares da Constituição que regem o Direito de Família e que reflete no bebê medicamento, princípios esses, como já fora dito, que permite uma amplificação do tema. Dentre todos os princípios relatados no texto, o mais importante, o qual os demais irradiam, é o princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Respaldado nesses termos, chegasse à conclusão de que a técnica não é meramente absurda e nem longe da realidade e não fora descartada como uma chance enorme de qualidade de vida, a qual não prejudica as partes dessa relação, dando liberdade ao direito dos pais e uma chance de vida saudável ao futuro bebê (que poderia nascer com a mesma doença genética) e ao irmão enfermo. Contudo, neste caminho, fora findado o respeito da técnica ser decorrida após a singela observância da dignidade humana e que ocorra de forma segura e sem prejuízos, não tendo assim, motivos da RHA baseada no bebê, hoje chamado de bebê medicamento, ser abortada/barrada juridicamente.
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A Difícil Escolha Entre Viver Artificialmente ou Morrer com Dignidade
Este ensaio tem o intuito de trazer à baila um tema que envolve o mais fundamental de todos os direitos – o direito de viver. A declaração universal dos direitos do homem trata do direito à vida de maneira sagrada e declara que qualquer direito – quando em colisão com o direito à vida perde sua essência de fundamental. Ao partir dessa premissa de que todos os direitos decorrem do direito à vida, surge a ideia central proposta neste artigo, que trata do direito de morrer como parte integrante do direito à vida e não contrário a ela. A bioética, ou a ética da vida, surgiu como apoio à biotecnologia, ciência em constante evolução que dispõe de técnicas, cada vez mais sofisticadas, e que tem por objeto curar doenças e aliviar sofrimentos, mas que também podem interferir de forma, talvez duvidosa, no nascer e no morrer. O direito de morrer tratado aqui se refere tão só ao enfermo fora da expectativa de cura e em situação de prolongamento artificial da vida, bem como a aplicação do princípio da autonomia como forma de garantir a integral efetividade do mais elementar de todos os direitos humanos: o direito de viver.
Biodireito
Introdução Este trabalho tem como intenção trazer à discussão o direito de cada cidadão de morrer de maneira digna, inspirado no princípio da bioética da autonomia da vontade, que tem por objeto garantir a escolha consciente de cada indivíduo, nas questões que se referem a terapias médicas de prolongar a vida de maneira estritamente artificial. É de mencionar que o direito de morrer tratado neste ensaio se dará tão apenas na esfera das questões de prolongamento artificial da vida em doentes considerados, medicamente, fora de qualquer expectativa de cura, qualquer outra forma de utilização deste instituto, não será objeto do presente trabalho, que também não se norteará por discussões de cunho religioso ou espiritual. Os inegáveis avanços da medicina são evidências de uma era que requer uma nova postura construída sobre sólidos alicerces morais e, sobretudo, éticos porque a mesma tecnologia que se apresenta como uma possível solução de cura e redução de sofrimento, pode também interferir de maneira deveras atrevida no direito de nascer e no direito de morrer de cada indivíduo. A bioética – ou ética da vida – surge com o objetivo de (re)modelar as expectativas científicas que utilizavam seres humanos como objeto de pesquisa, com a intenção de transformar essa prática em experiências fundadas nos princípios morais e dignos de todo ser humano. Desde então, a ciência da moral tem como missão “mediar” os avanços tecnológicos da medicina e sua aplicação em seres humanas. Um dos pilares da bioética é o princípio da autonomia da vontade, que entende o doente como ser humano capaz de decidir pelo início, pela mantença e pela interrupção do tratamento médico. Ressalta-se que o indivíduo somente poderá usufruir integralmente de sua qualidade de “ser humano” quando seus direitos fundamentais forem assegurados. A atual sociedade vive uma época cada vez mais de (des)construção de paradigmas e de conceitos. Inegavelmente o homem evoluiu no seu intelecto, porém, ainda existe muito a evoluir, especialmente na área dos direitos fundamentais, que inevitavelmente formarão a base das sociedades futuras. Na declaração universal de direitos do homem, os direitos fundamentais não são proclamados, eles são reconhecidos, o que pressupõe sua pré-existência. São direitos inerentes a cada ser humano, que nasce com o homem e, por isso, são invioláveis, atemporais e universais. Os direitos fundamentais têm como sinônimos os direitos naturais, individuais, civis, de liberdade, humanos ou liberdades públicas.[2] Algumas características que baseiam os direitos fundamentais são a liberdade (como valor humano básico), a pré-existência (não dependem de lei que os crie), a eficácia erga omnes (são direcionados a todos os seres humanos), a universalidade (são idênticos para todos), a proteção contra o Estado ou status negativus (protege o indivíduo contra ato ofensivo do próprio Estado ou de terceiros) e também são inalienáveis, imprescritíveis e intributáveis.[3] É de destacar entre todos os direitos fundamentais o direito à vida, que dá razão de existir a todos os demais direitos. O direito à vida é a base dos direitos fundamentais e certamente o mais significativo, já que sem ele nenhum outro pode existir. A cristandade concebe a vida como sendo um dom e não um poder absoluto, mas limitado – um poder ministerial, de administração e tutela, “reflexo concreto do domínio único e infinito de Deus”.[4] Para a teologia a vida é sagrada pelo fato de pertencer “em parte” ao indivíduo e “em parte” ao Criador. Por sua vez a Filosofia leva em conta a moral, a natureza humana para justificar a inviolabilidade da vida. Enquanto dever institucional, a vida é inviolável porque não é um bem disponível, daí a tipificação penal para quem a subtrai de outrem. Assim, o entendimento teológico, filosófico e legal tem em comum o sagrado da vida enquanto direito natural, aquele que nasce com cada ser humano e dele é indissociável, onde o dever de proteção e garantia deve se dar vários aspectos, sejam elas  públicas, civis, religiosas, etc. Destarte, para o ordenamento jurídico, a vida é um direito/dever tutelado pelo Estado, desde a concepção até a mais remota possibilidade de se fazer presente.  O direito à vida é o que há de mais valioso em qualquer ordenamento jurídico, até porque sem ele qualquer direito inexiste. No entanto, na sociedade hodierna, o direito de viver não pode mais ser interpretado apenas como “deixar viver”, essa ideia é muito mais larga. O direito à vida compreende uma existência digna e passível de ser usufruída. Ver cada um como cidadão, investido de direitos e de deveres é o modo que parece refletir melhor o conceito de direito à vida.   1.1. A dignidade do ser humano O conceito preponderante atribuído à dignidade teve uma evolução que coincide com a evolução do próprio homem. Antigamente, a dignidade era privilégio dos cristãos; posteriormente, era “distribuída” de acordo com a posição social de cada indivíduo. Posteriormente, a dignidade passa a ser vista como algo que é intrínseco à pessoa e era o que o diferenciava do ser não humano, até evoluir ao pensamento hodierno de que toda a pessoa é dotada igualmente de dignidade e que está diretamente ligada a noção de liberdade de cada indivíduo. Immanuel Kant[5], no século XVII, dá início ao conceito de dignidade que pode ser compreendido universalmente e que até os dias atuais parece fundamentar as bases teóricas da doutrina dispostas a dar azo ao tema. Em sua principal obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, Kant diz que “No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade.[6]” Na pós-modernidade, onde estamos inseridos, o pensamento de Kant sofre uma (re)leitura com o objetivo de esgarçar o conceito de dignidade. Na concepção do direito não é menos difícil fazer entender o que significa dignidade, no entanto, a lista de afrontas à dignidade de cada ser humano é assaz ampla e facilmente compreendida, independente da capacidade de cada um. É precisamente quando temos os piores sofrimentos humanos (torturas, castigos degradantes, violências sexuais, privação de alimentos etc.) quando advertimos melhor, por contraste, o que significa a dignidade da pessoa[7]. O princípio da dignidade da pessoa está umbilicalmente ligado aos direitos fundamentais, além de lhes servir de fundamento à construção da ideia de “direitos natos”. Nas palavras de Baez[8]: As Declarações de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos1 e da Organização das Nações Unidas,2 ambas de 1948, reconheceram, em seus preâmbulos, um valor comum que deveria ser utilizado como base de todos os direitos ali consignados, qual seja, a dignidade humana,3 que passou a ser reconhecida como o valor essencial e pedra angular de todos os direitos ali enunciados.4 No mesmo sentido, a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia também reconhece “valores indivisíveis e universais da dignidade do ser humano, da liberdade, da igualdade e da solidariedade” como base dos direitos que declara.5 Na seara filosófica, as diversas teorias ocidentais que buscam fundamentar os direitos humanos6 também relacionam, por diferentes argumentos e caminhos, que esses direitos são formas de realização da dignidade humana, colocando em relevo que é esse o elemento ético nuclear dessa classe de direitos, na visão ocidental, pois eles têm como raiz o valor intrínseco à dignidade encontrada nos seres humanos.   A dignidade está projetada na forma de ver o sujeito como um fim em si mesmo. Indo de encontro a esse pensamento está a submissão do indivíduo à vontade de terceiros, no conceito kantiano chamado de heteronomia. Baertschi[9] explica a dignidade em dois sentidos diferentes, mas ambos de extrema relevância, o primeiro está na capacidade do indivíduo de ver a si próprio com respeito: o primeiro sentido é pessoal: quero, aos meus próprios olhos e aos olhos dos outros, poder ser e continuar a ser um indivíduo de respeito, não simplesmente porque sou um ser humano, mas porque conservo minha autoestima.[10] O sentimento de perda da dignidade é moral e pessoal e pode acontecer em razão de uma situação vivenciada pelo indivíduo a qual ele não deu causa, também tal sentimento de perda da dignidade está nas situações de miséria, fome, violência, ridicularização, etc, facilmente visto em países periféricos. O segundo sentido não se estabelece no íntimo de cada ser humano: a dignidade de um indivíduo consiste no fato de ser ele uma pessoa e não um animal ou coisa. É esse conceito que é aplicado nos direitos do homem, e que faz com que a pessoa tenha um valor particular, proibindo que seja tratada como um simples meio […][11] Da leitura de dignidade, se extrai o conceito de dignidade que se aplica ao direito, qual seja, o de que todo ser humano tem um valor e deve ser visto como um fim em si mesmo, nunca como um  meio. O princípio da dignidade tem status de lei e, sobretudo, garantias constitucionais. Cabe ao Estado intervir de maneira a proteger o indivíduo de qualquer ação/omissão que atente contra a sua dignidade. Pode-se reconhecer a dignidade do ser humano quando o indivíduo usufrui livremente da sua liberdade de escolha – autonomia – porque, se ao contrário, o indivíduo é privado de sua liberdade de escolha, então a submissão à vontade de outrem é evidente, o que faz cair por terra toda a tese de valorização dos direitos da pessoa. No entanto, a autonomia supracitada, só faz sentido quando advinda de pessoas livres de coação e capazes de entender suas decisões, caso contrário, a tutela estatal deve ser acionada com a intenção de evitar atos atrozes em nome da liberdade de escolha. Assim, a heteronomia pode representar a tutela do Estado, quando o indivíduo, de forma consentida, atenta contra sua própria dignidade. O caso do arremesso de anões[12] retrata a interferência do Estado na liberdade de escolha de cada indivíduo, com o argumento de que a dignidade de cada ser humano é matéria de ordem pública, independente da autonomia da vontade.   1.2. O princípio da autonomia e a decisão substituta A onda de valorização do ser humano, tem sucitado novos conceitos de liberdade e dignidade que convergem para o respeito ao ser humano, entendendo o ser como capaz de tomar decisões e assumir os riscos das práticas que pretende realizar. Não cabe dizer que a tutela estatal está dispensada, ao contrário, o Estado tem uma nova missão, ao invés de interferir arbitrariamente no poder decisório dos cidadãos, passa a garantir que a vontade dele prevaleça e seja respeitada. Apenas por descargo de consciência, é de se mencionar que a autonomia da vontade válida é aquela advinda de seres legalmente capazes e livres de qualquer ato coercitivo. A autonomia, assim como a dignidade, é algo intrinseco ao ser humano, todo homem nasce livre e autônomo, Beauchamp e Childress[13] abordam o respeito à autonomia de vontade[14] dizendo que nenhuma teoria é aceitável caso apresente um ideal que esteja fora do alcance dos agentes normais[15], já que de nada adianta o reconhecimento do princípio da autonomia se o indivíduo não tem a liberdade de escolha e de exercê-lo, algo tão básico. Respeitar a autonomia é reconhecer no sujeito o direito de tomar decisões com base em seus valores e suas crenças pessoais. Na bioética em especial, a autonomia faz parte do conjunto de preceitos básicos de respeito ao indivíduo, ao lado do princípio da beneficência, que pretende maximizar o bem do próximo, o que implica minimizar o mal […] e o princípio da justiça, identificado como sendo o exercício da justiça distributiva por meio da equidade[16]. Durante séculos, o paciente – aquele que sofre ou é objeto de uma ação[17] – foi minimizado a condição de mero expectador de sua própria condição, à mercê da arbitrariedade que tantas vezes lhe feria mortalmente a dignidade na concepção do respeito a si mesmo, sem acesso a informações concisas e sem poder de decidir sobre opções de tratamento médico. Não raro, o único a não saber a prévia condenação à sua própria morte por doença incurável era o próprio condenado. O doente, devido à sua dignidade como sujeito, tem o direito de decidir autonomamente o que se quer fazer com ele, seja do ponto de vista do diagnóstico como da perspectiva terapêutica[18] Andorno (2009, p. 74) afirma: […] a liberdade é muito mais que um mero “princípio” ético. Na realidade, é a conditio sine qua non da ética, como o é também para o direito. Se o homem não fosse capaz de se autodeterminar, tanto as normas éticas como as jurídicas careceriam de sentido, já que não haveria condutas meritórias ou reprováveis, melhores ou piores, devidas ou proibidas e o conjunto das ações humanas cairia no vazio da indiferença moral.   Sob o ponto de vista jurídico, a autonomia na relação médico-enfermo vai além da forma meramente contratual de declaração da vontade porque se refere a um bem extrapatrimonial. A disposição do indivíduo sobre o próprio corpo torna esta relação horizontal, deixando para trás a visão do paciente como um simples expectador da sua própria condição e o médico como responsável absoluto de decisões, não significa que as limitações do respeito à autonomia com caráter protetivo devem inexistir. Na medicina, ou no termo mais apropriado ao debate em questão, na bioética a autonomia parte da premissa da visão do ser humano como um ser livre e absolutamente capaz. Na prática, isso remete ao respeito pelas decisões do paciente. Porém, ditas decisões devem ser observadas com cuidado, já que a autonomia só pode ser validada quando advinda de uma decisão consciente, o paciente precisa demonstrar total lucidez e entendimento da problemática que lhe foi apresentada, quais sejam, diagnóstico, prognósticos, tratamento, riscos e alternativas, para então declarar a sua própria vontade. A declaração de vontade ou consentimento informado é o ato sobre o qual o paciente se autodetermina, escolhendo a forma de terapia que será empregada na sua condição. Os elementos do consentimento informado. A abordagem aceita da definição do consentimento informado tem sido a que especifica os elementos do conceito divididos em informação e consentimento. A informação se refere à informação e compreensão daquilo que é revelado. O consentimento refere-se a uma decisão e uma anuência voluntárias do próprio indivíduo, o qual se submete, ou não se submete ao procedimento recomendado. A observação se dá quanto aos seguintes elementos: 1. Competência; 2. Revelação; 3. Entendimento; 4. Voluntariedade, e 5. Consentimento.[19] Todos esses elementos devem ser levados em conta para uma verdadeira declaração de vontade/consentimento informado. Existem as mais variadas situações, que na proposta deste estudo são significativas, onde o paciente/enfermo afetado de grave ou incurável doença, em fase de prolongamento artificial da vida, não demonstra os elementos citados acima, quer seja por força da própria debilidade física e/ou mental ou por força da terapia, que garantem o consentimento informado. Nesses casos, a correta interpretação se dá seguindo um modelo de decisão substituta, que consiste em tomar decisões por enfermos não-autônomos, ou incapazes de gerir a própria vontade. Se um paciente não é capaz de escolher ou de recusar um tratamento, então um hospital, um médico ou um membro da família podem, justificadamente, ser investido do papel de decisor.[20] Nas palavras de Beauchamp e Childress[21], os decisores podem ser investidos de três modelos para embasar sua decisão: a) julgamento substituto – exige que o decisor “se ponha nas vestes mentais do incapaz”, ou seja, ele toma a decisão que o incapaz tomaria; b) pura autonomia – se aplica aos pacientes que expressaram uma preferência sobre si mesmas quando ainda eram capazes de fazê-lo, e c) melhores interesses – o decisor deve escolher, dentre as opções possíveis, o maior benefício e o menor risco ao paciente, é o modelo que protege os melhores interesses e o bem estar do paciente. Os anos de 1960 foram marcados pelo conhecimento público de diversas pesquisas e experimentos realizados em seres humanos desfavorecidos mental e economicamente, além daqueles fragilizados por doenças tidas como incuráveis. Não raro constatava-se o abuso nos métodos adotados, os quais desconsideravam o indivíduo como pessoa atribuindo-lhes a sina de experimento científico, como verdadeiras cobaias. Foi nesse contexto, motivada pelos abusos físicos e morais, que a sociedade se viu às voltas de uma discussão sobre os direitos do ser humano enquanto paciente/enfermo. Destarte, surge a bioética, ou a ética da moral, que tem como intento o respeito a cada ser humano frente aos avanços da medicina tecnológica. As tradições morais, em face do avanço da biologia e da tecnologia, faz nascer ao argumentos que podem justificar a coercibilidade jurídica para preservar algumas características fundamentais da pessoa.[22] A tecnologia e a ética fazem parte de uma mesma estrutura, afirma Hans Jonas (1997, p. 33):   Dicho de forma muy general, que la ética tiene algo que decir en las cuestiones relacionadas com la técnica o que la técnica está sometida a consideraciones éticas se desprende del sencillo hecho de que la técnica es un ejercicio del poder humano, es dicir, uma forma de actuación, y toda actuación está expuesta a su examen moral. Es asimismo uma perogrullada que el mismo poder puede emplearse tanto para el bien como para el mal y que em su ejercicio se puedam observar o infringir normas éticas. La técnica, como poder humano enormemente incrementado, entra sin duda alguna dentro de esta verdad general.   De um modo genérico toda a atividade humana carece de moral e de ética, em especial no caso da biotecnologia, ou a ciência médico-tecnológica, cujo objeto de estudo é a vida, conforme amplamente anunciado, a razão de existir de todos os demais direitos. A relação entre as técnicas médicas vindas dos avanços tecnológicos com a ética da vida é, por demais ambígua, porque enquanto a primeira tende a buscar o prolongamento da vida de um doente, a segunda questiona as condições pelas quais isso se dará, bem como a defensa do princípio da autonomia, pelo qual o ser humano decide (se assim o entender) pela interrupção de um tratamento médico-hospitalar, mesmo que esta terapia lhe esteja ao alcance das mãos. Nessa seara, não importa a quantidade, mas a qualidade de vida que se quer buscar. Historicamente não se havia deparado com uma sociedade em constante movimento como a atual. O mundo vive um momento de globalização envolto em uma avalanche de informações tão rápidas, de forma que é impossível estar atualizado com as últimas notícias. Neste sentido, a biotecnologia se multiplica em experimentos e inovações que trazem uma miríade de possibilidades para a pessoa humana. Se o princípio da justiça consiste em contrabalançar as desigualdades sociais, parece que a medicina vem contrabalancear as desigualdades fisiológicas naturais. Porém, a biotecnologia é capaz de produzir danos aos seres humanos como nenhuma outra ciência poderia fazê-lo. A tecnologia da informação é uma ciência que, assim como a medicina, avança de forma deveras rápida, mas é lícito dizer que produz muitos benefícios e poucos danos à sociedade. A razão porque a medicina é a mais perigosa de todas as ciências é o fato de que está diretamente relacionada à vida, e não é a vida cotidiana, mas sim às situações de fragilidade humana, sejam elas emocionais ou físicas, exatamente aonde residem os direitos fundamentais de cada pessoa. O nascer e o morrer são lados opostos da mesma linha, a linha da vida, pela qual o indivíduo transita em sua existência. O que não era inconcebível há menos de 50 (cinquenta) anos, hodiernamente é real e corriqueiro, como as técnicas de reprodução assistida que são responsáveis pelo nascimento de pessoas que de outra forma certamente não nasceriam. Da mesma forma, o morrer pode sofrer interferência biotecnológica, a ponto de prolongar uma vida que já não é vida própria, mas sim um mero corpo que respira e se alimenta apenas porque a tecnologia assim permite, tornando-se uma verdadeira penitência tanto para o paciente como para a família que assiste o sofrimento do enfermo. Com esse cenário, urge o emprego de limites de interferência da biotecnologia na linha da vida (nascer, existir e morrer). Ditos limites só podem ser obviamente empregados pelo Estado, que é quem tem o dever de garantir os direitos fundamentais de todo o ser humano e o Estado pode fazê-lo com base nos princípios morais e éticos da bioética. Conforme afirma Fukuyama[23]   Que deveríamos fazer em resposta à biotecnologia, que no futuro combinará grandes benefícios potenciais com ameaças que são tanto físicas e manifestas quanto espirituais e sutis? A resposta é óbvia: deveríamos usar o poder do Estado para regulá-la. E se essa regulação se provar além da capacidade de alguma Estado-nação, deverá ser feita em bases internacionais. Precisamos começar a pensar concretamente sobre como estabelecer instituições que possam discriminar entre bons e maus usos da biotecnologia e aplicar essas normas com eficácia tanto nacional quanto internacionalmente.   A bioética está moldada para mediar a aplicação das técnicas médicas nos indivíduos. Tem a função de garantir, através de seus princípios (autonomia, beneficência e justiça), o respeito a cada pessoa e garantir que a biotecnologia seja empregada sempre com a intenção de maximizar os seus benefícios ao paciente.   2.2. O direito de morrer com dignidade como parte integrante do direito à vida O tema até aqui tratado traça contornos do direito à vida, lido como o mais fundamental de todos os direitos. O direito de morrer como parte integrante do direito de viver, vem em razão do desenfreado avanço tecnológico da medicina e suas consequências àqueles que, fora de qualquer expectativa de cura, permanecem em estado de sofrimento tão avançado, quanto a própria terapia. A religiosidade é uma característica marcante dos povos latino-americanos, onde culturalmente a morte é tida como tabu e não como uma fase da vida, assumindo um papel absolutamente negativo em relação à vida. Embora a maior parte das crenças religiosas expressem um apego exagerado ao ato de viver, entendendo a morte como um verdadeiro castigo, há que se dizer que a morte é um papel quase equivalente ao nascimento. O ato de nascer é fruto de um equilibrado processo biológico com prazo de validade, assim como o ato de morrer está diretamente ligado ao mesmo processo. A biotecnologia, além de curar e prolongar a vida, também faz continuar vivo quem já está morto. Os progressos da medicina podem manter as funções vitais de um corpo além do curso natural da doença.[24] O que se tem, na verdade, não é vida, mas sim apenas um corpo que (ainda) respira. As técnicas artificiais podem prolongar a vida por tempo indeterminado, reduzindo o paciente a um mero corpo debilitado, sem consciência, quer por meio da doença quer por meio da terapia, de si e do que se passa ao seu redor. A morte digna é uma realidade, pois não se justifica prolongar o sofrimento de uma pessoa que na verdade não tem “vida”, e, portanto, não se protege realmente a “vida”. A legislação deve contemplar a possibilidade de escolha, mas estabelecer critérios dos mais variados para sua autorização legal. (VIAL, 2011, p. 377).[25] O direito a morrer de maneira digna passa pelo direito a uma existência não menos digna, existência essa que perdura até os limites da vida, até a tênue linha que separa a vida e a morte, portanto, a dignidade de cada ser deve perdurar até o exato momento de sua morte, em que o ciclo da vida, como tantos outros ciclos, se encerra. Nesse contexto é que é defensável o direito de morrer como parte integrante do direito à vida. Um indivíduo entregue a mercê das terapias de prolongamento artificial da vida, tendo como única razão o avanço tecnológico da medicina, sem lhe ter sido disponibilizada a liberdade de escolher, certamente é um ser humano vítima da violação de seus direitos fundamentais.   A proposta deste trabalho teve como cerne o direito de morrer ou o direito a uma morte digna. A vida é o mais fundamental e a própria razão de existir de todos os direitos. Viver é um direito indisponível, inviolável e universal. No momento social em que todos estamos inseridos, parece deveras razoável (re)pensar que simplesmente deixar viver já não é satisfatório. A vida está umbilicalmente ligada ao princípio da dignidade do ser humano e às suas liberdades. A dignidade da pessoa é a base de todos os direitos fundamentais e consiste em ver o “outro” como um ser em si, bastante e suficiente e não como um mero meio. A condição humana sugere o poder de ter a liberdade de escolha, fundada no princípio da autonomia que é aquele que entende o indivíduo como capaz de gerir sua própria vida. O desafio proposto pela bioética ao avanço da biotecnologia são os limites morais e éticos que devem ser respeitados para que a ciência tecnológica permaneça em crescente movimento, sem que isso venha interferir de maneira negativa em qualquer direito fundamental da pessoa humana. A realidade deste momento nos põe face a face com situações de prolongamento artificial da vida que se transformam em casos desumanos, onde o enfermo permanece em uma sobrevida, sendo obrigado a passar por um tratamento terapêutico assaz desumano, que lhe foi imposta simplesmente em razão de possibilidade médica, passando longe de ser uma vida baseada nos princípios da dignidade. A dignidade de cada ser humano como princípio fundamental da construção dos direitos humanos, a vida como o mais elementar de todos os direitos fundamentais, então, deve-se permitir a todo indivíduo ter a liberdade de escolha (autonomia) entre mantê-lo vivo sob condições não naturais – prolongamento de vida artificial – e morrer com dignidade.
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Eutanásia: análise da aplicabilidade da lei holandesa que legaliza a prática ao ordenamento jurídico brasileiro atual
O presente artigo expõe a análise da busca pelo exercício pleno do direito de personalidade e da dignidade da pessoa humana pelo doente terminal atrelados à prática da eutanásia. Com o intuito de abrir precedentes para a possibilidade da legalização da eutanásia no Brasil, foi realizado um comparativo entre duas sociedades que, em que pesem possuírem realidades distintas, vislumbram um fundamento essencial em comum: um Estado democrático e livre. Brasil e Holanda visam a prática da eutanásia sob diferentes aspectos, todavia, ao longo do trabalho mostrou-se a possibilidade de adequar a prática da eutanásia aos parâmetros do ordenamento jurídico brasileiro, utilizando a essência do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito de personalidade atrelados às inovações do direito moderno. Ao final, concluiu-se pela nítida necessidade da adequação dos princípios e de alguns direitos regentes do ordenamento jurídico brasileiro às reais necessidades dos doentes terminais, dando mais empatia e humanização às normas, a fim de “desengessar” o que hoje entendemos como direitos e garantias fundamentais do ser humano.[1]
Biodireito
INTRODUÇÃO Ao longo da pesquisa realizada, notou-se que há uma busca incessante do homem pela completude da satisfação de suas necessidades mais intrínsecas, em especial aquelas garantidas através do direito de personalidade. Direito este que abarca tantas quantas dimensões forem necessárias para a reafirmação do homem como sujeito de direitos e deveres em uma sociedade. Como toda garantia, o direito de personalidade também encontra barreiras, limitações e conflitos quando posto diante de outros direitos que, consequentemente, podem acabar causando a constrição de seu livre exercício Inicialmente foi realizado um breve levantamento da atual conjuntura brasileira acerca do assunto. Foi exposta a legislação penal brasileira e o parecer da sociedade médica (Conselho Federal de Medicina) que dá azo à criminalização de tal prática. Foram expostas também as visões de alguns autores renomados no cenário jurídico brasileiro, apontando as opiniões controversas existentes, contudo, extremamente importantes, pois dão fomento ao debate e amplas discussões acerca do tema, além disto, foram utilizados dois institutos norteadores ao trabalho que regem boa parte, se não a basilar, do ordenamento jurídico brasileiro: o princípio da dignidade humana e o direito de personalidade. Adiante, apresentamos a lei holandesa que legaliza a eutanásia, analisando com minúcia os pontos mais importantes a serem considerados no referido regulamento, utilizando os parâmetros do princípio da dignidade da pessoa humana bem como do direito de personalidade, a fim de constituir uma base sólida hipotética da possibilidade de adesão da essência desta norma à sociedade brasileira. A escolha da Holanda como país paradigma deu-se de forma quase que óbvia e inevitável, por se dizer. Não é raro tal país figurar como modelo em questões que promovam relevantes e históricas revoluções e evoluções no campo do direito moderno, principalmente no que tange à autonomia do indivíduo, tratando com coragem assuntos que em muitos outros lugares se evita debater. O que desperta a atenção e corrobora com a aposta do presente trabalho em utilizar o modelo holandês como vitrine, se dá em especial, ao modo como questões polêmicas são encaradas pelo país sem que sejam desrespeitados ou reduzidos os fundamentos elementares constitutivos do Estado, primando sempre pelo bem estar do indivíduo. A seguir, foi realizada uma demonstração positiva da eventual, e esperada, perfilhação do modelo legal holandês, baseado na plausibilidade de tal prática poder ser instituída dentro dos moldes do Estado de Direito no qual estamos inseridos. Sem deixar de considerarmos as implicações e complexidades que o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito de personalidade exigem, foram traçados vários aspectos que permeiam nosso cotidiano e nos fazem refletir não só no atual cenário legal brasileiro vivida atualmente, como também o valor que tem sido dado ao ser humano, fazendo surgir a dúvida se realmente temos sido sujeitos de direitos e deveres ou apenas receptores de uma norma tendenciosa imposta.  A EUTANÁSIA NO BRASIL A eutanásia, objeto de estudo do presente trabalho, consiste na prática de antecipação da morte do indivíduo, utilizando métodos indolores e brandos, a fim de que este possa ter uma morte sem sofrimento. Daí a etimologia da palavra de origem grega: ευθανασία – ευ “bom”, θάνατος “morte”, significando “boa morte”, em sentido literal, também podendo ser interpretada como “morte benéfica” ou “morte fácil”. Cumpre realizar uma breve distinção entre as duas modalidades existentes da prática da eutanásia, quais sejam: a eutanásia ativa e a eutanásia passiva. Na modalidade ativa, é preciso que um terceiro, geralmente o médico, que, impulsionado pelo sentimento piedoso, atue, provocando a morte do indivíduo que assim deseja. A realização da prática exige que seja utilizado o método mais eficiente para que o paciente não sofra no momento de sua morte, suavizando os efeitos, para que a morte seja rápida e tranquila. No ato, geralmente é aplicada uma dose letal, que primeiro provoca a inconsciência do paciente para então, posteriormente, ter o coração paralisado. Já a eutanásia passiva, também chamada de ortotanásia, consiste na abstenção do médico em continuar com o tratamento do paciente quando, em razão da ínfima ou nenhuma chance de melhora, o próprio paciente ou sua família por assim decidam. É chamada de eutanásia passiva, pois nestes casos o médico não age de forma efetiva para a morte do paciente, apenas cessa os meios terapêuticos deixando que a morte sobrevenha ao paciente de maneira natural. De todas as técnicas existentes, esta é a única atualmente permitida no Brasil. Em tempo, cumpre expor ainda duas modalidades presentes no campo da medicina e também ligadas ao tema proposto que são a distanásia e o suicídio assistido. A distanásia, ao contrário da eutanásia e da ortotanásia, é a prática que prolonga a vida do doente ao máximo, mesmo que os métodos de tratamento utilizados já não sejam mais úteis. Tal prática prolonga ainda mais o sofrimento do indivíduo que padece diariamente em detrimento de, nas palavras de Martin (apud SÁ, 2000, p.62) “[…] uma postura ligada especialmente aos paradigmas tecnocientífico e comercial empresarial da medicina”. Quanto ao suicídio assistido, tem os mesmos preceitos da eutanásia, exceto no que condiz a ação do médico. Pois este, ao contrário da eutanásia, em nada contribui para a morte do paciente. O próprio paciente é quem toma as medidas cabíveis para que sua morte ocorra, também utilizando de meios indolores e não cruéis. Vislumbra-se, ainda, os casos em que o suicídio assistido se torna impossível, devendo recorrer à eutanásia, caso o paciente assim requeira: “Constata-se, porém, que o significado original da palavra foi evoluindo pouco a pouco no sentido de abarcar novas situações. Assim, a eutanásia, na atualidade, não se refere apenas aos casos de pacientes terminais que querem pôr fim aos seus sofrimentos através de uma morte rápida e indolor, mas abrange também hipóteses igualmente complexas, como as relacionadas à morte de recém-nascidos com malformações congênitas, de pacientes em estado vegetativo irreversível, embora não necessariamente terminais, e das vítimas de acidentes ou enfermidades cujos graves padecimentos lhes impedem provocar-se por si mesmas a própria morte (pacientes tetraplégicos e vítimas de doenças degenerativas como a esclerose laterial amiotrófica)”. (CARVALHO, 2011, p.163). Apesar de seu caráter piedoso, a prática da eutanásia ativa no Brasil – em que pese não estar expressamente tipificada em seu específico termo – é considerada crime. A conduta foi absorvida pelo art. 121 do Código Penal, equiparando a eutanásia ao crime de homicídio: “Art. 121: Matar alguém. Pena: reclusão, de seis a vinte anos”. Atualmente, não há qualquer excludente de ilicitude que possa eximir o agente ativo desta conduta de sofrer sanção. Há apenas uma atenuante contida no parágrafo primeiro do mesmo artigo que prevê a possibilidade de diminuição da pena “se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima”, ato este chamado pela doutrina penal de “homicídio privilegiado”. Pela exposição de motivos da Parte Especial do Código Penal Brasileiro onde está contida a tipificação do crime citado alhures, a justificativa dada ao homicídio praticado “por motivo de relevante valor social ou moral” é de que o motivo, em si mesmo é aprovado pela moral prática, denominando como exemplo o “homicídio eutanásico” – neste caso, no modo passivo. A controvérsia está no fato de que, apesar de reconhecida a conduta positivamente moral do médico, este continua passível de penalização, em que pese reduzida, caso haja da maneira considerada de “relevante valor social e moral”. Além da existência dos aspectos religioso, econômico e social, fatores de grande relevância para o tema, ao presente trabalho cabe o enfoque da discussão no campo jurídico, tratando dos parâmetros essenciais que formarão pilares para a concretização de tal instituto e sua aplicação na sociedade brasileira. É impossível tratar sobre a eutanásia e não estabelecer um liame entre esta e os princípios, direitos e garantias bem como deveres constitucionais e infraconstitucionais previstos. Preceitos estes que norteiam todo o ordenamento e firmam a base sólida do Estado Democrático de Direito no qual estamos inseridos. Claro e evidente é o conflito existente atualmente entre os fundamentos, diretrizes e princípios basilares adotados pelo Estado brasileiro e a criminalização da eutanásia. A proibição de tal prática vai de encontro a tudo que é essencial ao ser humano e que, teoricamente, deveria revestir de tanto valor quanto o direito à vida. Impedir o indivíduo de optar pelo momento de sua morte em determinadas situações é privá-lo ao exercício de suas garantias mais básicas enquanto sujeito de direitos. Diante deste conflito, o marco teórico do presente trabalho tem por base o questionamento retórico feito pela ilustre autora Maria Freire de Sá, em sua obra “Direito de morrer” (2000) onde é levantada a seguinte indagação: “[…] como garantir a efetividade do princípio da igualdade entre pessoas sãs e sadias, que têm a vida atrelada à saúde do corpo e da mente, e aquelas que sofrem as consequências de doenças várias, tendo a vida, nestes casos, se transformado em dever de sofrimento? A resposta está exatamente na liberdade de escolha para os indivíduos que se encontram na segunda situação mencionada. É inadmissível que o direito à vida, constitucionalmente garantido, se transforme em dever de sofrimento e, por isso, dever de viver. Certo é que a dignidade deve aliar duas dimensões ao seu conceito: a dimensão biológica, quanto ao seu aspecto físico-corporal, e à dimensão biográfica, que pertine ao campo dos valores, crenças e opções. E o Direito não pode preocupar-se somente com a primeira questão, mas, ao contrário, buscar a unidade do ser humano. A indisponibilidade da vida precisa ceder à autonomia daquela pessoa que se encontra na fase terminal da vida, em meio a agonia, sofrimento e limitações”. (SÁ, 2000, p.192). Seguindo esta linha de raciocínio, a primeira indagação pertinente a se fazer é a seguinte: deve o Direito se ocupar de tal assunto? Isto porque, atualmente, tem o Direito abarcado muitos conflitos para si, tornando-se verdadeiro centro de absorção de todos os problemas sociais cotidianos, funcionando como uma espécie de “para-raios” para todas as grandes polêmicas que surgem e que, inevitavelmente causam grande impacto nos indivíduos. Pois bem, sendo o presente tema um assunto primórdio da medicina, cabe a esta a obrigação da análise e exposição da visão médica acerca de tudo que orbita neste sentido. O que de fato o fez o Conselho Federal de Medicina (CFM) brasileiro, expondo seu posicionamento contrário à da prática da eutanásia através do Código de Ética Médica (Resolução n.1.931/2009): “Capítulo V: É vedado ao médico: […] Art.41: Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”. (CFM, 2009) Contudo, o CFM é favorável à prática da ortotanásia sob o enfoque da Resolução nº 1.805/2006, que dispõe: “Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. § 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação. § 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.     § 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica. Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar. Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário”. (CFM, 2006) Assim, nota-se que a visão da medicina brasileira tende a se solidarizar com o paciente em estado terminal e irreversível, porém, se abstém de conferir responsabilidade ao profissional de poder/dever praticar a eutanásia a pedido de seu paciente. É crível que na atual conjuntura todo cuidado seja pouco em se tratando da relação médico paciente. É cultural que as pessoas tendam a enxergar no médico a figura inabalável de um instrumento percussor da cura. De um médico nunca se espera o desengano, a cessão das tentativas, a possibilidade do fim da vida. Como se a este profissional fosse proibido “não curar”. Este status conferido ao médico, por óbvio, reflete na maneira como a sociedade médica se porta perante seus pacientes. Sempre com o intuito de zelar pela crença difundida, mantendo a confiabilidade e crédito ao profissional de exímio “salvador”. Apesar do caráter louvável da profissão, infinitas vezes merecedora de toda a gratidão e respeito, não se pode olvidar que como em todas as demais áreas, a medicina é exercida por seres humanos, tão sensíveis a dor do outro quanto qualquer familiar, amigo ou mesmo do próprio paciente. Este fardo que o profissional carrega se transmite na sua conduta irredutível de não permitir, seja qual o motivo for, de pôr fim à vida daquele que sofre, mesmo que tal decisão parta de sua livre e espontânea vontade. Não se pode desconsiderar a relação médico-paciente que é criada ao longo do tempo de tratamento. Neste lapso temporal, há certa envolvência que estreita os laços, fazendo nascer verdadeira empatia às necessidades do outro. Nestes casos, é que se torna mais importante ainda o cuidado com o bem-estar daquele que sofre. Não parece crível que sejam diminuídos, desconsiderados ou relevados os direitos do paciente em razão de seu estado clínico, quando é criado, nas palavras de Brunello Souza Stancioli (2004, p.25) verdadeira “objetificação do homem”, o que veremos mais detalhadamente nos capítulos subseqüentes. Verificado, pois, que o CFM, instituto legítimo representante da sociedade médica já se posicionou acerca do assunto, permite-se afirmar que resta ao Direito analisar os desdobramentos de tal impedimento perante a sociedade e seu impacto sobre os exercícios dos direitos básicos do indivíduo. Deste modo, verifica-se relevante o intuito jurídico do presente trabalho em atrelar a realidade do cenário brasileiro com a possibilidade de uma revolução no campo médico a fim de balizar tanto os direitos dos médicos e corpo clínico quanto os direitos dos pacientes, sem ferir os princípios básicos que dão tônica e base para sua garantia e exercício. Neste compasso, como decorrência normal de todo assunto polêmico que gere grandes debates dando azo a grandes opiniões controversas, há doutrinadores positivos e contrários à prática da eutanásia no campo jurídico brasileiro, cabendo a nós expô-los e analisá-los. A autora Maria Helena Diniz se posiciona contrária à prática alegando ser arriscada a liberação da eutanásia dada à possibilidade de eventual diagnóstico errôneo, abuso do poder médico ou familiar e abertura de precedentes para a eutanásia involuntária. Sob o argumento de que “o único objetivo da medicina é fazer o bem em prol da vida”, a autora, esteada no Código de Ética Médica, conclui que “a eutanásia ou morte piedosa não envolve o direito de matar, sendo sempre um homicídio, mesmo que o paciente esteja condenado a morte próxima e em prolongado sofrimento” (DINIZ, 2014, p. 496 e 497). Outros autores também se mostram desfavoráveis à tal prática. Alegando a hipótese do questionável valor jurídico do consentimento do paciente terminal: “SISSELA BOK expressa grande preocupação em relação à impossibilidade prática de se verificar com certeza se o consentimento do paciente advém de sua vontade livre ou da aquiescência irresignada dos desejos de seus parentes e de outras pessoas, ou ainda, de estado depressivo ou de uma visão equivocada do diagnóstico ou prognóstico” (BOK apud VIEIRA, 2004, p. 204) O desvirtuamento do princípio da dignidade da pessoa humana também é traduzido pela autora Mônica Silveira Vieira: “[…]a subjetivação do princípio da dignidade da pessoa humana é absurda e desvirtua e contraria a Constituição da República, permitindo às pessoas manipularem este princípio de forma a legitimar todo e qualquer ato de disposição da vida, inclusive da vida alheia. […] especialmente com base nas ideias de VALADIER, trata-se de uma ideia muito diversa do verdadeiro significado da dignidade da pessoa, decorrente de uma lógica individualista, egoística, utilitarista, elegendo como medida da dignidade de cada um a imagem que a pessoa tem de si própria”. (VALADIER apud VIEIRA, 2004, p. 198 e 199) Em que pese as preocupações suscitadas serem válidas por recaírem sobre elementos básicos da preservação à vida e segurança do doente, urge salientar os conflitos que toda prática relevante como a eutanásia podem acarretar. Todavia, isto não quer dizer que a sua proibição também não gere conflitos. O princípio da dignidade da pessoa humana trouxe com o seu surgimento várias indagações acerca de sua essência. Inúmeras foram as conceituações. Ainda hoje busca-se a construção deste mandamento incorporado por muitos países, todavia, ainda não totalmente exitosa a sua aplicação. Nas palavras de Rodrigo da Cunha Pereira (2004, p.67), o princípio da dignidade da pessoa humana: “[…] embora esteja atrelado à evolução história do Direito Privado, ela tornou-se também um dos pilares do Direito Público, na medida em que é o fundamento primeiro da ordem constitucional, portanto, vértice do Estado de Direito.” O autor vai além e conceitua o referido princípio como sendo uma espécie da macroprincípio que abrange tantos outros direitos e valores essenciais, resultado de lutas e conquistas políticas, além considerar que “a dignidade passou a ser princípio e fim do Direito” (PEREIRA, 2004, p. 67). Aprofundando no tema, o autor ainda faz uma análise da dignidade em Kant, e considera: “Kant afirma de forma inovadora que o homem não deve jamais ser transformado num instrumento para a ação de outrem. Embora o mundo da prática permita que certas coisas ou certos seres sejam utilizados como meios para a obtenção de determinados fins ou determinadas ações, e embora também não seja incomum historicamente que os próprios seres humanos sejam utilizados como tais meios, a natureza humana é de tal ordem que exige que o homem não se torne instrumento da ação ou da vontade de quem quer que seja. Em outras palavras, embora os homens tendam a fazer dos outros homens instrumento ou meios para suas próprias vontades ou fins, isso é uma afronta ao próprio homem. É que o homem, sendo dotado de consciência moral, tem um valor que o torna sem preço, que o põe acima de qualquer especulação material, isto é, coloca-o acima da condição de coisa. Ao tratar disso na Fundamentação da Metafísica dos costumes, Kant é explícito em seus termos. O valor intrínseco que faz do homem um ser superior às coisas (que podem receber preço) é a dignidade; e considerar o homem um ser que não pode ser tratado ou avaliado como coisa implica conceber uma denominação mais específica ao próprio homem: pessoa. Assim, o homem, em Kant, é decididamente um ser superior na ordem da natureza e das coisas. Por conter essa dignidade, esse valor intrínseco, sem preço e acima de qualquer preço, que faz dele pessoa, ou seja, um ser dotado de consciência racional e moral, e por isso mesmo capaz de responsabilidade e liberdade”. (PEREIRA, 2004, p.68) Partindo deste pressuposto, conseguimos estabelecer precedentes sólidos para a aceitação da eutanásia como prática legal. Pois, pela simples apreensão do exposto nas palavras do autor que utilizou como base a obra de Kant, pioneira e difusora da dignidade humana, já é possível depreender que inexiste dignidade sem autonomia do ser, e isto inclui a promoção da sua liberdade em qualquer situação que se encontre. Não há vida digna, portanto, se todos os demais elementos a ela intrínsecos restam limitados, reprimidos, lesados. Sob o prisma da dignidade, liberdade e autonomia da pessoa humana, outros autores também se posicionaram favoráveis à prática da eutanásia. Antes de adentrarmos nas explanações de alguns destes defensores, ressalta-se que o presente trabalho tem por escopo analisar a eutanásia apenas sobre o prisma do doente terminal sem qualquer perspectiva de cura e que em razão disto, traga consigo a terrível dor física e psicológica causada por sua moléstia. Sensível a estas pessoas que padecem diariamente o desengano e a angústia, esta obra se dispõe a expor as mazelas do ordenamento jurídico brasileiro de modo a abrir espaço para que as vontades destas pessoas também sejam ouvidas, e não que sejam ligadas a estereótipos em razão de sua enfermidade, reduzindo-as a sujeitos sem capacidade de discernimento e escolha. Neste passo, conforme detalhado na obra de Mônica Silveira Vieira (2004, p. 162 a 182), posicionam-se os autores Rachel Sztajn, José Idelfonso Bizzato, Evandro Corrêa de Menezes, dentre outros, pela defesa da eutanásia sob os aspectos ligados à solidariedade ao doente, à vida como um direito fundamental desde que se possa viver bem, ao direito de não sofrer e da autonomia do paciente e dos direitos humanos de um modo geral. Mais além vai a autora Maria de Fátima Freire de Sá que propõe a existência do “direito de morrer”, sustentando que este “deve ser visto como viável àquelas pessoas que só veem a vida como dever de sofrimento, sem a mínima perspectiva de melhora de suas dores físicas e/ou psíquicas” (SÁ, 2000, p. 208). A EUTANÁSIA NA HOLANDA A legalização da eutanásia e do suicídio assistido na Holanda foi instituída 2001, quando o país decidiu por legalizar tal prática, dentro dos parâmetros previstos no Regulamento intitulado “Término da Vida e Suicídio Assistido sob solicitação” (tradução livre)[2]. Apesar do pioneirismo, a Holanda não se desvencilha dos conflitos internos ideológicos existentes, pois, naturalmente há aqueles contrários à legalização da eutanásia. Nas palavras da doutrinadora Maria Helena Diniz (2009, p. 490), por exemplo, “Na Holanda, o suicídio assistido, na verdade, não passa de uma dissimulação de participação criminosa em suicídio”. Todavia, o legislador holandês não deixou margem para tais interpretações, posto que no ato de tal disposição, regulamentou a prática, indicando, detalhada e estritamente, os casos em que a eutanásia e suicídio assistido são cabíveis. O artigo 293 do Código Penal Holandês assim dispõe²: 1. Quem rescindir a vida de outro a seu pedido expresso e sincero será punido com prisão não superior a doze anos ou multa. 2 O fato referido na subseção não é punível se for cometido por um médico, atendendo aos requisitos de devida diligência, referido no Artigo 2 do ato “Término da Vida e Suicídio Assistido sob solicitação” e deve comunicá-los ao forense municipal de acordo com o Artigo 7, segundo parágrafo da Lei de sepultamento e cremação (tradução livre). [3] De acordo com o referido dispositivo penal holandês, qualquer ação destinada a encerrar a vida é, em princípio, uma infração penal. A única isenção da responsabilidade criminal é o caso de um paciente estar submetido a sofrimento insuportável sem perspectivas de melhoria e o médico assistente cumpre os critérios legais de cuidados devidos. Passamos então, à análise minuciosa do Regulamento. O art. 2º determina os requisitos a serem observados no procedimento. São eles: a) convicção do médico de que havia um pedido voluntário e bem ponderado do paciente; b) a convicção de que havia sofrimento insuportável do paciente; c) o paciente deve ser informado sobre a situação na qual se encontra e sobre suas perspectivas; d) que o paciente conclua que a sua situação seja irreversível; e) que pelo menos um outro médico independente tenha diagnosticado o paciente e dado um parecer escrito sobre os critérios de cuidados devidos previstos nas alíneas anteriores, ratificando o fato; f) que a prática da eutanásia ou o suicídio assistido sejam feitos cuidadosamente.[4] Observa-se, portanto, que os casos aptos a não configurarem a ilicitude da eutanásia se limitam a estritas hipóteses, visando primordialmente o bem-estar do paciente terminal. Tal comportamento mostra nitidamente não só a preocupação com o paciente terminal em razão de sua atual condição, mas, sobretudo, ao atendimento de sua necessidade enquanto ser humano e sujeito de direitos. Nas palavras de STANCIOLI (2004, p.25) o que é costumeiro ver atualmente, principalmente no cenário brasileiro, é a relação médico-paciente limitada à “objetificação do homem”, que assim dispõe: “A primeira forma de objetificação é o status imposto pelo isolamento e consequente segregação do enfermo. (…) A segunda forma (…) é sua classificação científica. (…) O indivíduo passa a assumir o contorno específico de sua doença, deixando de ser “normal” para ser aidético, canceroso etc. A terceira forma (…) é a reconstrução de seu ego. Através de um aparato linguístico, o paciente internaliza recomendações médicas. E o faz, pelo temor das consequências (veladas, sugeridas, supostamente graves), caso desobedeça o profissional da saúde. Suporta, assim, passivamente, várias formas de tratamento, mesmo que lhes sejam desconhecidas ou desagradáveis”. (FOCAULT, apud STANCIOLI, 2004, p.25) Importante é observação feita pelo autor, pois, partindo do pressuposto de que tal “objetificação” é real, nota-se verdadeira afronta ao direito de personalidade intrínseco ao indivíduo, que em razão de sua doença deixa de ser dono de si (mente e corpo) e passa a ser mero instrumento de tratamento médico e da vontade egoísta de seus familiares. Cumpre ressaltar que a essência do direito de personalidade é a promoção pela vida humana e tudo aquilo a ela intimamente vinculado. Vários são os doutrinadores que já conceituaram tal direito, dando-lhe características e classificando seus desdobramentos, sendo os mais comuns e reconhecidos: o direito à vida, à saúde e à incolumidade; direito à honra; direito à liberdade; direito à identidade pessoal; direito à liberdade de consciência e de religião; direito de livre manifestação, dentre tantos outros¹. E todos abarcados pela Constituição Federal da República do Brasil de 1988. Desta forma, a partir do momento em que o Estado, o corpo clínico (profissionais) e a família é que decidem sobre a vida do enfermo, sem que se respeite a sua vontade, tem-se por violado o direito de personalidade e consequentemente todas as demais modalidades a ele interligadas. Outra preocupação importante por parte do legislador holandês foi a observância da autonomia privada não só do paciente, como também do médico. A posição do governo holandês é de que os médicos não são obrigados a conceder um pedido de eutanásia. Um médico que não quer realizar o próprio procedimento deve discutir isso com o paciente e pode decidir encaminhá-lo para outro médico[5]. Quanto à autonomia do paciente, Brunello Souza Stancioli dispõe brilhantemente, utilizando do modelo de Beauchamp e Faden, no seguinte sentido: “[…] três são, ao menos, os requisitos necessários para que um indivíduo realize um ato autônomo: a) Compreensão; b) Intenção; c) Ausência de influências controladoras.” (STANCIOLI, 2004, p. 34 a 42). Sendo que, no que tange à compreensão, é necessário que o paciente esteja ciente de suas reais condições, tratamentos aos quais será submetido e suas chances de cura ou não. Já quanto à intenção, é preciso que o paciente saiba do risco imposto e compartilhe desta responsabilidade conjuntamente com o profissional médico. E, por fim, que o médico (e todo corpo clínico) não deixe que seu conhecimento técnico afete nas decisões do paciente, sendo necessário que este último sempre questione as imposições daqueles. Baseado nesta relação de confiança estabelecida entre médico e paciente, a autonomia privada estaria plenamente atingida. Há aqueles que dão à eutanásia a qualidade de conduta arbitrária e equivocada, exaltando a esperança em uma cura sequer cogitada: “A incurabilidade, a insuportabilidade da dor e a inutilidade do tratamento não justificam a eutanásia porque: a) a incurabilidade é prognóstico, e como tal falível é, e, além disso, a qualquer momento pode surgir novo e eficaz meio terapêutico ou uma técnica de cura. No passado, a lepra, a tuberculose e a sífilis eram incuráveis. Hoje, com o progresso da ciência, a sua cura é possível”. (DINIZ, 2014, p.498). Todavia, esquecem as pessoas de que a dor do outro é inestimável, e quem a sente tem pressa. Cada minuto vivido pode tornar-se verdadeiro tormento quando se espera por algo imprevisível. De maneira alguma questiona-se a fé e a crença do indivíduo em sua cura, ao contrário, a conduta é louvável e exemplar. Contudo, não se pode impor a alguém que espere por algo que não acredite, ou que aguente por mais alguns dias, meses, ou até anos, a existência de um método curativo para a sua enfermidade. Aqui, não se trata de medir a resistência do doente, mas sim de aliviá-lo o pesado e angustiante fardo que carrega. Por fim, quanto às formalidades de fiscalização do procedimento da eutanásia, o Regulamento dispõe que cada caso de eutanásia e suicídio assistido deve ser relatado em 1 dos 5 comitês regionais de revisão da eutanásia. O comitê julgará se o médico tomou o devido cuidado. Esses comitês compreendem, no mínimo, um médico, um ético e um especialista jurídico. O procedimento do comitê de revisão destina-se a garantir uma maior transparência e consistência na forma como os casos são reportados e avaliados. O médico deve observar tais procedimentos sob pena de incorrer na pena por homicídio prevista no art. 294 do Código Penal Holandês[6]. Apesar do exemplo da legislação holandesa, é importante esclarecer a importância de cada sociedade buscar, por si própria, as soluções para os seus problemas de acordo com a sua própria realidade, aquilo que segundo a autora Mônica Silveira Vieira (2004, p.303) “Experiências estrangeiras têm sua utilidade como subsídio para encontrar uma solução própria, mas jamais devem ser adotadas como resposta pronta para os problemas brasileiros.”. EFEITOS DA ADAPTAÇÃO DA LEI HOLANDESA NO BRASIL O fato de que Brasil e Holanda são países que têm em comum os valores constitutivos de Estado, que primam pela promoção dos direitos fundamentais (direitos humanos, sociais e democráticos)[7], torna a possibilidade da legalização da eutanásia ainda mais próxima e razoável. Não se pode olvidar das dificuldades que serão impostas ao longo do caminho por fatores externos que, apesar de não deverem ser considerados como aspectos primordiais, causam demasiada interferência nos direitos ora discutidos. A exemplo disto, a religião é um fator que incide a todo momento e tem grande participação na criminalização da eutanásia. Não obstante o legislador ter o dever de agir com racionalidade, muitas vezes este se deixa influenciar pelo apelo emocional de certos grupos, deixando prevalecer o caráter parcial de suas normas. Nos ensinamentos de DINIZ (2014, p.483): “No século XXI é imprescindível que o legislador, o aplicador do direito e o jurista reflitam sobre esses tormentosos problemas, ante o seu conteúdo altamente axiológico, sem olvidarem que a dignidade da pessoa humana é o valor fonte legitimador de todo o ordenamento jurídico. A consciência jurídica atual, diante da indiferença de um mundo tecnicista e insensível, precisa ficar atenta à maior de todas as conquistas: o respeito absoluto e irrestrito pela dignidade humana, que passa a ser um compromisso inafastável e um dos desafios para o século XXI.” Outro fator externo que tem forte influência sobre a criminalização da eutanásia é o resguardo exacerbado da conduta médica na relação com o paciente. Ao longo da história a figura do profissional da medicina foi construída para ser o modelo de exímio salvador e curador de todos os males. Sequer cogita-se a hipótese da falibilidade humana, e qualquer erro pode ser fatal. Deste modo, a sociedade médica tenta se cercar ao máixmo, da possibilidade da responsabilização pela falha. A eutanásia praticada pelo médico lhe retiraria, portanto, o caráter “heroico” subjetivo. Através desta conduta é que se nota como a autonomia do paciente é infringida, sufocada, limitada e ignorada a todo tempo na relação médico-paciente. A exemplo disto, o art. 34 do Código de Ética Médica faculta ao médico informar ou não ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano. Ou seja, o paciente sequer terá a informação de seu estado clínico, que poderá ser repassado a terceiros e não a este, que é o principal interessado. Neste mesmo aspecto do direito à informação, urge ressaltar o papel importante do consentimento informado do paciente no que tange às suas disposições em relação aos cuidados médicos que este porventura venha a receber. O Código de Nuremberg, difusor dos direitos de personalidade na era Pós Segunda Guerra Mundial, que serviu como “inspiração para Códigos de Ética posteriores” (STANCIOLI, 2004, p. 49 a 54), prima pela essencialidade do consentimento informado do paciente, passando a servir não apenas para pesquisas, mas para qualquer outro tipo de intervenção médica. Neste caso, entende-se ser completamente possível a admissibilidade do Testamento Vital[8], para atingir o fim desejado que é a autonomia do paciente. Apesar de tais disposições estarem previstas pelo CFM através da Resolução nº 1.995/2012, estas não abarcam a possibilidade de escolha do paciente pela eutanásia. Com fulcro em todos os institutos já analisados no presente trabalho, também seria possível a admissibilidade de tais disposições para o fim eutanásico. Desta forma, seria derrubada a concepção de muitos doutrinadores contrários à eutanásia acerca de eventual vício na vontade do paciente com o intuito de descredibilizar a eutanásia. Noutro giro, é preciso também que seja repensada a interferência familiar quando da opção do doente pela eutanásia. Importante esclarecer que o conceito de “família” aqui, abrange todos os demais componentes de uma relação afetiva e/ou de afinidade entre o paciente e as demais pessoas de seu círculo social. A família nunca está preparada para enfrentar uma questão tão delicada como esta. Apesar do apelo emotivo que a situação carrega, não se pode negar que pior do que ver a vida de um querido ser abreviada, é vê-lo padecer diariamente “na carne, na pele, na mente e no coração” (VIEIRA, 2004, p.175). Por isto, além de requerer empatia ao doente que se encontre nestas condições, também é preciso haver respeito à sua escolha. Pois imensurável é a dor daquele sofre, mas ainda vive, apenas para ceder aos caprichos da família que o ama demais para perdê-lo. Por outro lado, há também os doentes que sofrem a indiferença da família. Muitas vezes em razão de sua inutilidade, são ignorados, desprezados, esquecidos. O abandono afetivo também contribui para a dor psíquica, ficando o indivíduo fadado à indignidade. Sendo a dignidade da pessoa humana, pois, “o valor do ser humano em si mesmo e não um meio para os fins dos outros” (RIZZATO NUNES, apud VIEIRA, 2004, p. 39), a legalização da eutanásia neste caso resgata a natureza deste princípio, hoje, porém, por vezes deturpado, juntamente com os direitos de personalidade, que nas sábias palavras de ASCENSÃO (apud VIEIRA, 2004, p. 51 e 52): “A sociedade em que vivemos só festeja tão gostosamente os direitos da personalidade porque os deturpa. Na sua densidade ética, a categoria é-lhe incompreensível. A crise do Direito de Personalidade é na realidade tão grande que leva a fazer inverter o sinal a este ramo do direito. O que deveria ser o direito da pessoa ontológica transformou-se no puro direito dos egoísmos individuais. Os direitos de personalidade ganham cariz anti-social, perdendo o sentido de comunhão de solidariedade que lhes é constitutivo. […] A transformação do direito de personalidade em uma grandeza meramente negativa descaracteriza-o. O elemento personalístico perdeu-se. Espelha a sociedade desumanizada que se generaliza e a definição do outro como inimigo; mas nas antípodas do sentido ético do Direito da Personalidade.” A realidade hoje vivida no Brasil em razão da falta de escolha ao doente terminal quanto à eutanásia, pode ser ilustrada metaforicamente em uma passagem na obra de Maria Helena Diniz, onde a doutrinadora expõe um interessante caso narrado por John Hansen: “[…] três missionários aprisionados por canibais puderam escolher entre a morte ou a mamba, serpente africana cuja picada provoca grande sofrimento antes de causar a morte. Dois deles optaram pela mamba e, antes de faleceram, sofreram a mais torturante das agonias. O terceiro, ante isso, implorou pela morte, mas o chefe da tribo respondeu-lhe: morte você terá, mas primeiro um pouquinho de mamba. E indagou Hansen: “não seria isso o que ocorre nas Unidades de Terapia Intensiva dos modernos hospitais?” (DINIZ, 2014, p.512 e 513) Portanto, valioso seria tanto para a evolução do direito brasileiro quanto para a evolução humana, a legalização da eutanásia. De modo a evitar que o ser humano seja exposto a tamanha situação indigna em todos os sentidos. Salienta-se, mais uma vez, o dever de promover a vida digna, e não a desvalorização desta. Assim, o presente trabalho defende a legalização da prática da eutanásia no Brasil, utilizando de toda a base legal e fática já exposta, sob as seguintes condições concomitantes: a) que seja livre e consciente a manifestação de vontade do paciente que sofra de doença incurável, já em estágio terminal, cujo quadro clínico seja irreversível; b) que sua condição lhe cause sofrimento físico e psíquico insuportável e inestimável; c) que este diagnóstico seja atestado, pelo menos, por mais um médico alheio à relação do indivíduo e de seu médico de confiança; d) que tal prática seja realizada por médico de modo puramente altruísta; e) que o doente receba acompanhamento psicológico desde sua opção pela eutanásia até o último dia de vida, sendo tal escolha renunciável a qualquer tempo e, por fim, f) que haja fiscalização do Poder Público, bem como da sociedade médica quanto aos casos existentes e seu regular procedimento. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por todo o exposto, considera-se atingido o objetivo do presente trabalho, qual seja, o de discutir as inúmeras possibilidades da efetiva descriminalização da eutanásia no Brasil. Isto porque, foram constatados diversos fatores principiológicos diretivos e garantidores que dão azo à recepção de tal prática pela sociedade brasileira. O real sentido do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito de personalidade merecem ser repensados e reajustados à realidade hoje vivida. As necessidades humanas se transformam constantemente, e é natural que o entendimento que se tinha há anos atrás sobre um mesmo assunto hoje já tenha perdido sua razão de ser. Por isto, o Direito tem que buscar esta constante evolução, de maneira a tentar acompanhar os passos largos, apressados e insaciáveis da humanidade. O termo “flexibilização” dos princípios tão comumente utilizado para justificar tais mudanças, aqui, deve perder espaço para um vocábulo mais apropriado: amoldamento. Isto porque, a flexibilização traz a ideia de algo que foi feito para ser de uma única e determinada forma e que dado um certo momento, passou a ser mais abrangente. Quanto ao tema tratado, cabe falar no amoldamento do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como dos direitos de personalidade, pois estes já carregam consigo a essência de o serem, restando apenas a sua correta aplicação a cada caso concreto, diante da realidade e necessidade daqueles que o compõe. Outro ponto conclusivo atingido foi o da necessidade urgente da humanização por parte do ordenamento jurídico e legislativo brasileiro, da sociedade médica e também das pessoas comuns acerca da eutanásia. Por motivos óbvios de empatia e solidariedade ao próximo, se esquivar de encarar o problema latente que existe hoje na maioria dos hospitais brasileiros é evidenciar o descaso com o próximo que sofre e luta pelos seus direitos diminuídos em razão de sua condição clínica. Ademais, ao sugerir as condições específicas às quais deve-se delimitar a eutanásia, garante ao instituto maior idoneidade e transparência, de modo a evitar fraudes ou banalizações. Na Holanda, antes mesmo de haver o regulamento específico para a prática da eutanásia, já existia, em 1993, a “Lei do Enterro”[9] (tradução livre), que dava margem para tal prática, isentando os médicos de configurarem como réus em eventuais ações penais em razão da prática. Assim, em 2001, após longos e reflexivos debates acerca do tema, o país delimitou a abrangência da prática da eutanásia, revestindo o ato de caráter formal e ético. Não obstante as diversas opiniões contrárias existentes e a grande dificuldade na implantação deste instituto, é preciso nos desnudar de toda interferência religiosa, cultural e política alheia ao real sentido do bem-estar do homem. O pensamento racional deve se insurgir e prevalecer contra qualquer misticismo que envolva a morte, a qual devemos entender como consequência natural da vida, razões que encontram alento nos ensinamentos de (Dworkin, 2003, p.280): “[…] A morte domina porque não é apenas o começo do nada, mas o fim de tudo, e o modo como pensamos e falamos sobre a morte – a ênfase que colocamos no “morrer com dignidade” – mostra como é importante que a vida termine apropriadamente, que a morte seja um reflexo do modo como desejamos ter vivido”. Isto impõe dizer que o direito à vida não deve ser estabelecido a todo custo, uma vez que “não basta apenas haver o direito de continuar vivo como também o de ter uma vida digna quanto à subsistência” (MORAES, 2009, p.36). A legislação holandesa analisada como modelo abre precedentes para a aceitação da eutanásia como sendo um desdobramento natural na relação médico-paciente, sem que lhes seja retirada a autonomia, podendo ambos optarem pela prática/submissão à eutanásia, ou não. Ademais, os requisitos sugeridos para a realização da eutanásia garantem maior segurança e confiança no procedimento, conferindo legalidade ao ato, visando, a todo momento, dedicar cuidados médicos ao paciente da maneira mais adequada e afetuosa possível.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/biodireito/eutanasia-analise-da-aplicabilidade-da-lei-holandesa-que-legaliza-a-pratica-ao-ordenamento-juridico-brasileiro-atual/
A doação de órgãos post mortem à luz das legislações brasileira, espanhola e portuguesa
O objetivo deste estudo é analisar a doação de órgãos post mortem à luz das legislações brasileira, espanhola e portuguesa, analisando as formas de consentimento adotadas em cada um desses países. Comparando as legislações desses países a respeito do tema, observa-se que o modelo de consentimento adotado, expresso ou presumido, reflete-se sobre o exercício da autonomia da vontade e sobre o número de doações e transplantes. Entretanto, uma interpretação restrita da legislação brasileira delega à família do falecido a decisão de doar ou não seus órgãos, adotando-se o modelo do consentimento expresso. Quando a decisão familiar é diversa daquela manifestada em vida pelo indivíduo, há uma negligência à vontade do indivíduo. Por fim, entende-se que a existência de um registro idôneo deixado pelo falecido bastaria para que sua vontade perpetuasse após sua morte. Para a confecção desse artigo foram utilizadas bibliografias de peso como as de Maria Berenice Dias, Maria Helena Diniz, Antonio Chaves, entre outros.
Biodireito
INTRODUÇÃO A doação de órgãos post mortem (após a morte) é prática recorrente nos dias atuais. Isto porque o avanço da medicina trouxe novas chances de vida àqueles que esperam por uma doação. Sabe-se que o ato de doar um órgão traduz um gesto de solidariedade e amor ao próximo, por isso, a decisão de ser doador deve ser voluntária e altruística. Sendo assim, uma pessoa que, em vida, decide ser doadora de órgãos após sua morte, deve ter a garantia de que sua vontade será cumprida. Não há consenso sobre qual posicionamento deve ser adotado, por isso, cada país, através de suas legislações, opta por escolher uma forma de lidar com essa manifestação de vontade, chamada de consentimento. Dependendo da legislação de cada país, adota-se o consentimento presumido ou o consentimento expresso. A doação de órgãos post mortem é tratada pela legislação brasileira como sendo um direito personalíssimo de cada indivíduo, que tem a liberdade de exercê-lo em qualquer tempo e lugar, decidindo sobre seu próprio corpo após a morte. Entretanto, o direito brasileiro não formaliza a manifestação da vontade do indivíduo que deseja doar seus órgãos e, mesmo que, em vida, o sujeito declare sua intenção de ser doador, após sua morte, essa decisão recai sobre sua família. Esta, por sua vez, é detentora da decisão e poderá, ou não, autorizar a doação dos órgãos do de cujus, como preceitua o art. 4º da Lei 9.434/97, que dispõe sobre a doação de órgãos. Esse é o alcance que muitos conferem, ainda que equivocadamente, a tal dispositivo, pois fazem uma interpretação muito restrita ao texto do artigo 4º. Neste sentido, surge um impasse envolvendo a vontade do indivíduo e a autorização legal concedida à família do falecido para decidir acerca da remoção ou não dos seus órgãos. Assim, o presente trabalho se desenvolverá de forma a tratar, no primeiro capítulo, sobre a doação de órgãos post mortem e suas especificidades, requisitos e questões gerais, bem como sua regulamentação na legislação brasileira. O segundo capítulo, por sua vez, trará a doação de órgãos post mortem e sua regulação nas legislações da Espanha e Portugal, assim como o modelo de consentimento adotado por esses países. Por fim, o terceiro capítulo trará reflexões e comparações sobre os modelos de consentimento adotados em cada um dos países que tiveram suas leis analisadas. Portanto, o presente trabalho contribui para que se reflita acerca da atual situação do possível doador de órgãos, analisando a atuação da lei para regular a doação. Além disso, é relevante tratar deste assunto visto que a negativa familiar em doar os órgãos do indivíduo após a morte é uma questão delicada, já que alguém que queira ser doador poderá ter sua vontade negligenciada, caso sua decisão não seja considerada. Cabe ressaltar a importância do tema para discutir a autonomia da vontade do indivíduo, em poder decidir qual o destino dos seus próprios órgãos após sua morte e se essa autonomia deve ser levada em consideração pelo Estado. Além disso, é possível enfatizar a importância do presente estudo para que se pense em medidas a serem tomadas pelo Estado que propiciem formas de concretizar e materializar a decisão do potencial doador. 1 DOAÇÃO DE ÓRGÃOS POST MORTEM Com o avanço da medicina, a remoção de órgãos do corpo humano para fins de transplante tornou-se uma prática comum no mundo. Em 1954, nos Estados Unidos, ocorreu o primeiro transplante de órgão bem sucedido no mundo, pelo médico Joseph Edward Murray (1919 – 2012), que transplantou um rim entre dois irmãos gêmeos (Lamb, 2000). Antes disso, órgãos eram doados e muitas experiências médicas foram realizadas, mas nenhuma delas obteve êxito, pois muitas vezes os pacientes que recebiam órgãos para transplante não resistiam às complicações pós-operatórias e aos problemas de rejeição. Com o aperfeiçoamento deste procedimento, o número de transplantes sofreu considerável aumento no decorrer dos anos. O Brasil, de acordo com a ABTO (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos), é o segundo país do mundo em números de transplante. No entanto, segundo dados da ABTO divulgados em 2017 no Registro Brasileiro de Transplantes (RBT), a necessidade de órgãos é superior ao número de transplantes realizados. Para incentivar essa decisão é necessário um sistema sólido e eficiente, que pressupõe uma regulamentação precisa e efetiva. Assim, a doação de órgãos passou a ser objeto de regulamentação em diversos países. A legislação brasileira autoriza a doação de órgãos em vida para fins terapêuticos ou para transplantes em parentes consanguíneos até o quarto grau, parentes ou em qualquer pessoa (mediante autorização judicial – art. 9º, lei 9.434/97) e após a morte de um indivíduo. A doação de órgãos post mortem consiste na retirada de órgãos ou tecidos do corpo humano após a morte de um indivíduo para fins de transplante. A doação de órgãos post mortem segue regras impostas pela legislação pátria. A Constituição Federal, de forma genérica, autoriza, no art. 199, §4º, a sua realização: “§ 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.” O Código Civil, no artigo 14, mais especificamente no Capítulo II, que trata sobre os direitos da personalidade, dispõe que é um direito válido dispor do próprio corpo após a morte: “Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.” A Lei nº 9.434/97 disciplina de forma ampla os procedimentos de remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Traz regras específicas acerca da doação de órgãos em vida e após a morte.  Em se tratando da remoção de órgãos após a morte de um indivíduo, esta deve ser precedida de um diagnóstico de morte encefálica, como descrito no artigo 3º da referida lei: “Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.” Segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), o diagnóstico de morte encefálica é definido como a constatação da ausência de todas as funções neurológicas. No Brasil, o diagnóstico é definido pela Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1480/97, que considera que a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte. Portanto, a morte encefálica ocorre com a interrupção completa e permanente de todas as funções cerebrais. Após o diagnóstico de morte encefálica, a família do indivíduo é consultada acerca da possibilidade de doação dos órgãos. Os órgãos que podem ser doados após a morte são as córneas, o coração, os pulmões, os rins, o fígado, o pâncreas e ossos. Nesse momento, a retirada de órgãos do corpo humano após a morte do indivíduo dependerá de autorização do cônjuge ou parente. Esta regra está prevista no artigo 4º da lei 9.434/97: “Art. 4º A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte.” A esta autorização denomina-se consentimento familiar, tratada mais especificamente num tópico seguinte. 1.1 RETROSPECTO LEGISLATIVO No Brasil, a doação de órgãos foi regulada, inicialmente, pela Lei nº 4.280 de 6 de novembro de 1963, que permitia, em seu art. 1º, a “extirpação de partes de cadáver”, para fins de transplante, desde que o de cujus houvesse deixado autorização escrita ou que não houvesse oposição por parte do cônjuge ou dos parentes até o segundo grau, ou de corporações religiosas ou civis responsáveis pelo destino dos despojos (art. 1º). Esta lei previa como necessária a comprovação da morte de maneira cabal. Além disso, dispunha no art. 8º que seria permitida somente uma extirpação em cada cadáver. A doação de órgãos para transplante, no Brasil, teve início no ano de 1964, quando o primeiro transplante de rim foi bem-sucedido, no Rio de Janeiro (Relatório de Avaliação de Programa: Doação, Captação e Transplante de Órgãos e Tecidos – Tribunal de Contas da União, 2006). A partir daí o número de doações de órgãos para fins de transplante cresceu significativamente. Em 1968, entrou em vigor a Lei nº 5.479, de 10 de agosto de 1968, dispondo, no art. 2º, que a retirada dos órgãos deveria ser precedida da prova incontestável da morte. Além disso, previa, no art. 3º, que a permissão para a doação de órgãos post mortem dependia da manifestação expressa da vontade do disponente. Ou pela manifestação de vontade, através de instrumento público, quando se tratasse de dispoentes relativamente incapazes e de analfabetos. Ou, pela autorização escrita do cônjuge, não separado, e sucessivamente, de descendentes, ascendentes e colaterais, ou das corporações religiosas ou civis responsáveis pelo destino dos despojos. Em 1988, a Constituição Federal estabeleceu no art. 199, §4º que a lei iria dispor sobre as condições e os requisitos que facilitassem a remoção de órgãos, tecidos ou substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, proibindo qualquer tipo de comercialização. Nesse sentido, a Lei nº 8.489/92, regulamentando o texto constitucional, dispôs, no seu art. 3º, que a permissão para a doação de órgãos post mortem se daria por desejo expresso do disponente manifestado em vida, através de documento pessoal ou oficial (inciso I). Assim, caso quisesse ser doador de órgãos post mortem, o indivíduo deveria expressar esse desejo de maneira formal por meio de documento hábil a comprovar sua vontade. O inciso II desse artigo dispunha que, na ausência do documento referido no inciso I, a retirada dos órgãos seria realizada se não houvesse manifestação em contrário por parte do cônjuge, ascendente ou descendente. Em 1997 a lei 9.434 passou a regular o processo de doação e transplantes de órgãos. 1.2 A LEI 9.434/97 Atualmente, a disciplina da doação de órgãos e transplantes encontra apoio na Lei nº 9.434/97, publicada em 5 de fevereiro de 1997. Esta lei contém 25 artigos e trata de assuntos diversos acerca da doação de órgãos. Dois artigos compõem as disposições gerais da referida lei. O art. 1º trata da faculdade concedida a cada indivíduo para dispor gratuitamente de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano. Ressalte-se que a lei expressamente condiciona a disposição dos órgãos à forma gratuita, para impedir que se dê destinação econômica às partes do corpo humano. Esse artigo revela o objetivo altruísta do ato de doação de órgãos. Por sua vez, o parágrafo único do mesmo artigo traz como exceções à doação o sangue, o esperma e o óvulo, porque tais não se incluem entre os tecidos que compõem o corpo humano. O art. 2º estabelece que a realização de transplantes e enxertos só poderá ser feita por estabelecimentos de saúde (públicos ou privados), como também por equipes médico-cirúrgicas de remoção e transplante previamente autorizados. O parágrafo único traz a regra de que os transplantes e enxertos só podem ser realizados após o doador passar por uma triagem, que inclui testes para diagnóstico de infecção e infestação. A partir do art. 3º, a lei trata da disposição post mortem de tecidos, órgãos e partes do corpo humano. Tal artigo estabelece que a retirada dos tecidos, órgãos e partes do corpo humano pressupõem o diagnóstico de morte encefálica. No Brasil, o conceito de morte encefálica é fixado pela Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1480/97, que considera que a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte. Maria de Fátima Freire de Sá explica bem como ocorre a constatação da morte encefálica (2003, p. 57): “[…] o critério para o diagnóstico de morte cerebral é cessação irreversível de todas as funções do encéfalo, onde se situam estruturas responsáveis pela manutenção dos processos vitais autônomos, como a pressão arterial e a função respiratória”. No art. 4º da lei reside o ponto de discussão, pois trata do consentimento para retirada e doação de órgãos post mortem. Na sua originalidade, esta lei adotava, no que diz respeito ao consentimento, a doação presumida de órgãos post mortem. Nos países onde a doação de órgãos post mortem é legalmente disciplinada, adota-se uma ou outra forma de consentimento, que é a anuência para a retirada dos órgãos. Existem duas espécies de consentimento: o expresso, quando, em vida, o indivíduo opta por ser ou não doador e formaliza essa vontade. O registro de sua escolha pode se dar por meio de documento oficial, declaração particular, preenchimento de cadastros e outras formas aptas que a lei declarar. Nessa hipótese, há expressa manifestação de vontade, por isso o consentimento é expresso. De outra forma, o consentimento presumido, adotado em alguns países, significa que após a morte do indivíduo, ele será um doador de órgãos em potencial, salvo manifestação em contrário. Nesse caso, se a pessoa não formalizou em vida sua opção, após seu falecimento presume-se que ela seja doadora de órgãos. No entanto, há uma variante dessas duas espécies, na verdade uma vertente da segunda, por meio da qual não se exige manifestação expressa em vida e, nessa hipótese a autorização será dada pela família após a morte do indivíduo. Esse posicionamento é adotado atualmente pela legislação pátria. No Brasil, quando a Lei nº 9.434/97 foi promulgada, a redação original do caput do art. 4º era a seguinte: “Salvo manifestação em contrário, nos termos desta Lei, presume-se autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para finalidade de transplantes ou terapêutica post mortem”. Assim, a doação de órgãos seria presumida se não houvesse manifestação em contrário. Tal manifestação, segundo o legislador, deveria constar na Carteira de Identidade Civil e na Carteira Nacional de Habilitação. Seria obrigatório estar registrada a expressão “doador” ou “não doador” nos respectivos documentos de identificação. Tal dispositivo, contudo, gerou grande polêmica, pois aqueles que, por algum motivo, não possuíssem o registro de sua opção, de ser ou não doador, em seus documentos de identificação, seriam doadores compulsórios devido ao consentimento presumido. Em 2001, por meio da Medida Provisória nº 2.083-32, deu-se nova redação ao art. 4º da Lei 9.434/97, in verbis: “A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas, para transplante ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização de qualquer um de seus parentes maiores, na linha reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, ou do cônjuge, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte.” Posteriormente, a Lei nº 10.211/2001 alterou o art. 4º da Lei 9.434/97, fazendo nele constar que a decisão seria familiar. A partir disto, a doação de órgãos no Brasil passou de presumida para a consentida pela família. Ou seja, só se pode proceder à retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo humano post mortem para fins de doação e transplante quando esse procedimento for autorizado pela família do de cujus, na ordem estabelecida pelo art. 4º da vigente lei que regula o assunto. O art. 5º da referida lei trata da doação de órgãos post mortem de pessoa juridicamente incapaz. Nesse caso, é necessária a autorização expressa de ambos os pais ou os responsáveis legais: “Art. 5º A remoção post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa juridicamente incapaz poderá ser feita desde que permitida expressamente por ambos os pais, ou por seus responsáveis legais. “ Nesta hipótese, entende-se que houve grande acerto por parte do legislador, porque indivíduos juridicamente incapazes não têm condições de exercer livremente sua autonomia, sendo adequada a disposição do legislador nesse sentido.  O art. 6º da Lei nº 9.434/97 veda a remoção post mortem dos órgãos, tecidos ou partes do corpo de pessoas não identificadas. 1.2.1 Consentimento Depois de constatada a morte encefálica de um indivíduo, os profissionais da saúde questionam aos familiares se os mesmos desejam doar os órgãos da pessoa falecida. Ressalta-se que a constatação da morte encefálica é requisito indispensável para a retirada dos órgãos e tecidos e segue regras estabelecidas pela legislação e medicina. Assim determina o art. 3º da lei 9.434/97: “Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.” Esse momento de decisão familiar denomina-se consentimento. O art. 4º da Lei 9.434 dispõe acerca do modelo adotado no Brasil, o qual denomina-se consentimento familiar. Atualmente, pela Lei nº 9.434/97, o consentimento pertence à família, que decide doar ou não os órgãos do de cujus. Portanto, no Brasil, não se adota o consentimento presumido, modelo utilizado em diversos países, como na França e Espanha, nos quais todos os indivíduos são potenciais doadores, desde que não tenham expressado em vida sua oposição nesse sentido.   Neste momento, a vontade do indivíduo é colocada em oposição: se, em vida, a pessoa declarou sua vontade de doar ou não seus órgãos, sua família poderá ou não acatar esta decisão. Muitos dos indivíduos que declaram, em vida, ser doadores de órgãos, tem sua vontade perpetuada após a morte, quando a família autoriza a retirada de seus órgãos. Entretanto, é muito comum ocorrer o contrário: a família não autoriza a retirada quando o indivíduo declarou ser doador ou a família autoriza a retirada quando o indivíduo declarou que não desejava ser doador. A negativa familiar é, atualmente, um empecilho para a concretização da doação de órgãos e tecidos. Segundo a ABTO (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos), a taxa de recusa em doar órgãos no Brasil foi de 42% no ano de 2017 (ABTO, 2016). Esta negativa ocorre por diversos motivos. Entre eles estão a questão religiosa, a falta de informação acerca dos procedimentos para a retirada dos órgãos, o medo do comércio de órgãos ou o receio da desfiguração do corpo da pessoa falecida. 2 DIREITO COMPARADO Não há consenso mundial quanto ao modelo de consentimento a ser seguido. Cada país, a depender de sua legislação, adota uma ou outra espécie de consentimento para a doação de órgãos post mortem.  A escolha dos países por determinado modelo de consentimento influência nos números de transplantes realizados. No entanto, questões de ordem religiosa, moral e socioeconômicas acabam por também influir nas taxas de doações e transplantes. O desconhecimento acerca do assunto e do procedimento também afetam esse número. 2.1 DOAÇÃO DE ÓRGÃOS NA LEGISLAÇÃO ESPANHOLA Alguns países possuem histórico bem-sucedido no número de transplantes, como é o caso da Espanha. Conforme Arthur Abbade Tronco (2013, p.48), o êxito espanhol não está exclusivamente na legislação adotada, mas também nas áreas das ciências políticas, sociais, da saúde e também na administração, assim como nas campanhas de conscientização realizadas pelo Estado e na eficiente rede de transplantes existente no país. A Espanha conta com um órgão especializado em transplantes, a ONT – Organización Nacional de Trasplantes. De acordo com dados divulgados pelo Ministério da Saúde, Serviços Sociais e Igualdade da Espanha, em 2016, o país bateu seu próprio recorde e alcançou o número de 43,4 doadores por um milhão de pessoas, com um total de 2018 doadores e a realização de 4818 transplantes. A Lei 30/1979 foi a primeira lei espanhola a disciplinar especialmente a doação de órgãos. Consoante o artigo segundo da referida lei, a doação de órgãos é gratuita e não há compensação de qualquer natureza para o doador vivo ou para a família do doador falecido. Da mesma forma também não se exige o pagamento de valor algum da pessoa que receberá o órgão para fins de transplante: “Artículo segundo. No se podrá percibir compensación alguna por la donación de órganos. Se arbitrarán los medios para que la realización de estos procedimientos no sea em ningún caso gravosa para el donante vivo ni para la familia del fallecido. Em ningún caso existirá compensación económica alguna para el donante, ni se exigirá al receptor precio alguno por el órgano transplantado[1]”.   Assim como a legislação brasileira, a espanhola determina que a retirada de órgãos pós-morte se dê mediante prévia comprovação da morte. Essa comprovação refere-se à morte encefálica que, conforme o artigo 5º, I da Lei 30/1979, deve ser assinado por três médicos, dentre eles um neurologista ou neurocirurgião e o chefe do serviço da unidade médica correspondente, ou seu substituto. Essa lei continua em vigor na Espanha, juntamente com o Real Decreto 2070 de 1999. Esse decreto regula as atividades relacionadas à obtenção e utilização dos órgãos, como a doação, a extração, preparação, transporte e distribuição. Tal diploma normativo também traz conceitos bem delimitados do que vêm a ser órgãos, doadores, receptores, doação post mortem e outros atinentes à doação de órgãos. Em 27/11/2006, a Espanha assinou o Protocolo Adicional à Convenção sobre Direitos Humanos e Biomedicina sobre Transplante de Órgãos e Tecidos de Origem Humana, assinado por vários países integrantes do Conselho da Europa, tendo sido ratificado em 22/12/2014. Tal protocolo entrou em vigor no país em 01/04/2015 (COUNCIL OF EUROPE, 2018). 2.1.1 Consentimento Com relação ao consentimento, a legislação espanhola expressamente adota o consentimento presumido. Como visto, esse modelo consiste em pressupor que todos são doadores, desde que não tenham se manifestado em sentido contrário antes de morrer. Assim, todos os indivíduos são potenciais doadores, salvo se expressamente se opuserem à doação de órgãos em vida. O artigo 5º, II da Lei 30/1979 deixa bem clara a adoção desse posicionamento: “Artículo quinto. […] Dos. La extracción de órganos u otras piezas anatómicas de falecidos podrá realizarse con fines terapéuticos o científicos, em el caso de que éstos no hubieran dejado constancia expresa de su oposición[2]”. Ao contrário do Brasil, a doação de órgãos post mortem na Espanha é presumida. Todos os cidadãos espanhóis são potenciais doadores de órgãos post mortem se não houverem deixado expressamente registrada sua oposição. Pela literalidade da legislação, a manifestação de vontade da família seria desnecessária, prevalecendo somente a vontade ou o silêncio do indivíduo. No entanto, a ONT (Organización Nacional de Trasplantes) definiu que, na ocasião do falecimento, a família deve firmar consentimento para proceder com a extração dos órgãos ou pelo menos não se opor a ela. O consentimento ou a oposição pode se dar de forma integral ou parcial, pois o indivíduo, ainda em vida, tem a possibilidade de escolher se será ou não doador e, ainda, definir quais órgãos serão ou não doados. A forma de manifestação da vontade pode ser exercida a qualquer tempo e, conforme a ONT, o indivíduo que desejar ser doador, deve solicitar o Cartão de Doador, um documento sem valor legal, somente testemunhal. O modelo adotado pela Espanha, de consentimento presumido, acaba por resultar num consentimento condicionado à vontade da família. O Cartão de Doador, que revela a vontade do indivíduo de doar seus órgãos após a morte, não vincula o Estado à manifestação de vontade declarada em vida, pois mesmo tendo expressado esse desejo em vida, se a família se opor a ele no momento do falecimento, a extração de órgãos não se concretiza. Essa posição acaba por esvaziar o sentido proposto pelo modelo do consentimento presumido. Dessa forma, entende-se que a vontade familiar só deveria prevalecer em caso de omissão do falecido no que diz respeito à sua vontade de doar seus órgãos ou não. No contrário, quando a pessoa declarou, em vida, ser ou não doador, sua vontade deveria prevalecer após a morte, independentemente do consentimento familiar. Ainda assim, o modelo espanhol continua sendo referência mundial no que diz respeito ao número de doação de órgãos e transplantes realizados, pois conta com uma eficiente rede de procedimentos relacionados à obtenção, extração e transplantes. Além disso, o bom resultado se deve também ao incentivo e conscientização da população.   2.2 DOAÇÃO DE ÓRGÃOS NA LEGISLAÇÃO PORTUGUESA Em Portugal, a legislação aplicável à doação e transplantes de órgãos é a Lei nº 12/93. Este dispositivo legal está em vigor, mas não foi o primeiro a disciplinar a matéria. Segundo Raimundo Chaves Neto, “o Decreto-Lei 45.683 de 1964 representou em Portugal o primeiro documento legal para regulamentar a matéria de transplantes” (CHAVES NETO, 2010, p.206). Este decreto foi revogado pelo Decreto-Lei nº 553/76 e, posteriormente, a atual Lei nº 12/93 revogou este último. A Lei nº 12/93 trata da colheita e transplantes de órgãos e tecidos de origem humana e dá diversas disposições acerca do assunto. No que tange à doação de órgãos post mortem, esta é tratada no Capítulo III da referida lei. O art. 1º-A da Lei nº 12/93 traz os conceitos pertinentes ao tema, quais sejam: órgãos, tecido, células, dador, dádiva e colheita. Com destaque para o conceito de “dador”, ou seja, doador, este trata-se de qualquer fonte humana, viva ou morta, de órgãos, tecidos e células de origem humana. Assim também, o conceito de dádiva, ou doação, é tratada como qualquer doação de órgãos, tecidos e células de origem humana, destinados a aplicações no corpo humano. Segundo o Instituto Português do Sangue e da Transplantação, a taxa de doação de órgãos de doadores falecidos foi de 32,6% pmp (por milhão de pessoas) em 2016. Em 2015 essa taxa foi de 30,9 doadores falecidos pmp. O número de órgãos colhidos em 2016 foi de 936, mais 40 do que em 2015, e o número de transplantes realizados em 2016 foi de 864, o maior número de transplantes dos últimos cinco anos. O art. 2º estabelece o âmbito pessoal de aplicação da lei e estabelece que a legislação em comento se aplica à cidadãos nacionais e a apátridas e estrangeiros residentes em Portugal. Portanto, qualquer indivíduo que resida em Portugal se submete às disposições da Lei 12/93. O art. 5º, por sua vez, reforça o caráter altruísta da doação de órgãos, ressaltando que “a dádiva de órgãos, tecidos e células, para fins terapêuticos ou de transplante, não pode, em nenhuma circunstância, ser remunerada, sendo proibida a sua comercialização”. Em 21/02/2002, Portugal assinou o Protocolo Adicional à Convenção sobre Direitos Humanos e Biomedicina sobre Transplante de Órgãos e Tecidos de Origem Humana, assinado por vários países do Conselho da Europa, tendo sido ratificado em 11/05/2017. Tal protocolo entrou em vigor no país em 01/09/2017 (COUNCIL OF EUROPE, 2018). 2.2.1 Consentimento O art.10 da Lei 12/93 estabelece o modelo de consentimento adotado em Portugal: “São considerados como potenciais dadores post mortem todos os cidadãos nacionais e os apátridas e estrangeiros residentes em Portugal que não tenham manifestado junto do Ministério da Saúde a sua qualidade de não dadores”. Como visto, Portugal adota o modelo do consentimento presumido, ou seja, considera todos os cidadãos nacionais, apátridas e estrangeiros residentes no país como potenciais doadores, excluindo da presunção aqueles que expressamente declararem sua oposição. A declaração a que se refere o artigo 10 é feita por meio de um cadastro no Registro Nacional de não Dadores (RENNDA), criado também pela Lei 12/93: “Art. 11º 1 – É criado o Registo Nacional de não Dadores (RENNDA), informatizado, para registo de todos aqueles que hajam manifestado, junto do Ministério da Saúde, a sua qualidade de não dadores.” Assim, todos os indivíduos que não querem ser doadores devem se cadastrar no RENNDA, passando a portar um cartão individual de não doador, além de constar do registro a oposição à doação. Também é possível que o indivíduo manifeste sua objeção total ou parcial à doação de órgãos post mortem, ou seja, é possível declarar que não deseja de forma nenhuma ser doador ou indicar apenas os órgãos que deseja doar após a morte. Importante destacar que neste modelo adotado por Portugal não há influência familiar na doação post mortem assim como ocorre na Espanha, pois somente os que se cadastrarem no RENNDA serão excluídos da presunção de doador. Portanto, todos aqueles que não declararem sua negação à doação, são potenciais doadores de órgãos post mortem. Para cumprir as formalidades de certificação, o art. 13, 1 da Lei 12/93 expressa que: “Os médicos que procederem à colheita devem lavrar, em duplicado, auto de que constem a identidade do falecido, o dia e a hora da verificação do óbito, a menção da consulta ao RENNDA e do cartão individual, havendo-o, e da falta de oposição à colheita, os órgãos ou tecidos recolhidos e o respectivo destino”.  Assim, cabe aos médicos somente consultar o RENNDA para proceder ou não à doação de órgãos, não necessitando da autorização de terceiros para tanto. Quanto aos cadáveres não identificados, o art. 13, 6, determina que se presume a não oposição à dádiva se outra coisa não resultar dos elementos circunstanciais. Por fim, analisando as estatísticas apresentadas anteriormente, é possível perceber que o número de doações e transplantes cresceu nos últimos anos em Portugal, como resultado do modelo adotado, bem como das políticas de conscientização empregadas no país. 2.3 PROTOCOLO ADICIONAL À CONVENÇÃO SOBRE DIREITOS HUMANOS E BIOMEDICINA SOBRE TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS E TECIDOS DE ORIGEM HUMANA A convenção sobre direitos humanos e biomedicina sobre transplante de órgãos e tecidos de origem humana é um acordo celebrado entre sujeitos de Direito Internacional, mais especificamente da Europa, com o fim de estabelecer regras acerca dos direitos do homem relativos à área da saúde e biomedicina, produzindo efeitos jurídicos entre as partes contratantes. Conforme estabelecido no art. 1º da referida convenção, sua finalidade é proteger o ser humano na sua dignidade e na sua identidade e garantir a toda a pessoa, sem discriminação, o respeito pela sua integridade e pelos seus outros direitos e liberdades fundamentais face às aplicações da biologia e da medicina. O Primeiro Protocolo Adicional a essa Convenção tratou acerca da proibição à clonagem de seres humanos. O Segundo Protocolo Adicional, por sua vez, refere-se aos transplantes de órgãos e tecidos de origem humana. Conforme a Direção-Geral da Política de Justiça de Portugal, esse protocolo adicional (República Portuguesa, 2008): “Aplica os princípios estabelecidos na Convenção ao domínio do transplantes de órgãos e tecidos, atendendo a que o objectivo da Convenção é a protecção da dignidade e da integridade do ser humano, bem como dos direitos e liberdades fundamentais face aos avanços da medicina e da ciência.” Assim, o Segundo Protocolo Adicional à Convenção sobre direitos humanos e biomedicina, que versa sobre transplantes de órgãos e tecidos de origem humana, traz regras e princípios gerais que devem ser observados pelos Estados assinantes, tais como normas de segurança, não remuneração de doadores, igualdade dos pacientes no acesso aos serviços de transplante, entre outras. 3 REFLEXÕES ACERCA DO CONSENTIMENTO Como visto até aqui, o maior questionamento envolvendo a doação de órgãos post mortem está na figura do consentimento. Não existe consenso mundial acerca do modelo de consentimento a ser adotado. Cada país, por meio de seus programas de saúde, escolhe qual posição será acolhida. Basicamente, existem dois modelos de consentimento. O consentimento presumido pressupõe que todos os indivíduos são potenciais doadores de órgãos desde que não tenham manifestado, em vida, sua oposição à doação pós-morte. O consentimento expresso, por sua vez, caracteriza-se pela manifestação de vontade da família do falecido, cabendo a essa a decisão de doar ou não os órgãos da pessoa falecida. Ainda há uma variação no modelo do consentimento presumido, utilizado na Espanha, quando mesmo que o indivíduo tenha declarado em vida sua opção por ser doador após a morte, a remoção de órgãos para fins de doação e transplante dependerá de aprovação da família, devendo a equipe médica consultar os interesses familiares. Essa posição acolhida na Espanha acaba por esvaziar o objetivo e o sentido do modelo do consentimento presumido, pois retira a presunção de que todos os indivíduos são potenciais doadores de órgãos após a morte. Mesmo com a escolha desse modelo, a Espanha se mostra o país com o maior número de doações e transplantes de órgãos, sendo que o êxito se deve às estratégias empregadas nesse sentido, com destaque para as campanhas de conscientização e para os eficientes procedimentos de obtenção, remoção, transporte e cirurgias de transplante. Pode-se dizer que o sucesso é resultado de um longo processo de dedicação e empenho do poder público e da sociedade. No entanto, também é de se notar que o número de doações e transplantes em Portugal têm crescido, conforme estatísticas já vistas anteriormente, colocando o país entre os primeiros em número de doações de órgãos post mortem. Além da política de conscientização utilizada pelo país, parece-nos óbvio que o modelo de consentimento escolhido em muito influencia o bom resultado e os números crescentes de doações. No que concerne ao Brasil, é adotado, atualmente, o consentimento expresso, previsto no art. 4º da Lei 9.434/97. Os dados anteriormente analisados demonstram que o número de doações de órgãos post mortem têm crescido, mas o país ainda se encontra em distante posição no ranking dos países com maior número de doações, ocupando o 27º lugar na lista, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos – ABTO, por meio do Registro Brasileiro de Transplantes do ano de 2016. Esses dados revelam uma realidade comum nos países em que se adota o modelo do consentimento expresso. Conforme Maynard et al. (2015, p. 125), os países que optam por esse modelo apresentam taxas de doação de 25% a 30% mais baixas do que nos países onde o consentimento é presumido. A autorização da família, principal característica do modelo do consentimento expresso, se mostra um grande obstáculo a ser superado, pois a recusa familiar à doação de órgãos post mortem no Brasil, como visto, ainda alcança altos índices. Acerca disto, Resch e Rodrigues afirmam que a principal razão para a não-captação de órgãos de potenciais doadores é a recusa da família (2007, p. 87). Segundo Maynard et al. (2015, p. 125), esse impasse advém da opção do legislador: “Do exame da Lei n. 9.434/19975 (Lei de Transplantes) depreende-se que a manifestação de vontade expressa e pública do potencial doador quanto à doação de seus órgãos não está juridicamente protegida. Em contrapartida, a decisão sobre a (não) doação de órgãos é inteiramente da família do doador, mesmo que esta decisão contrarie sua vontade”. Assim, a discussão que permeia a opção pelo consentimento presumido reside exatamente na decisão familiar e mais precisamente na oposição da família à vontade do falecido. Esta negativa ocorre por diversos motivos. Entre eles estão a questão religiosa, a falta de informação acerca dos procedimentos para a retirada dos órgãos, o medo do comércio de órgãos ou o receio da desfiguração do corpo da pessoa falecida. Nessa esteira, é importante ponderar acerca dos direitos da personalidade e da autonomia da vontade do indivíduo.        Embora a personalidade jurídica de um indivíduo cesse após sua morte, entende-se que a vontade deste, ainda que falecido, não deve ser negligenciada. Isto porque os direitos da personalidade, apesar de intransmissíveis, são passíveis de proteção post mortem. Acerca disto, Carlos Roberto Gonçalves (2015, p. 192) afirma que um dos atributos dos direitos da personalidade é sua vitaliciedade: “Os direitos da personalidade inatos são adquiridos no instante da concepção e acompanham a pessoa até sua morte. Por isso, são vitalícios. Mesmo após a morte, todavia, alguns desses direitos são resguardados, como o respeito ao morto, à sua honra ou memória e ao seu direito moral de autor, por exemplo”. Posto isto, temos que os direitos da personalidade não terminam, simplesmente, com a morte da pessoa natural, pois o Código Civil garante a proteção aos direitos da personalidade da pessoa morta. Isto pode ser constatado no art. 12 do referido código: “Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.” Quanto à autonomia da vontade, impende destacar que quando um indivíduo declara em vida ser doador de órgãos post mortem e sua família não acata essa decisão, percebe-se que o exercício da autonomia da vontade feito em vida é ignorado pelos familiares após a morte. Assim, o indivíduo que declara em vida o desejo de ser doador de órgãos post mortem, o faz por meio do diálogo com a família. Entretanto, após a morte, a família poderá ou não acatar essa decisão, visto que não há nenhum dispositivo legal que imponha a obrigatoriedade da família de cumprir com o que fora expresso em vida pelo de cujus. Maynard et al. (2015, p. 130) também observa isto: “Por meio do atual artigo 4º da Lei de Transplantes, as famílias dos potenciais doadores passaram a ser as únicas responsáveis pelos órgãos do ente falecido, assumindo a responsabilidade pelo destino destes. Não se prestigiou, portanto, a vontade do potencial doador, mesmo que em vida este tivesse deixado clara sua intenção, seja por documento formal ou pessoal seja por qualquer meio idôneo de manifestação”. Como foi visto na redação original da Lei 9.434/97, a doação de órgãos seria presumida se não houvesse manifestação em contrário. Tal manifestação, segundo o legislador, deveria constar na Carteira de Identidade Civil e na Carteira Nacional de Habilitação. Seria obrigatório estar registrada a expressão “doador” ou “não doador” nos respectivos documentos de identificação. Tal dispositivo, contudo, gerou grande polêmica, pois aqueles que, por algum motivo, não possuíssem o registro de sua opção, de ser ou não doador, em seus documentos de identificação, seriam doadores compulsórios devido ao consentimento presumido. Diante disto, alterou-se o art. 4º da lei 9434/97 por meio da lei 10.211/2001, fazendo nele constar que a decisão seria familiar. Acerca disto, Maynard et al. (2015, p. 129) assevera que: “Não existe, portanto, amparo jurídico à manifestação de vontade do doador potencial, circunstância que revela a prevalência do monopólio de decisão familiar na hipótese de um confronto entre a vontade do doador e a vontade da própria família”. Entretanto, naqueles casos em que a decisão familiar é contrária àquela manifestada, em vida pelo indivíduo, tem-se que o exercício da autonomia da vontade do falecido foi desconsiderado. Posto isto, entendemos que a decisão feita em vida pelo potencial doador de órgãos post mortem deve prevalecer sobre a decisão familiar. Nesse sentido, a IV Jornada de Direito Civil, encontro de civilistas que discutem acerca de dispositivos do Código Civil de 2002, com o fim de elaborar enunciados que auxiliem na interpretação dos dispositivos, ocorrida em 2006, aprovou o enunciado de nº 277: “277 – Art.14. O art. 14 do Código Civil, ao afirmar a validade da disposição gratuita do próprio corpo, com objetivo científico ou altruístico, para depois da morte, determinou que a manifestação expressa do doador de órgãos em vida prevalece sobre a vontade dos familiares, portanto, a aplicação do art. 4º da Lei n. 9.434/97 ficou restrita à hipótese de silêncio do potencial doador.” Por tal razão, pensamos que a existência de um registro legal, capaz de perpetuar a decisão do indivíduo após sua morte, seria de grande utilidade, posto que sua vontade, manifestada em vida, seria preservada e nenhum direito personalíssimo seria lesado. Deste mesmo entendimento compartilha Silvio de Salvo Venosa (2004, p. 159): “Tendo em vista o teor do art. 14 mencionado, temos que concluir, mesmo perante o sistema atual, que, enquanto não regulamentada diferentemente a disposição, será idônea qualquer manifestação de vontade escrita do doador a respeito da disposição de seus órgãos e tecidos após sua morte, devendo os parentes ou o cônjuge autorizar somente perante omissão da pessoa falecida. Tratando-se de disposição não patrimonial, a doação de órgãos após a morte tanto poderá ser inserida pelo doador em testamento como em outro documento idôneo”. Por outro lado, é importante esclarecer que a autonomia da vontade também deve prevalecer diante da hipótese em que o indivíduo em vida, tenha se manifestado em não ser doador de órgãos, já que é um direito seu decidir o destino do seu corpo após a morte. Por isso, Maria Helena Diniz (2011, p. 396) observa que a nova redação do art. 4º da Lei nº 9.434/97 foi acertada: “O direito de dispor, a título gratuito, do cadáver para fins lícitos pertence à própria pessoa ou aos seus familiares. Se o cadáver é um resíduo da personalidade, tendo prerrogativas comuns ao direito da personalidade, se é coisa extra commercium, a que têm direito seus parentes, que dele poderão dispor gratuitamente e exigir o seu devido respeito, evitando qualquer profanação, poderia haver disposição legal instaurando, na seara jurídica, a doação presumida post mortem de órgão e tecido humano para fins de tratamento ou transplante? Por tais razões merece aplausos a nova redação do art. 4º da Lei n. 9.434/97, dada pela Lei n. 10.211/2001, não mais acatando a doação presumida de órgãos”. A autora, portanto, entende que o modelo adotado no Brasil, do consentimento expresso, é adequado. Isso porque, dentre várias razões, uma merece destaque: a falta de acesso à informação pelo povo brasileiro. Diniz (2011, p.396) assevera que a ausência de cultura do povo brasileiro poderia impedir o indivíduo de manifestar o seu desejo de doar ou não seus órgãos após a morte. Para Diniz (2011, p.380): “A solução mais consentânea com a Justiça seria que não houvesse tal presunção, mas que apenas se inserisse, em qualquer documento de identificação pessoal, declaração do interessado autorizando ou não o uso de seus órgãos e tecidos para transplantes”. Partilhamos do entendimento de que independente do modelo de consentimento adotado, deve-se privilegiar a autonomia da vontade do indivíduo. Assim, qualquer tipo de documento idôneo, deixado pelo de cujus, bastaria para que a decisão, feita em vida pelo potencial doador, prevalecesse após sua morte. No caso de omissão da pessoa falecida, a respeito da doação de órgãos, a decisão familiar seria o mais adequado. Nessa perspectiva, Maynard et al. (2015, p. 140) entende que: “É necessária uma adequação entre os dispositivos de lei, partindo-se do texto já existente do artigo 4º da Lei n. 9.434/1997 e introduzindo, apenas, em respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, a manifestação da vontade do doador, ainda em vida, devidamente documentada. A doação de órgãos é um ato de solidariedade que deve ocorrer por vontade do próprio doador, dado seu caráter incontestavelmente personalíssimo”. Para que a legislação brasileira atual gere resultados eficazes quanto ao número de doações e, consequentemente, quanto ao número de vidas salvas pelos transplantes de órgãos, é importante que o Poder Público desenvolva mecanismos de conscientização da população, assim como evolua no sistema de saúde que envolve a captação, transporte e procedimentos médicos de realização de transplantes. Maynard et al. (2015, p. 140), adepto a esse entendimento, sustenta que: “Enquanto a legislação brasileira sobre doação e transplante de órgão se mantiver conflituosa com os interesses daqueles que necessitam de órgãos para sobreviver, cabe, sobretudo ao poder público, promover campanhas para informação e conscientização popular sobre a importância da doação de órgãos como medidas direcionadas ao aumento do número de doadores, além do desenvolvimento/inclusão da temática de doação de órgãos na Política de Educação Permanente dos profissionais de saúde para que desenvolvam habilidades para lidar com essa situação tão complexa. Nesse sentido, em face do contexto sociolegal em que se encontra o país – e considerando-se que o processo atual de doação de órgãos depende exclusivamente da autorização da família –, é necessário também incentivar as pessoas a manifestarem seu desejo quanto à doação de órgãos aos seus familiares, como forma de diminuir os índices de recusa familiar”. Diante do exposto, entendemos que a doação de órgãos post mortem é uma atitude humanitária e altruísta. Para as pessoas que aguardam na fila de transplantes, esse comportamento solidário significa esperança e maiores chances de vida. Para tanto, é importante que haja um diálogo entre os diversos setores da sociedade e o Poder Público, de forma que se garanta o pleno exercício da autonomia da vontade de cada indivíduo no momento em que houver a manifestação do desejo de cada um. A conscientização e reflexão acerca do tema asseguram os direitos personalíssimos e, em última análise, a dignidade da pessoa humana. CONSIDERAÇÕES FINAIS A doação de órgãos no Brasil é um assunto que ainda gera questionamentos acerca do consentimento em vida, da manifestação da vontade, do respeito à pessoa morta e tantos outros temas. Pode-se afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro dispõe de uma rica legislação sobre a doação de órgãos. Ainda assim, há muito que o que evoluir, principalmente no que diz respeito à doação de órgãos post mortem e à impositiva decisão da família em doar ou não os órgãos da pessoa falecida. Afinal, a vontade declarada pela pessoa em vida não deve ser desconsiderada após sua morte, pois se trata de desrespeito ao direito de personalidade do indivíduo, que, não se extingue simplesmente com a morte e, se por acaso for lesado, pode ser requerido por seu descendente vivo. O exercício da autonomia da vontade, por sua vez, é colocado em prova quando a decisão familiar é contrária àquela manifestada em vida pelo indivíduo, pois se questiona se este, com a liberdade de dispor de seu próprio corpo, pode ter sua decisão ignorada pelos familiares após sua morte. Vimos que não existe consenso mundial acerca do tema, pois não é uniforme a escolha do modelo de consentimento a ser adotado, podendo ser o consentimento presumido ou o consentimento expresso. Através da análise de dados estatísticos, percebemos que a escolha do modelo do consentimento reflete-se sobre o número de doações de órgãos post mortem e sobre o número de transplantes realizados. Também é possível observar que um eficiente e estruturado sistema de saúde, assim como o comprometimento do Poder Público em conscientizar e estimular a população contribuem para o sucesso da doação e transplantes de órgãos. A legislação brasileira que trata sobre a doação de órgãos e transplantes, especificamente a lei 9.434/97 traz, em seu artigo 4º, que a família do indivíduo falecido é responsável por autorizar ou não a remoção de órgãos para doação, adotando o modelo do consentimento expresso. Uma interpretação restrita deste dispositivo remete ao entendimento de que a decisão familiar deve prevalecer sobre a vontade declarada em vida pelo indivíduo. Contudo, entende-se que a família só deve decidir em casos de omissão e a manifestação de vontade do indivíduo feita em vida deve prevalecer após sua morte. Para tanto, seria necessário que a legislação brasileira determinasse uma maneira de registrar, por meio de documento idôneo, a declaração feita em vida pelo potencial doador, para que sua vontade perdure após sua morte, seja ela de ser ou não doador de órgãos. Deste modo, o exercício da autonomia da vontade, praticado em vida, seria apreciado após a morte daquele que deseja ser doador de órgãos ou não. Considerando que a doação de órgãos post mortem é um assunto que influencia diretamente questões de saúde pública, pois reflete no número de doações, transplantes e pessoas em fila de espera, cabe ao Poder Público incentivar as pessoas acerca da escolha de ser ou não doadoras de órgãos post mortem, através de reflexões e conscientização, assim como desenvolver mecanismos e estratégias eficientes de captação, transporte e cirurgias de transplantes, para que a sociedade brasileira obtenha melhorias e benefícios nesse campo.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-171/a-doacao-de-orgaos-post-mortem-a-luz-das-legislacoes-brasileira-espanhola-e-portuguesa/
A proposta de formulação de política pública para amparo dos familiares que cuidam de pessoas com sofrimento mental na luta antimanicomial
O estudo sob exame visa através da revisão literária, numa análise qualitativa, em propor a formulação de uma política pública para o amparo da família que cuida de portadores de sofrimento psíquico e que acabam adoecendo, ao sofrerem com o caregiver burden, sobrecarga no cuidar. Ao abalizar o sofrimento humano e o sofrimento mental especificamente e como a família é um relevante ator social no processo terapêutico biopsicossocial de que necessita o portador de distúrbio mental, se esta adoece, o cuidado desse indivíduo fragilizado e em sofrimento emocional fica comprometido. A construção de uma rede de solidariedade entre os atores sociais envolvidos que são a família, as instituições, os profissionais de saúde mental, a comunidade e o próprio indivíduo com transtorno psíquico pode concretizar o direito fundamental e o direito social à saúde e preservar a dignidade humana na luta antimanicomial.[1]
Biodireito
INTRODUÇÃO Inverter a racionalidade, transcende-la, desafia-la, é ser louco? Acomodar-se à racionalidade, submeter-se, adequar-se, é ser normal? Quando se tem uma condição biológica que é mais sensível às vicissitudes humanas, às intempéries do sentir, agir, comunicar, à desigualdade e ao domínio de uns sobre os outros, quando o sofrimento humano extrapola. Adoecer é um processo biopsicossocial, é um processo dinâmico que desencadeia vários efeitos, sendo que adoecer com sofrimento mental, traz responsabilidade à família que é um stakeholder primordial nesse trilhar do distúrbio psíquico, sendo que muitas vezes essa responsabilidade é tão vultosa, pois além de ser social, é afetiva, o que ocorre é que esses familiares cuidadores acabam adoecendo, sendo acometidos pelo caregiver burden ou sobrecarga, precisando também de cuidados, É cediço que o processo de tratamento psi é oneroso e que há grande preconceito em torno do transtorno mental que tem uma interface de segregação e de solidão. Ocorre que com a luta antimanicomial a tendência é de que o indivíduo que é portador de doença mental seja incluído socialmente e a família é um componente de máximo valor nesse elã. A família é parte fundamental desse processo terapêutico de equilibrar e amenizar o sofrimento daquele que padece do transtorno mental, nesse jaez, é mister que a família esteja consciente do seu papel, do conteúdo da patologia mental, do ato de cuidar e de como cuidar e como auto proteger-se para também não adoecer nesse processo, mormente no caso de cuidar de pessoas em surto psicótico. Exsurge do relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2017) que o panorama mundial de aumento de transtornos psíquicos na população é progressivo, sendo que de 2005 a 2015, aumentou o número de portadores de depressão em 18%, e no Brasil especificamente a depressão atinge 11,5 milhões de pessoas, atingindo 5,8% da população, conquanto os distúrbios de ansiedade alcançam mais de 18,6 milhões de brasileiros, o que perfaz 9,8% da população. O movimento da luta antimanicomial ou a reforma psiquiátrica no Brasil, baseada na Não-Psiquiatria do médico psiquiatra italiano Basaglia (1964), que congrega elementos como solidariedade, não segregação, inclusão social do portador de sofrimento psíquico, desinstitucionalização da Psiquiatria, não é um movimento definitivo nesse percurso histórico de tratar-se do sujeito com transtorno mental, como preconiza Dalmolin (1996, p. 194), no seu livro Esperança Equilibrista. Cartografia de Sujeitos em Sofrimento Psíquico: “[…] o contexto da cidade como um pano de fundo homogêneo para um poderoso recurso articulado ao mundo subjetivo é expresso em ricos itinerários urbanos   de outro lado as instituições de saúde que se constituem em ‘tortuosas’ tramas ao serem apreendidas nas microrrelações cotidianas de quem vive, sofre e precisa lançar mão desse recurso em diferentes fases de vida.” As políticas públicas de saúde mental no Brasil, o que tange à Reforma Psiquiátrica são um processo em construção em face do indivíduo com transtorno psíquico e não há uma política específica de amparo para os familiares cuidadores desse indivíduo que não tem condições de arcar com os custos sócio financeiros do processo de cuidar e da estigmatização que é deferida pela sociedade aos que se rotulam de “loucos”. 2. SOFRIMENTO HUMANO O sofrimento humano ele existe, à medida que o indivíduo existe, e não é uma coisa, não é uma rocha, existe no mundo, consoante Heidegger (2004, p. 54) o qual chancela: “Na angústia, experimentamos a finitude em seu sentido forte.” A ansiedade no existir traz sofrimento humano conquanto Caetano Veloso poetiza: “Existimos, a que será que se destina?”, a ansiedade diante do incerto e diante da morte que é o certo. Essa anguish, angústia, na alteridade, na relação com outro, traz “pre ocupação”, no sentido negativo, nos antevemos ao próximo, nos preocupamos com o outro, com o seu olhar, com o seu discurso, com o que pensa de nós, com “o modo de ser da cotidianidade” (HEIDEGGER, 2005, p. 179). O sofrimento humano diante da morte ou do adoecimento de um familiar , pode ser tão somente psicológico, emocional, mas algumas vezes se torna físico e patológico,  quaisquer formas que seja, é relevante, como  tão sublime desenha Shakespeare (1999, ACT I) o sofrimento tão humano de Hamlet no advento da morte do pai, rei da Dinamarca, e o casamento prematuro de sua mãe com o seu tio Claudius que se torna rei, nessa senda o  sofrimento de Hamlet grita: “O, that this too solid flesh would melt Thaw and resolve itself into a dew! Or that the Everlasting had not fix’d His canon ‘gainst self-slaughter! O God! God! How weary, stale, flat and unprofitable, Seem to me all the uses of this world! Fie on’t! ah fie! ‘tis an unweeded garden, That grows to seed; things rank and gross in nature Possess it merely. That it should come to this! But two months dead: nay, not so much, not two: So excellent a king; that was, to this, Hyperion to a satyr; so loving to my mother That he might not beteem the winds of heaven Visit her face too roughly. Heaven and earth! Must I remember? why, she would hang on him […].” E nessa tragédia, Hamlet, príncipe da Dinamarca, resta louco ao ouvir o espectro do seu pai dizendo que seu tio o matou, expõe sua perplexidade, in verbis: “Thrift, thrift, Horatio! the funeral baked meats Did coldly furnish forth the marriage tables. Would I had met my dearest for in heaven Or ever I had seen that day, Horatio! My father! methinks I see my father.” (SHAKESPEARE, 1999, ACT II). Traçar uma linha de solidariedade para amenizar o sofrimento humano e trazer-lhe a dignidade, a concretude dos seus direitos, é válido. 3. HISTÓRICO DO SOFRIMENTO AFETIVO E DA RUPTURA DO SILÊNCIO DOS QUEM NÃO TÊM VOZ A instigante linha histórica do tratamento dado aos portadores de sofrimento mental no mundo e no Brasil é bem delineada por Michel Foucault que a disseca com bisturi de filósofo, a esmiuçando com o que a loucura tem de visceral e oponente à razão instrumental a ser rechaçada, Foucault (1976, p. 42) desenha a loucura e a colore anárquica: “É que agora a verdade da loucura faz uma só uma coisa e mesma coisa com a vitória da razão e seu definitivo domínio, pois a verdade da loucura é ser anterior à razão, ser uma das suas figuras, uma força e como uma necessidade momentânea em si mesma a fim de melhor certificar-se de si mesma. “ O olhar hierárquico, verticalizado e unívoco que não aceita o plural e tem a tendência de expurga-lo da sociedade, esse viés era tomado no tratamento das pessoas com sofrimento psíquico e muitas vezes, malgrado todo o movimento para a humanização no tratamento dos transtornos mentais, o estigma, ainda é enfrentado não só por aqueles que são portadores de sofrimentos mentais, mas também pelos familiares cuidadores. (GOFFMAN, 1963). Com olhos e mãos cruéis na Idade Média os loucos eram tratados através do confinamento, no início como se utilizavam dos leprosários para os leprosos, depois como as doenças sexualmente transmissíveis como um “espaço moral de exclusão” (FOUCAULT, 1976, p.12) A fragilidade humana diante do mundo dos Hércules, dos Sansões com grandes cabeleiras, dos lutadores de MMA nas covas de leões da atualidade, dos bem-sucedidos no mercado de consumo; esta fragilidade não é aceita, é execrada, sendo algo negativo, no que partindo de outro viés mais dinâmico e positivo assevera sobre o adoecer Menezes (2016, p.107): “Nesse sentido, se pode responder afirmativamente quando se indaga se é possível formular um olhar positivo sobre a doença. O que se constata é que a patologia instala uma série de recursos visíveis no monólogo, na ambiguidade vocabular, no caos dos instantes desconexos e sucessivos vividos pelo sujeito, que podem e devem ser apresentados do seguinte modo: eles são simples, estáveis, sólidos e involuntários. Eles são, por assim dizer, as ferramentas fundantes e fundamentais dos fenômenos psíquicos.” Ao demonstrar a fragilidade que nos é negada e nos é intrínseca, o sujeito quiçá retorne ao que tem de mais fidedigno na sua psique. O adoecer da mente na Grécia era tido como excêntrico e o louco não era isolado, na Idade Média em que todas as observações eram feitas com o viés religioso da Igreja Católica, o adoecer psíquico era é tido como diabólico e poderia ser expiado por milagres, mas os loucos eram segregados se violentos e dignos da piedade religiosa. Já na Reforma Protestante, os loucos como não “capazes” de produzir, na visão weberiana acerca do espírito do capitalismo, destarte os alienados mentais assim tidos não teriam condições de introjetar esse espírito e acumularem riquezas, no que passaram a ser internados em asilos e estigmatizados como o ápice da desrazão, desvirtuamento o que chancelavam os Iluministas. Os embriões da Psiquiatria com Philipe Pinel (1745-1826) na França, a seus seguidores como Jean-Etienne Esquirol (1770-1842), foram trilhando passos, a chegarem a Psiquiatria Analítica, até a Biossocial, de Morel, Farelte Bayler, nominaram a maioria das patologias a Kraff-Ebiling e Schulle que estabeleceram conteúdos sistêmicos, transitando para a idade moderna em que Freud, Jaspers e Basaglia, os quais passaram a visualizar o sujeito e a sua singularidade psíquica. Indignado com a ideia da confinação do ser “louco”, Foucault (1976) solta um brado libertador a respeito da Narrenschiff, da barca itinerante dos loucos, da nave pintada por Bosch, da barca errante que leva os “loucos” para os seus patrícios, pois havia alguma comiseração pelos loucos da família para os loucos próximos: “[…] confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua própria partida. Mas a isso a água acrescenta a massa obscura de seus próprios valores: ela leva embora, mas faz mais que isso, ela purifica. Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o último. É para o outro mundo que parte o louco em sua barca louca […].” (FOUCAULT.1976, p.16) Poder-se-á elucubrar-se que muitos desses “loucos” dessas barcas à deriva seriam àqueles que a família não quis ou não puderam pelas condições socioafetivas da época darem o amparo necessário e que o Estado não laico não pôde confiar em seus muros altos dos asilos. O reducionismo patológico do adoecer psíquico na Psicanálise é encarado com olhos que investigam as profundezas da psique por Menezes (2016, p. 111), quando esse aduz que “a personalidade não desaparece nas patologias. Mesmo nas formas mais severas, a personalidade está lá como estrutura de sustentação”. Com supedâneo nesse pressuposto que a estrutura da personalidade está ali, mesmo no sujeito com acentuado sofrimento mental, é imperioso respeitar-se sua singularidade e sua natureza humana,  o que não ocorre como paradigma na humanidade, como Arendt (1975, p. 85)  na sua análise historiográfica colima no que tange à  igualdade de condições, não obstante seja o requisito básico da justiça, é uma das mais incertas especulações da humanidade moderna, à medida que mais tendem as condições para a igualdade, mais difícil se torna explicar a diferença que existem entre os sujeitos, estabelecendo-se uma dicotomia entre o indivíduo “normal” e o “anormal”. Com esse olhar ensimesmado, que transcende e visualiza o singular do indivíduo e sua subjetividade, Franco Basaglia em conjunto a várias demandas input da sociedade civil. Bobbio (1985, p. 36) encampa o movimento pela reforma psiquiátrica, lastreado nas ideias de Foucault, já havendo Freud rompido com as vozes do silêncio, pois o sofredor psíquico não tinha voz, passou a ser escutado e daí analisado, almejando rechaçar a forma cruel de confinar-se os ditos como “insanos”. Nesse viés, Lacan dá voz e singularidade ao portador de neurose ou psicose como a priori sujeito numa operação em que o homem assume significações e significantes, sendo porquanto a linguagem, meio hábil de chegar-se a sua psique ou ao seu inconsciente, como assinalam Bruder e Brauer (2007) ao dissertarem sobre a constituição do sujeito na psicanálise lacaniana. Com um grito que partiu das entranhas como é proclamado no seu prefacio do livro, quebrando o silêncio de muitos sofrimentos emocionais enclausurados, Basaglia fala sobre os direitos dos alienados mentais e na negação do confinamento psiquiátrico no Hospital de Trieste: “Noi neghiamo  dialeticamente il nostro mandato sociale  che  ci richiderebbe de considerare il malato come um non-uomo, e negandolo neghiamo il malato come um non-uomo[…] partendo de quaesto fatto reale:il malato é un’uomo senza diritto” [..]. (BASAGLIA, 1969, p.17). Com essa guinada de 360º que começou com um não, um não à instituição psiquiátrica e ao label approach na catalogação das patologias psíquicas, com o anseio de tirar o portador de sofrimento mental da estigmatização do asilo. Nesse jaez, a família passou a ter papel fundamental no processo terapêutico do indivíduo. Destaque-se que o Sus foi criado a partir da década de 70 com a eclosão de discussões sobre os direitos humanos dos alienados mentais. É certo que essa reforma psiquiátrica teve processos heterogêneos no mundo, dependendo das condições históricas, econômicas, políticas e culturais de cada ethos, questionando a instituição asilo e a prática médica nesse sentido, fomentando uma nova dinâmica na relação da sociedade civil com os portadores de transtorno psíquico. Com base num olhar multifocal, com mãos multidisciplinares que se unem para realizarem junto o trabalho terapêutico, a razão deixa de ser absoluta e deter poder,  e  a família foi chamada para o apoio necessário, observando-se que a desinstitucionalização não pode ser reduzida tão- somente  a desospitalização , é todo um iter dinâmico de tratamento pois na escorreita lição de Boarini (2008, p. 379): “através do resgaste histórico das reformulações no sistema de saúde, fica claro que toda a mobilização da sociedade vem sendo definida pela necessidade político/econômico/social de implantar um novo atendimento ao doente mental”. 4. DIREITO CONSTITUCIONAL À SÁUDE E Á DIGNIDADE HUMANA NO TRATAMENTO PARA O INDIVÍDUO COM SOFRIMENTO PSÍQUICO E PARA A FAMÍLIA QUE O AMPARA NO BRASIL DIANTE DOS MOVIMENTOS GLOBAIS DE DOMÍNIO DOS MERCADOS Como mensurar essa angústia que avassala o indivíduo e se desenvolve no biopsicossocial em doença? Como tipificar a dor da família em ver um ente querido em surto psicótico? Como a lei consegue abarcar essa realidade em países de viés periférico como o Brasil diante da globalização e do projeto do neoliberalismo com a expansão expansiva do código econômico (NEVES; TÊMIS; LEVIATÃ, 2016, p. 272). Como enquadrar sofrimento emocional em artigos e o tratamento multifocal em parágrafos de lei? Será mais uma constitucionalização álibi, simbólica? (NEVES, 2007. p.7). Constitucionalização simbólica é entendida como aquela em que não há efetividade da força normativa da constituição, sendo que muitas vezes a legislação é criada para arrefecer os ânimos de desobediência civil do povo, havendo lacunas que impossibilitam a sua aplicação concreta, atrelando o direito às decisões políticas ou ao código econômico dominante. No pensamento habermasiano, na atualidade, esse enlace entre o direito e o mundo da vida e suas problemáticas se agudiza, in verbis: “O mundo da vida, as instituições que nascem naturalmente e o direito têm que amortizar as instabilidades de um tipo de socialização que se realiza através das tomadas de posição, em termos de sim/não, com relação a pretensões de validade criticáveis. […]. Nas modernas sociedades econômicas esse problema geral se agudiza, principalmente no envoltório normativo das interações estratégicas não englobadas pela eticidade tradicional”. (HABERMAS, 1997. p. 33-34). Com a força dos movimentos sociais input/output da sociedade civil, a luta antimanicomial foi engendrada no Brasil a partir da década de 70 e resultou em leis favoráveis a desinstitucionalização e não estigmatização do “cliente” portador de sofrimento emocional, sendo que em julho de 1987, no Rio de Janeiro,  foi efetivado a I Conferência Nacional de Saúde Mental    em que os trabalhadores de Saúde Mental passaram a conclamar práticas mais humanas no tratamento dos transtornos mentais em prol da dignidade humana, mutatis mutandis, no II Congresso dos Trabalhadores de Saúde Mental em Bauru, São Paulo,  no mesmo ano, foi lançado o lema “ Por uma sociedade sem manicômios”, pontuando o dia 18 de maio como Dia Nacional de Luta Antimanicomial. (SOUZA, 2003, p.144-153) Foi criado o SUS (Sistema Único de Saúde) com o advento da Constituição Federal de 1988, com a proposta de democratização da saúde, e tendo o direito à saúde como corolário à cidadania, com o desiderato de otimizar-se um sistema público, universal e descentralizado de saúde dentro de um contexto histórico de pobreza e baixa condição sanitária, instalando a reforma sanitária necessária. Este evento não foi gratuito, foi fruto da mobilização social e de uma ação contra hegemônica de trabalhadores da saúde com ideias progressistas que se organizaram e se movimentaram socialmente para consecução dessas ações. Muitas vezes atores sociais invisíveis, que expressam indignação pela condição desumana no tratamento dos doentes, em especial os doentes mentais, e que se articulam em no agir comunicativo habermasiano, através da linguagem, da expressão, da manifestação e conseguem nessa ação multifocal, heterocêntrica, fazer com que as instituições criem leis e modifiquem seus códigos simbólicos, como explicitam Luchmann e Soares (2007, p. 401): “Além do que os movimentos sociais nas sociedades complexas, são redes de ações que desenham uma estrutura submersa, um mosaico formado por indivíduos e grupos, que em estado de latência, gestionam no cotidiano as lutas, reflexões e os questionamentos acerca da realidade social […] o que está em jogo ,portanto, é a reapropriação do sujeito , do sentido e da motivação humana, reapropriação de forjar a sua própria identidade, capacidade esta historicamente amputada pelos processos de manipulação e  controle dos aparatos de gestão dos sistemas complexos. Esse controle se dramatiza no que diz respeito aos códigos e sentidos dominantes acerca do “louco” e da “loucura” e da sua “administração” institucional.” Exsurge da doutrina de Dantas e Junior (2017, p.4) no que atine à utopia necessária referente aos direitos fundamentais, esse programa utópico que vem das emoções, formando redes de indignação e esperança na contemporaneidade, construindo um percurso de contra hegemonia e mobilização, até na ágora virtual. O movimento da luta antimanicomial com o slogan “Fim dos Manicômios” soa utópico em face da nossa realidade de um Brasil periférico que com a crise da democracia representativa e a imposição top down de um modelo econômico excludente a nível global, conquanto a solidariedade cosmopolita ainda não é consolidada nas questões relativas aos direitos humanos, nessa utopia e no que resulta dela de palpável nos agarramos como Ulisses ao mastro das legislações existentes para salvaguardar os direitos dos portadores de transtornos psíquicos e dos familiares que têm a tarefa do cuidar, a fim de que não estejamos soltos e caíamos nas tentações das leviandades, do pensar que o medicamento advindo da empresa farmacológica é o único tratamento e o de colocar a responsabilidade social e o ônus do tratar-se do “louco” nas costas dos profissionais de saúde sobrecarregados nos serviços públicos, ou jogarmos nossos “loucos” nas empresas privadas que fazem convênios com os serviços públicos e que  querem lucros e que são diferenciadas   para quem pode pagar , na família como salvadora do indivíduo com sofrimento mental que não precisa de um salvador, precisa de amparo. Destarte, sem um liame multicêntrico e solidário de forças que atuem em conjunto para a reinserção social e a tomada de responsabilidade também do usuário do serviço pela sua vida, pelo seu tratamento e pela sua volta a casa, não há de falar em novel paradigma do tratamento do transtorno mental. Com a pressão internacional, o Brasil assinou a Declaração de Caracas em 1990, em que o governo se comprometia a garantir os direitos humanos das pessoas com transtornos psiquiátricos e sistematizar os serviços comunitários de saúde mental. Em 1992 foi criado o Programa de Apoio a Desospitalização (PAD) para aqueles que tinham longas internações, com a perspectiva de fornecer à família que acolhesse o indivíduo a quantia de um salário mínimo e meio. O custeio desse benefício viria da desinstalação dos manicômios. Ocorre que essa proposta não foi concretizada até os dias de hoje. A Lei Paulo Delgado, Lei 10.216 de 2001, fez uma modificação na política pública corolário ao usuário, ao trabalhador em saúde mental e ao familiar nesse processo de construção da reforma psiquiátrica, ocorre que não conseguiu auferir fidedigna mudança no trilhar, criando o atendimento comunitário, multidisciplinar ao usuário na rede pública e a regulamentação das internações compulsórias, que agora são fiscalizadas pelo Ministério Público Estadual. O CAPS foi intitulado a unidade comunitária de tratamento psiquiátrico   através da portaria 336 GM. Entrementes a rede de tratamento tenha sido colocada no ethos em que vive o usuário, nessa transição, o familiar e a comunidade não foram preparados para a volta do portador de distúrbio psíquico para casa. Foi criado o programa em 2003, “De volta para a casa”, mas a família não foi estruturada e amparada nesse desiderato para acolher e não adoecer com o sofrimento emocional do parente, e a comunidade não foi instruída para encarar o “louco” não como um criminoso e um marginal, daí a pessoa com sofrimento afetivo ao retornar para casa pode se encontrar em risco social ou pode colocar os outros atores em risco, se não tratada, não que todos os portadores de transtorno psíquico sejam agressivos. Dos atores sociais que participam desse complexo processo de identificação ou diagnose do transtorno mental, do acolhimento, do tratamento, da inclusão social é a família e a família de baixa renda é a que mais fragilizada nesse processo e que depende da estrutura pública e todas as suas vicissitudes advindas do Estado Mínimo e das carências de cunho econômico. Pensar-se na família do portador de transtorno mental como um titular de direito fundamental, é pensar que nessa complexidade que é o adoecer psíquico e no pranto que tem que ser sufocado para que esta família continue trabalhando e produzindo dentro de um sistema de imperativo capitalista e que concomitante precisa dar apoio e se responsabilizar socialmente pelo tratamento do seu familiar acometido  muitas vezes por surto psicótico  e que não tem condições de cuidar-se por si próprio, é inferir que o processo terapêutico é multicêntrico e que a família tem papel fundamental nesse caminhar e que se ela está adoecida , como poder andar num terreno favorável para a humanização do tratamento do seu ente querido e consequente inclusão social? No risco de suicídio que pode se evidenciar em alguns transtornos mentais, como os familiares de baixo estrato social vão faltar trabalho e ou pagar um cuidador para o portador de sofrimento psíquico que precisa ser monitorado tanto de dia como à noite, se não têm condições de arcar com o básico que garante uma vida digna, num país desigual como o Brasil? Cabe aí o Estado suprir s essa carência e a sociedade civil movimentar-se para demandar as instituições nesse desidério, não sendo tão-somente uma expectadora passiva dessa dinâmica. Na busca de entender essa seara da família ser parte integrante na prática terapêutica humanizada e titular da expectativa do fornecimento de amparo afetivo para o acometido de transtorno mental, e no que tange ao internamento compulsório, um estudo perfunctório feito Carneiro e Rocha (2004) assinala como é imputada a responsabilidade à família: “[…]. Observa-se, também, em alguns depoimentos, a tendência da equipe em atribuir ao paciente ou a sua família a responsabilidade pelo asilamento, não evocando outras causas, tais como as condições de vida geradas na instituição, a não-vinculação dos familiares ao tratamento ou a ausência de outros serviços comunitários e alternativos ao internamento compulsório. Sobre a família, recai a culpa e a responsabilidade pelo internamento. Cabe ressaltar que os efeitos danosos do internamento, que podem ser em maior ou menor intensidade, estão em relação direta com sua duração, com o número de reincidências e, principalmente, com a rede social que o sujeito mantém com o seu grupo. A situação de crise provocada pela doença mental pode produzir, na unidade familiar, tanto uma completa desintegração quanto a reafirmação desses laços familiares”. A família para tirar o peso do mundo das costas, e não incorporar o papel do arquétipo Atlas, tem que assumir ações propositivas em busca de solidariedade, in casu, nas famílias de baixa renda, que não tem tanto acesso à educação formal, diante desse corte epistêmico, cabe ao Estado ajuda-la nessa dinâmica, no que Carneiro e Rocha (2004) continuam destacando o papel da família nesse processo de reinserção social do sujeito adoecido: “Famílias que possuem rede social de malha estreita – significando fortes laços sociais com um grupo religioso, parental ou mesmo comunitário – tendem a lidar com situações de crise na sua própria rede de relações (network), caracterizada por vínculos fortes e próximos. Nesses casos, não só o internamento é evitado ou limitado a curto espaço de tempo, como o processo de reintegração do sujeito é facilitado. Já as famílias que possuem relações de malha frouxa – com poucos e frágeis vínculos com outros grupos – tendem a realizar um movimento contraído em relação à network, escondem o que está acontecendo e, consequentemente, isolam-se.” Nessa vivência da família e da comunidade em relação ao indivíduo em sofrimento psíquico, a família no plano microssocial é o vetor diretivo para desospitalização e inclusão social do indivíduo, conquanto a comunidade no plano macrossocial é ativa no processo de não segregação do indivíduo acometido pela doença mental. Com toda a responsabilidade social que a família tem nesse processo, para evitar a cronificação do quadro, para o tratamento, para a inclusão na sociedade, há tão somente um dispositivo que se refere à família do portador de sofrimento emocional, a Portaria/SNAS 224, de 29 de janeiro de 1992, a qual ao elencar as missões do Núcleo de Atendimento Psicossocial, ou Centro de Atendimento Psicossocial, inclui a atividade de atendimento à família, todavia na realidade é mais um dispositivo simbólico, sem efetividade no Brasil. Direito à saúde é direito constitucional que não pode retroagir (BRASIL. C.F. ART.196, 200), corolário do direito à vida (LEX LEGUM, ART. 5º), tout court, do direito à vida digna, que está no patamar de direitos que são intangíveis e que podem ser providos com sustentabilidade. 4.1 QUANDO A FAMÍLIA ADOECE E NESSE PROCESSO DE ADOECER, QUEM VAI AMPARAR A TODOS? A família na sua transformação dinâmica ao longo da história, sendo a instituição onde repousam as expectativas de que venha a atender o liame de afetividade do sujeito e de que lhe forneça o amparo necessário, contudo esta assertiva está no mundo das expectativas, já que no contexto da sociedade acelerada e atomizada pós-moderna, esse ditame é volátil, não sendo garantia. (SILVA; DINIZ; SANTOS, 2010, p. 8). Não existe mais uma barca errante, mas ainda existe a situação da família atordoada jogar para o Estado a responsabilidade de cuidar do “louco” e o Estado atendendo a ingerências das empresas privadas com que tem parcerias, fomentar ainda o internamento, existe uma roleta errante e nesse jogo de azar a sorte não é propícia para os que estão adoecidos. Não é há de se cogitar deontologicamente que essa família que adoece é uma família desatrelada de sentimentos positivos, pois como chancela Siqueira (2017); “O transtorno mental produz medo e apreensão na família. Ele produz uma ruptura na trajetória existencial do sujeito e consequentemente do grupo familiar, desestrutura as formas de corriqueira de lidar com as situações cotidianas. Os familiares passam a não saber como agir.” Até o diagnóstico de um transtorno mental do sujeito, a família pode passar de uma ação policial, caso seja encarado  o comportamento do portador de sofrimento psíquico como algo criminoso até a situação de considerar que há a influência de forças ocultas, até aceitarem o adoecimento  do seu ente familiar, nesse processo de adaptação, nas noites de sono sem dormir, nas faltas ao trabalho, nas agressões verbais e até físicas que sofrem, nessa caravana errante, a família adoece, senão vejamos o que aduzem Bessa e Waidman (2013): […] “após o diagnóstico do transtorno mental a família passa por um período de adaptação, que exige mudanças na rotina domiciliar e no relacionamento entre os seus membros para ter um melhor convívio […]”. Essa dinâmica de cuidar do portador de transtorno mental estremece as balizas da família no sentido econômico, pois o tratamento biopsicossocial é custoso e até para as famílias que vão ao CAPS da comunidade, muitas vezes, para essas famílias de baixa renda o deslocamento com o transporte é oneroso. A falta de orientação no que se trata à doença e o tratamento farmacológico que deve ser conhecido pela entidade familiar para facilitar a aderência do usuário, bem como a orientação para saber-se o período de crise e que se necessita de intervenção do profissional de saúde mental, e até da internação em último caso, dificultam esse processo do cuidar (BESSA; WAIDMANN, 2013). A família é  tida como vetor importante para reinserção social do jovem acometido do primeiro episódio psicótico, vez que segundo estudo realizado pela faculdade de Enfermagem de Ribeirão Preto (USP),  pela pesquisadora Luíza Elena Casaburi, o engajamento da família no tratamento do portador de transtorno mental na aderência ao uso do medicamento, nas trocas afetivas, no deslocamento às visitas aos profissionais de saúde, observação dos comportamentos dos sujeitos “adoecidos”  é também “remédio” para a doença mental. Há estudos que comprovam que a família algumas vezes adoece nesse ato de cuidar do portador de transtorno mental, havendo uma sobrecarga do familiar cuidador que pode agravar a situação do adoecido mentalmente, como explicitam Cardoso; Galera; Vieira (2012): “A internação psiquiátrica é um recurso criterioso, de curta duração, atualmente, é indicada para casos graves, quando foram esgotados os recursos extra hospitalares para o tratamento, sendo proibida a internação de pessoas em instituições com características asilares. A manutenção do cuidado em saúde mental deslocou-se das instituições de saúde para o lar desses pacientes e, consequentemente, para suas famílias evidenciando, cada vez mais o papel dos familiares como cuidadores.(…) Em razão do processo de desinstitucionalização psiquiátrica e da natureza grave e crônica da doença mental, a família e, em especial, o familiar/cuidador é submetido a constantes eventos estressores no curso dessas doenças, que pode afetar, além das relações familiares, a saúde do próprio familiar/cuidador sempre trazendo algum grau de sobrecarga e provocando a constante necessidade de adaptações.” Estudos realizados pelo Royal College of Psichyatrics in UK, Ireland por Ranieri et al. (2017), confirma que há uma sobrecarga e angústia para os familiares que seguem cuidando de pessoas que saem da internação psiquiátrica, caregiver burden, entendido como sobrecarga do cuidador, nesse esteio: “Results This study found that the overall level of burden and psychological distress experienced by caregivers did not differ according to the patient’s legal status. However, the caregivers of those who were voluntarily admitted supervised the person to a significantly greater extent than the caregivers of those who were involuntarily admitted. Approximately 15% of caregivers revealed high levels of psychological distress.” É que o cuidar e o ser cuidado e o cuidar-se são processos holísticos que demandam responsabilidade do sujeito e responsabilidade social, portanto, o tratamento e a inclusão social do portador de transtorno psíquico é da família, dos profissionais de saúde, do Estado e do próprio portador que tem que se responsabilizar e aderir ao tratamento humanizado. Numa visão macroscópica, a responsabilidade para a reinserção do acometido de sofrimento mental na sua casa que é o mundo, que é a comunidade, que é o ethos é de toda a sociedade civil, que não pode reinventar naus errantes, que tem que aprender a incluir a pluralidade nas suas vivências e construir laços de pertença social para aqueles que outrora estigmatizava. 4.2 A NECESSIDADE DA CRIAÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA DE APOIO À FAMILIA CUIDADORA DO PORTADOR DE SOFRIMENTO PSÍQUICO E DA SUA VIABILIDADE Emerge da lacuna legal o mister de formular-se uma política pública de apoio ao familiar cuidador da pessoa com transtorno mental, tanto no viés econômico, como no de orientação, assistência psicossocial comunitária, na construção de uma linha terapêutica humanista e multifocal. No processo de mundialização, situações de desigualdade social se agravaram, e a relação do direito com a economia estreita-se como explicitam Mattei e Nader (2013, p. 167), nesse jaez: “[…]. Criaram-se estruturas governamentais poderosas geradoras de uma vastíssima literatura profissional que transfere para a Europa, para a América Latina, e para outras partes do mundo a ideia de que o direito deve ter por base a eficiência econômica   e não a Justiça Social.[…].” Nesse veredito da eficiência econômica, prepondera a alegação que alguns direitos são inviáveis de serem implementados porque envolvem custos, in casu, os custos de uma hospitalização e da cronicidade do transtorno mental são mais vultosos do que os custos que podem ser direcionados para o amparo ao familiar cuidador, no estabelecimento de um programa polissêmico, de orientação, custeio e apoio terapêutico, para que esse cuidador também seja cuidado e que o processo do tratamento seja fomentado numa relação saudável. Investir no amparo da família é investir na Medicina Preventiva, a qual é menos onerosa. A experiência da eficiência econômica dos Estados Unidos da América traz críticas ao resultado da desinstitucionalização e da reforma psiquiátrica  para os seus cidadãos com a estatística de  que 17% da sua população carcerária tem serious mental illness, pois com o fechamento dos hospitais psiquiátricos, as zonas rurais, devido à distância e com menos acesso a serviços comunitários na área de saúde mental, outrossim, pelo fato da cultura ainda enraizada na comunidade é a do estigma e por poucos prestadores culturalmente competentes e linguisticamente capazes, por exemplo no atendimento a latinos, o atendimento comunitário em saúde mental não foi bem sucedido para todos, tanto que alguns dos portadores de sofrimento mental ou acabam como moradores de rua ou nos cárceres estadunidenses e cogita-se na pressão nas empresas farmacológicas (GHOOSE, HAMID, 2011, p.759-763). No Canadá que adota um serviço de saúde mais social e humanizado, demandando por várias non profit organizations ligadas à saúde mental e seus profissionais, respeitando o mosaico de culturas que se fazem presentes com o incentivo de imigração devido a sua baixa densidade demográfica,  procuram fazer programas  preventivos de controle do stress e até na televisão são veiculados programas para prevenção de doenças mentais que atingem as populações mais pobres, e  muito embora, o tratamento biopsicossocial seja custoso, já estudam formas alternativas de pagamento das sessões terapêuticas[2] Um país bem-sucedido na desinstitucionalização é a Jamaica cujo programa de non -asylum foi promovido pela Universidade (University of West Indies) foi desenvolvido a partir de um trabalho comunitário de supervisão dos pacientes que não aderiram à medicação, um serviço móvel, monitorando as famílias e os pacientes, essa modalidade terapêutica é única em todo o mundo. O bem-sucedido e revolucionário modelo jamaicano é indicado para países de baixo e médio income, pois baseado na educação da população, que passou a não mais estigmatizar o portador de sofrimento mental, a abominar o manicômio como locus de tratamento e esse serviço móvel que dá suporte aos usuários e as famílias em suas casas e na comunidade a baixo custo, evitando os altos custos da internação e da evolução do quadro de doença mental para o estado crônico.[3] Na realidade da América Latina, o vizinho Chile, sendo que o setor público é que provém 70% do tratamento de saúde mental, tem uma experiência de se observar na Reforma Psiquiátrica, sendo que em 2001 foram criados trinta e um Hospitais Dia, que colocam o portador de transtorno psíquico em tratamento e durante o dia, retornando à família á noite e serviço de monitoramento das famílias que cuidam dos usuários, o que assegura que não haja a sobrecarga do familiar cuidador.[4] Em julho de 2017, a França promulgou um decreto atinente à lei de modernização do sistema de  saúde pública, para instalação de um projeto de saúde mental territorial, visando a não estigmatização, o atendimento comunitário, visando a aplicação de uma política de saúde mental preventiva no que tange a evitar-se a cronicidade dos transtornos mentais e incluindo visitas dos psiquiatras aos domicílios  quando do advento de crises dos portadores de sofrimento mental para evitar-se o internamento compulsório: “Les établissements volontaires adressent à l’ARS un PTSM avec le territoire concerné et les acteurs, avec la participation des communautés psychiatriques de territoire (CPT) et en cohérence avec un diagnostic partagé du GHT et les plates-formes territoriale d’appui (PTA) Il a 3 missions: favoriser la prise en charge sanitaire et l’accompagnement médico-social; structurer l’offre de prise en charge sanitaire; coordonner le second niveau et organiser la mission de psychiatrie de secteur. Les finalités sont les suivantes: promotion de la santé mentale, amélioration continue et promotion des capacité des personnes Le PTSM organise: *le repérage précoce des troubles psychiques (pour les enfants, adolescents, précaires et addicts) avec l’accès à un avis spécialisé par des généralistes, un accès aux soins, un accès aux dispositifs *le parcours de santé et vie de qualité sans rupture avec accès sur la survenue ou l’aggravation du handicap, l’accès aux soins de réhabilitation, le développement de services adaptés *l’accès à des soins somatiques adaptés *les conditions de prévention et de prise en charge de situation de crise et d’urgence par l’intermédiaire de professionnels au domicile, de permanence des soins et de psychiatres aux urgences *les conditions du respect et de promotion des droits avec des espaces de concertation (CLSM), l’information des personnes et de leur entourage, la lutte contre la stigmatisation, la réponse aux personnes sans consentement *les conditions d’action sur les déterminants sociaux en renforçant les compétences psycho-sociales”. (FRANÇA. LE DÉCRET 2017-1200 DU 27 JUILLET)[5]. Após esse sucinto comparativo mundial centrado nas perspectivas em saúde mental desses países, vemos que o caminho para amenizar ou cuidar do sofrimento dos acometidos com transtorno mental e seus familiares é de uma longa estrada e que repercute socioeconomicamente e às vezes tragicamente em algumas situações como vemos notícias de pessoas em surto psicótico que matam pessoas indiscriminadamente, nesse viés, o problema não é só da família que tem esse ente, mas de a sociedade em rede. Em referência ao Brasil, uma política pública de amparo ao familiar cuidador, é medida viável e de excelência na prevenção do agravamento do transtorno psíquico, sendo que no nível da eficiência econômica conjugando essa equação com a justiça social, o custo de uma internação no Brasil, pois as despesas com internação psiquiátrica são quatro vezes mais custosas do que as outros tipos gerais de internação, e há denúncias de violações a direitos humanos, (GHOOSE HAMID, 2011, p.767-768)  mormente no passado, dessarte, investir em programas comunitários efetivos de assistência à família e ao usuário, de monitoramento  domiciliar quanto a não aderência à medicação, de amparo biopsicossocial ao familiar  na criação de hospitais dia e de acesso a serviços de orientação, atendimento e suporte é alternativa mais eficaz para a prevenção e custa menos do que deixar a o transtorno psíquico se agravar e o portador não possa mais reinserir-se no meio social, havendo custos para a previdência, haja vista que não retornará ao trabalho e custos sociais e afetivos, como o risco ao suicídio, e a ser exposto à violência  urbana com mais fragilidade do que outras pessoas, pois sem autodeterminação quando em crise psicótica. Com estudo metaetnográfico abalizado no que referencia a volta ao trabalho do portador de transtorno psíquico, Neves (2016, p.15) entende os sofrimentos mentais “[…] como um produto e expressão, no indivíduo, de relações de poder, dilemas existenciais, conflitos culturais”. Neves (2016, p.17) continua na sua avaliação sobre o papel da família e dos amigos para o retorno do trabalho, in verbis: “Relação com família e amigos: as ações e reações no RT nesse caso parecem ser mediadas pelo grau de amizade, companheirismo, cooperação, harmonia e solidariedade que a relação com a família ou com os amigos possuía. Nos casos onde esses pressupostos já estão presentes, as narrativas mostram que há um suporte considerável, caracterizado por: diálogo, sobretudo nos momentos difíceis, preocupação com recaídas, ação de assumir as tarefas práticas da vida diária, ação de assumir o cuidado com os filhos e com o trabalhador que retorna, disponibilidade para acompanhar o trabalhador nas consultas, perícias, terapias após o retorno e, por fim, no fornecimento de conselhos práticos que ajudem no dia-a-dia do RT”. Soa desse estudo com riqueza metodológica que a família dá o suporte para o retorno ao trabalho do portador de sofrimento psíquico, o que desonera o Estado e a previdência e viabiliza a inclusão social, deste modo, investir na educação e amparo da família é condição de viabilidade na reinserção do indivíduo com sua subjetividade singular na comunidade a que pertence, dando o sentimento de pertença social e reduz custos financeiros para o Estado, nessa equação entram eficiência econômica com o plus da justiça social, que resultam numa progressão  geométrica que maximiza o direito fundamental à saúde na sua possibilidade de existência  em contrapartida ao mínimo vital e à  reserva do possível , pois há custos humanos que são intangíveis e imensuráveis, no que devemos promover a desmercantilização das relações. (CALMON; DANTAS, 2011, p. 502-534). Não há de encarcerar-se os direitos fundamentais e os direitos sociais relativos à saúde mental dentro do paradigma da cláusula de reserva do possível (Vorbehalt des Möglichen), vez que o direito à saúde é uma extensão ao direito à vida e tem uma configuração pétrea na Constituição Pátria, no escólio de Canotilho (2004, p.12) direitos sociais não podem ser engessados pelo que se tem na “reserva dos cofres financeiros” e oscilar conforme os “camaleões normativos”. No novel standard do Direito Internacional, em que encampa que existem direitos humanos fundamentais Na vertente do BioDireito e da Bioética, o direito à saúde mental é um direito humano fundamental, atrelado à dignidade humana no seu conceito binário : de expressão da autodeterminação humana,  e  da sua necessidade de assistência por parte do Estado e da comunidade, como pontua Sarlet (2010); deveras quando a pessoa está fragilizada ou quando não capaz de autodeterminação, e para aqueles que não podem construir a dignidade por suas próprias forças, portanto, o direito à dignidade humana se consubstancia em direito à prestação. Construir-se um programa em saúde pública comunitário, focado na reinserção social do indivíduo com sofrimento mental e no tratamento da família como base da formação da subjetividade do indivíduo, é econômico e faz justiça social e traz a heurística da fraternidade social. Nos propalados tempos atuais de austeridade, em que pretendem reduzir direitos sociais alcançados por lutas e sangue de muitas pessoas, e regados de sofrimento humano, sofrimento biopsicossocial, quantas pessoas “enlouqueceram” por conta das desigualdades, do estigma, da guerra, do racismo, da competição da sociedade de consumo? Entrementes, a crise fiscal atrelada à crise econômica seja realidade, retroagir em direitos sociais e não avançar na sua caminhada, além de ser inconstitucional e lesar o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e culturais (DANTAS, 2017, p. 11), é desumano e fere direito transgeracional (JONAS 2006) Nesse diapasão, seria de preponderante relevância a inserção na Lei 10216/01 de artigo que propicie esse amparo ao familiar cuidador do portador de transtorno psíquico, para aqueles de baixa renda e ou usuários de outros programas sociais equalizadores, que fomente um   custeio das suas necessidades enquanto cuidador, no plano econômico, psicossocial, mormente nos casos de acompanhamento de familiar em surto psicótico, evitando-se, portanto, a hospitalização compulsória. Uma alteração legislativa que beneficie o amparo do familiar cuidador com critérios precisos e não paternalistas, mas de fomento da policy making que usa de isonomia e ao mesmo de pluralidade de condições,  o é por demais imperiosa, vez que se dependermos do perigoso ativismo judicial,  estamos fadados a darmos privilégios para uns e não exercício de direito para outros, dependendo da condição do autor da demanda de articular os meios processuais, do entendimento axiológico do juiz e das ingerências da economia e da política no direito,  bem como arrefece o espírito de solidariedade social , já que estimula ações individuais, como salienta Streck (2003, p.263-264), in verbis: “A invasão da esfera de competência dos tribunais, mediante concretizações materiais de valores, desestimula o agir orientado para fins cívicos, tornando-se o juiz e a lei as derradeiras referências de esperança para indivíduos isolados.” Agir com isonomia tratando-se de direito fundamental e social é auferir-se um paradigma legal que beneficie de modo equânime os familiares dos portadores de distúrbio mental, os usuários do sistema e a comunidade, conseguir-se através do ativismo judicial que algumas famílias consigam o apoio do Estado em detrimento de outras, no Brasil em que o acesso à Justiça ainda é oneroso para os menos favorecidos, é uma temeridade. O exercício de uma cidadania responsável em prol da maximização do possível existencial em direito fundamental advém de uma ação conjunta de todas as forças input/output, até de organismos internacionais de direito humanos, vez que há um novel caráter do Direito Internacional que visualiza os direitos humanos universais. E falam até num International Poverty Law, (WILLIAMS, 2006, p.11-12). Um Direito Internacional para os pobres, estudado pela CROP, the Comparative Research Programme on Poverty que é uma comunidade acadêmica responsável pelo estudo dos problemas da pobreza, cujo programa foi iniciado em 1992, oficialmente aberto em 1993 pelo então diretor da UNESCO, Dr Federico Mayor. diante da globalização e da retórica do Direito Internacional formal, senão vejamos, in ipsis litteris: “[…] While urging IPL (International Poverty Law) to embrace a ‘universally recognized human rights framework’ for poverty reduction […] Human rights discourse itself  without reference to moral and political arguments external to rights discourse – provides no method or decision process to resolve such conflicts or precisely define the legal implications of a human rights principle.[…] it is common knowledge that legal rights on the books, whether or not enforceable by action, do not automatically translate into acquired rights on the ground. Therefore, IPL must go beyond the question of enforcement mechanisms and devise practical strategies to implement rights in people’s lived experience. Legal rights such as a ‘right to food’ or a ‘right to housing’ acquire meaning through legal interpretation in the context of political practice. Thus, Saini documents the ‘bureaucratic inertia and indifference and façades of only symbolic legal measures”’.    (WILLIAMS, 2006, p.11-12) É necessário por demais  uma política pública que institua um programa multidisciplinar de educação no que tange a não estigmatização do transtorno mental na comunidade, como a grande família que é,  e a formação de NGOS, organizações não governamentais de usuários, familiares e de  profissionais na área da saúde mental, podendo haver  a parceria com empresas privadas com incentivo de redução de impostos, na reinserção dos portadores de sofrimento mental no mercado de trabalho,  para que a família não tenha tão acirrado  caregiver burden , ou seja, a sobrecarga do cuidador,  e que o isolamento não tome conta das relações, para aqueles que têm o  seu choro em silêncio , tenham voz, o que estabelece “uma teia de relações e as  histórias humanas” que interligam e humanizam o indivíduo, a família, as instituições e a sociedade, consoante o pensamento escorreito de Arendt (2007, p. 196) sobre a construção em teia da história da humanidade: “A rigor, a esfera dos negócios humanos consiste na teia dos relacionamentos humanos que existem onde quer que os homens vivam juntos.  A revelação da identidade através do discurso e o estabelecimento de um novo início através da ação incidem sempre sobre uma teia já existente, e nela imprimem suas consequências imediatas. Juntos, iniciam novo processo, que mais tarde emerge como a história singular da vida do recém-chegado, que afeta de modo singular   a história da vida de todos aqueles com quem ele entra em contato”. É cediço que se faz mister que as instituições de Saúde Pública, os familiares, o terceiro setor sejam estimulados a formarem grupos de apoio e de ação conjunta, todos se responsabilizando numa rede de fraternidade social pelo tratamento dos portadores de transtorno mental, inclusive os usuários do sistema de saúde que deverão ter voz ativa sobre os seus sentimentos e subjetividade, consubstanciando a maximização do direito fundamental à saúde mental para o indivíduo, para a família e para a grande família comunitária, nessa rede de histórias humanas e esperança de superação de sofrimentos. 5. CONCLUSÃO A doença mental, não é compreendida socialmente como qualquer outra doença. Ela traz como paradigma maior uma dimensão de discriminação e invisibilidade social que dá uma amplitude maior a todo o sofrimento tanto do portador desta condição social, quanto daqueles que são obrigados a um convívio diário. Neste sentido, entender a situação de vulnerabilidade das famílias que cuidam de portadores de doenças mentais, é estar atento a uma realidade pouco discutida no seio de uma sociedade que teima em considerar invisíveis, indivíduos que fogem ao padrão paradigmático de normalidade de conduta. A doença mental, impacta sobremaneira as relações familiares, e neste contexto é imperioso compreender que este impacto muitas vezes requer uma estrutura material e principalmente psicológica familiar capaz de tornar menos pesaroso toda a complexidade que envolve as relações travadas com indivíduos portadores de transtornos mentais e que, de alguma forma, acabam mudando toda a forma de relação entre estes entes num convívio diário. Compreender a situação complexa que envolve a família de um portador de uma doença mental, também requer um olhar mais pragmático e sobretudo quando se fala de famílias menos abastadas e que não dispõem de recursos materiais que possibilitem uma melhor qualidade de vida para o indivíduo doente que requer uma atenção especial e que invariavelmente é dispendioso. O papel do Estado, é essencial para atender a estes grupos familiares hipossuficientes, que necessitam de um aparato de apoio com relevantes custos e que só se tornam possível quando da interveniência do ente público. O Estado prestacional precisa se fazer presente principalmente por ações inclusivas e de atendimento, não só aos indivíduos com transtornos mentais, mas também aos familiares e conviventes que são socialmente estigmatizados e que a cada dia se confrontam com novos e complexos desafios. Construir uma teia de esperança, não é à toa, depende de movimento, de luta, de solidariedade, não se almeja ganhos casuísticos no que concerne ao amparo ao familiar com sobrecarga no cuidado de pessoa com transtorno mental, construir-se “a metafísica da existência” é cotidiano e necessário para que não deixemos que discursos de austeridade banem direitos sociais conquistados e o sonho de outros a conquistar. (FOUCAULT, 1976, p. 46) Substituir o sofrimento humano por esperança e luta social é trazer à baila a efetividade de direitos fundamentais, conquanto a formulação de uma política pública que assista ao caregiver burden é medida de equalização social. Mesmo que esse problema do sofrimento psíquico não seja nosso, seja do vizinho distante, de outro país longínquo, ele pode nos afetar, pois existimos e nos movimentamos nessa aldeia global.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-168/a-proposta-de-formulacao-de-politica-publica-para-amparo-dos-familiares-que-cuidam-de-pessoas-com-sofrimento-mental-na-luta-antimanicomial/
Violência Obstétrica no Brasil: uma questão de saúde pública
Recentemente, a Organização Mundial da Saúde – OMS reconheceu que a violência obstétrica é uma questão de saúde pública, indo ao encontro das pesquisas acadêmicas desenvolvidas nos últimos anos. No presente texto, se contextualizará a violência obstétrica trazendo definições e conceitos de violência obstétrica como uma forma de violência contra a mulher e, após, se discorrerá sobre a relevância do ativismo social, através da internet.[1]
Biodireito
INTRODUÇÃO Nos últimos anos, a violência obstétrica ganhou visibilidade em decorrência dos inúmeros estudos acadêmicos, processos propostos no Judiciário, atuações de ativistas que corroboraram para que um novo conjunto de intervenções de saúde pública fosse colocado em prática. Embora a temática já tenha sido abordada com profundidade e de maneira crítica em outros textos, a sua abordagem ainda é oportuna, relevante e legítima, tendo em vista que recentemente a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu uma declaração, intitulada “Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde”, incentivando, inclusive, a criação da Iniciativa Hospital Amigo da Mãe e da Criança (DINIZ et al., 2015, p. 1). Ações inovadoras como essa, realizada por uma organização internacional, são importantes por ter por intuito visibilizar, prevenir e remediar esta forma de violência nas práticas de saúde, nos âmbitos público e privado e na formação de recursos humanos, bem como para incentivar os governos e as instituições para pesquisas e intervenções (DINIZ et al., 2015, p. 377). Com o intuito de colaborar com o debate sobre a temática, tece-se o presente texto introduzindo a temática com uma contextualização de violência obstétrica. 1. Violência obstétrica: para além da relação sujeito versus objeto Desde os tempos bíblicos a dor tem sido associada ao processo de parto, obrigando a parturiente a suporta-la e aceita-la. A passagem bíblica de Gênesis 3, em seu versículo 16, retrata esse contexto, quando Eva prova o fruto do pecado original, induz Adão a também pecar e recebe como punição a dor multiplicada na parturição (ANDRADE; AGGIO, 2014, p. 1-2). A Sagrada Escritura cita que as dores durante o parto são punições que a mulher deve sentir por ter cometido o pecado original, interferindo em seus sentimentos e percepções a cerca deste momento, substituindo o sentimento de prazer durante a concepção pelo castigo (BEZERRA; CARDOSO, 2006 apud ANDRADE; AGGIO, 2014, p. 2). A replicação desse pensamento no arcabouço histórico e cultural da sociedade leiga e de profissionais de saúde expõe a mulher à violência de gênero e, consequente, a obstétrica, ao naturalizar a dor como inerente à experiência da maternidade (ANDRADE; AGGIO, 2014, p. 2). O parto é um momento único na vida da mulher. Trata-se de um processo fisiológico que requer o cuidado de profissionais da saúde, mas que deve ser de protagonismo da mulher. Distintamente de outros acontecimentos que necessitam de cuidados hospitalares, o processo de parturição é fisiológico, normal necessitando, na maioria das vezes, apenas de apoio, acolhimento, atenção, e o mais importante, humanização (ANDRADE; AGGIO, 2014, p. 2). Humanizar diz respeito à prestação de uma assistência que tenha como prioridade a qualidade do cuidado garantindo o respeito quando aos direitos do paciente, sua individualidade e cultura (DESLANDES, 2004 apud ANDRADE; AGGIO, 2014, p. 2). A humanização da assistência ao parto vem ao encontro dos desejos das mulheres de que a vivência do parto aconteça conforme as suas perspectivas (DIAS; DOMINGUES, 2005 apud ANDRADE; AGGIO, 2014, p. 2). Se para humanizar o atendimento da mulher em período reprodutivo é necessário reconhecer a sua individualidade, é mister perceber suas necessidades e capacidades de lidar com o processo do nascimento, reconhecendo o viés cultural, histórico e antropológico do processo saúde doença (ANDRADE; AGGIO, 2014, p. 5). Atualmente, “A mulher e seu corpo têm sido vistos como máquina, onde o engenheiro é o profissional médico que detém todo o saber sobre ela, negligenciando informações, emoções, sentimento, percepções e direitos da mesma no gestar e parir, sendo impedidas de ter a presença de acompanhante, de decidir a posição que querem ter seus bebês e de expressar suas emoções e sentimentos, contrariando a Política Nacional de Humanização e mudando o foco da mulher para o procedimento, deixando-as mais vulneráveis à violência, silenciada pelos profissionais e pela própria parturiente. Porém a amarga vivência e o trauma acompanham a mulher porta a fora da instituição” (ANDRADE; AGGIO, 2014, p. 3). O simples fato de se ter uma Política Nacional de Humanização do Parto não muda a mentalidade mercantil que alguns profissionais da saúde têm. A formação dos profissionais da saúde, em especial dos médicos, tem papel estruturante no desenho atual da assistência e na resistência à mudança (DINIS; et. al.; 2015, p. 381). A maioria dos cursos de medicina utilizam como biografia livros desatualizados e a prática médica é, muitas vezes, aprendida de forma descolada do seu balizamento ético e com a priorização de competências em detrimento de valores como o cuidado (DINIS; et. al.; 2015, p. 381). Para que a relação deixe de ser entre sujeito-objeto (médico versus doença) e passe a ser entre seres humanos, precisa-se desconstruir a hierarquia sexual e a estigmatização criada sobre a mulher, pois quanto maior a vulnerabilidade da mulher, mais rude e humilhante tende a ser o tratamento oferecido a ela. Esse tipo de violência é reproduzido por meio da hierarquia e dominação do saber médico sobre o corpo da mulher, ferindo diretamente a autonomia a respeito daquilo que somente pertence a elas, os seus corpos (ANDRADE; AGGIO, 2014, p. 5). Assim, mulheres pobres, negras, adolescentes, sem pré-natal ou sem acompanhante, prostitutas, usuárias de drogas, vivendo em situação de rua ou encarceramento estão mais sujeitas a negligência e omissão de socorro (DINIS; et. al.; 2015, p. 381). A banalização da violência contra as usuárias relaciona-se com estereótipos de gênero presentes na formação dos profissionais de saúde e na organização dos serviços (DINIS; et. al.; 2015, p. 381). É urgente que os profissionais da saúde tenham uma formação mais humana, voltada para o respeito à autonomia, à individualidade e a privacidade da mulher, assim, talvez se tenha como regra o parto humanizado. 1.1. Violência obstétrica no mundo: rompendo com o silêncio Embora o termo “violência obstétrica” seja considerado novo, o sofrimento das mulheres durante a assistência ao parto já era relatado em meados do século do passado. Nos Estados Unidos, em 1950, uma revista de donas de casa intitulada Ladies Home Journal, já rompia o silencia ao narrar relatos de violência no parto ao publicar a matéria “Crueldade nas Maternidades”. Nesse texto, descrevia-se a violência obstétrica como uma forma de tortura dispensada durante o tratamento das parturientes ao serem submetidas ao sono crepuscular através da combinação de morfina e escopolamina, que produzia sedação profunda, não raramente acompanhada de agitação psicomotora e eventuais alucinações (DINIS; et. al.; 2015, p. 377). Ainda, relatava que, os profissionais colocavam algemas e amarras nos pés e mãos das pacientes para que elas não caíssem do leito e com frequência as mulheres no pós-parto tinham hematomas pelo corpo e lesões nos pulsos, bem como lesões decorrentes dos fórcepses (DINIS; et. al.; 2015, p. 377). Em 1958, no Reino Unido, criou-se a Sociedade para Prevenção da Crueldade contra as Grávidas que na sua carta de fundação, posteriormente publicada no jornal Guardian, também denunciavam violações de direitos das parturientes em hospitais. O movimento feminista, a partir da década 60, muito colaborou para que os direitos das mulheres fossem respeitados e as violações desses viessem à público. Em 1998, o Centro Latino Americano dos Direitos das Mulheres publicou um relatório Silencio y Complicidad: Violencia contra la mujer em los servicios públicos de salud no Peru, com extensa documentação das violações dos direitos humanos da mulher, tornando as violações durante o parto algo de conhecimento público. Assim como em outros países da América Latina, no Brasil o tema era comumente abordado em trabalhos feministas, fora e dentro da academia, como se discorrerá a seguir. 1.2. Violência obstétrica no Brasil: reflexo de uma cultura machista A violência caracteriza-se como um grave fenômeno social que está em expansão, em todas as suas formas, sendo que são praticadas contra as mulheres ganha caráter endêmico em contextos de desigualdade social, racial, de gênero (ANDRADE; AGGIO, 2014, p. 1). A violência contra a mulher é definida, pelo Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (1996, p. 6 apud ANDRADE; AGGIO, 2014, p. 1) como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, causando morte, dano ou sofrimento de ordem física, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”. Logo, a violência contra a mulher apresenta-se em distintas expressões e uma delas tem sido muito presente e não identificada: a violência obstétrica (ANDRADE; AGGIO, 2014, p. 1). No Brasil, desde 1980, com a publicação em Espelho de Vênus vários estudos têm relatado vivências negativas de mulheres durante o parto. Nessa publicação, o Grupo Ceres fez uma etnografia da experiência feminina, descrevendo explicitamente o parto institucionalizado como uma vivência violenta (DINIS; et. al.; 2015, p. 378). A violência obstétrica já era tema também das políticas de saúde ao final da década de 1980: o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), por exemplo, reconhecia o tratamento impessoal e muitas vezes agressivo da atenção à saúde das mulheres (DINIS; et. al.; 2015, p. 378). No entanto, o tema por muito tempo foi negligenciado por três grandes motivos: (a) por ter pauta feminista, (b) pela resistência dos profissionais e (c) pela falta de acesso das mulheres pobres a serviços essenciais (DINIS; et. al.; 2015, p. 378). As denunciaram eram tantas que o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde e o Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP), a partir de 1993, promoveram cursos de capacitação para o atendimento a mulheres vítimas de violência (DINIS; et. al.; 2015, p. 378). Foi em 1993, com a carta de fundação da Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (REHUNA), que o termo violência obstétrica ganhou maior definição e repercussão no Brasil, uma vez que reconheceu circunstâncias da violência e do constrangimento durante a assistência à mulher parturiente. No entanto, tal organização, temendo uma reação hostil dos profissionais da saúde, decidiu deliberadamente não falar abertamente sobre violência. Entende-se por violência obstétrica qualquer ato exercido por profissionais da saúde no que cerne ao corpo e aos processos reprodutivos das mulheres, exprimindo através de uma atenção desumanizada, abuso de ações intervencionistas, medicalização e a transformação patológica dos processos de parturição fisiológicos (JUARES et al; 2012 apud ANDRADE; AGGIO, 2014, p. 1). De acordo com Andrade e Aggio (2014, p. 5 apud BRASIL, 2001), “A medicalização envolta no processo de trabalho de parto e parto vem retirando o protagonismo da mulher, onde o profissional da saúde passa de coadjuvante a ator principal dessa experiência, enfatizando o aspecto patológico e biológico como se a gravidez fosse doença, e reforçando as relações desiguais, o que pode vir a contribuir para o grande número de intervenções desnecessárias, como consequência a violência obstétrica e de gênero”. A violência obstétrica tem implicações sobre a morbimortalidade materna. Dentre os motivos estão: (a) o manejo agressivo do parto vaginal; (b) o constrangimento ou coerção à cesárea; (c) a negligência em atender mulheres que expressam seu sofrimento ou que pedem ajuda de modo insistente; (d) a hostilidade contra maneiras de assistência que fogem do modelo hegemônico – o uso de doulas, por exemplo; (e) a hostilidade, negligência e retardo em dar atendimento à mulheres que sofreram aborto por acreditar que esse foi provocado; (f) o impedimento à presença de um acompanhante (DINIS; et. al.; 2015, p. 382).  A violência obstétrica pode-se mostrar de diversas formas no trabalho de parto e parto, desde a não explicação e solicitação de autorização para a realização de procedimentos, até a injúria verbal, exprimida por palavras ofensivas, visando impedir a mulher de demonstrar os seus sentimentos antes e durante o parto (ANDRADE; AGGIO, 2014, p. 6). 2. Violência obstétrica no Brasil e o ciberativismo: quando a internet proporcionar a união de mulheres A violência obstétrica é expressa principalmente pela negligência na assistência, discriminação social, violência verbal, física e psicológica. Também se considera ato de violência obstétrica, conforme Andrade (et. al., 2016, p. 30), o uso inadequado de tecnologias e a adoção de procedimentos durante o ciclo gravídico-puerperal sem o consentimento explícito e informado da gestante/parturiente, ferindo os princípios dos direitos individuais da mulher. Pesquisas em diversos estados brasileiros evidenciaram o uso arbitrário de autoridade pelos profissionais de saúde em relação ao corpo e à sexualidade das mulheres durante e após o parto, de modo que dados apontam que, no Brasil, uma entre quatro mulheres sofre violência durante o parto, tendo-se como reclamações mais comuns as condutas desrespeitosas e grosseiras (ANDRADE; et. al., 2016, p. 30). Ressalta-se que a relação entre profissionais de saúde e pacientes de camadas socioeconômicas desfavorecidas é marcada pela desconfiança, pelo desrespeito, por conflitos mal resolvidos que geralmente acabam expressos em maus tratos às puérperas. Embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomende que o parto tenha início de forma espontânea (não induzida, portanto), garantindo-se a liberdade da parturiente para mover-se a qualquer momento e o direito de receber acompanhamento contínuo durante o processo de parto, não é incomum que tais direitos sejam desrespeitados. A OMS ainda orienta que todo cuidado deve ser individualizado e não deve ocorrer separação de mãe e bebê imediatamente após o parto (ANDRADE; et. al., 2016, p. 30). É saudável para o bebê e para a mãe que, após o processo de parto, fiquem alguns instantes em proximidade. No entanto, as boas práticas não são, em regra, aderidas no Brasil. O atual modelo de atendimento ao parto é marcado pela medicalização da assistência e pelas intervenções obstétricas desnecessárias. De acordo com Andrade (et. al., 2016, p. 30), “A persistente utilização de práticas não recomendadas pelas evidências científicas, como o uso abusivo de ocitocina, imobilização no leito e posição litotômica no parto, pode levar à compressão de grandes vasos e prolongamento do trabalho de parto (TP) e do período expulsivo e, consequentemente, repercutir sobre os resultados perinatais”. Nesse contexto de violação e de danos originados no cuidado obstétrico profissional, insurge o ciberativismo de mulheres mães como uma estratégia e proposta de mobilização social contemporânea. Trata-se de uma utilização do ciberespaço como um local para reivindicação de direitos reprodutivos e de enfrentamento à violência obstétrica. Tal mobilização está atrelada ao surgimento e à atuação da Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (REHUNA), que desde a sua fundação possui um papel de destaque por denunciar circunstâncias violentas da assistência ao parto, caracterizando-as como pouco humanas, constrangedoras e marcadas pela ocorrência de intervenções desnecessárias e violentas, por transformar a experiência de parir e nascer em algo ruim e traumatizante. Ainda, na sua carta de fundação, o REHUNA requereu respeito e qualidade de assistência ao parto no Brasil. O REHUNA é integrado por enfermeiros e médicos da área obstétrica e da saúde pública, o que constitui um aspecto positivo, por demonstrar e reunir profissionais da saúde que são críticos, mas também um aspecto negativo, por restringir o debate da violência obstétrica aos profissionais da saúde. “O fato de serem os profissionais da saúde os principais envolvidos neste debate fizeram com que apenas uma pequena parcela da informação a respeito das violentas condições de assistência ao parto chegasse, de fato, às mulheres usuárias dos sistemas de saúde, as quais representam o principal grupo de interessadas, uma vez que são ou poderiam/deveriam ser protagonistas do evento do nascimento” (SENA; TESSER, 2017, p. 210). As possíveis vítimas da violência obstétrica não tiveram acesso a informações que vão ao encontro de boas práticas de parturização, mais humanas e menos intervencionistas. No entanto, com a chegada da internet e a popularização do computador, a atuação do REHUNA se fortaleceu, proporcionando assim uma integração entre a Rede e as mulheres mães (que foram usuárias do sistema de saúde). O acesso das mulheres ao meio digital tem sido uma ferramenta importante para o empoderamento feminino, questão central para a promoção da saúde. E esse empoderamento está relacionado ao aumento das possibilidades que os indivíduos e as comunidades têm de exercer controle sobre sua própria saúde. E o acesso à informação sobre os diferentes elementos que interferem em sua saúde é estratégia fundamental para que os indivíduos adquiram maior controle e poder de decisão sobre tais fatores (SENA; TESSER, 2017, p. 213). Como exemplo desse potencial cita-se duas iniciativas brasileiras ocorridas entre 2012 e 203 que foram idealizadas e desenvolvidas totalmente em ambiente de conectividade, utilizando as novas mídias como ferramentas para ação e promoção da saúde, especialmente a saúde da mulher, tendo como foco a violência obstétrica, que são: o teste da violência obstétrica e o documentário “violência obstétrica – a voz das brasileiras”. Tais ações contribuíram para mobilizações, debates e reflexões necessárias para que a violência obstétrica não fique restrita ao campo médico e acadêmico. A internet e a utilização de mídias alternativas tornaram-se uma ferramenta de democratização da produção e do acesso à informação sobre a saúde da mulher. Tratam-se de exemplos de verdadeira rebeldia e fuga da lógica mercantil e hierárquica que coloca o saber médico acima dos desejos e dos interesses do paciente, consolidando-se uma boa maneira de combater a violência obstétrica através do conhecimento das parturientes sobre os seus corpos, a sua vida e a sua saúde. CONSIDERAÇÕES FINAIS No Brasil, ao longo dos anos de discussão sobre a Política Nacional de Humanização ao Pré-Natal, Parto e Puerpério, o processo de institucionalização do parto continuou a interferir na medicalização do parto e no aumento dos índices de realização de cesariana, o que reforça a medicalização do corpo feminino ao negar que essa seja protagonista da sua própria história e sujeito pleno de direito. A superação da violência obstétrica é um desafio que pode ser concretizado através do seu reconhecimento como uma violação de direitos humanos (e, portanto, de direito das mulheres). Acredita-se que a inclusão de direitos das mulheres e dos direitos sexuais e reprodutivos como disciplina de graduação em cursos da área da saúde colaborariam para que os profissionais desse ramo tivessem uma formação mais humanística e ética. O investimento na formação de obstetrizes e enfermeiras obstetras seria oportuno e eficiente em aumentar o número de partos fisiológicos e na implementação de um tratamento mais horizontalizado por desmistificar o dualismo sujeito-objeto, médico-doença. O simples fato de o acesso à informação ser mais fácil não desobriga o profissional de saúde a “esquecer” de fornecer informações sobre assistência ao parto para as usuárias durante o pré-natal, o parto e o pós-parto. Ainda, deve esse garantir o direito à parturiente de ser acompanhada durante todo o processo, seja por um familiar ou por uma profissional com conhecimento diferente do modelo hegemônico de assistência.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-167/violencia-obstetrica-no-brasil-uma-questao-de-saude-publica/
Interrupção terapêutica da gravidez de feto anencéfalo à luz do princípio da dignidade da pessoa humana da gestante
O presente trabalho é resultado de pesquisa em doutrinas e jurisprudências que levaram ao estudo da interrupção terapêutica da gravidez de fetos anencéfalos, que são fetos com má formação congênita onde a inexistência do cérebro impede o curso natural da vida extra uterina, o que causou discussões doutrinárias no meio médico e jurídico. Pretende demonstrar os danos que uma gestação de feto anencéfalo pode vir a causar a mãe, caso a mesma seja impedida de interromper a gravidez, levando a gestação até o momento de seu parto, tratando de seus aspectos médicos, jurídicos e psíquicos da mãe. Será, abordado, ainda, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal nos casos comprovados em que o feto é anencéfalo.
Biodireito
INTRODUÇÃO O presente trabalho visa estabelecer o estudo da interrupção terapêutica da gravidez, quando detectado através de exames de ultrassonografias a presença de patologia congênita, que afeta a formação encefálica e dos ossos do crânio, levando ao diagnóstico irreversível de anencefalia. Pretende demonstrar a posição atual do Supremo Tribunal Federal quanto à possibilidade de interrupção terapêutica da gravidez, quando diagnosticada a presença da anomalia no feto. Mostrando ainda as formas de aborto legais, tipificadas em nosso Código Penal Brasileiro. O presente artigo irá tratar do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana da gestante, e em seu último capítulo irá tratar dos danos que uma gestação de feto anencéfalo pode vir a ocasionar na gestante, caso esta não consiga interromper a gestação. Estando elencado entre os possíveis danos que a gestante pode sofrer a eclampsia, a embolia pulmonar, o aumento do volume do líquido amniótico, podendo até mesmo vir a gestante a óbito. Além do dano psicológico que a gestante pode vir a sofrer. 1 CONCEITO DE ANENCEFALIA De acordo com o conceito dado pela medicina, quando o feto possui anencefalia, este possui uma má-formação congênita, onde não há o fechamento do tubo neural, e o feto não possui hemisférios cerebrais e o córtex, existindo somente resíduos do tronco encefálico. Pela má-formação, há a ausência de parte ou completa do cérebro e do crânio, faz com que esse feto não possa vir a ter um curso natural da vida extrauterina. Quando a gestação completar 12 semanas, já é possível ser diagnosticado se o feto que está sendo gerado possui anencefalia, através de exame de ultrassonografia, sendo possível visualizar o segmento cefálico do feto. A anencefalia faz com que o feto não tenha todas as funções superiores do sistema nervoso central, o qual é responsável pela consciência, comunicação, cognição, emotividade, afetividade e vida relacional. Possuindo somente algumas funções inferiores às quais controlam as funções vasomotoras, a respiração e a medula espinhal. Existem casos raros de fetos anencéfalos que sobreviveram poucos dias fora do útero, pois na maioria dos casos, quando o feto não vem a óbito em fase intrauterina, o feto anencéfalo sobrevive apenas alguns minutos ou horas após o parto. Conforme Resolução do CFM nº 1949/2010, publicada no Diário Oficial da União em 6 de julho de 2010, considerou que para os anencéfalos, por sua inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica. A referida Resolução revogou a Resolução do CFM nº 1.752/04, que tratava da autorização do uso de órgãos e tecidos de anencéfalos para transplante, mediante autorização prévia dos pais. A Resolução revogada considerava que os anencéfalos são natimortos cerebrais pelo fato de não possuírem hemisférios cerebrais, tendo o feto parada cardiorrespiratória durante as primeiras horas pós-parto.[1] Nos casos em que há o diagnóstico de doença, não há nenhum tratamento possível para reverter o quadro. Conforme Organização Mundial de Saúde não é recomendado que se tente ressuscitar o bebê anencéfalo em casos de parada cardiorrespiratória. Dentre as causas que causam a anencefalia no feto, está o fato de a mãe sofrer uma deficiência de ácido fólico durante a gestação, entretanto, fatores genéticos também podem predispor o aparecimento da doença. Conforme relatos da Organização Mundial da Saúde, o Brasil foi enumerado como o quarto país em que há o maior número de diagnósticos de bebês anencéfalos no mundo. Havendo uma incidência de um caso para cada setecentos bebês que nascem por ano. 1.1 A DISCUSSÃO ACERCA DA INTERRUPÇÃO TERAPÊUTICA DA GRAVIDEZ Existe discussão de moral quanto à legalidade da interrupção terapêutica da gravidez e durante muitos anos houve também essa discussão no campo jurídico, estando esta ultrapassada no momento, tendo em vista o julgamento da ADPF nº 54 no Supremo Tribunal Federal, a qual tornou legítima a interrupção terapêutica da gravidez quando detectado tratar-se de um feto anencéfalo. Parte da sociedade, com ênfase em comunidades religiosas, se posicionam de forma radical contra a interrupção da gestação, essas comunidades afirmam que deve-se preservar a vida humana a todo custo e ante toda e qualquer condição. Possuindo um posicionamento concepcionista, as entidades religiosas relatam que o surgimento da vida se dá na concepção, sendo reconhecido pela Constituição da República Brasileira de 1988, em seu artigo 5º, o direito à vida como um direito individual indisponível e irrenunciável, logo, aqueles que possuem esse posicionamento, não aceitam que seja retirada nem a própria vida, nem a de outrem, justificando o posicionamento contrário a permissão da interrupção terapêutica da gravidez de fetos anencéfalos. Àqueles que possuem o posicionamento contrário à legalização da interrupção, utilizam-se ainda do argumento de que, no Brasil é proibida de forma constitucional a pena de morte, havendo tipificação no Código Penal Brasileiro como crime, e ainda utilizam como argumento o fato de que, aquele que praticar o homicídio, deve responder pela prática do crime e ser punido pelo mesmo, conforme descrito no artigo 121. Assim como, aquele que cometer ou provocar aborto, com consentimento da gestante ou sem o mesmo, estará incidindo em crime tipificados nos artigos 125 e 126, ambos também do Código Penal Brasileiro. E ainda, pune o Código Penal Brasileiro, aquele que instiga ou auxilia alguém a suicidar-se, conforme descrito no artigo 122. Sendo todas estas, formas de preservar a vida. Entretanto, àqueles que são favoráveis à legalização da interrupção terapêutica da gravidez, em casos em que haja o diagnóstico de doenças congênitas irreversíveis, como é o caso da anencefalia, sustentam que para que ocorra o aborto, é preciso que exista uma potencial expectativa de vida extrauterina para o feto que estava sendo gerado. Fato que não ocorre nos casos em comprovado caso de anencefalia, tendo em vista que neste caso não há potencialidade de vida extrauterina. Relatam ainda, àqueles que estão de acordo com a legalização da antecipação terapêutica do parto nos casos de feto anencéfalo, que a Constituição Brasileira assegura, assim como o direito à vida, também o direito à dignidade da pessoa humana, conforme descrito em seu artigo 1º, inciso III, sendo aceitável que não se prolongue o sofrimento da mãe, de ter que gerar um feto que com certeza irá morrer após o parto, sendo esta uma verdadeira tortura psicológica para a mulher. A Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1752/2004 entendia que o feto anencéfalo é natimorto cerebral, tendo em vista que não possui cérebro, a referida Resolução foi posteriormente revogada pela Resolução do CFM nº 1949/2010, a qual considerou que para os anencéfalos, por sua inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica. Entretanto, a discussão está no ponto em que, conforme nossa Lei, àquele que nasce e respira autonomamente está vivo, adquirindo com isso sua personalidade civil, a qual confere a este a possibilidade de exercer direitos e obrigações, como pessoa juridicamente capaz, sendo este o caso dos fetos anencéfalos, pois possuem o tronco cerebral, o qual permite que respirem, entretanto, os fetos que possuem esta patologia resistem pouco tempo após o nascimento.[2] 2 ANENCEFALIA E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Após anos de discussão acerca da legalização ou não da interrupção terapêutica da gravidez de fetos anencéfalos, o Supremo Tribunal Federal, decidiu por 8 votos a 2, que quando diagnosticado a presença da anomalia no feto, caso a gestante opte por interromper a gravidez, essa não estará cometendo crime de aborto, assim como o médico que fizer a intervenção cirúrgica e interromper a gestação também não estará incidindo em crime. A grande parte dos ministros entenderam que trata-se de caso de um feto natimorto, aquele que é diagnosticado com anencefalia, por esse motivo não deve ser tido como um caso de aborto, tipificado como crime pelo Código Penal Brasileiro, a interrupção terapêutica da gravidez de um feto anencéfalo, tendo em vista, que este feto não tem expectativa de vida extra uterina. O Código Penal Brasileiro, o qual passou a viger ainda em 1940, faz previsão de dois casos em que o aborto é legal, sendo eles, quando a gestação põe em risco a saúde da gestante, e o outro, nos casos em que a gravidez resultou de estupro. A maior parte do Tribunal argumentou que, quando diagnosticada a anencefalia no feto, o bebê morre instantes após o parto. Nos casos de anencefalia não há uma expectativa de vida, e por esse motivo não há que se defender o direito à vida garantida na Constituição Brasileira. Os ministros que defendiam a legalização da interrupção terapêutica da gravidez nos casos de comprovado diagnóstico de anencefalia alegaram ser uma espécie de tortura impedir que a mulher grávida possuindo o diagnóstico de que seu feto possui a anomalia não possa interromper a gravidez. O julgamento no Supremo Tribunal Federal durou dois dias. No primeiro dia votaram os Ministros, Marco Aurélio Mello, Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Cármen Lúcia, os quais defenderam a legalização da interrupção terapêutica da gravidez de fetos anencéfalos; e Lewandowski votou pela não legalização. No segundo dia de julgamento, votaram os Ministros Carlos Ayres Britto, Gilmar Mendes e Celso de Mello, também a favor da legalização da interrupção da gravidez, quando diagnosticada a anomalia; e o presidente da Corte, Cezar Peluzo, votou contra a legalização. Em seu voto, o Ministro Marco Aurélio votou a favor, sendo um dos 8 Ministros que votaram sim , onde o STF julgou procedente a ADPF 54, declarando a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção desse tipo de gravidez é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal. A discussão acerca da interrupção da gestação de feto anencefálico iniciou em 2004, quando a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde proporem ação, a qual levou oito anos para ir a plenário. Na ADPF, o pedido da entidade era para que o Supremo firmasse entendimento de que não é caso de aborto a antecipação terapêutica do parto, buscando permissão para que gestantes com esse quadro de feto anencéfalo pudessem sem autorização judicial realizar a interrupção da gestação. Conforme o entendimento, o feto anencéfalo mesmo que esteja biológicamente vivo, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica. Conforme o relator Ministro Marco Aurélio “a interrupção da gestação de feto anencéfalo não configura crime contra a vida, revela-se conduta atípica”. Foram quatro dias de intenso debate nos quais falaram representantes do governo, especialistas em genética, entidades religiosas e da sociedade civil. De um lado, defensores do direito das mulheres de decidir sobre prosseguir ou não com a gravidez de bebês anencéfalos, e do outro lado, estavam as pessoas que acreditam ser a vida intocável, mesmo em se tratando de feto sem cérebro. A matéria foi ao plenário da Corte em 11 de abril de 2012. Em seu voto, o ministro Marco Aurélio se referiu à questão como “uma das mais importantes analisadas pelo Tribunal” e ressaltou a importância de um pronunciamento do Supremo, respaldado por dados da Organização Mundial de Saúde. O Ministro Marco Aurélio destacou, que o Brasil é o quarto país no mundo em casos de fetos anencéfalos, ficando atrás apenas do Chile, México e Paraguai. A incidência verificada durante o período foi de aproximadamente um a cada mil nascimentos. “Na verdade, a questão posta sob julgamento é única: saber se a tipificação penal da interrupção da gravidez de feto anencéfalo coaduna-se com a Constituição, notadamente com os preceitos que garantem o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde. Para mim, (…) a resposta é desenganadamente negativa.” A separação entre Estado e Igreja, foi o primeiro ponto debatido pelo relator Marco Aurélio, onde segundo este, a Constituição Federal de 1988 consagrou não apenas a liberdade religiosa em seu artigo 5º, inciso VI, mas também o caráter laico do Estado, descrito no artigo 19, inciso I. Marco Aurélio, explica ainda que anencefalia consiste na malformação do tubo neural, caracterizando-se pela ausência parcial do encéfalo e do crânio, resultante de defeito no fechamento do tubo neural durante a formação embrionária. Em outras palavras, o anencéfalo seria um morto cerebral, com batimento cardíaco e respiração. Sendo, portanto, necessário rechaçar a assertiva de que a interrupção da gestação do feto anencéfalo consubstancia aborto eugênico. “O anencéfalo é um natimorto. Não há vida em potencial. Logo não se pode cogitar de aborto eugênico, o qual pressupõe a vida extrauterina de seres que discrepem de padrões imoralmente eleitos.” Diferentemente do que sustentado por alguns, o ministro afirmou não ser possível invocar, pela proteção dos fetos anencéfalos, a possibilidade de doação de seus órgãos. Marco Aurélio explica que, não se pode obrigar a manutenção de uma gravidez apenas para viabilizar a doação de órgãos, sob pena de “coisificar a mulher e ferir, a mais não poder, a sua dignidade“. O relator ainda destacou a impossibilidade de se aproveitar os órgãos de um feto anencéfalo. “Ainda que os órgãos de anencéfalos fossem necessários para salvar vidas alheias (…), não se poderia compeli-la [gestante], com fundamento na solidariedade, a levar adiante a gestação, impondo-lhe sofrimentos de toda ordem. Caso contrário, ela estaria sendo vista como simples objeto, em violação à condição de humana.” Conforme o Ministro, a matéria em discussão possui confronto entre, de um lado, os interesses legítimos da mulher em ver respeitada sua dignidade e, de outro, os interesses de parte da sociedade que deseja proteger todos os que a integram independentemente da condição física ou viabilidade de sobrevivência. O tema envolve a dignidade humana, o usufruto da vida, a liberdade, a autodeterminação, a saúde e o reconhecimento pleno de direitos individuais, especificamente, os direitos sexuais e reprodutivos de milhares de mulheres. No caso, não há colisão real entre direitos fundamentais, apenas conflito aparente. De acordo com Marco Aurélio, a questão posta sob julgamento visa saber se a tipificação penal da interrupção da gravidez de feto anencéfalo coaduna-se com a Constituição, notadamente com os preceitos que garantem o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde. Para mim, Senhor Presidente, a resposta é desenganadamente negativa. De acordo com o Ministro Marco Aurélio em seu voto, o direito à vida dos anencéfalos nãobdeve ser invocado. Anencefalia e vida são termos antitéticos. Conforme demonstrado pelo Conselho Federal de Medicina, o feto anencéfalo não tem potencialidade de vida, trata-se de um natimorto cerebral. O anencéfalo não é titular do direito à vida, eis que não possui qualquer expectativa de vida extrauterina. Entendendo o Ministro que a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida – revela-se conduta atípica. A ministra Rosa Weber acompanhou o voto do relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, o ministro Marco Aurélio, a Ministra defendeu que a interrupção ou antecipação do parto de feto anencéfalo deveria ser excluído do rol dos crimes contra a vida, conforme previsto nos artigos 124 e 126 do Código Penal brasileiro. Julgando procedente a ação, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS). Em seu voto, a ministra Rosa Weber destacou que, para o direito, a discussão do caso, não é em prol do direito do feto anencefálico à vida, eis que conforme o conceito de vida do Conselho Federal de Medicina, o feto anencefálico jamais terá condições de desenvolver uma vida com a capacidade psíquica, física e afetiva inata ao ser humano, pois não terá atividade cerebral que o qualifique como tal. A Ministra destaca que a discussão travada é em relação ao direito da mãe de escolher se deseja levar adiante uma gestação cujo feto nascerá morto ou morrerá logo após o parto, sem desenvolver qualquer atividade cerebral, física, psíquica ou afetiva, própria do ser humano, ou se essa mãe deseja interromper essa gestação. Embora, em seu voto, a ministra sustentasse a relatividade dos conceitos da ciência sobre o que é vida e sobre a aplicabilidade dos conceitos e paradigmas da ciência às demais áreas da vida humana, em virtude de sua mutabilidade, ela se reportou, em seu voto, à Resolução nº 1480/97 do Conselho Federal de Medicina, que estabeleceu como parâmetro para diagnosticar a morte de uma pessoa a ausência de atividade motora em virtude da morte cerebral, isto é, a certeza de que o indivíduo não apresentará mais capacidade cerebral. Este é, segundo a ministra, “um critério claro, seguro e garantido” que pode ser aplicado, por analogia, ao feto anencefálico. Conforme a Ministra “A gestante deve ficar livre para optar sobre o futuro de sua gestação do feto anencéfalo”. A Ministra Rosa Weber concluiu o seu voto pela procedência da ADPF 54: “Diante do exposto, voto pela procedência da presente ação, para dar interpretação conforme aos artigos 124 e 126 do Código Penal, excluindo, por incompatível com a nossa Lei Maior, a interpretação que entende a interrupção ou antecipação do parto, em caso de anencefalia comprovada, como crime de aborto”, concluiu a ministra. Após a Ministra Rosa Weber, votou o Ministro Joaquim Barbosa, tendo este votado no mesmo sentido, ao pedir a juntada, com algumas modificações, do voto elaborado por ele sobre essa matéria na análise do Habeas Corpus 84025. O quarto a votar na sessão Plenária foi o ministro do STF Luiz Fux, tendo votado também a favor da possibilidade da interrupção da gravidez quando diagnosticada a anencefalia. No início de seu voto, que durou cerca de uma hora, o ministro Luiz Fux registrou a definição de anencefalia dada pelo National Institute of Neurological Disorders and Stroke (NINDS). Conforme o Ministro “Impedir a interrupção da gravidez sob ameaça penal efetivamente equivale a uma tortura, vedada pela Constituição Federal”. A questão debatida na Corte no julgamento da ADPF 54, foi ajuizada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. O objetivo da entidade era que fosse declarada inconstitucional qualquer intepretação do Código Penal no sentido de criminalizar a antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos. Com base em estudos e dados científicos, o ministro Luiz Fux afirmou ser possível chegar a “três conclusões lastimáveis” no que diz respeito a gestação de anencéfalos, pois a expectativa de vida deles extrauterina é absolutamente efêmera, que o diagnóstico de anencefalia pode ser feito com razoável índice de precisão e que as perspectivas de cura da deficiência na formação do tubo neural não existem atualmente. O ministro destacou a importância de se proteger a saúde física e psíquica da mãe. Luiz Fux desafiou a possibilidade de qualquer pessoa comprovar, à luz do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, que é justo relegar a gestante de um feto anencéfalo aos “bancos de um tribunal de júri” para responder penalmente por aborto. “Por que punir essa mulher que já padece de uma tragédia humana?”, questionou o Ministro. O ministro entende que a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos é matéria de saúde pública que aflige, em sua maioria, mulheres de menor poder aquisitivo, sendo, portanto, uma questão a ser tratada como política de assistência social. Segundo Luiz Fux, é importante dar à gestante “todo apoio necessário em uma situação tão lastimável” e não punir com uma repressão penal destituída de qualquer fundamento razoável. Luiz Fux destacou que não iria discutir em seu voto qual a vida mais importante: se a da mulher ou a do feto. “Não me sinto confortável para fazer essa ponderação”, disse. Ele explicou que o debate é alvo de “significativo dissenso moral” e que, por isso mesmo, impõe uma postura “minimalista do Judiciário”, adstrita à questão da criminalização ou não da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. A ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha seguiu os votos dos ministros que a antecederam, votando também pela procedência do pedido feito na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54. Segundo a ministra, todos estão preocupados com o direito à vida e à dignidade da pessoa humana, “com a visão que cada um tem de mundo e da própria vida”. Cármen Lúcia destacou que o STF não está decidindo nem permitindo a introdução do aborto no Brasil, não estando também garantindo nenhuma possibilidade de aborto em virtude de qualquer deformação, mas apenas quando diagnosticado a má formação fetal com anencefalia. Conforme Cármen Lúcia “Estamos deliberando sobre a possibilidade jurídica de uma pessoa ou de um médico ajudar uma mulher que esteja grávida de um feto anencéfalo, a fim de ter a liberdade de fazer a escolha sobre qual é o melhor caminho a ser seguido, quer continuando quer não continuando com essa gravidez”. A Ministra Cármen Lúcia fundamentou o seu voto no direito à dignidade da vida e no direito à saúde. “Todas as opções, mesmo essa interrupção, são de dor. A escolha é qual a menor dor, não é de não doer porque a dor do viver já aconteceu, a dor do morrer também”, destacou a ministra, entendendo que a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos não constitui crime. A Ministra destacou ainda que o pai do feto anencefálico também sofre, havendo a necessidade de ser levado em consideração na sua dignidade, assim como toda a família, estando todos envolvidos quando se fala em dignidade. Em seu voto Cármen Lúcia destacou ainda que “Não há bem jurídico a ser tutelado como sobrevalor pela norma penal que possa justificar a impossibilidade total de a mulher fazer a escolha sobre a interrupção da gravidez, até porque talvez a maior indicação de fragilidade humana seja o medo e a vergonha”, eis que conforme a Ministra nada fragiliza mais o ser humano do que o medo e a vergonha. Conforme destacou em seu voto, Cármen Lúcia informou que em um das cartas enviadas aos ministros, uma gestante contou que, após ter descoberto a anencefalia do seu feto, estando gestante de cinco meses, passou a ficar trancada em casa por vergonha, pois em toda fila que a mesma parava, perguntavam quando o bebê iria nascer, qual seria o nome da criança e o que a mãe pensava para o filho, no entanto essa mulher não podia responder. Cármen Lúcia concluiu o seu voto dizendo que “Considero que na democracia a vida impõe respeito. Neste caso, o feto não tem perspectiva de vida e, de toda sorte, há outras vidas que dependem, exatamente, da decisão que possa ser tomada livremente por esta família no sentido de garantir a continuidade livre de uma vida digna”.  O sexto a votar no julgamento da ADPF 54, foi o ministro Ricardo Lewandowski, o qual divergiu do relator, sendo o primeiro Ministro a votar nesse julgamento pela improcedência do pedido formulado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde de que o STF fixe entendimento para que a antecipação terapêutica de feto anencefálico não configure crime. Seguindo duas linhas de raciocínio o Ministro Lewandowski destacou os limites objetivos do controle de constitucionalidade das leis e da chamada interpretação conforme a Constituição, com base na independência e harmonia entre os Poderes. “O STF, à semelhança das demais cortes constitucionais, só pode exercer o papel de legislador negativo, cabendo a função de extirpar do ordenamento jurídico as normas incompatíveis com a Constituição”, disse o Ministro. Mesmo este papel, deve ser exercido com “cerimoniosa parcimônia”, tendo em vista o risco de usurpação de poderes atribuídos constitucionalmente aos integrantes do Congresso Nacional. Conforme Lewandowski “Não é dado aos integrantes do Judiciário, que carecem da unção legitimadora do voto popular, promover inovações no ordenamento normativo como se fossem parlamentares eleitos”. O ministro Lewandowski destacou ainda que a possibilidade de que uma decisão favorável ao aborto de fetos anencéfalos torne lícita a interrupção da gestação de embriões com diversas outras patologias que resultem em pouca ou nenhuma perspectiva de vida extrauterina. Citando dados da Organização Mundial de Saúde sobre malformações congênitas, deformidades e anomalias cromossômicas. Para Lewandowski, a decisão judicial que permite o aborto de fetos portadores de anencefalia, “ao arrepio da legislação penal vigente”, além de “discutível do ponto de vista ético, jurídico e científico”, poderia fazer com que houvesse a possibilidade de interrupção da gestação de diversos outros casos. O Ministro destacou que “Sem lei devidamente aprovada pelo parlamento, que regule o tema com minúcias, precedida de amplo debate público, provavelmente retrocederíamos aos tempos dos antigos romanos, em que se lançavam para a morte, do alto de uma rocha, as crianças consideradas fracas ou debilitadas”. Conforme Lewandowski, há a existência de diversos dispositivos legais que estão em vigor e que resguardam a vida intrauterina, como o Código Civil que em seu artigo 2º, estabelece que a lei ponha a salvo, “desde a concepção”, os direitos do nascituro. Lewandowski, esclarece em seu voto que essas normas vigentes então, também deveriam ser consideradas inconstitucionais ou merecer interpretação conforme a Constituição. Conforme o ministro Ayres Britto, sexto ministro a votar pela autorização da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos: “O que se pede é o reconhecimento desse direito que tem a mulher de se rebelar contra um tipo de gravidez tão anômala, correspondente a um desvario da natureza. Dar à luz é dar à vida e não à morte”. Para o Ministro, a interrupção da gestação em que o feto é anencéfalo não pode ser considerada como um aborto, isso porque o bebê não terá possibilidades de sobreviver de forma extrauterina, obrigar uma mulher a levar a gestação de um feto com anencefalia adiante, é submeter essa mulher a uma tortura. De acordo com o Ministro: “Levar às últimas consequências esse martírio contra a vontade da mulher corresponde à tortura, a tratamento cruel. Ninguém pode impor a outrem que se assuma enquanto mártir. O martírio é voluntário”.[3] O Ministro Ayres Britto em seu voto diz ainda que no caso analisado de gestação anencefálica a gestante já tem o conhecimento desde que possua o laudo de anencefalia fetal de que o seu feto não sobreviverá de forma extrauterina, e que a decisão da mulher, “é mais que inviolável, é sagrada”, no que diz respeito ao amor materno, e a decisão da interrupção da gestação do feto anencefálico. No entanto, rechaça ainda que a mulher ainda que saiba que o seu feto possui a má formação objeto do julgamento, poderá essa mulher optar por levar a sua gestação até o fim. Sendo o sétimo a votar, o Ministro Gilmar Mendes votou pela procedência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, em análise pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal. Gilmar Mendes considerou a interrupção da gestação de feto anencefálico como aborto, no entanto, tratando-se de situação como causa de excludente de ilicitude, já tipificada no Código Penal, por ser comprovado que a gestação de feto anencefálico é perigosa à saúde da gestante. Gilmar Mendes destacou ser necessário que as autoridades competentes regulamentem de forma adequada, com normas de organização e procedimento, o laudo da anencefalia a fim de “conferir segurança ao diagnóstico dessa espécie”. Enquanto pendente de regulamentação, o ministro destacou que, “a anencefalia deverá ser atestada por, no mínimo, dois laudos com diagnósticos produzidos por médicos distintos e segundo técnicas de exames atuais e suficientemente seguras”. O Ministro Gilmar Mendes entendeu que o aborto de fetos anencéfalos está englobada entre as causas excludentes de ilicitude dispostas no Código Penal Brasileiro. Gilmar Mendes retomou a discussão de que quando o Código Penal entrou em vigor, ainda em 1940, não se era possível devido as limitações com a tecnologia, prever que um feto seria anencéfalo ainda em período gestacional. O Ministro votou pela procedência da Ação, entendendo que o médico que praticar aborto com o consentimento da gestante de feto anencefálico, não deverá ser punido, assim como a própria gestante. O Ministro Celso de Mello foi o oitavo ministro a se pronunciar, o qual também votou a favor da interrupção da gravidez de feto anencéfalo, julgando procedente a ADPF 54, ajuizada na Corte pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, onde votou que nos casos de anencefalia, conforme a Constituição Federal e aos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal, fosse declarada a inconstitucionalidade, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a realização voluntária a antecipação terapêutica do parto. Esclareceu que o tribunal não estaria legalizando o aborto, mas sim, decidindo que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo, após ser diagnosticado por profissional médico habilitado, seria um caso de antecipação terapêutica do parto, tendo em vista que não existe expectativa de vida para o bebê que possua a referida doença. Conforme o Ministro: “Nós não estamos autorizando práticas abortivas, legitimando a prática do aborto. Esta é uma questão que poderá ser submetida a essa Corte em outro momento”.[4] O ministro Celso de Mello diz ainda que a mulher, após ter o diagnóstico de anencefalia fetal, poderá optar pela interrupção da gestação sem que haja a necessidade de autorização judicial, ou continuar com a gestação até um fim. Não há uma imposição que obrigue a mulher a interromper ou não a sua gestação, no caso, o que foi decidido, foi que a mulher pudesse ter a oportunidade de escolher se deseja levar a gestação de feto anencéfalo até o final da gestação, ou se decide por interromper a gestação de feto anencéfalo, conforme os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação pessoal e da intimidade, sendo levado em consideração o grande índice de mortalidade das mulheres com a gravidez de anencéfalos, assim como os abalos psiquiátricos que possam vir a ter. Em seu voto o Ministro Celso de Mello, mencionou ainda a palestra de um médico, onde segundo o qual o critério deve ser o mesmo previsto na Lei 9.434/97, que trata da remoção de órgão, partes e tecidos para fins de transplante e na Resolução 1.752/97 do Conselho Federal de Medicina, onde o ser humano é considerado morto no momento em que cessa completamente a atividade cerebral. Conforme esse entendimento, Celso de Mello destaca que o feto anencéfalo não é um ser humano vivo, eis que não tem cérebro e em momento algum irá desenvolver atividade cerebral, não havendo portanto, tipicidade de crime na conduta da interrupção da gestação de anencéfalo, eis que nesse caso não há vida a ser protegida. No segundo dia de julgamento, apenas o presidente da Corte votou pela improcedência da ADPF 54. Segundo Cezar Peluzo, há grande diferença entre a discussão acerca do uso de células tronco em pesquisa onde não havia processo vital e dos fetos anencéfalos o qual pelo fato de morrer logo após o parto, é um indício de que existiu vida e, por esse motivo, estaria protegido pela Constituição. Cezar Peluzo relatou ainda acerca do risco de que, por conta de um diagnóstico incorreto, fetos com outras deformidades venham a ser abortados. Segundo Peluzo, para que o aborto seja considerado crime basta a eliminação da vida, o que segundo o qual, ocorre nos casos de interrupção terapêutica do parto de anencéfalos, ainda que não possua viabilidade de vida extrauterina. Encerrando o seu voto, o presidente Cezar Peluzo ressalta que não cabe ao STF atuar como legislador positivo, e que o Poder Legislativo não incluiu o caso em discussão dos anencéfalos nas hipóteses de abortos legais do artigo 124 do Código Penal. Concluindo que “É o Congresso Nacional que não quer assumir essa responsabilidade, e tem motivos para fazê-lo”.[5] Entretanto, conforme estudo de médicos, da Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, foi informado que existem na atualidade medidas para diagnosticar com 100% de segurança os casos de anencefalia, no primeiro trimestre de gestação, a partir da 8ª semana. A segurança técnica quanto ao diagnóstico da anencefalia ainda no período de gestação foi obtida nos anos de 1995-1996, com a ultrassonografia em três dimensões. Nos casos em que sendo realizado o exame de ultrassonografia, persistir alguma dúvida quanto ao diagnóstico da doença, o médico pode utilizar outros meios para a obtenção precisa do diagnóstico de anencefalia, como o exame de ressonância magnética. Quanto ao diagnóstico da doença durante o período de gestação, o médico Everton Pettersen relata que: “Podemos mostrar claramente o desenvolvimento do feto, o desenvolvimento de toda a calota craniana e do encéfalo deste feto, e podemos ver a total ausência da formação do encéfalo e da formação da calota craniana”.[6] A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal possui caráter vinculante e, portanto, obriga demais tribunais e órgãos públicos a obedecê-la. A interrupção da gravidez de feto anencéfalo foi considerada como ato não abortivo, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Após o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, ter concedido à Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, liminar na qual foi reconhecido o direito constitucional da gestante em decidir se irá interromper ou não sua gestação no qual possui diagnóstico de feto anencefálico. A decisão na Ordem dos Advogados do Brasil se deu por maioria de votos, onde a maior parte dos conselheiros utilizou como base de seus votos, o voto do relator da matéria na OAB, o conselheiro Arx Tourinho, da Bahia, onde, conforme este, só é possível que haja aborto, quando houver possibilidade de vida do feto. [7] Conforme Tourinho, em seu voto, relatou que o entendimento de Nélson Hungria, sobre a gravidez extrauterina assim como da gravidez molar, pode ser aplicado ao caso do feto anencéfalo: “O feto expulso (para que se caracterize aborto) deve ser produto fisiológico, e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto”(Comentários ao código penal, Forense, 1958, vol. V, p. 207/208).[8] Tourinho relatando em seu voto, que conforme entendimento médico, deve haver um tratamento da gestante de feto anencéfalo, tendo em vista que a ausência de cérebro do feto é considerada uma patologia, a qual deve ser tratada. Tourinho citou a professora Débora Diniz, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universidade de Brasília, “A ausência dos hemisférios cerebrais, ou no linguajar comum “a ausência de cérebro”, torna o feto anencéfalo a representação do subumano por excelência. Os subumanos são aqueles que, segundo o sentido dicionarizado do termo, se encontram aquém do nível humano. Ou, como prefere Jacquard, aqueles não aptos a compartilharem da “humanitude”, a cultura dos seres humanos.” (Aborto seletivo no Brasil e os alvarás judiciais).[9] 2.1 CASOS LEGAIS DE ABORTO Dentre os casos legais de aborto em nosso ordenamento jurídico, está o aborto necessário, descrito no inciso I, do artigo 128 do Código Penal brasileiro, onde pelo qual não se pune o médico que realizar aborto quando não houver outra forma de salvar a vida da gestante, tendo em vista que o feto está pondo em risco a vida da mãe. Outra forma de aborto permitido em lei é o aborto no caso de gravidez resultante de estupro, onde há um consentimento da gestante para que seja realizado o aborto, ou caso esta seja incapaz, que seu representante legal tenha consentido, conforme descrito no inciso II do mesmo dispositivo legal. Esse aborto também é tratado na doutrina como o aborto sentimental. No julgamento da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), nº 54, em 12/04/2012, foi julgada por maioria de votos, a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação em que a interrupção terapêutica da gravidez de feto anencéfalo estaria tipificada no inciso I do artigo 128 do Código Penal brasileiro. O Código Penal Brasileiro, o qual entrou em vigor ainda em 1940, faz previsão apenas desses dois casos em que o aborto é legal, sendo omisso quanto à permissão da interrupção da gravidez quando diagnosticada que trata-se de um feto anencéfalo. A razão para a referida omissão é que na década de 1940, quando passou a vigorar o Código Penal Brasileiro não era possível diagnosticar a doença enquanto o feto ainda estivesse o útero. Foi aprovado, por votação simbólica da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara, no dia 18 de maio de 2005, o Projeto de Lei (PL 4403/2004) o qual legaliza o aborto quando diagnosticado que trata-se de feto anencéfalo, alterando o Código Penal Brasileiro, sendo acrescentado no artigo 128 do Código Penal Brasileiro o inciso III, que trata do Aborto Terapêutico, tipificando a legalidade do aborto terapêutico, o qual será permitido nos casos em que seja diagnosticado que o feto possui grave e incurável anomalia, fato que não o possibilitará a vida extra uterina, como é o caso dos fetos anencéfalos, que não possuem uma potencial expectativa de vida.[10] A maior parte dos Ministros que julgaram no Supremo Tribunal Federal a possibilidade da interrupção terapêutica da gravidez de fetos anencéfalos ponderou que os dois casos de abortos legais tipificados nos incisos I e II do Código Penal Brasileiro, visam a proteção da mulher, e que neste caso, a interrupção da gestação de um feto anencéfalo, também estaria protegendo a mulher, a qual poderia sofrer de dano psicológico. Conforme o doutrinador Rogério Greco, o crime de aborto está elencado no Código Penal, dentro do capítulo que trata dos crimes contra a vida, motivo pelo qual o bem juridicamente protegido é a vida humana em desenvolvimento.[11] Cabe ressaltar que no crime de aborto, o que se protege é a vida, entretanto, não há o que se falar em proteção à vida de um feto que por conta da anencefalia diagnosticada não possui uma potencial expectativa de vida, onde, nos casos em que não morrer em fase intrauterina, sua morte se dará nos primeiros instantes de vida extrauterina. Podendo, entretanto, vir a causar danos à saúde da gestante. 3 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Permitir que a gestante interrompa uma gestação em que foi diagnosticado que o feto possui anencefalia não é uma questão de religião, pois em momento algum houve ofensa ao princípio fundamental do direito a religião e cultos. O Brasil é país democrático e laico, e o caso que trata da interrupção da gravidez de fetos portadores de anencefalia deve ser decidido pela ordem jurídica livre de dogmas e valores religiosos particulares, pois as leis não são subordinadas aos dogmas religiosos ou à fé. A permissão da interrupção da gestação de feto com anencefalia tenta cessar a ofensa ao princípio da dignidade humana, o qual é ofendido quando se obriga a uma mãe carregar em seu útero durante meses um feto que possui a certeza de que não sobreviverá. Não é possível precisar o tamanho do sofrimento que uma mãe pode ter a cada exame de ultrassonografia, a cada mês que se passa e percebe a barriga crescendo, mas possuindo a certeza de que aquele feto gerado não sobreviverá muito tempo, havendo ainda a possibilidade de o feto vir a óbito ainda em fase intrauterina, o que acontece na grande maioria dos casos. Ao invés de fazer enxoval à espera do filho desejado, a gestante ou familiares, vão a funerária encomendar o pequeno caixão do feto portador da anencefalia, que por não haver um trâmite célere, em questões extremamente urgentes, como esses casos, a gestante acaba por dar à luz a um feto que sobrevive segundos, talvez minutos. A nossa Constituição da República expressamente consagra o direito à dignidade, buscando pôr a salvo, a vida humana, de todo tipo de dor e injustiça, tendo em vista que é necessário que as pessoas vivam com dignidade. Com isso, há de ser protegido o direito à dignidade da gestante, a qual possui certeza devido a exames pré-natais que o feto que está gerando não possui uma potencial expectativa de vida extrauterina, devendo esta mãe ser poupada do sofrimento que a gestação lhe trará. Conforme disposto na Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO) de 1946: “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social. ”[12] O que faz com que deva ser protegida a saúde e integridade física da gestante, no qual possui diagnosticado que o seu feto é portador da patologia anencefalia. 3.1 OS DANOS QUE UMA GESTAÇÃO DE FETO ANENCÉFALO PODE TRAZER A GESTANTE A anencefalia como já mencionado, é diagnosticada através de exames de ultrassonografias ainda no período da gestação, nos exames chamados de pré-natais. Não existe atualmente na medicina, nenhum tipo de tratamento para a cura ou reversão da anencefalia, nesses casos o feto terá uma vida inviável. Entretanto, o mesmo quadro não ocorre com a mulher, gestante de feto anencéfalo, tendo em vista que após o parto a mesma ainda terá uma vida viável, porém a permanência de um feto anencéfalo no útero materno podem ocasionar diversos problemas de saúde para a gestante, tendo e vista que a prolongação do período em que o feto anencéfalo tenha que ficar no útero materno é considerado pela medicina como perigoso para a mãe. Dentre os problemas de saúde que a gestante possa a vir a apresentar está o fato de a gestante poder sofrer um acúmulo de líquido amniótico dentro do útero, o que faz com que o mesmo não se contraia de forma correta, vindo a causar hemorragias durante o período pós-parto. O fato da má-formação do feto gera a gravidez de feto anencéfalo um caráter de risco maior do que os constantes em uma gestação normal. Obrigar que a gestante prolongue a gravidez, o que pode vir a causar graves danos à saúde da mesma e até mesmo perigo de morte, tendo em vista o alto rol de óbitos intrauterinos de fetos anencéfalos. Aos que ocupam a posição de defender a interrupção terapêutica da gravidez nesses casos, alegam que a antecipação do parto é o único tratamento possível e eficaz para o tratamento da gestante. Não havendo tratamento para o feto. A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia enumeraram diversas possíveis complicações que a gestante de um feto anencéfalo pode vir a ter, dentre elas estão: eclampsia, embolia pulmonar, aumento do volume do líquido amniótico, o prolongamento da gestação além de quarenta semanas, associação com polihidrâmnio, com desconforto respiratório, estase venosa, edema de membros inferiores, associação com vasculopatia periférica de estase, alterações comportamentais e psicológicos, dificuldades obstétricas e complicações no desfecho do parto de anencéfalos de termo, necessidade de apoio psicoterápico no pós-parto e no puerpério, necessidade de registro de nascimento e sepultamento do recém-nascido, necessidade de bloqueio da lactação, puerpério com maior incidência de hemorragias maternas por falta de contratilidade uterina, maior incidência de infecções pós-cirurgia devido a manobras obstétricas do parto de termo, e até a morte materna.[13] Conforme a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, cerca de 15 a 33% dos fetos anencéfalos apresentam outras malformações congênitas graves como problemas cardíacos. Conforme a Constituição Federal brasileira de 1988, em seu artigo 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Alguns Hospitais e clínicas médicas registraram casos em que a mulher sofreu enorme transtorno psicológico, pelo fato de estar na espera do momento de dar a luz a um ser sub-humano, que embora possua uma forma humana, não possui cérebro. Ao fazer com que a mãe aguarde pelo período de dar à luz, mantendo em seu ventre durante meses um feto que tem certeza de que não irá resistir, não está sendo protegido o direito a saúde da gestante. A gestante possui um direito a uma vida digna, devendo para isso prevalecerem os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, pelo qual a mesma poderá decidir em interromper ou não a gestação do feto portador de anencefalia, um natimorto cerebral. Ao permitir que a gestante opte pela realização do aborto sentimental nos casos em que tenha sido diagnosticado a presença de anencefalia, está sendo garantida a dignidade da pessoa humana da gestante. De acordo com o artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal, a gestante não deve ser submetida a um tratamento de crueldade, desumano, que seja semelhante à tortura, sendo este tipo de tratamento cruel, vedado pela Constituição Federal. Entretanto, embora permitida a interrupção da gravidez de feto anencéfalo, o fato de a gestante precisar aguardar por alvará judicial permitindo a referida interrupção, o que em alguns casos demoram tanto tempo para ser decidido referido caso, que a mãe acaba por dar à luz ao feto anencéfalo antes mesmo de seu alvará permitindo a interrupção da gestação estar concluído e o caso arquivado. Conforme disposto no artigo 196 da Constituição Federal Brasileira: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.[14] De acordo com a medicina, a mulher em gestação de um feto anencefálico, pode correr risco de morrer, isso porque em grande parte dos casos esses fetos têm morte intrauterina, devendo ser prevalecido neste caso o direito à saúde da mulher. Alguns hospitais registraram o profundo transtorno psicológico que a mulher sofre, quando aguarda o parto de um ser sub-humano, sem cérebro, com forma de gente, mas, sem a essência do humano. É evidente que a gestante, nessas circunstâncias, tem o direito de velar por sua saúde. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme estipulado na Constituição Federal Brasileira, todos os indivíduos possuem direitos e deveres, e dentre esses direitos, há de ser assegurado o direito fundamental à vida, e a dignidade da pessoa humana. Ao ser permitido que uma gestante interrompa uma gestação em que foi diagnosticado que seu feto possui anencefalia, está sendo assegurados os princípios fundamentais da gestante, destacados acima. Entretanto, com a demora do judiciário para dirimir alguns casos, acaba que por vezes a gestante embora manifeste seu desejo em interromper a gestação em que possui diagnóstico comprovando a anencefalia fetal, não consegue, tendo em vista que o trâmite não é célere, e a gestação possui um período, não podendo a mesma esperar pela decisão judiciária. Embora exista entendimento do Supremo Tribunal Federal permitindo o aborto sentimental nesse caso de gestação, a mesma ainda não está tipificada em nosso Código Penal Brasileiro, tendo em vista que quando o mesmo entrou em vigor não era possível o diagnóstico da anencefalia ainda em fase intrauterina, havendo, contudo, o Projeto de Lei nº 4430/2004 o qual ainda não foi decidido. As discussões religiosas nesse caso não devem prosperar, tendo em vista que por ser o Brasil um país laico, àquelas que possuírem feto anencéfalo poderão manifestar sua vontade ou não na interrupção da gravidez. Não sendo esta imposta a todas as gestantes que se enquadrarem no caso, mas dando oportunidade àquelas que desejarem interromper a gestação de um feto anencéfalo o qual possuem a certeza de que o mesmo não conseguirá sobreviver por muito tempo em fase extrauterina, poderão realizar a intervenção médica, sem encontrar problemas, e sem passar pelo verdadeiro martírio de esperar por uma decisão judicial permitindo a interrupção da gestação. A mulher, só pelo fato de encontra-se gestante, ainda que de um feto saudável, por muitas vezes já sofre abalos em seu psicológico, encontra-se frágil e sensibiliza-se mais facilmente. Não há possibilidades de simplesmente pedir para uma mulher, gestante de um feto anencéfalo, que provavelmente encontra-se com um grande abalo psicológico, espere por uma decisão judicial, em que lhe será emitido alvará permitindo a interrupção da gestação. Isso porque não há uma preocupação do que será feito com essa gestante durante esse período em que não se terá uma decisão para o caso da mesma, no qual deverá aguardar o judiciário para enfim proceder a ser aborto sentimental. Não há um amparo, um cuidado e tratamento dessas gestantes, fato que por muitas vezes leva-as a proceder em técnicas arriscadas em clínicas clandestinas, aonde em muitos casos a mulher vêm a óbito antes de receber um atendimento médico. Além de um judiciário com decisões mais céleres, em casos que exigem uma solução mais rápida, como no caso do presente trabalho, também é preciso que haja um atendimento médico mais eficaz.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-166/interrupcao-terapeutica-da-gravidez-de-feto-anencefalo-a-luz-do-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana-da-gestante/
O útero em substituição à luz do biodireito e da bioética
O escopo do presente é analisar o “útero em substituição” à luz do Biodireito e da Bioética. Os avanços experenciados, pelo Direito, na segunda metade do século XX provocaram uma grande evolução no pensamento tradicional que dantes subsistia. Nesta linha, as inovações proporcionadas pela biotecnologia e os impactos éticos desdobrados provocaram uma remodelagem de um novo ramo jurídico, a saber: o Biodireito. Tal ramificação é uma matéria que confronta normas existentes e disposições constitucionais relativas à vida humana, sua preservação e qualidade e que não se restringem apenas a questões ligadas à saúde, meio ambiente e tecnologia. Neste sentido, a doação temporária do útero, ou útero em substituição e popularmente chamada de “barriga de aluguel”, consiste em técnica científica objetivada em interferir no processo natural de reprodução humana através da coleta dos gametas masculinos e femininos dos doadores, para posterior fecundação assistida em um laboratório. Logo, os embates advindos de tal prática trazem a campo implicações de cunho jurídico, arrastando os princípios de índole constitucional e bioética, em especial no que toca ao ideário da dignidade da pessoa humana. A metodologia empregada no curso do presente foi o método indutivo, auxiliado por revisão bibliográfica. [1]
Biodireito
1 INTRODUÇÃO A Bioética e o Biodireito são discutidos a partir de meados do século XX, como reflexos dos avanços tecnológicos nos estudos científicos das áreas médica, biológica e química e também do resultado da aplicação prática destes avanços por experimentos humanos, algumas vezes controversos, como os casos de eugenia social que foram presenciados durante aquele século. De acordo com Leite (2009), estes avanços tecnológicos e as questões sociais em que poderiam implicar, trouxeram debates sobre os problemas éticos e legais gerados sobre o poder do homem em interferir nos processos de formação da vida humana. Essa possibilidade de controle da vida despertou a necessidade de impor limites à atuação sobre a manipulação científica genética. É “a necessidade de reajustar os sistemas de valores” em função do equilíbrio entre evolução científica, evolução social e evolução dos direitos. A discussão ética e legal sobre a prática de reprodução assistida no Brasil esbarra em questões, legais, morais (costumeiras) e sociais. Conforme abordado por Moreira (2016), o tema desperta indagações sobre o processo de artificialidade em substituição do natural, dos conceitos de graus de parentesco e sobre a noção de formação familiar. Por isso a importância do debate relativo à bioética e ao Biodireito que se tornam os canais de diálogo entre a sociedade, as leis, a hermenêutica, as limitações às ações humana e o desenvolvimento técnico-científico. Como apresentado por Leite (2009), o Biodireito é uma matéria que confronta normas existentes e disposições constitucionais relativas à vida humana, sua preservação e qualidade e que não se restringem apenas a questões ligadas à saúde, meio ambiente e tecnologia. Para Moreira (2016), o Biodireito surge como uma nova ciência jurídica, que busca tutelar as relações entre a biotecnologia e toda a raça humana. É o levantamento de questões sobre os limites da intervenção humana sobre o próprio homem, frente a autonomia da opção individual. A bioética, por sua vez, tem um aspecto mais filosófico, sobre a relação da prática com o que é socialmente aceito. Conforme Moreira (2013), a bioética trata do desenvolvimento das relações éticas dos seres humanos, entre si e deles com o meio em que vive. Inicialmente é uma discussão sobre a prática dentro do próprio meio científico e que se reproduz no campo jurídico para criar limites ao desenvolvimento das técnicas científicas. Em Leite (2009), a bioética é uma disciplina autônoma sobre uma nova dimensão de pesquisa científica e acadêmica para designar os problemas éticos dentro das novas práticas desenvolvidas nas ciências biológicas e médicas, especialmente sobre o poder do homem interferir na vida e na morte do próprio homem. A discussão se torna pertinente na área de reprodução humana assistida em virtude dos significativos e rápidos avanços científicos da manipulação genética. Conforme tutelado pela constituição federal, o planejamento familiar é livre e cabe ao Estado a garantia dos meios educacionais e científicos para garantir este direito. De acordo com Vieira (2008), a velocidade com que estes avanços vêm se concretizando cria expectativas e, ao mesmo tempo, assusta as pessoas em geral sobre a ideia de criar-se um ser humano de formas artificiais. Os avanços são tão rápidos que fica difícil acompanhar as inovações, eticamente e legalmente falando. Assim, a bioética traz constantemente novas implicações ao ramo jurídico, diante da característica evolutiva da ciência e das novas demandas da sociedade em assuntos relacionados às escolhas individuais relativas à formação familiar, sobre o direito de reproduzir-se, e os meios em que se realizarão tais desejos. 2 ÚTERO DE SUBSTITUIÇÃO: PRIMEIROS CONTORNOS No Brasil, inexiste legislação específica sobre o método de reprodução assistida conhecido como “útero em substituição”. Apesar do consolidado avanço científico nacional e da relativa acessibilidade às práticas de reprodução humana assistida, o útero em substituição vem sendo praticado à margem da lei, regulado por resoluções do Conselho Federal de Medicina – CFM, como, por exemplo, as Resoluções 1.358/92, 1957/2010 e 2.013/13 (já revogadas) e a mais atual, Resolução 2.121/2015. A Lei nº 11.105/2005, também conhecida como Lei de Biossegurança, ainda que amplamente discutida quando se fala em manipulação genética e ética científica, versa de forma geral sobre qualquer prática de manipulação genética, pois trata das normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados, e seus derivados e também dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança. A doação temporária do útero, ou útero em substituição e popularmente chamada de “barriga de aluguel”, conforme resumidamente elucidado por Rahal (2016), consiste em técnica científica objetivada em interferir no processo natural de reprodução humana através da coleta dos gametas masculinos e femininos dos doadores, para posterior fecundação assistida em um laboratório. Após o processo de fecundação são selecionados embriões considerados mais resistentes para que sejam implantados no útero da mulher que será a gestante (doadora do útero, apenas, e não do material genético) e assim poder seguir a gestação. De acordo com o CFM, os embriões não utilizados devem ser congelados por até 5 anos. Os responsáveis pelo embrião devem deixar a sua destinação por escrito, que findo o prazo podem ser descartados ou utilizados para pesquisas com células tronco embrionárias. A Resolução 2.121/2015 diz que a técnica do útero em substituição deve ser utilizada em situações de existência de algum problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética ou em caso de união homoafetiva. As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau, qualquer outro caso de grau de parentesco, ou não parentes, deverá estar sujeito à autorização do Conselho Regional de Medicina, mas não sendo vedado. A resolução traz também uma lista de documentos necessários para a realização do procedimento, como por exemplo o termo de consentimento livre e esclarecido, contemplando as vontades, os riscos, aspectos legais, de filiação e biopsicossociais envolvidos na técnica. Vale ressaltar que as resoluções do CFM não possuem força de lei, mas são elas que servem de respaldo para os casos de maternidade em substituição que vão parar na justiça (PAIANO; FERRARI; ESPOLADOR, 2013). Ainda, de acordo com a mencionada Resolução de 2015 do Conselho Federal de Medicina, a cessão do útero é recomendada apenas para mulheres com até 50 anos de idade, mas, caso uma mulher com mais de 50 anos deseje doar o seu útero, não há restrições desde que, junto com seu médico, assumam os riscos de uma gravidez tardia. Em caso de reprodução assistida por casais homoafetivos femininos, o Conselho e a Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida entendem como doação do útero quando uma das parceiras gera um embrião formado pelo óvulo da outra parceira. Os homens podem doar espermatozoides para a reprodução assistida até o limite de idade de 50 anos e as mulheres podem doar seus óvulos até 35 anos de idade e devem estar em processo de tratamento para reprodução assistida. Interessante também que o Conselho Federal de Medicina autoriza a divisão das custas do procedimento de fertilização entre duas mulheres, estando uma infértil recebe óvulos em excesso da mulher que tenha óvulos férteis, os óvulos não podem ser doados livremente, apenas os espermatozoides podem, com a finalidade de se evitar o comércio genético. Solteiros e casais homoafetivos masculinos também podem realizar a reprodução humana assistida por útero em substituição. Embriões podem ser utilizados na condição de Post Mortem, inclusive no método de barriga de aluguel, desde que haja autorização prévia da pessoa falecida para a utilização de seu material genético para este fim após a sua morte. A presente resolução regulariza a prática do diagnóstico genético pré-implantação, que consiste em verificar eventuais incompatibilidades genética entre os pais e que possibilitam realizar uma seleção para tentar evitar que o filho venha a nascer com graves problemas de saúde ou ainda permitir que as células tronco do cordão umbilical da criança que será gerada possam ser utilizadas no tratamento de doenças de um irmão doente já nascido. Ao lado disso, são vedadas a seleção de sexo, exceto em caso de doença grave associada ao sexo, conforme estabelece o conteúdo da Resolução FCM 2.121/2015. Além da citada resolução, conforme destacado por (PAIANO; FERRARI; ESPOLADOR, 2013), a própria constituição federal garante o livre acesso às técnicas de reprodução assistida e também a Declaração Universal de Direitos Humanos. Ainda, Ferreira (2016) destaca a relação direta do assunto com o Código Civil Brasileiro, mais especificamente em seu subtítulo II que trata das relações de parentesco, reconhecimento de paternidade, do poder familiar dentre outras partes do código, como sucessão de bens, por exemplo. A fim de exemplificar podem ser analisados alguns Artigos do Código Civil Brasileiro. O Artigo 1591 diz que “são parentes em linha reta as pessoas que estão umas para com as outras na relação de ascendentes e descendentes”, o Artigo 1953 versa que o parentesco é natural ou civil. Deste modo, levanta-se a questão de como ficariam as relações de parentesco de uma criança gerada por útero de substituição. Poderia esta criança ter três origens de parentescos, ou três pais? O Artigo 1958 reconhece a filiação de filhos concebidos por fecundação artificial homóloga e heteróloga e ainda, de acordo com o artigo 1.160, caso venha a ser reconhecida a paternidade ou a maternidade de um filho, esta é irrevogável. Como ficaria ainda a questão do poder familiar sobre o filho gerado? De acordo com os artigos 1.161 e 1.164, o pleno poder familiar compete aos Pais (ambos os pais) e é assegurado a qualquer um deles recorrer à justiça para solução de desacordos. Em casos como este, deve ser dada à hermenêutica uma capacidade de interpretação extensiva da lei. Como pode ser observado, apesar da lacuna legal existente sobre a prática de cessão do útero, o Conselho Federal de Medicina, através de resoluções, tenta ao menos dar os contornos básicos da regularização da prática dentro do que se é considerado cético e legal no meio médico e científico. Neste sentido, dentro do vasto ordenamento jurídico-legal brasileiro, torna-se necessário aos operadores de direito envolvidos em questões de cessão uterina, assim como profissionais e outros interessados, estarem sempre atentos às interligações que as leis possam fazer com o caso concreto, além da pura e simples observância das resoluções editadas pelo FCM e feitas também pela Lei de Biossegurança. 3 PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA EM PAUTA  A Constituição da República Federativa do Brasil (1988) consagra uma ampla série de princípios, expressos ou não, e outras disposições que podem ser abordadas na análise do direito em relação aos limites da ciência na interferência da vida, assim como nos limites da lei (Estado) na interferência do avanço da ciência e nas liberdades individuais. Em seu Artigo 1º, II, a Constituição apresenta um dos mais relevantes e abrangentes princípios, o da Dignidade da Pessoa. Em se tratando da análise da reprodução humana por métodos assistidos, como no caso do útero em substituição, comumente chamado de “barriga de aluguel”, vale ressaltar ainda algumas outras relevantes partes da Constituição. Artigo 3º, IV, a Carta Magna diz ser um dos objetivos do Estado a promoção do bem de todos, sem preconceitos ou qualquer forma de discriminação. O Art. 5º, IX diz que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Para o estudo em voga, ainda é relevante destacar as seguintes partes da Constituição: art. 23, inciso V, proporcionar os meios de acesso à cultura à educação e à ciência; art. 203, inciso I, proteção à família, maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; art. 218, O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica; art. 225, inciso II, preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético e Inciso V, controlar a produção, comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Além disso, o art. 226, § 7º, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. Mais especificamente, no caso do útero em substituição, merece destaque o princípio da dignidade da pessoa humana e a liberdade de formação familiar. De acordo com Leite (2009) a medicina e a biologia introduziram uma nova dinâmica em algo que antes era um processo natural. A geração da vida passa a ser assistida, controlada, criando novos conceitos de pessoa, pai, mãe e filho, parentes e até onde pode-se considerar aceitável o ato de “emprestar” uma barriga para gerar um filho para outra pessoa e como serão estabelecidas as relações familiares desta criança após o seu nascimento. É neste cenário que deve ser analisado os limites do direito e as limitações às quais são impostas ao desenvolvimento de novas técnicas científicas e nas liberdades de escolha dos indivíduos sobre paternidade, maternidade, formação familiar e a realização pessoal, além disso, a capacidade da ciência em interferir ou selecionar as características genéticas da criança conforme os desejos dos pais, com o objetivo de buscar melhoramento genético das condições humanas. Segundo Moreira (2016), a questão “envolve uma redefinição do que antes era circunscrito ao domínio da natureza, sem haver intervenção do indivíduo ou da sociedade”. Conforme apresentado por Amorin e Pithan (2006), é justamente neste cenário que é necessária a proposição de uma “harmonização entre ética e Direito.” Estas práticas reprodutivas com o avanço da ciência e da medicina criam dilemas éticos e jurídicos em um ambiente onde inexiste limites exatos de até onde se pode ir e do que pode e não pode ser feito. Por exemplo, até onde se manipular geneticamente um embrião para evitar doenças? Ou ainda, quais os graus de parentescos de uma criança gerada com o auxílio de mais de dois indivíduos em sua formação genética e gestacional? São questões como estas que o Biodireito e a Bioética travam no campo jurídico e também na seara do socialmente aceitável e profissionalmente ético. Conforme apresentado por Viegas (2015), a gestação por cessão uterina traz ao debate ético mais questões, que vão além dos aspectos comerciais. Para a autora é necessária existência de regulamentação específica para lidar com casos em que a geradora crie laços de afetividade materna com a criança gerada, ou ainda casos em que a mãe doadora do útero não quer entregar a criança, casos em que tanto os pais gestores ou mãe gestora se recuse a reconhecer a paternidade da criança, dentre outros casos. Ainda segundo Amorin e Pithan (2006) estes novos e complexos fenômenos não devem ser restringidos, mas faz-se necessário controlar a sua utilização através de alguns valores. Apesar da lacuna legal, a Bioética se preocupa com três princípios no que concerna à interpretação dos procedimentos científicos e as decisões a serem tomadas quanto à sua aplicabilidade prática dentro dos aspectos éticos. São os princípios da beneficência, da justiça e o princípio da autonomia. O primeiro preza pelo bem do paciente, o segundo se posiciona pela equidade nos serviços de saúde e o respeito e consideração ao direito à saúde e, por último, fundamentado na dignidade da pessoa humana, o princípio da autonomia se refere ao direito de o indivíduo aceitar ou rejeitar o tratamento que lhe é oferecido de conforma consentida. As resoluções do CFM têm um caráter de regulação ética e se balizam por trais princípios, da mesma forma, servem estes e as resoluções de subsídio para as discussões jurídicas acerca do tema no âmbito do Biodireito. Também, de acordo com Leite (2009), deve ser considerado o princípio da não-maleficência, em que não se deve causar mal ao outro, devendo haver ações para prevenção ou eliminação de danos. A mesma autora destaca ainda as questões éticas que são abordadas além da questão da manipulação genética e das relações familiares, mas em relação ao cunho religioso e filosófico, como as considerações sobre quando se inicia a vida humana de fato. Este reflexo decai diretamente sobre o descarte do excedente de embriões não utilizados e o entendimento de que para haver resguardo de direitos a um embrião, da mesma forma que há para um feto no útero, o embrião deve passar por nidação, que consiste em ter sido implantado no útero. Conforme exposto por Saldanha (2009), o art. 2º do Código Civil Brasileiro, considera que a personalidade civil começa com o nascimento com vida, adotando assim a teoria natalista para a personalidade civil, mas o feto também tem sua expectativa de direito resguardada. Entretanto, a bioética por si só é uma discussão subjetiva e não tem poder de coação sobre a ação do indivíduo. Como exposto por Amorin e Pithan (2006), são as reflexões da bioética aplicadas ao Biodireito de forma coativa que trazem controle sobre a utilização de práticas biotecnológicas. E a aplicação dos princípios e a interpretação das leis devem levar em consideração o momento histórico em que está sendo analisado o fato, o caso concreto. Apesar da inexistência de legislação Específica sobre a reprodução por útero em substituição, a prática de “barriga de aluguel” como um negócio jurídico de prestação de serviços mediante pagamento à gestante, não é possível no Brasil. De acordo com Viegas (2015), a prática de barriga de aluguel é enquadrada no Artigo 15 da Lei n° 9.434/97, no âmbito penal, que considera como crime o ato de comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano. A cessão uterina só é regulada de forma gratuita através das mencionadas resoluções do CFM. Entretanto, é corriqueiro aparecer casos em que mulheres alugam o seu útero para gerar filhos para outras pessoas. Inclusive existem vertentes doutrinárias que defendem a regularização da prática contratual do útero em substituição. Algumas das alegações destes defensores se referem ao fato de que o negócio não se relaciona com a venda de partes humanas, não é a criança ou o feto que é vendido, o negócio jurídico seria a prestação do serviço de gestação, o que, por si só, não se enquadraria na legislação penal. Estes defendem a criação de uma legislação específica para os casos de barriga de aluguel e as condições em que um negócio jurídico seria aceitável. Exemplo da discussão ética da ciência no direito são as próprias resoluções do Conselho Federal de Medicina, que tentam criar os primeiros aspectos de legalidade específica sobre a reprodução humana assistida e, em especial, o caso do útero em substituição e, de forma mais ampla, a Lei de Biossegurança. Por meio desta lei podem-se destacar algumas determinações que são derivadas das discussões da bioética, tais como: artigo 5º, § 3º, que veda a comercialização de células-tronco embrionárias, artigo 6º, inciso III que proíbe a engenharia genética em embrião humano, o Inciso IV, que proíbe a clonagem humana, artigo 24 e 25 que cominam as penas para a utilização ilegal de embriões. A legislação e as resoluções tendem a colocar alguns limites na prática indiscriminada da reprodução assistida. Conforme exposto por (PAIANO; FERRARI; ESPOLADOR, 2013), tem-se a intenção de impedir que a maternidade por substituição quando a doadora não for parente, torne-se uma mera atividade comercial, por exemplo. Seria a transformação do útero da mulher em um mero instrumento de prestação de serviço reprodutivo. Ainda, em concordância com Moreira (2016), o Biodireito, inspirado na discussão científica da bioética tem como pressuposto avaliar melhor os avanços tecnológicos e buscar humanizar os seus efeitos e consequência no plano legal e social, impondo limites aos processos biotecnológicos. O Biodireito requer normas coercitivas, embasados nos princípios da Bioética para tutelar os bens jurídicos envolvidos de forma que melhor se encaixe com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Acontece que o avanço da ciência e as demandas sociais são muito mais rápidas que o avanço do direito. 4 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A LIBERDADE DE FORMAÇÃO FAMILIAR Dentre as previsões legais sobre o tema de reprodução assistida e a cessão uterina, mais especificamente, a que merece considerável destaque é o artigo 227, § 7º, da Constituição Federal que diz “fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício deste direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”. Tem-se neste artigo a mais significativa liberalidade trazida pela constituição em matéria de formação familiar, isto é verdade, mas ainda assim, como já discorrido neste trabalho, existem as limitações que também são impostas pela constituição, por leis, costumes e moral, dentre outras normas. Entretanto, cabe ser analisado o limite desta força de dois lados, da liberdade e do controle. Até onde vai a liberdade de formação familiar e quais os limites na ciência empregados para tal? Como é sabido, o direito e as práticas sociais são correlacionados e possuem um perfil evolutivo. De acordo com Arnaldo Rizzardo (apud QUARANTA, 2010), a formação familiar e as decisões internas da família, quanto à educação, costumes, moral e outras, é livre desde que “não afetados princípios de direito ou o ordenamento legal”, assim, cabe ao Estado garantir a saúde sexual dos indivíduos e garantir acessos às técnicas que garantam o tratamento em prol da reprodução e fertilidade. Como um princípio fundamental e de dignidade à pessoa humana, Quaranta (2010), considera o assunto também fundamentada na Lei 9.269 de 1996, referente ao conjunto de ações e garantia de acesso aos tratamentos de fecundidade como garantia às previsões constitucionais sobre a limitação ou aumento da prole pela mulher, homem ou pelo casal. Neste sentido, segundo a mesma autora, o direito de acesso a técnicas de reprodução assistida consiste em um cunho negativo por parte do Estado, por este não poder proibir e também de cunho positivo, por este garantir os meios de acesso a tais práticas. As próprias Resoluções do Conselho Federal de Medicina, que versam sobre útero em substituição e reprodução assistida exteriorizam, em suas sucessões no tempo, o caráter inclusivo e evolutivo no que concerne à dignidade da pessoa humana. A primeira das resoluções, de 1992, positivava os primeiros preceitos éticos quanto à manipulação do embrião e vedação ao comércio do procedimento, mas estabelecia que a cessão uterina deveria ocorrer apenas em casos de infertilidade da mulher doadora e a cessão só poderia ocorrer entre parentes da mulher e de até o segundo grau. A resolução de 2010 inovou abrangendo a idade anterior de 35 anos para mulheres doadoras do útero, para até 40 anos, e passou a permitir a fertilização post mortem. Em 2013, a idade da mulher doadora do útero foi estendida até 50 anos, parentes até o quarto grau podem ceder o útero e ainda abriu precedentes para situações excepcionais de útero em substituição ocorrer com doadora fora da família. Esta resolução também incluiu o método para casais homoafetivos, a doação compartilhada de óvulos e a triagem genética. Em 2015, mantiveram-se os avanços incluídos nas demais resoluções e clarificou a situação de casais homoafetivos femininos, permitindo a gestação compartilhada e restringindo a doação de gametas apenas aos homens e mantendo as limitações de comercialização de material genético e avanço nas práticas de melhoramento genético seletivo. É importante ressaltar que os avanços nas resoluções tendem a incluir cada vez mais as novas possibilidades e demandas de formação familiar e seguir restringido aspectos de cunho ético quanto à manipulação indiscriminada dos embriões e comercialização desses. Segundo matéria reproduzida pelo CFM, é natural que o Conselho amplie o alcance das normas, visto que esta deve refletir os avanços na área de reprodução assistida e da própria sociedade. As mudanças nas resoluções têm o objetivo de garantir a segurança e oferecer um escopo ético para o trabalho do médico. Conforma abordado por Saldanha (2009), A dignidade é um valor intrínseco do ser humano, que gera ao indivíduo o direito deste decidir de forma autônoma sobre os seus projetos existenciais e de felicidade, com certa autonomia. Deste modo, “a dignidade é o limite e a tarefa dos poderes estatais”. Ainda, segundo o mesmo autor ordenamento jurídico brasileiro considera a família não somente pelos seus laços genéticos, mas assegura a proteção da família formada pelo afeto e comunhão de vida de seus integrantes por “colaboração, solidariedade e respeito recíproco”.  Neste sentido, decidiu-se: “Família é, por natureza ou no plano dos fatos, vocacionalmente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-se, no espaço ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas de índole privada, o que a credencia como base da sociedade”. (BRASIL, 2011) Como exemplo de liberdade de formação familiar através do método reprodutivo do útero em substituição e de sua absorção e defesa pelo Estado, pode ser citado um caso recente, veiculado pelo jornal Gazeta Online, em 17 de abril de 2017, em que uma mulher de 52 anos duas crianças gêmeas para o seu filho e seu companheiro homoafetivo. Neste caso, a avó das crianças foi quem as gerou, sendo que as gêmeas são, cada uma, filha, geneticamente falando, de um dos homens e foram civilmente registradas como filhas do casal homoafetivo, também pais biológicos. A gestora assinou um documento afirmando a não maternidade das crianças, confirmando apenas que ela foi o útero em substituição. Porém, o registro de filiação só foi possível mediante a intervenção da justiça, através de um ofício da Defensoria Pública, visto que o Cartório queria registrar a criança com o nome da mãe gestora e sem reconhecimento do pai. Conforme apresentado por Oliveira e Júnior (2016) existe de forma regulamentar o Provimento 52 de 14 de março de 2016 do Conselho Nacional de Justiça, que pretende regulamentar o registro e a emissão de certidão de Nascimento de Crianças Nascidas por reprodução assistida. De acordo com tal provimento, não é necessária qualquer intervenção judicial para a emissão de Certidão de Nascimento aos filhos gerados por técnicas de reprodução assistida, seja ao casal heteroafetivo ou homoafetivo. Antes a criança era registrada em nome da gestora, pois se entendia por mãe biológica aquela que viesse a parir a criança. Agora não mais, e para o sucesso do registro é necessário apresentar a declaração de nascido vivo do hospital e a documentação da clínica de fertilização que tenha feito o processo além de todos os outros documentos necessários para comprovar a cessão uterina legítima e a paternidade biológica dos pais requerentes. Ainda, não deverá constar no registro o nome da parturiente, que constará apenas na declaração de nascido vivo. Entretanto, de acordo com Silvera (2015) a falta de legislação específica quanto à gestação por substituição ainda traz problemas na área de filiação do registro civil, como visto no caso noticiado em exemplo, cabendo à justiça aplicar aos casos concretos princípios de direito em conformidade com ética e moral.  Para a autora a questão da filiação não pode se limitar apenas ao campo genético ou civil por adoção, a filiação deve ser entendida como o vínculo existente entre pais e filhos, decorrentes de uma relação socioafetiva, seja adotivo, institucional, ou por reprodução assistida. 5 CONCLUSÃO A discussão sobre a reprodução humana assistida pela técnica de útero em substituição é ampla, envolve temática ética, moral, social, religiosa e lega. Por não haver uma legislação específica sobre a técnica, a mesma permanece em um limbo legal em que se tem por reverência a análise de uma vasta série leis, princípios, normas, regulamentos e outros que tentam dar um mínimo de legitimidade e comportamento ético possível a pratica. A dualidade entre o devir de permitir e o dever de controlar do Estado, é perceptível. O Estado deve garantir a evolução da ciência e a liberdade de formação familiar, da mesma forma que deve proteger o próprio homem do avanço das técnicas da ciência. E é neste cenário de conflito e debate de ideias que a Bioética tem papel fundamental, sendo o ramo filosófico do pensar os limites da prática e evolução científica, inserida dentro de um contexto social, histórico e evolutivo, que dá subsídio à discussão sobre as legalidades e os limites legais de tais práticas. O Biodireito tenta positivar o que é discutido e inserido como eticamente aceitável ou não aceitável. É imprescindível, porém, que no dever do Estado através da Lei de proteger a vida social e os seus bens jurídicos essenciais, não seja suprimida a individualidade, as liberdades individuais, a liberdade de felicidade e a própria dignidade da pessoa humana que é considerada pela Constituição Federal como o princípio base à formação familiar. O cenário social contemporâneo consagrou a existência de diversas formas de composição familiar e os avanços científicos encontraram novos meios de realizar o sonho de algumas famílias, ou indivíduos, de terem seus filhos e formarem suas famílias. O direito deve ter interpretação extensiva, a fim de fazer valer o princípio constitucional da contramajoritariedade, promovendo a inclusão e regulando novas demandas sociais e novas práticas científicas, evitando assim que procedimentos sejam realizados à margem da lei e deixando espaços para interpretações vagas.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-164/o-utero-em-substituicao-a-luz-do-biodireito-e-da-bioetica/
Morte digna à luz da dignidade da pessoa humana: o direito de morrer
O objetivo do presente artigo está assentado em analisar a (in)existência do direito à morte digna, a ser invocado em casos de abreviação do sofrimento do paciente que se encontra em estado terminal ou cujas técnicas médicas sejam incapazes de eliminar o sofrimento vivenciado por aquele. A discussão envolvendo o direito à vida e o direito à morte, no que toca ao ordenamento jurídico, reveste-se de complexidade e, de maneira comum, traz para o debate concepções que ultrapassam o formalismo contido na lei. Para tanto, os valores e os princípios comuns da Bioética e do Biodireito são invocados para provocar uma reflexão acerca dos contornos éticos sobre a abreviação da vida, em hipóteses de um indivíduo estar em graves condições de saúde. Neste sentido, a abreviação da vida apresenta por escopo colocar fim ao sofrimento apresentado pelo paciente. Logo, exsurge de tal debate a eutanásia como o ato de proporcionar morte sem sofrimento a um doente acometido por doença incurável, capaz de produzir dores atrozes. Em que pese a tipificação penal existente, o debate se apresenta como necessário em decorrência da liberdade e da autonomia que o indivíduo possui de abreviar o seu sofrimento, devendo, desta feita, o Estado assegurar meios aptos para que haja uma morte digna. O método empregado foi o indutivo, auxiliado por revisão bibliográfica. [1]
Biodireito
1 INTRODUÇÃO A morte é uma condição inerente à vida humana. É sabido e esperado que todo ser vivo, uma hora ou outra, tenha suas atividades vitais encerradas, seja de forma natural ou não. Entretanto, especialmente a partir da década de 19904, vem se acalorando no meio científico e jurídico do mundo ocidental a discussão a respeito da possibilidade de se encerrar uma vida, ou de antecipar a morte de um indivíduo que esteja em graves condições de saúde e com o objetivo de colocar fim ao seu sofrimento, ou até mesmo atendendo a própria vontade do indivíduo em colocar fim a sua vida diante de tal situação e garantir-lhe o direito a uma boa morte. Conforme apresentado por Dworkin (1993), nesta década alguns países aprofundaram a questão do direito de morrer ao debate público e jurídico, ampliando assim as discussões acerca da eutanásia. Nas palavras de Houaiss (1836 apud AITH, 2007, p. 174), “a eutanásia é o ato de proporcionar morte sem sofrimento a um doente atingido por afecção incurável que produz dores intoleráveis”. Alguns estados dos Estados Unidos da América, a partir do final da década de 1980 e início dos anos 1990, passaram a identificar a possibilidade de poder a vida ser sim interrompida propositalmente. De forma mais significativa o Canadá e a Holanda, nesta mesma época, passaram a permitir que, em alguns casos a vida poderia ser encurtada pela vontade de um paciente final ou por decisão de sua família ou ainda poderia o paciente recusar-se a ser submetido a tratamento médico ou suporte vital. Na Holanda, mais especificamente, passou a não ser considerado como ato criminoso a ação do médico que viesse a praticar algum procedimento de encurtamento da vida do paciente em alguns casos identificados como passíveis de eutanásia. Vale ressaltar que estas mudanças no entendimento jurídico foram (e ainda são) acompanhadas de um forte debate político e social. Várias são as questões levantadas nestes debates, dentre elas algumas apresentadas por Dworkin (1993), tais como a possibilidade de se descobrir novos tratamentos e avanços médicos; a possibilidade de diagnósticos errados; as consequência sociais e os precedentes que esta prática poderia trazer para a sociedade; as consequências da eutanásia sobre a ética médica; até onde vai o direito de uma pessoa decidir sobre o fim de sua própria vida, ou de transferir a uma outra pessoa a capacidade de decidir sobre quando por fim à vida dela; a religiosidade sobre a vida humana, dentre outros pontos. São discussões de cunho ético, moral, social e religiosas e que são, de fato, pertinentes ao se analisar uma demanda social conhecida por direito de morrer dignamente. Trazendo esta discussão para o meio jurídico e acadêmico brasileiro, de acordo com Vaz e Andrade (2015), a dignidade da pessoa humana e o direito à vida são fundamentos básicos da Constituição Federal do Brasil de 1988 e são a partir destes princípios que emanam e que são possíveis a prática dos demais direitos. Assim, é um dos objetivos básicos da República Federativa do Brasil zelar pela vida humana. Porém, indagam os mesmos autores: “até que ponto a manutenção desmedida da vida de uma pessoa é de fato o cumprimento de seus direitos e de sua dignidade?” Existe então alguma dignidade da morte e no direito de escolher morrer e ainda no direito de auxiliar a morte do outro devido a sua própria vontade ou pela vontade de sua família?  A discussão sobre a eutanásia e sua relação com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e a conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro é assunto que merece importante análise. Deve ser considerado também os princípios e os limites adotados pela bioética, provenientes das discussões entre a relação de práticas aceitáveis entre a ciência e o meio social em que se vive (MOREIRA, 2013), que fortemente influenciam as discussões no meio jurídico, mais precisamente no campo do Biodireito onde seus reflexos são mais incisivos. No Brasil, atualmente, a prática da eutanásia ativa, passiva, indireta ou qualquer outra forma de tentar se encurtar a vida de forma proposital e voluntária é proibida pelo ordenamento jurídico nacional. A Resolução do Conselho Federal de Medicina nº. 1.805/2006 prevê a possibilidade de abreviamento do sofrimento de um paciente de morte certa e sem qualquer condição de cura ou melhora, o que para alguns estudiosos pode ser entendido como uma regulação da prática de Ortotanásia, que será abordada mais detalhadamente no decorrer deste trabalho, assim como as diferentes formas de eutanásia. Entretanto, por não haver lei específica que verse sobre eutanásia ou outras formas de encurtamento da vida, o médico que realizar tal procedimento não fica imune de eventuais ações penais por crimes contra a vida, conforme bem salientado por Aith (2007, p. 177). Em conformidade com o salientado por Melo (2015) diante da omissão da Lei Penal Brasileira em tipificar a eutanásia como crime, ou de qualquer outra legislação que verse sobre o assunto, existe no meio jurídico nacional, mais precisamente no âmbito do estudo do Biodireito um amplo debate sobre a extensão da interpretação de princípios constitucionais no que tange às liberdades individuais e de escolha, vida digna, dignidade da pessoa humana e se há espaço para estas interpretações no sentido de dar ao indivíduo o direito de escolha em autorizar o fim de sua própria vida e garantir a si uma morte digna, quando compelido por uma situação de saúde que lhe trará grande sofrimento por morte certa ou por doença incurável. 2 ORTOTANÁSIA: DELIMITAÇÕES CONCEITUAIS Maria Helena Diniz (2011, apud, GOMINHO, 2017, s. p.) entente eutanásia como a antecipação deliberada da morte de um doente em quadro irreversível ou terminal, a pedido seu ou da família diante do fato de sua incurabilidade, sofrimento e inutilidade do tratamento. Para Antônio Fernandes Rodrigues (2011 apud, MELO, 2015, s.p.) “A eutanásia, ou morte misericordiosa é a que é dada a uma pessoa que sofre de uma enfermidade incurável ou muito penosa, para suprimir a agonia demasiada longa e dolorosa”. São muitas as definições de eutanásia e todas elas levarão, em resumo, à prática da morte antecipada de alguém em grave situação de saúde ou estado terminal para cessar o um sofrimento que poderia ser prolongado desnecessariamente. A eutanásia então é o ato de levar alguém à morte por misericórdia, conforme também entende Fernando Aith (2007). Importante compreender que a eutanásia não se trata de apenas uma técnica de morte, existem diferentes técnicas de abreviação ou encurtamento da vida que são chamadas por Eutanásia. Neste trabalho, cabe explicar as definições de Eutanásia Ativa, Eutanásia Indireta, Eutanásia Passiva e mais precisamente a Ortotanásia, que serão mais relevantes para este estudo e que são comumente confundidas como um termo único por Eutanásia. Melo (2015), resume a eutanásia ativa como o procedimento em que a vida do paciente é eliminada de forma súbita, com o emprego de drogas letais ou com o desligamento de aparelhos que mantém a vida. A eutanásia ativa, então, requer uma atitude ativa por parte de um terceiro, geralmente médico, que conforme elucidado por Santos e Duarte (2016), pode se dar através da utilização de medicamentos controlados, overdoses ou injeções letais, com o objetivo de interromper a vida do paciente. Santos e Duarte (2016) também apresentam o conceito de eutanásia de duplo efeito, que seria a administração de medicação que ajuda a aliviar o sofrimento, mas que, com o tempo, esta medicação causará a morte do paciente. Assim, na tentativa de aliviar a dor do paciente e mantê-lo vivo, este morreria justamente pela administração desta técnica. A eutanásia indireta, também apresentada por Vaz e Andrade (2015) como suicídio assistido, consiste na hipótese em que o próprio paciente venha a tirar sua vida, porém, orientado e auxiliado por um terceiro, geralmente médico. Neste caso, por exemplo, o médico disporia ao alcance do paciente um medicamento letal e este tomaria a decisão de utilizá-lo por sua conta. Santos e Duarte (2016), apresentam a eutanásia passiva como a interrupção dos tratamentos até então empregados no paciente. Deste modo, o paciente vem a morrer com o tempo. Para Vaz e Andrade (2015) na eutanásia passiva, o paciente terminal não tem sua vida encerrada antecipadamente. Ela ocorre por uma atitude omissiva, por isso passiva, por parte dos médicos e a pedido do próprio paciente ou de seus familiares, para que este não seja submetido a tratamentos invasivos e desnecessários que poderiam trazer e prolongar ainda mais o sofrimento, sem qualquer expectativa de cura em uma situação em que a morte do paciente é considerada certa. Já a Ortotanásia, para Nogueira (2017), é uma forma de humanização da morte, sem abreviá-la nem prolonga-la desproporcionalmente. Neste caso a morte é considerada como morte natural e no seu tempo certo e não induzida ou antecipada. Com ou sem tratamento, a morte do paciente é considerada irreversível. Para Melo (2015) a Ortotanásia representa um processo de morte natural porque ao não interferir em um quadro de saúde em que a morte é irreversível o médico está contribuindo para que a morte siga o seu curso normal, apenas. Conforme apresentado por Aith (2007), faz-se importante ainda a distinção entre eutanásia voluntária, involuntária e eutanásia por consentimento. A voluntária é quando ocorre o consentimento explícito pelo paciente, ainda em plenas capacidades psíquicas e mentais. A por consentimento é quando um representante legal, quando o doente não tem mais consciência, autoriza a realização do procedimento. E por último, a eutanásia involuntária seria quando, apesar se não haver o consentimento de um representante legal e nem a vontade expressa do paciente ou até mesmo existe a vontade expressada em negativa pela eutanásia, mas, ainda assim o médico decide, por sua conta, realizar o procedimento. Nogueira (2017) apresenta o conceito de Distanásia, que também é interessante de compreender. É quase o sentido oposto da eutanásia. Enquanto esta busca encurtar a vida para evitar o prolongamento do sofrimento, aquela se trata de uma técnica em que o médico visa prolongar a vida de um paciente terminal, a qualquer custo, mediante técnicas médicas de efeitos inúteis, pois não irão melhorar nem curar o enfermo, trazendo ainda mais sofrimento e dor. Trata-se de um tratamento médico “fútil ou de obstinação”. Para Melo (2015) a distanásia nada mais é que o prolongamento artificial da morte e por consequência também o prolongamento do sofrimento do paciente que ao invés de garantir-lhe uma boa morte ou uma morte natural o que acabaria por “prolongar sua agonia”. No Brasil a grande discussão em torno da eutanásia paira sobre o sentido de Eutanásia Passiva e a Ortotanásia. Estes dois procedimentos, apesar de muito semelhantes, são diferentes, mas podem ser entendidas como fruto de uma atitude omissiva do agente. A Resolução do Conselho Federal de Medicina – CFM nº. 1.805/2006 traz a regulamentação da atividade médica quanto a prática de suspensão da vida. Esta, apesar de não expressa, pode ser entendida como Ortotanásia, mas também poderia ser confundida com a prática de Eutanásia Passiva. A mencionada resolução diz que é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. Deve ainda o médico esclarecer sobre quais as modalidades terapêuticas adequadas para cada caso e ainda fundamentar a decisão a cerca desta interrupção. Ao paciente também é garantido o direito de ter uma segunda opinião sobre o caso. Para Roberto Luis Luchi Demo (2010),/a prática regularizada pela Resolução CFM nº. 1.805/20116 não deve ser confundida com a.eutanásia passiva, pois, no entendimento deste, trata-se da regularização da Ortotanásia e esta significa morte certa enquanto a eutanásia passiva se traduz em ação omissiva do médico em permitir, mesmo diante de meios terapêuticos possíveis, a morte do paciente, quando a inevitabilidade da morte ainda não estaria estabelecida. Na Ortotanásia, então, o médico deixa de intervir no desenvolvimento inevitável e natural da morte. Apesar das divergências de conceitos entre eutanásia passiva e Ortotanásia, este juiz federal decidiu em favor da resolução, entendendo que não há crime de homicídio nos casos de Ortotanásia devidamente comprovados pelo médico. “Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.” (BRASIL, 2016). Entende-se, neste caso, que, não havendo mais técnicas e procedimentos médicos capazes de prolongar a vida do paciente de maneira digna, a melhor decisão a se fazer é nada fazer e garantir-lhe uma morte natural. Entretanto, alguns outros conceitos devem ser analisados, como, quem pode ser considerado um doente terminal ou um doente com morte certa e como se tomar a decisão pela aplicação de um procedimento destes? São algumas das questões iminentes que podem ser levantadas. Para Bomtempo (2011) à possibilidade da eutanásia garante respeito a autodeterminação da vontade e dignidade do indivíduo que se encontra nesta situação de saúde em que não há mais chances de se manter sua vida ou expectativa de cura. Para Genival Veloso de França (2016 apud NOGUEIRA, 2017, s.p. ), é paciente terminal aquele que não mais responde a qualquer técnica médica e terapêutica conhecida e aplicada para o caso em questão durante a evolução da doença, sem qualquer condição de cura ou prolongamento da sobrevivência do paciente. Nestes casos, cabe apenas garantir os cuidados que tragam o máximo de conforto. Este autor destaca ainda que o quadro de paciente terminal não se confunde com o quadro de coma, o qual é reversível e nem com a demência, que apesar de ser irreversível não é garantia de morte certa. Há que se considerar ainda a Resolução nº. 1995/2012, também do CFM, que versa sobre a regularização da consideração das diretivas antecipadas de vontades e desejos de pacientes que no momento de decisões sobre seus cuidados e tratamento se encontrem incapazes de se comunicar ou expressar-se de maneira livre e independente. “Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade. § 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico. § 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares. § 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente.” (BRASIL, 2012). Segundo Melo (2015), a morte de uma pessoa pode ser separada em duas situações, a saber: a morte clínica e a morte biológica. A morte clínica consiste na morte do organismo como um todo, é quando todos os sistemas orgânicos do ser deixam de funcionar de forma integrada (MELO, 2015, s.p. ). Já a morte biológica é a morte de todo o organismo vivo e seus órgãos, não há mais atividades vitais e este processo é irreversível (MELO, 2015, s.p. ). Esta é a morte em essência e é com ela que o direito brasileiro considera a cessação da personalidade da pessoa de direito, adquirida com o seu nascimento vivo. A questão da eutanásia não paira somente neste enorme abismo entre a morte clínica e a morte biológica e todos os dilemas éticos, morais, científicos, religiosos e todas as possibilidades e dúvidas que existem sobre ela, mas advém antecipadamente ao momento da morte clínica, pois existem discussões acerca do direito do paciente optar pela eutanásia ainda de forma consciente, ou até mesmo previamente a uma condição de saúde que implique nesta tomada de decisão. Independentemente do tipo de Eutanásia ou da Ortotanásia, a discussão sobre a eutanásia não decorre somente da discussão filosófica em antecipar ou não a morte, mas também sobre quais métodos, quais circunstâncias e o que ser considerado. Ora, conforme abordado por Dworkin, em seu livro “Domínio da vida”, capítulo primeiro (1993), as implicações sociais são gigantescas, podendo abrir precedentes e até mesmo contribuir com uma cultura de banalização da morte. Mas, nem por isso, o assunto deve ser deixado de lado e vale considerar as possibilidades em que se possa garantir uma morte com dignidade a um paciente, a depender do caso. 3 OS PRINCÍPIOS BIOÉTICOS E SUA ESSÊNCIA HERMENÊUTICA A eutanásia apresenta-se como tema complexo e caminha nos campos da Bioética e do Biodireito, ou seja, as ramificações das discussões no campo da moral civil e social assim como da moral religiosa em que se considera a vida humana como algo sagrado. Deworkin (1993, cap. 7), diz que talvez seja justamente este princípio sagrado da vida que traz a principal oposição à eutanásia, neste sentido, independe se a pessoa tem interesse ou direito a uma boa e digna morte, sendo a vida algo inviolável. “O investimento natural em uma vida humana é fundamentalmente mais importante do que o investimento humano e a opção por uma morte prematura” (DWORKIN, 1993, p.302.?). Todavia, este mesmo autor argumenta que, se os defensores desta visão divina sobre a vida refletissem sobre o próprio significado da vida, poderiam utilizar-se do mesmo argumento justamente para o contrário, para justificar a eutanásia, entendendo o prolongamento da vida de forma artificial como um legítimo atentado à natureza sagrada da vida humana. “Podem, plausivelmente, acreditar que prolongar a vida de uma pessoa muito doente, ou que já perdeu a consciência, em nada contribui para concretizar a maravilha natural da vida humana e que os objetivos da natureza não são atendidos quando artefatos de plástico, a sucção inspiratória e a química mantém o coração batendo em um corpo inerte e sem mente, um coração que a própria natureza já teria feito calar-se.” (DWORKING, 1993, p. 304). Já na perspectiva da moral civil e social, a crítica à eutanásia se dá pelo medo da banalização da morte, sobre a ingerência e a pressão de terceiros no direito à vida de um indivíduo e sobre o entendimento do papel do médico na sociedade, por exemplo, Dworkin (1993, passim). Segundo o autor, pessoas mais idosas e com graves doenças poderiam se sentir pressionadas a autorizar a antecipação de sua morte por se sentirem como um peso financeiro e psicológico sobre a família (DWORKIN, 1993, p. 269?). Poderia trazer consequências graves para o debate sobre a vida e a morte e, cada vez mais, haver legislações mais permissivas ao induzimento da morte de alguém. E ainda, alterar a concepção do papel do médico que salva vidas para o médico que encerra vidas, dentre inúmeras outras possibilidades. Dworkin (1993) abrange mais as implicações sociais sobre a eutanásia, pois, sendo esta considerada um homicídio e vindo o Estado a legaliza-lo, viria o assassinato legal tornar a sociedade mais insensível perante a morte? Caso positivo, alusivamente, não teria o mesmo efeito a pena de morte ou o clamor social pela pena de morte? São perguntas eloquentes e complexas que este trabalho não tem por objetivo responder, mas sim levantá-las para a ponderação crítica do assunto em questão. A análise do julgado mencionado anteriormente toma especial dimensão ao se entender o meio social em que a situação está inserida, que a prática descrita pela resolução do CFM refere-se à ortotanásia e não a uma prática de Eutanásia Passiva. Para Demo (2010), cabe analisar as considerações feitas no âmbito da Bioética ou do Biodireito para a compreensão do assunto. Neste sentido, configura-se a interpretação do que está escrito na resolução e busca-se confrontar esta norma com os princípios constitucionais de direito aos quais o ordenamento jurídico brasileiro está submetido, assim como aos anseios sociais ora vigentes. Nota-se a importância do trabalho da hermenêutica em interpretar a norma do CFM e não configurá-la com ilícitos de crimes contra a vida tipificados no Código Penal Brasileiro e entender que a regulação da ortotanásia encontra-se balizada na Constituição Federal Brasileira. Na opinião de Tereza Rodrigues Vieira (ano apud DEMO, 2010, p. xxx), a Ortotanásia não é a antecipação da morte, mas sim a morte correta em seu processo natural e em um processo de se evitar a distanásia. Conforme apresentado por Queiroz (2011) com o progresso das inovações terapêuticas e a emancipação do paciente faz-se necessária a regulação da ciência através de uma Bioética, que pode ser entendida como a discussão sobre as práticas profissionais da área de ciências e da saúde e suas implicações nas relações sociais entre os homens e também entre os homens e outros seres, com o objetivo de garantir a proteção da integridade humana sob o princípio da dignidade da pessoa humana. (SÁ; NAVES, 2009, p. 6 apud QUEIROZ, 2011). Para Dworkin (2007 apud QUEIROZ, 2011, s.p.) os princípios éticos devem ser considerados uma exigência de justiça ou equidade, ou alguma outra dimensão da moralidade . Neste sentindo da relação da Bioética com a prática da Ortotanásia ou da eutanásia em geral, cabe enquadrar a discussão dentro dos princípios que regem o pensamento bioético. A Bioética rege-se pelos princípios da não maleficência, da beneficência, respeito à autonomia e da justiça. O princípio bioético do respeito à autonomia, conforme explicitado por Queiroz (2011), refere-se ao respeito da vontade do indivíduo e seus representantes, quando cabível, respeitado também os seus valores morais, religiosos e a sua intimidade. É o reconhecimento de suas liberdades de escolha, de seus limites como pessoa desde que não venham suas escolhas prejudicar outros ou ferir princípios fundamentais de direitos. Seria a capacidade de se autogovernar do indivíduo. Para o princípio da Beneficência, o mesmo autor destaca sua característica de complacência, a prática de um ato de boa vontade para outrem. É um princípio de garantia do bem-estar através de ações positivas em busca deste fim. Seria, em resumo, fazer o bem. Este autor também detalha o princípio da não maleficência, que se refere a obrigação de não se causar dano ao paciente utilizando-se de métodos e práticas terapêuticas. São derivados de ações positivas e negativas em que, além de ter a obrigação de fazer o bem, o médico ou outro profissional das áreas de ciências e saúde deve também deixar de fazer aquilo que possa ser prejudicial, maléfico ao paciente. E por último, aborda o princípio da justiça que visa a distribuição justa e equitativa das ações médicas e científicas, dentro do que for necessário e permitido pelas normas e pelo ordenamento jurídico como um todo. A ação do profissional não pode ultrapassar os limites legais. É por meio de questionamentos éticos, pautados nestes princípios que se permite a interpretação de normas, leis e princípios com o objetivo de pensar e regular a prática da eutanásia, não só no Brasil, mas também no mundo. Como já mencionado, no Brasil através da interpretação do ordenamento jurídico a Ortotanásia é tolerada. Conforme apresentado por Demo (2010), tal procedimento pode ser aceito bom base nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana; da não tortura e não submissão a tratamento desumano; da autonomia da vontade e ademais, de leis que autorizam o paciente a recusar determinados procedimentos médicos com os quais não concorde e que reconhecem a autonomia do paciente como seu direito. Deste modo, respeita-se a vontade do indivíduo ou daquele que legalmente o representa e, assim, garantido a vontade do indivíduo em manter-se sua morte em curso natural, não há o que se falar em malefícios ao paciente, mas sim em benefícios, visto que sua morte é certa e este não quer ver prolongado seu sofrimento. Conforme exposto por Maria Elisa Villas Boas (não informado, Apud DEMO, 2010, p. 10) “Não é crime morrer em casa, ou sob cuidados que mais se aproximem dos domiciliares […] é a morte mais natural e humana, quando já não se pode evitar ou adiar a contento”. Entretanto, Demo (2010) salienta que a resolução do CFM que regulamenta a Ortotanásia não dá ao médico o poder de decidir sobre a vida e a morte de um paciente. Cabe apenas identificar, através de critérios técnicos, se há degradação ou o início de um processo de morte do paciente o qual venha a justificar a Ortotanásia. Para este juiz a referida resolução, assim como a prática da Ortotanásia, asseguram os princípios da bioética, pois permite a autonomia do paciente, obrigando que tanto o indivíduo como seu representante legal estejam envolvidos no processo, assegurando também que o médico tenha que fazer de tudo o que dispuser ao seu alcance em benefício do indivíduo e deve evitar a todo custo qualquer ação que venha a causar mal de forma proposital ao paciente. A Ortotanásia deve ocorrer em uma relação de confiança entre o paciente, a sua família e o médico. Porém, o autor salienta que a resolução não versa sobre direito penal, mas limita-se a estipular a prática medica aceitável a fim de possibilitar mais segurança ética e profissional ao médico que decida por seguir com uma Ortotanásia. Entretanto, um médico poderá vir a ser processado e responder por crime contra a vida, de acordo com o Código Penal Brasileiro, caso não venha a conseguir justificar devidamente o ato praticado. Essa distinção entre a legislação penal e a norma profissional médica não é irracional, apesar de ser crítica, pois, conforme pode ser elucidado por Dworkin (1993, p. 260) “acreditam que os médicos não devem, sejam quais forem as circunstâncias, transformar-se em assassinos. Seguindo o proposto por Melo (2015), no Brasil inexiste legislação penal específica para a prática da eutanásia, mas também não existe legislação específica que a regule. A prática da eutanásia pode ser enquadrada na tipificação de homicídio, conforme Artigo 121 do Código Penal: “Matar alguém, pena de reclusão de seis meses a 20 anos”. Todavia, a eutanásia pode ser considerada um homicídio com atenuante de pena, como explicitado no parágrafo primeiro do Artigo 121, que no caso de matar alguém por motivo de relevante valor social ou moral ou sob domínio de violenta emoção pode haver redução de pena de um sexto a um terço. Ou ainda, pode também haver enquadramento no crime tipificado no Artigo 122 do código penal “induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça” (crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio). Também há de se atentar para o Artigo 132 “expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente” (crime de perigo para a vida ou saúde de outrem). Para Melo (2015), nos casos de interpretação da lei penal com o caso concreto da prática médica, o segredo está na ponderação do comportamento da prática de eutanásia ou Ortotanásia empregada, para só assim poder ser tipificado e apenado algum eventual crime cometido. Mas, vale enfatizar, que só seria aceita a escusa de crime a configuração da Ortotanásia. Qualquer prática de eutanásia no Brasil, seja ativa, passiva ou indireta, será enquadrada como crime de homicídio ou de induzimento ao suicídio, respectivamente. Mas, ainda assim, caso o médico venha a praticar a eutanásia por motivo de comoção pela notável e irremediável agonia do enfermo em situação comprovada de prognose médica, poderá o médico ter sua pena reduzida ou até mesmo receber absolvição. Os princípios da Bioética aplicados no campo do Biodireito dão subsídio fundamental à interpretação das leis e à criação de novas normas ao se tratar de assuntos polêmicos que envolvam a vida humana perante a evolução científica e social. O direito, como sabidamente já batido, é evolutivo e toda norma deve ser criada e interpretada em conformidade com o momento histórico e cultural em que ela está inserida. Com isso, por mais que haja a possibilidade de uma determinada prática, nem sempre haverá a permissibilidade, mesmo quando se alega um bem ou um princípio de direito humano maior. Em consonância com Queiroz (2011) o ideal da bioética é a instrumentalização da forma adequada dos direitos dos homens com a constante preocupação em tutelar de forma efetiva o princípio da dignidade da pessoa humana frente aos avanços científicos, para que não se venha invocar este princípio justamente para degradar a vida e a dignidade humana. “É a necessidade de se constituir novos paradigmas de cunho ético, jurídico e social”. 4 O DIREITO À MORTE DIGNA E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA O caput do artigo 5º da Constituição Federal estabelece a inviolabilidade da vida, direito também garantido nos Artigos 227 e 230 do mesmo documento. Mas, o mesmo caput também garante a inviolabilidade da liberdade, e a saúde é tutelada como um direito social em diversos trechos da Constituição. A mesma Carta também previne o indivíduo de tratamentos desumanos, degradantes e de tortura, além da previsão da dignidade da pessoa humana em seu artigo 1º. É neste ambiente de aparente conflito entre princípios norteadores do direito brasileiro que, até então, entende a justiça que a prática da eutanásia no Brasil é considerada homicídio, ainda que atenuado e que a Ortotanásia pode ser tolerada. Traduz-se, deste modo, que o direito brasileiro entende ser a obrigação do Estado em zelar pela vida, superior ao direito individual de se optar pela morte, mesmo que um paciente venha a alegar que a sua vontade de morrer antecipadamente em virtude de sua condição de saúde venha a lhe garantir felicidade, dignidade e que o contrário disso seria uma situação torturante. Entretanto, o direito a uma morte digna também pode ser compreendido como o direito a uma boa vida. De que adiantaria o Estado garantir a vida, a qualquer custo, se neste sentido uma série de outros princípios seriam violados e se a própria manutenção da vida do indivíduo poderia estar sendo entendida por este como uma condição desumana, degradante e indigna? Tomando como exemplo a relação da eutanásia com a pena de morte, apresentada por Dowrkin (1993), a instituição ou o clamor da pena de morte parece ser muito mais plausível e aceita perante a sociedade. Seria então o direito de o Estado assassinar o criminoso, mesmo contra sua vontade individual, mais justo e digno que o direito de um indivíduo optar pela sua morte digna? Há de se entender que nenhum direito é absoluto, nem mesmo o direito à vida é absoluto no ordenamento jurídico brasileiro. No artigo 5º, inciso XLVII, é apresentada a exceção à pena de morte em caso de guerra. O artigo 23 do Código Penal apresenta as hipóteses de excludentes de ilicitude e que também se aplicam no caso de homicídio, não sendo crime o ato de matar alguém, por exemplo, em legítima defesa. Deste modo, a morte já tem no Brasil algum contorno de regularização e situações em que o homicídio pode não ser considerado como crime, mas discute-se a eutanásia como uma condição de legalização do homicídio e violação do direito à vida. Ainda em consonância com o que é tratado na obra de Dworkin (1993), a discussão sobre a eutanásia deve levar em consideração o que a pessoa entende por vida digna e a forma de vida que essa pessoa levou até o momento em que venha optar pela sua cessação. Pois o desejo do indivíduo que quer adiantar sua morte diante de uma situação de doença e sofrimento sem cura e com morte presumida, na verdade, deve ser encarado como um desejo de vida, um desejo de vida que não é mais possível ter. Então, nesses casos levando em consideração que estas pessoas, nestas condições, e que entrarão em um estado de total incompetência para responder por seus atos, devem ter o direito de escolher o seu tratamento médico mais adequado? Devem ter o direito à opção de escolher que não querem ser mantidas vivas após entrarem em determinado estado vegetativo, ou ainda mais incisivo, poderiam autorizar que terceiros venham a tomar estas decisões por eles mesmos quando já não assim o puderem? Outra importante questão a ser pensada é também verificar se poderiam pessoas, saudáveis, sem qualquer quadro clínico negativo, vir a realizar testamentos de vida expressando seus desejos quanto a uma possível antecipação de sua morte caso, um dia, incertamente, venham a se encontrar em estado de saúde grave, irreversível, incurável e com morte presumida? Até onde vai o direito do indivíduo em decidir sobre sua morte em respeito aos princípios da individualidade, da autonomia da vontade, da vida boa e digna e até onde vai poder do Estado em interferir na individualidade humana para garantir o cumprimento de princípios de direito? Mais uma vez, são questionamentos que não possuem respostas certas e nem momentâneas, mas que abrem o caminho e a mente para se discutir o direito a uma boa morte como garantia da dignidade da pessoa humana. O Princípio da Legalidade traz especial ligação com o princípio da autonomia da vontade do indivíduo, pois de acordo com o Inciso II do Artigo 5º da Constituição Federal, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei” (BRASIL, 1988). A mesma ideia de que tudo é livre de acordo com a vontade do indivíduo também é expressa, no inciso XXXIX do mesmo dispositivo constitucional, mas encontra-se aí também a garantia do Estado reprimir ou penalizar uma conduta: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (BRASIL, 1988). De acordo com Toaldo (2001), a Constituição de 1988 promoveu profundas alterações nos valores jurídicos e alterou significativamente a noção de direito privado baseado nos interesses individuais. Apesar da autonomia da vontade o direito privado também se mistura com o direito público e é papel do Estado promover a relação e a interação entre eles. O Estado ganha significativo interesse em assuntos que, ora parecem exclusivos da esfera privada, mas que também ganham contornos diante de “interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos”, como é a questão da Eutanásia, que além de realizar a vontade do indivíduo também traz significativos impactos na vida social de todos, como já levantado. Entretanto, de acordo com Santos e Duarte (2016), o direito à vida posto na Constituição Federal deve ser analisado sob duas perspectivas, a vida biológica e a vida digna. Neste sentido, ainda que havendo a vida biológica, seria cabível defender que uma pessoa tem o direito de escolher morrer devido à sua condição de saúde, a qual não o garante mais a possibilidade de uma vida digna. Nestes casos, prolongar a morte seria submeter o ser humano a condições não humanas de dor, cansaço e prolongamento de um sofrimento desnecessário no ponto de vista da dignidade da pessoa. Para este autor o indivíduo deve sim ter garantida sua autonomia, como essência de liberdade, em tomar decisões que dizem respeito à sua própria vida a partir de suas convicções. “Ser livre para decidir pela morte, quando não há mais vida, nem a garantia que vai tê-la, é a expressão mais sublime de que a autonomia da vontade ocupa espaço elevadíssimo no ordenamento jurídico, que só existe e se justifica no respeito à pessoa humana”. (SANTOS; DUARTE, 2016, s.p.). Assim, o Estado não teria então o direito de retirar do paciente o direito de morrer quando não mais o convém viver. Este direito é renunciado pela própria vontade e condições do indivíduo, que, apesar de ainda vivo, não o estaria mais se não fosse pelas condições artificiais que o mantém, ou já nem se quer possui condições de interagir com o meio e que se, lúcido estivesse, não aceitaria estar sendo mantido em tais condições e nem submetendo seus familiares a tão doloroso sofrimento, um sofrimento sem esperanças de solução. De acordo com Melo (2015), respeitar a autonomia da vontade e da dignidade da pessoa humana é entender que o paciente tem o “controle sobre o seu próprio corpo, mente e espírito”. A medicina deve ser humanizada, e diante do sofrimento e da agonia de um indivíduo que implora para morrer ou que tenha expressado tacitamente tal vontade, não se pode a medicina e a lei se prender a princípios religiosos, que as vezes podem nem ser compartilhados pelo indivíduo em questão, mas sim basear-se pela razão e pelo amor ao próximo. Para a autora, a humanidade consiste em reconhecer que o prolongamento desnecessário da vida é desumano e indigno. Entretanto, a lei é falha, a vontade do legislador é pequena, pois esbarra em muitos conceitos morais sensíveis à sociedade e em nenhum momento há uma preocupação focada no sofrimento do indivíduo ou da humanização de sua morte. Quando o direito de uma morte digna é negado a um paciente que assim a deseja, essa negativa não é feita para garantir-lhe seus direitos (os quais muitas vezes ele nem irá mais usufruir), o que está sendo garantido, neste momento, é a vontade de outros, preceitos de outras pessoas que não se encontram ali na dor e no sofrimento e que se julgam detentoras do poder de definir que, apesar de não haver mais esperanças para a vida daquele paciente ele não tem o direito de morrer, mas tem o direito de permanecer em sofrimento e agonia por tempo indeterminado. No caso da Ortotanásia, especificamente, conforme justificado em julgado por Demo (2010), sob a ótica constitucional é plenamente possível sustentar tal procedimento e não tipificá-lo como homicídio. Demo considera ainda que a resolução em nada inova no ordenamento jurídico, pois apenas busca trazer segurança e transparência para uma situação que já era praticada e corriqueira, porém “escamoteada” pelos médicos por medo, justamente pela falta de regulamentação. Para Aith (2007), o princípio da dignidade da pessoa humana possui um valor incerto e que aparentemente se volta como um princípio jurídico à proteção de todos, mesmo sobre aqueles que não possuem mais consciência de sua própria dignidade. Para o autor, merece uma discussão mais aprofundada no Brasil sobre essa relação da dignidade da pessoa humana e o seu possível direito a uma morte digna, pois é uma situação fundamental para se garantir o respeito à dignidade de uma pessoa doente em fim de vida. A resolução do CFM que regulariza a Ortotanásia já possui um viés mais humanista, ainda que restrito, ao se considerar a permissibilidade de deixar o doente morrer naturalmente ao invés de submetê-lo a um tratamento injustificável, penoso e sem qualquer possibilidade de eficácia. 5 CONCLUSÃO O princípio da dignidade da pessoa humana e todos os outros princípios a ele coligados trazem amplo poder de interpretação ao ordenamento jurídico e é neste cenário que se debate os limites das liberdades individuais, bem como os limites de interferência do estado sobre estas liberdades. O discurso torna-se ainda mais delicado e importante, quando se toca nos limites da vida e da morte, nos limites da interferência do homem sobre sua própria vida e sobre a sua consciência ou não consciência ao decidir quando e como morrer, por exemplo. São as interferências das relações sociais, da moral social, da religião, da política, da justiça, da vontade individual dentre outras mais, que enriquecem e aquecem as argumentações sobre a eutanásia. A bioética, por sua vez, tem papel fundamental em introduzir no ordenamento infralegal as regulações da prática médica profissional quanto aos procedimentos controversos à luz da justiça, como no caso da prática de Ortotanásia no Brasil. Apesar de não haver um respaldo legal sobre a prática, a citada resolução do CFM traz mais segurança ao profissional médico que assim decidir, em conformidade com o paciente ou seu representante legal, em seguir com o método. Ainda assim, este profissional não estará imune a eventuais embates com o Estado diante da justiça criminal. Do mesmo modo, a prática ética regulamentada supre a justiça nestes eventuais embates e elucidam o direito com novas concepções e visões que dão suporte ao trabalho hermenêutico da justiça e na função legislativa quando da criação de eventuais novas normas legais. Não se pode entender a discussão sobre Eutanásia de forma simplista, como a legalização de homicídio ou como a autorização e banalização da morte a qualquer tempo e custo. Deve ser entendida sim como um debate justo sobre quais as condições específicas, restritas, quais as técnicas regularizadas, procedimentos de formalização de limites para que, só assim, o direito a uma morte digna possa ser introduzido formalmente no ordenamento jurídico brasileiro, de forma séria e destinado ao seu objetivo que é garantir a autonomia do indivíduo frente à sua condição de sofrimento como forma de garantia da dignidade da pessoa humana.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-164/morte-digna-a-luz-da-dignidade-da-pessoa-humana-o-direito-de-morrer/
Não-binariedade e teoria queer à luz do direito
o presente artigo tem como objetivo, com o auxilio de revisão literária, traçar os contornos do que é gênero, e como dizer não ao sistema binário vigente é importante para a evolução no campo da sexualidade. A sociedade se encontra acomodada e acostumada a episódios de violência contra os direitos humanos e, também, contra a dignidade da pessoa humana, situações que quando ligadas ao gênero ganham contornos mais dramáticos, tendo em vista a falta de proteção e atenção para com a parcela da sociedade que vai contra os ditames heteronormativos vigentes. Dizer não a binariedade é lutar contra esta violência, e ensejar por uma real democracia de direitos, pautada na igualdade e no respeito aos demais. Desta forma, é importante entender em um primeiro momento o que é gênero de um ponto de vista novo e global, sem determinismos, e sem limitações, nesta toada a teoria queer aparece como esta nova visão, que busca desestabilizar tudo aquilo que é “certo” e criar algo novo e diferente. As diferenças sempre hão de existir, mas estas diferenças necessitam ser acolhidas e respeitadas, afinal, uma democracia em que todos são e pensam da mesma forma não é uma democracia, e impor a população uma forma de pensar e de agir, não passa e tirania[1].
Biodireito
INTRODUÇÃO No processo de evolução histórica a forma como o ser humano interage com a sexualidade, e também como se identificar muda, se transforma, sensivelmente. A sexualidade e gênero são assuntos que no passar do tempo sofreram grandes sanções, sofrendo com um processo de invisibilidade e de heteronormatização para que ambos os assuntos atendam os desígnios da maioria. O que é gênero e o seu significado durante muito tempo apenas se enquadravam em um aspecto morfológico, e binário, sem que se levassem em consideração outros aspectos do ser humano, reduzindo este apenas a seu corpo biológico. Assim, o corpo acabou se tornando a prisão do que é gênero, a prisão da pessoa, em que a sociedade cria expectativas, e espera que a pessoa aja conforme estas expectativas, e seja no jeito de falar se vestir, e de se relacionar com as pessoas. Deste modo, fugir desta expectativa significa uma quebra da “moral”, dos “bons costumes” e foge do que é “correto”, e com estes argumentos a repressão heteronormativa é “justificada” para que com métodos violentos, se corrija as pessoas com gêneros que divergem. Estas violências se estendem a vários Estados, e são perpetradas de varias formas, ferindo os direitos humanos, e a dignidade da pessoa humana. Contudo, em uma tentativa de mudar este quadro, nas últimas décadas os direitos sexuais em um escopo internacional avançaram, graças à luta de grupos LGBTIs e feministas, que buscavam e buscam igualdade de direitos e melhores condições de vida e de saúde, bem como a possibilidade de vivenciar sua sexualidade sem nenhum tipo de prejuízo ou violência. Com estes avanços surgiram várias conferências e encontros com o fito, não de regular a sexualidade ou o que é gênero, de proteger os direitos que cerca estas parcelas mais vulneráveis da sociedade, como Equality Act de 2010 do Reino Unido, Os Princípios da Yogyakarta, The Danish Civil Registration System, em que estes diplomas buscam uma proteção maior dos direitos humanos, e respeito à autodeterminação do gênero ao qual a pessoa pertence. Com a evolução da compreensão do que é gênero, a teoria queer acabou florescendo como uma forma de se entender que gênero não se resume ao determinismo biológico. A teoria não está ligada a nenhum tipo de ato imoral, e do mesmo modo não está ligado a um sistema binário. Esta teoria visa fugir de um sistema predeterminado e da dicotomia criada por este sistema binário. Neste processo a ideia heteronormativa do que é gênero é vencida, e o ser humano e sua forma de vivenciar a sexualidade são postos como pilares centrais para chegar ao que é gênero. Assim, ideias como sexo e gênero ganham novos significados e novas características dentro da vivencia da sexualidade, nesta nova visão o gênero e o sexo ganham um escopo maior e mais amplo, da mesma forma que estes têm a barreira de seus significados derrubada. Com efeito, de modo a mudar este quadro de desigualdades e de segregação, este sistema binário deve ser também revisto e abolido, pois este modo de classificação reduz a pessoa simplesmente ao seu falo. Neste diapasão, o gênero deve ser estudado e compreendido como as ações da pessoa, deste modo parte da identidade desta pessoa, que ante de ser classificado dentro de um sistema que existe para atender a vontade da maioria. A não-binariedade é um direito de toda pessoa, pois toda a pessoa tem o direito de ser quem ela deseja ser, e não apenas um objeto que deve ser dentro das engrenagens da sociedade, sociedade que só espera e deseja um homem ou uma mulher. Dizer não à binariedade significa dizer não às amarras do Estado patriarcal e heteronormatizado em que as pessoas vivem hoje, deste modo a saída é educar e desenvolver uma sociedade que realmente compreenda que respeite, e defenda os direitos humanos, e também a individualidade de cada pessoa. A população necessita deste passo para evoluir junto com a comunidade internacional, do mesmo modo que precisa desenvolver leis que possam defender, e desenvolver um modo de vida em que as pessoas não são classificadas com base em aspectos físicos, e sim pelo seu caráter, e para quem realmente são. A binariedade é uma forma de se reduzir o ser humano e seu gênero, assim para que se possa desenvolver uma sociedade e um Estado democrático de direito, é necessário levantar a bandeira contra a binariedade. 1 GÊNERO EM DELIMITAÇÃO O vocábulo gênero, bem como o conceito do que é o ser humano estão em constante mudança e construção, etapas estas que por meio de um movimento histórico e também cultural ganha horizontes que ainda que não sejam claro para todos, possuem uma melhor visibilidade, contudo ainda pode ser mais bem trabalhada. A priori, o significado do que seria gênero era estritamente ligada ao falo humano e a binariedade sexual, tal delimitação importa apenas as características físicas o individuo, desprezando demais fatores (CAMARGO, 2011, p. 19). Esta identidade de gênero ligada à identidade sexual do individuo é endossada pela ideia heteronormativa do que é gênero, desta forma há a principio uma preocupação em determinar se a pessoa pertence ao gênero feminino ou masculino (CAMARGO, 2011, p. 19). Neste contexto, vertentes como a caracterização médica e biológica ganham status de ponto final para a maioria da sociedade e que, por consequência disso, essa cria padrões e expectativas sobre os indivíduos e seus corpos (CAMARGO, 2011, p.19). “Em que pese a contraposição entre os papéis desempenhados pela mulher e pelo homem tenha sofrido atenuações, aos nascidos biologicamente homens e às nascidas biologicamente mulheres, ainda são impostos padrões “naturais” de comportamento. Assim, tanto homem quanto mulher estão sujeitos ao discurso normalizante (sic.), na medida em que devem se comportar conforme as características “próprias” de seu sexo. O gênero, portanto, coloca-se como uma forma de linguagem, que, ao moldar o comportamento dos indivíduos, pode ensejar discursos de discriminação e exclusão social” (PINHO, 2005, p. 58, apud CAMARGO, 2011, P. 17). De fato, este método de se lidar com o ser humano e esta classificação pelos ditames da maioria, expõe que as formas a qual as pessoas interagem com a sexualidade, e os valores que cercam este assunto, sofreram com um enrijecimento histórico, tornando o assunto um tabu (MISKOLCI, 2010, p. 50). Para que tal significado tenha chegado ao ponto de desprezar toda a construção do que é “ser humano”, a sociedade balizou seus ideais na cultura heterossexual, buscando a qualquer custo a hegemonia deste “valor moral”, e que para a maioria da sociedade é o “correto” (MISKOLCI, 2010, p. 50). A heteronormatização então ocorre por um processo de subalternização de outras formas de se encarar a sexualidade, em outras formas de gênero, em outras formas de pensamento (MISKOLCI, 2010, p. 50). Deste modo, por meio de técnicas de dominação e com a utilização de métodos para a vigilância, da sociedade para com aqueles que “fogem ao que é normal” o individuo passa pela pressão de não ser aquilo que é (PARAÍSO, SALES, 2013, p. 604). “O argumento desenvolvido é o de que a sexualidade, pautada na heteronormatividade, é acionada e intensamente regulada nos discursos investigados, tendo como efeito o governo da juventude. A regulação se dá por meio da tecnologia da zuação, a qual é composta por várias técnicas, como o sarcasmo, a ironia, o deboche, o repúdio, o banimento etc. No caso dos rapazes, há nos discursos uma declarada homofobia, demandando o jovem macho. Quanto às garotas, a regulação incide sobre a quantidade de parceiros nas práticas de ficar ou pegar, demandando a jovem difícil” (PARAÍSO, SALES, 2013, p. 604). Em um contexto nacional, o que é gênero ainda tem um forte vínculo com o sistema de categorias de gênero. Ainda é notável a divisão entre gênero, é a concepção de que apenas são passíveis dois gêneros e que estes têm uma forte ligação com as ideias de atividade e passividade, do macho e da fêmea (GUIMARÃES, 2012, p. 06). A ideia retrograda de que é gênero ainda tem muita força, o que torna o núcleo histórico sobre a sexualidade mais duro por causa    da regulação religiosa, social e étnicas que força a supressão de outras formas de agir e de pensar (BUSIN, 2011, apud CAMARGO, 2011, p. 15). Contudo, é necessário que a compreensão de que a concepção de gênero sofre a interferência de vários fatores que influenciam como etnia, nacionalidade, religião, classe e que transformam as dimensões de interação do individuo com a sexualidade (LOURO, 2000, p. 04). Entretanto, em um contexto fático diverso, com base da linha de pensamento ligada ao simbolismo biológico, ocorreu, então, a criação de estereótipos que surgem como uma forma de determinar o que a pessoa é e como esta deve agir, conforme o escólio de Amâncio (2017, p. 24). Neste diapasão, há uma forte “vigilância” que há muito tempo deixou de ser velada e que busca vigiar e conter os passos dados para um caminho que seja diverso daquilo que é considerado como a sexualidade correta que se encaixa com o que foi “determinado” biologicamente (LOURO, 2000, p. 18). Ações como experimentar, perguntar, ter prazer acabam por serem postas como assuntos que devem ser evitados (LOURO, 2000, p. 18), a qualquer custo para que se mantenha a ordem e a “pureza” das pessoas e de sua moral, em um processo de alienação que leva a ignorância e ao repudio ao desconhecido (LOURO, 2000, p. 17). Quando tal assunto vem à tona, formas de coação são implantadas com o fito de censurar e heteronormatizar o discurso ou tornar oculto o assunto. Métodos como “a vergonha e a culpa; experimentamos a censura e o controle” são sem escrúpulos usados para calar aqueles que já não possuem muito espaço na sociedade (LOURO, 2000, p. 18). No momento em que se trata dos assuntos sexualidade e gênero, em que as opiniões divergem, as escolhas então se reduzem ao silêncio ou a segregação (LOURO, 2000, p. 18), bem como o anonimato, que se caracteriza pelo fenômeno descrito como “armário” (ZAGO, 2013, p. 89). Não há como excluir por completo a ideia de gênero de esta matéria ter parte de seu vinculo com corpos sexuados (ANDRES, JAEGER, GOELLNER, 2015, p. 170), contudo, o escopo do falo não pode ser o único ser considerado para a concepção do gênero. O corpo, por um ponto de vista mais lúdico é o armário que separa o gênero real, o gênero ao qual a pessoa realmente pertence, e o gênero status, aquele idealizado pela sociedade com base no ser biológico. Devido ao fato de que a sociedade é baseada em um sistema patriarcal, em que há um forte domínio masculino sobre os demais gêneros, este processo de se desvencilha deste “armário”, deste gênero status, se torna difícil (WEEKS, 2000, p. 41). “Nesse sentido, o armário é profundamente ambíguo: estar dentro ou fora dele, assumir-se enquanto gay ou permanecer “enrustido”, nunca é um movimento único, unilateral, politi­camente isolado ou culturalmente individual. Assim, é provável que a não exibição das faces nas imagens dos perfis online não dependa exclusivamente de uma deci­são consciente dos usuários de permanecer dentro do “armário”. A não exibição das faces pode também depender de uma complexa rede de (im)possibilidades po­líticas e culturais de mostrar os corpos. Retomando as características da biosso­ciabilidade contemporânea, é provável que um usuário prefira mostrar seu abdome “sarado” e não sua face unicamente porque aquela é a parte mais “valorizada” de seu corpo, e não porque decidiu “espontaneamente” permanecer no “armário” (ZAGO, 2013, p. 93). Para a definição do que é gênero, se é que esta tarefa é possível, é necessário agregar valores e significados, bem como deixar velhos conceitos, preconceitos, no passado, buscando novos valores, conceitos e significados (OLIVEIRA, 2017, 117). A mudança e a quebra deste núcleo histórico rígido, que existe no Brasil bem como em outras partes do mundo, deve ocorrer, pois este é o reflexo da evolução do controle do ser humano sobre seu próprio corpo e desejos, é possível notar que parâmetros, formas e corpos mudaram (CAMARGO, 2011, p.34). Em verdade, esta mudança se espera em um mundo em que varias culturas e costumes se chocam, não seria diferente este fenômeno com o gênero, em que o choque entre o sexo biológico e o sexo psicológico acontece dentro do individuo (CAMARGO, 2011, p. 34). Este indivíduo, então, por meio de transformações internas, bem como a maneira diferenciada que este indivíduo irá interagir com sua sexualidade, são essenciais para a construção do gênero.  Para a delimitação do que é gênero deve-se ter conhecimento de que existem diferentes formas de pensar e de viver a sexualidade, que a sociedade vive um contexto histórico diferente, bem como de compreender que o sexo psicológico existe e que este interfere na construção do que é gênero, é importante entender que tudo isto é possível graças a mudança do “agir” na vida da sociedade. Deste modo, o gênero é uma reação do que o indivíduo faz, e, conceber e conceituar o significado de gênero é possível por meio de ações (BUTLER, 1990, p. 25 apud SALIH, 2015, p. 72), que mudam e flutuam sobre diferentes fatores. 2 A PERSPECTIVA DA TEORIA QUEER A discussão de assuntos como gênero, sexualidade, e outros assuntos que abrangem estes, é tratar de matérias que tangem as minorias, que não condiz com o quantitativo do contingente de indivíduos, mas sim com a aquisição de visibilidade e de direitos que ainda é muito pouca (MOTTA, 2016, p. 74). Deliberar sobre sexualidade e gênero ainda causa animosidades, pois é um meio cheio de paradigmas e de valores antiquados, e que historicamente são os mais adequados e exaltados pela maioria, levando apenas em consideração os aspectos físicos (MOTTA, 2016, p. 74). O padrão heterossexual emerge como a norma que regula a vida das pessoas, o formato perfeito ocidental de homem branco europeu e heterossexual acaba por ser o modelo que deve ser copiado e almejado pelos demais (MOTTA, 2016, p. 76). Contudo, este paradigma heteronormativo vem sendo o foco de luta e de resistência, ao passo que nem todos compactuam com este “molde” que insiste em ser estampado nas pessoas, em busca de segrega-las e classifica-las (MOTTA, 2016, p. 76). Neste diapasão, em busca de mudanças e de transformar, pensar, e criticar as formas conceituais do que é gênero, e também sobre a sexualidade, que surgiu a teoria queer que ocasionou desdobramentos importantes nesta seara. “O termo queer pode ser traduzido como estranho, excêntrico, raro, extraordinário, ridículo. Ele passa a ser utilizado por um grupo de teóricos que pensam as questões de gênero e sexualidade com base em uma perspectiva pós-crítica. […] Dessa forma, passam a refletir sobre como a sexualidade é moldada e atravessada por discursos de normalização e, trazendo para o campo da investigação, irão pensar “a dinâmica da sexualidade e do desejo na organização das relações sociais” (MISKOLCI, 2009, p. 150, apud MOTTA, 2016, p. 77). Neste ponto, a ideia de gênero se transforma de um significado ligado a determinismos e ditames biológicos, para um significado que implica na construção cultural e social do indivíduo (CAMARGO, 2011, p. 20). O vocábulo sexo também acaba por, neste processo histórico-evolutivo, ampliando seu escopo para abranger não somente características físicas, mas também performativas (CAMARGO, 2011, p. 20). Do mesmo modo, com o maior contato da sociedade com a sexualidade, com a realidade da existência de outras formas de se vivenciar a sexualidade, bem como o avanço bibliográfico nesta seara, foi- se capaz de se buscar mais que uma identidade humana, mas uma identidade de gênero, assim como, uma identidade sexual (CAMARGO, 2011, p. 20). Esse avanço só foi possível graças a vários movimentos LGBTIs e feministas, que lutaram e lutam por meio de manifestações pelos direitos na seara sexual (LOURO, 2000, p. 04), direitos não só gozados pelas minorias que lutam por eles, estes grupos lutam pelos direitos humanos em si. A teoria queer acaba por se encaixar muito bem com o atual contexto histórico, pois, a realidade mudou velozmente no campo médico, do direito, e da sexualidade estas mudanças ditaram novo ritmo à vida humana, bem como estremeceu as bases de velhos conceitos éticos, bioéticos e morais (LOURO, 2000, p. 05). Tecnologias de reprodução assistidas e em vitro, barrigas de aluguel, cirurgias para a fertilidade, ou para que a pessoa se torne estéril, a possibilidade de poder se escolher quando, e como engravidar e quantos filhos ter (LOURO, 2000, p.05), bem como o desenvolvimento de métodos contraceptivos. A conectividade por meio de métodos eletrônicos, em que os indivíduos compartilham as vidas, informações e características físicas em busca de um parceiro os parceira do mesmo sexo, ou a que se adequa as suas características de gênero (ZAGO, 2013, p. 92), são apenas algumas mostras que exemplificam as mudanças históricas que ocorreram na seara da sexualidade. Entretanto, mesmo com todas estas mudanças, uma forte objeção à sexualidade e as matérias que a envolvem, como gênero, ainda pela sociedade em geral que se utiliza de argumentos como a democracia e a vontade majoritária para justificar a heteronormatização e a estigmação de grupos vulneráveis da sociedade (RIOS, 2006, p. 94). A sociedade esquece que no processo democrático e de direito a vontade de minorias devem ser levadas a analise e serem respeitadas e aplicadas para a melhor fruição dos direitos humanos, é necessário que os diretos fundamentais sejam respeitados, como liberdade e a dignidade da pessoa humana, e compreender que a vontade da maioria não é absoluta (RIOS, 2006, p. 94). Deste modo, é necessário que com o respeito aos direitos fundamentais, bem como com a compreensão da sociedade dos direitos inerentes as minorias, será possível se desenvolver um ambiente propicio para que as pessoas possam expor suas opções quanto à sexualidade e gênero sem nenhum tipo de retaliação ou violência. Para o desenvolvimento do que é gênero o desenvolvimento de uma sociedade neste formato, pautada no respeito aos direitos humanos e sexuais, é importante, pois o gênero é um ato, é performativo, em que o indivíduo faz e desenvolve seu gênero (BUTLER, 1990, apud SALIH, 2015, p. 69). E este aspecto performativo não se estende apenas a ideia de gênero, como também alcança a construção cultural do que é sexo, que na verdade como argumentado por Judith Butler ambos, gênero e sexo, se tratam da mesma coisa não havendo uma distinção, pois ambos não possuem características permanentes (BUTLER, 1990, apud SALIH, 2015, p. 71). Assim, sexo e gênero devem ser interpretados por seus escopos pluridimensionais que abrangem vários elementos “como o genético, o morfológico, o hormonal, o psicológico e o social, abrangendo, inclusive, comportamentos das pessoas” (CAMARGO, 2011, p. 21). Apesar da apelação e da forçosa interpretação “moral” do que é sexualidade e gênero, em que deve ser respeitado aquilo que é “natural” e o que é vontade da maioria (RIOS, 2006, p. 95). Além disso, o próprio entendimento do que o “natural” é facilmente desestabilizado pela própria natureza em casos de que a pessoa não possui uma classificação possível dentro do entendimento binário do que é sexo e gênero (SALIH, 2015, p. 71). Contudo, mesmo que a ideia de gênero fuja deste padrão binário de macho e fêmea, o gênero ainda está limitado quanto a sua liberdade de escolha, porque, o indivíduo apenas pode escolher dentro do escopo que lhe é apresentado, a própria escolha de um gênero deve estar conformada pelo motivo deste individuo estar inserido em uma determinada cultura (BUTLER, apud SALIH, 2015, p. 72). Nesta interpretação a pessoa acaba por vestir o gênero que esta a disposição desta, a pessoa pela sua própria conveniência muda aquilo que preexiste, e depois este individuo utiliza, e performatiza esta escolha (BUTLER, 1990 apud SALIH, 2015, p. 73). “A despeito disso, Judith Butler problematiza a noção segundo a qual o sexo é colocado num lugar pré-discursivo (sic.), como natural, realidade sobre a qual age a cultura. Para a autora, não se pode definir gênero como a interpretação cultural do sexo previamente dado, de forma neutra. O gênero seria performativo, constitui a identidade de gênero pelas próprias expressões de gênero. Nesse sentido, é preciso questionar a maneira pela qual os próprios sexos são estabelecidos, de acordo com uma lógica binária e de exclusão, que reflete na própria construção do gênero, numa experiência discursivamente condicionada” (BUTLER, 2003, apud CAMARGO, 2011, p. 21). A ideia de que existe uma limitação quanto à escolha de gênero pelo motivo de que a pessoa está inserida em uma determinada cultura ou pelo motivo de que existem opções preexistentes que fogem a realidade binária, parece uma um ponto que ignora os avanços da globalização e do contato de outras culturas e de diversos modos de se interpretar a sexualidade e o gênero. Os avanços com meios de comunicação, como a Internet, permitiram não só uma melhor visibilidade de pessoas que possuem os mais variados gêneros, bem como permitiu que pessoas ampliassem seu contato com diferentes cultuaras e que se fosse possível se relacionar com esta cultura e com indivíduos adeptos deste diverso modo de viver (ZAGO, 2013, p. 86).  Assim sendo, será que a escolha de gênero é realmente é limitada aquilo que é apenas disponível? Se para a autora a ideia de que um gênero e sexo são formas performativas, e que, no entanto não está condicionada a uma preexistência binária, é necessário que se entenda que também não é limitada a criatividade humana para que possa desenvolver e criar formas de si mesmo. Mesmo que esta mudança seja baseada em um valor antigo, a variação deste não é a mesma coisa que fora outrora, e sim é algo novo e algo que terá uma performance diversa. Neste diapasão, o gênero não pode ser limitado, pois assim o fazendo e perigoso que se desenvolva um novo tipo de regime binário, que considere apenas algumas formas como gênero, e as demais como formas deturpadas de gênero. É necessário lembrar que a teoria queer busca desestabilizar normas que impõe como deve ser a sexualidade e o gênero, o objetivo não é criar novas formas de imposição, e recordar que as bases e estruturas que englobam gênero e sexualidade estão constantemente mudando (PARKER, 2000, p. 103). 3 A NÃO-BINARIEDADE À LUZ DOS TRATADOS INTERNACIONAIS Em um primeiro momento, o ser humano desde o seu nascimento passa por um processo classificatório com base em seu sexo morfológico, levando apenas em consideração seu aspecto biológico, pois, neste primeiro contato, o ser humano ainda como um infante só possui esta característica para uma determinação de gênero (CAMARGO, 2011, p. 22). Neste primeiro contato, o sexo jurídico é determinado para fins de registro do recém-nascido, mas estes efeitos se estendem além desta fase da vida da pessoa, e de suas capacidades jurídicas, a sociedade como um todo espera um determinado modo de agir e de pensar, seja no âmbito da sexualidade, seja no âmbito legal (CAMARGO, 2011, p. 22). O sexo da pessoa acaba por ser uma das formas para que, na sociedade, se possam agrupar as pessoas em categorias binárias, criando uma forma de identificação em massa, dividindo as pessoas em masculino e feminino, ignorando as diversas características que englobam gênero e sexualidade (CAMARGO, 2011, p. 22). Desta forma, este sistema binário exclui e segrega os indivíduos e, por fim, acaba por obriga-los a se encaixarem em uma das opções disponíveis, cabendo à pessoa esconder ou se adaptar ao que lhe é imposto (LOURO, 2000, p. 18). Contudo, cabe a luta e recordar que como seres de direito e que vivem em uma “Democracia de Direitos”, e neste diapasão a liberdade aparece como  direito fundamental para a humanidade. Deste modo, se tratando de direito como a liberdade e dignidade, todos os seres humanos são livres e iguais em direitos e em dignidade, também sendo todos dotados da capacidade de gozar deste s direitos humanos e não sendo permitida a distinção para que tais direitos sejam usufruídos (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, p. 04-05). Entretanto, ainda é possível se constatar que varias nações ainda violam os direitos humanos, ou quando se trata de direitos sexuais ou de gênero estes são ignorados ou violados, causando a propagação de desigualdades sócias, violência e condições de vida insalubres (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 06). “Entretanto, violações de direitos humanos que atingem pessoas por causa de sua orientação sexual ou identidade de gênero, real ou percebida, constituem um padrão global e consolidado, que causa sérias preocupações. O rol dessas violações inclui execuções extra-judiciais (sic.), tortura e maus-tratos, agressões sexuais e estupro, invasão de privacidade, detenção arbitrária, negação de oportunidades de emprego e educação e sérias discriminações em relação ao gozo de outros direitos humanos. Estas violações são com frequência (sic.) agravadas por outras formas de violência, ódio, discriminação e exclusão, como aquelas baseadas na raça, idade, religião, deficiência ou status econômico, social ou de outro tipo” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 06). Neste sentido, foram desenvolvidos, apenas recentemente, legislações e conferencias cujo enfoque é os direitos sexuais, bem como os assuntos que tangem esta matéria, como gênero, liberdade sexual, igualdade, direitos no âmbito da saúde e educação voltadas para o melhor aproveitamento sexual (SOUZA, 2010, p. 4.907). Os Princípios da Yogyakarta, por exemplo, trás uma visão de identidade de gênero, em que trata esta identidade como a “experiência interna, individual e profundamente sentida que cada pessoa tem em relação ao gênero, que pode, ou não, corresponder ao sexo atribuído ao nascimento” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 09-10). Assim, o gênero acaba por ser aquele que é experimentado, exposto e atuado pelo indivíduo, sendo assim fruto de uma gradativa evolução da pessoa, e que pode sim fugir da ideia binária de gênero. A sociedade esta inserida em um sistema em que a heterossexualidade é imposta, de uma forma em que as pessoas devem se encaixar dentro da norma binária de qualquer maneira, por meio de uma convenção social da maioria (SALIH, 2015, p. 71). E este sistema não se demostra o meio mais eficaz de expor a verdadeira identidade do individuo. Neste sentido, Butler exemplifica esta distancia da realidade por meio de Herculine Barbin, que foi um /uma hermafrodita do século XIX, e que não se encaixava dentro desta classificação binária, e que foi forçada a se encaixar em uma de duas opções que a sociedade lhe impôs (BUTLER, 1990 apud SALIH, 2015, p. 71). Por fim, este sistema é apenas corporificado, fugindo completamente da ideia do que são sexo e gênero que devem ser construídos, e não simplesmente impostos. Com a finalidade de mudar este aspecto que legislações vêm mudando e assimilando o direito a determinar a que gênero pertence e dando a oportunidade de mudar seu registro se necessário (PEDERSEN, 2006, p. 442). Bem como proporcionando proteção a esta mudança, e protegendo os indivíduos que dizem não a imposição deste sistema binário, protegendo-os da discriminação (UNITED KINGDON, 2010, p. 07). A questão de não haver binariedade, não se resume simplesmente a não pertencer a dois gêneros preestabelecidos, o que também é parte da oposição da binariedade, mas também consiste em proteger a liberdade, a autonomia, a igualdade e a privacidade sexual do individuo, que tem o direito de ser aquilo que ele realmente é, sem prejuízos e preconceitos (WAS, 2000, s. p.). 4 A NÃO-BINARIEDADE, A IDENTIDADE DE GÊNERO E O DIREITO BRASILEIRO Em um contexto nacional, tanto a sexualidade quanto gênero são assuntos extremamente ligados ao sistema binário de classificação, sendo que, gênero se resume, e está, estritamente ligado as características biológicas do indivíduo (GUIMARÃES, 2012, p. 06). As identidades de gênero, para a maioria, se resumem entre homem e mulher, macho e fêmea, dividindo as pessoas nesta classificação e criando expectativas quanto ao seu modo de agir e de pensar, reprimindo qualquer forma de fuga deste sistema (GUIMARÃES, 2012, p. 06). Deste modo, o ideal criado de homem que deve ser sempre viril e ativo, e da mulher que deve ser pura e honesta, passiva e propriedade de seu marido, mostra muito sobre quais valores o pais foi construído, como o machismo, e a segregação de gêneros (GUIMARÃES, 2012, p. 06). Infelizmente, graças a este senário nacional sexualidade e gênero acabam por ser assuntos que, em muitos casos, não são devidamente tutelados, pois de certo modo são ainda muito nebulosos para a compreensão da maioria, devido principalmente pela falta de dialogo. Neste quadro de insuficiência, o sexo biológico acaba por assumir o papel principal para que se agrupem os gêneros em dois polos, o masculino e o feminino, sendo este “discurso dicotômico, binário e excludente”, somente restando à pessoa a se enquadrar nestes dois polos (PERES, 2001, apud CAMARGO, 2011, p. 22). Contudo, como já dito anteriormente, não cabe apenas ao sexo morfológico ser objeto intrínseco para a determinação de uma identidade de gênero (CAMARGO, 2011, p. 23), para a formação de um uma sociedade que possa presar pelos direitos fundamentais o não-binárismo deve ser uma constante. Ademais, o Brasil quanto o assunto sexualidade, é uma nação muito atrasada, que não acompanha a evolução internacional na seara dos direitos sexuais, e que possui legisladores que se recusam em discutir a sexualidade e gênero no âmbito jurídico (SOUZA, 2010, p. 4.909). Com base em afirmações e dogmas religiosos, é notável que certas regressões na seara dos direitos humanos e sexuais são permitidas, em busca da proteção de uma moral “coletiva” (SOUZA, 2010, p 4.909). Assuntos como aborto, exploração sexual, doenças sexualmente transmissíveis, a desigualdade entre gêneros (neste caso não somente entre homem e mulher, mas como todas as formas de gênero), a discussões destes assuntos acabam sendo “abafadas” para a “proteção” de valores e costumes que não podem prosperar em uma sociedade que presa pela dignidade da pessoa humana, e que respeita os direitos humanos (SOUZA, 2010, p. 4.909). Neste sentido, é necessário o desenvolvimento de direitos que possam proteger a integridade e a liberdade das pessoas, acima de preceitos fundados apenas na religião, e costumes machistas que buscam a heteronormatização dos gêneros em um sistema binário. A lei Brasileira possui em sua Constituição de 1988, lei que visão tutelar os direitos fundamentais e individuais, como o artigo 1º que visa à proteção da dignidade da pessoa humana (SOUZA, 2010, p.4.907), e proteger esta dignidade implica em criar condições para que esta pessoa possa viver de maneira digna sendo quem ela é, e protegendo seu mínimo existencial (WEBER, 2013, p. 198). O artigo 3º, inciso IV, do mesmo diploma legal que prevê a proteção do bem de todos sem nenhum tipo de distinção ou discriminação (SOUZA, 2010, p. 4.907), artigo este que encontra-se em consonância como a Declaração dos Direitos Humanos, na qual tutela o mesmo tratamento de igualdade quanto a propagação de qualquer direito ou beneficio, em que as pessoas devem ser tratadas com a devida igualdade. Além destas existem muitas outras leis que tratam ou regulam os direitos que versam sobre gênero e sobre sexualidade, entretanto estas ainda não são suficientes para que se possa falar em igualdade de direitos e igualdade entre gêneros (SOUZA, 2010, p. 4.907). 5 CONCLUSÃO A sociedade neste meio século que se passou experimentou diversas mudanças na área da sexualidade e na forma de se encarar o gênero, entretanto, este ainda é um assunto de difícil acesso, e aceitação no seio familiar, nas escolas, e nas conversas entre amigos, etc. A sexualidade e gênero acabam por ser assuntos alvo de escarnio e repudio pela sociedade, seja pela defesa de uma “moral” deturpada, ou por um fanatismo religioso. E o motivo desta barreira ter se desenvolvido em torno do gênero e do sexo esta arraigada ao binarismo sexual defendido pelo discurso mais conservador da sociedade, e que detém a força necessária para que este quadro não mude. E a própria população mantem e deseja que este quadro não mude, seja pela censura, pela discriminação, a heteronormatização é um processo que é passado de geração em geração criando um ciclo, e um vinculo, de ódio entre as maiorias e as minorias. De fato diversos fatores ao longo da historia contribuíram para que agora se tenha uma maior visibilidade do que é gênero e de suas identidades, sejam nas lutas, seja pelo enfrentamento das doenças e mazelas que atormentam a sexualidade, as minorias vem combatendo a ignorância e a violência de modo inteligente. De fato fruto desta busca incessante por conhecer o que é gênero que a teoria queer foi desenvolvida, não somente para definir, mas para dizer que aquilo que está “definido”, aquilo que é “certo”, mas para indagar que “dois” não é a quantidade de gêneros que existem. O objetivo da teoria queer é problematizar e desestabilizar as ideias formadas sobre gênero e dizer que a ideia de não-binariedade é o futuro para uma sociedade que realmente preza pela igualdade. Além disso, a ideia de binariedade implica não somente em forçar uma adequação entre os demais gêneros aos dois atribuídos biologicamente pela maioria, como também mostra o abismo que existe entre homens e mulheres, e na visível segregação sexual que s viveu, e ainda se vive na sociedade. O estado patriarcal, a falta de dialogo e de educação na área da sexualidade é refletido pela falta de preparo familiar e pelo descontrole de doenças sexualmente transmissíveis, e o preconceito, demonstra o total despreparo da população quando se trata de direitos e educação sexual. Os tratados, leis, e conferencias são criados em torno do assunto para ajudar a sociedade a lembrar que existem sim algumas lacunas no que tange a direitos para gênero e sexualidade, contudo a “base “ já existe e está esculpida nos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Todavia, raramente se é lembrado que pessoas que possuem um gênero que foge ao binário é humano, estas pessoas que possuem o direito universal de ser quem são e de gozar de uma vida digna, são privados marginalizados, massacrados, humilhados e invisibilizados. A pergunta é, há solução para esta situação? E a resposta muitas vezes fica abafada pela falta de iniciativa, do medo de repressão e pela “vergonha” de ser quem é, porem gênero é “fazer” algo, “ser”, deste modo a liberdade de gênero é a resposta para um futuro mais humano e menos dividido.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-164/nao-binariedade-e-teoria-queer-a-luz-do-direito/
Valores da bioética para o biodireito e a prosperidade humana
É possível dizer que o biodireito é novo campo disciplinar e doutrinário e vem sendo construído e pautado nos valores éticos e morais, que permeiam a busca pela criação de um conjunto ou sistema de normas morais que regule a correspondência entre direitos morais e obrigações morais sobre temas tão caros à humanidade como a utilização de terapias genéticas ou clonagem, dentre outros. Todavia, os Direitos Humanos podem auxiliar o biodireito a resolver os conflitos hermenêuticos, considerando-se inicialmente a transição do discurso ético para a norma jurídica que são vistos como fonte importante para a atividade hermenêutica dos casos concretos, visto que as decisões que devem ser tomadas na área das ciências da vida, da mesma forma, as orientações jurídicas, obrigatoriamente, devem atentar para essas indicações.
Biodireito
1. INTRODUÇÃO A ética da vida, além de ser denominada Bioética, oportuniza a análise de diversas preocupações voltadas ao estudo da tecnociência e seu regramento e que, aliada aos Direitos Humanos, vem a refletir contemporaneamente um novo paradigma que deve conduzir a interpretação sobre o conjunto normativo e doutrinário em que são especificamente vinculados ao campo da biotecnologia, seus avanços e incertezas. Nesse contexto, a análise da bioética, naturalmente, deve estar baseada em valores que transcendem qualquer análise material e econômica da vida e da dignidade da pessoa humana, inclusive, contrapondo-se a ela quando afronte esses valores. Assim, além de destacar-se como uma área interdisciplinar e defrontar-se com avanços teóricos e práticos, necessários para suas realizações, não pode de maneira alguma desprezar o Direito e suas limitações. Frente aos avanços tecnológicos, o direito deve dar respostas efetivas às transformações, sem perder seu principal valor fundamental e sua razão de existir que é o próprio homem e a organização da sociedade, pautado nos princípios da Bioética que constituem os elementos necessários para eficácia e compreensão da proteção dos direitos humanos e fundamentais, visto que esses direitos legitimam e orientam o Biodireito. Importante trazer a cadeia de fatos e revelações que fizeram a sociedade aproximar-se do tema água e os reflexos das mudanças climáticas para suas vidas. Perceba que a ocorrência do processo de mudanças climáticas, principalmente aquelas devidas ao aquecimento global induzido pela ação humana, foi, pela primeira vez, alertada na década de 1950, ou seja, passa longe de ser novidade para a humanidade. E, inclusive, já no final do século XIX foi levantado a possibilidade de aumento de temperatura devido a emissões de dióxido de carbono, anúncio que para os céticos parecia algo muito distante da realidade da população global. Ocorre que ao longo dos anos 1980 cresceu a preocupação de pesquisadores ligados a questões ambientais com o impacto dessas mudanças sobre ecossistemas, até porque causou verdadeira histeria global o pessimismo das previsões anunciadas. Isto posto, foi na década de 90 que foram desenvolvidos modelos que permitiram, de um lado explicar a variabilidade de clima ocorrida ao longo do século e de outro lado, avaliar a contribuição de componentes naturais (vulcanismo, alterações da órbita da Terra, explosões solares, etc.) e antropogênicos (emissão de gases do efeito estufa, desmatamento e queimadas, destruição de ecossistemas, etc.) sobre estas variações. Se por um lado a visibilidade dada às mudanças globais tem permitido a retomada da agenda ambientalista em sua versão mais ampliada, a visão catastrofista e globalizante sobre essas mudanças pode gerar um sentimento de impotência ou mesmo insensibilidade frente a mudanças que podem parecer inexoráveis. Além disso, esse debate carrega problemas intrínsecos relacionados às diferentes linguagens e interesses de pesquisadores, empresários, gestores e sociedade civil. Certo é que o debate é urgente e merece atenção global, posto que não mais atingiria este ou aquele país, dada a magnitude do meio ambiente e suas perspectivas. Longe de pretender obter um consenso entre esses atores sociais, esse texto tem como objetivo principal avaliar, em um cenário de mudanças climáticas e ambientais em escala global, suas incertezas para o Brasil, bem como contribuir para a identificação de recursos que podem ser utilizados para desenvolver uma rede de diagnóstico, modelagem, análise e intervenção sobre as repercussões dessas mudanças sobre as condições de saúde da população brasileira no século XXI. Tendo como base este preâmbulo introdutório, segue-se o estudo da água e suas implicações para esta e futuras gerações. 2. TENDÊNCIAS E INCERTEZAS ADVINDAS DA ÁGUA Em primeiro lugar é importante destacar que o clima da Terra esteve, desde sempre, sujeito a mudanças, produzidas por ciclos longos ou curtos, que estão registrados na história da Humanidade. Uma importante discussão que vem sendo travada nos fóruns acadêmicos sobre clima diz respeito à parcela atribuível desses fenômenos às mudanças climáticas globais, já que uma parte dos fenômenos atmosféricos se deve ao aumento do efeito estufa, outra parte é inerente de ciclos naturais. Os primeiros registros sistemáticos de temperatura datam da década de 1850 e a análise histórica desses registros permite reconhecer algumas tendências de aumento da temperatura média do planeta. Esse aumento vem acompanhando o processo de industrialização e de emissão de gases resultantes da queima de combustíveis fósseis. A recuperação de dados mais remotos sobre o clima da Terra tem sido possível através da análise da composição de testemunhos de gelo do Ártico e Antártica. O aumento do efeito estufa, causado pela acumulação de gases, produziu um acréscimo de um grau Celsius na temperatura média ao longo do último século. Ressalta-se que o efeito estufa existe mesmo antes do aparecimento do homem na Terra, sendo responsável por efeitos benéficos, como a filtragem de raios solares, a estabilização da temperatura da atmosfera e ciclagem de gases essenciais para a vida. As mudanças climáticas podem ser entendidas como qualquer mudança no clima ao longo dos anos, devido à variabilidade natural ou como resultado da atividade humana. O aumento nas emissões de gases estufa poderá induzir um aquecimento da atmosfera, o que pode resultar em uma mudança no clima mundial a longo prazo. As mudanças climáticas refletem o impacto de processos socioeconômicos e culturais, como o crescimento populacional, a urbanização, a industrialização e o aumento do consumo de recursos naturais e da demanda sobre os ciclos biogeoquímicos. A Amazônia, por exemplo, vem exercendo um papel de tamponamento de variações de temperatura devido à grande quantidade de água circulante e da evapotranspiração. A diminuição da sua cobertura vegetal nativa produziria efeitos de difícil previsão sobre todo o planeta, já que haveria uma excedente de água e calor a ser redistribuído por todo o planeta. Alterações nos padrões de temperatura e precipitação acarretam necessariamente em mudanças de composição e localização de biomas, além de causar mudanças nas práticas agrícolas[1]. Por outro lado, essas alterações de uso da terra promovem alterações de ciclos de nutrientes, água e calor. Esses processos de retroalimentação das mudanças climáticas globais são raramente considerados nos modelos de previsão. Para o Brasil, alguns cenários de alterações climáticas são destacados por pesquisadores e é de conhecimento público a repercussão de alguns eventos: El Niño-Oscilação Sul (ENSO) mais intensos, secas no Norte e Nordeste e enchentes no Sul e Sudeste; diminuição de chuvas no Nordeste; aumento de vazões de rios no Sul; alteração significativa de ecossistemas como o mangue, Pantanal e Hileia Amazônica[2]. Não há como separar o efeito desses fenômenos climáticos dos processos de ocupação que vêm sofrendo essas regiões. Na Amazônia, o desflorestamento causa uma diminuição da capacidade de retenção de água de chuva e um aumento proporcional do escoamento superficial dessas águas pelos rios. Em suma, aumenta a variabilidade da vazão de rios. Essa mudança de regime de rios pôde ser sentida pela ocorrência de enchentes na mesma região da Amazônia, poucos meses após o período de seca. Também do ponto de vista da termodinâmica, o processo de aquecimento global pode ser assumido como uma acumulação de calor, não só pela atmosfera, mas também na água e solo. Essa energia pode ser mobilizada e dissipada de forma rápida e concentrada, gerando eventos extremos. Essa é uma possível explicação para o aumento da frequência e intensidade de furacões no hemisfério norte. As grandes cidades se caracterizam pela geração de calor e a sua cobertura por construções diminui a percolação de água de chuva, e aumenta o fluxo ascendente de ventos, o que as torna vulneráveis para efeitos de aquecimento e enchentes. Em resumo, mais que causar o aumento global de temperatura, esses processos, conjugados às alterações de uso da terra, podem aumentar a amplitude de variações de temperatura e precipitação. No Brasil, alguns estudos indicam que o semi-árido do nordeste, norte e leste da Amazônia, sul do Brasil e vizinhanças são afetados de forma pronunciada pelo fenômeno ENSO. Na região sul ocorre um aumento da precipitação, particularmente durante a primavera do primeiro ano e no fim do outono e início do inverno do segundo ano. O norte e o leste da Amazônia, bem como e o nordeste do Brasil são afetados pela diminuição da precipitação, principalmente no segundo ano, entre fevereiro e maio, quando se tem a estação chuvosa do semi-árido. O sudeste do Brasil apresenta temperaturas mais altas, tornando o inverno mais ameno. Nas demais regiões do país, os efeitos são menos pronunciados e variam de um episódio para outro, entretanto, não menos importantes. 3. O EXEMPLO DO BIOMA AMAZÔNIA A Amazônia legal tem sofrido nas últimas décadas significativas mudanças nos padrões de uso e cobertura do solo, através de intenso processo de ocupação humana acompanhado de pressões econômicas nacionais e internacionais. A Amazônia perdeu aproximadamente 17% de floresta nativa nas últimas três décadas. A complexidade da Amazônia, um bioma único, que acomoda quase 13 milhões de brasileiros e uma "floresta urbanizada", nos apresenta um desafio imenso para decifrá-la[3]. Compreender o mosaico de processos, em diferentes escalas no tempo e no espaço, responsáveis pelas mudanças de uso e cobertura da terra na região, observados através da dinâmica dos padrões espaciais de áreas desmatadas ,é fundamental. A interação de modelos de uso e cobertura mais realistas com os modelos de clima, observando as diferentes escalas, a heterogeneidade do espaço amazônico, suas diferentes expressões culturais e suas peculiares formas de configuração e uso do território, é essencial para os estudos das relações entre clima, ambiente e saúde. A Amazônia são muitas Amazônias e, por isso, constitui um grande, porém crucial desafio, em tempos de mudanças globais e suas implicações para as doenças infecciosas e a vigilância em saúde de base territorial no século XXI. Vários fatores políticos, econômicos e sociais pressionam os ecossistemas resultando no desmatamento e, consequentemente, na queima de biomassa. As várias dimensões envolvidas na questão têm provocado um constante debate sobre as causas do desmatamento. A construção de estradas, a expansão da pecuária, a crescente extração de madeira, o aumento intensivo da agricultura de monocultivos, a fraqueza das instituições constituídas, a mobilidade da população, o sistema de aviamento tradicional desde o século XIX na Amazônia baseado na violência e ilegalidade e as novas e velhas redes sociais nos apresentam um quadro complexo de atores, processos e padrões de desmatamento e emissões na Amazônia brasileira. A complexa interação destas forças tem produzido um padrão de atividades econômicas que tem sido responsável por emissões de gases e partículas de aerossóis para a atmosfera, através da queima de biomassa em áreas de pastagem, cerrado e florestas primárias[4]. A identificação da influência humana na alteração do clima é um dos principais aspectos analisados. Para o clima global, a Floresta Amazônica tem como uma de suas características um intenso metabolismo que resulta em fonte natural de gases traço, partículas de aerossóis, compostos orgânicos voláteis e vapor de água para atmosfera global. A grande disponibilidade de radiação solar somada à expressiva quantidade de vapor de água na atmosfera são características que favorecem uma alta reatividade química atmosférica na região tropical.  A maioria dos estudos enfatiza a ameaça que as queimadas representam para a Floresta Amazônica acelerando as mudanças climáticas. As queimadas alteram os ciclos hidrológicos nas regiões tropicais, reduzindo o volume pluviométrico, e a composição química e física da atmosfera. Também podem reduzir a radiação incidente na superfície devido à grande carga de aerossóis, podendo ter implicações na produção primária dos ecossistemas vulneráveis.  4. PROBLEMAS DE SAÚDE ADVINDOS DO PREJUÍZO NA ÁGUA Acredita-se que os problemas de saúde humana associados às mudanças climáticas não têm sua origem necessariamente nas alterações climáticas. A população humana sob influência das mudanças climáticas apresentará os efeitos, de origem multi-causal, de forma exacerbada ou intensificada. Muitas são as pesquisas, tendo como foco as questões de saúde pública, que tentam se relacionar com as mudanças climáticas. As pesquisas em saúde geralmente alertam para fatores relacionados às alterações climáticas que afetam a saúde humana, mas geralmente não são desenvolvidas com este objetivo. As mudanças climáticas podem produzir impactos sobre a saúde humana por diferentes vias. Por um lado impacta de forma direta, como no caso das ondas de calor, ou mortes causadas por outros eventos extremos como furacões e inundações. Mas muitas vezes, esse impacto é indireto, sendo mediado por alterações no ambiente como a alteração de ecossistemas e de ciclos biogeoquímicos, que podem aumentar a incidência de doenças infecciosas, tratadas nesse documento com maior detalhe, mas também doenças não-transmissíveis, que incluem a desnutrição e doenças mentais. Deve-se ressaltar, no entanto, que nem todos os impactos sobre a saúde são negativos. Por exemplo, a alta de mortalidade que se observa nos invernos poderia ser reduzida com o aumento das temperaturas. Também o aumento de áreas e períodos secos pode diminuir a propagação de alguns vetores. Entretanto, em geral considera-se que os impactos negativos serão mais intensos que os positivos. As consequências desse aumento da variabilidade e o aumento de eventos climáticos extremos são de difícil previsão para a saúde pública. As flutuações climáticas sazonais produzem um efeito na dinâmica das doenças vetoriais, como por exemplo, a maior incidência da dengue no verão e da malária na Amazônia durante o período de estiagem. Os eventos extremos introduzem considerável flutuação que podem afetar a dinâmica das doenças de veiculação hídrica, como a leptospirose, as hepatites virais, as diarréias, etc. Essas doenças podem se agravar com as enchentes ou secas que afetam a qualidade e o acesso à água. Também as doenças respiratórias são influenciadas por queimadas e os efeitos de inversões térmicas que concentram a poluição, impactando diretamente a qualidade do ar, principalmente nas áreas urbanas. Além disso, situações de desnutrição podem ser ocasionadas por perdas na agricultura, principalmente a de subsistência, devido às geadas, vendavais, secas e cheias abruptas. As condições atmosféricas podem influenciar o transporte de microorganismos, assim como de poluentes oriundos de fontes fixas e móveis e a produção de pólen. Os efeitos das mudanças climáticas podem ser potencializados, dependendo das características físicas e químicas dos poluentes e das características climáticas como temperatura, umidade e precipitação. Estas características definem o tempo de residência dos poluentes na atmosfera, podendo ser transportados a longas distâncias em condições favoráveis de altas temperaturas e baixa umidade. Estes poluentes associados às condições climáticas podem afetar a saúde de populações distantes das fontes geradoras de poluição. As alterações de temperatura, umidade e o regime de chuvas podem aumentar os efeitos das doenças respiratórias, assim como alterar as condições de exposição aos poluentes atmosféricos. Dada a evidência da relação entre alguns efeitos na saúde devido às variações climáticas e aos níveis de poluição atmosférica, tais como os episódios de inversão térmica, aumento dos níveis de poluição e o aumento de problemas respiratórios, parece inevitável que as mudanças climáticas de longo prazo possam exercer efeitos à saúde humana a nível global. As emissões gasosas e de material particulado para a atmosfera derivam principalmente de veículos, indústrias e da queima de biomassa. No Brasil, as fontes estacionárias e grandes frotas de veículos concentram-se nas áreas metropolitanas localizadas principalmente na Região Sudeste, enquanto a queima de biomassa ocorre em maior extensão e intensidade na Amazônia Legal, situada ao norte do país. Quanto mais próximo for o local de exposição aos focos de queimadas, geralmente maior é o seu efeito à saúde. Mas a direção e a intensidade das correntes aéreas têm muita influência sobre a dispersão dos poluentes atmosféricos e sobre as áreas afetadas pela pluma oriunda do fogo. Se os ventos predominantes dirigirem-se para áreas densamente povoadas, um número maior de pessoas estará sujeito aos efeitos dos contaminantes. As condições sociais como situação de moradia, alimentação e acesso aos serviços de saúde são fatores que aumentam a vulnerabilidade de populações expostas aos episódios das mudanças climáticas, que somados à exposição a poluentes atmosféricos, poderá apresentar efeitos sinérgicos com agravamento de quadros clínicos. Em áreas sem ou com limitada infra-estrutura urbana, principalmente em países em desenvolvimento, todos esses fatores podem recair sobre as populações mais vulneráveis, aumentando a demanda e gastos de serviços de saúde. 5. DOENÇAS EM RAZÃO DO DESCASO COM A ÁGUA Diversas doenças, principalmente as transmitidas por vetores, são limitadas por variáveis ambientais como água, temperatura, umidade, padrões de uso do solo e de vegetação. As doenças transmitidas por vetores constituem, ainda hoje, importante causa de morbidade e mortalidade no Brasil e no mundo. O ciclo de vida dos vetores, assim como dos reservatórios e hospedeiros que participam da cadeia de transmissão de doenças, está fortemente relacionado à dinâmica ambiental dos ecossistemas onde estes vivem. A dengue é considerada a principal doença emergente nos países tropicais e subtropicais. A malária continua sendo um dos maiores problemas de saúde pública na África, ao sul do deserto do Saara, no sudeste asiático e nos países amazônicos da América do Sul. O aquecimento global do planeta tem gerado ainda uma preocupação sobre a possível expansão da área atual de incidência de algumas doenças transmitidas por insetos através da água. Porém, deve-se levar em conta que são múltiplos os fatores que influenciam a dinâmica das doenças transmitidas por vetores, além dos fatores ambientais (vegetação, clima, hidrologia). As doenças transmitidas por vetores, mais frequentes nos países de clima tropical, aparecem como um dos principais problemas de saúde pública que podem decorrer do aquecimento global. Vários modelos matemáticos foram construídos a fim de prever as consequências do aumento da temperatura sobre a malária, por exemplo. Um grupo de doenças infecciosas podem ser fortemente afetadas por mudanças ambientais e climáticas, são as doenças de veiculação hídrica, que têm no saneamento sua principal estratégia de controle. Desde as primeiras intervenções de saneamento de grandes cidades no fim do século XIX, houve redução significativa de indicadores como a mortalidade infantil e a ocorrência de epidemias. No Brasil, tem-se observado um aumento gradual da cobertura dos serviços de abastecimento de água, que alcança hoje 91,3% da população. O processo de urbanização impõe as grandes redes de abastecimento de água como solução para o suprimento doméstico de água. Os excluídos desses sistemas, isto é, aqueles que se utilizam de poços e pequenos mananciais superficiais, podem obter água em quantidade e qualidade adequadas fora do perímetro das cidades. Mas nos ambientes de grande adensamento populacional essas soluções individuais apresentam grandes riscos de doenças devido à contaminação dessas fontes de água. Ao mesmo tempo em que aumenta a cobertura dos sistemas de abastecimento de água, permanecem altas as incidências de diversas das doenças de veiculação hídrica no Brasil, como a esquistossomose, hepatite A, leptospirose, gastroenterites, entre outras. Esses grandes sistemas são vulneráveis a mudanças ambientais. Há diversos relatos de surtos de doenças de veiculação hídrica transmitidos pelo sistema de distribuição de água no mundo. A expansão destes sistemas, neste caso, pode atuar também como meio de amplificação de riscos. A decadência dos serviços públicos de saneamento na Rússia tem promovido um aumento de riscos associados à distribuição de água devido à precariedade destes sistemas[5]. O sistema de abastecimento, neste caso, funciona mais como veículo de difusão de agentes infecciosos que como fator de proteção das populações. A existência de uma geração de pessoas moradoras de grandes cidades que nunca tiveram contato com alguns agentes infecciosos transmitidos pela água pode tornar esses surtos acentuados, do ponto de vista epidemiológico, e graves, do ponto de vista clínico. A água, bem maior e tão valorosa, por vezes, torna-se o grande vetor de doenças e suas consequências são catastróficas. Perceba que países em abundância de águas consomem menos, posto que a falta de saneamento básico torna seu consumo inviável. Os principais problemas enfrentados hoje pelos sistemas de abastecimento de água no Terceiro Mundo estão ligados à vulnerabilidade e intermitência destes sistemas, mais do que a sua cobertura. A intermitência do regime de abastecimento, por sua vez, permite a intrusão de agentes patogênicos através da água contaminada nas redes de distribuição. Nesse sentido, o aquecimento e as mudanças ambientais globais podem ter consequências sobre as doenças de veiculação hídrica, aumentando a vulnerabilidade desses sistemas. Esse cenário de universalização precária dos serviços de saneamento pode agravar os riscos das populações servidas por esses sistemas. O aumento da variabilidade, tanto da qualidade quanto da quantidade de água nos mananciais, pode afetar gravemente o funcionamento dos sistemas de abastecimento de água. Esses sistemas são sujeitos à entrada de micro-organismos e à produção de surtos de doenças de veiculação hídrica. Além disso, acidentes, como o rompimento de barragens em mananciais de água, a danificação da rede ou de reservatórios de água e uma pressão de consumo devido ao aumento de temperatura podem levar a um colapso dos sistemas de abastecimento. Mesmo em países onde o saneamento é universal e de bom funcionamento estão sendo propostas medidas para aumentar a flexibilidade e capacidade de adaptação desses sistemas frente às mudanças climáticas e ambientais, por meio do aumento do estoque de água nos domicílios e nas cidades, bem como a busca de fontes alternativas de suprimento. 6. REALIDADE PRÓSPERA SÓ COM ATITUDES VISIONÁRIAS A importância de reflexões sobre a água encontra frente a um grande desafio. As mudanças climáticas ameaçam as conquistas e os esforços de redução das doenças transmissíveis e não-transmissíveis. Ações para construir um ambiente mais saudável poderiam reduzir um quarto da carga global de doenças, e evitar cerca de 13 milhões de mortes prematuras. Do ponto de vista epidemiológico, se as mudanças climáticas representam uma série de exposições a diversos fatores de risco, a causa mais distal dessas exposições é a alteração do estado ambiental devido à acumulação de gases do efeito estufa. Isso significa que não é possível a curto prazo evitar essas exposições. As modificações que se possam promover para alterar esse quadro no nível global podem consumir décadas para se obter um efeito estabilizador do clima. Portanto, o setor saúde deve tomar medidas e intervenções de "adaptação", para reduzir ao máximo os impactos via ambiente que, de outra maneira, serão inevitáveis. Essa adaptação deve começar por: discussões intersetoriais, uma vez que as ações (inclusive de luta contra a emissão de gases e redução do consumo) dos outros setores que afetam as ações do setor saúde; investimento estratégico em programas de proteção da saúde para populações ameaçadas pelas mudanças climáticas e ambientais, como sistemas de vigilância de doenças transmitidas por vetores, suprimento de água e saneamento, bem como a redução do impacto de desastres. Por outro lado, os determinantes das mudanças climáticas globais podem somente ser superados a longo prazo, com medidas de "mitigação". Também nesse caso, o setor saúde pode ter um papel importante. Deve-se ressaltar que o modelo de desenvolvimento e a própria produção de energia causam mudanças climáticas, mas também problemas de saúde através da poluição do ar, que resulta em mais de 800 mil óbitos por ano; acidentes de trânsito, que causam 1,2 milhões de óbitos por ano e a redução da atividade física, que resulta em 1,9 milhões de óbitos por ano. Isto significa que uma mudança na infra-estrutura de produção, consumo e circulação pode representar uma redução de emissões de gases efeito estufa, por uma parte, e por outro lado, a diminuição de várias causas importantes de mortalidade[6]. O mundo vem passando por mudanças que não estão limitadas apenas a aspectos climáticos. Paralelos aos processos de mudanças climáticas, vem se acelerando a globalização (aumentando a conectividade de pessoas, mercadorias e informação), as mudanças ambientais (alterando ecossistemas, reduzindo a biodiversidade e acumulando no ambiente substâncias tóxicas) e a precarização de sistemas de governo (reduzindo investimentos em saúde, aumentando a dependência de mercados e aumentando as desigualdades sociais). Os riscos associados às mudanças climáticas globais não podem ser avaliados em separado desse contexto da água. Ao contrário, deve-se ressaltar que os riscos são o produto de perigos e vulnerabilidades, como costumam ser medidos nas engenharias. Os perigos, no caso das mudanças globais, são dados pelas condições ambientais e pela magnitude de eventos. Já as vulnerabilidades são conformadas pelas condições sociais, marcadas pelas desigualdades, as diferentes capacidades de adaptação, resistência e resiliência. Os eventos globais atingem sobremaneira a maioria da população da terra, daí a sua importância e relevância. O tema bate a porta de todo e qualquer ser humano do planeta. Uma estimativa de vulnerabilidade das populações brasileiras apontou o Nordeste como uma região mais sensível a mudanças climáticas devido a baixos índices de desenvolvimento social e econômico. Essas avaliações são baseadas no pressuposto de que grupos populacionais com piores condições de renda, educação e moradia sofreriam os maiores impactos das mudanças ambientais e climáticas. No entanto, as populações mais pobres nas cidades e no campo têm demonstrado uma imensa capacidade de adaptação, uma vez que já se encontram excluídas de sistemas técnicos. Se a vulnerabilidade é maior entre pobres, não se pode afirmar que a parcela incluída e mais afluente da sociedade esteja isenta de riscos, ao contrário, sua capacidade de resposta (imunológica e social) é mais baixa. A possível expansão de áreas de transmissão de doenças não pode ser compreendida como um regresso de doenças como a malária, febre amarela, dengue, leptospirose, esquistossomose entre outras. Ou melhor, a possibilidade de retorno dessas doenças se dá sobre bases históricas completamente distintas daquelas existentes no século XIX. As transformações sociais e tecnológicas ocorridas no mundo nas últimas décadas permitem antever que essas doenças adquiriram, ao longo dessas décadas, outras características, além dos fatores biológicos intrínsecos. A possibilidade de prevenir, diagnosticar e tratar algumas pessoas e excluir outras desses sistemas aprofundou as diferenças regionais e sociais de vulnerabilidades e transformou as desigualdades sociais num importante diferencial de riscos ambientais. Cabe ao setor saúde não só prevenir esses riscos fornecendo respostas para os impactos causados pelas mudanças ambientais e na água, mas atuar na redução de suas vulnerabilidades sociais, através de mudanças no comportamento individual, social e político, por um mundo mais justo e mais saudável. Ao que parece, em simplória análise, o direito, assim voltado a organizar as liberdades decorrentes das dimensões biotecnológicas que, sem cessar, despontam, bem como voltado à sua função maior de revisor e guardião de valores fundamentais da esfera humana, se estrutura e opera sob sua nova ordem, vale dizer, sob a denominação de biodireito. E o duo inicial promovido pelo bio e pela ética, se pluraliza, se reforça e se redesenha neste viés jurídico novo, disponibilizado à garantia da preservação da dignidade humana e da dignidade da própria humanidade. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS As preocupações com as condições ambientais alcançam segmentos da esfera social, política e econômica, no momento em que os problemas ambientais exigem reflexões sobre a utilização dos recursos da natureza em todos os países, industrializados e em desenvolvimento. Não é mais segredo que os recursos hídricos do planeta estão se esgotando gradativamente e que, além da poluição dos rios e dos mananciais, o consumo irresponsável e sem fundamentação sustentável no desenvolvimento econômico é um fator relevante na redução da água. Nunca se falou tanto em gestão ambiental, em preservação da natureza, nem se buscou educar a humanidade para olhar para trás e tirar exemplos dos próprios erros cometidos; todavia, a água potável no planeta continua diminuindo. O que poderá a humanidade esperar no desenrolar deste fato? Quais são as perspectivas de reversão o desse quadro de saúde pública? Qual a responsabilidade do indivíduo no papel de protagonista de uma história na qual destrói suas próprias fontes de vida? Essas questões deveriam arder na consciência de milhões de pessoas da mesma forma como arderão no bolso de cada um, no momento em que a água custará caro demais para ser paga; a tendência é que o capitalismo seja norteado por uma competitividade primária – a de manutenção – quando então as empresas reconhecidas como éticas e responsáveis terão preferência na escolha dos compradores e consumidores. Sobre a questão da escassez da água no planeta, aceleram-se as publicações com conotação de alerta, de conscientização, pesquisas e relatos sobre as alterações climáticas que influenciam nas nascentes, as chuvas exageradas que destroem encostas, entre outras mudanças que têm sido registradas pela mídia nacional e internacional. É a água e, mais especificamente a sua crescente escassez, aliado ao desenvolvimento sustentável, o tema do estudo. Questionou-se: será que a preocupação manifestada por autoridades de diversas ordens sobre a escassez de água no planeta procede? É urgente a necessidade de investigar porque a preocupação com a questão da escassez da água vem ganhando importância nas discussões sobre o meio ambiente em todas as nações e em muitas entidades. Objetiva-se aumentar a consciência acadêmica acerca da questão da escassez de água no planeta e qual o nível dessa conscientização. Certamente, ao que parece, o biodireito irá se deparar com outras situações, tão complexas quanto as até a presente data vivenciadas, mas o que não se pode perder é sua dimensão voltada para os valores do homem, para a ética da espécie, para os direitos da vida e direitos humanos, não se esquecendo nunca que o senso de humanidade deve ser preservado sempre. Por meio do direito, na sua dimensão mais nobre, nos valores construídos pelos Direitos Humanos, inúmeros os caminhos para alcançar a sustentabilidade e consciência ambiental de máxima grandeza.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-164/valores-da-bioetica-para-o-biodireito-e-a-prosperidade-humana/
Benefícios da triagem embrionária e a lei brasileira frente aos procedimentos que envolvem vidas humanas
O crescente uso de tecnologias reprodutivas no Brasil está relacionado à infertilidade e também ao adiamento da maternidade para após os 30 anos. Apesar de ser mais acentuado no segmento das mulheres de nível socioeconômico mais elevado, esse adiamento também ocorre entre as mulheres das classes sociais menos favorecidas.  A triagem embrionária destina-se a seleção de embriões geneticamente saudáveis, que vem com objetivo de apontar doenças hereditárias e desordem genética, antes que sejam colocados no útero. Com isso, síndromes que passam de geração para geração podem ser abolidas com a escolha de um embrião usando a técnica proposta. O Procedimento é feito através de testes genéticos antes de implantar o embrião no útero Espera-se, com isso, uma diminuição dos riscos de doenças genéticas e um aumento das taxas de implantação em fertilização in vitro e seu posterior sucesso na gestação e saúde do bebê. É um procedimento que tem por finalidade obter embriões saudáveis livres de má formações, síndromes e doenças genéticas.
Biodireito
INTRODUÇÃO: Demandas surgem e envolvem valores e princípios jurídicos quando tratamos de reprodução assistida, tais como a vida, a personalidade, a dignidade da pessoa humana, a ética dentre outros. As técnicas de reprodução assistida estão sendo utilizadas em países desenvolvidos, bem como no Brasil. Apesar disso, não temos um conhecimento mais detalhado da extensão dessa questão tanto do ponto de vista regulatório como de suas implicações sociais, éticas e jurídicas que são muitas. Enquanto não houver lei específica, clínicas de Reprodução Assistida seguirão se expandindo e oferecem diversos tipos de serviços, sendo estes procedimentos voltados à vida e sua modelagem conforme os casais procuram com a esperança de sanar problemas de infertilidade e até mesmo moldar um bebê com características físicas pré-determinadas pela biópsia embrionária. Justo por vivermos em um momento onde não há fiscalização no país e grandes batalhas jurídicas estão sendo travadas para resolver questões como o direito ao uso dos embriões congelados, o destino de embriões geneticamente defeituosos, o descarte de material não utilizado, a questão de doação de gametas anônima e limitada por região a fim de evitar reprodução entre pessoas que possam vir serem filhos do mesmo doador. São muitos os dilemas enfrentados pelos pesquisadores e profissionais da área, a intenção muitas vezes é melhoramentos e acaba sendo interpretado de forma errada pelo público leigo. Há um desvio de informações e intervenções bem influentes na crítica quando tratamos de vidas humanas, porém o objetivo do artigo é expor as finalidades da triagem embrionária e a legislação brasileira e suas barreiras quanto aos procedimentos. 1. TRIAGEM REALIZADA EM EMBRIÕES E TÉCNICAS UTILIZADAS Técnica também é conhecida por PGD (preimplantation genetic diagnosis), biópsia embrionária ou CGH (hibridização genômica comparativa), a PGD analisa os genes que trazem em seu conteúdo doenças hereditárias, o PGS analisa as alterações cromossômicas que podem ser geradas de forma espontânea ou quando foram identificadas alterações no cariótipo em um dos progenitores. “A biópsia do embrião humano deve ser considerada como o equilíbrio entre a retirada de células para uma análise genética segura e eficiente somada à preservação do potencial de implantação do embrião ¹’(A. De Vos, C. Staessen, M. De Rycke, W. Verpoest, P. Haentjens, P. Devroey, et al. Impact of cleavage‐stage embryo biopsy in view of PGD on human blastocyst implantation: a prospective cohort of single embryo transfers Hum Reprod, 24” (2009), pp. 2988-2996) Na reprodução assistida usa-se de três métodos para diagnóstico: A primeira técnica consiste em retirar o primeiro corpúsculo polar estruído pelo oócito. Também se pode fazer a triagem com o blastômero do embrião em estágio de clivagem sendo esta a segunda e mais bem sucedida. A terceira ocorre pela retirada de células do trofoectoderma (TE) de blastocistos no quinto dia de desenvolvimento. Assim, conforme a biópsia de escolha haverá alteração do material biológico a ser usado para extração de DNA.5–8 1.1. O USO CORRETO DA BIÓPSIA EMBRIONÁRIA E SEUS DESVIOS Esta triagem é realizada para fins de excluir doenças genéticas e deformações, síndromes, anomalias e trazer um ser humano saudável, incluindo a exclusão dos defeitos monogênicos, as condições ligadas aos cromossomos sexuais e desiquilíbrios cromossômicos tanto os numéricos como os estruturais: considera-se que o diagnóstico pré-implantacional com o intuito de evitar doenças transmissíveis é eticamente aceitável afinal não há nenhum tipo de discriminação e sim de uma forma de prezar a saúde humana. É possível remover uma ou duas células de um embrião no estágio de 6 à 10 múltiplas células sem comprometê-lo, para que o material genético destas células possa ser analisado e estes embriões são submetidos à triagem no estágio pré-implantacional, no terceiro dia de desenvolvimento, a zona pelúcida ‘’(grossa camada glicoprotéica que envolve o ovócito e confere aos gametas femininos uma alta especificidade. [3] Ela funciona como barreira, permitindo que apenas espermatozoides da mesma espécie tenham acesso ao ovócito, e é responsável por impedir a poliespermia, para que espermatozoides adicionais não penetrem no óvulo)’’ pt.wikipedia.org Neste ponto, o embrião ainda está envolvido por uma membrana glicoprotéica, a zona pelúcida, e, para remover qualquer célula, esta membrana deverá primeiro ser perfurada. Isto pode ser conseguido tanto usando um meio de cultura acidificada que “dissolve” a zona pelúcida no local onde é aplicado quanto o método mais conveniente  um orifício pode ser feito com laser, permitindo que uma micro pipeta de vidro seja inserida para extrair a célula Os profissionais que trabalham na área devem agir com ética e expor ao paciente que feito PGD com intenção de escolha do sexo representa uma forma de discriminação, e a escolha de características externas é uma forma de eugenia negativa.  Esta escolha ou sexagem é também conhecida por FISH um avanço para identificação do sexo em embriões humanos, “ela utiliza sondas de DNA marcadas com haptenos fluorescentes frente a sequências específicas dos cromossomos sexuais, que se desejam identificar; mais tarde, sua aplicação se estendeu a outros autossomos responsáveis pelas principais aneuploidias. Com o FISH, fragmentos específicos de DNA podem ser modificados quimicamente ou enzimaticamente e, desta forma, uma sonda de DNA é formada. Medicina Reprodutiva – Dr. Fábio Eugênio © 2011” Quando o FISH foi introduzido, peças específicas de DNA forma marcadas radiativamente, mas o refinamento do método tem feito possível o uso de certas moléculas ou substâncias fluorescentes que marquem o DNA. Fragmentos específicos são complementares ao alvejado no DNA. Um híbrido é formado, sendo possível identificar o fragmento alvo. Para as pessoas consideradas sadias, há muitas descobertas que não representam vantagem alguma e nem despertam curiosidade, enquanto para os portadores de problemas de saúde, o sucesso nas pesquisas científicas pode representar uma esperança única de cura e vida saudável. Há possibilidade de mapear as características físicas do embrião nesta biópsia o que acaba ferindo a legislação pertinente no que tange a dignidade do ser humano e diversidade cultural. Sem dúvidas os laboratórios trabalham conforme suas próprias diretrizes e portarias, não havendo uma legislação que puna a sexagem embrionária sem fins investigatórios de doenças genéticas, automaticamente ela será usada para escolher também as características do bebê, ou quem sabe somente para isso. Onde não há limites acaba dando espaço para este tipo de procedimento que foi apenas um exemplo usado no meio das manipulações biotecnológicas. 2. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA NO TRATO DA TRIAGEM EMBRIONÁRIA A lei n.º 11.105/05, atual Lei de Biossegurança, foi a primeira a tratar destes procedimentos limitando muito o uso de embriões para pesquisas e ao Biodireito cabe definir e normatizar os efeitos da evolução biotecnológica sobre estes novos procedimentos e propostas que a biotecnologia vem ofertando com o passar dos dias. A Lei de Biossegurança aprovada pelo Congresso Nacional em 2005 foi alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), proposta pelo então Procurador da República Cláudio Fonteles, por entender que a norma viola o direito à vida e à dignidade da pessoa humana, uma vez que de acordo com vários especialistas em bioética a vida humana inicia-se a partir da fecundação, gerando assim mais empecilhos para as pesquisas e procedimentos em reprodução assistida. O Conselho Federal de Medicina (CFM) a utilização do sêmen de um homem que já faleceu em processos de Reprodução Assistida, desde que ele tenha autorizado, ainda em vida, este uso. No Brasil, já foi relatado um caso envolvendo a fertilização pós-morte. O Código Civil brasileiro reconhece os direitos de filiação das crianças nascidas por inseminação porém há divergência entre os direitos sucessórios dos herdeiros nascidos com inseminação póstuma. O Supremo decidiu, por seis votos a cinco, que a Lei de Biossegurança não fere a Constituição Federal. Em seu voto, tais foram as palavras do ministro Marco Aurélio de Mello: “Desculpem-me a expressão, mas o destino de todos esses embriões seria o lixo sanitário. Dá-se-lhes, portanto, uma destinação nobre, não vejo qualquer ofensa à dignidade humana o uso de pré-embriões inviáveis ou congelados, que não teriam como destino senão um lamentável descarte”. Após este pronunciamento os cientistas começaram confiar mais no desenvolvimento de pesquisas e práticas relacionadas ao assunto. Nota-se que desde a primeira Lei aprovada até o momento o progresso foi pouco perto das revoluções da ciência, não percebemos um acompanhamento páreo com todo avanço científico biotecnológico que se disponibiliza todo dia com propostas atraentes para casais que desejam ter filhos saudáveis. Em 2015, o Conselho Federal de Medicina (CFM) estabeleceu novas regras para a medicina reprodutiva no Brasil, finalmente garantindo aos casais homoafetivos o direito de ter acesso às técnicas de reprodução humana assistida para ter filhos Desde a criação da Lei da Biossegurança, foi-se limitado de maneira enorme o uso destes embriões, onde segundo a lei 11.105 de 24 de março de 2005 em seu artigo 5º que nos traz no inciso II que sejam embriões congelados há três anos ou mais, na data da publicação desta lei, ou que, já congelados na data da publicação desta lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir do congelamentos temos que observar ainda mais, segundo o parágrafo 1 deste artigo deve-se ter consentimento dos genitores para a pesquisa. Mas já modificaram a questão citada no parágrafo acima, agora está estipulado o prazo de 5 anos para os embriões permanecerem criopreservados. Pelo texto antigo, as clínicas não poderiam descartar estes embriões já fecundados, e a nova resolução modifica este quesito tratando que a partir de agora, a clínica só deverá manter os embriões congelados ou “criopreservados”, no jargão médico por cinco anos. Depois disso, eles podem ser descartados ou doados para a ciência a escolha será feita pela mãe na contratação do serviço. Caso ela queira manter os embriões por mais de cinco anos, terá de pagar por isso. 2.1. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA NO TRATO DE DOAÇÃO DE GAMETAS O Conselho Federal de Medicina (CFM) atualizou em abril de 2013, as normas éticas sobre os procedimentos de reprodução assistida frente aos  avanços científicos das técnicas dos tratamentos de subfertilidade, e ainda a evolução e globalização cultural da própria sociedade, os conselheiros do CFM procuraram tornar a resolução mais abrangente, atual e igualitária, facilitando o acesso de pacientes aos benefícios do processo. Os gametas doados são obtidos através das pacientes submetidas à fertilização in vitro com idade não superior à 35 anos e a doação deve ser feita de forma voluntária sem fins lucrativos, devendo preservar o anonimato. Porém houve uma modificação relacionada aos critérios de doação, trata-se do caso de uma doadora com produção acima do normal de óvulos pode vir a doar parte destes gametas em troca de ajuda financeira para as medicações usadas na estimulação e procedimento de FIV, o custo então seria assumido pelas receptoras. Em relação aos gametas masculinos antes não havia limite de idade para ser doador, agora foi estipulado idade máxima de 50 anos para doar para bancos de gametas, esta decisão foi modificada mediante estudos que comprovam que filhos de pais mais velhos tendem desenvolver problemas de saúde 3  CÉLULAS TRONCO, TIPOS, E EMBRIÕES. As células tronco embrionárias totipotentes são as encontradas nos primeiros estágios embrionários, entre o terceiro e quarto dia, quando já está com aproximadamente 32 células. Este tipo de célula tronco é capaz de se diferenciar em qualquer tipo de tecido e órgão, inclusive a placenta e anexos embrionários. Já as células tronco embrionárias pluripotentes são encontradas entre o quinto dia após a fecundação, onde estas têm o mesmo poder de diferenciação das totipotentes, mas com uma exclusão da placenta e anexos embrionários. Este tipo pode ser encontrado no estagio de aproximadamente 64 células do embrião. As células-tronco e sua utilização e liberação para pesquisas pode trazer grandes avanços biotecnológicos para medicina reprodutiva, é extremamente eficaz em pesquisas, as retiradas de embriões, onde por sua idade e poder de diferenciação são usadas quando liberadas pela justiça. Podemos citar também, mas por forma de estudos recentes, as células  tronco obtidas do cordão umbilical e da placenta. Estudos revelam que ambos são ricos em células-tronco, entretanto não se sabe qual o potencial de diferenciação destas para que se possa obter uso. Na utilização de células-tronco, especialmente as embrionárias, são feitas com embriões na fase do blastocisto, uma esfera com aproximadamente cem (100) células, há o sacrifício do embrião in vitro para retirar as células tronco ofendendo assim o direito à vida. Porém abre espaço para discutir o que seria uma vida, a partir de que momento um embrião passa a ser uma vida. Uns chamam de pré-embrião os primeiros meses de formação, outros consideram a partir da concepção, durante os primeiros catorze dias depois da fecundação há uma corrente que defende que não há vida ainda, é possível a gemelização, as células são totipotentes, não aparece o esboço do sistema nervoso central, e por isso alguns pensam que até então não se pode falar de indivíduo, pois neste período não houve a implantação do embrião no útero materno, podendo ocorrer aborto espontâneo por alguma razão intrínseca. 4. DOENÇAS QUE A TRIAGEM EMBRIONÁRIA PODE ELIMINAR VINDO A TRAZER UM SER HUMANO SAUDÁVEL A técnica para prevenir esses problemas é o PGD – Diagnóstico Genético Pré-implantacional. A taxa de embriões não informativos reduz o que caracteriza um diagnóstico para cada embrião superior a 99%, havendo então um perfeito mapeamento de todo o embrião. São inúmeras as  síndromes e doenças genéticas ligadas ao sexo citamos a talassemia uma doença que evolui com anemia grave, Fibrose Cística e Doença de Tay-Sachs doença neurológica degenerativa que evolui invariavelmente para o óbito antes dos 4 anos de vida, todas essas doenças são herdadas em caráter autossômico recessivo, ou seja, se ambos os pais forem portadores do gen, o risco de terem um bebê afetado é de 25% (1/4). Como o gen anômalo é freqüente nos grupos citados, na maioria das vezes a história familiar é negativa.  A análise das células embrionárias identificam as alterações que levam à doença e separar os embriões que não são portadores para serem transferidos ao útero materno Doenças genéticas raras causadas por genes recessivos ocorrem com maior frequência em filhos de casamentos consangüíneos. O risco para doença recessiva para filhos de primos de 1o. grau é de 8%. Havendo alguma doença previamente conhecida na família há como prevenir usando o método de triagem do embrião. Atualmente o Conselho Federal de Medicina não permite o descarte de embriões com problemas genéticos, se for diagnosticado hipoteticamente uma síndrome de down não se pode descartar pois considera-se ferida uma norma ética , e logo este embrião deve ser congelado. Pergunta-se qual destino dos embriões com má formação se o descarte é proibido. Os avanços da engenharia genética tendem evoluir conjuntamente com as técnicas de uso de células tronco, a partir da decodificação do genoma humano pode se identificar doenças, síndromes desconhecidas, mutações genéticas que influenciam no nascimento de uma criança saudável, falta um pouco de aceleração no procedimento e investimentos também, apesar da melhora estar ocorrendo o conhecimento e a expansão deste assunto ainda há suas barreiras o que evidencia nas poucas informações que a mídia transmite restringindo detalhes que por vezes podem ser esclarecedores para casais que necessitam passar pelo procedimento para garantir a saúde dos seus futuros filhos e acabam optando em não tê-los por receio que herdem alguma patologia conhecida hereditariamente, então qualquer casal que optar em ter filhos poderá conhecer as mutações que ambos possuem e os riscos de transmissão, os testes trazem capacidade de pesquisar identificando de 200 a 600 tipos de patologias. São muitas as doenças que podem ser evitadas dentre elas ataxia espinocerebelosa, síndrome de marfan, fibrose cística, beta talasemia Neurofibromatose, distrofia muscular, hemofilia A e B, Neoplasia endócrina múltipla do tipo 2ª, Doença renal policística (recessiva ou dominante), Síndrome de Down, Surdez congénita neurossensorial, Osteopetrose, Paraparésia espástica familiar 4.1  PGD  DIAGNÓSTICO PRÉ-IMPLANTACIONAL O Diagnóstico Pré-Implantacional foi desenvolvido para fornecer alternativas ao diagnóstico pré-natal em casais com risco de transmissão de doenças genéticas. Esse método é útil nos casos de doenças ligadas ao sexo, anomalias cromossômicas e defeitos congênitos. No PGD, utilizam-se técnicas baseadas na reação em cadeia da polimerase, técnicas moleculares ou citogenéticas durante a fertilização in vitro para selecionar embriões livres de uma condição genética defeituosa para transferir para o útero Em média 60% dos abortos espontâneos, os embriões têm alterações genéticas do tipo aneuploidia. Erros cromossômicos, em sua maioria, são incompatíveis com a implantação (­fixação ao útero) ou o nascimento, sendo, então, a principal causa de falha dos tratamentos de reprodução assistida. As técnicas de reprodução assistida evoluem a cada dia, frente à melhoria nos equipamentos laboratoriais e dos meios para cultivo de gametas e embriões. O uso de novos medicamentos na indução da ovulação, e o aperfeiçoamento de técnicas de criopreservação de gametas e embriões são parte desse desenvolvimento. As principais indicações da técnica de PGD são para casais que conheçam possíveis anomalias hereditárias, homens que possuem sêmen de baixa qualidade, casais que já foram submetidos a procedimentos in vitro com falhas, infertilidade, doenças de etiologia autossômica dominante ou recessiva e alterações cromossômicas familiares. Existem outros tipos de testes genéticos, a técnica, chamada de hibridização genômica comparativa (ou CGH na sigla em inglês), possibilita a análise dos 23 cromossomos, o que traria mais segurança para a gestação de um bebê saudável, além do aumento das chances de gravidez de mulheres mais velhas. No caso do PGD, são avaliados apenas os cromossomos 13, 15, 16, 17, 18, 21 e 22, além do X e Y. CONCLUSÃO O incentivo ao uso de técnicas de biópsia embrionária tem sido evidente na rotina de clínicas de reprodução assistida. A seleção de embriões está se tornando um procedimento de extrema importância frente às inúmeras doenças que a população vem desenvolvendo com o passar dos anos e trazendo de herança hereditária. A chance é apenas obter resultados positivos na gestação e na saúde do ser humano. Tratando de um tema que envolve vidas humanas é necessário não somente preservarmos a dignidade da pessoa humana, mas, certamente encontrarmos no caminho da engenharia genética as mais diversas barreiras vedando procedimentos em humanos, onde entram princípios jurídicos, morais, éticos, culturais, dogmáticos e assim por diante. Não obstante as críticas e dificuldades que se apresentam, muitos estudiosos se dedicam a expor suas opiniões e estudar mais profundamente as temáticas que envolvem estas técnicas a fim de trazer esclarecimentos e benefícios para a população. A intenção são melhoramentos na saúde, a triagem embrionária é uma realidade que merece ser vista de forma benéfica e debatida com mais frequência pela mídia para sanar dúvidas e despertar argumentos e posicionamentos sobre as técnicas propostas. Os direitos humanos tentam conter junto com o tratamento jurídico sobre o tema e descrevem o embrião dando-lhe vida na concepção e limitando as evoluções com essas imposições e questionamentos que tratam do início da vida, onde realmente começa a vida, travando assim os avanços biotecnológicos com uma série de discussões cíclicas. Os desafios são complexos, porém os avanços rompem barreiras de práticas convencionais, mas está faltando ímpeto no legislador para transformar estas portarias e resoluções em uma Lei que regule as práticas dando mais segurança para as Clínicas e aos casais que procuram o serviço. O Conselho Federal de Medicina é atualmente quem comanda as resoluções sobre os procedimentos e regula as técnicas de reprodução assistida, pois realmente há uma falha legislativa. Ë mister estabelecer medidas e normas regulamentadoras que venham garantir a proteção à vida, saúde, bem estar e dignidade humana.
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O testamento vital em pauta: a autonomia da vontade à luz dos princípios norteadores da bioética
O objetivo do presente artigo é analisar a discussão acerca da utilização do Testamento Vital como um instrumento jurídico garantidor da autonomia da vontade do indivíduo em assegurar o respeito às diretivas antecipadas de vontade por ele manifestada, enquanto paciento, em plena capacidade civil e em sã consciência para decidir por si próprio. A discussão envolve a análise do ordenamento jurídico brasileiro e a interpretação de princípios constitucionais garantidores de liberdades individuais e da dignidade da pessoa humana. Também, faz-se necessário apresentar o debate teórico e a análise de julgados que versem sobre o tema para melhor entender a complexidade e a extensão do instituto do Testamento Vital na vida jurídica e na realidade médica, de acordo com os princípios da Bioética profissional, bem como sua inter-relação com o Biodireito. Devem ser discutidos, ainda, aspectos como o papel do médico, da família e do indivíduo no processo de tomada de decisão quanto à aplicação, ou não, de diretivas antecipadas; as responsabilidades civis e os limites do indivíduo em manifestar-se, autonomamente, sobre a sua própria saúde e seus desejos quanto a procedimentos e técnicas que deseja ou recusa-se a ser submetido. [1]
Biodireito
1 INTRODUÇÃO O debate contemporâneo sobre a autonomia da vontade do indivíduo em decidir sobre assuntos importantes a respeito de sua própria vida ganha cada vez mais contorno e espaço no meio jurídico brasileiro. Com um Estado Democrático de Direito, baseado em princípios constitucionais que garantem uma séria de liberdades e a necessidade de respaldo legal para regular vontades individuais que venham trazer impactos significativos ao meio jurídico e social, faz-se necessário o pensar legalista a respeito de questões que envolvam o desejo do indivíduo em se manifestar favoravelmente ao encurtamento da sua vida diante de algumas situações peculiares. Conforme abordado anteriormente em outro trabalho (RIDOLPHI; RANGEL, 2017), a partir de 1990 cresce significativamente as discussões, no meio científico e jurídico, a respeito das possibilidades e maneiras de encerramento da vida de forma voluntária por pessoas que estejam em condições de saúde específicas e que não existam mais expectativas de melhoras ou recuperação da saúde, bem como da qualidade de vida da pessoa. São discussões polémicas e conturbadas, pois envolvem aspectos políticos, religiosos, científicos, culturais dentre outros mais e que têm significativo reflexo no pensamento do coletivo social sobre como encarar a vida e a morte dentro de uma sociedade. Existem discussões sobre o tema em diversos países, especialmente dentre os países ocidentalizados e democráticos e que influenciam os debates jurídicos e científicos no Brasil. Atualmente inexiste legislação específica que regule o direito de morrer ou mesmo o direito e as condições de como deve o indivíduo proceder para manifestar sua vontade em relação às possibilidades de encurtamento voluntário de sua vida. As únicas regulamentações vigentes, porém, infralegais, estão sob forma de Resoluções do Conselho Federal de Medicina – CFM, sendo elas: a Resolução nº. 1.805/2006 que “prevê a possibilidade de abreviamento do sofrimento de um paciente de morte certa e sem qualquer condição de cura ou melhora” (RIDOLPHI; RANGEL, 2017, s.p.), regulando o exercício da profissão médica diante do procedimento de Ortotanásia, mas sem respaldo legal específico, e a Resolução 1.995/2012, que dispõe sobre a consideração pelo médico das diretivas antecipadas de vontade dos pacientes, mas que também não regulam a maneira da manifestação e os limites de tais manifestos, até mesmo porque tal instrumento normativo não teria poderes legais para tais pretensões. O Testamento Vital, de acordo com o entendimento de Dadalto (2013), refere-se a um procedimento de diretiva antecipada de vontade que serve para uma pessoa declarar, em sã consciência, sua vontade em receber ou não determinados tratamentos de saúde quando esta vier a se encontrar em uma situação de estado terminal de vida e impossibilitada de se manifestar de forma consciente. Conforme a autora, trata de uma “declaração prévia de vontade” de um paciente sobre o seu entendimento, quando ainda lúcido, relativos às suas vontades caso venha a acontecer determinadas situações futuras em que este não puder mais decidir-se por si mesmo. Ainda conforme Dadalto (2013), apesar da inexistência de normas legais reguladoras sobre a o testamento vital e as diretivas antecipadas da vontade do paciente no Brasil, não significa dizer que a utilização deste instrumento não poderia ter valor e garantir a efetivação de direitos individuais. Aos profissionais de saúde e operadores do Direito, diante da inexistência de norma legal regulamentadora sobre o assunto, devem seguir uma “interpretação integrativa das normas constitucionais e infraconstitucionais” ora vigentes, além das mencionadas Resoluções, na defesa da validade da declaração de vontade do paciente. Diante desta realidade interpretativa, princípios como os da Dignidade da pessoa humana; autonomia da Vontade; proibição de tratamentos desumanos; tortura; direito à saúde e à boa vida; dentre outros mais, devem ser observados. Os avanços científicos nas áreas médica e biológica, mais precisamente, e os avanços nas relações de direitos humanos e liberdades individuais, associados à expansão do acesso e da produção de informações, contribuem significativamente para trazer à luz do debate público discussões sobre temas que são culturalmente e historicamente considerados polémicos e tabus. Na visão de Mallet (2015), com estes avanços se “criou novas situações limítrofes entre a vida e a morte, evidenciando os conceitos de eutanásia, ortotanásia, distanásia e suicídio assistido” e cria ainda um novo instituto jurídico, tal como o testamento vital que, na prática, se distancia dos conceitos tradicionais de testamento e do direito de sucessões, ideia esta também compartilhada por Dadalto (2013). O que se discute a respeito deste tema é a capacidade de o indivíduo decidir por si próprio, ou autorizar a outorga para outrem decidir – em caso de incapacidade de consciência – sobre os limites de se aceitar ou recusar um determinado tratamento médico para o prolongamento de sua vida. Ainda, teria o indivíduo tal direito de sobrepor a autonomia da vontade e sua noção de dignidade sobre o direito à vida? De acordo com Silva e Gomes (2012, p. 205), “o prolongamento indeterminado da vida de pacientes terminais proporciona que estes indivíduos vivam a própria morte”, distanciando-se das intenções de manutenção da qualidade de vida e da dignidade da vida e da boa morte. Debater a regularização deste instrumento diretivo de vontade não significa a liberalização da morte, mas pelo contrário, é justamente encontrar limites para a aplicabilidade de tal instituto para que este não seja banalizado. É encontrar as lacunas possíveis para se garantir a dignidade através de um procedimento segmentado e não generalizado. O injusto é não permitir que alguns pacientes, em particular situação, não tenham seus desejos e sua dignidade garantida em detrimento do ideário geral ou da falta de regulamentação legal por parte do Estado brasileiro. São estas questões, resumidamente, que geram significativo debate ético e profissional entre os meios de saúde e possuem na Bioética o seu campo de análise. De forma simbiótica, a justiça é provocada e assim o Biodireito influencia e é influenciado por tais assuntos, pois a bioética encontra seus limites nas normativas legais e a elas influência com suas reflexões. Conforme elucidado por Mallet: “As diretrizes e conceitos da Bioética, entretanto, não são coercitivos para o Direito. É preciso que os procedimentos lícitos sejam regulamentados, estabelecendo delineamento constitucional, estabelecendo regras e balizas à atuação. O Direito deve intervir no campo das técnicas biomédicas, quer seja para legitimá-las, quer seja para regulamentar ou proibir outras, não podendo ficar inerte”. (MALLET, 2015, s.p.). Neste artigo, serão apresentados pontos de vista, estudos e pesquisas referentes a possibilidade de utilização do testamento vital como forma de direito garantidor da autonomia da vontade do indivíduo, balizado pelo princípio da autonomia da vontade e pelos princípios que regem a bioética e a ética profissional médica. Também serão apresentadas algumas conceituações sobre o que é, de fato, e como se processa o testamento vital e as suas atuais possibilidades de aplicação no Brasil, bem como a análise de julgados sobre o assunto para melhor embasar a tendência jurídica moderna em admitir, em casos específicos, a possibilidade do testamento vital. 2 OS PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA E AUTONOMIA DA VONTADE Apesar da falta de regulamentação legal sobre o testamento vital no Brasil, a comunidade médica e jurídica aceita algum teor de validade em tal documento, desde que, conforme salientado por Rosa et all (2014,s.p.), não fira “preceitos da ética médica”. Tal instrumento é reconhecido como um ato de autonomia da vontade do paciente em não se submeter a tratamentos desumanos e abusivos em fase terminal de vida. Tais vontades devem, inclusive, se sobrepor a vontade da família e dos médicos que cuidam deste paciente. Tal é a importância da autonomia da vontade que a interpretação deste princípio constitucional se materializa na Resolução 1.995/2012 do CFM reconhecendo o desejo do indivíduo e submetendo a ética médica a tal vontade. O artigo 2º da referida Resolução prevê que o médico levará em consideração as diretivas antecipadas do paciente. Prevê, também, a possibilidade de o indivíduo nomear um terceiro, representante deste, em caso de o paciente não poder mais responder por si. Assim, este representante deve conhecer e manifestar a vontade declarada do outorgante desta autonomia, diz o parágrafo primeiro do mencionado Artigo: “Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levaras em consideração pelo médico” (CFM, 2012). De acordo com Massaroli e Fabro (2017, s.p.), é importante considerar que o entendimento jurisprudencial no Brasil tende a seguir uma evolução social do tradicional para o contemporâneo refletindo a necessidade do direito de se adequar às “necessidades de cada pessoa” em um contexto social em que as partes envolvidas no processo (médicos, indivíduo e familiares), tomam cada vez mais consciência sobre a importância de se observar a manifestação de vontade de um paciente como forma de manter a dignidade deste. Ainda, de acordo com os autores, não há que se falar na invalidade do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro, pois este se trata de “um negócio jurídico unilateral, personalíssimo, revogável, gratuito e informal, garantido por preceitos constitucionais como o da dignidade da pessoa humana e autonomia da vontade” (MASSAROLI; FABRO, 2017, s.p.), resguardados sob a égide do Artigo 5º da Carta Magna. Refere-se ao direito de personalidade do indivíduo, tanto é que os autores entendem o fato de o suicídio não ser capitulado como crime na legislação brasileira, justamente por se tratar de um ato voluntário da pessoa. Assim, entende-se a autonomia da vontade do indivíduo sobre os limites de sua personalidade e também sobre a disposição de seu próprio corpo e consciência. Entretanto, ao que se parece, existem alguns conflitos éticos e jurídicos na interpretação dos princípios constitucionais na prática da execução do Testamento Vital. A autonomia da vontade, assim como qualquer outro princípio ou norma jurídica, não é absoluta e tende a ser moderada em sua interpretação. Conforme elucidado por Rosa et all (2014, s.p.), a medicina moderna, com suas inovações técnicas e científicas, tende a todo custo prolongar a vida mediante procedimentos diversos, mesmo que estes não venham a trazer significativa melhora ou expectativa de vida. É justamente nesta seara que se exprime o conflito entre princípios: dignidade da pessoa humana, autonomia da vontade e direito à vida, mais precisamente. Até onde dar autonomia ao indivíduo sobre decidir o que é melhor para a sua saúde e a sua vida diante das possibilidades médicas e científicas para trata-lo? Até quando manter um indivíduo vivo sob um tratamento ineficaz? Qual é o momento em que o indivíduo pode decidir por pôr fim à sua vida, com o auxílio profissional de um médico? Quando um tratamento médico se transforma em algo indigno à vida humana? No entendimento de Borges (2001 apud ROSA et all, 2014, s.p.), “é assegurado o direito à vida (não o dever), mas não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento”. Para esta autora, não se trata de uma eutanásia, mas permitir ao indivíduo a possibilidade de interromper tratamentos inúteis sem qualquer resultado positivo. Rosa et all (2014, s.p.) apresentam também a tendência doutrinária em assegurar a validade dos testamentos vitais sob a interpretação dos princípios da dignidade da pessoa humana e autonomia da vontade. Mallet (2015, s.p.) sustenta que, na garantia de tais princípios, não basta apenas o indivíduo estar vivo, é preciso que a este sejam garantidas condições que lhe assegurem o respeito, liberdade e outras condições humanitárias que possibilite a pessoa realizar-se de forma humana, conforme suas crenças e desejos. É a garantia efetiva à pessoa por decidir sobre seus desejos e objetivos pessoais. É no campo dos limites da aplicação de tais princípios e no atendimento da vontade do paciente que se insere o papel do médico, respaldado e discutido no âmbito da Bioética e do Biodireito. O conhecer científico deve ser utilizado da melhor forma possível à satisfação das enfermidades e desejos de um indivíduo. Mallet (2015, s.p. ) ressalta que o indivíduo “não pode ter sua vontade interrompida e nem ser transformado em instrumento”. Não se trata de aplicar procedimentos médicos ilimitadamente, mas sim, analisando o caso de forma profissional, garantir que as atitudes e procedimentos médicos sejam aplicados conforme as diretrizes éticas que balizam a profissão médica. De acordo com Santos (2014), o conflito de princípios constitucionais em áreas do Biodireito é constante e, para solucioná-los, torna-se necessária a utilização da técnica hermenêutica da “ponderação sobre os valores buscados em cada direito fundamental, a fim de verificar qual deles deve prevalecer no caso concreto”. Como abordado em trabalho anterior (RIDOLPHI; RANGEL, 2017) a bioética rege a profissão médica e científica norteada nos seguintes princípios: não maleficência, beneficência, respeito à autonomia e respeito à justiça. Assim, o profissional deve buscar sempre agir de forma a respeitar as vontades do indivíduo paciente e de seus representantes, agir de forma positiva em prol do benefício da pessoa e ter a obrigação de não causar danos ao paciente com práticas e métodos terapêuticos. Todos estes princípios em respeito ao princípio da justiça, pois “a ação do profissional não pode ultrapassar os limites legais” (RIDOLPHI; RANGEL, 2017, s.p.). De acordo com o Conselho Federal de Medicina (2012), ao médico é vedado abreviar a vida, mesmo que a pedido do paciente ou de familiar. Todavia, o médico também deve ter um compromisso ético e humanitário em que dada situações de doença incurável e estado clínico irreversível e terminal, possa oferecer os cuidados paliativos necessários no acompanhamento de sua morte, “sem lançar mão de ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas” (CFM, 2012, s.p.). É, basicamente, o que dispõe a Resolução nº. 1.805/2006 sobre a Ortotanásia, em consonância com a Resolução 1.995/2012 sobre as diretivas antecipadas de vontade. Os avanços tecnológicos e científicos da área médica não podem ser usados de forma injustificada para o prolongamento do sofrimento da vida humana, simplesmente. De acordo com pesquisa veiculada em publicação do CFM, um estudo feito em 2011 pela Universidade do Oeste de Santa Catarina entre profissionais e estudantes das áreas médica e jurídica, aponta que 61% dos entrevistados levariam em consideração o desejo expresso pelos pacientes, o que reflete de forma significativa a tendência modernizadora pela consideração e respeito às vontades individuais, tanto no meio médico-científico quanto no meio jurídico-legal. De acordo com Elcio Bonamigo (2011 apud CFM, 2012), “os médicos deixam de ser paternalistas e os pacientes a cada dia ganham voz nos consultórios. Ele deve ter sua autonomia também preservada no fim da vida”. O liame entre o que deve ser um tratamento concedido ou rejeitado por vontade do paciente é muito subjetivo. Conforme abordado por Nunes (2009, p. 30), a prática profissional deve ser “digna, adequada e diligente, que é aquilo que se designa por Ortotanásia”. O indivíduo deve ser capaz de exercer controle, em alguns aspectos, na sua fase terminal de vida, mas, segundo o autor, o debate persiste na reflexão ética entre o “cuidar e tratar” e “suspensão e abstenção” de tratamentos. A discussão engloba definições e procedimentos éticos no que diz respeito a identificação do que seria um doente terminal e de quais seriam as condições para identificação e diagnóstico destes pacientes e, também, quais seriam os casos e procedimentos passíveis de suspensão ou de abstenção destes tratamentos. A dimensão ética da aplicação do testamento vital transcende o apenas pensar do papel do médico neste processo, mas recai também sobre a sua responsabilização civil e criminal. Neste ponto há que se falar em uma responsabilização dúbia da figura do médico. Ele poderá ser responsabilizado por excessos na aplicação de diretivas antecipadas e também poderá ser responsabilizado por não atender o desejo expresso do paciente sobre seu testamento vital. Por tanto, torna-se imprescindível à profissão e exercício da medicina existir regulamentação sólida e legal que guie e dê respaldo à atuação do médico nestes casos. Conforme apresentado por Grippa; Bounicore e Feijó (2013, s.p.), “a mensuração do dano é muito complicada por se tratar da autonomia do paciente que não foi respeitada”. Ainda neste sentido, os autores destacam que o entendimento atual é de que, em regra, a atuação do médico seja uma atitude meio, agindo dentro do que for possível para a obtenção de um resultado de cura e, caso não se chegue a esse resultado, não poderia o médico ser responsabilizado, a não ser que tenha agido por “negligência, imperícia ou imprudência” (GRIPPA; BOUNICORE; FEIJO, 2013, s.p.). Sendo assim, no lidar médico em geral, a responsabilidade civil do profissional é subjetiva, devendo haver culpa ou dolo em qualquer ato prejudicial ao paciente para que o médico venha a ser responsabilizado. Porém, existem casos em que o médico pode ter responsabilidade objetiva, sendo sua conduta independente de dolo ou culpa, como é discutido nos casos de cirurgias plásticas, em que o médico celebra com o paciente a intenção de se atingir um objetivo, conforme apresentado por Grippa; Bounicore e Feijó (2013). Neste contexto, não há entendimento jurisprudencial, doutrinário nem tão pouco legal quanto ao papel do profissional de saúde na garantia, ou não, das diretivas antecipadas, não havendo, por exemplo, definição sobre a responsabilização objetiva ou subjetiva do médico quanto ao não atendimento, total ou parcial, dos desejos do paciente declarados no testamento vital. Da mesma forma, havendo o profissional decidido por aplicar as diretivas de vontade, mesmo que em seu entendimento, dentro do enquadrado nas resoluções do CFM, não se exime o médico de ser, eventualmente, responsabilizado por seus atos, inclusive penalmente, justamente pela ausência de norma regulamentadora de tais procedimentos no Brasil, conforme abordado por (RIDOLPHI; RANGEL, 2017). 3 O TESTAMENTO VITAL EM PAUTA: CARACTERÍSTICAS E DELIMITAÇÕES O Testamento Vital está inserido no contexto da possibilidade, inclusive prevista no ordenamento jurídico, de o paciente se recusar a passar por determinado tratamento médico por meio de sua manifestação de vontade. É a primeira brecha legal para o aceite de tal instrumento. Em primeiro lugar, como bem destacado por Santos (2014) a manifestação da vontade do paciente deve ser feita de modo expressa e específica. Caso contrário, o médico disporá de todos os meios técnicos, terapêuticos e procedimentais disponíveis, desde que não inúteis, para a manutenção da vida do paciente sob o risco de o profissional praticar omissão de socorro se assim não fizer e também poderá ser punido por infração ética profissional. Santos (2014) destaca, ainda, que este consentimento manifesto deve ser dado pela pessoa em plena capacidade de consciência, maior de idade e dotada de plena capacidade civil. Também não poderá esta manifestação ser verbal ou tácita, em regra, devendo ser expressa, como mencionado. No caso de manifestações de vontade não expressas, deverá haver testemunha e apreciada em juízo para configuração, ou não, da validade da diretiva de vontade do paciente. Ainda, de acordo com o autor, no caso de pessoas sem capacidade civil absoluta, não há que se considerar eventuais manifestações de vontade, nem tão pouco de seus representantes. Há um detalhe interessante, pois a discussão da autonomia da vontade transcende o debate sobre o testamento vital em casos de doentes terminais, incuráveis e de tratamentos inúteis, mas insere a vontade do paciente em um âmbito mais corriqueiro que é o de ter a autonomia em decidir, inclusive, a de não ser submetido a determinados procedimentos médicos (como transplantes ou transfusão de sangue), medicamentos, cirurgias dentre outros, por vontade própria, seja por convicções religiosas ou por crenças pessoais. Há que se considerar a conformidade direta desta ponderação com o Artigo 5º da Constituição Federal, Incisos II e III: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei” e “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, respectivamente. Bem como relaciona-se com o Artigo 15 do Código Civil: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica” (BRASIL, 2002). Há ainda plena concordância com o princípio da autonomia da vontade, mas por outro lado, na ponderação hermenêutica há que se pensar também no conflito com os princípios da dignidade da pessoa humana, na garantia da vida e em outros dispositivos que poderiam assegurar a decisão da família e do médico quanto a seguir um determinado procedimento, mesmo contra a vontade do indivíduo, como forma de salvar-lhe a vida, não só na fase terminal, mas também mediante outros tipos de tratamentos, medicamentos e procedimentos que não envolvam, necessariamente, a fase terminal de vida. Diante dessa discussão e da possibilidade de um paciente, consciente e plenamente capaz, se manifestar sobre quais procedimentos e tratamentos deseja ou não ser submetido, cabe apresentar de forma mais detalhada o que consiste o testamento vital, quais suas características, aplicabilidades, quais as formas de materializar esta vontade individual e como vem sendo aceito e aplicado na realidade médica e jurídica brasileira. “Cuida-se de um documento escrito pelo qual a pessoa expressa sua vontade com relação ao tratamento e intervenção médica que deseja ou não se submeter, indicando, por exemplo, os tipos de doença que recusa ser tratado; se prefere que sua vida seja preservada a qualquer custo ou se dispensa os cuidados paliativos; sua negativa a determinadas intervenções cirúrgicas invasivas; sendo possível, ainda, designar um médico de confiança para o tratamento”. (SANTOS, 2014, s.p.) Conforme a interpretação da conceituação dada por Santos, pode-se entender o testamento vital como um instrumento legal que atesta antecipadamente a vontade de um indivíduo referente às possibilidades de se submeter a tratamentos médicos quando incapacitado de responder por si próprio. Também seria, inclusive, utilizado para rejeitar tratamentos médicos em estado de saúde não necessariamente terminal, ou até mesmo, em sentido oposto, atestar que o seu desejo é de tentar manter-se a vida sob quaisquer circunstâncias. Na visão do autor, o testamento vital não é um instrumento, necessariamente, que autoriza ao médico a prosseguir com eutanásia ou Ortotanásia. Pode, também, ser utilizado para negar-se à submissão de outras técnicas terapêuticas ou dispor-se e confirmar a vontade do indivíduo em garantir-lhe todas as técnicas e meios de mantê-lo vivo enquanto for possível. Dadalto (2013) destaca que o Testamento vital é uma declaração prévia da vontade do indivíduo, e que esta deve ser independente da interferência externa de pessoas como médicos e familiares. Tal declaração é a positivação do exercício do direito fundamental de liberdade do indivíduo e deve ser garantido por um Estado Democrático de Direito em que, mesmo não havendo norma legal reguladora específica, seja garantida através de uma “interpretação integrativa das noras constitucionais e infraconstitucionais” como forma de garantir a legalidade de tal instrumento. Santos (2014) também ressalta que o testamento vital é o instrumento onde se apresentam as diretrizes antecipadas de vontade do paciente e que, apesar de não existir forma determinada em lei, recomenda-se que seja escrito e testemunhado. Também pode ser utilizada gravação em vídeo e manifestação lavrada por escritura pública. Seja qual for a forma utilizada, o importante é deixar o consentimento de forma mais expressa possível a fim de garantir as provas do fato e assegurar que o manifesto se deu de forma livre e consciente. Assim como na forma, não há regulamentação quanto ao momento da manifestação da vontade, podendo esta se dar em qualquer fase da vida adulta do indivíduo, desde que este esteja em capacidade civil e com plena capacidade mental. O testamento vital pode ser revogado a qualquer momento, inclusive de forma não expressa. Mallet (2015) destaca que o documento por escrito e com reconhecimento de firma em cartório traduz-se na melhor garantia da confirmação da vontade do indivíduo. Tal documento, seja da forma que for produzido, deve ser anexado ao prontuário médico ou ainda, caso não haja documento, mas o paciente se encontre em condições de responder por si, deverá informar suas vontades ao médico para que sejam incluídas no prontuário do paciente. Dadalto (2013) entende que o testamento vital deve ser diferenciado da simples manifestação de vontade do paciente. Para este autor, declarações a certa de recusa a tratamentos médicos, medicamentos e outras disposições de vontade que não tenham ligação com a fase terminal da vida, não devem ser consideradas como testamento Vital. Estas seriam meras manifestações da vontade do indivíduo. Para ele, o testamento vital só se refere à vontade do indivíduo quanto a situações de o paciente se encontrar em estado terminal de vida. Seria possível também incluir no rol de diretivas antecipadas atestadas no testamento vital o desejo do paciente quanto a doações de órgãos. Como pode ser observado, além da inexistência da regulação legal deste instituto, também não há entendimento consolidado entre doutrinadores e estudiosos, justamente devido à amplitude de possibilidade de tal instrumento jurídico e as disparidades com as quais ele poderia ser utilizado. A própria nomenclatura “testamento vital”, não é consenso no meio jurídico e científico. Existem outras expressões, conforme destacado por Mallet (2015), como: testamento biológico, declaração prévia dos pacientes terminais, testamento do paciente, dentre outras. Mallet (2015) atenta para a importante distinção entre o testamento vital e o instituto do testamento, previsto no código Civil Brasileiro. O Testamento, aqui falando do testamento civil, refere-se ao efeito da vontade do indivíduo, pós-morte, sobre a disposição da totalidade dos seus bens, ou de parte deles. Trata-se, segundo o autor, de um “negócio jurídico unilateral, personalíssimo, indelegável, gratuito, revogável, causa mortis e formal. Não se admite no testamento civil a manifestação da vontade do indivíduo por procuradores ou terceiros, nem tão pouco testamentos em associação de pessoas que venham a fugir aos interesses e vontades do indivíduo. Já o testamento vital, nada tem a ver com manifestação da vontade pela disposição de bens. Para o autor (2015, s.p.), o testamento vital é a “manifestação da vontade na qual o paciente dispõe acerca dos cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber, no momento em que estiver incapacidade de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”. Apesar de o testamento vital também ser um instituto personalíssimo, unilateral e revogável, a produção de seus efeitos se dá em vida, e não após a morte como no testamento civil. De acordo com o entendimento do CFM (2012) pelo disposto em sua Resolução 1.995/2012, tal dispositivo versa sobre os critérios de utilização das diretivas antecipadas, comumente chamado de testamento vital, entre médicos e pacientes: “(…) o paciente que optar pelo registro de sua diretiva antecipada de vontade poderá definir com a ajuda de seu médico, os procedimentos considerados pertinentes e aqueles aos quais não quer ser submetido em caso de terminalidade da vida, por doença crônico-degenerativa (…) Deste modo, poderá, por exemplo, expressar se não quer procedimentos de ventilação mecânica (uso de respirador artificial), tratamentos (medicamentoso ou cirúrgico) dolorosos ou extenuantes ou mesmo a reanimação na ocorrência de parada cardiorrespiratória.  Esses detalhes serão estabelecidos na relação médico-paciente, com registro formal em prontuário. O testamento vital é facultativo, poderá ser feito em qualquer momento da vida (mesmo por aqueles que gozam de perfeita saúde) e pode ser modificado ou revogado a qualquer momento”. (CFM, 2012). Ainda de acordo com o CFM (2012), os menores que sejam casados civilmente também podem realizar o testamento vital devido a sua condição de emancipação. Nos casos de crianças e adolescentes, os mesmos não podem manifestar sua diretiva antecipada de vontade e nem seus pais e responsáveis poderão decidir por eles. Quanto à forma da manifestação da vontade, poderá o testamento vital se dar pela declaração da vontade do paciente anotada pelo médico em seu prontuário, sem qualquer necessidade de testemunhas, tendo a assinatura do médico fé pública para a confirmação da validade. Além de poder ser utilizados outras formas de confirmação da vontade do indivíduo, conforme já apresentado neste trabalho. 4 A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO TESTAMENTO VITAL À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Com o objetivo de melhor apresentar a aplicação do Testamento Vital na realidade jurídica brasileira e o entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre o caso, cabe a análise das diretivas antecipadas de vontade em julgados nas cortes e tribunais brasileiros. Para Massaroli e Fabro (2017), no Brasil é possível proceder com a admissibilidade das diretivas antecipadas de vontade pelo testamento vital devido a interpretação do Artigo 1º, Inciso III da Constituição Federal Brasileira, que introduz a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do ordenamento jurídico brasileiro. Também se considera a interpretação dos já mencionados Incisos II e III do Artigo 5º da Carta Magna, garantindo o direito à vida, liberdade, autonomia da vontade e proibição a tratamentos desumanos e degradantes e, ainda, diante da interpretação dos Artigos 11 e 15 do Código Civil Brasileiro, que asseguram os direitos de personalidade e a garantia de não se submeter a tratamentos médicos indesejáveis, além das já citadas resoluções do CFM sobre Ortotanásia e diretivas antecipadas de vontade. Como observado, trata-se de uma interpretação extensiva de princípios e normas constitucionais, legais e infralegais que buscam dar legitimidade à autonomia da vontade e dignidade do paciente diante de situações em que o legislador brasileiro ainda não se posicional, mas que existe possibilidade de aplicação mediata perante a análise em conjunto do ordenamento jurídico. O direito deve servir de aproximação entre a lei e a realidade e não de exclusão quanto ao contesto social em que está inserido. Conforme apresentado por Massaroli e Fabro (2017), tais interpretações refletem as preocupações atuais dos profissionais em garantir as vontades do indivíduo e de sua família, garantir também uma morte digna e respeito ao indivíduo. Deste modo, não há que questionar a autonomia do paciente diante das prerrogativas que lhe asseguram o poder de decidir por si próprio. Estes autores destacam também que no testamento vital só poderá constar procedimentos relacionados, no máximo, com a Ortotanásia. Não pode haver disposições do paciente quanto à prática da eutanásia, visto que esta não é permitida no Brasil. Vários julgados dos tribunais Brasileiros têm refletido tal entendimento emancipador da vontade do indivíduo balizado pelos preceitos constitucionais e legais acima citados. Conforme apresentado em nosso trabalho anterior sobre a morte digna (RIDOLPHI; RANGEL, 2017), a Justiça Federal através do julgado proferido em sentença no Processo nº. 2007.34.00.014809-3, da seção judiciária da 14ª Vara Federal do Distrito Federal, já decidiu quanto à admissibilidade da prática da Ortotanásia no Brasil, quando houver casos de morte certa e inevitável, o médico pode deixar de intervir, garantido a morte natural e que já iria acontecer, porém de forma prolongada, desde que este procedimento fosse anteriormente consentido pelo paciente ou por responsável por ele designado. A título de exemplificação vale também o caso citado por Rosa; Oliveira; Benevenute; Prucoli e Almeida (2014) referente a Apelação Cível nº 70054988266/RS sobre Ortotanásia e Testamento Vital no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Neste caso, o paciente com um dos pós necrosado que poderia leva-lo à morte por infecção generalizada, se negou a proceder com a amputação do membro, decidindo, se fosse necessário, morrer para aliviar seu sofrimento. O Ministério Público solicitou aval judicial a fim de suprimir a vontade do paciente. Porém, após laudos psiquiátricos verificou-se que o indivíduo estava em plenas condições mentais e lúcidas para poder decidir sobre suas vontades. Por fim, os desembargadores do tribunal entenderam na admissibilidade do paciente em não aceitar o tratamento, não podendo o Estado “invadir o corpo do paciente e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo interesse nobre de salvar sua vida” (RIO GRANDE DO SUL, 2014, apud ROSA, 2014 , ano). Mallet (2015) apresenta ainda outro exemplo, a Ação Civil Pública nº. 1039-86.2013.4.01.3500, promovida pelo Ministério Público Federal do Estado de Goiás, em que o Ministério Público buscou contestar a mencionada Resolução 1.1995/2012 do CFM que versa sobre diretrizes antecipadas, quanto às capacidades deste instrumento normativo, procedimentos instaurados, omissões e ilegalidade. A sentença da justiça foi de indeferir a ação do Ministério Público, garantindo que o CFM atuou dentro de suas competências como concelho profissional e que a resolução está de acordo com princípios constitucionais como o da autonomia da vontade e dignidade da pessoa humana. Reforçou ainda que em nada a resolução retira direito das famílias, pois estando os integrantes desta em desacordo com a decisão ou com a capacidade de decisão do paciente, podem utilizar-se de outros mecanismos jurídicos para confrontar a diretiva de vontade. Como destacado por Mallet (2015), o que existe de mais importante e significativo no ordenamento jurídico brasileiro atual, de forma explícita, quanto as diretivas antecipadas e o testamento vital é a Resolução 1.995/2012 do CFM, servindo de balize para qualquer decisão e procedimento a se tomar sobre o assunto, mesmo sem haver regulamentação legal específica. Segundo estudos apresentados pelo autor, a possibilidade de aplicação das diretivas antecipadas não se refere ao direito a morte, mas sim ao direito de dispor de sua própria vida e, tão pouco, refere-se a escolha entre a vida e a morte, mas sim sobre a escolha de como viver e como morrer. “Em que pese a inexistência de norma jurídica específica acerca do testamento vital, a sua validade deve ser enfrentada por meio de uma interpretação ampla e integrativa dos princípios constitucionais e normas infraconstitucionais. A matéria é polêmica em nossa sociedade, pois, além da questão jurídica, envolve dilemas de cunho ético, religioso, social e cultural”. (MALLET, 2015, s.p.). O tema é complexo e abrange-se muito além da mera autorização ou não da aplicação do testamento vital no Brasil. O que deve ser seriamente discutido são as minucias da regularização deste procedimento, tais como modalidades formais, possibilidades práticas de aplicação, o papel das famílias e dos representantes legais ou nominais, as liberalidades e responsabilidades dos profissionais de saúde e os limites da autonomia da vontade do paciente, dentre outras condições. CONCLUSÃO Como observado neste trabalho, o instituto do Testamento Vital como uma diretiva antecipada de vontade do indivíduo é mais uma das faces modernizadoras do direito contemporâneo que tende a balizar-se por princípios garantidores das vontades individuais e das condições de dignidade da pessoa humana. Entretanto, o processo legislativo estatal, que tem como um de seus pressupostos atender e discutir os anseios da sociedade e inovar a produção legal, ainda se vê distante de um processo regulatório mais específico para o caso do testamento vital. Não é de se esperar que discussões legalistas no âmbito da vida e da morte sejam de fácil lida, pois envolvem conceitos profundos e subjetivos sob diferentes aspectos da vida pessoal, tais como crenças religiosas e filosóficas. Apesar da lacuna legal, a utilização de tal instituto já é uma realidade na sociedade brasileira e a tendência, com o avanço das informações sobre o assunto, bem como com a maior incidência de sua discussão na vida cotidiana, é que o testamento vital e outras formas de consideração das vontades individuais, venham a ser utilizada e aprimoradas, cada vez mais. No caso em voga, pautado em interpretações extensivas e integrativas dos princípios constitucionais e de normas legais, bem como infralegais, já é possível garantir que algumas diretivas de vontades de um paciente venham a ser atendidas com amparo da justiça e até mesmo com certo conforto quanto as responsabilidades dos profissionais da saúde envolvidos. Entretanto, o vazio jurídico ainda pode ser considerado um risco para todas as partes envolvidas, seja para o paciente, para a família ou para o médico. Trata-se de um ambiente que já é por demasiado delicado por envolver a vida de um indivíduo e que se complica ainda mais por não haver um respaldo legal legítimo que defina e garanta o lidar da situação. Ao paciente é necessário garantir-lhe sua autonomia, dignidade e saúde; à família é necessário delimitar qual o seu papel no processo de tomada de decisão, seja quando capaz ou incapaz, consciente ou inconsciente esteja o indivíduo e ao médico é importante definir qual o seu papel durante a decisão e execução do processo, bem como quais as garantias de resguardar ao profissional da saúde qualquer responsabilização civil ou criminal quando este estiver agindo estritamente dentro do que a lei e a justiça permitirem diante da manutenção da vontade do indivíduo. Por fim, faz-se matéria importante o debate amplo, consciente e realista do assunto, tendo em vista o contexto social em que a sociedade democrática brasileira está inserida e diante de tantas novidades científicas que envolvem as escolhas e a qualidade de vida de um indivíduo. A regularização legal de procedimentos de diretivas antecipadas de vontade, tal como o Testamento Vital, é uma necessidade contemporânea e que não pode se deixar resolver apenas nos tribunais. Justamente por envolver vida e morte o assunto deve ser abordado de forma prudente, porém sem delongas, pois a demora pode significar a perca de uma vida ou o prolongamento de um sofrimento.
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Bioética ambiental em pauta: uma reflexão à luz da tábua principiológica
O presente apresenta por escopo a ótica de ética com o papel de influenciadora dentro da seara do Direito ambiental. Para tanto, há que se reconhecer que, tradicionalmente, o meio ambiente foi considerado a partir de uma perspectiva antropocêntrica-utilitarista, ou seja, a manutenção e a preservação se davam a fim de atender as necessidades humanas. Contudo, a partir de 1972, com a Declaração de Estocolmo, o meio ambiente passa a receber maior atenção, sobretudo no que toca à necessidade de preservação, com o fito de assegurar um habitat para o desenvolvimento não apenas da espécie humana, mas de todas as demais. Igualmente, ao se reconhecer a fundamentalidade do acesso ao meio ambiente e sua condição como direito humano típico de terceira dimensão, passa-se a fortalecer a premissa de preservação para as futuras gerações, inaugurando um paradigma de solidariedade intergeracional. O movimento internacional pelo fortalecimento do biocentrismo ganhou especial relevância nas últimas décadas, culminando em uma série de documentos e declarações que buscaram estabelecer um tratamento diferenciado em prol da proteção do meio ambiente e de seus elementos. Para tanto, há que se reconhecer que, tradicionalmente, o meio ambiente foi considerado a partir de uma perspectiva antropocêntrica-utilitarista, ou seja, a manutenção e a preservação se davam a fim de atender as necessidades humanas.  Para tanto, há que se reconhecer que, tradicionalmente, o meio ambiente foi considerado a partir de uma perspectiva antropocêntrica-utilitarista, ou seja, a manutenção e a preservação se davam a fim de atender as necessidades humanas.  Ora, os direitos que florescem na contemporaneidade não mais estão vestidos de aspectos individuais, mas sim são emoldurados por aspectos transindividuais, nos quais a coletividade é vista como unidade, a qual passa a reclamar conjunção de esforços para a promoção do ser humano. Nesta linha de exposição é possível identificar nos pilares estruturantes da bioética, concatenado a temas complexos e dotados de proeminência no cenário contemporâneo, a confluência de esforços para analisar fenômenos que vindicam o desenvolvimento de um discurso pautado na promoção da coletividade, na condição de unidade, a fim de alcançar, individualmente, a concretização do ser humano.[1]
Biodireito
1  INTRODUÇÃO Houve seguramente, de qualquer modo em sua percepção, uma grande evolução com a passagem do crescimento econômico a qualquer custo para as formas de desenvolvimento menos agressivas ao meio. As estruturas políticas, sociais e econômicas tornaram-se insensíveis à degradação generalizada do mundo natural. Contudo, o sistema jurídico é uno e inter-relacionado, devendo ser interpretado de maneira indivisível, respeitados os princípios e a hierarquia das normas. Além do mais, em se tratando de Meio Ambiente, requer-se uma interpretação sistemática da Constituição. Assim, a Carta Constitucional de 1988 alargou significativamente o campo dos direitos e garantias individuais fundamentais, na construção de um Estado Democrático de Direito que se afirma através dos fundamentos e objetivos perseguidos pela nação. Neste ponto, é importante chegar a uma definição adequada da crise ambiental que seja coerente com a lógica da sustentabilidade ambiental, isto é, que seja uma compreensão da crise que tenha como referência as inter-relações e interdependências ambientais. Nesse sentido, pode-se afirmar que a crise ecológica é o resultado do drástico desajuste entre os processos cíclicos, conservadores e auto recorrentes da biosfera e os processos lineares e inovadores que buscam a maximização a curto prazo dos benefícios humanos e da vida na Terra. Caba salientar, portanto, que em nosso ordenamento jurídico, o meio ambiente como um direito fundamental tem quanto a sua eficácia aplicabilidade imediata, conforme o disposto no art. 5º, §1º de nossa Constituição Federal. Nesse sentido, a elevação do direito ambiental como um direito humano fundamental diz respeito ao caráter de irrenunciabilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade desses direitos. Uma vez que o meio ambiente foi elevado por nossa Carta Magna a um direito fundamental do homem, não se admite qualquer retrocesso ou mesmo flexibilização dos patamares de proteção já atingidos, seja por emendas à Constituição, seja por meio de legislações infraconstitucionais, devendo-se ainda garantir a eficácia e a concretização dos direitos fundamentais já consolidados. A bioética ambiental, entendida como hermenêutica crítica pode contribuir significativamente na discussão sobre as causas da crise ecológica e os parâmetros necessários para uma sustentabilidade socioambiental. Tal afirmação se faz carecido ponderar que a estruturação dessa nova ética ambiental, ancorada nos ideários densos da corresponsabilidade, desfralda como corolário que as pessoas assumam papel social de maior relevância, dialogando cooperação e solidariedade. Com reflexos cristalinos, os direitos que florescem na contemporaneidade não mais estão vestidos de aspectos individuais, mas sim são emoldurados por aspectos difusos, nos quais a coletividade é vista como unidade, a qual passa a reclamar conjunção de esforços para a promoção do ser humano. Nesta linha de exposição é possível identificar nos pilares estruturantes da bioética, relacionado a temas complexos e dotados de proeminência no cenário contemporâneo, a confluência de esforços para analisar fenômenos que vindicam o desenvolvimento de um discurso pautado na promoção da coletividade, na condição de unidade, a fim de alcançar, individualmente, a concretização da dignidade do ser humano. 2  BIOÉTICA: PRIMEIROS COMENTÁRIOS Inicialmente, cuida destacar a gênese do termo “bioética”, que foi cunhado pelo oncologista americano Van Rensselaer Potter, no ano 1971. O autor traçava em seus trabalhos a periculosidade da fratura entre a cultura científica e a cultura humanística, mais especificamente a separação entre valores morais e fatores biológicos. Desta forma, a cultura científica utiliza os conhecimentos biológicos, ecológicos, genéticos e fisiológicos como guias para a ação pela sobrevivência humana (PALÁCIOS; MARTINS; PEGORANO, 2001). Entretanto, pode-se afirmar que o ramo da Bioética atual se impôs no contexto social a partir da identidade predominantemente clínica, em elevada estima os problemas éticos decorrentes da aplicação de biotecnologias à saúde, especialmente em situações iniciais e terminais da vida humana. Neste sentido, o seu desenvolvimento se firmou em um sistema consistente de argumentação ética, explicitada pelos célebres princípios da bioética, com uma epistemologia baseada na ética aplicada (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002). Vale ressaltar que a ótica que a Bioética se estabeleceu fez olvidar da bioética primitiva, na sua origem, não surgiu com um rosto clínico, mas preocupada com questões ambientais. Nesse sentido, o berço da bioética não é a medicina, mas a ecologia, como assevera Potter (1971), ao propor à bioética, como um saber que conjugasse conhecimentos biológicos e valores morais, estava preocupado com a ampliação e proliferação das tecnologias com seus efeitos sobre o ambiente, colocando em perigo as condições para a reprodução da vida. Por isso, para ele, a bioética é a ciência da sobrevivência da vida no planeta terra. Em harmonia com o sedimento apresentado, carecido faz-se ponderar que a estruturação de um pensamento ético no que se referem ao meio ambiente, ancorada nos ideários densos da corresponsabilidade, desfralda como corolário que as pessoas assumam papel social de maior relevância, dialogando cooperação e solidariedade. Ora, os direitos que florescem na contemporaneidade não mais estão vestidos de aspectos individuais, mas sim são emoldurados por aspectos transindividuais, nos quais a coletividade é vista como unidade, a qual passa a reclamar conjunção de esforços para a promoção do ser humano. Nesta linha de exposição é possível identificar nos pilares estruturantes da bioética, concatenado a temas complexos e dotados de proeminência no cenário contemporâneo, a confluência de esforços para analisar fenômenos que vindicam o desenvolvimento de um discurso pautado na promoção da coletividade, na condição de unidade, a fim de alcançar, individualmente, a concretização do ser humano. Imerso no sucedâneo de argumentos apresentados, cuida ponderar que a construção de uma consciência ambiental ética apresenta-se como alternativa para viabilizar a existência humana em um cenário caracterizado por inúmeras degradações. Desta feita, a aplicação do arcabouço legislativo ambiental, ancorado substancialmente em paradigmas com vistas a privilegiar o ideário de solidariedade intergeracional, materializando a premissa de equidade social para as presentes e futuras gerações. Nesta esteira, revela curial ponderar que o aspecto de fraternidade que emoldura o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ultrapassando a mera essência de preservação do meio ambiente, alcançando, por seu turno, como uma das muitas facetas de concreção da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, a Bioética assume o papel influenciador na abordagem de novos conflitos da contemporaneidade, superando mecanismos tradicionais no modo de pensar, discutir e solucionar problemas. Derradeiro, a ética fraterna pode suscitar a consciência com cunho ecocêntrico, dado o fato de dar-se conta das interdependências do ambiente e a relação da vida como uma teia de inter-relações e como essa constatação torna-se um princípio ético. Neste sentido, avalia as interações entre os homens e outros seres vivos, isto é, a Ética em todas as suas implicações com a vida, de forma a garantir sua continuidade e a construir parâmetros de dignidade. (NAVES; SÁ, 2013) Desta forma, pode-se afirmar o efeito basilar da sustentabilidade, se estabelece a partir de dois fenômenos sociais típicos do contexto atual, já naturalizados e concebidos como parte do senso comum, são a economia baseada no consumo, esquecida da finitude dos recursos naturais, e a agricultura totalmente dependente da química, sem nenhuma atenção para suas interfaces com a natureza. As pessoas engajadas nesses processos não conseguem ver que é possível outra economia e outra agricultura e muito menos tomar consciência de que o modo como as duas são pensadas e organizadas estão entre as principais causas da atual crise ambiental. Neste caso, é importante que a bioética ambiental, assuma a perspectiva da hermenêutica que questiona criticamente os pressupostos e as teorias e práticas, tidas como científicas, naturalizadas como senso comum, sem nenhum espírito crítico (SANTOS, 1989). Logo, hermenêutica segundo Heidegger significa: “Assumir a tarefa de desfazer o estado de interpretação herdado e dominante, de manifestar os motivos ocultos, de destapar as tendências e as vias de interpretação não sempre explicitadas e de remontar-se às fontes originárias que motivam toda explicação por meio de uma estratégia de desmontagem”.  (HEIDEGGER, 2002, p. 51) As discussões suscitadas por uma bioética hermenêutica, na ótica ecocêntrica, podem provocar um choque crítico questionador do senso comum naturalizado, despertando para uma sensibilidade ecológica e consciência ética das consequências do binômio tecnologia e vida na economia e na agricultura. Na atualidade tem-se um grande conhecimento sobre os ambientes e as conexões entre as espécies biomas e sistemas, no entanto é necessário que esse conhecimento seja balizado por valores humanistas de forma a evitar a hostilização a saúde humana e ao meio ambiente. A bioética pode promover reflexões e intervenções nas dimensões politicas e socioeconômica do imaginário coletivo de forma a reduzir a degradação ambiental (BRAÑA, GRISÓLIA 2012). E é assim que, buscando concentrar aspectos interdisciplinares, albergando conceitos gerados a partir desta nova realidade, apresenta-se como um parâmetro elementar para tais condutas, possibilitando o alcance do agir ético em sua integralidade, estimulando o desenvolvimento científico comprometido com a proteção da dignidade humana e evitando ao máximo a possibilidade de danos à sociedade. 3 PRINCÍPIOS NORTEADORES DA BIOÉTICA A Bioética, como disciplina autônoma estabelece contornos mais específicos do que os apresentados pela ética geral, passa a direcionar os caminhos a serem tomados pelo avanço científico, respeitando-se a dignidade humana, valorizando-se a vida. Desta feita, embora tenha como preceito o respeito que deve ser garantido à todos o seres vivos, não apenas o homem, por entender que em cada ser vivo há uma finalidade em si, a Bioética fará com que as obrigações e responsabilidades éticas então consequentes de toda e qualquer atividade científica sejam direcionadas para a proteção dos interesses de toda coletividade, atual e futura. (MORAIS, 2007, p. 30). Nesta linha de exposição, o hodierno avanço da Bioética visa coibir os excessos provenientes do desenvolvimento tecnológico, tal fato marcado mundialmente com o advento do período pós-guerra mundial, sendo determinante para que a humanidade desse um salto de conscientização a cerca dos perigos sobrevindos de uma utilização distorcida do conhecimento científico. Ao lado disso, diversas providências foram criadas no sentido de se estabelecerem regras e códigos de conduta que norteariam as pesquisas e experiências com seres humanos e formulando-se meios para que tais atividades fossem melhor fiscalizadas e eticamente direcionadas. Frente a diversos casos de manipulação, usando enfermos social e mentalmente fragilizados como sujeitos de experimentação, conhecidos pelo público no início dos anos 70 nos EUA, o congresso americano criou, em 1974, a National Comission for the Protection os Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research, essa comissão tinha por objetivo realizar uma pesquisa e um estudo completo que identificasse os princípios éticos básicos que deveriam nortear a experimentação, em seres humanos, nas ciências do comportamento e na biomedicina.  (MORAIS, 2007, p. 75) Desta maneira, verificou-se que ao longo dos anos, a Comissão apresentou o relatório conhecido como Belmonte Reporte, em 1978, tornando o estudo responsável por elencar os principais princípios da Bioética. Nesse trajeto, originariamente, o Relatório Belmont, estabelece princípios básicos que norteiam o pensamento bioético, sendo estes elencados como, o respeito pelas pessoas (princípio da autonomia), a beneficência e a justiça. Dessa forma, os problemas bioéticos deverão ser enfrentados de maneira a respeitarem-se as preferências valorativas e escolhas pessoais do indivíduo, buscando se promover-lhe o bem-estar e tratar a todos de forma equitativa. Deve-se acrescentar que, como desdobramento do princípio da beneficência, Tom Beauchamp e James Childress desenvolveram também o princípio da não-maleficência, segundo o qual não sendo possível promover-se o bem-estar das pessoas, dever-se-á evitar-lhes a ocorrência de danos ou ameaças de danos. A relevância dos quatro princípios básicos é ratificada a partir da aprovação da citada Resolução n.º 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, afirmando em seu preâmbulo: “Esta Resolução incorpora, sob a ótica do indivíduo e das coletividades, os quatro referenciais básicos da bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça, entre outros, e visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa e ao Estado”. (BRASIL, 1996) Cabe ressaltar, todavia, a relevância de que todos os princípios da Bioética guardam inevitáveis conexões com o Princípio da Precaução, presente no Direito Constitucional Ambiental. Desta forma, Considera-se que este está voltado, basicamente, a evitar a ameaça de danos à saúde humana e ao meio ambiente. Prosseguindo neste contexto de exposição, segundo o Relatório Belmont (1978), observa-se primeiramente o princípio ético de respeito às pessoas, firmando-se no fato de que os indivíduos devem ser tratados como agentes autônomos, ou seja, com capacidade para deliberar sobre os objetivos pessoais e agirem a partir de sua própria escolha. (MORAIS, 2007, p. 76) Sendo assim, para que tal princípio seja de fato considerado, há que se dar importância às opiniões e deliberações das pessoas envolvidas, direta ou indiretamente, evitando-se obstáculos às suas ações livremente pensadas e decididas, desde que estas não impliquem em prejuízos a outros indivíduos ou à coletividade. Exatamente neste sentido que será possível afirmar que ao ser-lhe negado o exercício do direito de liberdade, interferindo-se de forma arbitrária no seu âmbito de atuação com base em julgamentos de ordem pessoal, o individuo não será capaz de se desenvolver com dignidade. E partindo do mesmo entendimento, Amartya Sen (2000) acredita que só há desenvolvimento em uma sociedade a partir do momento em que se eliminam as privações de liberdade que limitam as escolhas e oportunidades dos indivíduos. Para tanto, a “capacidade” é um tipo de liberdade para se ter estilos diferentes, e tais liberdades só serão exercidas quando o Estado proporcionar ao homem o mínimo de bem estar para que seja possível realizar as suas próprias escolhas. Neste sentido, o autor afirma: “(…) a liberdade individual é essencialmente produto social, e existe uma relação de mão dupla entre as disposições sociais que visam expandir as liberdades individuais e o uso de liberdades individuais não só para melhorar a vida de cada um, mas também para tornar as disposições sociais mais apropriadas e eficazes.” (SEN, 2000. p. 10). Ressalte-se, todavia, que conhecer os riscos e prever meios para evitá-los é essencial para que se garanta a observância ao princípio da autonomia quando se estiver diante dos conflitos biotecnológicos. Prosseguindo com o expendido ate o momento, a ideia dinamizada pelo princípio da Beneficência parece ter suas bases assentadas na ética utilitarista, preconizada por John Stuart Mill (1806-1873), que tem como seu principal fundamento a busca pela felicidade. Assim, determinada ação será considerada correta a partir do momento que gerar o máximo de benefícios a um determinado indivíduo. Logo, a orientação decorrente deste princípio será no sentido de se evitarem determinadas condutas arriscadas quando envolverem seres humanos, mesmo que haja a possibilidade de se alcançarem resultados que beneficiem o restante da coletividade. Todavia, o que demonstra a sua aplicação prática é o problema de se definir até que ponto torna-se justificável a busca por certos benefícios e o momento de serem estes abandonados tendo em vista a possibilidade de riscos envolvendo a atividade. (MORAIS, 2007, p. 81). Cuida assinalar que enfatiza o referido documento que as obrigações de beneficência afetam sobremaneira o campo da pesquisa científica, uma vez que os responsáveis por esta estão obrigados a refletir previamente se os resultados de suas investigações implicarão numa maximização dos benefícios e na redução dos riscos que eventualmente aparecerão neste processo. O principio da não-maleficência determina a obrigação de não infligir danos a quem quer que seja de maneira intencional. Na ética médica, ele esteve intimamente associado à máxima “acima de tudo, não causar dano”. De acordo com alguns autores, este princípio está relacionado com o juramento de Hipócrates, ligado a ética médica, quando em um trecho do referido juramento é dito “usarei o tratamento para ajudar o doente, de acordo com a minha habilidade e com o meu julgamento, mas jamais o usarei para lesá-lo ou prejudica-lo”. Mas tal pensamento não deve prevalecer, sobretudo quando relacionada à sua aplicação na bioética.  É que, nos casos tratados nesse ramo do saber, o princípio da não-maleficência, tal como desenvolvido e elaborado no Relatório Belmont, sempre será um dever dos profissionais que lidam com a saúde humana, sejam estes médicos, pesquisadores, geneticistas, ambientalistas, etc., sobretudo considerando-se a especificidade de suas ações, seja no atendimento dos interesses de um único indivíduo, seja na obtenção do bem-estar coletivo. Em conclusão, o principio da não maleficência pressupõe que é dever de todos, proteger as pessoas contra alguns tipos e graus de danos, sendo dever ainda, evitar que danos sejam causados, para os principais autores da bioética, existe uma verdadeira obrigação positiva em proporcionar benefícios, tais como, a assistência à saúde. Em harmonia com o apresentado, por fim, o principio bioético da justiça é tratado pelo Relatório Belmont como uma questão de equidade, especialmente no que se refere à “equidade na distribuição” dos benefícios de uma pesquisa científica ou imposição igualitária de seus custos. Ressalta o Relatório Belmont, dessa forma, como as concepções de justiça são importantes na condução de uma pesquisa científica, sobretudo no que se refere ao desenvolvimento de novas terapias e procedimentos a serem distribuídos à sociedade. Nesse sentido, deve-se garantir que as vantagens e os benefícios obtidos serão disponibilizados a todos e não somente àqueles que puderem por eles pagar. Por outro lado, deverá evitar que dos testes e experimentos venham participar pessoas que muito provavelmente não estarão entre os beneficiados por ela. Inspirando-se em tais diretrizes, o Conselho Nacional de Saúde (CNS), ao aprovar a Resolução n.º 196/96, considerou de forma expressa que haverá eticidade no desenvolvimento de pesquisas com seres humanos quando forem observados os princípios básicos da bioética e, dentre estes, o princípio da justiça, o que implica em: “[…] relevância social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimização do ônus para os sujeitos vulneráveis, o que garante a igual consideração dos interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio-humanitária”. (BRASIL, 1996) Considerando-se as diversas concepções de justiça que com base nestas questões poderão ser formuladas, tem-se estabelecido entre os bioeticistas, dada a relevância que tal tema traz para a bioética, um critério material de justiça que, em teoria, poderia ser aceito de forma a não conflitar com diferentes posições políticas. Assim, uma vez que critérios de ordem individual (raça, sexo, status social, etc.) não podem ser utilizados para se determinar a distribuição igualitária do acesso à saúde, tem-se adotado como critério a satisfação das necessidades. Dessa maneira, o princípio da justiça passa a ser entendido como uma recomendação para se distribuir os bens segundo a necessidade. 4 MEIO AMBIENTE À LUZ DA DELIMITAÇÃO JURÍDICA Em todo o planeta a cada dia o tema “meio ambiente” vem adquirindo maior espaço na mídia e nos debates políticos. Evidentemente tal atenção ao tema decorre do fato de que a cada dia, os problemas ambientais são maiores em quantidade e em potencialidade. Entretanto, na maioria das vezes, a expressão meio ambiente tem sido utilizada de forma superficial, permitindo o entendimento que aquela é sinônima de natureza ou de recursos naturais. Ao reverso, há que se reconhecer que o termo em comento, no cenário legislativo nacional, adota compreensão mais ampla e multifacetada. A construção do termo aludido apresenta-se a partir de singular importância da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada em 1972, em Estocolmo, na Suécia, apresentando as primeiras normas, em âmbito internacional, voltadas para o meio ambiente, deslocando o foco meramente econômico que antes vigorava para um eixo que revestiu o ambiente de fundamentalidade à vida e reconhecendo-o como direito inerente a pessoa humana. Nesta dicção, o equilíbrio ecológico foi idealizado na Conferência de 1972, consagrando a proteção ambiental em sete pontos distintos do preâmbulo, além de vinte e seis princípios referentes a comportamentos e responsabilidades destinados a nortear decisões relativas à questão ambiental, com o objetivo de “garantir um quadro de vida adequado e a perenidade dos recursos naturais” (PASSOS, 2006, p. 08). Dentre os princípios e paradigmas advindos da Conferência de Estocolmo de 1972, é importante conferir especial ênfase ao princípio nº 1, maiormente quando verbaliza, com clareza ofuscante, que o meio ambiente é revestido de fundamentalidade para o desenvolvimento humano, sendo condição indissociável para a realização de uma série de outros direitos, a exemplo de liberdade, igualdade e condições de vida adequada. Para tanto, confira-se, in verbis, a redação do dispositivo supramencionado: “O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras.” (ONU, 1972). A definição legal de meio ambiente não era realidade no âmbito jurídico brasileiro até a promulgação da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências, responsável por abrigar, em seu artigo 3º, inciso I, a definição legal de meio ambiente como "o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (BRASIL, 1981). Com efeito, o mesmo diploma legal estabelece, ainda, na redação de seu artigo 2º, o meio ambiente como “um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo” (BRASIL, 1981). Em complemento às ponderações apresentadas até o momento, cuida destacar que, no entender de Paulo Affonso Leme Machado (2013), a referida lei definiu o meio ambiente da forma ampla, fazendo, compreender que atinge tudo aquilo que lhe permite a vida. Nesta senda, ainda, Fiorillo (2012), ao tecer comentários acerca da acepção conceitual de meio ambiente, coloca em destaque que tal tema se assenta em um ideário jurídico indeterminado, incumbindo, ao intérprete das leis, promover o seu preenchimento. Dada à fluidez do tema, é possível colocar em evidência que o meio ambiente encontra íntima e umbilical relação com os componentes que cercam o ser humano, os quais são de imprescindível relevância para a sua existência. O Ministro Luiz Fux, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 4.029, salientou, com bastante pertinência, que: “[…] o meio ambiente é um conceito, hoje geminado com o de saúde pública, saúde de cada indivíduo, sadia qualidade de vida, diz a Constituição, é por isso que estou falando de saúde, e hoje todos nós sabemos que ele é imbricado, é conceitualmente geminado com o próprio desenvolvimento. Se antes nós dizíamos que o meio ambiente é compatível com o desenvolvimento, hoje nós dizemos, a partir da Constituição, tecnicamente, que não pode haver desenvolvimento senão com o meio ambiente ecologicamente equilibrado. A geminação do conceito me parece de rigor técnico, porque salta da própria Constituição Federal”. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão proferido em Ação Direta de Inconstitucionalidade N° 4.029/AM).  Prosseguindo na exposição, e igualmente compartilhando do entendimento acerca da amplitude da definição legal, o professor Celso Fiorillo acrescenta que a intenção do legislador foi de criar um conceito jurídico indeterminado facultando a existência de um espaço positivo de incidência de norma. (FIORILLO, 2012, p.77) Ademais, prima reconhecer que o conceito de meio ambiente foi, claramente, recepcionado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Neste sentido, o Constituinte Originário estabeleceu, na redação do artigo 225, a tutela ao bem jurídico ambiental, cujo objetivo é uma “sadia qualidade de vida”, para todos, presente e futuras gerações (solidariedade transgeracional). Sob esse contexto, entende José Afonso da Silva (2011) que, diante da deficiência do legislador em criar a norma prevista no art. 3º, inciso I, da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, não se preocupou em estabelecer os marcos limítrofes do bem jurídico. Entrementes, com o advento de uma nova realidade jurídica pela Constituição Federal de 1988, possibilitou-se outra definição, ou seja, uma tutela jurisdicional considerada mais ampla e mais abrangente. Neste sentido, meio ambiente é definido como “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas” (SILVA, 2011, p. 20).  Além disso, reconhece-se que o meio ambiente foi alçado à condição de direito de todos, presentes e futuras gerações, reconhecendo, de maneira cristalina, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como típico direito de terceira dimensão, ou seja, direito recoberto pelo manto da solidariedade, ultrapassando a conotação individualista e passando a conceber o gênero humano (coletividade) como destinatário. Disso decorre o entender de Silva (2011) em que é encarado como patrimônio, cuja preservação, recuperação ou revitalização se tornaram um imperativo do Poder Publico, sendo assim, compromete-se a uma boa qualidade de vida. Com a nova sistemática entabulada pela redação do artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o meio ambiente passou a ter autonomia, tal seja não está vinculada a lesões perpetradas contra o ser humano para se agasalhar das reprimendas a serem utilizadas em relação ao ato perpetrado. Figura-se como bem de uso comum do povo o segundo pilar que dá corpo aos sustentáculos do tema em tela. O axioma a ser esmiuçado, está atrelado o meio-ambiente como vetor da sadia qualidade de vida, ou seja, manifesta-se na salubridade, precipuamente, ao vincular a espécie humana está se tratando do bem-estar e condições mínimas de existência. Igualmente, o sustentáculo em análise se corporifica também na higidez, ao cumprir os preceitos de ecologicamente equilibrado, salvaguardando a vida em todas as suas formas (diversidade de espécies). (RANGEL, 2012, s. p.) Uma análise revestida de tecnicidade permite compreender que o meio ambiente é considerado em diversos aspectos, os quais, reunidos, substancializam o ideário axiológico do meio ambiente ecologicamente equilibrado. 5 BIOÉTICA AMBIENTAL? UM OLHAR BIOCÊNTRICO A mudança eminente de paradigma em relação à natureza e o ser humano são imprescindíveis na contemporaneidade. A superação do sistema que considera o homem como centro das relações (antropocentrismo), buscando uma nova relação fundamentada na solidariedade e cooperação com a natureza, colocando-a no centro do debate em substituição ao discurso essencialmente antrópico, o que se denomina de ecocentrismo. Trazendo novos conceitos de legitimidade e democracia participativa, novas e mais profundas formas de participação política popular e de organização institucional estatal (OLIVEIRA, 2015). A bioética, para cuidar dos procedimentos que afetam a vida humana e influenciá-los tem de observar as considerações expressas pelo direito. Assim, a dignidade da vida humana é alçada a um enfoque metajurídico em razão de sua base antropológica e de sua justificação ética. A bioética, quando ultrapassa o universo axiológico e é posta no ordenamento jurídico, transmuda-se em biodireito. Desta feita, um exemplo do ultrapassar consiste no desenvolvimento da biotecnologia e na correspondente problematização com os direitos humanos. (CAMPOS JUNIOR, 2015) A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, adotada por aclamação em 3 de outubro de 2005, pela Conferência Geral da UNESCO o artigo 3° que afirma a importância de respeitar o ser humano, na unidade de sua individualidade com a sua condição coletiva de membro de uma espécie, a humana, reconhecendo, portanto, o valor da sua dignidade. Prosseguindo na exposição, a Conferência, estabelece atos que possam pôr em perigo a dignidade humana, pelo uso impróprio da biologia e da medicina, resolve estabelecer, no âmbito das aplicações da biologia e da medicina, as premissas adequadas para garantir a dignidade do ser humano e os direitos e liberdades fundamentais da pessoa. Positiva-se, no artigo segundo, o interesse e o bem-estar do ser humano devem prevalecer sobre o interesse único da sociedade ou da ciência (UNESCO, 2006). No Brasil, a Lei 11.105/05 denominada como a Lei de Biossegurança, busca reordenar as normas de biossegurança e os mecanismos de fiscalização sobre as condutas que envolvam os organismos geneticamente modificados, sendo elas a condução, cultivo, produção, manipulação, transporte, transferência, importação, exportação, armazenamento, pesquisa, comercialização, consumo, liberação no meio ambiente e descarte, conforme preconiza o art. 1°, de forma a proteger a vida e a saúde humana, dos animais e das plantas, bem como o meio ambiente (VIEIRA; VIEIRA JÚNIOR, 2005, p. 154) A bioética pode contribuir no processo de preservação ambiental, por estimular reflexões e discussões acerca das consequências destas transformações que estão ocorrendo no meio ambiente, e que estão refletindo na saúde. Assim, como questionar esse atual modelo de desenvolvimento de exploração excessiva e que ameaça a estabilidade dos ambientes e seus sistemas de sustentação. A superação desse modelo atual de desenvolvimento constitui um novo desafio para a humanidade no qual a bioética tem muito a contribuir, na formação de leituras críticas sobre as intervenções humanas no meio ambiente, assim como os processos de preservação ambiental com reflexibilidade na saúde, sendo que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é preconizado pela Constituição Brasileira. Nesse sentido a preservação ambiental e a saúde são um direito à vida, não somente no aspecto individual, mas também no coletivo, pois as nossas ações relacionadas às quentões ambientais podem repercutir não somente ao ser humano, mas também em outras formas de vida. (CASSOL; QUINTANA, 2012, p. 223) As discussões da bioética, ainda são pouco utilizadas em relação às questões ambientais. A bioética pode ser uma importante ferramenta para análise do atual modelo de desenvolvimento de forma que possa atender as necessidades da atual geração, e permitir a sustentabilidade para as futuras gerações (BRAÑA, GRISÓLIA, 2012). Conforme Junges (2010) o aquecimento global reflexo da crise ambiental, tornou-se um problema global exigindo postura igual na busca de soluções. Reafirmando o cuidado como princípio primeiro da ética ecológica, deve ser tratado com postura e ações, por meio da propagação de uma cultura que contemple o cuidado como fator primordial para a solução da crise ecológica e social do planeta. Nesta esteira, revela curial ponderar que o aspecto de fraternidade que emoldura o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ultrapassando a mera essência de preservação do meio ambiente, alcançando, por seu turno, como uma das muitas facetas de concreção da dignidade da pessoa humana. É imperiosa, desta maneira, a edificação de uma ótica e postura global alicerçada na disseminação do ideário de que é imprescindível que se reverta a crise ambiental contemporânea. Trata-se, com efeito, da busca pela corresponsabilidade ambiental arrimada numa nova ética, na qual se deve buscar a superação do modelo egoístico do antropocentrismo alargado, primando, de outro ponto, a manutenção e preservação ambiental na condição de elemento atrelado, umbilicalmente, ao desenvolvimento do ser humano. (RANGEL, 2013) Ao lado disso, o ideário desenvolvimentista, por si só, invoca, urgentemente, à incidência do princípio da corresponsabilidade. Ademais, a crise ambiental existente na contemporaneidade reclama um enveredamento que seja capaz de promover o diálogo entre o desenvolvimento econômico e a preservação dos ecossistemas, traduzindo-se em desenvolvimento sustentável. Em harmonia com o sedimento apresentado, vale salientar que a estruturação da nova ética ambiental, ancorada nos ideários densos da corresponsabilidade, alvorece como eixo centralizador em que a sociedade assuma papel social de maior relevância, dialogando cooperação e solidariedade. Ora, os direitos que florescem na contemporaneidade não mais estão vestidos de aspectos individuais, mas sim são emoldurados por aspectos transindividuais, nos quais a coletividade é vista como unidade, a qual passa a reclamar conjunção de esforços para a promoção do ser humano. Nesta linha de exposição é possível identificar nos pilares estruturantes da bioética, concatenado a temas complexos e dotados de proeminência no cenário contemporâneo, a confluência de esforços para analisar fenômenos que vindicam o desenvolvimento de um discurso pautado na promoção da coletividade, na condição de unidade, a fim de alcançar, individualmente, a concretização do ser humano. 6 CONCLUSÃO Em razão do que foi exposto, pode-se compreender o direito como um sistema que opera com a ética, seja em sua dimensão científica, seja política, seja prática. Quando o objeto de incidência é o desenvolvimento, o direito impõe, a partir dos valores constitucionalmente estabelecidos como paradigmas políticos e administrativos, a forma da sustentabilidade. O estudo toma como realidade a unidade entre os princípios da ética e a finalidade do direito constitucional, na construção de um paradigma hermenêutico a se operar nas relações do biodireito com a bioética. Pode-se argumentar que a liberdade científica deve considerar os princípios políticos estabelecidos constitucionalmente. O biodireito envolve-se nesse debate articulando princípios éticos e jurídicos, na defesa do indivíduo humano e da ordem democrática, compreendidos como unidade, o que expressa também sua preocupação com as gerações futuras. Esses problemas permitem, em razão do ethos constitucional contemporâneo, que se busque no (bio)direito uma defesa da ética por meio da proteção jurídica, a qual se efetiva com fundamento nos princípios estabelecidos a partir dos direitos humanos, que determinam a priori a defesa e a valorização da vida humana. Ideologicamente, a matéria ambiental, como corolário das novas dimensões que se imprime, deve apontar no sentido da valorização da vida, em todas as suas formas, criando mecanismos legais e institucionais que façam valer seus desideratos.  O giro paradigmático desse movimento busca, portanto, propor novas alternativas para resolução de conflitos, priorizando perspectivas que foram ignoradas ao longo da história jurídico alinhado a aplicação das novas técnicas desenvolvidas na área das ciências relacionadas à vida, fundamentadas nas preocupações de natureza ética e moral, deste modo surgindo, o relevante campo de estudo dentro da Ética, a Bioética. As questões postas em debate nesse novo paradigma do conhecimento humano estão indiscutivelmente relacionadas com os direitos humanos, daí por que tomou relevo em todas as áreas das Ciências. A bioética pode contribuir no processo de preservação ambiental, por estimular reflexões e discussões acerca das consequências destas transformações que estão ocorrendo no meio ambiente, e que estão refletindo na saúde. Assim como questionar esse atual modelo de desenvolvimento de exploração excessiva e que ameaça a estabilidade dos ambientes e seus sistemas de sustentação. A superação desse modelo atual de desenvolvimento constitui um novo desafio para a humanidade no qual a bioética tem muito a contribuir, na formação de leituras críticas sobre as intervenções humanas no meio ambiente, assim como os processos de preservação ambiental com reflexibilidade na saúde, sendo que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é preconizado pela Constituição Brasileira. Nesse sentido a preservação ambiental e a saúde são um direito à vida, não somente no aspecto individual, mas também no coletivo, pois as nossas ações relacionadas às quentões ambientais podem repercutir não somente ao ser humano, mas também em outras formas de vida.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-164/bioetica-ambiental-em-pauta-uma-reflexao-a-luz-da-tabua-principiologica/
A utilização post mortem de embriões excedentários
As modernas técnicas reprodutivas levantam questões de direito referentes à utilização de embriões formados pela prática das técnicas de reprodução artificial após a morte de um dos genitores. O presente trabalho pretende analisar o posicionamento de estudiosos e operadores do direito sobre o tema e o cenário jurídico atual que o regulamenta, com o objetivo de analisar as formas que tais embriões podem ser utilizados. A metodologia empregada é a pesquisa bibliográfica e de dispositivos legais. A pesquisa demonstra que os embriões podem ser utilizados para futura tentativa de reprodução artificial ou para pesquisa e terapia científicos, mas que, de maneira geral, o ordenamento jurídico ainda não possui normas suficiente para regular as questões legais e éticas trazidas à tona por tais técnicas modernas.
Biodireito
Introdução O presente trabalho abordará o tratamento dado pelo ordenamento jurídico brasileiro atual à utilização de embriões excedentes das modernas técnicas de reprodução artificial, advindas do constante avanço científico e tecnológico, com atenção especial ao uso do embrião após a morte de um dos seus genitores. O tema abordado é de suma importância, tanto dos pontos de vista ético-jurídico quanto social, devido fato de tais técnicas servirem, primeiramente, para a satisfação da necessidade reprodutiva do casal interessado e, importarem-se em segundo momento com a criança pretendida, principalmente sob seu aspecto psicológico. O trabalho pretende analisar as normas que regem a reprodução artificial e o uso de embriões, bem como bibliografias de estudiosos do direito, com objetivo de avaliar a suficiência das leis brasileiras para regular as modernas técnicas reprodutivas e como elas ocorrem atualmente no país. Para tanto, serão abordados o surgimento e a evolução histórica da reprodução artificial e passará, então, a descrever as principais técnicas reprodutivas, para, logo após, avaliar o atual cenário jurídico que rege a reprodução artificial no Brasil. Por fim, a analisará o uso de embriões e sua utilização post mortem. Para alcançar os objetivos propostos será utilizada a pesquisa bibliográfica e de dispositivos legais como metodologia científica, de forma a analisar o atual cenário jurídico em torno do tema, bem como o posicionamento doutrinário em torno do mesmo. 1. A HISTÓRIA DA REPRODUÇÃO ARTIFICIAL A valoração da família está fortemente atrelada à história humana desde os tempos mais antigos, sendo possível encontrar, por exemplo, passagem da bíblia que afirma “não é bom que o homem esteja só […] por esta razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne” (Gênese, 2, 18.24). Tais relatos valorizam não apenas a família, mas também a reprodução, revelando uma relação intima entre ambas que decorrem de um papel social de perpetuamento a espécie, afirmando que “como flechas nas mãos do guerreiro são os filhos nascidos na juventude. Como é feliz o homem que tem a sua aljava cheia deles” (Salmos, 127, 3-5). Ainda, Roberto Lisboa afirma que Gregos e Romanos acreditavam que a reprodução era um dever cívico em relação ao matrimônio e à família, objetivando a formação da prole (LISBOA, 2002 p. 27 apud CRUZ, 2008 p. 3). Assim, é possível notar que o papel da família se definiu conforme os princípios de reprodução, de procriação e de sociabilização dos filhos (CRUZ, 2008 p. 5). Os relatos de incapacidade reprodutiva igualmente datam de muitos anos, sendo a valoração da capacidade de reprodução tão forte que, segundo Eduardo Leite, “[…] a mulher estéril era encarada como ser maldito, podendo ser banida do convívio social o que justificava, em Roma, o repúdio de seu marido, rejeição essa institucionalizada” (LEITE, 1995 p. 18 apud CRUZ, 2008 p. 4). Nos séculos 2 e 4 a.C, Galeno e Aristóteles, respectivamente, produziram os primeiros textos importantes sobre estudos de desenvolvimento embrionário. Antes, em 5 a.C, os povos gregos também haviam desenvolvido pesquisas embriológicas (MACHADO, 2012 p. 28-29). A humanidade continuou sua análise até os dias atuais, ocorrendo a primeira experiência humana de reprodução artificial no século XVIII, onde o inglês Jhon Hunter usou a esposa de um comerciante como cobaia de inseminação artificial (CRUZ, 2008 p. 6)[1]. Em 1947 foi desenvolvida a fertilização in vitro[2] a partir de experimentos com animais e, em 1953, foi desenvolvido estudo reconhecendo a utilização de sêmen congelado para realização de inseminação artificial humana, já existindo, neste ponto, divergências éticas e jurídicas em relação a bancos de sêmen e embriões (MACHADO, 2012 p. 30). Muito embora vários aspectos legais e sociais da família tenham sido alterados com o transcurso do tempo, ainda está presente, em boa parte dos casos, a valorização da prole, não mais como um dever cívico ou como objetivo a ser cumprido por aqueles que se unem, passando a receber um aspecto predominantemente sentimental. Hoje em dia muitas pessoas sonham com a possibilidade de gerar filhos frutos de suas próprias células reprodutivas. Assim, a reprodução artificial surgiu como uma resposta e solução aos casos de infertilidade e esterilidade que acometem parcela da população, obstruindo ou dificultando a realização do sonho desejado pelos possíveis genitores. 2. A REPRODUÇÃO ARTIFICIAL A reprodução humana assistida, segundo Ana Cláudia Scalquette, “é aquela em que o casal recebe orientação de forma a programar a maneira de suas relações, visando a facilitação do encontro do espermatozoide com o óvulo” (SCALQUETTE, 2010 p. 58). Ainda, a referida autora afirma que “a assistência à reprodução pode se dar, destarte, de duas maneiras: apenas em forma de aconselhamento e acompanhamento da periodicidade da atividade sexual do casal, a fim de otimizar as chances de que ela resulte em uma gravidez, ou pelo emprego de técnicas médicas avançadas, de modo a interferir diretamente no ato reprodutivo, objetivando viabilizar a fecundação” (SCALQUETTE, 2010 p. 58). De forma mais objetiva, Ivelise Cruz classifica as técnicas de reprodução assistida em métodos de alta e de baixa complexidade, estando entre estas o coito programado, enquanto naquelas encontram-se a fertilização in vitro, a inseminação artificial e a injeção intracitoplasmática de espermatozoide (CRUZ, 2008 p. 53). Logo, percebe-se que a reprodução artificial consiste no conjunto de técnicas medicamente assistidas, de alta complexidade, com o objetivo de unir as células reprodutivas viabilizando a gravidez em casais acometidos por problemas de infertilidade ou esterilidade. Os conceitos de infertilidade e esterilidade são distintos, sendo esta a condição do casal que mantem relações sexuais com intuito de procriar e não consegue obter a fecundação (MOREIRA, 2002 p. 1 apud SCALQUETTE, 2010, p. 60), enquanto aquela é a do casal que, nas mesmas condições, alcança a fecundação, porém o produto da concepção não possui viabilidade (SANTOS, 1996 p. 269-270 apud SCALQUETTE, 2010, p. 61). Na fertilização in vitro serão colhidos óvulos e sêmen para que a fecundação ocorra fora do corpo da mulher, com a posterior introdução do embrião no útero (DINIZ, 2014 p. 279), ocorrendo em três etapas. Na primeira etapa o medicamente injetável estimulará a ovulação feminina, na segunda ocorrerá a coleta dos gametas e na terceira ocorrerá a manipulação para a fecundação extracorpórea e posterior tentativa de inseminação do embrião (CRUZ, 2008 p. 27-28). O medicamento injetável será ministrado juntamente com doses de estrogênio e será colhido, na segunda etapa, mais de um ovulo, sendo todos fecundados gerando embriões, dos quais apenas os viáveis e saudáveis serão utilizados, crioconservando-se os excedentes, conforme o Item 2, da V secção do Anexo Único da Resolução nº 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina. Na inseminação artificial o sêmen será introduzido diretamente no aparelho reprodutor feminino com ajuda de um cateter, havendo a fecundação dentro do corpo da mulher, sem que haja manuseio externo do óvulo ou embrião (DINIZ, 2014 p. 679), sendo este método indicado para casos de infertilidade sem causa aparente e presença de anticorpos antiesperma (CRUZ, 2008 p. 24). Na injeção intracitoplasmática de espermatozoide ocorre com a retirada do espermatozoide diretamente do epidídimo[3] ou do testículo, passando, logo após, a serem realizadas todas as etapas descritas para a fertilização in vitro. Portanto, esta técnica pode ser considerada um desdobramento mais complexo daquela, devendo ser utilizada nos casos de infertilidade masculina grave (CRUZ, 2008, p. 32-33). Conforme a doutrina predominante, as técnicas de reprodução artificial mencionadas podem ser classificadas em homóloga e heteróloga. Na homóloga a técnica reprodutiva empregada utilizará os óvulos e sêmen do respectivo casal interessado, enquanto na heteróloga o método escolhido utilizará células reprodutivas de um doador. 3. SITUAÇÃO JURÍDICA DA REPRODUÇÃO ARTIFICIAL NO BRASIL Embora os estudos científicos em torno da reprodução assistida e da reprodução artificial venham ocorrendo há algum tempo, os avanços tecnológicos e científicos que possibilitam a realização dos referidos métodos são, na verdade, bastante recentes, logo, o ordenamento jurídico ainda não teve tempo suficiente para se adaptar a tais novidades. Atualmente, umas das poucas normas que tentam regulamentar a reprodução artificial e a utilização de embriões são a Resolução do Conselho Federal nº 2.121/2015[4] e a Lei 11.105/2005 comumente chamada de “Lei de Biossegurança”[5]. Essa última foi alvo da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510, proposta pelo Procurador-Geral da República que alegava ser inconstitucional a manipulação de células embrionárias, da qual o STF editou seu informativo nº 508: “PLENÁRIO. ADI e Lei da Biossegurança – 6. Em conclusão, o Tribunal, por maioria, julgou improcedente pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral da República contra o art. 5º da Lei federal 11.105/2005 (Lei da Biossegurança), que permite, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não usados no respectivo procedimento, e estabelece condições para essa utilização – v. Informativo 497. Prevaleceu o voto do Min. Carlos Britto, relator. Nos termos do seu voto, salientou, inicialmente, que o artigo impugnado seria um bem concatenado bloco normativo que, sob condições de incidência explícitas, cumulativas e razoáveis, contribuiria para o desenvolvimento de linhas de pesquisa científica das supostas propriedades terapêuticas de células extraídas de embrião humano in vitro. Esclareceu que as células-tronco embrionárias, pluripotentes, ou seja, capazes de originar todos os tecidos de um indivíduo adulto, constituiriam, por isso, tipologia celular que ofereceria melhores possibilidades de recuperação da saúde de pessoas físicas ou naturais em situações de anomalias ou graves incômodos genéticos. Asseverou que as pessoas físicas ou naturais seriam apenas as que sobrevivem ao parto, dotadas do atributo a que o art. 2º do Código Civil denomina personalidade civil, assentando que a Constituição Federal, quando se refere à "dignidade da pessoa humana" (art. 1º, III), aos "direitos da pessoa humana" (art. 34, VII, b), ao "livre exercício dos direitos… individuais" (art. 85, III) e aos "direitos e garantias individuais" (art. 60, § 4º, IV), estaria falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa. Assim, numa primeira síntese, a Carta Magna não faria de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva, e que a inviolabilidade de que trata seu art. 5º diria respeito exclusivamente a um indivíduo já personalizado. ADI 3510/DF, rel. Min. Carlos Britto, 28 e 29.5.2008.” (grifo nosso). Assim, ao julgar a improcedência da referida ADI, o Supremo Tribunal Federal assentou seu posicionamento quanto a teoria natalista para aquisição da personalidade civil. Para melhor entender o tema, faz-se necessário elencar os conceitos de “personalidade civil” e as teorias do momento de sua aquisição existentes na doutrina. Primeiramente, cabe salientar que é facilmente perceptível, da análise dos dispositivos normativos brasileiros, a importância e rigidez do ordenamento jurídico no que trata da proteção da vida humana, conforme o inciso IV, do art. 3º da Constituição Federal de 1988: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: […] IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Além disto, a Carta Magna estabelece o direito à vida no caput de seu art. 5º, garantindo “[…] aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Embora a Constituição contemple o direito à vida e a proteção da vida humana, não tratou de definir o entendimento que o ordenamento jurídico deverá adotar para que reconheça o momento no qual se inicia a proteção jurídica a vida humana. Para resolver tal questão o art. 2º do Código Civil de 2002 estabelece que, malgrado a personalidade civil da pessoa comece do nascimento com vida, a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. A personalidade civil, que se inicia com o nascimento com vida, não deve ser confundida com a personalidade jurídica. Nas palavras de De Plácido e Silva, a personalidade civil exprime a qualidade da pessoa legalmente protegida, para que lhe sejam atribuídos direitos e obrigações, conforme a lei, sendo esta decorrente da existência natural ou jurídica (SILVA, 2008 p. 562). Enquanto a personalidade jurídica é aquela atribuída ou assegurada às pessoas jurídicas, que as tornam suscetíveis de direitos e obrigações e garantindo-lhes existência própria protegida por lei (SILVA, 2008 p. 562). A personalidade civil se traduz na aptidão do ser humano para contrair direitos e deveres na ordem civil, conforme expresso no art. 1º do Código Civil. De acordo com Carlos Roberto Gonçalves “para qualquer pessoa […] basta nascer com vida e, desse modo, adquirir personalidade” (GOLÇALVES, 2011 p. 100), entendimento este bastante parecido com o supracitado do Supremo. Ainda, segundo Helena Diniz “quando o Código Civil enuncia, no seu art. 1º, que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil, não dá a entender que possua concomitantemente o gozo e o exercício desses direitos, pois nas disposições subsequentes faz referência àqueles que tendo o gozo dos direitos civil não podem exercê-los, por si, ante o fato de, em razão de menoridade ou de insuficiência somática, não terem a capacidade de fato ou de exercício” (DINIZ in FIUZA; SILVA, 2012 p. 87). Maria Helena Diniz afirma que “[…] a aptidão oriunda da personalidade para adquirir direitos e assumir deveres na vida civil dá-se o nome de capacidade de gozo ou de direito” (DINIZ in FIUZA; SILVA, 2012 p. 87). Então, o nascituro terá seus direitos resguardados a partir da concepção, porém concretizados com seu eventual nascimento com vida. A doutrina elenca três teorias que tentam definir quando ocorre a aquisição da personalidade e, por consequência, o início da proteção desta. A teoria natalista diz que a personalidade do ser humano se inicia no nascimento com vida (PINTO, 2015 p. 36), sendo este o entendimento firmado pelo Supremo Tribuna Federal a partir do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510. A teoria da personalidade condicional, semelhante à teoria natalista, explica que a personalidade civil começa com o nascimento com vida e que os direitos do nascituro estão sujeitos a condição suspensiva do seu nascimento com vida. Enquanto a teoria concepcionista sustenta que o nascituro possui personalidade ainda que no ventre, devendo seus direitos serem resguardados pela lei desde a concepção. Esta é a teoria aceita pela maioria dos doutrinadores como Silmara Juny Chinellato, Pontes de Miranda, Rubens Limongi França, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Pablo Stolze Gagliano, Maria Helena Diniz, dentre outros (TARTUCE, 2011 p. 70). Em julgado de 2014, o Supremo Tribunal de Justiça, em seu informativo nº 547, explicita que “o ordenamento jurídico como um todo (e não apenas o CC) alinhou-se mais à teoria concepcionista – para a qual a personalidade jurídica se inicia com a concepção, muito embora alguns direitos só possam ser plenamente exercitáveis com o nascimento, haja vista que o nascituro é pessoa e, portanto, sujeito de direitos – para a construção da situação jurídica do nascituro, conclusão enfaticamente sufragada pela majoritária doutrina contemporânea. Além disso, apesar de existir concepção mais restritiva sobre os direitos do nascituro, amparada pelas teorias natalista e da personalidade condicional, atualmente há de se reconhecer a titularidade de direitos da personalidade ao nascituro, dos quais o direito à vida é o mais importante, uma vez que, garantir ao nascituro expectativas de direitos, ou mesmo direitos condicionados ao nascimento, só faz sentido se lhe for garantido também o direito de nascer, o direito à vida, que é direito pressuposto a todos os demais. Portanto, o aborto causado pelo acidente de trânsito subsume-se ao comando normativo do art. 3º da Lei 6.194/1974, haja vista que outra coisa não ocorreu, senão a morte do nascituro, ou o perecimento de uma vida intrauterina. (REsp 1.415.727-SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 4/9/2014.)” (grifo nosso). Assim, não resta dúvida quanto a prevalência da teoria concepcionista no ordenamento jurídico brasileiro, não sendo as teorias natalista e da personalidade condicional suficientes para resguardar os direitos da personalidade do nascituro, devendo seus direitos, dentre eles o à vida, ser garantido desde a concepção, devendo o embrião, por tanto, ser considerado nascituro e ter seus direitos resguardados. 4. O USO DE EMBRIÕES A Lei nº 11.105/2005, também chamada “Lei de Biossegurança”, em seu art. 5º permite a utilização de células tronco embrionárias, para fins de pesquisa e terapia, de embriões excedentários da fertilização in vitro, desde que atendido um dos requisitos expostos em seus incisos I e II: sejam embriões inviáveis para o uso na reprodução artificial ou que estejam congelador há, no mínimo, três anos. Porém, ante o fato da prevalência da teoria concepcionista no atual ordenamento jurídico, haveria que se pensar que a decisão da ADI 3.510 e a utilização de células tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia seja inconstitucional por ferir os direitos da personalidade civil adquiridos no momento da concepção, porém tal linha de raciocínio não deverá prevalecer. Apesar dos preceitos concepcionistas, a Lei de Biossegurança trata apenas do uso de embriões em que o desenvolvimento jamais virá a acontecer, no caso dos inviáveis ou crioconservados por, no mínimo, três anos ocorrendo, segundo Flávio Tartuce, presunção de morte do embrião (TARTUCE, 2016 p. 82). O referido autor elenca uma segunda justificativa “porque a partir de uma ponderação de valores constitucionais, os interesses da coletividade quanto à evolução científica devem prevalecer sobre os interesses individuais ou de determinados grupos, sobretudo religiosos. […] Por fim, insta repisar que os critérios para a utilização das referidas células são rígidos, o que traz a conclusão do seu caráter excepcional” (TARTUCE, 2016 p. 82). Segundo a referida lei, células tronco embrionárias são as células do embrião humano que possuem a capacidade de se transformar em células de qualquer tecido do organismo humano (art. 3º, XI). Ainda, o art. 5º, em seu parágrafo 3º, veda a comercialização do material biológico de que trata, tipificando tal conduta no crime descrito no art. 15 da Lei 9.434/97. Em seu parágrafo 1º, o art. 5º estabelece a necessidade de consentimento dos genitores do embrião para utilização aos fins estabelecidos no caput do dispositivo. O comando em comento necessita especial atenção, tendo em vista que quando se tratar de embriões homólogos, será possível definir os genitores, porém o mesmo não ocorre no caso de embriões heterólogos. O art. 21 do Código Civil estabelece que a vida privada da pessoa natural é inviolável, possibilitando ao juiz adotar providências para que cesse o ato contrário a tal comando legal a requerimento do interessado. Além disto, item 2, IV, da Resolução 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina prevê que “os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa”. Logo, os embriões formados com participação de célula reprodutiva vinda de doador anônimo poderiam ser inseridos dentro do comando parágrafo 1º do art. 5º da Lei de Biossegurança? Dá análise dos textos legais, a resposta dedutível será negativa, cabendo tal comando tão somente aos embriões que se conhece os genitores, os homólogos. A secção nº I do anexo da Resolução 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina inaugura o conteúdo da mesma estabelecendo normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, que servem como dispositivos deontológicos a serem seguidos pelos médicos. Os itens da referida secção estabelecem o objetivo da reprodução assistida, estabelecendo-a como medida final a ser empregada quando demais formas terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes para sanar os problemas reprodutivos do interessado (item 1), devendo ser adotada apenas quando exista probabilidade efetiva de êxito e não exponha o paciente ou seu possível descendente à risco grave, não podendo a idade da paciente ser superior a 50 anos (item 2), podendo haver exceções ao limite etário (item 3). O paciente ou casal deverá preencher formulário especial de consentimento informado onde conste detalhadamente todos os aspectos médicos e riscos envolvendo a técnica reprodutiva, bem como os resultados já obtidos na unidade médica escolhida e, ainda, todos os dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico (item 4). O dispositivo proíbe a seleção do sexo ou qualquer outra característica do futuro filho, salvo para evitar doenças ligadas ao sexo da criança (item 5), além de proibir, também, a fecundação de células reprodutivas humanas, através de métodos de reprodução assistida, com outra finalidade que não a reprodutiva (item 6). A reprodução assistida possui o risco de multiparidade e, por tanto, o número de embriões a serem inseridos no corpo feminino nunca deve ser superior a quatro, sob pena de aumentar as chances do referido risco (item 7). Caso a multiparidade ocorra, é proibida a redução embrionária (item 8). A secção V estabelece, em seu item 2, que o centro médico informe ao paciente o número de embriões produzidos em laboratório, decidindo-se quantos embriões serão implantados “a fresco”, devendo o número excedente ser crioconservado, ficando proibido o posterior descarte ou destruição, devendo, no momento da conservação, ser informado pelos cônjuges ou companheiros, por escrito, quanto ao destino que será dado aos embriões em caso de morte, divórcio ou doença grave de um ou ambos e se desejam doá-los (item 3) O item 4, da secção V, estabelece a possibilidade de descarte de embriões crioconservados a mais de cinco anos caso seja a vontade dos genitores, não sendo obrigatória a utilização para fins de pesquisa e terapia com células tronco, prevista no art. 5º da Lei de Biossegurança. Assim, o uso de embriões excedentes crioconservados poderá ocorrer tanto para fins de pesquisa científica e terapia com células troncos, quando preenchido um dos requisitos previstos no art. 5º da Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), quanto para posterior tentativa de inseminação com finalidade de reprodução, seja no próprio casal interessado, seja havendo a doação de tais embriões, conforme sua vontade expressa, inclusive post mortem, permitida na secção VIII da Resolução CFM 2.121/2015. No caso específico da utilização de embriões post mortem, ou seja, após a morte de um dos genitores, é possível deparar-se com dilema ético-jurídicos que gerará desafio para o direito e para a ciência jurídica, pela alegação de “coisificação” do ser humano (DINIZ, 2014 p. 680-681), estando o ordenamento jurídico atual, indubitavelmente em processo de adaptação em relação aos modernos métodos reprodutivos. Nesse sentido, Diniz questiona “será que toda pessoa teria o direito, em qualquer condição, de ter um filho? Teria o direito à procriação artificial? A criança gerada artificialmente não correria o risco de ser considerada como um meio e não como um fim em si mesma? Parece-nos, então, que o sujeito primário da preocupação não seria a criança, mas sim o casal estéril. […] No porvir, poder-se-á ter uma legião de seres humanos feridos na sua constituição psíquica e orgânica… […] As novas técnicas conceptivas, de um lado, “solucionam” a esterilidade do casal, que terá seu filho, com interferência de ambos, de um só deles ou de nenhum deles, mas por outro lado, acarretam graves problemas jurídicos, éticos, sociais, religiosos, psicológicos, médicos e bioéticos”(DINIZ, 2014, p. 681-683). CONCLUSÃO Ante o exposto, foi possível constatar que a utilização de embriões homólogos crioconservados poderá ocorrer, conforme a disposição do art. 5º da Lei de Biossegurança, para fins de pesquisa e terapia com células tronco ou, conforme a Resolução CFM 2.121/2015, para nova tentativa de reprodução do casal ou sua doação, conforme a disposição de vontade expressa dos genitores, sendo, conforme a referida Resolução, possível o descarte de embriões conservados a, no mínimo, cinco anos e não sendo a utilização para os fins especificados na Lei de Biossegurança obrigatória. Não restaram dúvidas quanto ao fato do ordenamento jurídico permitir a reprodução artificial post mortem sem antes analisar a totalidade seus reflexos e consequências ético-jurídicas e sociais, dentre elas a “coisificação” do ser humano e sua produção visando, em primeiro lugar, satisfazer necessidades reprodutivas e preocupando-se posteriormente com o aspecto, dentro outros, psicológico da criança gerada. Constatou-se que para que o cônjuge ou companheiro sobrevivente utilize o embrião homólogo para reprodução post mortem, necessitará de anuência expressa feita pelo de cujus quando ainda em vida, estando ambos conscientes da responsabilidade assumida em eventual sucesso da técnica reprodutiva. Dentre as opiniões dos estudiosos, ficou demonstrado que após a decisão, claramente natalista, dada para a ADI 3510, instaurou-se a prevalência da teoria concepcionista no ordenamento jurídico e que, tal fato, mesmo assim, não invalida a decisão do Supremo Tribunal Federal, tendo em vista a norma atacada ser constitucional por presumir a morte do embrião antes de sua utilização para fins de pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias. O mesmo entendimento se estende ao caso de descarte do embrião após cinco anos de crioconservação. Foi possível constatar que o legislador necessita atentar para possíveis desafios ético-jurídicos surgidos com o nascimento de filho póstumo a morte do genitor, sendo exemplo dessa necessidade a adaptação do art. 1.597, III, do Código Civil, que passou a presumir a criança concebida na constância do casamento. Assim, conclui-se pela necessidade de o legislador criar normas rígidas referentes a reprodução humana artificial post mortem, com o intuito e efeito de priorizar em primeiro lugar a criança pretendida e em segundo lugar a satisfação dos desejos ou necessidades reprodutivas do casal que pretende a concepção de filhos através das referidas técnicas.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-164/a-utilizacao-post-mortem-de-embrioes-excedentarios/
Direitos sexuais em pauta: do reconhecimento da fundamentalidade da sexualidade
O artigo que aqui será desenvolvido tem o fito de apresentar a correlação entre os direitos fundamentais, humanos e sexuais, apresentando por meio de revisão literária que estas matérias são de extrema importância para a vida de toda sociedade. Frente a tantas dificuldades e tantas arbitrariedades no ramo do direito, a falta de representatividade das minorias dentro da seara politica e a falta de ação do legislativo mostram a importância do desenvolvimento de leis que possam proteger a sociedade na seara da sexualidade. Para tal é necessário a criação de um direito democrático a sexualidade, a fim de quebrar paradigmas e inovar, no âmbito nacional, no que diz respeito a matéria de direitos humanos e fundamentais.[1]
Biodireito
1 INTRODUÇÃO Com o advento da formação de Estados, houve então a necessidade de uma organização que proporcionasse segurança para aqueles que viviam como cidadãos, dentro deste mesmo Estado, e regulamentando a sua politica externa. A Constituição, neste cenário clássico, surgiu como um freio para as ações desmedidas dos chefes de Estados para com seu povo e contra os bens da própria nação, servindo como uma garantia. Desta forma, com o advento da Constituição, como esta garantia jurídica, para que esta também deixasse de lado a ideia de um Estado totalmente liberal, que não intervém na vida de seus cidadãos. Os direitos fundamentais foram desenvolvidos com o objetivo principal de criar condições para que os cidadãos tenham o básico em matéria de direitos. Contudo, com o amadurecimento do direto que se conhece hoje, bem como das Constituições, houve então a necessidade de se tutelar mais diplomas que concernem a direitos fundamentais. Após os horrores da segunda guerra mundial, as nações se uniram em torno de um mesmo e consoante direito, que foi a criação de direitos que tutelassem o homem seja em qualquer país que ele esteja. Neste diapasão, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi concebida para que todo o ser humano fosse livre e um ser de direitos e deveres capaz de fruir com o mínimo de uma vida digna. A DUDH surge então em toda sua matéria como um direito fundamental, em que as nações devem pautar suas ações, visando sempre à criação de uma relação saudável entre liberdade igualdade e fraternidade. Hodiernamente é reconhecido que os direitos humanos se fazem presente dentro da Constituição Brasileira de 1988, e que vários dos artigos da Constituição remetem ao texto da DUDH, da qual o Brasil é signatário. A Constituição cidadã, como assim ficou conhecida, traz em seu bojo variadas matérias de direitos humano-fundamentais, dos quais a dignidade da pessoa humana faz parte e da qual também é atualmente muito recorrida. Os princípios fundamentais tomaram um caráter de importância ainda maior dentro da sociedade, pois estes graças a sua enorme abrangência e recorrência dentro do Direito como um todo, fica patente a subsidiariedade entre a eficácia dessas matérias de direito humano-fundamentais e a realização do bem-estar da população. É visível que há, e se tornam cada vez mais corriqueiros, o desrespeito tanto aos direitos humanos como da mesma forma a direitos fundamentais presentes na Constituição. Dentro do rol de atentados contra aos direitos humanos tem-se aqueles que ferem o direito ao livre exercício da sexualidade, o qual ser perfaz como direito fundamental. A Constituição como lei das leis dentro do ordenamento jurídico e como provedora de preceitos humana-fundamentais deve ser respeitada e defendida, não somente pelos mecanismos que esta mesma criou deve ser também endossada pela sociedade. Assim, com o advento dos direitos sexuais e reprodutivos, e com a paulatina evolução dos mesmos, é possível notar o nexo que liga os direitos da esfera dos direitos humanos e fundamentais a matéria dos direitos sexuais. Pelo atual quadro disposto pela sociedade em que a sexualidade é tolhida como um assunto que por muitas vezes leva a tabus como o aborto, a prostituição, a homossexualidade e a transexualidade, é corriqueiro que haja preconceitos e também crimes contra a dignidade da pessoa humana. No caso concreto o juiz, que deve se subordinar aos princípios fundamentais constitucionais, e nestes pode encontrar algum respaldo na Constituição. Contudo ainda falta com que leis neste ramo sejam geridas a fim de suprir eventuais lacunas, como também venham a serem leis dispositivas com o fito de educar e não somente punir, quebrando paradigmas e preconceitos, que ainda são experimentados por parte da sociedade. Entretanto, devido à complexidade que é a formação do direito sexual, o qual adentra em varias searas do direito, este trabalho com a ajuda de revisão literária irá propor a construção de um direito democrático a sexualidade. Para que haja a promulgação deste direito é necessário um exame de consciência da sociedade, bem como um olhar mais benevolente para com as camadas mais vulneráveis da sociedade e para a construção de um bem-estar social sexual. 2 DA DELIMITAÇÃO DO VOCÁBULO "DIREITOS FUNDAMENTAIS" Para a construção de um Estado que seja real garantidor e tutor dos Direitos para a população, se faz necessário que este Estado promulgue a construção de um arcabouço jurídico e normativo capaz de satisfazer as demandas da população. A constituição tem como fito ser a matriz normativa sendo esta a principal fonte do Direito de um país, e proporcionando a força motriz necessária para que o indivíduo e a coletividade tenha capacidade de viver em sociedade. Dentro de um contexto histórico, o qual não será tão aprofundado neste artigo, observa-se nas Constituições do México (1917), da Republica de Weimar (1919) e também na Constituição Espanhola (1931). Tais Constituições tiveram grande importância em um plano de modernização do Direito, em favor do desenvolvimento de leis que visassem à garantia de direitos coletivos (Gschwendtner, 2001, s.p.). Estas Constituições foram responsáveis pela fomentação de Estados Sociais de Direitos em que o Estado liberal, que deixava a desejar quanto à tutela de direitos coletivos dá lugar a uma nova forma de Estado que passa a ser mais intervencionista na seara normativa (CADEMARTORI; GRUBBA, 2012, p. 704). O Estado passa agora a ter um caráter e função mais contemporânea, em que busca tutelar Direitos em vários diplomas, como primeiramente no caso da liberdade, e que depois com o galgar do tempo outros campos passaram a ser tutelados pelas constituições (CADEMARTORI; GRUBBA, 2012, p. 704). Neste contexto, a Constituição passa a “condensar” direitos fundamentais para que o povo possa se ver livre de arbitrariedades, praticadas especialmente pelo próprio Estado. Desta forma, o direito fundamental que se encontra, segundo Canotilho, como um “direito fundamental formalmente constitucional”, pois em sua forma ele habita o patamar constitucional e a sua matéria também se encontra como fundamental (CANOTILHO, s.d., p. 379, apud GSCHWENDTNER, 2001, s.p.). A promulgação, destes direitos fundamentais, se deu ao longo da historia, de forma a se dividirem em momentos, ou dimensões, como apresenta em seu artigo, Gschwendtner. “[…] num primeiro momento, afirmaram-se os direitos de liberdade, isto é, todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado; num segundo momento, foram propugnados os direitos políticos, os quais – concebendo a liberdade não apenas negativamente, como não-impedimento, mas positivamente, como autonomia – tiveram como conseqüência a participação cada vez ampla, generalizada e freqüente dos membros de uma comunidade no poder político (ou liberdade no Estado); finalmente, foram proclamados os direitos sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigências – podemos mesmo dizer, de novos valores –, como os de bem-estar e da liberdade através ou por meio do Estado." (BOBBIO, s.d., p. 32-33, apud GSCHWENDTNER, 2001, s.p.). Assim, o direito se divide em três dimensões de direitos, sendo que esta em ascensão de direitos que tratam de uma quarta dimensão, tema que será mais aprofundado no próximo titulo, a qual é apresentada como direitos a “autodeterminação, direito ao patrimônio comum da humanidade, direito a um ambiente saudável e sustentável, direito à paz e ao desenvolvimento” (GSCHWENDTNER, 2001, s.p.). Desta forma, os direitos fundamentais passam a vigorar em um plano positivo e ficou a cargo das constituições não somente compilar estes direitos, como também de fixar mecanismos para que os direitos sejam vinculados, e alcancem eficácia que seja erga omnes (SARLET, 2015, s.p.). Entretanto, ainda persiste a indagação, o que seriam direitos fundamentais? E segundo Alexy (2008, p. 76, apud MEZZAROBA; STRAPAZZON, 2012, p. 344) não há uma definição absoluta do que seria direitos de ordem fundamental, nem sequer se pode definir com perfeição normas e direito fundamental. Mesmo dada esta dificuldade pelo autor em determinar o que seriam direitos fundamentais, o autor traz valores que são inerentes à pessoa humana, valorem estes que são imprescindíveis, quais sejam: “1. a dignidade; 2. a liberdade; 3. a igualdade; 4. a propriedade; 5. a proteção; 6. bem-estar da comunidade” (ALEXY, 2008, p. 159; 571, apud MEZZAROBA; STRAPAZZON, 2012, p. 344). Tais valores devem ser interpretados como o cerne aos quais os direitos fundamentais se propõem a seguir. É fato que os direitos fundamentais também podem se desdobrar atingindo pontos infraconstitucionais alcançando assim as camadas mais profundas do ordenamento jurídico. Sendo assim, quanto a sua forma, a norma não se encontra no patamar constitucional, contudo sua matéria delibera sobre direito fundamental, estas normas são nomeadas “direitos materialmente fundamentais” (CANOTILHO, s.d., p. 379, apud GSCHWENDTNER, 2001, s.p.). Mas, de certo é preciso que a matriz constitucional tutele tais direitos a fim de reforça-los e protege–los, com o escopo de que se traga segurança jurídica (SARLET, 2015, s.p.). Corroborando com os valores fundamentais apresentados por Alexy, Canotilho também assevera que os direitos fundamentais, e estes valores devem cumprir funções, que são: “função de defesa ou de liberdade, função de prestação social, função de proteção perante terceiros e função de não discriminação” (CANOTILHO, s.d., p. 383-386, apud GSCHWENDTNER, 2001, s.p.). Sendo assim, os direitos fundamentais tem como suas principais funções, a proteção de valores que são inerentes às pessoas, e de cumprir de forma concreta funções que atinjam estas pessoas. Os direitos fundamentais, não importando se é formalmente constitucional ou materialmente fundamental devem de forma concreta proteger e tutelar a todos sem exceções, tratando assim de “bens de valor comum” para a sociedade (MEZZAROBA; STRAPAZZON, 2012, p. 346). A Constituição brasileira de 1988 não teve a preocupação de ter um rol taxativo de direitos fundamentais, e atualmente em seu artigo 5º explicita os direitos de ordem fundamental (GSCHWENDTNER, 2001, s.p.). Contudo, as matérias de direitos fundamentais vão muito além do artigo 5° da Constituição, outros artigos como: art. 1°, inciso III, que trata da dignidade da pessoa humana; art. 3°, inciso IV, que trata do bem estar de todos sem distinção de qualquer tipo; o art. 6º, que traz os direitos de ordem social. Além destes elencados, outros direitos trazem em sua matéria o peso de princípios fundamentais. Outro exemplo de direitos fundamentais, entretanto que gravita em ordem internacional são os direitos humanos, que pode ser encontrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos que, em seu bojo, traz direitos e garantias fundamentais só que para um escopo global. Os direitos humanos, em face da DUDH foram criados com o objetivo da manutenção da paz, por intermédio de garantias fundamentais para que esta paz fosse cunhada no cenário internacional pós-guerra (CADEMARTORI; GRUBBA, 2012, p. 710). Os mesmos autores também trazem a definição do que seriam os direitos humanos de um modo geral. “Mas o que são os direitos humanos? São processos de luta – social, política, cultural, jurídica, econômica – pelo acesso igualitário e não hierarquizado a priori aos bens materiais e imateriais, a uma vida digna de ser vivida, sejam eles de expressão, convicção religiosa, educação, moradia, meio ambiente, cidadania, alimentação, dentre tantos outros” (CADEMARTORI; GRUBBA, 2012, p. 716). Esta definição mostra que a acepção do que são os direitos humanos e as suas reinvindicações vão ao encontro dos valores fundamentais como a liberdade e a construção de uma vida digna e a obtenção e garantia de direitos, que são o real cerne dos direitos humanos (CADEMARTORI; GRUBBA, 2012, p. 716). Os direitos humanos e sua positivação em um âmbito internacional faz com que este se torne uma fonte da qual os diretos fundamentais podem encontrar respaldo para a sua real efetivação, pois o Brasil assim como vários outros países se encontram como signatários da DUDH. Entretanto, mesmo com vários países como signatários desta declaração e de vários outros documentos que discutem e defendem os direitos humanos, e, por conseguinte os direitos fundamentais e é possível notar que a efetivação real destes direitos esta longe de ser pacifica em todos os países. Assim, a afirmação de que os direitos humanos partem de lutas por direitos sociais faz sentido, pois, apesar de que alguns países a obtenção destes direitos podem ocorrer de forma fácil em outros se encontra uma forte resistência, por motivos econômicos e culturais (CADEMARTORI; GRUBBA, 2012, p. 716). Desta forma, o Código Constitucional e os Direitos humanos não se confundem, pois ambos gravitam em âmbitos diferentes, e buscam garantir pontos diferentes. A Constituição tem o fito de fazer a matriz legislativa de um país, enquanto os direitos humanos, que são criados por meio de lutas sócias e são formalizados por meio de tratados e declarações, podem ser ou não efetivados no âmbito interno de um país. Todavia, ambos tanto os direitos positivados e condensados em uma Constituição, quanto os direitos humanos são geradores dos direitos fundamentais, e também são responsáveis pela efetivação jurídica destes direitos (CADEMARTORI; GRUBBA, 2012, p. 722).   3 DIREITOS SEXUAIS COMO MANIFESTAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Na esteira de valores e direitos fundamentais observa-se a presença da liberdade, igualdade e fraternidade em vários diplomas internacionais, como também na Constituição Brasileira de 1988. É perceptível que na seara do Direito, em face da dignidade da pessoa humana, houve uma evolução factível dos direitos fundamentais e em outros ramos do direito (SARLET, 2008, apud MEZZAROBA; STRAPAZZON, 2012, p. 336). Tais evoluções nos direitos fundamentais tem um caráter de promover um melhor uso da matéria do direito, tendo em pauta a “proteção mais qualificada da dignidade da pessoa humana” (REALE, 2004a; 2004b, apud MEZZAROBA; STRAPAZZON, 2012, p. 336). Neste diapasão, os ideais de direitos fundamentais tendem a sofrer mudanças conforme os fatores sociais de cada país, pois, a matriz responsável por gerar estes direitos fundamentais, as Constituições e os direitos humanos, está sujeita a transformações. Estas transformações destes direitos culminam hoje em uma quarta dimensão de direitos fundamentais que anseia pela concretização no plano material de seus direitos, atingindo assim o bem-estar social (MEZZAROBA; STRAPAZZON, 2012, p. 337). A ideia dos direitos sexuais surge no cenário internacional com êxito na Conferência Internacional de População de Desenvolvimento, sediada no Cairo, em 1994, em que o tema foi tradado pelo viés da saúde e do direito reprodutivo (SOUSA, 2010, p. 4.906). Logo após, o vocábulo direito sexual foi amplamente difundido e adotado por grupos sociais vulneráveis, como os movimentos de grupos homossexuais e feministas. Estes grupos viviam em um contexto histórico em que AIDS e outras doenças infectocontagiosas transmitidas pelo sexo estavam presentes, pela primeira vez de uma forma mais contundente (SOUSA, 2010, p. 4.906). O vocábulo direito sexual veio à baila na IV Conferência Internacional sobre a Mulher, realizada em Pequim, e os direitos sexuais ganharam contornos mais sólidos ao serem tratado pelo livre exercício da sexualidade e do direito a saúde sexual (SOUSA, 2010, p. 4.906). Como no Cairo, também em Pequim a ideia da sexualidade tem um forte vinculo com os valores dos direitos fundamentais e terceira dimensão, onde o Estado é garantidor de ações que visem o cumprimento de “direitos sociais”, como a saúde (GSCHWENDTNER, 2001, s.p.). Deste modo, pode-se observar que os direitos sexuais possuem como fito promover a liberdade, tendo em vista a liberdade de gerar ou não gerar um feto ou de escolher quantos irá gerar. Como da mesma forma age diretamente sobre dignidade da pessoa humana em que o Estado fica responsável por  caucionar meios para a saúde sexual, promovendo uma gestação diga e tratamento digno a enfermidades sexuais. Assim, é necessário notar os direitos que concernem sobre a sexualidade já se constituem como direitos humanos por sua ligação umbilical de um para com o outro, e por consequência os direitos humano-sexuais podem ser entendidos como direitos fundamentais (SOUSA, 2010, p. 4.907). “Mas, se a noção de direitos sexuais e reprodutivos – ou, mais especificamente, de direitos sexuais – explicita a relação entre sexualidade(s) e Direitos Humanos, é preciso considerar, ainda, a sexualidade como direito, isto é, não apenas existem Direitos Humanos (hoje consolidados no plano internacional) que advêm do exercício da sexualidade (o que está evidente na noção de direitos sexuais e reprodutivos) como também o próprio exercício da(s) sexualidade(s) constitui-se em Direito Humano. A relação entre sexualidade e Direitos Humanos nos leva, assim, à compreensão dos direitos às sexualidades – no plural” (SOUSA, 2010, p. 4.907). Os direitos sexuais, como fundamento na discussão atual dos direitos humanos, como uma matéria de direito fundamental está enraizada nos vários diplomas dos direitos e valores fundamentais (RIOS, 2006, p. 88). Contudo, o grande desafio que é posto à sociedade é quanto à realização dos direitos humanos de forma integral e eficaz, ainda é possível se constatar que as violações dos direitos humanos que ainda tomam lugar em vários Estados. Essas violações em muitos destes países se dão por causa da sexualidade, em que a liberdade deste direito fundamental não pode ser fruída pelos seus cidadãos (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 06). Ao observar que os direitos sexuais são direitos voltados para todos, porém, são defendidos, em sua grande maioria pelas minorias marginalizadas da sociedade. Direitos esses, que são defendidos por meio de lutas, e os direitos que por eles que são consolidados forma os “direitos humano-fundamentais” os quais são necessários para a o bem-estar desta porção da sociedade, e para as demais do mesmo modo (CADEMARTORI; GRUBBA, 2012, p. 714). Os direitos humanos, bem como também o direito Constitucional devem presar pelas minorias proporcionando a elas direitos, as tutelando, e não pondo elas à margem da lei, “assim, o respeito às diferenças culturais e o direito às liberdades – religiosa, política, étnica, e demais, devem ser garantidos”, afim de um bem e respeito coletivo (CADEMARTORI; GRUBBA, 2012, p. 714). Porém, em verdade, os direitos humanos sociais são tolhidos e mitigados de varias formas, seja pela omissão do legislativo em criar normas que possam regulamentar e tutelar esses direitos, pela falta de ação do executivo para a criação de politicas publicas, ou por objeções no que concerne ao investimento nessas politicas (MEZZAROBA; STRAPAZZON, 2012, p. 337). É necessário destacar que além destas objeções na seara politica, do mesmo modo encontram-se objeções no que tange a pressões sociais da maioria heterossexual dominante, e também pressões de cunho religioso (CORRÊA, 2007, p. 47). Tais barreiras postas entrem os sujeitos e seus direitos, além de uma afronta contra os direitos humanos, levam a sociedade a promover desigualdades sócias, a pobreza, e a marginalização de grupos que preferem vivenciar a sua sexualidade de forma diferente dos demais (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 06). Ao passo que, da evolução destes direitos fundamentais no âmbito internacional os Princípios da Yogyakarta denunciam os males que são impostos a estes grupos. E por intermédio de princípios a Yogyakarta visa assegurar que não ocorra a segregação desses grupos com orientações sexuais divergentes. “Entretanto, violações de direitos humanos que atingem pessoas por causa de sua orientação sexual ou identidade de gênero, real ou percebida, constituem um padrão global e consolidado, que causa sérias preocupações. O rol dessas violações inclui execuções extra-judiciais (sic), tortura e maus-tratos, agressões sexuais e estupro, invasão de privacidade, detenção arbitrária, negação de oportunidades de emprego e educação e sérias discriminações em relação ao gozo de outros direitos humanos. Estas violações são com frequência (sic) agravadas por outras formas de violência, ódio, discriminação e exclusão, como aquelas baseadas na raça, idade, religião, deficiência (sic) ou status econômico, social ou de outro tipo” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 06). Assim é fundamental que o cenário de barbáries contra a DUDH, em face da sexualidade seja cessado, deste modo, os Princípios da Yogyakarta buscam em seus 29 princípios a proteção do sujeito bem como sua à sexualidade. O documento elenca por meio de direitos que vão ao encontro das ideias propostas na DUDH, as ratificando os ideais da declaração quanto ao seu conteúdo dentro do escopo da sexualidade (WAS, 2000, s.p.). De fato, pode-se observar que vários dos princípios da Yogyakarta convergem para os artigos da DUDH, um exemplo está em seu primeiro artigo que determina que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Já na Yogyakarta em seu primeiro princípio, o excerto é mantido como na DUDH com o acréscimo de que “os seres humanos de todas as orientações sexuais e identidades de gênero têm o direito de desfrutar plenamente de todos os direitos humanos”. O mesmo princípio que também esta em sintonia com o artigo 2° da DUDH que em seu primeiro inciso que postula que todos os serem humanos tem o direito a usufruir dos direitos humanos sem sofrer nenhuma forma de preconceito (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, p. 05). Outro documento em âmbito internacional que trata dos direito sexuais é a Declaração dos Direitos sexuais, feita por intermédio do XV Congresso Mundial de Sexologia, que foi sediado em Hong Kong (CHINA), na Assembleia Geral da WAS – (World Association for Sexology). Na declaração dos direitos sexuais é possível constatar vários princípios fundamentais em face da liberdade como: “direito à liberdade sexual; o direito à autonomia sexual; o direito à expressão sexual; o direito à livre associação sexual; o direito às escolhas reprodutivas livres e responsáveis (WAS, 2000, s.p.)”. Da mesma forma, como o direito fundamental voltado para as praticas sociais: “o direito à informação baseada no conhecimento científico; o direito à educação sexual compreensiva; o direito à saúde sexual (WAS, 2000, s.p.)”. Contudo, as conferencias e os documentos que tratam sobre os direitos sexuais têm apenas o caráter de apontar os melhores caminhos e normas do ordenamento interno dos países, porém sem vincular o país á cumpri-los (SOUSA, 2010, p. 4.906). Estas reuniões tem apenas o apelo moral do qual o Estado pode acabar aderindo ou não, respeitando o princípio fundamental de que cada nação é livre para eleger o arcabouço jurídico que lhe convém (SOUSA, 2010, p. 4.906). Entretanto, o Brasil quanto às normas que deliberam sobre direitos humanos e fundamentais, em sua Lei Maior, elenca em seu artigo 4° inciso II que, in verbs: “a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: [omissis] II a prevalência dos direitos humanos” (BRASIL, 1988). Da mesma forma a Constituição dedica três parágrafos a estes direitos. “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [omissis] § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.  § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.  § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (BRASIL, 1988). O Texto Constitucional, em suma, elege os direitos humanos e fundamentais como principais fontes do direito que permeia todas as demais normas que vierem abaixo da Constituição. A própria Magna Carta Brasileira elenca os princípios fundamentais e deixa em aberto para que outros princípios humano-fundamentais possam ingressar no ordenamento jurídico nacional. Corroborando com o que foi apresentado até este momento, a Constituição de 1988 condensa as normas de direitos humanos fundamentais, mas ainda não se vive uma Constituição em que todos estes princípios são aplicados a todos sem exceção. Muito menos em uma sociedade onde é provido pelo Estado o bem de todos sem distinção (BRASIL, 1998, art. 3°, inc. IV), pelo contrario se vive em uma sociedade onde as maiorias gozam destes princípios e onde as minorias convivem com a falta destes direitos fundamentais. Assim, na esfera dos direitos sexuais, o legislativo brasileiro ainda reluta para positivar leis que tangem a sexualidade (SOUSA, 2010, p. 4.910), apesar de se tratarem de um direito humano-fundamental.  4 DIREITO DEMOCRÁTICO DA SEXUALIDADE No plano atual em que a sociedade se encontra, é perceptível que para a efetivação dos direitos sexuais depende de vários fatores sociais e políticos, que precisam ser observados, como é para a constituição de qualquer direito. É materialmente palpável e formalmente claro que os direitos sexuais são direitos com o fulcro humano-fundamental, pois, após á analise feita dos tópicos anteriores, se vê que a matriz dos direitos fundamentais advém da matéria de direitos humanos internacionais e é condensada na Constituição. A própria Constituição de 1988, por meio da interpretação de seus princípios fundamentais, evidencia que a tutela sobre o direito sexual deve ser prestada como já é em casos concretos (SOUSA, 2010, p. 4.007). No entanto, muitos casos ainda caem na arbitrariedade e são muitas vezes decididos fora dos princípios fundamentais Constitucionais já construídos, porém não são todos os casos que permitem ser dirimidos com base em princípios fundamentais, sendo “casos difíceis” (SOUSA, 2010, p. 4.911). Entre esses casos difíceis, entram os que concernem à sexualidade, à saúde sexual, à formação de famílias homossexuais, temas que sofrem com decisões controvérsias dentro do judiciário (SOUSA, 2010, p. 4.910). Como uma solução viável para esta situação é necessária à implementação de um direito sexual democrático para que se possam desenvolver normas com o fito não apenas restritivo, mas, que possa servir de base para que todos os cidadãos possam desenvolver a sexualidade (RIOS, 2006, p. 73). Para que tal direito assim possa ser desenvolvido é imprescindível à participação de ações politicas, sociais e legislativas com o cunho regulador e educativo. Assim para a construção deste direito este deve se debruçar sobre os princípios já existentes, como a liberdade a igualdade e a dignidade, a fim de consolidar um direito que se encaixe nas diretrizes de um Estado democrático de direito, seja no âmbito jurídico, politico ou social (RIOS, 2006). A problemática que se impõe como impeditivos para a realização dos direitos sexuais são muitos, entre esses motivos têm-se os que seguem o pensamento tradicionalista. Para tal pensamento a três pontos que Rios delimitam como: o argumento majoritário, argumento moralista e o argumento biomédico (RIOS, 2006, p. 94-96). Para o argumento majoritário o padrão que se criou foi o do heterossexualíssimo e o domínio patriarcal sobre a sociedade, com isso os desvios sexuais e a vivencia da sexualidade de formas diferentes que fogem ao padrão podem ser consideradas como afrontas a vontade da maioria e da democracia (RIOS, 2006, p. 94). Contudo, o argumento majoritário como base a decisão democrática é refutável se levada em consideração a criação dos direitos humanos que servem para proteger as minorias de abusos (RIOS, 2006), como também o próprio argumento foge aos princípios fundamentais da liberdade e da autodeterminação. A democracia é um “regime que não se resume à vontade da maioria” (RIOS, 2006, p. 94), mas que é pautado pela pluralidade de ideias e vontades que pelo princípio da igualdade em direitos, postulados tanto pela DUDH quanto pela Constituição de 1988. Para o argumento moralista, impera, além da vontade majoritária, também a moral construída pela maioria, moral esta que regula a forma como os gêneros devem viver sua sexualidade criando expectativas sobre os gêneros (CAMARGO, 2011, p. 7). Para tal moral o desenvolvimento de um direito sobre a égide sexual seria uma desvio da moral, desqualificando qualquer norma sobre este tema, sendo como retratada por Rios (2006, p. 94) uma “deturpação valorativa”. Para a constituição desta moral fica também a grande contribuição religiosa, que deve ser respeitada, porém que também deve respeita os limites e as liberdades alheias por perigo de criar um atrito entre direitos. A verdade é que a utilização da religião como um pressuposto para a vigência da moral é carente de esteio normativo, uma vez que a Constituição promulga um Estado que é laico, e que presa pelo livre exercício da liberdade (RIOS, 2006, p. 95). Para desconstruir esta barreira, Rios  recorre ao pensamento de John Stuart Mill.  “A única moralidade que a democracia pode acolher é a moralidade crítica, em que os argumentos do gosto, da tradição, do nojo e do sentimento de repulsa da maioria não podem ser finais, sob pena das ameaças do integrismo, do fundamentalismo das tradições, do autoritarismo vindo daqueles que se considerem iluminados” (RIOS, 2006, p. 95). Como exposto pelo autor, tais pensamentos remetem aos pensamentos totalitaristas dos quais movimentos como o nazismo e o fascismo surgiram, e foram responsáveis por atrocidades contra vários povos e minorias na Europa no período da Segunda Guerra Mundial. Na sociedade atual, a mesma moral é responsável por condenar certos grupos, marginalizando-os e estigmatizando-os na sociedade e, também, por realizar atos contra os direitos humanos (CORRÊA, 2007, p. 49). Com o intuito de mudar este quadro atual é importante que estes direitos democráticos sexuais sejam amplamente discutidos e difundidos, com o intuito de discutir e quebrar os paradigmas da sociedade. Sendo este debate realizado por métodos de conscientização, em sala de aula a fim de contribuir com o movimento em favor da diversidade sexual e da consolidação dos direitos humano-sexuais (PEREIRA; BAHIA, 2011, p. 52). Por último, o argumento biomédico alude sobre a utilização da patologia que é atribuída a identidades de gênero e também a certos tipos de vivencias sexuais que são consideradas pelos médicos como desvios patológicos (RIOS, 2006, p. 95). Tal pensamento visa desqualificar a criação de direitos, aliado com o pensamento moralista pelo discurso de que tal exposição à sexualidade seria motivo de “contaminação” das gerações mais novas (RIOS, 2006, p. 96). Com efeito, e necessário que ao contrário seja desconstruída esta visão fria e patológica sobre as diferentes formas de ser e viver a sexualidade, para tal a educação multicultural deve ser o ponto de partida para que estas novas gerações percebam que estão inseridas em uma sociedade complexa em diferentes culturas (PEREIRA; BAHIA, 2011, p. 62). Assim, entendendo que a concepção de um direito democrático da sexualidade vai muito além de qualquer tipo de argumentação majoritária, é necessário que se faça o reconhecimento deste direto e que ele seja desenvolvido com algumas ressalvas. O direito sexual, inicialmente, teve seu desenvolvimento voltado para a saúde e para as mulheres, contudo, o direito democrático-sexual deve ser para todos, não somente se limitar a um grupo social (RIOS, 2006, p. 82). A temática da saúde é de grande importância para o direito sexual, porém, é preciso alargar e aprofundar estes direitos a fim de abranger vários temas sensíveis, que não podem ser marginalizados (RIOS, 2006, p. 82). Sousa, em tom de complementação, vai espancar que: “Na discussão sobre sexualidade e Direitos Humanos, tomamos a noção de direitos sexuais e reprodutivos como parâmetro, a fim de evidenciar as questões relacionadas ao tema, tais como: planejamento familiar; acesso a métodos contraceptivos seguros; esterilização cirúrgica; assistência à gravidez e ao parto, incluindo atendimento pré-natal; aborto; mortalidade materna; novas tecnologias reprodutivas; doenças sexualmente transmissíveis e AIDS; violência e exploração sexual; prostituição e turismo sexual; não-discriminação em razão de orientação sexual; uniões e famílias homossexuais; “mudança de sexo” e alteração do registro civil, entre outras” (SOUSA, 2010, p. 4.907). É imprescindível que este direto democrático da sexualidade se afaste de qualquer tipo de rotulo, sendo assim o mais abrangente possível, e que possa regular de forma pautada em princípios como a liberdade e igualdade (RIOS, 2006, p. 83). Assim o direito deve sim criar proteção em forma de direitos para todos no que tange a sexualidade, fazendo isso é necessário que seja evidenciado que a uma diversidade cultural e também social entre as pessoas afastando situações de discriminação do seio da sociedade (GRILLO, 1995, apud RIOS, 2006, p. 83) por meio de uma lei que não seja incriminaria, mas, que tenha o cunho de ressocialização popular. De fato, para que esta ressocialização popular ocorra, e para que o diploma dos direitos democráticos sexuais seja concebido é necessário se recorrer a princípios como a liberdade e a dignidade, também como é preciso que se recorra a documentos internacionais ligados aos diretos humanos (RIOS, 2006, p. 83). Como já mencionado, documentos como a Yogyakarta e Declaração dos direitos sexuais, incorrem para a fomentação deste direito democrático da sexualidade, e também ambos podem servir de base para a formação nacional deste direito, já que estes dois documentos estão em harmonia com a declaração dos direitos humanos. O principio da liberdade, bem como o da igualdade, dentro desta formação positiva de direitos, auxilia na construção jurídica para que se possa legislar e atuar em casos individuais ou em casos coletivos em que estes direitos são violados ou são invocados pelas partes (RIOS, 2006, p. 84). Para que tal princípio seja desenvolvido exponencialmente é necessário tão somente que as diretrizes da DUDH sejam respeitadas e ampliadas para o escopo da sexualidade, como foi feito na Yogyakarta tal como exemplifica Rios. “Direito à liberdade sexual; direito à autonomia sexual, integridade sexual e à segurança do corpo sexual; direito à privacidade sexual; direito ao prazer sexual; direito à expressão sexual; direito à associação sexual; direito às escolhas reprodutivas livres e responsáveis; direito à informação sexual livre de discriminações. Estes são alguns dos desdobramentos mais importantes dos princípios fundamentais da igualdade e da liberdade que regem um direito da sexualidade. Liberdade, privacidade, autonomia e segurança, por sua vez, são princípios fundamentais que se conectam de modo direto ao direito à vida e ao direito a não sofrer exploração sexual” (RIOS, 2006, p. 85). Nesse diapasão, outro principio que é fundamental é o principio da dignidade da pessoa humana, que constitui o fato de que este direito democrático sobre a sexualidade, bem como a prestação social para a equidade entre grupos sociais vulneráveis e grupos majoritários é uma necessidade. Este entendimento não parte de uma visão de mera vitimização de um grupo, e sim de uma situação de vulnerabilidade tendo em vista que as maiorias muitas vezes criam obstáculos para as necessidades básicas destes grupos com base na orientação sexual destes (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d.). Estes que ferem a dignidade da pessoa humana dão ainda mais força para a necessidade da criação de um direito sexual que traga mais liberdade, igualdade e dignidade. Deste modo, a criação de um direito democrático para a sexualidade incorre para vários prismas do direito, com a característica de direito fundamental que possui, e seu desenvolvimento, em âmbito nacional pode representar mais um avanço na seara dos direitos humanos. Quanto à possibilidade de sua criação, vale ressaltar o que Marin (2012, p. 104) diz que: “o Direito não é produto da vontade do legislador e sim fruto da própria sociedade que fornece os elementos necessários à formação dos estatutos jurídicos”. Sendo assim o direito democrático a sexualidade, em sua matéria, teria o respaldo sócio fundamental necessário para a tutela da sexualidade defendendo direito fundamental da sociedade. Desta forma é necessário que a legislação Brasileira seja consoante com a DUDH e também com este novo preceito fundamental sobre a égide de direitos sexuais. “NOTANDO que a legislação internacional de direitos humanos impõe uma proibição absoluta à discriminação relacionada ao gozo pleno de todos os direitos humanos, civis, culturais, econômicos, políticos e sociais, que o respeito pelos direitos sexuais, orientação sexual e identidade de gênero é parte essencial da igualdade entre homem e mulher e que os Estados devem adotar medidas que busquem eliminar preconceitos e costumes, baseados na idéia de inferioridade ou superioridade de um determinado sexo, ou baseados em papéis estereotipados de homens e mulheres, e notando ainda mais que a comunidade internacional reconheceu o direito de as pessoas decidirem livre e responsavelmente sobre questões relacionadas à sua sexualidade, inclusive sua saúde sexual e reprodutiva, sem que estejam submetidas à coerção, discriminação ou violência;” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 10). Para que este direito seja criado é necessário que se vença não somente a barreira social que hodiernamente persiste em existir, como também é necessário que o legislativo, seja da mesma forma, vencido. O legislativo deve deixar de ser um campo infrutífero para a seara dos direitos sexuais e (SOUZA, 2010, p. 4.909) e se torne um local que pleiteie não somente pelas maiorias como também pelas minorias. 5 CONCLUSÃO Por fim, após fazer o caminho passando pelos direitos humanos e direitos fundamentais, culminando nos direitos sexuais pelo escopo democrático, ficam dois pontos deste trabalho, os quais são imprescindíveis para o ramo do direito. O primeiro ponto é o porquê de um direito democrático a sexualidade? E o pensamento conflui diretamente para os direitos humano-fundamentais os quais como liberdade, igualdade e dignidade, fazem parte das diretrizes do direito sexual e também do direito reprodutivo. Os direitos sexuais debatem a sexualidade como um direito que é inerente a todos e que deve ser exercido por todos sem nenhum tipo de preconceito. Como da mesma, forma as pessoas que exercem sua sexualidade de forma diferente não podem ser privadas do convívio e de direitos fundamentais, assim como é exposto nos princípios da Yogyakarta. Ainda se vive em uma sociedade em que pessoas são discriminadas e que são privadas de direitos básicos, pois, ainda não foram alcançadas pelos princípios fundamentais contidos na DUDH. E há países em que direitos são tolhidos pela orientação sexual de pessoas, com base em pretextos morais que não são verdades absolutas, mas que são tratados como se fossem. A criação destes paradigmas morais que não permitem que o arcabouço jurídico vigente evolua no mesmo passo que o direito internacional, demonstra que este tipo de moralidade de opressão majoritária não cabe em um estado democrático de direitos. O segundo ponto que é importante ressaltar deste artigo, é quanto se há a real necessidade de um direito que verse sobre a sexualidade? E a resposta só pode ser afirmativa, pois, o Estado assume para si o dever de regulamentar os direitos fundamentais e proporcionar uma vida livre e digna a todos os seus cidadãos sem preconceitos. Como dito anteriormente, o quadro atual do país, e de muitos outros, é de preconceito e de hipocrisia que transformam o ato sexual em algo imoral. Quando há a ameaça a direitos de ordem fundamental, como é o caso dos direitos sexuais, é necessário que o governo na figura de seus administradores e legisladores criem medidas e politicas para que possa proteger as camadas mais vulneráveis da sociedade. Não se trata aqui de vitimismo ou algo do gênero, se trata do direito de se constituir uma família, de poder partilhar seus bens, de ter seu nome como aquele que exprime quem você é realmente, se trata de poder se amar. Trata-se também de ser tratado como um cidadão como outro qualquer sem que se tenha medo de perder tudo ou ser julgado por isso.    O papel do Estado deve ser o de garantidor, e a criação de leis no âmbito sexual deve fugir da criação de rótulos, muito menos deve legislar sobre apenas um grupo em especifico, mesmo porque a sexualidade é inerente a todos os seres humanos. Desta forma, os direitos democráticos a sexualidade devem buscar não criar proibições ou penas, o qual não deve ser o foco principal. O cerne deve ser criar um dispositivo legal capaz de educar, da saúde e assistência social e ao mesmo tempo proteger este bem fundamental que é a liberdade sexual.
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Xenotransplantação e suas implicações bioéticas: reflexões sobre os princípios da responsabilidade e da precaução
Todo o comportamento humano pode ser considerado sob perspectivas éticas. Com o espantoso desenvolvimento técnico-científico, notadamente no campo biomédico, cada vez mais e cada vez maiores se apresentam os dilemas éticos. A xenotransplantação como técnica biomédica para o prolongamento da vida humana ou sua melhoria não foge à regra. Ainda em seu estágio inicial de desenvolvimento, inúmeros questionamentos podem e devem ser feitos no campo filosófico da bioética antes da aplicação corriqueira da técnica. O escopo deste artigo é, justamente, apresentar a temática e demonstrar sua complexidade para além da realização do procedimento, expondo alguns pontos a serem considerados no campo bioético. Para tanto, se abordará cada um dos tópicos sugeridos, justificando a necessidade de reflexão prévia na esfera ética com base em esparsas considerações doutrinárias, de forma dedutiva, especialmente à luz dos princípios responsabilidade (de Hans Jonas) e da precaução. Serão feitas considerações acerca da dignidade do animal (sacrificado para o xenotransplante) e da morte como etapa natural da vida. Tais considerações serão tomadas como norte para os questionamentos bioéticos (dentre outros possíveis) a respeito da gratuidade do transplante do órgão animal, da possibilidade de modificação do genoma de espécies animais para permitir a xenotransplantação, e dos riscos e benefícios para a pessoa individualmente considerada e para a humanidade. *
Biodireito
1. Estado da técnica. Antes de se adentrar no ponto de investigação deste trabalho, há de se situar o atual estágio do xenotransplante na biomedicina. Aponta-se como motivo para o xenotransplante a falta de órgãos para o alotransplante (transplante de órgãos, tecidos ou parte de corpo humano). Como ressaltam Alessandra Furlan, Rita de Cássia Espolador e Karina Maziero, “Embora o crescente número de doações, existe inquestionável desequilíbrio entre o excesso de demanda e a escassez de oferta dos órgãos disponíveis” (FURLAN; ESPOLADOR; MAZIERO, 2010, p. 49), o que reflete em milhares de falecimento por ano, os quais poderiam ter sido evitados com alto grau de probabilidade. Além do aumento da fila e do número de falecimentos, Denise Luz relembra que “o transplante é considerado um procedimento de baixo custo se comparado a outros procedimentos”, como a hemodiálise no caso de mal funcionamento dos rins, o que o torna uma opção recomendável do ponto de vista econômico tanto ao setor público como ao setor privado (LUZ, 2013, p. 8). No que se refere ao estado da técnica da xenotransplantação, dois casos mostram-se emblemáticos: Baby Fae e São Petersburgo. No caso Baby Fae um paciente pediátrico recebeu o coração de um babuíno, tendo os médicos conhecimento de que a técnica não lhe solucionaria a enfermidade, tanto que o paciente morreu após 20 dias. O caso, por óbvio, suscitou muitos questionamentos bioéticos. Dois deles se referem à utilização de um bebê como objeto de experimentação em humanos e o sacrifício de um babuíno para a realização do experimento.[3] No caso de São Petersburgo (Cf. LUZ, 2013, p. 9), um paciente com hepatite-B, no ano de 1992, recebeu um fígado de um babuíno porque os médicos acreditavam que os rins dos babuínos seriam resistentes à doença e que outro rim humano não resistiria a ela. Após cinco dias da cirurgia, o paciente caminhava e comia, e, após um mês, recebeu alta. Contudo, o babuíno era infectado pelo vírus HIV e o paciente, no segundo mês, foi internado com inúmeras complicações. A causa da morte foi uma infecção no cérebro. O HIV, segundo os médicos, não teria influenciado a morte, embora eles não tenham descartado a hipótese de complicações decorrentes da rejeição do órgão animal como causa do falecimento. A aplicação da técnica do xenotransplante em animais da mesma ordem zoológica que o Homem, a priori, impede que haja rejeição aguda, além de haver semelhanças anatômicas e funcionais, daí porque a escolha pelos primatas. Contudo, a proximidade com os macacos traz maiores riscos de infecção, uma vez que muitas doenças são comuns para Homens e macacos. Outrossim, a reprodução dos primatas é mais demorada, e apresenta maiores dificuldades na criação em cativeiro, o que desindica o xenotransplante nesses termos (Id., Ib.). Por essa razão a comunidade científica optou por realizar pesquisas em outros animais, elegendo-se os porcos como os preferidos. Várias foram as razões da escolha: existem em abundância, até porque a cria é múltipla; o desenvolvimento e a reprodução são acelerados; crê-se que o risco de transferência de infecções é menor; e há menor contestação pública no aspecto ético porque servem de alimento (MENESES, 2010, p. 37). É mais do que conhecida e corriqueira a técnica pela qual se inserem válvulas no coração humano advindas dos corações de porcos. Doutro lado, Denise Luz ressalta que, por estarem os suínos mais distantes dos humanos na escala genética, a rejeição é aguda, de modo que a reação do organismo humana é rápida e intensa, visando a destruição do organismo invasor. Por essa razão, “passou-se a adotar a técnica de introduzir genes humanos em porcos, modificando-os geneticamente, a fim de minimizar o risco de rejeição para os seres humanos quando recebessem esses órgãos” (LUZ, 2013, p. 11-12). No mesmo sentido, noticia Roberta Adena: “Mas o uso de células e órgãos de porcos e de outros animais ainda tem grande limitação. No intuito de melhorar esse quadro, pesquisadores vêm lançando mão de técnicas sofisticadas de terapia genética. Há grupos testando a produção de porcos com órgãos mais compatíveis com o organismo humano, o que diminuiria a chance de rejeição em casos de xenotransplante. Nesses experimentos, Galvão explica que partes desses animais que provocam a rejeição hiperaguda são substituídas por genes humanos” (2013, online). Vale dizer, em busca do prolongamento da vida e de sua qualidade, não só se está a realizar o transplante de tecidos, órgãos e partes do corpo de animal para o humano, mas, também, está-se a modificar os próprios animais, em sua genética, para beneficiar o ser humano, chegando ao ponto de aproximar, artificialmente, as espécies pelos genes. 2.Um norte para o tema: dignidade animal e a morte. Norteando todo o debate, duas grandes questões se apresentam: a dignidade animal e a morte como etapa da vida. Na discussão sobre o xenotransplante, deve-se discutir a dignidade animal e a questão da morte, que parecem temas-tabu ao ser humano. 2.1.Dignidade animal: o animal como sujeito de direitos. Desde logo, “Indaga-se: é ético modificar uma espécie para que esta sirva ao homem? Para melhorar o corpo humano, podemos modificar o da outra espécie?” (GIMENES; VIEIRA, 2009, p. 212). E mais: é ético sacrificar um animal, sem seu “consentimento”, para auxiliar o ser humano? Essa é a primeira suscitação que o xenotransplante oferece. Cada vez mais se defende que os animais possuem dignidade, assim como o Homem. Se este não pode ser usado como meio/objeto/instrumento de realizações, por que aqueles poderiam? A vida não é igual? Ou possui valoração diversa conforme o bel-prazer do Homem? Ao Superior Tribunal de Justiça chegou um habeas corpus em favor da liberdade de dois chipanzés: HC 96344/SP. O Ministro Castro Meira indeferiu o writ liminarmente, porém, em sede de agravo regimental, o Min. Herman Benjamin pediu vista. O julgamento, contudo, não foi concluído porque houve desistência do recurso. No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro também já se abordou a questão: HC 0002637-70.2010.8.19.0000. Comumente sempre se negou a condição de sujeito de direitos aos animais, negando-lhes, também, dignidade. Ramiro Délio Borges de Meneses, pesquisador português do tema, sustenta que o animal não possui direitos, mas, ao contrário, é o Homem que possui deveres para com o animal, especialmente o de evitar o sofrimento (MENESES, 2010). Escreve o autor citado que “os animais não são dotados do nível de consciência, racionalidade e sensibilidade que caracterizam o Homem, pelo que não é legítimo extrapolar para o animal tudo que causa dor e desconforto para o Homem” (Id., Ib.). Conforme apontam Paula Maria Lara e Paula Cristiane Sales, “essa visão decorreu de um enraizado conceito religioso de que os animais não possuíam alma”. Não só Descartes propagou essa ideia como Aristóteles e Platão defendiam a superioridade do Homem sobre os animais (LARA; SALES In ZANITELLI; SILVA, 2015, p. 465-466). Doutro lado, ainda conforme as autoras citadas, a desconstrução desse pensamento começou a ocorrer com Darwin, que, com seus estudos e suas obras, demonstrou que o Homem e os animais derivam duma evolução única, dum tronco comum, negando a criação especial humana (Id. Ib., p. 466). Seguindo, mais um passo foi dado com Bentham e Rousseau, que afastaram o foco da racionalidade/irracionalidade, passando-o para a senciência, para a capacidade que humanos e animais têm de sentirem dor, sofrimento (Id. Ib., 470-471). Vários estudos, a partir de Darwin, demonstram, inclusive, que o comportamento de animais como cavalo, cachorro e macaco expressam semelhanças com o do ser humano, especialmente quando sentem dor, como contração nos músculos faciais e aceleração dos batimentos cardíacos. A ponderação é importantíssima, porque, a priori, o Código Civil trata os animais como coisas, como patrimônio, como bens semoventes. E interpretação diversa, a partir da Constituição, em especial, os alçaria a outra condição, à condição de sujeitos de direitos (com reflexos processuais, inclusive). Vale dizer, de objetos para satisfação humana, instrumentos, os animais passariam a ser vistos como fins em si mesmos (na melhor acepção da filosofia kantiana expandida para além do antropocentrismo).[4] Nesse sentido, ainda com Paula Maria Lara e Paula Cristiane Sales, é de se diferenciar os conceitos de “pessoa” e “sujeito de direitos” (Cf. LARA; SALES, cit., p. 468-469). No Código Civil, estatui-se no art. 1º que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. Ou seja, toda pessoa (natural ou jurídica) é sujeito de direitos, porque capaz de contrair obrigações e titularizar direitos. Contudo, a interpretação sobre esse texto legal, ou seja, a norma que dele se deve extrair, não pode ser limitativa. Ainda que toda pessoa seja capaz de direitos e deveres na ordem civil, essa afirmação não conforma norma negativa no sentido de que quem não for pessoa não é capaz desses mesmos direitos e deveres. Tanto é verdade que a massa falida, o espólio, o condomínio, o Ministério Público, o Tribunal de Justiça, não se constituem como pessoas. Esses entes, entrementes, são dotados de personalidade judiciária para o processo (civil ou criminal), e a eles se reconhece a capacidade de titularizar direitos e contrair obrigações, a demonstrar que a condição de “pessoa” não é essencial para a condição de “sujeito de direitos”. Fábio Ulhoa Coelho, justamente por considerar que nem todo sujeito de direitos é pessoa, define “sujeito de direitos” como “centro de imputação de direito e obrigações pelas normas jurídicas”, e classifica os sujeitos como: personificados e não personificados; humanos e não humanos (COELHO, 2014, p. 159-160). Os termos em questão (“sujeito” e “pessoa”), portanto, não são sinônimos, e a condição jurídica de “pessoa” do Código Civil não exclui outras posições jurídicas para a qualificação como “sujeito de direitos”. Dessa forma, especialmente pela moderna leitura constitucional que se deve fazer, a condição de animal pode muito bem possibilitar a titularização de direitos. Nesse sentido, aos animais se deve creditar direitos fundamentais, típicos da personalidade, como a vida, a saúde, a integridade física, a liberdade de serem e perseguirem o que a natureza lhes reservou; direitos capitaneados pelo conceito de dignidade (não humana, no caso). Nesse sentido, ainda, Denise Luz, analisando a específica criminalização das condutas dispostas no art. 32 da L. 9.605/1998[5] sustenta que “o bem jurídico objeto de tutela é a dignidade animal”, e não o meio ambiente, a fauna ou o equilíbrio ecológico (LUZ, 2013, p. 15). Quem realiza maus-tratos, fere ou mutila animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos, e quem com eles realiza experiência dolorosa ou cruel, ainda que para fins didáticos ou científicos, pratica crime contra o animal, e não contra a fauna. A função ecológica é um bem coletivo; mas a vida do animal, sua integridade física, sua saúde, é um bem individual, próprio, decorrente de sua dignidade, de sua condição de sujeito de direitos. Luis Greco, da mesma forma – e com pretensão parecida à deste trabalho (fundamento para a permissão ou proibição do xenotransplante) –, a partir do Direito Alemão, tenta justificar o porquê da proibição penal de praticar crueldade com animais (preocupação válida num ambiente em que cada vez mais se restringe a incidência do Direito Penal), embasando-se na proibição alemã, muito semelhante àquela do mencionado art. 32 da L. 9.605/98 (GRECO. 2010, online). Após breve exposição da evolução histórica sobre a proteção dos animais pelo Direito Penal alemão, que passa pelo dever moral do Homem para com o animal e por um meio de luta contra atitudes interiores cruéis, Greco distingue três grandes justificativas para a criminalização em comento: a proteção indireta do Homem, a proteção do animal (representando a quebra com o liberalismo antropocêntrico míope) e aquela que julga a penalização das condutas contrárias aos animais como uma exceção aos princípios tradicionais (do Direito Penal em especial) (Id. Ib., item 1, p. 48-50). O autor afasta a proteção indireta do ser humano. Ele salienta que, para uma vertente de pensamento, os cidadãos sentem-se revoltados quando têm conhecimento de maus tratos de animais (fls. 50), e, por isso, é que se mostraria justificada a punição do comportamento. Contra esse raciocínio opõem duas críticas: que não se puniria a conduta em si, mas o escândalo que provoca, e, ainda, que aproximaria o Direito Penal da punição provocada por paixões e sentimentos, abrindo portas ao moralismo prejudicial, como, por exemplo, aquele que suscita sentimentos contrários à homoafetividade (p. 50-51). Seguindo, em oposição àqueles que defendem a penalização com base num interesse coletivo, contra-argumenta o autor que essa justificativa só oferece uma explicação “histórico-causal”, mas não uma justificativa “jusfilosófica-normativa”, sem contar o fato de que o interesse coletivo na proteção dos animais pode muito bem justificar um interesse coletivo na proteção da moralidade, na perspectiva de um interesse social na “vida sexual normal” (p. 51), o que seria muito prejudicial aos considerados “anormais”. Contra aqueles que veem no agente dos maus tratados um comportamento que permite uma prognose de realização de outros maus futuros, argumenta que essa mesma visão pode ser usada para outros aspectos moralistas: o homoafetivo, para alguns, demonstraria um caráter voltado à transgressão, e, por isso, ao puni-lo se evitaria um mal maior possível, imaginado (p. 52). Contestando aqueles que sustentam que os maus tratos aos animais quebram a paz jurídica e que a falta de criminalização levaria à realização de justiça contra as próprias mãos, indica que essa mesma fundamentação poderia ser utilizada para reforçar preconceitos. A título de exemplo cita as sociedades em que a intolerância à homossexualidade é manifesta: ora, tal comportamento violaria a paz jurídica, provocando reação social, e, por isso, deveria ser criminalizada (p. 52). Por fim, contrapondo-se àqueles que sustentam haver na criminalização uma proteção ao meio ambiente, deixa claro que a visão do meio ambiente é holística, de tal modo que a supressão da vida do animal, caso não afete o equilíbrio ecológico, poderia ser considerada insignificante ante a totalidade do meio ambiente que não se mostrou desequilibrado (p. 52-53) – e cuja prova talvez seja impossível ou só se revele em data muito posterior, acrescenta-se. E daí conclui: “Deve-se retirar uma lição do fracasso de todas as tentativas de uma fundamentação indireta: os animais são protegidos pelo Direito Penal não em função do ser humano, mas em função de si mesmos” (Id. Ib., p. 53). Por esse raciocínio, assim como os seres humanos, os animais possuiriam valor intrínseco; possuiriam dignidade. E, com essa afirmação, o autor também afasta qualquer argumentação positivista (lógico-formal). A uma porque a positivação da proteção animal, por si só, ainda que inserida na Carta Maior, não corresponde à explicação para o porquê da positivação, para o porquê da norma (que se encontra no campo filosófico). A duas porque o consenso democrático atrela a questão à formação momentânea da maioria, suscetível a reviravoltas, podendo, sempre, ser revista e, eventualmente, ser suprimida tal proteção (p. 53-55). E, por isso, afirma ser imprescindível “inserir a proteção estatal dos animais no interior de uma teoria liberal das tarefas do Estado” (Id. Ib., p. 55). Nesse sentido, em favor da dignidade animal, apresenta, como valor intrínseco, uma finalidade central do pensamento liberal: enxergar a dominação do outro como um mal a ser evitado (Id. Ib., p. 56). Sobre a possibilidade de objeção limitadora à relação humana, argumenta que a dominação, em si, é um desvalor, o que abre as portas para a dignificação animal, que não deve ser dominado mediante dor e sofrimento, “Afinal, na relação entre ser humano e animal, é o animal o mais fraco, aquele que possivelmente será objeto de heterodominação”. E, ainda sobre a possibilidade de objeção limitadora à autonomia humana, o autor relembra que os animais superiores (com formação encefálica avançada), possuem um grau de autonomia, com capacidade de “iniciar ações por terem [assim como os Homens] desejos e finalidades (desires) e suporem que podem satisfazer ou alcançar esses desejos ou finalidades por meio da prática de determinada ação” (Id.Ib., p. 57). Arrematando: “E com isso está cruzada a ponte para a fundamentação do tipo de crueldade com animais. A inflição de “dores ou sofrimentos consideráveis” a um animal não é, por si mesma, problema do Estado. Ela se torna, no entanto, problema do Estado quando as crueldades alcancem uma tal intensidade, a ponto de que um ser capaz de autodeterminação se torne heterodeterminado, não restando mais praticamente nada dessa capacidade de autodeterminação: isso porque a provocação de dores e sofrimentos pode gerar o mais complete controle sobre o outro, qual seja, um controle que torne possível determiner não apenas que ações o outro praticará – nada mais do que gritar – como também o conteúdo de seus desejos e de sua vontade – de que as dores cessem – e por fim também de suas crenças e pensamentos sobre o mundo – até o ponto em que o mundo da vítima dos atos de crueldade passe a conter nada além da dor. O caso paradigmático de crueldade não elimina apenas a capacidade de agir, mas também a de querer e a de pensar, e por isso o impedimento desse tipo de conduta é da competência do Estado, cuja legitimidade também se deriva do fato de que ele existe para impeder tais ocorrências” (Id. Ib., 57-58). Também nesse caminho, defende-se na doutrina que o Estado Social de Direito já foi ultrapassado pelo Estado Pós-Social, o Estado Socioambiental de Direito, com uma dimensão ecológica visível, no qual se visa conciliar os direitos liberais, sociais e ecológicos. E tal entendimento suscita uma revisão do conceito kantiano de dignidade, essencialmente antropocêntrico e individualista, “ampliando-o para contemplar o reconhecimento da dignidade para além da vida humana”, para a vida mesmo, “ou seja, para incidir também em face dos animais não-humanos, bem como de todas as formas de vida de um modo geral, à luz de um matriz filosófica biocêntrica (ou ecocêntrica)” (FENSTERSEIFER, 2007, p. 19-20),[6] objetivando, com isso, o reconhecimento de valor intrínseco da e na natureza (status moral). Dentro de toda essa perspectiva de proteção animal, pode-se identificar, na doutrina, duas correntes (classificações de pensamento): a do bem estar animal e a do abolicionismo animal (Cf. SILVA, 2009, p. 20-21). A primeira contenta-se com a ausência do sofrimento animal, admitindo experiências, sua venda, ou qualquer outro tipo de prática sem sofrimento. A segunda, mais radical, vai mais longe, e repugna qualquer utilização dos animais como instrumento de realização humana (até mesmo para fins de alimentação), independente da existência de dor ou sofrimento. Para os fins deste trabalho, não obstante, depois de toda a exposição neste tópico, bastará a fixação deste ponto: a temática relativa aos direitos dos animais não pode ser excluída do debate acerca do xenotransplante, conforme se avançará.[7] Não se quis (ou mesmo se quer por agora) definir uma posição, mais ou menos radical, negar ou afirmar os direitos dos animais (e do restante da natureza), propor novas delimitações e distinções doutrinárias. Pretende-se, noutro giro, demonstrar que essa temática, cada vez mais candente, deve permear toda a discussão acerca da xenotransplantação e seus aspectos éticos, bioéticos e normativos (biodireito). Não se cuida mais só da vida humana, mas também de outras, destacadamente a do animal em matéria de xenotransplantação. 2.2.A morte como fase da vida. Para além do assunto apresentado no item anterior (que, admite-se, ocupa boa parte da presente reflexão), outro aspecto deve ser considerado quando da consideração do xenotransplante: a morte (e a vida). “A finitude humana é um assunto politicamente inadequado e socialmente temido, pois remete a sentimentos de dor, separação, angústia e sofrimento”, como ressaltam Amanda Gimenes e Tereza Vieira. E seguem: “A morte não é vista como parte integrante da vida, mas sim, como algo que deve ser negado, aniquilado. É tratada como um castigo inquietante, pois envolve a perda de entes queridos” (GIMENES; VIEIRA, 2009, p. 196). “A cultura ocidental tenta evitá-la [a morte] a qualquer custo, prolongando a vida por meio da obstinação terapêutica, reanimação, transplantes, próteses etc.” (Id., Ib), levando a extremos de sua negação pelo Homem, tal como a criônica. Noticia-se, inclusive, que a morte é encarada como fracasso e como uma inimiga a ser derrotada (Cf. SIQUEIRA In MORITZ, 2011, p. 15). Contudo, “A morte é uma realidade contra a qual não se pode lutar”, ainda que possa ser retardada por técnicas biomédicas, a exemplo da xenotransplantação. “A morte, além de ser um fato biológico, é uma realidade metafísica, um fato social e histórico. Assim, sempre haverá uma grande preocupação envolvendo o tema. A reflexão bioética é o cenário ideal para o debate das discussões em torno do assunto” (GIMENES; VIEIRA,2009, p. 216). Nesses termos, é óbvio que a morte (e a vida) e as considerações que sobre ela se faz devem permear as questões bioéticas impostas pela xenotransplantação, afinal de contas, essa técnica foi desenvolvida para prolongar a vida (burlar a morte) e, quiçá, melhorá-la em termos de qualidade. “Vemos uma cultura de exagerado apego à vida e negação da morte”. Entrementes, o fim da vida deve ser visto de forma natural, cabendo ao Homem adequar-se a um contínuo processo de sua aceitação, possibilitando encará-la de maneira consciente e serena (ARAÚJO In MORITZ, 2011, p. 143 e 141, respectivamente). Daí porque, aqui, coloca-se como primordial o tema, devendo-se debater até que ponto o Homem pode e deve chegar, com o auxílio da técnica, da biomedicina, para evitar a morte (prolongamento a vida), e até que ponto se pode e deve buscar melhorar a qualidade de vida com o uso da xenotransplantação em detrimento da vida e/ou integridade física dos animais. Como freio a todo e qualquer impulso científico, a dignidade (humana e não-humana) e a ética se colocam para evitar catástrofes. No caso da xenotransplantação, a morte tem de ser vista como fato natural, como acontecimento inevitável, como elemento característico do ser vivo, como estágio da vida. O controle (como probabilidade) sobre o momento da morte pode ser maior ou menor. Sobre como se dará a morte, também, incluindo o grau de sofrimento. Mas, ela é inevitável. Já se disse, “A mortalidade não tem cura. É nessa confluência entre a vida e a morte, entre o conhecimento e o desconhecido, que se originam muitos dos medos contemporâneos” (BARROSO; MARTEL, 2012, online). Doutro lado, “O fenômeno da medicalização da vida pode transformar a morte em um processo longo e sofrido” (Id., Ib.), e sem sentido, acrescenta-se. Sem melindres sobre o tema, na xenotransplantação, há de se sopesar a morte humana, infalível, incontornável, com os riscos da técnica para o homem (receptor do órgão animal) e para o Homem (universo coletivo). Há, ainda, que se refletir sobre a possibilidade de êxito do emprego da técnica, os efetivos ganhos em qualidade de vida, a dignidade animal, seus direitos e outros padrões éticos, como o lucro sobre a técnica e a possibilidade de o ser humano recriar a natureza a partir de modificações genéticas. Ora, o mote que se coloca, tão simples e tão tormentoso, é o do custo-benefício: se todos morrerão, há justificativa ética para ofender a integridade física de um animal, sua vida, sua herança genética (que é natural), torná-lo coisa mercantilizável? São esses os desafios que se pontuará a seguir (sem qualquer pretensão exaustiva, até pela natureza do trabalho), deixando-se de lado, aqui, a questão da experimentação em humanos, a questão da experimentação em animais, a questão do consentimento e, ainda, a questão sobre a real falta de órgãos humanos para transplante com relação ao tema da xenotransplantação. 3.A questão da gratuidade e do mercado. Quem pagará pelos xenotransplantes? Quem detiver o animal cujo órgão se retirará para o transplante poderá ser remunerado? Admitir-se-á um nicho comercial desta estirpe: criadouro de animais (geneticamente modificados ou não) prontos para morrerem em benefício dos humanos que precisam de órgãos? E o Estado, manterá criadouros de animais (geneticamente modificados ou não) para realizar o transplante de seus órgãos para os cidadãos gratuitamente (pressupondo seu dever constitucional de assegurar o direito à saúde)? Isso sem se cogitar a fonte de custeio e a relação com os planos de saúde. Poder-se-á autorizar que o setor privado (laboratórios) crie animais modificados para benefício humano e patenteie suas descobertas científicas? E o uso dessas descobertas só será utilizada mediante contraprestação, fixada pela mão invisível que rege o mercado? Essas questões não podem deixar de ser ponderadas quando se pensa na xenotransplantação. Daí porque os temas são pontuados. O art. 1º da L. 9.434/97, que disciplina os transplantes de órgãos no país, e a própria Constituição Federal, em seu art. 199, §4º, impõem a gratuidade na transplantação. Assim também é imposto pelo estadunidense Comitê de Moral e Ética da Transplantation Society e pela quase totalidade dos países europeus e africanos (Cf. DINIZ, 2014, p. 446). Ainda que médicos, filósofos e juristas sustentem a liberação dos órgãos, tecidos e partes do corpo para o comércio e haja dissenso no ponto, fato é que tal tipo de comércio é vedado peremptoriamente, tanto que a conduta afim é criminalizada internamente pelo art. 15 da L. 9.434/97.[8] E isso basta para este trabalho: a gratuidade imposta para o alotransplante não seria aplicada ao xenotransplante? Curiosamente, mais de duas mil patentes de genes já foram requeridas, número que só aumenta (Cf. BERLINGUER, 2004, p. 202). Como noticiam Berlinguer e Garrafa, o National Institute of Health (NIH) dos Estados Unidos “apresentou requisição para patentear 2.375 sequencias decifradas do DNA de células do cérebro humano”; assim, se fossem descobertas informações relevantes sobre doenças, o instituo ganharia parte do lucros obtidos com as aplicações práticas do conhecimento (BERLINGUER; GARRAFA, 1996, p. 35). Isso é assaz perigoso. A toda evidência, “O mercado exercita uma forte influência sobre a vida, a saúde, a natureza e sobre a própria ciência. E exerce esta influência tanto para o bem como para o mal” (Id. Ib., p. 40). Para o mal, é evidente que o corpo (do Homem e do animal) seria tratado como mercadoria, em que cada sequência de DNA descoberta seria objeto de patenteamento, cuja função é a de proteger os interesses capitalistas das multinacionais, e não a saúde do ser humano. O transplante deixaria de ser um ato altruístico. O animal e o humano deixariam de ser fins em si mesmos. É muito difícil afastar as considerações econômico-mercadológicas dos espaços sociais. Argumentos dessa classe sempre assumem posições de destaque (para o bem ou para o mal). Por exemplo, noticia-se que, “Em certos casos, o enxerto de órgãos representa uma economia. É o caso do rim. A diálise renal pesa muito no orçamento das sociedades modernas representando 1% das despesas de saúde da França. Os enxertos de rins, limitando o número de diálises, são financeiramente vantajosos” (BERNARD, 1994, p. 49, e GIMENES; VIEIRA, In VIEIRA, 2009, p. 211). Ainda, alguns hospitais priorizam a transplantação em jovens, com intuito de valorizar a percentagem de sucesso e reforçar a imagem da técnica (BERLINGUER; GARRAFA, 1996, p. 113). Contudo, o mais barato não deve preponderar sobre a dignidade, sobre os direitos à vida, à integridade e demais direitos da personalidade e outros direitos fundamentais. Parece que essa linha de argumentação é muito bem aceita com relação aos seres humanos e a transplantação de seus órgãos, tecidos e partes do corpo. O transplante deve ter caráter de doação, e não de compra e venda. Nesse passo, por que os animais se sujeitariam à venda de seus órgãos? Sem que eles dos proveitos da venda desfrutassem ainda por cima… O fato de serem eles criados para servirem de alimento não pode servir de argumento para a permitir a prática da xenotransplantação. A cadeia alimentar que privilegia o Homem não lhe dá a prerrogativa de sobreviver, perdurar, em detrimento das outras espécies. Primeiro porque a humanidade depende do funcionamento ecológico equilibrado (ainda que o ser humano ainda não tenha se dado conta disso plenamente), e, em segundo lugar, servir de alimento diverge muito de servir como repositório de órgãos humanos. A comparação se daria mais com a experimentação em humanos, já que ambas se tratam de técnicas experimentais. Outrossim, por que não se admitiria a clonagem humana e mesmo a criação e descarte de embriões e se admitiria a criação de animais com a exclusiva finalidade de reposição de órgãos? Não se poderia criar um clone humano ou células pluripotentes/totipotentes para servir à transplantação? Mas se pode criar animais para tal fim? E quem pagaria pela criação? O que se aplica aos seres humanos seria burlado no que toca à aplicação em relação aos animais, indefesos. A gratuidade da transplantação humana (doação) daria lugar à criação de animais (geneticamente modificados ou não) por quem detém condições de fazê-lo em larga escala para suprir a demanda (lei da oferta e da procura) dos hospitais públicos e privados (compra e venda). E, evidentemente, o setor privado, de algum modo, lograria obter órgãos melhores e mais rapidamente, deixando em segundo plano, como costuma ocorrer na área de saúde ao redor do globo, os pobres. Deixar-se-ia de promover tratamentos e campanhas preventivas, especialmente aquelas ligadas ao modo de vida saudável, que pouco contribuem ao mercado, para substituir os órgãos humanos pelos de animais (geneticamente modificados ou não). As patentes de cada órgão geneticamente “humanizado” dos animais impediriam o acesso global e, doutro lado, sujeitariam a saúde ao alvedrio das multinacionais (dos grandes laboratórios) detentoras do gene, do órgão, do animal. Assim, a xenotransplatação se tornaria um negócio, apropriado pelo mercado (que tudo apropria). Pensar o contrário beiraria a ingenuidade, e, não se pode pensar que, sem dignidade, tendo-se o animal como bem móvel (semovente), não haveria contraprestação à xenotransplantação. Esses fatores devem ser considerados antes de sua realização como técnica terapêutica. 4.A questão da modificação genética no animal e o princípio da precaução. Jean Bernard já afirmou que “Na teoria, só dois métodos poderiam permitir mudar a pessoa. Em primeiro lugar, a engenharia genética, transformando o patrimônio genético de um indivíduo. E, em seguida, o enxerto do cérebro” (BERNARD, 1994, p. 48). Ou seja, para o médico, a modificação genética muda o próprio ser humano, sua essência. O mesmo não se passa com o animal? Por evidente que sim. Nessa linha, assenta Pietro Alarcón que “o conjunto de genes de uma espécie ou de um indivíduo particularmente considerado denomina-se Genoma. Cada espécie tem o seu número ou padrão genômico próprio” (LORA ALARCÓN, 2004, p. 120). Mudar o gene, o Genoma, por conseguinte, implica mudar o ser ou a espécie. Maria Celeste Cordeiro sobre a dignidade humana como vetor do biodireito, então, assim se expressa: “descartaríamos, assim, eticamente condutas incompatíveis com tal condição, como por exemplo, determinadas experiências com seres humanos, que claramente resultariam em aberrações”; citando: “a clonagem, produção de quimeras, gravidez masculina, gestação com animais, intercâmbio genético humano, recombinações com espécies diversas para produção de seres híbridos, a gestação em cadáveres, guerras biológicas, coquetéis de sêmen, etc.” (SANTOS In MOSER, 1995, p. 33). Sobre a dignidade animal, se aceita, poder-se-ia dizer a mesma coisa. Justamente, como aqui se viu (item 2 – O estado da técnica), na xenotransplantação não só se está a tentar a inserção do órgão, tecido ou parte do corpo do animal no organismo humano, como também se está a tentar a modificação do gene animal para incluir características humanas visando à mitigação da evidente incompatibilidade. Vale dizer, está-se a modificar a natureza do animal. Está-se a criar novas espécies em laboratório. Está-se a mudar o evolucionismo; o Homem passa a com ele parear, dividir a atividade de criação. E, por fim, está-se a combinar materiais genéticos interespécies (animal humano e não-humano). Isso é perigoso; ao Homem, ao animal, ao ecossistema. “Os conhecimentos tecnológicos e científicos, que deveriam ter o desenvolvimento, o bem-estar social e a dignidade da vida humana como suas finalidades maiores” – reflete Fensterseifer – “passam a ser (…) a principal ameaça à manutenção à sobrevivência da espécie humana, assim como de todo ecossistema planetário, caracterizando um modelo de sociedade de risco, como bem diagnosticou o sociólogo alemão ULRICH BECK” (FENSTERSEIFER, 2007, p. 16). O avanço tecnológico permite ao Homem alcançar patamares antes inacreditáveis, vencendo barreiras de forma cada vez mais rápida; de outro lado, sem ética, sem responsabilidade, permite igualmente a destruição de seu entorno e de si próprio como espécie. Contra isso, em favor do animal e sua herança genética, antes de seguir-se com a xenotransplantação como atividade científica livre, há de se considerar a alteração das espécies, seus riscos, e até mesmo a posição humana de interveniente na evolução natural. Daí porque Sporleder, cravando o conceito de bem jurídico-penal como “valor considerado digno de tutela jurídico-penal”, considera o patrimônio genético como digno de tutela do Direito Penal (SOUZA, 2004, p. 139). A genética, dentro das ciências biomédicas, preocupa-se com a transmissão hereditária dos microrganismos, das plantas, dos animais e do ser humano (Id., Ib., p. 164). No estágio atual, conseguiu-se quebrar a cadeia do DNA para, no espaço em que ocorreu a quebra, inserir-se o DNA de outra espécie, o que pode trazer consequências nefastas ao Homem, aos animais e ao ecossistema. Daí por que a necessária criação de limites (Id., Ib., p. 169 e 173). Na xenotransplantação, hoje, já se pode quebrar a sequência genômica dos animais para “humanizar” seus órgãos. Com Sporleder, tem-se que a engenharia genética pressupõe a supressão, adição ou substituição de genes (Id., Ib., p. 176), e como técnica pode ser aplicada em células somáticas (não reprodutivas) e/ou células germinativas (reprodutivas) (Id., Ib., p. 180). A intervenção sobre essas últimas é mais drástica, porque se afeta não só a individualidade do ser, mas também sua descendência (a hereditariedade). Vale dizer, no intuito de “humanizar” os órgãos animais para a xenotransplantação, pode-se alterar o animal em si ou mesmo sua espécie, criando uma nova, sob o sentimento egoísta de beneficiar a espécie humana. Espécie esta que mal compreende a morte e tenta ludibriá-la o todo o custo, depositando na técnica mais do que fé, porque a tem como fim em si mesmo (se se pode fazer, faz-se e ponto). Essa possibilidade de novas formas de seres vivos (Cf. SOUZA, 2004, p. 183 e 192) merece profunda reflexão antes da experimentação e da práxis, que certamente recomendará o freio, evitando a criação de seres híbridos, quimeras, a partir da modificação do patrimônio genético. Com Alarcón, a proteção ao patrimônio genético cabe no art. 225, §1º, II, da Carta Magna, ainda que não seja o ideal (Cf. LORA ALARCÓN, 2004, p. 224-230, item 7.4.1), de forma que a modificação do genoma humano seria inconstitucional. Mas, a biodiversidade abrange não só o Homem, como também os animais, as plantas, e todo o patrimônio genético produzido mediante a evolução darwiniana. Com relação ao ser Humano, o autor citado divisa que “a proteção integral da vida humana funda-se em um pressuposto biológico de respeito às características que identifica, o indivíduo, seu genótipo, que o individualiza e o distingue” (Id., Ib., p. 299). De fato, o que isola as espécies é a impossibilidade de hibridação natural entre elas, ainda que, no caso do Homem, chegue-se a incríveis 99,5% de identidade génica com o chimpanzé. A diferença numérica e de estrutura cromossômica impede a mistura natural interespécie (SOUZA, 2004, p. 272), de forma que, modificar o genoma implica a modificação do ser ou da própria espécie. E o resultado disso não se conhece ou se é capaz de prever. A recombinação gênica interespécies capaz de modificar seres e as próprias espécies pode resultar num desequilíbrio ecológico (haja vista que cada espécie cumpre sua função no equilíbrio da natureza), além de permitir o desenvolvimento de novos vírus e doenças que encontrarão terreno fértil num organismo inédito na natureza, colocando em risco a espécie e o ser humano, direta ou indiretamente. Trazendo para o terreno prático, “Com a [alegada] escassez de órgãos humanos para transplantes, muitos defendem os xenotranplantes, ou seja, o transplante de órgãos provenientes de outras espécies biológicas diversas do receptor”, resumem Amanda Gimenes e Tereza Vieira. “Os porcos e os macacos são os mais lembrados nestes tipos de pesquisa” e “As tentativas atuais são no sentido de ‘humanizar’ estes animais antes dos transplantes transgenizando-os, vencendo aos poucos as barreiras impostas pela rejeição”.“[C]ontudo” – continua –“o risco maior encontra-se na possibilidade de transmissão de doenças advindas dos animais para a raça humana, onde os riscos seriam maiores que os benefícios” (GIMENES; VIEIRA In VIEIRA, 2009, p. 212). Pontua, outrossim, Roberta Adena: “Existe a possibilidade de haver transmissão de infecção proveniente desses animais, o que poderia levar a complexas epidemias” (2013, online). Nesse quadro, não é demais lembrar que a pandemia de 2009 do vírus H1N1 decorreu da recombinação de genes de origem humana, suína e aviária;[9] assim com o HIV decorreu duma primeira recombinação genética que deu origem ao vírus SIV, e depois aos vírus HIV-1 e HIV-2. Fenômenos de tal monta seriam extremamente facilitados pela hibridação interespécie. Daí porque se mostra extremamente recomendável o agir humano com cautela sobre a xenotransplatação, pois, ao se modificar os genes dos animais de forma artificial, os resultados não são previsíveis e controláveis pelo Homem (tanto no sentido probabilístico quanto prático). Lora Alarcón já alertou que, “Na prática, como foi observado, não há como predizer os efeitos no genoma desse tipo de alterações, e ainda, mesmo que se tenha certeza quanto à introdução do gene, existem riscos próprios da imprevisibilidade e complexidade do sistema não explorado suficiente pela Ciência” (LORA ALARCÓN, 2004, p. 299). Homenageando as palavras de Emerson Coan, “[A]o mesmo tempo em que o devir do progresso humano permite a invenção da novidade, o aumento de conhecimento e o alargamento das possibilidade de um bem-estar maior trazem o risco do imponderável, da agressão à natureza e à própria espécie humana” (In SANTOS, 2001, p. 247). A tentativa de obter alimentos transgênicos, produzir enzimas e hormônios artificialmente, praticar a xenotransplantação, com o desenvolvimento de novas moléculas e novos genes nunca antes vistos pela natureza etc., tudo é uma temeridade (SOUZA, 2001, p. 39). Nessa mesma perspectiva é que Hans Jonas desenvolveu seu O princípio responsabilidade, baseado na heurística do medo, formando uma ética que vai além da relação intraespécie, entre seres humanos (JONAS, 2006, passim). Conforme o pensamento jonasiano, todas as formulações morais anteriores à pós-modernidade, especialmente a de Kant, não passavam da relação espaciotemporal limitada à intersubjetividade. Isso porque as ações humanas dos tempos remotos não colocavam em risco o ecossistema e/ou a própria essência ou sobrevivência do Homem. Mas o desenvolvimento da ciência, da biomedicina, da técnica, permitiu ao Homem exterminar espécies e a si mesmo, destroçando o meio ambiente. E, mais: percebeu-se que as consequências das ações acumulam-se com o passar do tempo. Em contrapartida, porém, as formulações morais não acompanharam a capacidade tecnocientífica humana, e as formulações morais continuaram a não se preocupar com outra coisa que não a relação intersubjetiva, a relação entre os seres humanos. Ocorre que Jonas, a partir da capacidade destrutiva adquirida pelo Homem, enxerga a necessidade de se alargar a moral, estendendo-a para a natureza (o extra-humano), parte vulnerável sobre a qual o ser humano possui responsabilidade, por se encontrar sob sua esfera do agir.[10] É representativa sua assertiva segundo a qual, “Em vista do potencial quase escatológico dos nossos processos técnicos, o próprio desconhecimento das consequências últimas é motive para uma contenção responsável – a melhor alternativa, à falta da própria sabedoria” (JONAS, 2006, p. 64). As consequências dos atos humanos só poderão ser medidas no futuro, depois que toda a cumulação dos efeitos das escolhas feitas no presente se manifestarem. Por isso é que a heurística do medo recomenda a predileção pelo mau prognóstico, visando a evitar, por exemplo, que a alteração genética provoque aberrações nos animais ou nos seres humanos, que ocorram recombinações genéticas, que se mude o metabolismo do receptor do órgão animal etc. A heurística do medo é responsável por fundar, pois, uma nova ética, limitativa do comportamento humano em razão da imprevisão futura sobre o resultado do exercício da técnica nestes tempos. E a xenotransplatação se mostra como exemplo que se encaixa perfeitamente na preocupação de Jonas, aliada ao princípio da precaução, que a materializa juridicamente, a instrumentaliza.[11] Assim, não só O princípio responsabilidade de Jonas como o próprio princípio da precaução devem ter enorme importância no campo da xenotransplatação aqui apresentada. Tudo caminha para esse ponto. 5.A questão da beneficência e não-maleficência. Finalmente, há de se ponderar acerca dos ganhos e dos riscos para o doador (animal) e para o receptor (humano) no que se refere a saúde de ambos. Afinal, vale a pena a colocação de órgãos de animais no organismo humano? O princípio bioético básico da beneficência impõe aos médicos e cientistas que lidam com a vida humana o dever de usar o tratamento para o bem do enfermo e, como desdobramento lógico, o princípio bioético básico da não-maleficência impõe a obrigação de não ocasionar dano intencional ao enfermo, agravando sua situação (Cf. DINIZ, 2014, p. 39-40). Vale dizer, escancarar as portas para o comércio de órgãos de animais e transgredir seus direitos, sua dignidade, vale a pena ou, talvez, encarar a morte de outra forma não seria melhor? Modificar o Genoma animal e submeter-se a riscos inimagináveis vale a pena para possibilitar a xenotransplatação? O xenotransplante faria o bem ou faria o mal? O alotransplante exige a ministração de imunossupressores ao receptor, que fragilizam sua saúde, tornando o organismo suscetível de contrair várias doenças que não decorrem imediatamente da técnica de transplantação. O receptor, aliás, deve recondicionar seu viver, alterá-lo. Os imunossupressores requeridos na xenotransplação devem ser ministrados em maior dose, fragilizando ainda mais o corpo humano e o tornando mais suscetível a doenças. Outrossim, doenças que só afetavam animais podem atingir os humanos com a xenotransplantação (ou os médicos são capazes de detê-las?). E os vírus dos animais podem, por sua vez, recombinarem-se com aqueles comumente encontrados nos humanos, colocando em risco não só o receptor como toda a coletividade (afinal, os vírus se disseminam). Nesse cenário, há de se considerar, ainda, que os imunossupressores necessários para combater a rejeição do órgão animal reduzem ainda mais a capacidade de defesa do organismo humano, facilitando o desenvolvimento de doenças, a recombinação de vírus, etc. (Cf. COAN In SANTOS, 2001, p. 212). Ou seja, os imunossupressores podem causar mais mal ao receptor e até mesmo ao Homem do que gerar benefícios. (E o animal terá sua integridade violada, ou mesmo sua vida ceifada.) Em contrapartida, a ética médica, baseada no juramento de Hipócrates, impõe a beneficência e não-maleficência. A título de exemplo, o §3º do art. 9º da L. 9.434/97 dispõe que só é permitida a doação “cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável” (não-maleficência), e, ainda, “corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora” (beneficência). Da mesma forma, para além dos requisitos instituídos na L. 9.434/97, o art. 20 do Decreto n. 2.268/97 que a regulamenta impõe que “A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo vivo será precedida da (…) verificação das condições de saúde do doador para melhor avaliação de suas consequências e comparação após o ato cirúrgico”. O art. 24 dispõe no mesmo sentido. Mas, no atual estágio da xenotransplatação, só se tem riscos ao receptor, à humanidade, ao ecossistema, ao patrimônio genético, e ao animal, que dá sua vida em detrimento de sua dignidade e tem seus direitos violados, tudo para aplacar uma ânsia humana em relação à morte. Sequer se sabe quais são todas as doenças e vírus a que estão sujeitos os animais (os doadores). Diante do exposto, parece que não há beneficência aos seres humanos, ao animal e ao ecossistema, além de não se respeitar a não-maleficência, devendo ser ponderado se a xenotransplantação cumpre com os princípios básicos da bioética antes de prosseguir com a técnica. 6.Consideração final: prestígio ao princípio da precaução. Do exposto, vê-se como possível uma consideração final que valoriza a aplicação do princípio da precaução, que cada vez alarga-se como instrumento jurídico para fora do campo do Direito Ambiental stricto sensu. Antes de indicá-la, não obstante, crava-se o termo “consideração final” justamente porque o termo “conclusão” não tem cabimento aqui, uma vez que a temática não só é vasta a ponto de impedir um fechamento completo, como é tão delicada que admite infinita revisitação. Ora, a visão de Sporleder se aplica, ainda que com uma visão menos antropocêntrica: “(…) consideramos que o laissez-faire biotecnocientífico pode ser desastroso para a humanidade se não forem impostos alguns limites, inclusive de ordem jurídico-penal. Assim a “gestão do vivo” ou a “biopolítica” merecem uma estratégia coactada com os princípios humanitários que regem a civilização, pois a humanidade atual e futura assim como o meio ambiente estão em jogo, devendo, portanto, serem asseguradas as condições mínimas de sobrevivência no planeta com vistas a isto. Assim, a humanidade está sendo chamada a administrar responsavelmente o presente e o futuro da sua evolução nos limites de seu saber e poder, e o progresso tecnocientífico alcançado pelas genetecnologias não devem esquecer disso, já que não apenas a natureza (meio ambiente) pode agora ser manipulada, mas também o próprio homem. Por isso reconhece-se a necessidade de se fixar limites a certas intervenções genetecnológicas a fim de proteger a dignidade humana” (SOUZA, 2004, p. 237-238). O ser humano desenvolveu a tal ponto as técnicas científicas e biomédicas que é capaz de destruir a natureza e de autodestruir-se (não só num ato, como Hiroshima e Nagasaki, mas, também, gradualmente). O que parece impedi-lo, juridicamente, é um instrumento fluido, um princípio, o princípio da precaução, o qual conclama a formulação de uma ética que transborda da antiga consideração intersubjetiva dos seres humanos, passando para sua relação com a natureza, plantas, animais, Genoma, e tudo aquilo que não está ou não merece estar sob seu controle, como a morte. Nesse diapasão, as formulações de Hans Jonas mostram-se extremamente valiosas e fundam, a partir do campo filosófico, as bases para a aplicação do princípio da precaução. Com sua heurística do medo, pela qual se deve valorizar o mau prognóstico sobre o bom prognóstico, a xenotransplatação como técnica para prolongar a vida humana em detrimento da herança genética de cada espécie, em detrimento da vida animal, especialmente pelo viés da precaução, suscita algumas questões, parte das quais aqui se apontou. Impossível não se questionar sobre o prolongamento da vida e até que ponto isso é desejável; a que custo (a herança genética duma espécie ou de um ser indefeso?; a vida de um animal?; a criação de condições para novas epidemias?). Ou mesmo se o Homem está a altura de assumir o papel de criador, colocando sob sua batuta a evolução. Só o Homem é capaz de alterar artificialmente o curso da História (afora a evolução darwiniana), e, pelo estado atual da técnica, cada vez mais coloca em risco “os grandes equilíbrios cósmicos e biológicos” (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2005, p. 207-208), a ponto de erigir uma nova ética para evitá-los ou mitigá-los. No campo na xenotransplantação, os temas dos direitos e da dignidade animal devem ser reconhecidos para evitar a instrumentalização pelo Homem sem maiores considerações, especialmente no que concerne ao domínio mercadológico. A alteração genômica deve ser tateada com cautela, com base na ética do princípio responsabilidade, sob pena de consequências maléficas que podem até ser esboçadas, mas não calculadas e evitadas. Como assinala o próprio Jonas, os sistemas éticos antropocêntricos não são abandonados. “Mas agora a biosfera inteira do planeta, com toda a sua abundância de espécies, em sua recém-revelada vulnerabilidade perante as excessivas intervenções do homem, reivindica sua parcela do respeito que se deve a tudo o que é um fim em si mesmo, quer dizer, a todos os viventes”. E isso a ponto de considerar crime “toda e qualquer extinção arbitrária e desnecessária de espécies” (JONAS, 2013, p. 55 e 56, respectivamente). Dessa forma, no mínimo, todos esses fatores apontados devem ser considerados à luz da precaução e do Princípio responsabilidade, antes de se cogitar e exercitar a técnica da xenotransplantação, sopesando sempre a dignidade e os direitos do animal e a morte como fase natural da vida humana. Inúmeros temas bioéticos podem e devem ser suscitados no terreno dos transplantes de órgãos e tecidos animais, antes de sua adoção como técnica pelo simples fato de ter-se essa capacidade (e ela se mostrar economicamente vantajosa). E todos eles conduzem à cautela.[12]
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-163/xenotransplantacao-e-suas-implicacoes-bioeticas-reflexoes-sobre-os-principios-da-responsabilidade-e-da-precaucao/
Bioética, biodireito e a dignidade da pessoa humana: desafios contemporâneos a luz da Constituição Federal de 1988
Após as transformações sociais do século XX advindas da industrialização, os direitos sociais ficaram latentes em uma sociedade voraz por uma vida digna e um bem-estar social sem qualquer discriminação decorrente de raça, cor, credo ou origem. Com a promulgação, em 5 de outubro de 1988, da Constituição da República Federativa do Brasil, os aludidos direitos surgem como garantias fundamentais inerentes a todos os cidadãos. É certo que, a globalização trouxe a área científica a possibilidade de novas descobertas, principalmente em questões que envolvem a origem humana. Todavia, ao mesmo tempo, faz-se necessário em observância ao princípio vetor do Estado Democrático de Direito que é a dignidade da pessoa humana como limite de atuação do cientista
Biodireito
1. INTRODUÇÃO Com objetivo de promoção dos direitos humanos fundamentais de forma mais realista em meio a uma trágica conjuntura mundial da época das grandes guerras mundiais, a Organização das Nações Unidas (ONU), composta por 192 países, originou uma real revolução ao dispor os direitos humanos como uma preocupação da sociedade contemporânea e propor sua positivação, reconhecendo-o como um direito essencial a todo e qualquer cidadão. Em 10 de dezembro de 1948, por meio da Resolução 217-A da Assembleia das Nações Unidas, foi promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, disposta em 30 artigos que garantia aos cidadãos direitos essenciais independentemente destes possuírem ou não atributos especiais, apesar de inúmeras diferenças biológicas e culturais, de raça ou credo que os distinguem, além de ser consagrada como norma fundamental e referencial para os direitos humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos produziu efeito erga omnes aos Estados signatários. Considerado o documento mais traduzido no mundo (mais de 360 idiomas), afirmou a dignidade da pessoa humana como um ideal a ser atingido por todos os povos e nações. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão consagrou como pilar do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana, além de ser alicerce para demais diplomas constitucionais criados a partir de então, garantindo, desta forma, o pleno desenvolvimento da personalidade humana, item imprescindível para estruturação de uma autêntica democracia. Por intermédio da positivação dos direitos humanos fundamentais como direito à vida, à liberdade e à propriedade de forma igualitária entre os homens, tornou-se possível a intervenção do Poder Judiciário para o efetivo cumprimento dos direitos humanos fundamentais em casos de direitos transgredidos. No âmbito internacional, por intermédio da referida Declaração, os Estados foram impelidos à preservação de valores que ultrapassam suas próprias razões, levando o ser humano a um patamar de um ser constituído de direitos universais e que se sobrepõe às razões puramente políticas do Estado. Professor Dr. Paulo Bonavides[1] preceitua que: “Com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem se acrescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”.  O artigo 5º da Constituição Federal que inaugura o capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos assegura que: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.” A primeira garantia fundamental prevista no artigo 5º é o direito à vida, que é acobertado pelo manto da inalienabilidade, uma vez que, por seu conteúdo não ser econômico-patrimonial, é inegociável, indisponível e intransferível. A vida é a primeira garantia fundamental exposta exatamente porque é dela que refletem todos os outros direitos, em especial o direito a personalidade que começa pelo próprio corpo, que, nas lições do excelso Professor Miguel Reale[2] é a condição essencial do que somos, do que sentimos, percebemos, pensamos e agimos. Porém, como conceituar a vida e ao que está atrelado este conceito? É certo que, faz parte da natureza humana a busca pelo conhecimento, bem como, a necessidade do saber da origem de todas as coisas, principalmente, a origem da vida. Com uma leitura cautelosa do Texto Sagrado (Bíblia) no livro de Gênesis 2:7, o início da vida é uma combinação de elementos: a ação do Senhor Deus na formação do homem através do pó da terra e o fôlego da vida em suas narinas para se tornar uma alma vivente. Para a mitologia grega o início da vida começou com dois titãs: Epitemeu e Prometeu. A eles foram atribuídos à criação de todas as criaturas da terra e do homem. Epitemeu, da argila formou o homem e não sabendo como atribuir características peculiares ao homem, de tal forma que o diferenciasse das demais criaturas da terra, seu irmão Prometeu roubou de Hélio, o deus do Sol, o sopro da inteligência, que permitiu ao homem o comando sobre todos os demais seres da Terra. Os filósofos pré-socráticos como Tales de Mileto, Anaximenes e Heráclito, cada qual explica a origem da vida a um elemento, respectivamente, água, ar e fogo. Platão séculos traria uma nova suposição ao falar do cosmos, um ser vivente provido de Alma e Intelecto, gerado pela ação da providência de um Deus, tem-se o nascimento do mundo, tornando possível a existência do homem. A ciência, repetindo os ensinamentos dos filósofos numa espécie de fórmula comum explica a origem das coisas com o início do universo “No principio, toda a energia e matéria se encontrava comprimida em uma bola de fogo primordial inimaginavelmente pequena e quente, de pequeníssima extensão, como também de enorme densidade e temperatura. Uma mistura de radiação e matéria, tão densa e quente que nela não podiam, existir galáxias nem estrelas. (…) há 13,7 bilhões de anos (este o cálculo mais recente dos astrofísicos), com um estouro inicial; uma gigantesca explosão cósmica, nosso universo teve início.”[3] Com o avanço acelerado da tecnologia e da ciência nas últimas décadas permitiu novos questionamentos quanto à vida e lançou conflitos quanto à extensão da atuação médica e o progresso científico. Animais, alimentos e o próprio homem participam de pesquisas, os materiais genéticos são alterados em benefício do desenvolvimento científico e então, o homem passa a ser não mais tão somente possuidor de direitos e deveres, mas também de objeto de estudo e manipulação. O biodireito surge na ceara dos direitos fundamentais com conteúdo puramente moral relacionado à vida e indissociável à dignidade da pessoa humana e com o escopo de positivar juridicamente os comportamentos médico-científicos que tem por fundamento a bioética. A doutrina bem define o biodireito: “O Biodireito surge na esteira dos direitos fundamentais e, nesse sentido, inseparável deles. O Biodireito contém os direitos morais relacionados à vida, à dignidade e à privacidade dos indivíduos, representando a passagem do discurso ético para a ordem jurídica, não podendo, no entanto, representar “uma simples formalização jurídica de princípios estabelecidos por um grupo de sábios, ou mesmo proclamados por um legislador religioso ou moral. O Biodireito pressupõe a elaboração de uma categoria intermediária, que se materializa nos direitos humanos, assegurando os seus fundamentos racionais e legitimadores””. [4] O biodireito vem para regular a bioética no campo do jurídico, uma vez que esta lida com questões filosóficas, científicas e jurídicas, criando parâmetros legais de atuação. Não se pode olvidar que há de se ter sempre um elo entre as diversas áreas do conhecimento com o direito, como forma de legitimar e regular a atuação de profissionais e cientistas, além de coibir abusos, evitando desta forma que o homem seja reduzido a um simples objeto de estudo na ânsia da descoberta daquilo que ainda é desconhecido pela ciência, vez que, o alicerce do direito é a dignidade humana e por reflexo a vida. No mesmo sentido, a ilustra Professora Maria Celeste Cordeiro Leite Santos[5] “interferir rapidamente, se ajustar às novas conquistas tecnológicas e, sendo objeto de largo debate parlamentar (…), vem imantada da legitimidade capaz de garantir a validade de sua inserção no meio social concretizando o escopo último de qualquer empreendimento do sujeito de Direito: o resgate da dignidade humana”. Não se pode olvidar que a dignidade da pessoa humana é um dos princípios norteadores do biodireito, afora dos princípios da autonomia, do consentimento informado, da beneficência, da não maleficência, da justiça e da sacralidade da vida humana. A Dignidade da Pessoa Humana é definida pelo Professor Alexandre de Morais como “um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. O direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, entre outros, aparece como consequência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil”.[6] Em síntese, o princípio da autonomia é a capacidade do homem de tomar decisões, de poder definir o melhor método para determinada pesquisa a fim de se atingir o resultado esperado, sempre observando os valores morais aceitos e principalmente a vontade do paciente em fazer parte da investigação além de sua pela consciência para que participe da pesquisa ''voluntariamente e com informação adequada''[7]. Segundo o Relatório Belmont publicado em 1978 que estabelece os princípios éticos que devem conduzir a experimentação humana, o princípio da autonomia “[…] abrange ao menos duas convicções éticas: os indivíduos devem ser tratados como agentes autônomos e as pessoas com autonomia diminuída têm direito à proteção.” E que pessoa autônoma é aquela ''capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e agir sob a orientação dessa deliberação'' O princípio da beneficência esta intimamente ligado ao fazer o bem ao próximo, fazer a beneficência na literalidade da palavra, preceitos estes disseminados inclusive pela Igreja como na encíclica Mater et Magistra de João XXIII em sua primeira parte que propaga o amor a Deus e amor ao próximo. Uma vez praticado o princípio da beneficência, não se pratica o maleficio ao paciente. O princípio da sacralidade humana, a vida é respeitada e protegida contra agressões indevidas decorrentes do avanço tecnológico. A vida é tratada como inviolável, não se justificando o sofrimento e dor além do que o homem pode suportar conforme ensinamentos dos juristas Marcelo Dias Varella, Eliana Fontes e Fernando Galvão da Rocha “são os principais norteadores da bioética, na medida em que consideram a vida como sagrada e inviolável. Neste sentido, não se justifica a causa do sofrimento e da dor desnecessária, a imputação de um ônus superior ao que a pessoa possa suportar, ainda que, por decisão sua, mesmo para a realização de pesquisas ou qualquer atividade científica. Combate-se assim, a consideração do homem como objeto, como uma ‘coisa’, a favor da compreensão da vida humana como algo sagrado, intangível. Ainda que fora dos aspectos teológicos que a questão envolve, a expressão ‘sagrado’ não necessariamente estará ligada a Deus, mas sim ao caráter inviolável de seu objeto […] a vida humana não pode ser sacrificada em prol da ciência, e da experimentação” […]”[8] Estes mesmos princípios são os que dirigem à bioética cujo desígnio é estabelecer critérios morais e éticos ao progresso científico para que o homem tenha seu valor protegido, resvalando na premissa moralista kantiana de oposição da pessoa e coisa, de que o homem “não pode ser utilizado por nenhum outro homem como simples meio” [9], mas como fim em si mesmo. Com o avanço tecnológico e o aperfeiçoamento das técnicas capazes de modificar e manipular o código genético humano, o interesse no estudo desta área cresceu verticalmente, isto porque, a busca pelo desconhecido sempre foi do âmago humano. Não há como dissociar o biodireito com a bioética, vez que aquela é extensão desta. A palavra ética é definida pela Professora Tereza Rodrigues Vieira como “uma tentativa para se determinar os valores fundamentais pelos quais vivemos. Quando vista num contexto social, é uma tentativa de avaliar as ações pessoais e as ações dos outros de acordo com uma determinada metodologia ou certos valores básicos”[10]. Em 1971, o médico oncologista, biólogo e professor americano da Universidade de Wisconsin, Van Rens Selaer Potter pela primeira vez escreve sobre a bioética e atribui como finalidade de ser uma ciência capaz de auxiliar no processo de evolução biológica do ser humano. Seria então nos dizeres da Professora Maria Helena Diniz[11] a bioética uma nova disciplina que recorreria às ciências biológicas com o intuito de melhorar a qualidade de vida do ser humano em contraposição ao uso indiscriminado de agrotóxicos, de animais em pesquisas ou experiências biológicas e da sempre crescente poluição aquática, atmosférica e sonora. A Enciclopédia da Bioética definiu em 1978 o sentido da palavra como: “o estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde considerada à luz de valores e princípios morais” [12], que em 1995 não mais baseados em valores e princípio morais, mas em dimensões morais das ciências da vida e do cuidado com a saúde.” No contexto moderno, a bioética busca um novo sentido sobre o conceito de vida, através de um novo significado da ética. Nesta nova perspectiva, a intenção é o amoldamento das novas tecnologias e da ciência aos novos descobrimentos, de tal forma que a interdisciplinaridade é necessária para que a bioética e o biodireito possam dar um sentido humanista às pesquisas científicas. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu preâmbulo considera a necessidade constante da busca de melhores condições de vida ao homem como forma de progresso social. Frente às epidemias que alastram os países, as doenças desconhecidas na atualidade e as bactérias e vírus que matam milhares, a melhoria e o prolongamento da vida tem por meio o desenvolvimento da ciência e tecnologia, para novas descobertas da biologia molecular e da tecnociência. Entretanto, há de se atentar que todo progresso é em favor do homem, de tal forma que os profissionais devem conciliar os potenciais riscos, que ora são imprevisíveis, a vida, integridade e dignidade do paciente que esta inserida em valores éticos e morais. Professor Reinaldo Pereira Silva[13] observa que “o direito à vida é o fundamento de todos os direitos. A ética da vida se insere por essa via na universalidade dos valores. Quem diz dignidade humana diz justiça” Desta forma, o atual ordenamento jurídico brasileiro deve ser estudado pelo intérprete como um verdadeiro sistema cujo protagonista é o indivíduo atribuído de valores inerentes a sua natureza.
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Sexualidade, reprodução e autonomia corporal em convergência: pelo reconhecimento dos direitos reprodutivos
O presente artigo se desenvolverá como base de revisão literária tem o fito de trazer a baia os direitos pertinentes aos direitos sexuais dentro da esfera dos direitos reprodutivos, em que serão abordados os desdobramentos destes direitos no âmbito dos direitos das mulheres. É crível perceber que somente é possível pensar em um direito reprodutivo que satisfaça a dignidade sexual feminina, que aqui será trabalhada, se esculpido este direito pelo escopo feminista de empoderamento da mulher sobre este. Os direitos reprodutivos são correspondentes aos direitos humanos e direitos fundamentais, no entanto é perceptível que para as mulheres mesmo que estes dois últimos tenham advindos anteriormente aos direitos reprodutivos, à superveniência deste direito que foi precursor enfatiza a discriminação entre os gêneros expondo que os direitos necessitam ser gozado por todos, não só “no papel” como também no plano fático. [1]
Biodireito
1 INTRODUÇÃO A sociedade, em seu passado e presente, sempre esteve envolta em processos de revolução, mudanças, e aquisição de novos valores e ideologias que buscam romper paradigmas, preceitos e preconceitos que já não cabem mais dentro da vida das pessoas na sociedade. O tema sexualidade e todo e qualquer assunto que envolva esta temática causava, e ainda causa muita controvérsia e discussões mais acaloradas, pois o rompimento entre o velho e o novo na sexualidade se perfaz recente, e de forma bem aberta. O “véu” que cobre este assunto e o torna invisível está se rasgando por estes novos valores que não desejam mais viver a sobra do que é velho e ultrapassado. Deste modo os direitos na esfera sexual, que apesar de ter seu inicio a algum tempo, estão somente agora ganhando contornos mais nítidos no âmbito nacional. Em âmbito internacional, os direitos humanos sexuais ganham cada vez mais espaço, enquanto nacionalmente o legislativo deve muito à parcela mais vulnerável da sociedade, em que a tutela enquanto a esses direitos se afastam. Devido ao tipo de sociedade ao qual o país encontra-se constituído, em que a religião e a “moralidade parcial” reinam soberanas sobre parcela considerável da população brasileira, desconsiderando as diferenças multiculturais que o país possui, vários brasileiros e brasileiras são marginalizados e criminalizados de forma indevida e preconceituosa. Em meio a este caos ético, é possível ver a figura de resistência e de luta das mulheres, as quais em um processo em busca de uma conscientização global almejam o empoderamento em que possam conviver com uma igualdade plena entre gêneros. os movimentos feministas ainda lutam contra a opressão causada pelo Estado patriarcal, visando a reforma deste modelo de Estado objetivando uma mudança coletiva, entre os homens, para que reconheçam os direitos das mulheres, e uma conscientização das próprias mulheres que por causa de um modelo de criação machista, vivem em uma alienação de direitos e valores. No âmbito dos direitos sexuais, a discriminação entre os gêneros não é diferente criando um verdadeiro abismo entre direitos humanos e a realidade. É perceptível que houve avanços, entretanto é necessário que se avance mais e que a luta vise não retroceder em direitos e garantias. Os direitos reprodutivos foram desenvolvidos com o fito de proteger a saúde e reconhecer os direitos das mulheres, em um escopo inicial os direitos reprodutivos projetaram o empoderamento feminino em uma área da saúde e da sexualidade. Estas áreas do direito são realmente delicadas devido a precariedade de leis e de serviços, que são prestados totalmente fora dos padrões mínimos dos direitos humanos, e que excluem ainda mais as mulheres, a quais ficam limitadas a se submeter a situações de risco. É fundamental a discussão sobre este tema à luz dos direitos humanos, bem como da dignidade da pessoa humana na esfera da sexualidade, culminando em uma dignidade sexual feminina capaz de nortear os princípios que possam reger uma mudança no entendimento da importância do direito reprodutivo para a mulher. E da importância desta seara do direito para a propensão de direitos que visem o empoderamento feminino, quebrando os grilhões com o antigo. Para tal é imprescindível que os princípios basilares do direito humano sejam respeitados, e que a liberdade sobre o corpo da mulher seja respeitada para que as mulheres não sejam tratadas como “escravas” de leis quem visão o bem-estar de um Estado machista. Assim, direitos na esfera individual necessitam ser respeitados e reforçados, respeitando-se o direito a escolhas, e proporcionando meios e métodos para que se chegue a elas por meios legais e seguros. A sociedade necessita demonstrar seu poder de mudar, se transformar e compreender estas mudanças, assimilando que a igualdade entre os gêneros, a igualdade no campo dos direitos sexuais e reprodutivos e promulgar a igualdade entre todos os seres humanos. 2 SEXUALIDADE E LIBERDADE REPRODUTIVA: CONTORNOS PRIMÁRIOS Para traçar o que é a liberdade reprodutiva e o ao que esta concerne é necessário, primeiramente, se entender o que é a sexualidade e qual é a correlação entre estas duas matérias. Em um escopo nacional, a sexualidade tem uma ligação intrínseca com a ideia de gêneros pré-determinados como macho e fêmea, em um quadro engessado que cria expectativas quanto à sexualidade e gênero (PARKER 1991, apud GUIMARÃES, 2012, p. 60). A sexualidade sofre ainda por ser um assunto do qual se necessita mais discussão e debate pela sociedade, sendo que este assunto padece, ainda, com um histórico de violações e de estereótipos que circundam o tema (MALVEIRA, 2013, p. 02). A sexualidade, de uma forma geral, está ligada à vontade do individuo de se expressar sexualmente. Ora, isto vai muito além da vontade de exercer a sexualidade, como também pela disponibilidade de sua ação (MALVEIRA, 2013, p.02). Entretanto, a sexualidade, no Brasil, está arraigada ao ato de penetração e também pelo ato sexual, fazendo assim que a sexualidade tenha como seu principal pressuposto a parte biológica, a sexualidade fica extremamente condicionada ao órgão genital ao qual a pessoa nasceu (PARKER, 1994; VILELA, 1998, apud GUIMARÃES, 2012, p. 06). Deste modo, a sexualidade se tornou um assunto de difícil acesso e cheio de tabus (MALVEIRA, 2013, p.02), sendo um tema do qual se era difícil falar e ao qual qualquer que seja o desvio do padrão social é fortemente reprimido. A homossexualidade, como um exemplo, é motivação para que o indivíduo seja diminuído socialmente (GOFFMAN, 1988, apud GUIMARÃES, 2012, p. 06), sendo, desta forma, creditados, ao indivíduo, defeitos que são meramente construções preconceituosas criadas a partir do senso comum. A sexualidade é construída pelos aspectos sociais e também biológicos, porém estes dois não são os únicos fatores que determinam a sexualidade de um individuo (CAMARGO, 2011, p.12). A sexualidade faz parte da construção do indivíduo e, como tal, esta sofre a influência de outros fatores como cultura, a realidade social, como também fatores psicológicos quem influem para a construção da pessoa e de sua identidade sexual (CAMARGO, 2012, p.12). Desta forma, a sexualidade não fica cerceada a fatores meramente biológicos, apesar de que estes fatores criam sobre a pessoa uma série de “regras de conduta”, das quais a pessoa não pode se desvencilhar por causa do determinismo que é impetrado a si pela sociedade. Qualquer forma que fuja a este padrão social são invisibilizados (GUIMARÃES, 2012, p. 06) e deixados à margem da sociedade por incurso de vários tipos de violências sejam elas físicas ou simbólicas (CAMARGO, 2012, p. 12 apud BENTO, 2016). Com a evolução gradativa dos Direitos fundamentais e sexuais em âmbito internacional, fruto de vários encontros e conferencias, das quais os direitos de ordem sexual foram concebidos durante o XV Congresso Mundial de Sexologia, ocorrido em Hong Kong (China), entre 23 e 27 de agosto, a Assembleia Geral da WAS (World Association for Sexology). Tais direitos apontam para a liberdade, autonomia e igualdade sexual, compreendendo que a diversidade sexual deve atender ao individuo e ao seu crescimento social sem prejuízos e sem violência (WAS, 2000, s.p.). Como consequência, a saúde e a defesa dos direitos humanos devem ser preponderantes para a criação de direitos e normas que tutelem sobre a sexualidade, por se tratar de uma matéria com fulcro fundamental (WAS, 2000, s.p.). “Os direitos sexuais são direitos humanos universais baseados na liberdade inerente, dignidade e igualdade para todos os seres humanos. Saúde sexual é um direito fundamental, então saúde sexual deve ser um direito humano básico. Para assegurarmos que o seres humanos e a sociedade desenvolvam uma sexualidade saudável, os seguintes direitos sexuais devem ser reconhecidos, promovidos, respeitados, defendidos por todas as sociedades de todas as maneiras. Saúde sexual é o resultado de um ambiente que reconhece, respeita e exercita estes direitos sexuais” (WAS, 2000, s.p.). E, na esteira de direitos fundamentais, a liberdade está como direito fundamental que embasa a diversidade, quanto à sexualidade e suas diferentes formas de ser vivenciada, por se tratar de matéria inerente à dignidade da pessoa humana. Deste modo, a visibilidade, a quebra de paradigmas e da ignorância são pressupostos para que se exerça a sexualidade de forma digna e proba, sem que haja preconceitos ou arbitrações que excedem aos direitos individuais (GUIMARÃES, 2012, p. 08). O direito à liberdade que, a priori, é disseminado em que cada ser humano, que nasce livre e igual, inexistindo distinções entre os seres humanos por quaisquer que sejam suas diferenças (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, p. 04), não é de fato posta em prática. Ora, na realidade, diante de tal cenário, fica patente que no âmbito da sexualidade, ainda, persistem inúmeras situações que afrontam a direitos constitucionais fundamentais, bem como direitos humanos que abrangem o escopo da liberdade sexual (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 06). “Entretanto, violações de direitos humanos que atingem pessoas por causa de sua orientação sexual ou identidade de gênero, real ou percebida, constituem um padrão global e consolidado, que causa sérias preocupações. O rol dessas violações inclui execuções extra-judiciais, tortura e maus-tratos, agressões sexuais e estupro, invasão de privacidade, detenção arbitrária, negação de oportunidades de emprego e educação e sérias discriminações em relação ao gozo de outros direitos humanos. Estas violações são com freqüência agravadas por outras formas de violência, ódio, discriminação e exclusão, como aquelas baseadas na raça, idade, religião, defi ciência ou status econômico, social ou de outro tipo” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 06). A liberdade, no âmbito da sexualidade, também, se estende à reprodução, em que consiste nos direitos reprodutivos, que serão ademais trabalhados, mas que guardam vínculo com direitos fundamentais preestabelecidos. Tal liberdade consiste, a princípio, na liberdade de decisão quanto à reprodução, decidindo quanto à quantidade de filhos, quando tê-los, e também sobre não os ter, bem como escolhendo com responsabilidade e para tal que sejam dispostas, do mesmo modo, acesso à saúde e informação de qualidade (SOUSA, 2010, p. 4.906). Estes pontos que foram apresentados e são abordados quando se debatem a liberdade reprodutiva, da mesma forma, remete a não utilização de coerção para com a mulher (SOUSA, 2010, p.4.906) e a “descoisificação” da mulher enquanto um objeto de reprodução, respeitando seus direitos individuais e a inviolabilidade de seu corpo e da sua sexualidade (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 163). Como base para tal direito, a Declaração dos Direitos Sexuais tem, em seu oitavo ponto, que “o direito às escolhas reprodutivas livres e responsáveis”, que em seu bojo vem salientar o direito de decisão de ter ou não filhos e quando os tiver da melhor forma que aprouver. A liberdade tem seu espectro ampliado quando observado pela ótica da propensão de direitos que buscam a igualdade entre os gêneros e, ademais, protegendo as mulheres da discriminação e também da violência (SOUSA, 2010, p.4.906), seja no seio familiar ou social. De fato, tal direito é observado pelo escopo da natalidade, competindo à mulher o direito a ter ou não uma criança, já que biologicamente só esta pode gerar vida. E, para que haja vida, é necessário que, primeiramente, a mulher se disponha, por sua livre escolha, a ter e gerar a criança, incumbindo ao Estado proporcionar condições de saúde para que esta gere (SOUSA, 2012, p.4.906). A liberdade, quanto à sexualidade e reprodutiva, para que prospere necessita de uma sociedade em que as leis sejam realmente acessíveis para todos e que direitos humanos e fundamentais não sejam simplesmente voltados para uma parcela da sociedade. O gênero não pode ser a justificativa para um tratamento desigual ou para disparates contra a Constituição Brasileira, contra a Declaração Universal dos Direitos Humanos e contra a dignidade da pessoa humana, já que o próprio Estado se dispõe, em sua Constituição de 1988, a promovê-la no art. 1°, inciso III, criando um mínimo social (WEBER, 2013, p. 200). Deste modo, a liberdade deve ser compreendida como um direito que exige que barreiras, como a discriminação e a segregação de grupos minoritários, cessem (PIRES, 2017, p. 485). De igual maneira, é necessária a participação de toda a sociedade e do Estado para que trate de assuntos sobre a sexualidade que permanecem, hoje, como tabus e que, infelizmente, geram lacunas na lei que poderiam ser parcialmente supridas pelo legislativo e se a Constituição e os princípios que a regem fossem utilizados em prol da sociedade como um todo (SOUSA, 2010, p. 4.907). 3 DIGNIDADE SEXUAL FEMININA E EMPODERAMENTO A sociedade como um todo, durante o decurso da história, vem sendo regida por um domínio patriarcal, em que “o paradigma de sujeito de direito era claro: masculino, branco, europeu, cristão, heterossexual” (RIOS, 2006, p. 81). E este paradigma persiste até os dias atuais e tal domínio é o responsável pela depreciação do papel da mulher e de outros grupos sociais dentro da sociedade, por intermédio de uma doutrina machista. Esta situação em tela leva a grandes desigualdades no âmbito do direito, em que este quando aplicado por diversas vezes exclui as mulheres e outras parcelas vulneráveis (RIOS, 2006, p. 81). Esta exclusão propagando, majoritariamente, entre as mulheres a pobreza e a falta de oportunidades, sejam elas econômicas, sociais e politicas (LISBOA, 2008, p. 01). Neste diapasão, o empoderamento surge pelo viés dos movimentos feministas como uma forma de lutar contra “a posição socialmente subordinada das mulheres em contextos específicos” (LISBOA, 2008, p. 01). O empoderamento não guarda, em seu bojo, a ideia do “poder” como uma fonte de opressão, abuso dominação, o ideal na proposta feminista é que o empoderamento das mulheres seja uma de “emancipação e de resistência” contra o abuso do Estado patriarcal (LISBOA, 2008, p. 02). “Empoderamento na perspectiva feminista é um poder que afirma, reconhece e valoriza as mulheres; é precondição para obter a igualdade entre homens e mulheres; representa um desafio às relações patriarcais, em especial dentro da família, ao poder dominante do homem e a manutenção dos seus privilégios de gênero. Implica a alteração radical dos processos e das estruturas que reproduzem a posição subalterna da mulher como gênero; significa uma mudança na dominação tradicional dos homens sobre as mulheres, garantindo-lhes a autonomia no que se refere ao controle dos seus corpos, da sua sexualidade, do seu direito de ir e vir, bem como um rechaço ao abuso físico e as violações” (LISBOA, 2008, p. 02). Para tal, é necessário que haja um “despertar da consciência” para a situação de desigualdade de gênero que é patente na sociedade por parte das próprias mulheres, reconhecendo as desigualdade e discriminação entre homens e mulheres (LISBOA, 2008, p. 02). A situação é árdua tendo em vista que a educação e também a religião, impostas às mulheres, visam à submissão integral daquela ao homem, seja pela figura paterna ou na figura do marido, tornando-as “serventes” do lar, em uma clara “segregação” no que diz respeito à educação (GALETTI, 2013, p. 70). Esta segregação, também, se aloja no campo sexual, em que a sexualidade da mulher é invadida e controlada, violando a sua privacidade e seus direitos individuais. Para enfrentar este cenário, os direitos reprodutivos e sexuais, bem como os direitos e convenções voltadas para a construção e luta pelo direito das mulheres estão guiando esta luta para o campo do empoderamento como primeiro passo para possibilitar direitos mais amplos às mulheres (LISBOA, 2008, p. 05). Deste modo, só a criação de direitos sexuais que se importam pelo empoderamento feminino é que se poderá falar na edificação de uma dignidade sexual feminina. Para tal, importa destacar os quatro princípios éticos elencados pelas doutrinadoras Correa e Petchersky (1996, p.160), que são: “integridade corporal, autonomia pessoal, igualdade e diversidade”. Os quatro pontos são de fato imprescindíveis para que se possa falar em dignidade sexual, já que são pontos que trabalham direitos humanos já pré-constituídos, porem que não são distribuídos integralmente. A integridade corporal trabalha o principio da liberdade, e do direito a inviolabilidade do próprio corpo, respeitando-se assim a esfera dos direitos individuais constituídos tanto pela Constituição Brasileira, quanto pela DUDH. Este princípio ético se sagra por elucidar e lembrar de que a mulher é dona do seu próprio corpo, impondo a este suas próprias decisões, seja no campo do prazer, na autodeterminação, da saúde, e, outrossim, da reprodução e da não reprodução (CORREA; PETCHERSKY, 1996). Assim, fica claro que para tal é necessário o respeito e o dialogo entre os gêneros, e que principalmente se ouça quais são as reivindicações para que se respeito o espaço e a autonomia pessoal da mulher, compreendendo que estas são capazes de “escolhas individuais” (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 163). A mulher tem direito no que se diz respeito à formulação do planejamento familiar, populacional, bem como tem direito de escolher métodos contraceptivos, e tem direito a uma gama de escolha, bem como tem direito ao aconselhamento a gravidez, prevenção contra DST’s, da melhor forma que lhe aprouver (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 163). Na esfera ética da igualdade, a sexualidade e a reprodução são trabalhadas por dois vieses, o primeiro quanto à discussão da relação e a formação de sistemas de gêneros, relações entre homens e mulheres, e o segundo ponto é a relação entre as próprias mulheres e suas diferenças sócias (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 165). Basicamente, este ponto enseja pela igualdade entre homens e mulheres dentro da sociedade, proporcionando uma maior inclusão da mulher e de seu empoderamento dentro da sociedade (LISBOA, 2008, p. 05). Contudo, como esclarecem Correa e Petchersky (1996, p. 165), a igualdade, no que diz respeito à reprodução, é incompatível com homens e mulheres, já que, por condições biológicas, só mulheres são capazes de dar à luz, somente elas carregam situações de risco bem como só elas podem decidir quando reproduzir. Em realidade, quanto a suportar riscos e benefícios no uso de contraceptivos não existe tal igualdade, em que o ônus de carregar os riscos médicos e de “não engravidar” é da mulher (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 166). Assim, a igualdade tem de ser respeitada entre as mulheres também, visando sempre o atendimento igualitário em que as diferença sociais e de recursos sejam sanados pelo Estado, sendo que esse proporcione meios de acesso à saúde e à educação sexual (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 167). “De fato, quando pesquisas clínicas são realizadas entre mulheres urbanas pobres, que tendem a se mudar com frequência e que sofrem com a falta de transporte, as condições necessárias para o acompanhamento médico adequado podem não existir, e desta forma as pesquisas podem, elas mesmas, estar em desacordo com o princípio de igualdade. Da mesma forma, problemas de discriminação surgem quando métodos seguros tais como camisinhas e diafragmas, pílulas com baixas doses de hormônio ou condições de aborto seguro estão disponíveis apenas para mulheres com suficientes recursos financeiros” (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 167). Neste diapasão, a igualdade surge como um pressuposto para o acesso aos serviços de saúde, sendo que as diferenças entre as mulheres devem ser mitigadas e, do mesmo modo, no princípio da diversidade aponta que as diferenças entre as mulheres devem ser respeitadas (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 167). Diferenças culturais, de crenças religiosas, condição sexual, bem como condições financeiras e de saúde, que são pontos que afetam a esfera sexual e reprodutiva, merecem ser respeitadas e ponderadas no momento de se proporcionar um melhor atendimento à mulher (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 168). Do mesmo modo que a vivência da sexualidade, como se experimenta a sexualidade depende de vários fatores como: “Geração, raça, nacionalidade, religião, classe, etnia” que são alguns pontos que se devem levar em consideração (LOURO, 1999, p. 07). Esse direito à diversidade não é absoluto, tendo em vista que o respeito à cultura e à sua diversidade é importante, porém práticas que aludem à submissão da mulher, obrigando-a a algum tipo de método contraceptivo perigoso. Qualquer tipo de tratamento ou rito cultural em que as mulheres são obrigadas a participar, como as mutilações genitais, são práticas que não podem prosperar em Estados que se dizem preocupados em garantir os direitos das mulheres (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 169). Para a construção da dignidade sexual feminina há sim de se falar destes quatro pontos, tendo em vista que estes tratam dos direitos sexuais e reprodutivos. Estes princípios tem relação intrínseca para a construção do empoderamento e da dignidade sexual feminina, tendo em vista que estes princípios buscam a construção da saúde sexual e combater abusos e invasões a mulher e seu corpo (CORREA; PETCHERSKY, 1996). Ao lado disso, cuida destacar que a dignidade sexual aponta para a criação de direitos reprodutivos que proporcionem à mulher o respeito e a liberdade sexual pelos quais elas lutam e ensejam. 4 DIREITOS REPRODUTIVOS E SEUS DESDOBRAMENTOS COMO MANIFESTAÇÃO DA AUTONOMIA CORPORAL Trançando um breve contexto histórico, com o fito de proteger a saúde e os direitos individuais, e também a sexualidade, a ideia de direitos reprodutivos, e de como e quando as mulheres devem decidir quando e de que forma desejam ter filhos surgiu por intermédio de movimentos feministas por volta de 1830 em meio aos grupos socialistas ingleses (CHESLER, 1992; GORDON, 1976; HUSTON, 1992; JAYAWARDENA, 1993; RAMUSACK, 1989; WEEKS,1981, apud CORREA; PETCHESKY, 1996, p.151). Contudo, “o termo “direitos reprodutivos” consagrou-se na Conferência Internacional de População de Desenvolvimento (CIPD), ocorrida no Cairo, em 1994” (SOUSA, 2010, p. 4.906), em que o tema foi discutido e trabalhado pelo viés da saúde sexual. E, mesmo anteriormente em outras conferencias que tratavam sobre os direitos humanos, o discurso sobre os direitos das mulheres vinha à tona, demonstrando que as mulheres como parcela vulnerável (RIOS, 2006, p. 75) da sociedade sofria, e ainda sofre, em um caráter global, que persiste em mitigar e segregar as mulheres e seus direitos. A Conferência do Cairo foi o ponto de partida dentro dos direitos reprodutivos, e que também em seu bojo abarcava ideais de igualdade de gêneros, bem como proporcionou mais visibilidade para a mulher no seio da sociedade, como também a sua importância para o desenvolvimento social (CORREA; PETCHESKY, 1996, p.171). Mais tarde, a Quarta Conferência Mundial da Mulher, que foi sediada em Pequim (1995), veio para confirmar o que foi trabalhado no Cairo, reafirmando a importância do direito das mulheres, e a necessidade de uma proteção aos direitos sexuais e reprodutivos, bem como da saúde (RIOS, 2006, p. 77). Em ambas as oportunidades, mas pioneiramente no Cairo, o empoderamento da mulher quanto às decisões que concernem o seu próprio corpo foram trabalhadas de forma contundente (CORREA; PETCHESKY, 1996, p.171). O direito reprodutivo, de forma genérica, abraça a não coerção de nenhum tipo à mulher, e defende a liberdade e a dignidade sexual reprodutiva da mulher longe de qualquer tipo de discriminação ou violência (SOUSA, 2010, p. 4.906). O direito reprodutivo defende a autonomia e a liberdade da mulher, e este direito demanda necessariamente a discussão de temas polêmicos, e, que na sociedade brasileira são de difícil acesso. “Na discussão sobre sexualidade e Direitos Humanos, tomamos a noção de direitos sexuais e reprodutivos como parâmetro, a fim de evidenciar as questões relacionadas ao tema, tais como: planejamento familiar; acesso a métodos contraceptivos seguros; esterilização cirúrgica; assistência à gravidez e ao parto, incluindo atendimento pré-natal; aborto; mortalidade materna; novas tecnologias reprodutivas; doenças sexualmente transmissíveis e AIDS; violência e exploração sexual; prostituição e turismo sexual; não discriminação em razão de orientação sexual; uniões e famílias homossexuais; “mudança de sexo” e alteração do registro civil, entre outras” (SOUSA, 2006, p. 4.907). Em verdade, o tema sexualidade sofre ainda com um processo de invisibilidade e falta de diálogo, por ser notoriamente tratado como um tabu na atualidade, e os assuntos que o circundam também o são da mesma forma. Um dos objetivos dos direitos reprodutivos é justamente tratar a mulher como capaz de seus próprios atos, e livre para vivenciar a sexualidade de seu próprio corpo como quiser por meio de politicas que permitam isto (ÁVILA, 2003, p. 468). O direito sexual à saúde é apenas uma proposta no que concerne este direito e, mesmo assim, vê-se que estes não são plenamente oferecidos às mulheres, pois a saúde, no Brasil, convive com a precariedade e falta de recursos suficientes para a aplicação de uma saúde de qualidade. Da mesma forma que faltam médicos, remédios, igualmente, falta um legislativo que represente a causa dos direitos sexuais e que respeitem os direitos humanos a ponto de proporcionar uma legislação que vise sanear temas do âmbito sexual que atualmente ficam a margem da legislação brasileira, e que, contudo possuem o respaldo constitucional (SOUSA, 2006). O tema “sexualidade, saúde e liberdade sexual” ainda hoje sofre com uma forte influência religiosa e de “padrões sociais” que são predefinidos e impostos a parcela mais vulnerável da sociedade, mulheres, negros, grupos LGBTIs. O aborto, como um exemplo, que se tratado fora dos ideais religiosos, é um assunto que trabalha tanto a liberdade pessoal da mulher (SILVA; CARNEIRO; MASQUES, 2017, p. 459), como também se trata de um assunto de saúde e um direito a autodeterminação reprodutiva (PIRES, 2017, p.483). Tendo em vista que o aborto é a quarta maior causa de morte entre as mulheres brasileiras, por este procedimento não ser devidamente feito e proporcionado de forma legal e segura pelo Estado (MONTEIRO; ADESSE, 2008 apud SILVA; CARNEIRO; MASQUES, 2017, p. 459). O aborto feito na clandestinidade envolve um problema que é de saúde pública nacional e também internacional, bem como a falta de diálogo e a promulgação de leis que tornem o aborto legal e seguro geram um massacre de mulheres pobres e carentes que não possuem condições para realiza-lo de forma mais segura (SILVA; CARNEIRO; MASQUES, 2017, p. 464). Apesar do direito ao aborto legal ser muito aquém do que realmente o assunto abarca em sua totalidade, este direito social ainda sofre com projetos de leis de parlamentares que, em nome de uma moral que não é baseada nos princípios dos direitos humanos e sexuais, visam tolher o exercício de tal direito (SILVA; CARNEIRO; MASQUES, 2017). Aludido direito, ao aborto, que por sua complexidade e sua necessidade de que se debata a fim de que se evolua e de que se encontrem meios para que os direitos e a integridade da mulher sejam respeitados não se pode permitir que houvesse retrocessos (SILVA; CARNEIRO; MASQUES, 2017, p. 478). “Segundo a autora, as propostas contrárias à prática do aborto versam sobre: (1) inclusão do preceito de garantia da vida desde a concepção ao artigo 5º da Constituição; (2) alteração do Código Penal para: exclusão dos permissivos legais para a prática do aborto; aumento das penas; inclusão da punição para aborto provocado quando há anomalia fetal grave; (3) inclusão do aborto no rol de crimes hediondos; (4) criação de central de atendimento para receber denúncias de aborto; (5) implantação de medidas assistenciais para evitar aborto decorrente de estupro; (6) instituição do Dia do Nascituro e (7) da Semana da Prevenção ao Aborto” (ROCHA, 2005 apud SOUSA, 2010, p.4.908). Levando em consideração outros direitos reprodutivos, como o direito ao planejamento familiar que está elencada na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 226, §7°, em que: “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal […]” (BRASIL, 1988). Ora, sendo vedado qualquer tipo de coerção, sendo dever do Estado proporcionar meios para o exercício deste direito. Ademais, compreendendo que a mulher, como ser independente que pode e tem o direito sobre seu próprio corpo e sua liberdade, vê que a criminalização do aborto afeta também outros direitos, como o direito em tela do planejamento familiar. Desta forma, faz-se necessário destacar que a criminalização pode e deve ser entendida como violação ao direito constitucional para com o planejamento familiar, ao direito a saúde reprodutiva, bem como uma violação a autonomia sexual e reprodutiva (SOUSA, 2010, 4.908). O direito à saúde reprodutiva apenas será feito de modo exaustivo, suprindo todas as necessidades, quando for levada em consideração a vontade da mulher, colocando-a como pessoa de direitos e deveres como os demais gêneros da sociedade sem discriminação (PIRES, 2017, p. 497). O planejamento familiar e a saúde reprodutiva dependem de uma educação capaz de explicar de forma satisfatória e clara a sexualidade para todos os gêneros, fazendo um trabalho preventivo. Em verdade, os direitos que concernem os direitos reprodutivos devem estar sempre interligados, estes devem ser ampliados, não se pode regredir em direitos já, com muita luta foram conquistados (CORREA; PETCHESKY, 1996, p.172). É necessário que os direitos a saúde, métodos contraceptivos, pré-natal, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, direito ao aborto legal seguro, direito ao planejamento familiar, direito a dignidade sexual feminina, entre outros, não sejam subordinados e sim oferecidos com uma visão ampla, e livre de quaisquer vícios (CORREA; PETCHESKY, 1996, p.171).   5 CONCLUSÃO O direito deve ser aquilo que norteia a sociedade para a ordem e o progresso paulatino baseado em premissas como liberdade, e igualdade, entretanto como chegar a este resultado? E observado pelo escopo dos direitos sexuais esta resposta fica ainda mais complexa de se conseguir extrair. Como se sabe é de direito o acesso à saúde educação, e condições dignas de sobrevivência que devem ser proporcionadas pelo Estado, porém e factível que o próprio Estado se contenta em prestar muito pouco, prestando aquém do necessário, e utilizando respaldo princípios que visão o bem estar da maquina pública, que atualmente esta a desmoronar sobre si mesma. A necessidade de mudanças é patente, e é imprescindível que a própria sociedade reconheça a necessidade da igualdade de direitos entre as pessoas, e a percepção de que politicas públicas devem ser realizadas de forma satisfatória visando sanar as mazelas que afligem o povo. Nesse diapasão, vê-se que a construção da dignidade sexual feminina no âmbito da reprodução teve um inicio, porem ainda não há como vislumbrar ter no momento uma legislação que ira tratar de forma exaustiva todo o assunto, e aparar todas as arestas deste direito. Atualmente a baixa representatividade das minorias e das mulheres no senário politico é algo também preocupante, do mesmo modo como é preocupante o retrocesso de certos projetos que tramitam no legislativo. A maioria da sociedade continua a esmagar direitos fundamentais, e dignidade da pessoa humana em prol da “moral e dos bons costumes” e de paradigmas religiosos. Ao lado disso, é oportuno reconhecer que o direito está, atualmente, concentrado ma mão de poucos, que podem exercer muita força e opressão sobre muitos, mas que pouco se pode fazer para mudar esta situação. A pobreza nacional legislativa na seara dos direitos reprodutivos pode ser sanada com medidas que gerem o progresso de leis que visem a igualdade de gêneros, o empoderamento das mulheres, o combate a corrupção que corroem todos os investimentos na área da saúde e educação. Da mesma forma como é necessária a maior representatividade de medidas na saúde e educação que sejam voltadas para as mulheres, e a criação de futuras gerações livres de qualquer dogmática machista e opressora. Bem como que a área da saúde seja estruturada por meio de uma politica de dialogo entre o governo e as mulheres para que estejam mais aptos a desenvolver um trabalho que contemple melhor as necessidades especificas de cada caso. Do mesmo modo que é necessária a discussão de temas polêmicos como o aborto, o planejamento familiar, a discriminação econômica e racial na prestação de serviços a mulheres, sendo que em todos os casos é importantíssimo que os direitos individuais, sendo o direito a mulher sobre o seu próprio corpo, direito a liberdade e autonomia reprodutiva, sejam respeitados e defendidos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-162/sexualidade-reproducao-e-autonomia-corporal-em-convergencia-pelo-reconhecimento-dos-direitos-reprodutivos/
Sexualidade, reprodução e autonomia corporal em convergência: pelo reconhecimento dos direitos reprodutivos
O presente artigo se desenvolverá como base de revisão literária tem o fito de trazer a baia os direitos pertinentes aos direitos sexuais dentro da esfera dos direitos reprodutivos, em que serão abordados os desdobramentos destes direitos no âmbito dos direitos das mulheres. É crível perceber que somente é possível pensar em um direito reprodutivo que satisfaça a dignidade sexual feminina, que aqui será trabalhada, se esculpido este direito pelo escopo feminista de empoderamento da mulher sobre este. Os direitos reprodutivos são correspondentes aos direitos humanos e direitos fundamentais, no entanto é perceptível que para as mulheres mesmo que estes dois últimos tenham advindos anteriormente aos direitos reprodutivos, à superveniência deste direito que foi precursor enfatiza a discriminação entre os gêneros expondo que os direitos necessitam ser gozado por todos, não só “no papel” como também no plano fático. [1]
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1 INTRODUÇÃO A sociedade, em seu passado e presente, sempre esteve envolta em processos de revolução, mudanças, e aquisição de novos valores e ideologias que buscam romper paradigmas, preceitos e preconceitos que já não cabem mais dentro da vida das pessoas na sociedade. O tema sexualidade e todo e qualquer assunto que envolva esta temática causava, e ainda causa muita controvérsia e discussões mais acaloradas, pois o rompimento entre o velho e o novo na sexualidade se perfaz recente, e de forma bem aberta. O “véu” que cobre este assunto e o torna invisível está se rasgando por estes novos valores que não desejam mais viver a sobra do que é velho e ultrapassado. Deste modo os direitos na esfera sexual, que apesar de ter seu inicio a algum tempo, estão somente agora ganhando contornos mais nítidos no âmbito nacional. Em âmbito internacional, os direitos humanos sexuais ganham cada vez mais espaço, enquanto nacionalmente o legislativo deve muito à parcela mais vulnerável da sociedade, em que a tutela enquanto a esses direitos se afastam. Devido ao tipo de sociedade ao qual o país encontra-se constituído, em que a religião e a “moralidade parcial” reinam soberanas sobre parcela considerável da população brasileira, desconsiderando as diferenças multiculturais que o país possui, vários brasileiros e brasileiras são marginalizados e criminalizados de forma indevida e preconceituosa. Em meio a este caos ético, é possível ver a figura de resistência e de luta das mulheres, as quais em um processo em busca de uma conscientização global almejam o empoderamento em que possam conviver com uma igualdade plena entre gêneros. os movimentos feministas ainda lutam contra a opressão causada pelo Estado patriarcal, visando a reforma deste modelo de Estado objetivando uma mudança coletiva, entre os homens, para que reconheçam os direitos das mulheres, e uma conscientização das próprias mulheres que por causa de um modelo de criação machista, vivem em uma alienação de direitos e valores. No âmbito dos direitos sexuais, a discriminação entre os gêneros não é diferente criando um verdadeiro abismo entre direitos humanos e a realidade. É perceptível que houve avanços, entretanto é necessário que se avance mais e que a luta vise não retroceder em direitos e garantias. Os direitos reprodutivos foram desenvolvidos com o fito de proteger a saúde e reconhecer os direitos das mulheres, em um escopo inicial os direitos reprodutivos projetaram o empoderamento feminino em uma área da saúde e da sexualidade. Estas áreas do direito são realmente delicadas devido a precariedade de leis e de serviços, que são prestados totalmente fora dos padrões mínimos dos direitos humanos, e que excluem ainda mais as mulheres, a quais ficam limitadas a se submeter a situações de risco. É fundamental a discussão sobre este tema à luz dos direitos humanos, bem como da dignidade da pessoa humana na esfera da sexualidade, culminando em uma dignidade sexual feminina capaz de nortear os princípios que possam reger uma mudança no entendimento da importância do direito reprodutivo para a mulher. E da importância desta seara do direito para a propensão de direitos que visem o empoderamento feminino, quebrando os grilhões com o antigo. Para tal é imprescindível que os princípios basilares do direito humano sejam respeitados, e que a liberdade sobre o corpo da mulher seja respeitada para que as mulheres não sejam tratadas como “escravas” de leis quem visão o bem-estar de um Estado machista. Assim, direitos na esfera individual necessitam ser respeitados e reforçados, respeitando-se o direito a escolhas, e proporcionando meios e métodos para que se chegue a elas por meios legais e seguros. A sociedade necessita demonstrar seu poder de mudar, se transformar e compreender estas mudanças, assimilando que a igualdade entre os gêneros, a igualdade no campo dos direitos sexuais e reprodutivos e promulgar a igualdade entre todos os seres humanos. 2 SEXUALIDADE E LIBERDADE REPRODUTIVA: CONTORNOS PRIMÁRIOS Para traçar o que é a liberdade reprodutiva e o ao que esta concerne é necessário, primeiramente, se entender o que é a sexualidade e qual é a correlação entre estas duas matérias. Em um escopo nacional, a sexualidade tem uma ligação intrínseca com a ideia de gêneros pré-determinados como macho e fêmea, em um quadro engessado que cria expectativas quanto à sexualidade e gênero (PARKER 1991, apud GUIMARÃES, 2012, p. 60). A sexualidade sofre ainda por ser um assunto do qual se necessita mais discussão e debate pela sociedade, sendo que este assunto padece, ainda, com um histórico de violações e de estereótipos que circundam o tema (MALVEIRA, 2013, p. 02). A sexualidade, de uma forma geral, está ligada à vontade do individuo de se expressar sexualmente. Ora, isto vai muito além da vontade de exercer a sexualidade, como também pela disponibilidade de sua ação (MALVEIRA, 2013, p.02). Entretanto, a sexualidade, no Brasil, está arraigada ao ato de penetração e também pelo ato sexual, fazendo assim que a sexualidade tenha como seu principal pressuposto a parte biológica, a sexualidade fica extremamente condicionada ao órgão genital ao qual a pessoa nasceu (PARKER, 1994; VILELA, 1998, apud GUIMARÃES, 2012, p. 06). Deste modo, a sexualidade se tornou um assunto de difícil acesso e cheio de tabus (MALVEIRA, 2013, p.02), sendo um tema do qual se era difícil falar e ao qual qualquer que seja o desvio do padrão social é fortemente reprimido. A homossexualidade, como um exemplo, é motivação para que o indivíduo seja diminuído socialmente (GOFFMAN, 1988, apud GUIMARÃES, 2012, p. 06), sendo, desta forma, creditados, ao indivíduo, defeitos que são meramente construções preconceituosas criadas a partir do senso comum. A sexualidade é construída pelos aspectos sociais e também biológicos, porém estes dois não são os únicos fatores que determinam a sexualidade de um individuo (CAMARGO, 2011, p.12). A sexualidade faz parte da construção do indivíduo e, como tal, esta sofre a influência de outros fatores como cultura, a realidade social, como também fatores psicológicos quem influem para a construção da pessoa e de sua identidade sexual (CAMARGO, 2012, p.12). Desta forma, a sexualidade não fica cerceada a fatores meramente biológicos, apesar de que estes fatores criam sobre a pessoa uma série de “regras de conduta”, das quais a pessoa não pode se desvencilhar por causa do determinismo que é impetrado a si pela sociedade. Qualquer forma que fuja a este padrão social são invisibilizados (GUIMARÃES, 2012, p. 06) e deixados à margem da sociedade por incurso de vários tipos de violências sejam elas físicas ou simbólicas (CAMARGO, 2012, p. 12 apud BENTO, 2016). Com a evolução gradativa dos Direitos fundamentais e sexuais em âmbito internacional, fruto de vários encontros e conferencias, das quais os direitos de ordem sexual foram concebidos durante o XV Congresso Mundial de Sexologia, ocorrido em Hong Kong (China), entre 23 e 27 de agosto, a Assembleia Geral da WAS (World Association for Sexology). Tais direitos apontam para a liberdade, autonomia e igualdade sexual, compreendendo que a diversidade sexual deve atender ao individuo e ao seu crescimento social sem prejuízos e sem violência (WAS, 2000, s.p.). Como consequência, a saúde e a defesa dos direitos humanos devem ser preponderantes para a criação de direitos e normas que tutelem sobre a sexualidade, por se tratar de uma matéria com fulcro fundamental (WAS, 2000, s.p.). “Os direitos sexuais são direitos humanos universais baseados na liberdade inerente, dignidade e igualdade para todos os seres humanos. Saúde sexual é um direito fundamental, então saúde sexual deve ser um direito humano básico. Para assegurarmos que o seres humanos e a sociedade desenvolvam uma sexualidade saudável, os seguintes direitos sexuais devem ser reconhecidos, promovidos, respeitados, defendidos por todas as sociedades de todas as maneiras. Saúde sexual é o resultado de um ambiente que reconhece, respeita e exercita estes direitos sexuais” (WAS, 2000, s.p.). E, na esteira de direitos fundamentais, a liberdade está como direito fundamental que embasa a diversidade, quanto à sexualidade e suas diferentes formas de ser vivenciada, por se tratar de matéria inerente à dignidade da pessoa humana. Deste modo, a visibilidade, a quebra de paradigmas e da ignorância são pressupostos para que se exerça a sexualidade de forma digna e proba, sem que haja preconceitos ou arbitrações que excedem aos direitos individuais (GUIMARÃES, 2012, p. 08). O direito à liberdade que, a priori, é disseminado em que cada ser humano, que nasce livre e igual, inexistindo distinções entre os seres humanos por quaisquer que sejam suas diferenças (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, p. 04), não é de fato posta em prática. Ora, na realidade, diante de tal cenário, fica patente que no âmbito da sexualidade, ainda, persistem inúmeras situações que afrontam a direitos constitucionais fundamentais, bem como direitos humanos que abrangem o escopo da liberdade sexual (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 06). “Entretanto, violações de direitos humanos que atingem pessoas por causa de sua orientação sexual ou identidade de gênero, real ou percebida, constituem um padrão global e consolidado, que causa sérias preocupações. O rol dessas violações inclui execuções extra-judiciais, tortura e maus-tratos, agressões sexuais e estupro, invasão de privacidade, detenção arbitrária, negação de oportunidades de emprego e educação e sérias discriminações em relação ao gozo de outros direitos humanos. Estas violações são com freqüência agravadas por outras formas de violência, ódio, discriminação e exclusão, como aquelas baseadas na raça, idade, religião, defi ciência ou status econômico, social ou de outro tipo” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 06). A liberdade, no âmbito da sexualidade, também, se estende à reprodução, em que consiste nos direitos reprodutivos, que serão ademais trabalhados, mas que guardam vínculo com direitos fundamentais preestabelecidos. Tal liberdade consiste, a princípio, na liberdade de decisão quanto à reprodução, decidindo quanto à quantidade de filhos, quando tê-los, e também sobre não os ter, bem como escolhendo com responsabilidade e para tal que sejam dispostas, do mesmo modo, acesso à saúde e informação de qualidade (SOUSA, 2010, p. 4.906). Estes pontos que foram apresentados e são abordados quando se debatem a liberdade reprodutiva, da mesma forma, remete a não utilização de coerção para com a mulher (SOUSA, 2010, p.4.906) e a “descoisificação” da mulher enquanto um objeto de reprodução, respeitando seus direitos individuais e a inviolabilidade de seu corpo e da sua sexualidade (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 163). Como base para tal direito, a Declaração dos Direitos Sexuais tem, em seu oitavo ponto, que “o direito às escolhas reprodutivas livres e responsáveis”, que em seu bojo vem salientar o direito de decisão de ter ou não filhos e quando os tiver da melhor forma que aprouver. A liberdade tem seu espectro ampliado quando observado pela ótica da propensão de direitos que buscam a igualdade entre os gêneros e, ademais, protegendo as mulheres da discriminação e também da violência (SOUSA, 2010, p.4.906), seja no seio familiar ou social. De fato, tal direito é observado pelo escopo da natalidade, competindo à mulher o direito a ter ou não uma criança, já que biologicamente só esta pode gerar vida. E, para que haja vida, é necessário que, primeiramente, a mulher se disponha, por sua livre escolha, a ter e gerar a criança, incumbindo ao Estado proporcionar condições de saúde para que esta gere (SOUSA, 2012, p.4.906). A liberdade, quanto à sexualidade e reprodutiva, para que prospere necessita de uma sociedade em que as leis sejam realmente acessíveis para todos e que direitos humanos e fundamentais não sejam simplesmente voltados para uma parcela da sociedade. O gênero não pode ser a justificativa para um tratamento desigual ou para disparates contra a Constituição Brasileira, contra a Declaração Universal dos Direitos Humanos e contra a dignidade da pessoa humana, já que o próprio Estado se dispõe, em sua Constituição de 1988, a promovê-la no art. 1°, inciso III, criando um mínimo social (WEBER, 2013, p. 200). Deste modo, a liberdade deve ser compreendida como um direito que exige que barreiras, como a discriminação e a segregação de grupos minoritários, cessem (PIRES, 2017, p. 485). De igual maneira, é necessária a participação de toda a sociedade e do Estado para que trate de assuntos sobre a sexualidade que permanecem, hoje, como tabus e que, infelizmente, geram lacunas na lei que poderiam ser parcialmente supridas pelo legislativo e se a Constituição e os princípios que a regem fossem utilizados em prol da sociedade como um todo (SOUSA, 2010, p. 4.907). 3 DIGNIDADE SEXUAL FEMININA E EMPODERAMENTO A sociedade como um todo, durante o decurso da história, vem sendo regida por um domínio patriarcal, em que “o paradigma de sujeito de direito era claro: masculino, branco, europeu, cristão, heterossexual” (RIOS, 2006, p. 81). E este paradigma persiste até os dias atuais e tal domínio é o responsável pela depreciação do papel da mulher e de outros grupos sociais dentro da sociedade, por intermédio de uma doutrina machista. Esta situação em tela leva a grandes desigualdades no âmbito do direito, em que este quando aplicado por diversas vezes exclui as mulheres e outras parcelas vulneráveis (RIOS, 2006, p. 81). Esta exclusão propagando, majoritariamente, entre as mulheres a pobreza e a falta de oportunidades, sejam elas econômicas, sociais e politicas (LISBOA, 2008, p. 01). Neste diapasão, o empoderamento surge pelo viés dos movimentos feministas como uma forma de lutar contra “a posição socialmente subordinada das mulheres em contextos específicos” (LISBOA, 2008, p. 01). O empoderamento não guarda, em seu bojo, a ideia do “poder” como uma fonte de opressão, abuso dominação, o ideal na proposta feminista é que o empoderamento das mulheres seja uma de “emancipação e de resistência” contra o abuso do Estado patriarcal (LISBOA, 2008, p. 02). “Empoderamento na perspectiva feminista é um poder que afirma, reconhece e valoriza as mulheres; é precondição para obter a igualdade entre homens e mulheres; representa um desafio às relações patriarcais, em especial dentro da família, ao poder dominante do homem e a manutenção dos seus privilégios de gênero. Implica a alteração radical dos processos e das estruturas que reproduzem a posição subalterna da mulher como gênero; significa uma mudança na dominação tradicional dos homens sobre as mulheres, garantindo-lhes a autonomia no que se refere ao controle dos seus corpos, da sua sexualidade, do seu direito de ir e vir, bem como um rechaço ao abuso físico e as violações” (LISBOA, 2008, p. 02). Para tal, é necessário que haja um “despertar da consciência” para a situação de desigualdade de gênero que é patente na sociedade por parte das próprias mulheres, reconhecendo as desigualdade e discriminação entre homens e mulheres (LISBOA, 2008, p. 02). A situação é árdua tendo em vista que a educação e também a religião, impostas às mulheres, visam à submissão integral daquela ao homem, seja pela figura paterna ou na figura do marido, tornando-as “serventes” do lar, em uma clara “segregação” no que diz respeito à educação (GALETTI, 2013, p. 70). Esta segregação, também, se aloja no campo sexual, em que a sexualidade da mulher é invadida e controlada, violando a sua privacidade e seus direitos individuais. Para enfrentar este cenário, os direitos reprodutivos e sexuais, bem como os direitos e convenções voltadas para a construção e luta pelo direito das mulheres estão guiando esta luta para o campo do empoderamento como primeiro passo para possibilitar direitos mais amplos às mulheres (LISBOA, 2008, p. 05). Deste modo, só a criação de direitos sexuais que se importam pelo empoderamento feminino é que se poderá falar na edificação de uma dignidade sexual feminina. Para tal, importa destacar os quatro princípios éticos elencados pelas doutrinadoras Correa e Petchersky (1996, p.160), que são: “integridade corporal, autonomia pessoal, igualdade e diversidade”. Os quatro pontos são de fato imprescindíveis para que se possa falar em dignidade sexual, já que são pontos que trabalham direitos humanos já pré-constituídos, porem que não são distribuídos integralmente. A integridade corporal trabalha o principio da liberdade, e do direito a inviolabilidade do próprio corpo, respeitando-se assim a esfera dos direitos individuais constituídos tanto pela Constituição Brasileira, quanto pela DUDH. Este princípio ético se sagra por elucidar e lembrar de que a mulher é dona do seu próprio corpo, impondo a este suas próprias decisões, seja no campo do prazer, na autodeterminação, da saúde, e, outrossim, da reprodução e da não reprodução (CORREA; PETCHERSKY, 1996). Assim, fica claro que para tal é necessário o respeito e o dialogo entre os gêneros, e que principalmente se ouça quais são as reivindicações para que se respeito o espaço e a autonomia pessoal da mulher, compreendendo que estas são capazes de “escolhas individuais” (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 163). A mulher tem direito no que se diz respeito à formulação do planejamento familiar, populacional, bem como tem direito de escolher métodos contraceptivos, e tem direito a uma gama de escolha, bem como tem direito ao aconselhamento a gravidez, prevenção contra DST’s, da melhor forma que lhe aprouver (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 163). Na esfera ética da igualdade, a sexualidade e a reprodução são trabalhadas por dois vieses, o primeiro quanto à discussão da relação e a formação de sistemas de gêneros, relações entre homens e mulheres, e o segundo ponto é a relação entre as próprias mulheres e suas diferenças sócias (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 165). Basicamente, este ponto enseja pela igualdade entre homens e mulheres dentro da sociedade, proporcionando uma maior inclusão da mulher e de seu empoderamento dentro da sociedade (LISBOA, 2008, p. 05). Contudo, como esclarecem Correa e Petchersky (1996, p. 165), a igualdade, no que diz respeito à reprodução, é incompatível com homens e mulheres, já que, por condições biológicas, só mulheres são capazes de dar à luz, somente elas carregam situações de risco bem como só elas podem decidir quando reproduzir. Em realidade, quanto a suportar riscos e benefícios no uso de contraceptivos não existe tal igualdade, em que o ônus de carregar os riscos médicos e de “não engravidar” é da mulher (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 166). Assim, a igualdade tem de ser respeitada entre as mulheres também, visando sempre o atendimento igualitário em que as diferença sociais e de recursos sejam sanados pelo Estado, sendo que esse proporcione meios de acesso à saúde e à educação sexual (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 167). “De fato, quando pesquisas clínicas são realizadas entre mulheres urbanas pobres, que tendem a se mudar com frequência e que sofrem com a falta de transporte, as condições necessárias para o acompanhamento médico adequado podem não existir, e desta forma as pesquisas podem, elas mesmas, estar em desacordo com o princípio de igualdade. Da mesma forma, problemas de discriminação surgem quando métodos seguros tais como camisinhas e diafragmas, pílulas com baixas doses de hormônio ou condições de aborto seguro estão disponíveis apenas para mulheres com suficientes recursos financeiros” (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 167). Neste diapasão, a igualdade surge como um pressuposto para o acesso aos serviços de saúde, sendo que as diferenças entre as mulheres devem ser mitigadas e, do mesmo modo, no princípio da diversidade aponta que as diferenças entre as mulheres devem ser respeitadas (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 167). Diferenças culturais, de crenças religiosas, condição sexual, bem como condições financeiras e de saúde, que são pontos que afetam a esfera sexual e reprodutiva, merecem ser respeitadas e ponderadas no momento de se proporcionar um melhor atendimento à mulher (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 168). Do mesmo modo que a vivência da sexualidade, como se experimenta a sexualidade depende de vários fatores como: “Geração, raça, nacionalidade, religião, classe, etnia” que são alguns pontos que se devem levar em consideração (LOURO, 1999, p. 07). Esse direito à diversidade não é absoluto, tendo em vista que o respeito à cultura e à sua diversidade é importante, porém práticas que aludem à submissão da mulher, obrigando-a a algum tipo de método contraceptivo perigoso. Qualquer tipo de tratamento ou rito cultural em que as mulheres são obrigadas a participar, como as mutilações genitais, são práticas que não podem prosperar em Estados que se dizem preocupados em garantir os direitos das mulheres (CORREA; PETCHERSKY, 1996, p. 169). Para a construção da dignidade sexual feminina há sim de se falar destes quatro pontos, tendo em vista que estes tratam dos direitos sexuais e reprodutivos. Estes princípios tem relação intrínseca para a construção do empoderamento e da dignidade sexual feminina, tendo em vista que estes princípios buscam a construção da saúde sexual e combater abusos e invasões a mulher e seu corpo (CORREA; PETCHERSKY, 1996). Ao lado disso, cuida destacar que a dignidade sexual aponta para a criação de direitos reprodutivos que proporcionem à mulher o respeito e a liberdade sexual pelos quais elas lutam e ensejam. 4 DIREITOS REPRODUTIVOS E SEUS DESDOBRAMENTOS COMO MANIFESTAÇÃO DA AUTONOMIA CORPORAL Trançando um breve contexto histórico, com o fito de proteger a saúde e os direitos individuais, e também a sexualidade, a ideia de direitos reprodutivos, e de como e quando as mulheres devem decidir quando e de que forma desejam ter filhos surgiu por intermédio de movimentos feministas por volta de 1830 em meio aos grupos socialistas ingleses (CHESLER, 1992; GORDON, 1976; HUSTON, 1992; JAYAWARDENA, 1993; RAMUSACK, 1989; WEEKS,1981, apud CORREA; PETCHESKY, 1996, p.151). Contudo, “o termo “direitos reprodutivos” consagrou-se na Conferência Internacional de População de Desenvolvimento (CIPD), ocorrida no Cairo, em 1994” (SOUSA, 2010, p. 4.906), em que o tema foi discutido e trabalhado pelo viés da saúde sexual. E, mesmo anteriormente em outras conferencias que tratavam sobre os direitos humanos, o discurso sobre os direitos das mulheres vinha à tona, demonstrando que as mulheres como parcela vulnerável (RIOS, 2006, p. 75) da sociedade sofria, e ainda sofre, em um caráter global, que persiste em mitigar e segregar as mulheres e seus direitos. A Conferência do Cairo foi o ponto de partida dentro dos direitos reprodutivos, e que também em seu bojo abarcava ideais de igualdade de gêneros, bem como proporcionou mais visibilidade para a mulher no seio da sociedade, como também a sua importância para o desenvolvimento social (CORREA; PETCHESKY, 1996, p.171). Mais tarde, a Quarta Conferência Mundial da Mulher, que foi sediada em Pequim (1995), veio para confirmar o que foi trabalhado no Cairo, reafirmando a importância do direito das mulheres, e a necessidade de uma proteção aos direitos sexuais e reprodutivos, bem como da saúde (RIOS, 2006, p. 77). Em ambas as oportunidades, mas pioneiramente no Cairo, o empoderamento da mulher quanto às decisões que concernem o seu próprio corpo foram trabalhadas de forma contundente (CORREA; PETCHESKY, 1996, p.171). O direito reprodutivo, de forma genérica, abraça a não coerção de nenhum tipo à mulher, e defende a liberdade e a dignidade sexual reprodutiva da mulher longe de qualquer tipo de discriminação ou violência (SOUSA, 2010, p. 4.906). O direito reprodutivo defende a autonomia e a liberdade da mulher, e este direito demanda necessariamente a discussão de temas polêmicos, e, que na sociedade brasileira são de difícil acesso. “Na discussão sobre sexualidade e Direitos Humanos, tomamos a noção de direitos sexuais e reprodutivos como parâmetro, a fim de evidenciar as questões relacionadas ao tema, tais como: planejamento familiar; acesso a métodos contraceptivos seguros; esterilização cirúrgica; assistência à gravidez e ao parto, incluindo atendimento pré-natal; aborto; mortalidade materna; novas tecnologias reprodutivas; doenças sexualmente transmissíveis e AIDS; violência e exploração sexual; prostituição e turismo sexual; não discriminação em razão de orientação sexual; uniões e famílias homossexuais; “mudança de sexo” e alteração do registro civil, entre outras” (SOUSA, 2006, p. 4.907). Em verdade, o tema sexualidade sofre ainda com um processo de invisibilidade e falta de diálogo, por ser notoriamente tratado como um tabu na atualidade, e os assuntos que o circundam também o são da mesma forma. Um dos objetivos dos direitos reprodutivos é justamente tratar a mulher como capaz de seus próprios atos, e livre para vivenciar a sexualidade de seu próprio corpo como quiser por meio de politicas que permitam isto (ÁVILA, 2003, p. 468). O direito sexual à saúde é apenas uma proposta no que concerne este direito e, mesmo assim, vê-se que estes não são plenamente oferecidos às mulheres, pois a saúde, no Brasil, convive com a precariedade e falta de recursos suficientes para a aplicação de uma saúde de qualidade. Da mesma forma que faltam médicos, remédios, igualmente, falta um legislativo que represente a causa dos direitos sexuais e que respeitem os direitos humanos a ponto de proporcionar uma legislação que vise sanear temas do âmbito sexual que atualmente ficam a margem da legislação brasileira, e que, contudo possuem o respaldo constitucional (SOUSA, 2006). O tema “sexualidade, saúde e liberdade sexual” ainda hoje sofre com uma forte influência religiosa e de “padrões sociais” que são predefinidos e impostos a parcela mais vulnerável da sociedade, mulheres, negros, grupos LGBTIs. O aborto, como um exemplo, que se tratado fora dos ideais religiosos, é um assunto que trabalha tanto a liberdade pessoal da mulher (SILVA; CARNEIRO; MASQUES, 2017, p. 459), como também se trata de um assunto de saúde e um direito a autodeterminação reprodutiva (PIRES, 2017, p.483). Tendo em vista que o aborto é a quarta maior causa de morte entre as mulheres brasileiras, por este procedimento não ser devidamente feito e proporcionado de forma legal e segura pelo Estado (MONTEIRO; ADESSE, 2008 apud SILVA; CARNEIRO; MASQUES, 2017, p. 459). O aborto feito na clandestinidade envolve um problema que é de saúde pública nacional e também internacional, bem como a falta de diálogo e a promulgação de leis que tornem o aborto legal e seguro geram um massacre de mulheres pobres e carentes que não possuem condições para realiza-lo de forma mais segura (SILVA; CARNEIRO; MASQUES, 2017, p. 464). Apesar do direito ao aborto legal ser muito aquém do que realmente o assunto abarca em sua totalidade, este direito social ainda sofre com projetos de leis de parlamentares que, em nome de uma moral que não é baseada nos princípios dos direitos humanos e sexuais, visam tolher o exercício de tal direito (SILVA; CARNEIRO; MASQUES, 2017). Aludido direito, ao aborto, que por sua complexidade e sua necessidade de que se debata a fim de que se evolua e de que se encontrem meios para que os direitos e a integridade da mulher sejam respeitados não se pode permitir que houvesse retrocessos (SILVA; CARNEIRO; MASQUES, 2017, p. 478). “Segundo a autora, as propostas contrárias à prática do aborto versam sobre: (1) inclusão do preceito de garantia da vida desde a concepção ao artigo 5º da Constituição; (2) alteração do Código Penal para: exclusão dos permissivos legais para a prática do aborto; aumento das penas; inclusão da punição para aborto provocado quando há anomalia fetal grave; (3) inclusão do aborto no rol de crimes hediondos; (4) criação de central de atendimento para receber denúncias de aborto; (5) implantação de medidas assistenciais para evitar aborto decorrente de estupro; (6) instituição do Dia do Nascituro e (7) da Semana da Prevenção ao Aborto” (ROCHA, 2005 apud SOUSA, 2010, p.4.908). Levando em consideração outros direitos reprodutivos, como o direito ao planejamento familiar que está elencada na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 226, §7°, em que: “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal […]” (BRASIL, 1988). Ora, sendo vedado qualquer tipo de coerção, sendo dever do Estado proporcionar meios para o exercício deste direito. Ademais, compreendendo que a mulher, como ser independente que pode e tem o direito sobre seu próprio corpo e sua liberdade, vê que a criminalização do aborto afeta também outros direitos, como o direito em tela do planejamento familiar. Desta forma, faz-se necessário destacar que a criminalização pode e deve ser entendida como violação ao direito constitucional para com o planejamento familiar, ao direito a saúde reprodutiva, bem como uma violação a autonomia sexual e reprodutiva (SOUSA, 2010, 4.908). O direito à saúde reprodutiva apenas será feito de modo exaustivo, suprindo todas as necessidades, quando for levada em consideração a vontade da mulher, colocando-a como pessoa de direitos e deveres como os demais gêneros da sociedade sem discriminação (PIRES, 2017, p. 497). O planejamento familiar e a saúde reprodutiva dependem de uma educação capaz de explicar de forma satisfatória e clara a sexualidade para todos os gêneros, fazendo um trabalho preventivo. Em verdade, os direitos que concernem os direitos reprodutivos devem estar sempre interligados, estes devem ser ampliados, não se pode regredir em direitos já, com muita luta foram conquistados (CORREA; PETCHESKY, 1996, p.172). É necessário que os direitos a saúde, métodos contraceptivos, pré-natal, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, direito ao aborto legal seguro, direito ao planejamento familiar, direito a dignidade sexual feminina, entre outros, não sejam subordinados e sim oferecidos com uma visão ampla, e livre de quaisquer vícios (CORREA; PETCHESKY, 1996, p.171).   5 CONCLUSÃO O direito deve ser aquilo que norteia a sociedade para a ordem e o progresso paulatino baseado em premissas como liberdade, e igualdade, entretanto como chegar a este resultado? E observado pelo escopo dos direitos sexuais esta resposta fica ainda mais complexa de se conseguir extrair. Como se sabe é de direito o acesso à saúde educação, e condições dignas de sobrevivência que devem ser proporcionadas pelo Estado, porém e factível que o próprio Estado se contenta em prestar muito pouco, prestando aquém do necessário, e utilizando respaldo princípios que visão o bem estar da maquina pública, que atualmente esta a desmoronar sobre si mesma. A necessidade de mudanças é patente, e é imprescindível que a própria sociedade reconheça a necessidade da igualdade de direitos entre as pessoas, e a percepção de que politicas públicas devem ser realizadas de forma satisfatória visando sanar as mazelas que afligem o povo. Nesse diapasão, vê-se que a construção da dignidade sexual feminina no âmbito da reprodução teve um inicio, porem ainda não há como vislumbrar ter no momento uma legislação que ira tratar de forma exaustiva todo o assunto, e aparar todas as arestas deste direito. Atualmente a baixa representatividade das minorias e das mulheres no senário politico é algo também preocupante, do mesmo modo como é preocupante o retrocesso de certos projetos que tramitam no legislativo. A maioria da sociedade continua a esmagar direitos fundamentais, e dignidade da pessoa humana em prol da “moral e dos bons costumes” e de paradigmas religiosos. Ao lado disso, é oportuno reconhecer que o direito está, atualmente, concentrado ma mão de poucos, que podem exercer muita força e opressão sobre muitos, mas que pouco se pode fazer para mudar esta situação. A pobreza nacional legislativa na seara dos direitos reprodutivos pode ser sanada com medidas que gerem o progresso de leis que visem a igualdade de gêneros, o empoderamento das mulheres, o combate a corrupção que corroem todos os investimentos na área da saúde e educação. Da mesma forma como é necessária a maior representatividade de medidas na saúde e educação que sejam voltadas para as mulheres, e a criação de futuras gerações livres de qualquer dogmática machista e opressora. Bem como que a área da saúde seja estruturada por meio de uma politica de dialogo entre o governo e as mulheres para que estejam mais aptos a desenvolver um trabalho que contemple melhor as necessidades especificas de cada caso. Do mesmo modo que é necessária a discussão de temas polêmicos como o aborto, o planejamento familiar, a discriminação econômica e racial na prestação de serviços a mulheres, sendo que em todos os casos é importantíssimo que os direitos individuais, sendo o direito a mulher sobre o seu próprio corpo, direito a liberdade e autonomia reprodutiva, sejam respeitados e defendidos.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-162/sexualidade-reproducao-e-autonomia-corporal-em-convergencia-pelo-reconhecimento-dos-direitos-reprodutivos/
Alimentos transgênicos: os benefícios e os riscos para a segurança alimentar e nutricional no Brasil
O presente tem como finalidade a demonstração da concretização do direito humano à alimentação adequada (DHAA) que foi inserido no texto constitucional como direito fundamental, tendo como sustentáculo o direito humano do homem de gozar de uma vida digna, incluindo a segurança alimentar e nutricional. Os avanços em âmbito nacional do DHAA são notáveis, como poderá ser analisado posteriormente, uma vez que os instrumentos fincados pelo Estado ratificam que tal garantia não se encontra somente no mundo jurídico e ideal, mas que, de forma pragmática, vem alcançando espaço, o que é observado com a inserção do Brasil entre os maiores produtores de alimentos transgênicos do mundo, haja vista que a aplicação correta de tal tecnologia coopera para a erradicação da fome com a introdução de maior quantidade de produtos à disposição do consumidor final, porém é importante uma análise cirúrgica de todas as etapas concernentes à produção dos organismos geneticamente mudados, haja vista o grande risco a saúde que pode vir a acarretar pelo uso inadequado daqueles[1].
Biodireito
1 COMENTÁRIOS PRELIMINARES A fome é considerada o maior óbice ao desenvolvimento mundial; desde os primórdios das civilizações há narrativas da necessidade e dificuldade que o homem enfrentava para subsistir e suprir seus desprovimentos nutricionais. Neste ínterim, faz-se imprescindível aprazar Josué de Castro, um dos intelectuais brasileiros mais renomados, haja vista seus estudos a cerca da fome e acoplando tais conceitos à realidade brasileira de forma poética e melancólica. Segundo o referido autor (CASTRO, 1984, p.5), após rigorosos estudos, a fome, diferentemente de outras endemias, é suscetível de cura, dependendo, no entanto, da ação do Estado para o fornecimento dos alimentos adequados para cada região, atentando-se para as peculiaridades das mesmas. Neste ínterim, o autor supracitado, analisando sobre a ótica histórica da população brasileira, especificamente em relação a má distribuição de renda que desde a era colonial persiste, define a fome a partir dos seguintes conceitos: individual ou coletiva; endêmica ou epidêmica; parcial ou total, subdividindo-a ainda em áreas territoriais, quais sejam: Amazônia, Nordeste Açucareiro, Sertão Nordestino, Centro-Oeste e Extremo Sul, concluindo portanto a remediação encontra-se em considerar as regiões individualmente com suas qualidades históricas, geográficas, econômicas e sociais. Diante disso, o estudo da fome deve ser conferido da seguinte maneira: “(…) o objetivo é analisar o fenômeno da fome coletiva – da fome atingindo endêmica ou epidemicamente as grandes massas humanas. Não só a fome total, a verdadeira inanição que os povos de língua inglesa chamam de starvation, fenômeno, em geral, limitado a áreas de extrema miséria e a contingências excepcionais, como o fenômeno muito mais freqüente e mais grave, em suas conseqüências numéricas, da fome parcial, da chamada fome oculta, na qual, pela falta permanente de determinados elementos nutritivos, em seus regimes habituais, grupos inteiros de populações se deixam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias. É principalmente o estudo dessas coletivas fomes parciais, dessas fomes específicas, em sua infinita variedade, que constitui o objetivo nuclear do nosso trabalho” (CASTRO, 1984, p. 152). À luz do exposto, é imperioso dizer que a fome trata-se não somente da ausência de alimento, mas da falta dos nutrientes necessários para um equilíbrio alimentar, que alcança o desenvolvimento pessoal e coletivo da sociedade, destarte, é indispensável que o Ente Estatal disponha de políticas públicas capazes de não somente matar a fome instantânea, não obstante a nutrir o indivíduo e sanar suas disfunções alimentares. Nesse sentido, nasce a definição de Segurança Alimentar, tema desta pesquisa. Precedentemente, insta discorrer sobre o histórico instituto no Brasil, que é elevadamente meritório para o desenvolvimento social, com o intuito de entender tal significância. Precipuamente, a expressão Segurança Alimentar ganha enfoque no Brasil após a I Conferência Internacional Alimentar e Nutricional em 1986, intensificando as discussões, haja vista a consagração do Direito à Alimentação Adequada (DHAA) ao rol de direitos fundamentais em 1948, no qual o Brasil se achava membro, alargando o conceito com a I Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional em 1994, promovida pelo CONSEA, com a seguinte definição: “trata-se do acesso universal aos alimentos, o aspecto nutricional e, consequentemente, as questões relativas à composição, à qualidade e ao aproveitamento biológico” (BRASIL, 2003, p.11). Sucessivamente, em 1995, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA), é extinto, prescindindo o Conselho da Comunidade Solidária, deslocando o centro das discussões da Segurança Alimentar para a questão da pobreza. Conquanto, em 1996, o Brasil participa da Cúpula Mundial de Alimentação, realizada pela FAO, trazendo consigo o conceito a seguir: “A Segurança Alimentar e Nutricional significa garantir, a todos, condições de acesso a alimentos básicos de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, com base em práticas alimentares saudáveis, contribuindo, assim, para uma existência digna, em um contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana” (BRASIL, 1996, p.4) Nesse sentido, em 2001 é criado o projeto fome zero, constituído pelo instituto da cidadania, que visava erradicar a fome que submetia cerca de 54 milhões de pessoas à situação de insegurança alimentar, sendo o mesmo programa o responsável por eleger Luiz Inácio Lula da Silva à presidente da república no ano de 2002. Tal equipamento tornou-se importante para o aumento dos debates relacionados à segurança alimentar e nutricional, envolvendo os órgãos, institutos, sindicatos e outros para a questão da fome. Assim, o Instituto da Cidadania reiterou o conceito consagrado pela Cúpula Mundial de Alimentação, acrescentando, todavia, definições próprias, como se observa a seguir: “[…] a garantia do direito de todos ao acesso a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e de modo permanente, com base em práticas alimentares saudáveis e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais nem o sistema alimentar futuro, devendo se realizar em bases sustentáveis. Todo o país deve ser soberano para assegurar sua segurança alimentar, respeitando as características culturais de cada povo, manifestadas no ato de se alimentar. É responsabilidade dos Estados Nacionais assegurarem este direito e devem fazê-lo em obrigatória articulação com a sociedade civil, cada parte cumprindo suas atribuições específicas” (INSTITUTO CIDADANIA, 2001, p.15). Consequentemente, como marco da SAN em território nacional faz-se imperioso citar a criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), através da Lei 11.346/2006, com a finalidade de assegurar o direito humano à alimentação adequada afamada pela Declaração dos Direitos do Homem em 1948. Esse compilado legal traz princípios, definições, diretrizes, objetivos do sistema supracitado, com o intuito de através da participação estatal e social, formular e implantar programas e ações que visem a solidificação da Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil. Sequencialmente, tem-se o mais imprescindível símbolo do DHAA em território nacional, qual seja, a implementação de tal direito no rol de direitos fundamentais, a saber, ao art. 6º da Constituição Federal, elevando-o a essencialidade e coagindo o Estado à fornecê-lo, como poderá ser verificado posteriormente. 2 SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL: DELIMITAÇÃO E EXTENSÃO DO VOCÁBULO Com é sabido, com o advento da inserção do DHAA no arcabouço dogmático dos direitos fundamentais, o Estado forçou-se a fornecer tais garantias, desenvolvendo instrumentos que concretizem as mesmas. O marco legal para a implementação deste ideário encontra-se na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), de nº 1346/2006, que conjectura, conforme o julgamento de Rangel (2015, p. 10), o alargamento das circunstâncias de aquisição dos alimentos através do trabalho da agricultura tradicional e familiar, dando atenção ao método de produção em todas suas fases, isto é, processamento, industrialização e comercialização, tendo como pilar as resoluções internacionais, do abastecimento e da distribuição dos alimentos, envolvendo também os recursos naturais como a água, além de fornecer empregos e redistribuir a renda. Vale ressaltar que traz em consideração não somente a erradicação da fome, mas todas as dimensões, tais quais ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais. Diante desse cenário, o legislador define a Segurança Alimentar e Nutricional como a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis, conforme previsto em seu art. 3º, litteris. Neste sentir, Albuquerque (2009, p.06) conceitua que a SAN possui duas dimensões distintas: a alimentar e a nutricional. A primeira diz respeito à viabilidade do acesso à alimentação adequada, envolvendo a produção e a disponibilidade dos alimentos, enquanto esta se relaciona ao conhecimento do indivíduo com o alimento em que consome, buscando sempre a conscientização da nutrição e equilíbrio nas refeições. Assim, a SAN aspira muito além da simples erradicação da fome, mas essencialmente à conscientização de toda a sociedade para a importância de alimentar-se bem, ainda que não haja falta de alimentos, tal consentimento abarca inclusive os produtores e fornecedores de alimentos, para tanto exige-se a participação de todos os âmbitos sociais, através de políticas e programas que versem sobre a importância da Segurança Alimentar para o desenvolvimento social, econômico e político do Estado. Com efeito, grande tem sido o avanço nacional neste sentido, v.g, o CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), desenvolveu uma pesquisa em 2010 a fim de constatar os avanços dos equipamentos públicos em prol da efetivação do DHAA em relação à promulgação da LOSAN, e os resultados apontam que o Brasil é um dos países em que possui a diminuição significativa dos indivíduos em Insegurança Alimentar e Nutricional (CONSEA. 2010, p. 06). Neste sentido, apesar de já possuir mecanismos relacionados ao DHAA antes da LOSAN, o país conseguiu estabilizar o conceito de segurança alimentar através desta e posteriormente desenvolver dispositivos que consumaram esta ambição, v.g., o Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN), o Guia Alimentar Para a População Brasileira disponibilizado pelo Ministério da Saúde em 2014, o Programa Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos (PRONARA) dentre outros prospectos apoiados ou implementados pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). O DHAA indica o vultoso avanço social do país, que reflete no crescimento da sociedade de forma universal e por este motivo vem sendo tão aclamado nas discussões políticas e sociais no país. Sob esta ótica, o CONSEA, em sua 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar, adverte: “Desde 2003, o Brasil vem construindo o Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) com vistas a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). O SISAN é um meio para a concretização da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN), articulado ao conjunto de setores envolvidos como saúde, educação, desenvolvimento agrário, meio ambiente, cultura, etc. Saúde e segurança alimentar são temas convergentes e complementares pois, ambos tem complexidade e desafios em comum”. (CONSEA, 2009, p.2) Nesta senda, a Segurança Alimentar e Nutricional trata-se da efetividade do DHAA, isto é, sendo consequência deste, englobando o acesso universal à alimentos de qualidades, em quantidade suficiente para cada indivíduo em particular, devendo o fornecimento e a viabilidade ser permanente e sólida, de maneira que não ameace as outras necessidades essenciais ao ser humano, sendo, portanto, interligado aos demais direitos inerentes ao homem, visando de maneira salutar a completude do desenvolvimento humano e coletivo, e como corolário, o alcance à aclamada dignidade da pessoa humana. 3 DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA: ASPECTOS CARACTERIZADORES O direito humano à alimentação adequada (DHAA) encontra-se no rol de elementos inalienáveis e imprescritíveis dos direitos fundamentais, ganhando respaldo em vários documentos internacionais, sobretudo a Declaração dos direitos do Homem (1948), tendo como fito de que a distância da fome é elemento para que os outros direitos fundamentais sejam efetivados. O documento supramencionado dispõe que “todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle” (ONU, 1948). O âmago do direito supramencionado tem como sustentáculo o princípio da dignidade da pessoa humana, sendo anterior ao próprio direito garantido, este cânone supera todas as barreiras políticas para garantir ao homem o gozo de sua liberdade com qualidade e segurança. Com efeito, é rudimento próprio do ser humano, “destacado de qualquer requisito ou condição, não encontrando qualquer obstáculo ou ponto limítrofe em razão da nacionalidade, gênero, etnia, credo ou posição social” (RANGEL, 2015, p.5). Portanto, combater a fome é obrigação do Estado, e este a cumpre por meio do fornecimento, da previsão ou de condições favoráveis para o indivíduo elevar-se a um status de segurança alimentar e nutricional, como forma de efetivação da dignidade do homem. A concepção de segurança alimentar e nutricional, apesar de ser um conceito inovador, possui encorpado significado, no qual, todos sem distinção, devem ter garantidas as condições para adquirir alimentos básicos de qualidade para si e para sua família, de maneira que possuam quantidade suficiente para se manterem sem prejudicar as outras áreas que necessitam de aplicação econômica da família e que também são fundamentais para a concretização da dignidade da pessoa humana, podendo assim o indivíduo desenvolver-se de forma sadia e digna no corpo social. É imprescindível sublinhar que o Estado não deve só proteger o direito à alimentação adequada, mas colocá-la como prioridade nas políticas realizadas pelo mesmo a fim de garantir o desenvolvimento pessoal do cidadão e o crescimento do próprio Ente Estatal. Tal garantia, apesar de ter sido contemplada pela Declaração dos Direitos Humanos (1948), foi ratificada de forma minuciosa e pormenorizada no Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais, Políticos e Culturais (1966) especificamente no art. 11 do dispositivo, nestes termos: “1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a nível de vida adequado para si próprio e sua família,inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento. 2. Os Estados Partes do presente pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, que se façam necessárias para: a) melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização mais eficazes dos recursos naturais; b) Assegurar uma repartição eqüitativa dos recursos alimentícios mundiais em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores quanto dos exportadores de gêneros alimentícios”. (ONU, 1996, s,p) Este instrumento, considerado um dos mais importantes para a realização do direito humano à alimentação adequada, tem como fito garantir que tais conquistas não sejam meramente observadas, mas que os Estados cumpram e apliquem em seu território o que ficou pactuado. O direito à alimentação tem como aspectos vinculantes a quantidade adequada para os níveis sociais e econômicos do Estado; a segurança alimentar e nutricional possível e disponível para todos, tendo sua utilização de forma que as gerações posteriores também desfrutem deste direito;os alimentos nutritivos e suficientes para suprir as necessidades fisiológicas de cada indivíduo para que seu desenvolvimento físico e mental seja saudável levando em consideração as características pessoais de cada um; alimentos em bom estado de conservação e que não sejam alterados ou contaminados; que o cidadão tenha viabilidade para adquirir os alimentos no tange à comercialização e distribuição e a realidade econômica de cada grupo ou coletividade para adquirir os alimentos necessários para sua estadia digna, priorizando aqueles menos favorecidos socialmente. Neste mesmo sentido, Nascimento declara que: “Os Estados precisam cumprir certas obrigações que podem ser classificadas em três níveis, para garantir o direito humano a uma alimentação adequada: respeitar, proteger e realizar, de forma que a obrigação de realizar está imbricada com aquelas de facilitar e de fazer efetivamente (ONU, 1999). Ou seja, ‘respeitar’ o acesso à alimentação adequada; ao ‘proteger’ devem se assegurar de que as empresas ou particulares não impeçam o acesso à alimentação adequada; e, ao ‘realizar’ (facilitar), o Estado Parte deve procurar desenvolver atividades que fortaleçam o aceso e a utilização pela população dos recursos e meios de vida, incluindo a segurança alimentar. Se acontecer de um indivíduo ou grupo ser incapaz de ter acesso, por razões que não lhes dizem respeitos, o Estado tem a obrigação de realizar (fazer efetivo) diretamente esse direito; inclusive, àquelas vítimas de catástrofes naturais ou de outra ordem”. (NASCIMENTO, s.d, s.p) Com efeito, estas concepções não podem sucumbir haja vista a dependência e necessidade do homem em ter qualidade de vida no meio em que se encontra. No Brasil, o direito à alimentação adequada não foi somente introduzido na Constituição Federal de 1988 como foi elevado ao status de direito fundamental através da Emenda Constitucional Nº 64/2010, podendo ser encontrado no caput do art. 6º da Carta Magna, in verbis, “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988). Observar o DHAA na Carta Maior significa que o Estado está obrigado a fornecer, prover e dar condições a todos os seus cidadãos de terem uma subsistência digna, visando o desenvolvimento pessoal do indivíduo e também o social e o fazendo através de políticas públicas que viabilizem o acesso à alimentação adequada, analisando quais instrumentos serão usados, quais as formas de distribuição mais eficazes para diminuir as desigualdades em todos os sentidos no contexto social para que cada indivíduo possua condições de ter sua dignidade alcançada como cidadão haja vista que o direito à alimentação adequada não está relacionada somente com a erradicação da fome, mas também com todos os âmbitos organizacionais do Estado, seja na política, nos planos desenvolvimentistas, na organização da sociedade em sim e as desproporções que emergem do meio social. Neste diapasão, o DHAA possui três aspectos delimitadores indispensáveis para a efetiva aplicação do referido direito, são eles: disponibilidade, acessibilidade e adequação (RANGEL, 2015, p. 11). A disponibilidade diz respeito ao fácil alcance dos alimentos necessários por um indivíduo quando este o requerer, isto é,o alimento adequado precisa estar disponível ao homem de forma que consiga obtê-lo com facilidade, pode ser por meio do próprio plantio, pelos recursos naturais como pesca e caça, além da comercialização dos alimentos. A acessibilidade, por sua vez, refere-se às condições econômicas e físicas do ser para adquirir os alimentos adequados de maneira que não comprometa as demais necessidades do indivíduo e sua família, ou seja, até mesmo aquelas pessoas que vivem em comunidades longínquas ou os idosos e crianças, dentre outros obstáculos que podem dificultar o acesso à alimentação saudável, devem ser contemplados por tal garantia. Por fim, o alimento adequado leva em consideração as condições concernentes ao próprio indivíduo no que tange à sua idade, gênero, seu grau de esforço no dia a dia, a saúde, dentre outras características que exigem certo tipo de alimentação, atendendo então as necessidades alimentares do homem. 4 ALIMENTOS TRANSGÊNICOS E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL Diante de todo o escandido, fez-se observado que a Segurança Alimentar e Nutricional tem um elo muito maior que apenas ao consumo de alimentos adequados pelo consumidor final, mas também ao produtor, ao fornecedor que armazena tais alimentos e os prepara, entre outras peculiaridades, sendo um conceito livre capaz de reproduzir-se a partir do surgimento das necessidades do homem, sempre aspirando a dignidade. Tal informação traz consigo a indagação quanto aos alimentos transgênicos, sendo indubitável, portanto, que se alinhave sobre tal classificação. Nesse ínterim, surge nos anos 50 o movimento denominado “revolução verde”, que aponta como corolário do aumento populacional e, consequentemente, de indivíduos em situações mórbidas de fome. Esse fundava-se na abstração de intensificar de maneira significativa a produtividade dos alimentos, com a finalidade de, através da parceria da biotecnologia e a engenharia genética, melhorar a agricultura mundial, sequencialmente, o acesso mundial e pleno à alimentos de qualidade (CAVALLI, 2001, s.p). Essa idealização se efetivaria através do combate às pragas, a produção de novos organismos vegetais e animais, a diminuição do tempo de produção e distribuição dos alimentos agrícolas, garantindo assim, maior quantidade de alimentos a um quantitativo elevado de cidadãos. Nesse foco, a atuação dos alimentos transgênicos no comércio teve a aprovação das maiores organizações de alimentos do mundo, qual seja a FAO e a OMS, que já declararam-se favoráveis às sementes geneticamente transmudadas haja vista seus efeitos positivos imediatos, frisando, conquanto, que suas consequências futuras devem ser melhor analisadas e pesquisadas, conforme pode ser verificado a seguir: “A Organização Mundial da Saúde (OMS) garante que os alimentos geneticamente modificados que hoje estão no mercado são seguros e não representam um risco a mais que não houvesse em alimentos convencionais para a saúde dos consumidores. A agência de saúde da ONU alerta, porém, que isso não significa que os efeitos a longo prazo sejam desprezíveis e pede que o controle sobre os novos produtos seja reforçado. Ontem, a OMS publicou um estudo sobre o impacto dos alimentos transgênicos. “Não temos dados que sugiram que esse tipo de produto aumente os riscos para a saúde, ainda que isso não signifique que no futuro também sejam inofensivos”, disse o diretor de Segurança Alimentar da OMS, Jorgen Schlundt”. (RENORBIO, 2005, s.p) Com efeito, os alimentos geneticamente mudados trazem benefícios à economia e ao corpo social, haja vista que além de não agredirem o meio ambiente, corroboram para a erradicação do maior problema mundial, qual seja, a fome. Estes rudimentos se sustentam no condão de, como é sabido, a falta de produção agrícola, demandando a insuficiência de alimentos, que acarretara problemas na distribuição e comercialização, elevando os valores e causando desperdícios por consequência do armazenamento indevido. No Brasil, os organismos geneticamente modificados (OGMs) são regulamentados pela Lei 11.105, de março de 2005, estabelecendo as normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam os mesmos, criando também o Conselho Nacional de Biossegurança, demonstrando a preocupação estatal com a valorização das pesquisas sobre os alimentos transgênicos, como se verifica no art. 1º da lei em xeque: “Art. 1o Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente”. (BRASIL, 2005) Com todo o alinhavado, interessante dizer que, apesar de toda o mundo subjetivo idealizado pelos fundamentos ditos acima, a realidade dita outras regras, haja vista o excesso de transformações nos DNA’s dos organismos, a falta do correto manuseio e armazenamento e a aplicação sem a devida pesquisa em todos os seus âmbitos de extensão. Nesse sentido, o CONSEA se manisfetou exalando o seguinte parecer “As experiências relatadas para o Brasil dizem respeito a testes de comprovação de eficiência das variedades neste país, tratando apenas de questões agronômicas e não aquelas de segurança ambiental. Não abordam assim, aspectos relevantes para a biossegurança de linhagens transgênicas” (BRASIL,.s.d., s.p). Tal conclusão solidifica-se na pesquisa a seguir. Como observado, a questão vai muito além do acesso ao alimento, mas está relacionado intrinsecamente com a qualidade genética do alimento, concomitantemente com os impactos ambientais, na saúde, na economia, dentre outros aspectos relevantes para o alcance da segurança alimentar e nutricional no Brasil. Em consonância com esta fundamentação, a Repórter Brasil produziu uma série de artigos que indicam os riscos dos transgênicos utilizados de forma inadequada, salientando ainda o crescimento veloz do cultivo de transgênicos no país. Neste sentido, Thuswohl acrescenta que: “A expansão dos cultivos transgênicos contribuiu decisivamente para que o Brasil se tornasse, desde 2008, o maior consumidor mundial de agrotóxicos, responsável por cerca de 20% do mercado global do setor. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão vinculado ao Ministério da Saúde e responsável pela liberação do uso comercial de agrotóxicos, na safra 2010/2011 o consumo somado de herbicidas, inseticidas e fungicidas, entre outros, atingiu 936 mil toneladas e movimentou 8,5 bilhões de dólares no país. Nos últimos dez anos, revela a Anvisa, o mercado brasileiro de agrotóxicos cresceu 190%, ritmo muito mais acentuado do que o registrado pelo mercado mundial (93%) no mesmo período”. (THUSWOHL. 2013, s.p) Além de estar ser um dos maiores produtores de milho, soja e algodão transgênicos do mundo, o que a longo prazo e de maneira imprópria pode trazer danos irreversíveis aos âmbitos sociais e econômicos do Brasil, haja vista que, apesar da grande variedade de OGM’s, a fiscalização ainda é complexa, o que acarreta a desvalorização dos meios e regras adequadas para o melhor cultivo dos organismos transmudados, os transformando em vilões da segurança alimentar e nutricional. Ressalta-se, nesse sentir, que a segurança alimentar deve prevalecer acima de qualquer pesquisa e economia, por isso o cuidado dos órgãos competentes é imprescindível para que a finalidade dos transgênicos seja atingida com meio eficaz a sua aplicabilidade e paralelismo à construção de um Estado promotor da Segurança Alimentar a todos. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Notório é gizar que a fome é um problema desde os primórdios da sociedade, o homem desde seu nascimento sempre lutou por sua subsistência, conseguindo meios para a mesma. Com a vivência em sociedade, tal concepção tornou-se relativamente mais difícil. Nesse sentido, o direito à alimentação adequada emerge dispondo que a alimentação equilibrada diz respeito ao principio da dignidade da pessoa humana que encontra-se intrínseco a sua própria natureza de ser humano, devendo portanto, o Estado desenvolver políticas que viabilizem o acesso aos alimentos devidamente nutridos, salienta-se ainda que essa garantia é abraçada pela declaração dos direitos do homem, de 1948. A definição de Segurança alimentar e nutricional surge nesse cenário para dar princípios e normas que possibilitem o acesso do individuo aos alimentos equilibrados, considerando de imediato suas características quanto ao desenvolvimento pessoal, isto é, sexo, estatura, peso; e o desenvolvimento em coletivo, que se refere a vida em sociedade, devendo o cidadão estar nutrido para cumprir suas funções de formas satisfatórias. Assim, tem-se a consagração do Direito à Alimentação Adequada pela Constituição Federal de 1988 e, consequentemente, a solidificação da SAN pela Lei 1346/2006, também chamada de LOSAN, dispondo de diretrizes e fundamentos para a concretização do ideário em tema. Sequencialmente, com a aspiração de suprir as necessidades biológicas do indivíduo, o governo desenvolve variados programas para a viabilização da Segurança Alimentar e nutricional em todos os seus aspectos, inclusive no acesso ininterrupto à alimentos adequados. Desta forma, os alimentos transgênicos surgem a fim de deslindar uma das problemáticas que permeiam esta circunstância, qual seja, a fome. Como é sabido, o Brasil é um dos maiores produtores de alimentos transgênicos, o que é benéfico para a economia agrícola e coletiva, conquanto, é indispensável à análise criteriosa dos organismos geneticamente modificados antes do consumo, principalmente na etapa de plantio e armazenamento, seguindo minuciosamente as diretrizes legais para o não comprometimento da saúde dos cidadãos e o alcance da SAN.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-161/alimentos-transgenicos-os-beneficios-e-os-riscos-para-a-seguranca-alimentar-e-nutricional-no-brasil/
Os princípios norteadores da educação alimentar e nutricional
É de reiterada sabença que a Educação Alimentar e Nutricional é instrumento fundamental na busca por uma alimentação adequada e bem-estar, e que este vem desde os anos 2000 sendo aplicado de forma mais ampla em diferentes meios sociais. Toda via apesar de seguir diretrizes próprias dependendo de em qual meio atua, a EAN tem princípios básicos, fundados sob o entendimento que apesar de se moldar a cada situação em si, tem preceitos fundamentais que devem ser rigorosamente seguidos, quais quer que sejam os contextos. Dessa forma, apesar de ser maleável, a idéia fundamental da EAN permanecerá imutável, tornando quaisquer que sejam suas aplicações, de certa forma, uniforme.
Biodireito
1 INTRODUÇÃO Inicialmente, fundamental se faz, conhecer os motivos pelos quais o instituto chamado Educação Alimentar e Nutricional (EAN) foi composto por tais termos, levando consigo a idéia tanto alimentar, quanto nutricional. Isso ocorre para que seja garantida, a atuação das políticas públicas, desde o alimento e alimentação em si, aos processos de produção, abastecimento, transformações e aspectos nutricionais dos mesmos. “A adoção de um conceito de EAN deve considerar aspectos que contemplem desde a evolução histórica e política da EAN no Brasil às múltiplas dimensões da alimentação e do alimento e os diferentes campos de sabores e práticas conformando uma ação que integra o conhecimento científico ao popular” (BRASIL, 2012, p. 23). Neste ponto, se dá um dos grandes desafios, muito além de desenvolver teses e estudos acerca do tema, são necessárias ações concretas que, atinjam a parcela populacional que não tem acesso por si só, a informações, como as tratadas neste artigo. Contudo a teoria se faz fundamental à aqueles que são responsáveis por desenvolver as políticas, que atingirão a tal contingente populacional, ao passo que, políticas públicas, mal traçadas e estudadas, têm o potencial de criar verdadeiras problemáticas sociais, como os exemplos já implantados no Brasil em décadas passadas. Atualmente, apesar de já ter demonstrado avanços, a estruturação da EAN no país ainda se faz insuficiente diante das problemáticas brasileiras. Para que seja possível ter-se uma dimensão do tamanho deste quadro, cabe reconhecer que alguns dados são fundamentais. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), cerca de 1,3 bilhões de toneladas de tudo que é produzido por ano é desperdiçado, ou seja, não chega a finalidade a que se destinaria. Ora, 30% (trinta por cento) da produção mundial se perde na cadeia produtiva e obsta a concretização do direito à alimentação adequada. O desperdício é responsável por cerca de 8% das emissões globais de efeito estufa. Além disso, a produção de alimentos é a principal responsável pelo desmatamento, pela ampliação das fronteiras produtivas e pelo esgotamento de água do planeta. Portanto, mesmo que a produção anual de alimentos tenha alcançado elevados patamares de qualidade e seja mais do que suficiente para atender a população mundial, elevado é o número daqueles que sofrem fome crônica no século XXI. Ora, é ilógico que, com tanto alimento de qualidade sendo produzido no mundo anualmente, o número de pessoas atingido pela fome seja tão elevado. De acordo com os estudos apresentados pela FAO (2016), os maiores índices de fome estão concentrados na Ásia e na África, como se percebe dos dados apresentados: (i) 15,2% da população total da Índia é subnutrida, o que equivale a 194,6 milhões de pessoas; (ii) 16,4% da população  de Bangladesh, o que perfaz o número de 26,3 milhões de pessoas; (iii) 47,7% da população da República Centro Africana, o que perfaz 2,3 milhões de pessoas; (iv) 47,8% da população da Zâmbia, isto é, 7,4 milhões de pessoas; (v) 42,3% da população da Namíbia, ou seja, cerca de 1 milhão de pessoas. Entretanto, a problemática não se encontra limitada apenas aqueles continentes, mas também é verificada no continente americano, sendo possível, ainda, fazer alusão: (i) 53,4% da população do Haiti, ou seja, 5,7 milhões de pessoas; (ii) 16,6% da população da Nicarágua, isto é, 1 milhão de pessoas; (iii) 15,9% da população da Bolívia, o que equivale a 1,8 milhões de pessoas. No cenário nacional, a temática da fome, segundo os dados da FAO (2016), apresentou elevada evolução, reduzindo os índices de subnutridos. Neste sentido, convém mencionar que, no período entre 2000-2002, o Brasil apresentava uma população de 19,9 milhões de pessoas subnutridas (FAO, 2016).  Vale ressaltar que o direito à alimentação adequada substancializa um proeminente direito humano e tem amparo jurídico. Isso significa dizer, que a legislação brasileira protege o direito de alimentação da pessoa humana, e mais que isso, tem o intuito de garanti-lo, sendo isso graças à emenda constitucional 064/2010, onde passou a figurar o mesmo, no artigo 6º como direito social. “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988). O real problema da fome vai além de não se ter o que comer, ou seja, identificar a alimentação como uma simples ração a ser distribuída periodicamente, pois não basta ter o que comer, mas sim é necessário comer com qualidade, em quantidade suficiente e hábitos culturalmente aceitáveis para que se supram as necessidades biológicas humanas, e para que isso ocorra, se faz fundamental uma população preparada alimentarmente par que seja possível alcançar níveis pelo menos aceitáveis. 2 DIREITO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA: BREVES APONTAMENTOS É imprescindível dizer, portanto, que o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) encontra intrínseca relação com o direito à vida, comportando, por vezes, “confusão” ideológica em seu núcleo sensível. Tal fato destaque-se, decorrer da premissa que a alimentação é condição básica para o exercício do direito à vida e, dessa forma, portanto, fica demonstrado incontestavelmente a importância do reconhecimento e da concretização da essencialidade que o DHAA passa a ser revestido. Neste passo, cuida ponderar que o acesso à alimentação é um direito humano centrado em si mesmo, reconhecendo-se, portanto, que o direito à alimentação constitui o próprio direito à vida. Neste aspecto, negar o direito em comento, antes de qualquer coisa, é negar a primeira condição para o exercício pleno da cidadania que é o próprio direito à vida. Prosseguindo na discussão da temática, é imperioso sublinhar que o Direito Humano à Alimentação Adequada inclui o acesso estável e permanente a alimentos saudáveis, seguros e sadios, em quantidade suficiente, culturalmente aceitos, produzidos de uma forma sustentável, e sem prejuízo da implementação de outros direitos para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 2008, p.15). A relação do homem com a alimentação extrapola os fenômenos químicos necessários para a subsistência do individuo, há toda uma cultura ritualística no ato de se alimentar e, sobretudo, há toda uma gama de responsabilidade histórica na ideia de alimentação, já que este é um dos principais motivos pelo qual surgiram as sociedades, e as mesmas evoluíram, ou seja, alimentar-se é preciso, e pode ser feito com mais facilidade em grupo. Primeiramente com a caça, a pesca e a colheita, com os nômades; posteriormente com surgimento da agricultura, nas sociedades mais evoluídas; e, assim por diante, com o surgimento do comércio, por exemplo. Ou seja, a busca pelo alimento, levou o homem a evoluir, o ensinou viver em sociedade. “A fome — eis um problema tão velho quanto a própria vida. Para os homens, tão velho quanto a humanidade. E um desses problemas que põem em jogo a própria sobrevivência da espécie humana, a qual, para garantir sua perenidade, tem que lutar contra as doenças que a assaltam, abrigar-se das intempéries, defender-se dos seus inimigos. Antes de tudo, porém, precisa, dia após dia. encontrar com que subsistir — comer” (CASTRO, 1984, p. 05). Dito isso, é fácil concluir que a alimentação mudou, evoluiu, e com a multiplicação da população mundial, multiplicou-se também a carência por alimentos e, da mesma forma, a necessidade de uma correta distribuição dos mesmos para essa população. O que lamentavelmente inúmeras vezes não ocorre, ferindo assim o DHAA de cada individuo, tanto daquele que passa fome, quando daquele que não passa, já que, a responsabilidade de solidariedade trazida pela terceira dimensão dos direitos fundamentais, impõe que quando um único individuo tem seu DHAA ferido, o DHAA de cada individuo do planeta é ferido da mesma forma. Isto é, enquanto houver no planeta um único indivíduo sofrendo de fome, nenhum ser humano terá seu DHAA concretizado.  Vale ressaltar que a fome em si, é um problema tão grave, que segundo estudos, as diferenças entre os indivíduos que enfrentam a fome e os que não enfrentam, se manifestam fisicamente e posteriormente intelectualmente, o que por si só gera um circulo vicioso, considerando que essa desnutrição seja causada pelo fator financeiro, já que um indivíduo desnutrido tem sua capacidade intelectual diminuída, já que o cérebro não tem fontes energéticas, nutricionais e hormonais para realizar as sinapses necessárias para a conclusão de raciocínios mais complexos. O direito humano à alimentação adequada substancializa o direito de todos os seres humanos vivos, entendendo-se neste contexto também o direito de alimentação do nascituro, já que apesar de não nascido, este tem seus direitos resguardados. No primeiro momento, pode parecer óbvio, já que a alimentação do feto depende no primeiro momento da alimentação da mãe, assim como na fase do aleitamento exclusivo, entretanto cabe ressaltar, que no período de gestação, a gestante em prol do nascituro carece de vitaminas, que supram a alimentação, sendo assim, portanto, tais vitaminas não são essenciais para a vida da gestante, mas são fundamentais para a manutenção da vida do nascituro. Dessa forma, entende-se, portanto, que fica assim resguardado também o direito ao acesso a tais vitaminas. Há uma extensão robusta do direito à alimentação adequada, inclusive, para aqueles que foram concebidos, mas, ainda, não nascidos, a fim de resguardar o acesso à possibilidade de desenvolvimento desde o útero materno. Cabe, no mesmo sentido, destacar os diferentes tipos de fome enfrentados atualmente, a saber: a fome aguda e a fome crônica, bem como quais serão as implicações dessas no DHAA de cada indivíduo. Primeiramente, a fome aguda, que é a fome momentânea, ocorre pela privação de alimentação pelo um determinado espaço de tempo; De outro lado, tem-se a fome aguda, que é, realmente, a mais relevante para esse estudo, já que essa é a que causa ao faminto a permanente falta de alimento suficiente para suprir suas necessidades energéticas e nutricionais, é a fome que causa a desnutrição, a perda ou, então, a falta do ganho de peso e que torna os indivíduos, na grande maioria das vezes, menor, em quesito de estatura e de desenvolvimento de suas capacidades biológicas. Neste ponto, vale ressaltar que essas características ficam muito claras e contrastadas na fase da adolescência, fase que comumente o indivíduo daria o chamado “estirão”, ou seja, uma fase em que o indivíduo cresce e tem grandes transformações corporais rapidamente. Para a consecução do DHAA, é importante explicitar que o alimento deve reunir uma tríade de aspectos característicos, a saber: disponibilidade, acessibilidade e adequação. No que concerne à disponibilidade do alimento, cuida destacar que, quando requisitado por uma parte, a alimentação deve ser obtida dos recursos naturais, ou seja, mediante a produção de alimentos, o cultivo da terra e pecuária, ou por outra forma de obter alimentos, a exemplo da pesca, caça ou coleta. Além disso, o alimento deve estar disponível para comercialização em mercados e lojas. A acessibilidade alimentar, por seu turno, traduz-se na possibilidade de obtenção por meio do acesso econômico e físico aos alimentos. “La accesibilidad económica significa que los alimentos deben estar al alcance de las personas desde elpunto de vista económico” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 03). Em relação à acessibilidade, as pessoas devem ser capazes de adquirir o alimento para estruturar uma dieta adequada, sem que haja comprometimento das demais necessidades básicas. A acessibilidade física materializa-se pela imperiosidade dos alimentos serem acessíveis a todos, incluindo indivíduos fisicamente vulneráveis, como crianças, enfermos, deficientes e pessoas idosas. A acessibilidade do alimento estabelece que deve ser assegurado a pessoas que estão em ares remotas e vítimas de conflitos armados ou desastres naturais, tal como a população encarcerada. Renato Sérgio Maluf, ao apresentar sua conceituação sobre segurança alimentar (SA), faz menção ao fato de que se deve considerar aquela como “condições de acesso suficiente, regular e a baixo custo a alimentos básicos de qualidade. Mais que um conjunto de políticas compensatórias, trata-se de um objetivo estratégico […] voltado a reduzir o peso dos gastos com alimentação” (1999, p. 61), em sede de despesas familiares. Por derradeiro, o alimento adequado pressupõe que a oferta de alimentos deve atender às necessidades alimentares, considerando a idade do indivíduo, suas condições de vida, saúde, ocupação, gênero etc. “Los alimentos deben ser seguros para el consumo humano y estar libres de sustancias nocivas, como los contaminantes de losprocesosindustriales o agrícolas, incluídos los residuos de losplaguicidas, las hormonas o las drogas veterinarias” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 04). Um alimento adequado, ainda, deve ser culturalmente aceitável pela população que o consumirá, inserido em um contexto de formação do indivíduo, não contrariando os aspectos inerentes à formação daquela. 3 PRIMEIROS COMENTÁRIOS À EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL (EAN) Em um primeiro momento, é necessário explicitar que a educação alimentar e nutricional (EAN) materializa um campo de conhecimento e de e prática contínua, permanente, transdisciplinar, intersetorial e multiprofissional que objetiva a promoção da prática autônoma e voluntária de hábitos alimentares saudáveis, inserido no contexto do DHAA e na garantia da SAN. Partindo, portanto, de tal concepção, Santos (2005) verificou a crescente importância dispensada à EAN nos documentos que elaboram as políticas públicas no campo da alimentação e nutrição no Brasil, notadamente na PNSAN, no SISAN, da proposta Fome Zero, tal como a Estratégia Global para a Promoção da Alimentação Saudável, Atividade Física e Saúde. “Em seguida, o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional da Promoção da Saúde e o Programa de Saúde Escolar, em 2006 e 2008, respectivamente” (SANTOS, 2012, p. 454). Trata-se, portanto, de instrumento relevante no fortalecimento de prática autônoma e voluntária de hábitos alimentares saudáveis, visando à promoção do DHAA e da SAN. Contudo, apesar do cenário nacional atualmente se fazer crescente, insta acentuar que, nem sempre, esse foi a realidade brasileira, e parte dos problemas que a EAN atual busca solucionar, foram conseqüências, de antigas políticas, firmadas sobre conceitos errôneos. Alguns momentos históricos da EAN valem ser destacados: (i) década de 1930, em meio a formação do parque industrial e com a organização de uma classe trabalhadora, são instituídas as leis trabalhistas, definida a cesta básica de referência e os estudos de Josué de Castro revelam a verdadeira realidade da fome brasileira, diante de tal contexto a abordagem da EAN era voltada aos trabalhadores e suas famílias, de forma bastante preconceituosa, pretendendo ensiná-los a se alimentar de forma totalmente incondizente com os costumes e possibilidade desses, além de usar parâmetros unicamente biológicos; (ii) décadas de 1970 e 1980, em meio a explosão do cultivo de soja, iniciativas visavam incentivar o cultivo deste produto e seus derivados, como forma de escoar o excedente de produção, neste aspecto é possível notar, de que forma agressiva o interesse econômico pode influir diretamente na EAN, diante de tais políticas completamente destorcidas e limitadas aplicadas até então, ocorre a desqualificação da EAN quanto a sua legitimidade e seu papel; (iii) década de 1990, diante da pouca valorização da EAN e dos índices apontando os hábitos alimentares como fator determinante para o surgimento em todo mundo de doenças crônicas, a mesma passou a ser uma medida necessária para a formação e proteção de hábitos saudáveis, neste mesmo período a EAN volta a ser tema de discussões em congressos da área, (iv) já nos anos 2000, com a implantação do Programa Fome Zero, na proposta original, o programa contemplava a EAN sob duas frentes, a primeira visando campanhas publicitárias e palestras a respeito do assunto, havendo a demanda para que tais temas fosse incluídos no currículo escolar obrigatório do primeiro grau, a segunda propunha a criação de uma Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos Industrializados, similar a existente para lactantes, o programa também frisava a importância do controle da publicidade e da correta rotulagem de alimentos industrializados. “A partir de 2003, observa-se um progressivo aumento de ações de EAN nas iniciativas públicas, no âmbito dos restaurantes populares, dos bancos de alimentos, das equipes de atenção básica de saúde, e na requalificação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e do Programa de Alimentação de Trabalhador (PAT)” (BRASIL, 2012, p. 19). Faz-se fundamental destacar a atual preocupação e atenção dada a temática da educação e alimentação saudável no país, tanto fato é, que, nota-se uma expressiva mobilização a esse respeito, com grande numero de eventos, discussões, congressos, seminários e até pressão politica para que normas como a Regra de Rotulagem de Produtos com Lactose sejam editadas e passem a vigorar e a serem supervisionadas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). 4 OS PRINCÍPIOS NORTEADORES DA EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL A EAN pode estabelecer-se em vários meios e deve estar em consonância com aquele o qual está inserida, isto é, deve obedecer aos preceitos e costumes e se moldar a esse determinado âmbito. Desta forma, no contexto da Segurança Alimentar e Nutricional, deverá observar os princípios da SISAN: “A sociedade civil organizada, que atua no campo da Segurança Alimentar e Nutricional, propôs a criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN, por reconhecer que a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada – DHAA requer ações públicas que devem ser participativas, articuladas e intersetoriais […] O SISAN, portanto, surge de demanda da sociedade civil é instituído por meio da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, Lei nº 11.346, em 2006 com o objetivo primordial de garantir, através de ações intersetoriais, o DHAA, para todas as pessoas que se encontram no Brasil, através da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – PNSAN (art. 1ª e 3ª da LOSAN), cujo instrumento é o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – PLANSAN” (CONSEA, 2013). Enquanto inserida no âmbito da Saúde deve ser consoante com os temos do SUS: “Em 1988, por ocasião da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, foi instituído no país o Sistema Único de Saúde (SUS), que passou a oferecer a todo cidadão brasileiro acesso integral, universal e gratuito a serviços de saúde. Considerado um dos maiores e melhores sistemas de saúde públicos do mundo, o SUS beneficia cerca de 180 milhões de brasileiros e realiza por ano cerca de 2,8 bilhões de atendimentos, desde procedimentos ambulatoriais simples a atendimentos de alta complexidade, como transplantes de órgãos” (FIOCRUZ, s.d., s.p). Na Educação deve estar em conformidade com os preceitos PNAE: “O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), implantado em 1955, contribui para o crescimento, o desenvolvimento, a aprendizagem, o rendimento escolar dos estudantes e a formação de hábitos alimentares saudáveis, por meio da oferta da alimentação escolar e de ações de educação alimentar e nutricional. São atendidos pelo Programa os alunos de toda a educação básica (educação infantil, ensino fundamental, ensino médio e educação de jovens e adultos) matriculados em escolas públicas, filantrópicas e em entidades comunitárias (conveniadas com o poder público),  por meio da transferência de recursos financeiros.  O Pnae tem caráter suplementar, como prevê o artigo 208, incisos IV e VII, da Constituição Federal, quando determina que o dever do Estado (ou seja, das três esferas governamentais: União, estados e municípios) com a educação é efetivado mediante a garantia de “educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até cinco anos de idade” (inciso IV) e “atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didáticoescolar, transporte, alimentação e assistência à saúde” (inciso VII)” (BRASIL, s.d.,s.p.). Na rede sócio-assistencial em harmonia com a SUAS, e assim progressivamente. Ademais, a esses princípios norteadores de cada instituto a que se solidifica, a EAN tem princípios próprios que devem ser somados, quais sejam: (i) sustentabilidade social, ambiental e econômica; (ii) abordagem do sistema alimentar na sua integralidade; (iii) valorização da cultura alimentar local e respeito à diversidade de opiniões e perspectivas, considerando a legitimidade dos saberes de diferentes naturezas; (iv) a comida e o alimento como referências; valorização da culinária enquanto prática emancipatória; (v) a promoção do autocuidado e da autonomia; (vi) a educação enquanto processo permanente e gerador de autonomia e participação ativa e informada dos sujeitos; (vii) a diversidade nos cenários de prática; (viii) intersetorialidade; (ix) o planejamento, avaliação e monitoramento das ações; No que concerne ao primeiro princípio, é irrefutável problemática é a coadunada a Sustentabilidade, seja ela, social, ambiental ou econômica, já que a mesma se faz dificultosa em todas essas esferas, principalmente, quando se trata das ações de produção, abastecimentos, comercialização, distribuição e consumo de alimentos. Vale ressaltar que este princípio, não limita a ideia de sustentabilidade a temática ambiental, mas abarca a ideia de sustentabilidade nos meios sociais, relacionais humanos e econômicos envolvidos em todas as etapas do sistema alimentar. “Assim, a EAN quando promove a alimentação saudável refere-se à satisfação das necessidades alimentares dos indivíduos e populações, no curto e no longo prazos, que não implique o sacrifício dos recursos naturais renováveis e não renováveis e que envolva relações econômicas e sociais estabelecidas a partir dos parâmetros da ética, da justiça, da equidade e da soberania” (BRASIL, 2012, p. 24). Neste prisma, no que atina ao segundo princípio, é fundamental, que a abordagem do sistema alimentar se dê de forma plena, isto é, que compreenda desde os processos iniciais da produção, como o acesso a terra, a água, aos meios de produção, processamento e distribuição, aos processos finais como comercialização, distribuição e consumo, incluindo as praticas alimentares individuais e coletivas até a geração e a destinação de resíduos. Contribuindo ainda para uma melhor escolha de maneira consciente e sensata e que concomitantemente interfira nas etapas anteriores do sistema alimentar. Sendo o Brasil um país de vasto território, considerado inclusive como país de dimensões continentais, o quarto princípio vinculado à EAN vai reconhecer uma variedade de cultura alimentar muito particular. Isso se dá tanto pela diversidade de alimentos que cada região apresenta, quanto pela bagagem cultural que cada povo imigrante trouxe consigo, levando-se em consideração ainda a grande miscigenação existente no país. Por conseguinte, a EAN deve contemplar uma idéia de valorização do que cada cultura traz consigo de melhor, respeitando a cultura e o paladar de cada região e, além disso, a difundir de forma que as outras regiões passem a conhecer outras culturas, outros paladares, preparações, combinações e costumes alimentares. O princípio em comento se debruça, fundamentalmente, acerca da diversidade alimentar, e os meios através dos quais se deve, diante de uma sociedade demasiadamente globalizada, preservar as praticas e saberes tradicionais de um determinado povo. Preconiza o quarto princípio que os seres humanos, diferentemente dos demais seres vivos não se alimentam apenas com o intuito de suprir suas necessidades nutricionais, mas se alimentam por prazer. Sendo assim, a alimentação humana, apresenta diversos aspectos que exprimem a cultura de um determinado povo, os alimentos de determinada região, e as preferencias destes, já que os alimentos passam por processos de escolha e preparação demasiadamente particulares. “Quando a EAN aborda estas múltiplas dimensões ela se aproxima da vida real das pessoas e permite o estabelecimento de vínculos, entre o processo pedagógico e as diferentes realidades e necessidades locais e familiares“ (BRASIL, 2012, p. 26). Quanto às práticas culinárias, vale ressaltar a importância de técnicas e processos que transformam o alimento, torna possível novas combinações e sabores, além de criar no indivíduo um espírito de independência, já que o mesmo se faz autossuficiente quanto à possibilidade de preparo de seu próprio alimento. No que atina ao quinto princípio, cuida analisar que o autocuidado é intimamente ligado ao viver saudável já que é a materialização de condutas que visam, o bem estar de si mesmo, ou do ambiente em que se está inserido. Tais ações se dão de maneira voluntária e intencional, pois exigem tomadas de decisões e têm o condão de contribuir de forma objetiva na integridade estrutural, no funcionamento e desenvolvimento humano. Imperioso lembrar que tais decisões vão sofrer forte influência de fatores individuais, ambientais, sócio-culturais, de acesso a serviços entre outros, evidenciando-se aí a importância do EAN para que na parte que lhe caiba cumpra com os idéias traçados, ajudando tal individuo na tomada de decisão ou até mesmo em sua conclusão. “O exercício deste princípio pode favorecer a adesão das pessoas às mudanças necessárias ao seu modo de vida. O autocuidado e o processo de mudança de comportamento centrado na pessoa, na sua disponibilidade e sua necessidade são um dos principais caminhos para se garantir o envolvimento do indivíduo nas ações de EAN. A promoção do autocuidado tem como foco principal apoiar as pessoas para que se tornem agentes produtores sociais de sua saúde, ou seja, para que as pessoas se empoderem em relação à sua saúde. Os principais objetivos do apoio ao autocuidado são gerar conhecimento e habilidades às pessoas para que conheçam e identifique seu contexto de vida; e para que adotem, mudem e mantenham comportamentos que contribuam para a sua saúde” (BRASIL, 2012, p. 27). Estabelece o sexto princípio que as abordagens educativas da EAN devem ter condão de valorizar as práticas, costumes, saberes e matérias locas, de maneira que essas possam ser incorporadas verdadeiramente no cotidiano dos indivíduos e que esses passem a ser também transmissores dessa educação, integrando quase utopicamente a teoria e a prática. O caráter permanente buscado pela EAN é o aprendizado e conscientização do indivíduo de forma tamanha que tais práticas sejam incorporadas perpetuamente daquele ponto em diante. A participação ativa do indivíduo nesse processo causa uma transformação de consciência neste, ampliando seus graus de autonomia para escolhas e práticas alimentares, contribuindo para o aumento da capacidade de interpretação e análise do sujeito, sobre si e sobre o mundo, e de fazer escolhas, governar, transforma e produzir a própria vida. Neste diapasão vale ressaltar que é fundamental a formação de senso critico no indivíduo, para que esse não possa ser manipulado, como no exemplo da agressividade da publicidade de indústrias alimentícias. A diversidade nos cenários de prática, enquanto o sétimo princípio, propõe que as estratégias e os conteúdos de EAN devem ser desenvolvidos de maneira coordenada e utilizar abordagens que se complementem de forma harmônica e sistêmica, contudo, essa máxima não impossibilita que os ensinamentos da EAN se moldem ao meio em que está inserida, já que a mesma tem o merecido espaço nos mais diferentes meios sociais. A intersetorialidade, na condição de princípio, reclama o envolvimento do trabalho de múltiplos setores governamentais a fim de se garantir a alimentação saudável e adequada, realizados de maneira conjunta. As ações intersetoriais são valorativas para essa busca, ao passo que a troca de informação, dados e conhecimentos entre cada órgão é grande, além de, buscar mais entendimentos, posicionamentos, visões ou aspectos de um mesmo assunto ou matéria. “Neste processo cada setor poderá ampliar sua capacidade de analisar e de transformar seu modo de operar, a partir do convívio com a perspectiva dos outros setores, abrindo caminho para que os esforços de todos sejam mais efetivos e eficazes” (BRASIL, 2012, p. 29). Por sua vez, o nono princípio estabelece que o planejamento do processo é imprescindível para a mantença dos ensinamentos do EAN. Contudo, para a real efetividade dessa etapa, é fundamental o real envolvimento e interesse tanto dos profissionais quando do indivíduo ou grupo ao qual determinada lição é passada. Fase fundamental também se faz o diagnóstico local, já que através destes é que a ações poderão se empenhadas de forma específica e personalizada, com claros objetivos, traçados sob as reais necessidades de um indivíduo, grupo ou comunidade, de maneira que as tomadas de decisões sejam integradas entre profissionais e educandos. 5 CONCLUSÃO Os princípios supramencionados traçam diretrizes para a EAN de forma que a educação, conhecimentos e práticas sejam passadas de maneira uniforme, isto é, seguindo uma só idéia central. Ademais tais princípios trazem consigo as reflexões a respeito dos fatores, quantidades, qualidade, cultura, autonomia, possibilidade financeira, materiais regionais, sustentabilidade, entre tantas outras, fundamentais para promover uma alimentação adequada e saudável como direito humano básico, com acesso permanente e regular ao alimento de forma socialmente justa de acordo com o curso de vida e das necessidades especiais de cada indivíduo e ainda com sua determinada faixa etária. O objetivo principal é de colaborar para a criação de formas de mudar hábitos alimentares e torná-los mais saudáveis, já que a problemática se tornou questão de saúde pública. Contudo tende-se em mente que apesar das mudanças necessárias, a origem de cada região, a cultura e costumes devem ser respeitadas, entre outros fatores, daí a importância dos princípios que se tornam parâmetros para as ações.
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As diretivas antecipadas de vontade na jurisprudência brasileira
O trabalho desenvolve um breve estudo sobre decisões judiciais envolvendo as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV´s), com a finalidade de verificar as demandas judiciais em trâmite e averiguar o posicionamento dos tribunais brasileiros. O estudo se justifica pela importância do instituto, especialmente por envolver a vida humana e tem, como objetivo geral verificar, nos tribunais estaduais, federais e superiores brasileiros, a existência de decisões judiciais que contemplem as Diretivas Antecipadas de Vontade. Como objetivos específicos, conceitua-se as Diretivas Antecipadas de Vontade, define-se ortotanásia e realiza-se um levantamento das decisões jurisprudenciais existentes no ordenamento jurídico nacional. A pesquisa utiliza os sites institucionais dos Tribunais Estaduais, Tribunais Federais e Tribunais Superiores, na busca de decisões atinentes às Diretivas Antecipadas de Vontade, com a utilização do método analítico. As Diretivas Antecipadas de Vontade podem ser caracterizadas como os desejos manifestados pelo paciente acerca de tratamentos a que quer, ou não, ser submetido, especialmente quando incapacitado para se expressar, além de esclarecer questões limítrofes, inclusive quanto à hipótese de manifestação pelo representante designado do paciente, enquanto que a ortotanásia pode ser entendida como a morte no tempo certo, no momento adequado. A pesquisa abrangeu 26 (vinte e seis) Tribunais Estaduais do Brasil, bem como aquele do Distrito Federal, totalizando 27 (vinte e sete) Tribunais Estaduais, os 5 (cinco) Tribunais Regionais Federais, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, implicando na pesquisa em 34 (trinta e quatro) Tribunais brasileiros. Além de duas decisões da Justiça Federal de Goiás, foram encontrados somente outras três decisões, todas provenientes do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e em todas as medidas judiciais a instituição de saúde promoveu a demanda judicial, pois tinha em seu leito paciente que, cientificado de sua situação, decidiu instantaneamente em recusar-se a submeter-se a tratamento e/ou procedimento. A busca, pela via judicial, da chancela do Estado, se deveu à necessidade de se precaver ante eventual responsabilização criminal, administrativa e, por consequência, indenizatória.
Biodireito
I – Introdução Pretende-se, com a elaboração deste trabalho, desenvolver um breve estudo acerca de decisões judiciais envolvendo as denominadas Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV´s), uma vez que a legislação brasileira não contempla com uma norma específica o assunto, por conta da existência de uma única Resolução do Conselho Federal de Medicina, de n. 1995[1], de 9 de agosto de 2012. Para tanto, uma pesquisa jurisprudencial é necessária, com a finalidade de verificar as demandas judiciais em trâmite e averiguar o posicionamento dos tribunais brasileiros sobre o assunto. A compreensão de como os tribunais estão interpretando o instituto das Diretivas Antecipadas de Vontade é fundamental e se acentua no momento em que a sociedade brasileira passa por inúmeras transformações, onde uma sociedade tradicional está evoluindo para uma sociedade contemporânea, globalizada e conectada à tecnologia. Desta forma, o Direito deve ser adequado à realidade e dar guarida às necessidades de cada pessoa, observado o ordenamento jurídico vigente. Observa-se, por conta do instituto inovador, uma grande preocupação dos profissionais médicos quando se deparam com paciente acometido por uma moléstia irreversível e o próprio paciente ou seus familiares manifestam-se em acolher e observar a manifestação de última vontade (do paciente) em ter uma morte digna, sem postergar seu sofrimento. Entretanto, esses profissionais da saúde não possuem segurança jurídica e ficam à mercê de uma eventual resposta jurisdicional, a qual se pretende verificar e compreender. O estudo se justifica, então, pela importância do instituto, especialmente por envolver a vida humana e tem, como objetivo geral verificar, nos tribunais estaduais, federais e superiores brasileiros, a existência de decisões judiciais que contemplem as Diretivas Antecipadas de Vontade. Como objetivos específicos, é imprescindível, para melhor entendimento, conceituar as Diretivas Antecipadas de Vontade, conceituar, também, ortotanásia, posto que institutos diretamente ligados, além de realizar um levantamento efetivo das decisões jurisprudenciais existentes no ordenamento jurídico nacional, utilizando verbetes específicos, com ferramentas próprias de busca, após a edição da já mencionada Resolução do Conselho Federal de Medicina n. 1995, de 9 de agosto de 2012. A pesquisa utiliza os sites institucionais dos Tribunais Estaduais, Tribunais Federais e Tribunais Superiores, notadamente Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, na busca de decisões atinentes às Diretivas Antecipadas de Vontade, a fim de verificar se há decisões nas quais a matéria foi objeto de análise, bem como o sentido da medida judicial no que tange à validação, eficácia e aplicação do instituto. O método utilizado, a partir da busca e tabulação (se necessário) de decisões jurisprudenciais do país inteiro, é o método analítico. II – Ortotanásia, Diretivas Antecipadas de Vontade, Testamento Vital e Mandato Duradouro Discutir o fim da vida é um tema evitado por muitas pessoas, já que considerado um verdadeiro tabu. Todavia, mesmo em se tratando de fato certo e incontroverso, é preciso ter em mente a imprevisibilidade do fim da vida e qual será a causa mortis, se natural e instantânea ou violenta ou, ainda, se decorrente de doença grave e incurável. A saúde é um estado completo de bem estar físico, mental e social, e não consiste somente na ausência de doença ou enfermidade[2]. O paciente acometido por doença grave incurável, por si só, mesmo que esteja inicialmente sem dores ou sofrendo, já se encontra em descompasso pelo mal estar mental e social a que está submetido. Não obstante na continuidade a doença acarretar inúmeras transformações, causando abundante sofrimento, incluindo, por óbvio, a dor física, além de outros aspectos, sociais, psicológicos e espirituais, o paciente tem, ao seu dispor, a denominada ortotanásia, ou seja, a “morte a seu tempo certo”, quando poderá renunciar a submeter-se a tratamentos e procedimentos fúteis e desnecessários, que somente prolongarão sua vida e submeter-se (ou não) apenas aos métodos paliativos de tratamento, que possibilitem minimizar as dores e o sofrimento. Nessa reflexão se filiava Hipócrates[3], quando pregava que o médico deve curar quando possível, aliviar quando necessário e consolar sempre, em outras palavras, quando não há mais nada a fazer sob o aspecto médico. Forçoso é reconhecer que o tratamento dito paliativo não altera o quadro clínico da pessoa enferma, sendo utilizado somente para manutenção do paciente. Como exemplo pode-se utilizar a hemodiálise, para tratamento ordinário de pacientes com insuficiência renal, mas que, nos casos de pacientes debilitados, com idade avançada e com insuficiência renal definitiva, como o Papa João Paulo II e o ex-governador de São Paulo Mário Covas, já falecidos, foi utilizada somente como paliativo, tendo em vista as condições dos pacientes. A ortotanásia é um procedimento previsto na condição de procedimento ético-médico, por conta da Resolução n. 1805[4], do Conselho Federal de Medicina, de 9 de novembro de 2006. A própria Igreja Católica, que é extremamente ortodoxa no que concerne ao direito à vida, reconheceu como legítima a ortotanásia com a promulgação da Encíclica Evangelium Vitae[5], ainda em 1995, pelo então Papa João Paulo ll, tendo rechaçado apenas a eutanásia e a distanásia. A ortotanásia, sendo fato penal atípico, uma vez que lhe falta elemento subjetivo para preencher o conceito tripartido do Direito Penal, considerando a previsão na Constituição Federal quanto aos princípios da liberdade e da dignidade da pessoa humana, apresenta-se como a finalidade do profissional médico, que não é (ou não deveria ser) o de violação do bem jurídico “vida”, mas de reduzir o sofrimento do paciente que não possui mais quaisquer chances de cura para sua doença e seu sofrimento. O tema é complexo e, por óbvio, implica em inquietações nas entidades e nos profissionais da saúde, uma vez que a ortotanásia está situada em uma linha muito tênue de (i)legalidade, podendo gerar um processo criminal, outro processo, administrativo, perante o órgão de classe e, ainda, a responsabilização civil, com pretensões patrimoniais indenizatórias. Desta forma, com a finalidade de uniformizar as condutas éticas e balizar harmonicamente as ações, o Conselho Federal de Medicina, no art. 1º[6], da Resolução n. 1805, de 9 de novembro de 2006, permitiu que o médico intervisse no procedimento que prolongasse a vida do doente terminal, respeitando a vontade do paciente ou de seu representante legal. A Resolução n. 1805 provocou a propositura de uma Ação Civil Pública, em 9 de maio de 2007, pelo Ministério Público Federal, contra o Conselho Federal de Medicina, distribuída perante a Décima Quarta Vara Federal do Distrito Federal – autos n. 2007.34.00.014809-3. A ACP tramitou durante pouco mais de 3 (três) anos, pois alegava o MPF que se tratava de matéria legislativa, da qual o Conselho Federal de Medicina não detinha competência para legislar, além de não poder regulamentar, como ética, uma conduta tipificada como crime. Ao final, o Magistrado, em sentença de 1º de dezembro de 2010[7], julgou improcedente a Ação Civil Pública, da qual não houve recurso, ao argumento de que a conduta balizada pelo Conselho Federal de Medicina não se enquadraria como crime. Logo, a ortotanásia seria conduta atípica e, portanto, não violaria o ordenamento jurídico brasileiro. Importante verificar, na própria sentença mencionada, na qual o Magistrado Federal prolator, Roberto Luis Luchi Demo, fez uso da manifestação da Procuradora da República Luciana Loureiro Oliveira, as interessantes e pontuais diferenciações entre ortotanásia (morte no tempo certo, no momento adequado), eutanásia (morte provocada por terceiro, de paciente terminal, por compaixão), distanásia (prolongamento artificial do estado de degenerescência) e mistanásia (eutanásia social, por conta da absoluta falta de infraestrutura adequada na saúde pública). Após o trâmite regular da ACP, foi reconhecida a validade da Resolução n. 1805, do Conselho Federal de Medicina e, ainda em 2006, o Conselho Federal de Medicina instituiu uma Câmara Técnica de Teminalidade da Vida e Cuidados Paliativos, reunindo médicos e juristas, com o objetivo de revisar o Código de Ética Médica, que vigorava a mais de 20 anos. Com a Resolução n. 1931[8], de 24 de setembro de 2009, foi editado o Novo Código de Ética Médica, trazendo à tona o respeito à autonomia da vontade do paciente como uma de suas premissas fundamentais, especialmente em seu art. 24[9], quando deixa claro que o direito de decisão livre é do paciente, sendo vedado ao profissional médico não garantir esse direito. O código de ética médica explica que a autonomia da vontade do paciente deve ser respeitada, vedando ao médico o desrespeito às prescrições ou tratamento de outro médico, exceto se com manifesto benefício ao paciente. O novo código se pauta na possibilidade de permissão da ortotanásia, ponderando seu respeito para com a dignidade da pessoa humana. A Constituição Federal de 1988, intitulada Constituição Cidadã, também evidencia, como fundamentos do Estado Democrático de Direito, dentre outros, em seu art. 1º[10], III, a dignidade da pessoa humana como princípio constitucional, o que é corroborado pelo art. 5º[11], caput, II e III, quando enaltece o direito à vida, à liberdade, à autonomia da vontade e proíbe tratamento desumano ou degradante. Além das disposições constitucionais, o Código Civil de 2002 auxilia no estudo, especialmente em seus arts. 11[12] e 15[13], haja vista que referidos dispositivos proíbem a submissão de pessoa a tratamento ou intervenção médica em havendo risco de vida e que esse direito, ainda, se constitui como irrenunciável. Embora não exista no Brasil uma lei que regulamente as Diretivas Antecipadas de Vontade, é possível afirmar que, na prática, elas efetivamente existem, mesmo que de forma tímida, pois estão em consonância com a norma Constitucional, posto que se trata de negócio jurídico unilateral, personalíssimo, revogável, gratuito e informal. A única norma vigente no ordenamento jurídico brasileiro é a Resolução n. 1995, de 9 de agosto de 2012, que em seu arts. 1º[14] e 2º[15] define as diretivas antecipadas de vontade como os desejos manifestados pelo paciente acerca de tratamentos a que quer, ou não, ser submetido, especialmente quando incapacitado para se expressar, além de esclarecer questões limítrofes, inclusive quanto à hipótese de manifestação pelo representante designado do paciente. Há teórica vinculação do médico à manifestação de vontade do paciente, uma vez que exaure possíveis e eventuais demandas judiciais, tendo em vista o amparo legitimado pelo paciente, no exercício da sua autonomia da vontade. Diante dessa definição, tem-se que se o médico suspender os procedimentos sem a devida manifestação de vontade do paciente, estará, em tese, praticando o crime de homicídio, pois a figura que desqualifica a tipicidade é a manifestação da autonomia da vontade do paciente. Como a pesquisa abrange as Diretivas Antecipadas de Vontade, é importante esclarecer sua terminologia, haja vista a existência do testamento vital e também do mandato duradouro, institutos estreitamente ligados. O testamento vital[16] diverge um pouco das Diretivas Antecipadas de Vontade, pois seus objetivos, apesar de aparentemente similares, possuem significados diversos. Conforme Elcio Luiz Bonamigo et al (2013, p. 89), especificamente sob o palium da legislação brasileira e de acordo com a legislação portuguesa, o termo mais adequado seria Diretivas Antecipadas de Vontade, considerando que o testamento vital diz respeito a procedimentos e tratamentos que o paciente deseja ou não receber ou ser submetido, em havendo incapacidade de comunicação do paciente. As diretivas antecipadas de vontade possuem sentido mais amplo, haja vista que, além de incluir o testamento vital, permite ao indivíduo dispor ainda sobre outros desejos: doação ou não de órgãos e tecidos, destinação do próprio corpo e até mesmo designando terceira pessoa, ou seja, um representante designado para tomar as medidas necessárias para implementar sua vontade (do paciente) quando incapaz de decidir ou de se comunicar, hipótese na qual se constitui o mandato duradouro[17]. Os Estados Unidos da América, pioneiros na matéria, iniciaram a utilização do testamento vital a pouco mais de 50 anos e, ainda conforme Elcio Luiz Bonamigo et al (2013, p. 84), sua expansão para a América Latina e Europa ocorreu ainda no final do século passado. Também é importante esclarecer a inexistência de relação do denominado testamento vital para com o testamento civil. O Código Civil, em seu art. 1857[18], especialmente o § 2°, trata de sua característica mais marcante: a mortis causa, haja vista que o testamento produzirá efeitos somente após a morte do testador. Logo, antes o testamento civil não gera efeitos e também não vincula o testador ao negócio, a partir do que dispõe o art. 1858[19], também do Código Civil. No testamento vital, incluído nas diretivas antecipadas de vontade, via de regra, estão previstas disposições referentes a atos anteriores à morte, daí a sensível diferença para com o testamento civil. As Diretivas Antecipadas de Vontade, então, se referem ao gênero do qual derivam as espécies testamento vital e mandato duradouro. Perceba-se que não se trata de abreviação da vida, mas sim a morte no seu tempo natural, sem prolongamento que se sabe, no caso concreto, ineficaz. Quanto ao procedimento de expressão da vontade, para assegurar segurança jurídica ao declarante, a sugestão é que o documento seja lavrado por escritura pública, a fim de evitar o registro de um documento que possa, eventualmente, ser anulado por meio de ação judicial, mas nada impede que as diretivas antecipadas de vontade estejam inseridas em documento privado, mas de conhecimento dos familiares e, ainda, podem ocorrer em condições especiais, sob a forma verbal, informadas diretamente ao médico, que deverá inclui-las no prontuário médico do paciente. Ainda, tem-se que estes instrumentos, personalíssimos, atuam para atribuir natureza jurídica aos direitos de personalidade, tendo em vista que o direito subjetivo foi concebido dentro de uma ótica estritamente patrimonialista. Adverte-se que dentro de uma ótica patrimonial é possível reparar uma situação que não ocorre quando se está diante de um bem supremo como a própria existência. Desta forma, não há que se questionar a autonomia do paciente, uma vez que o ordenamento jurídico dispõe que o cidadão goza das prerrogativas constitucionais impostas. Portanto, a previsão do art. 5º, caput, da Constituição Federal, se constitui em direito e não em obrigação, tanto é que o legislador não capitulou como crime o suicídio, apenas o auxílio ao suicídio, o que ratifica a tese da autonomia da vontade, que deve se sobressair no caso concreto, se for esse o desejo do paciente, em detrimento do dever de viver, hipótese do já referido art. 5º, II.  Para Ana Carolina Brochado Teixeira (2013, pg. 544), “quando a Constituição previu o catálogo aberto de direitos fundamentais, para que a pessoa encontre a melhor forma de se realizar, pode-se entender como implícita a liberdade de dispor do próprio corpo.” E prossegue, sintetizando que o se o corpo humano se constitui em “espaço de autonomia, a liberdade de dispor do próprio corpo deve ser a regra e suas limitações são exceções, pois os conceitos de saúde, liberdade e personalidade devem ter a mesma direção.” Também se entende que os instrumentos mencionados devem ser levados a efeito por pessoa capaz, de acordo com os arts. 3º[20] e 4º[21], do Código Civil, de preferência sob orientação de um médico de confiança da família e de um advogado, a fim de estar plenamente ciente do que se está registrando, até porque os registros devem ser realizados em obediência à lei posta, embora seja possível a revogação a qualquer tempo, desde que utilizada a forma adequada. No que concerne ao mandato duradouro, poderá ser realizado através de uma declaração de outorga, uma vez que a pessoa a ser nomeada deverá exteriorizar e decidir de acordo com a vontade prévia do paciente, por isso a importância de ser, também, uma pessoa próxima do paciente, de sua família e que conheça satisfatoriamente o paciente, pois a decisão deve ser como se o próprio paciente estivesse se expressando. Deve constar no instrumento, também, apenas procedimentos que se refiram à ortotanásia e isso engloba apenas as práticas terapêuticas que tem seu cerne na suspensão ou cerceamento de tratamentos extraordinários ou fúteis, que devido ao quadro do paciente não trarão a cura, mantendo, entretanto, cuidados paliativos. Imperioso esclarecer que a declaração ocorre antes do paciente estar acometido por doença, mas se ocorrer no leito hospitalar, poderá o médico colher a declaração de vontade do paciente no próprio prontuário médico, para que a vontade do paciente fique registrada e justifique alguma prática específica, que atenda à vontade do paciente. Curiosamente, com a edição da Resolução n. 1995, do Conselho Federal de Medicina, novamente o Ministério Público Federal do Estado de Goiás promoveu nova Ação Civil Pública contra o Conselho Federal de Medicina – autos n. 001039-86.2013.4.01.3500, perante a Primeira Vara Federal em Goiânia, buscando a ilegalidade e a inconstitucionalidade da Resolução, dentre outros pedidos. Na primeira instância, com sentença de lavra do Juiz Federal Substituto Eduardo Pereira da Silva, os pedidos foram julgados improcedentes[22], inclusive com rejeição de pedido liminar (com sentença prolatada pelo Juiz Federal Jesus Crisóstomo de Almeira). Como houve recurso pelo Ministério Público Federal, os autos foram remetidos ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, onde aguardam julgamento[23]. O ordenamento jurídico brasileiro não coloca o direito à vida na condição antagônica do direito à morte, mas ressalta o direito a uma morte digna, sem sofrimento, onde se insere o respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana, da autonomia da vontade e da liberdade do indivíduo, pois Renata de Lima Rodrigues (2013, pg. 363) entende que as Diretivas Antecipadas de Vontade “são expressão da autonomia do indivíduo”, atuando como “garantia de que a planificação do ideal de tratamento, cura ou abrandamento da dor de cada um seja integralmente respeitado, evitando possíveis danos a esses aspectos fundamentais da personalidade humana.” A Lei n. 8080, de 19 de setembro de 1990, que trata de ações e serviços em saúde, no Brasil, em seu art. 7º[24], III, por sua vez, também elenca a autonomia da vontade do paciente para a defesa de sua integridade física e moral. Averiguadas as Diretivas Antecipadas de Vontade e seus desdobramentos jurídicos, o testamento vital, o mandato duradouro e a ortotanásia, inclusive a forma de sua manifestação e os preceitos legais inerentes, a verificação do entendimento jurisprudencial dos tribunais nacionais prescinde de análise, objeto do próximo segmento deste trabalho. III – Entendimento jurisprudencial Para a efetivação deste estudo, a pesquisa realizada abrangeu 26 (vinte e seis) Tribunais Estaduais do Brasil, além daquele do Distrito Federal, totalizando 27 (vinte e sete) Tribunais Estaduais. Também foram verificados os 5 (cinco) Tribunais Regionais Federais, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, implicando na pesquisa em 34 (trinta e quatro) Tribunais brasileiros, inferiores e superiores, de pequeno, médio e grande porte. Os verbetes que foram pesquisados, sempre utilizando as ferramentas de busca específicas dos sites de cada Tribunal, compreenderam: “diretivas antecipadas de vontade”, “testamento vital”, “mandato duradouro”, “ortotanásia”, “resolução 1805 Conselho Federal de Medicina” e “resolução 1995 Conselho Federal de Medicina”, sendo que a pesquisa ocorreu entre os meses de abril e outubro de 2016. Considerando todo o sistema jurídico informatizado disponível para consulta, a quantidade de decisões que contemplaram o objeto desta pesquisa é ínfima. Além daquelas duas decisões já relacionadas, ambas da Justiça Federal de Goiás, foram encontrados somente outras 3 (três) decisões, todas provenientes do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e em todas as medidas judiciais a instituição de saúde promoveu a demanda judicial, com o intuito de fazer valer seus direitos, pois tinha em seu leito paciente que, cientificado de sua situação, decidiu pela recusar em submeter-se a tratamento e/ou procedimento, optando apenas por cuidados paliativos, deixando os profissionais de saúde inseguros e inquietos quanto às possíveis implicações jurídicas consequentes pela não aceitação de tratamento e/ou procedimento. A busca, pela via judicial, da chancela do Estado, se deveu à necessidade de se precaver ante eventual responsabilização criminal, administrativa e, por consequência, indenizatória. Com a análise das decisões encontradas, pode-se constatar que as ações propostas versavam sobre as Diretivas Antecipadas de Vontade, manifestadas na modalidade verbal, com o paciente no leito hospitalar, embora enquanto os pacientes ainda se encontravam lúcidos e conscientes. Necessário, então, assegurar a verossimilhança da declaração, para evitar a insegurança jurídica e a responsabilização do profissional da saúde. As questões centrais, de forma genérica, diziam respeito à inexistência de Diretivas Antecipadas de Vontade expressas, na modalidade testamento vital ou na legitimidade do representante no mandato duradouro. Em nenhum caso houve a contestação de algum documento prévio formalizado. Ao que tudo indica, o Poder Judiciário reconheceu a autonomia da vontade de cada paciente, desde que em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana. Na discussão de mérito, foi reconhecido o testamento vital expressado, mesmo que de forma verbal, pelo paciente e confirmado e relatado pelo profissional médico, uma vez que nas medidas judiciais foram juntadas provas documentais que demonstravam a plena capacidade de autodeterminação do paciente, acolhida e respeitada pelo Poder Judiciário. Assim sendo, mesmo que de forma sucinta, são expostos os únicos 3 (três) Acórdãos prolatados pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande de Sul, onde houve o reconhecimento da autonomia da vontade do paciente em suas Diretivas Antecipadas de Vontade. A primeira decisão, da qual ainda pende um Recurso Extraordinário, trata, in concreto, de paciente do sexo feminino que deu entrada em entidade hospitalar, com quadro severo de descompensação secundária e insuficiência renal, edema agudo de pulmão, apresentando-se como responsável o neto, o qual foi cientificado da necessidade de realização de hemodiálise. Ocorre que o filho da paciente se apresentou posteriormente como responsável e negou a realização do procedimento arguindo que seria a vontade de sua mãe. Diante do descompasso entre o filho e o neto, a entidade hospitalar pleiteou autorização judicial para realizar o procedimento de hemodiálise sob pena de morte da paciente. Em primeira instância o pedido foi negado, havendo Recurso de Apelação da entidade, com manutenção da negativa, sob o argumento de que o princípio da dignidade da pessoa humana é princípio soberano e se sobrepõe até aos textos normativos, seja qual for sua hierarquia, além do que o desejo de ter a “morte no seu tempo certo”, evitados sofrimentos inúteis, não pode ser ignorado. In casu, a vontade da paciente em não se submeter à hemodiálise, de resultados altamente duvidosos, afora o sofrimento que lhe impõe, traduzida na declaração do filho, há de ser respeitada. Ademais, não se constatou, nos autos, nenhum impedimento que deixasse de validar a manifestação de vontade do filho, por sua mãe. Perceba-se que o filho manifestou a vontade da mãe, embora primariamente o neto acompanhava a paciente (avó). Tal precedência foi observada em virtude das disposições do Código Civil, no que tange à sucessão, haja vista que o filho é o primeiro na linha de sucessão, enquanto o neto seria o segundo na ordem sucessória. Embora neste caso concreto ainda não havia entrado em vigor o código de ética médica atual, já estava em vigor a Resolução n. 1805, do Conselho Federal de Medicina, que não tratava especificamente sobre diretivas antecipadas de vontade, mas sobre ortotanásia. A fundamentação da decisão, conforme se verifica com a transcrição da ementa[25], se pautou no princípio da autonomia da vontade da paciente: “CONSTITUCIONAL. MANTENÇA ARTIFICIAL DE VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PACIENTE, ATUALMENTE, SEM CONDIÇÕES DE MANIFESTAR SUA VONTADE. RESPEITO AO DESEJO ANTES MANIFESTADO. Há de se dar valor ao enunciado constitucional da dignidade humana, que, aliás, sobrepõe-se, até, aos textos normativos, seja qual for sua hierarquia. O desejo de ter a "morte no seu tempo certo", evitados sofrimentos inúteis, não pode ser ignorado, notadamente em face de meros interesses econômicos atrelados a eventual responsabilidade indenizatória. No caso dos autos, a vontade da paciente em não se submeter à hemodiálise, de resultados altamente duvidosos, afora o sofrimento que impõe, traduzida na declaração do filho, há de ser respeitada, notadamente quando a ela se contrapõe a já referida preocupação patrimonial da entidade hospitalar que, assim se colocando, não dispõe nem de legitimação, muito menos de interesse de agir.” (Apelação Cível Nº 70042509562, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Armínio José Abreu Lima da Rosa, Julgado em 01/06/2011). Passados pouco mais de dois anos, o tribunal gaúcho novamente decidiu uma demanda judicial similar, na qual um paciente do sexo masculino, com 79 anos de idade, se encontrava com severas complicações, como emagrecimento progressivo e anemia acentuada, resultante do direcionamento da corrente sanguínea para a lesão tumoral, motivo pelo qual necessitava amputar um membro inferior, sob pena de morte por infecção generalizada. Ocorre que o paciente se recusava a prestar-se ao procedimento amputatório e, assim, o médico da entidade hospitalar buscou auxílio do Ministério Público para ingressar com medida judicial, requerendo a expedição de alvará autorizando a amputação do membro. Em primeira instância o pedido foi negado, tendo o Ministério Público recorrido ao Tribunal de Justiça. Em segunda instância, com decisão já transitada em julgado, os Desembargadores confirmaram a negativa, sob o fundamento de que, conforme laudo psicológico, o paciente desejava morrer para aliviar seu sofrimento. Além disso, havia laudo comprovando que o paciente estava em pleno gozo de suas faculdades mentais, asseverando, a decisão, que o Estado não pode invadir o corpo da pessoa e realizar procedimento mutilatório impositivo. O direito à vida deve ser combinado com o da dignidade da pessoa humana previsto na Constituição Federal, em consonância com o já mencionado art. 15, do Código Civil, que assegura ao paciente não ser submetido a procedimento com risco de vida. Os Desembargadores, por unanimidade, entenderam, de acordo com a norma posta e com a Resolução n. 1995, do Conselho Federal de Medicina, que a autonomia da vontade da pessoa deve ser levada em consideração, mesmo com o risco da própria vida, em consonância com o que prescreve o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, pois de nada adianta a vida com sofrimento, haja vista que a pessoa deve gozar de sua vida apenas se houver dignidade para tanto. Na questão sub examen houve novamente a ratificação judicial do testamento vital. Embora em se tratando de pessoa idosa, que tem tratamento diferenciado em norma especial – Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003, isso não lhe retira a personalidade e a legitimidade, sendo-lhe vedada a manifestação de sua autonomia da vontade somente se for declarado incapaz em procedimento judicial adequado. No Acórdão, houve o reconhecimento do testamento vital do paciente, em consonância com a Resolução n. 1995, do Conselho Federal de Medicina, no sentido de assegurar-lhe o direito de não ser submetido a tratamento indesejado, garantindo-se-lhe o procedimento da ortotanásia para que tivesse uma morte natural, conforme se verifica da ementa[26]: “APELAÇÃO CÍVEL. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. BIODIREITO. ORTOTANÁSIA. TESTAMENTO VITAL. 1. Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega à amputação, preferindo, conforme laudo psicológico, morrer para "aliviar o sofrimento"; e, conforme laudo psiquiátrico, se encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida. 2. O caso se insere no denominado biodireito, na dimensão da ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o processo natural. 3. O direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 1º, III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou cirurgia, máxime quando mutilatória. Ademais, na esfera infraconstitucional, o fato de o art. 15 do CC proibir tratamento médico ou intervenção cirúrgica quando há risco de vida, não quer dizer que, não havendo risco, ou mesmo quando para salvar a vida, a pessoa pode ser constrangida a tal. 4. Nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto consta nos autos, fez o denominado testamento vital, que figura na Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina. 5. Apelação desprovida.” (Apelação Cível Nº 70054988266, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 20/11/2013). Por fim, no ano de 2015, uma unidade hospitalar interpôs Recurso de Agravo de Instrumento, também com decisão já transitada em julgado, tendo em vista a negativa de liminar que negou provimento a autorização de procedimento cirúrgico em paciente do sexo masculino que se recusou a passar por procedimento cirúrgico com urgência, o que foi ratificado por sua madrasta. O paciente necessitava realizar uma laparotomia[27], que segundo o corpo médico, se não fosse realizada com urgência, causaria a morte do paciente devido à gravidade do quadro. Ocorre que o paciente se recusava a passar para a maca do centro cirúrgico e manifestou-se pela não realização do procedimento. Em decisão monocrática, o magistrado manteve a decisão de primeira instância e negou provimento ao Recurso de Agravo de Instrumento, fundamentando a decisão na lucidez, orientação e consciência do paciente, bem como no total conhecimento da gravidade do quadro e das consequências em não se submeter ao procedimento cirúrgico. Além disso, a madrasta do paciente assinou termo de responsabilidade e recusa do procedimento, embora a esposa do paciente discordasse. O julgamento também considerou a Resolução n. 1995, do Conselho Federal de Medicina, esclarecendo que o direito à vida não é absoluto e que deve prevalecer a vontade consciente do paciente, observando-se o já mencionado art. 15, do Código Civil. Verifica-se, no caso concreto, o respeito do Poder Judiciário ao reconhecimento das Diretivas Antecipadas de Vontade, uma vez que entendeu-se que, in casu, foi realizado o testamento vital, embora no leito hospitalar, em prontuário médico, na forma verbal, além da utilização do mandato duradouro, onde a madrasta do paciente se manifestou pelo paciente, subscrevendo termo de compromisso, eximindo a entidade hospitalar e seus profissionais de qualquer eventual responsabilidade. Importante salientar que o profissional médico ficou resguardado e não infringiu seu código de ética, pois houve o respaldo da vontade do paciente em se recusar a receber tratamento, estando no uso e gozo de suas faculdades mentais. Uma problemática que deve ser levada em consideração na discussão acerca do mandato duradouro, diz respeito ao interesse da parte outorgada em relação a interesses secundários em detrimento da morte do paciente. Em outras palavras, trata-se de situação peculiar na qual pode haver conflitos de interesses de ordem patrimonial, em caso de sucessão. Por isso, ressalta-se a importância em se fazer um testamento vital de forma adequada, quando o testamentário – ou paciente – demonstra sua livre e espontânea vontade. No decisum, verifica-se que a autonomia da vontade do paciente foi a tônica, em conjunto com preceitos constitucionais e a Resolução n. 1905, do Conselho Federal de Medicina, conforme ementa[28]: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. DIREITO À SAÚDE. AUTORIZAÇÃO PARA REALIZAÇÃO DE PROCEDIMENTO CIRÚRGICO. NEGATIVA DO PACIENTE. NECESSIDADE DE SER RESPEITADA A VONTADE DO PACIENTE. 1. O direito à vida previsto no artigo 5º da Constituição Federal não é absoluto, razão por que ninguém pode ser obrigado a se submeter a tratamento médico ou intervenção cirúrgica contra a sua vontade, não cabendo ao Poder Judiciário intervir contra esta decisão, mesmo para assegurar direito garantido constitucionalmente. 2. Ademais, considerando que "não se justifica prolongar um sofrimento desnecessário, em detrimento à qualidade de vida do ser humano", o Conselho Federal de Medicina (CFM), publicou a Resolução nº 1.995/2012, ao efeito de dispor sobre as diretivas antecipadas de vontade do paciente, devendo sempre ser considerada a sua autonomia no contexto da relação médico-paciente. 3. Hipótese em que o paciente está lúcido, orientado e consciente, e mesmo após lhe ser explicado os riscos da não realização do procedimento cirúrgico, este se nega a realizar o procedimento, tendo a madrasta do paciente, a seu pedido, assinado termo de recusa de realização do procedimento em questão, embora sua esposa concorde com a indicação médica. 4. Por essas razões, deve ser respeitada a vontade consciente do paciente, assegurando-lhe o direito de modificar o seu posicionamento a qualquer tempo, sendo totalmente responsável pelas consequências que esta decisão pode lhe causar. NEGADO SEGUIMENTO AO RECURSO.” (Agravo de Instrumento Nº 70065995078, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sergio Luiz Grassi Beck, Julgado em 03/09/2015). Verificou-se na pesquisa somente estas três decisões envolvendo as Diretivas Antecipadas de Vontade, além de outras duas, decorrentes de Ações Civis Públicas promovidas pelo Ministério Público Federal, estando clara a observância da autonomia da vontade de cada paciente, bem como a constitucionalidade das Resoluções ns. 1805 e 1995, do Conselho Federal de Medicina. IV – Considerações finais A pesquisa envolveu a persecução das Diretivas Antecipadas de Vontade e suas implicações jurisprudenciais em 34 (trinta e quatro) Tribunais brasileiros, utilizando-se verbetes específicos, com ferramentas próprias de busca. Foram encontradas 5 (cinco) decisões sobre o tema, sendo duas decisões decorrentes de questionamentos acerca da constitucionalidade e legalidade das Resoluções ns. 1805 e 1995, do Conselho Federal de Medicina, ambas da Justiça Federal de Goiás e do Tribunal Federal Regional da 1ª Região, além de outras três, todas do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Considerando-se a importância das Diretivas Antecipadas de Vontade, especialmente por envolver a vida humana, também entendeu-se a necessidade de sua definição e conceituação, incluída a ortotanásia, o testamento vital e o mandato duradouro. A percepção é que ainda há poucas demandas judiciais que versem sobre as Diretivas Antecipadas de Vontade, pois se trata de instituto inovador, que vem emergindo paulatinamente. Nas decisões encontradas e estudadas, verificou-se que o Poder Judiciário vem assegurando com veemência o direito constitucional da dignidade da pessoa humana no que se refere à autonomia da vontade do(a) paciente, uma vez assegurada a manifestação de vontade do(a) paciente em detrimento do direito à vida, podendo o(a) paciente dispô-lo, como bem entender, desde que não interfira no direito de outrem. Observou-se também que as demandas judiciais foram propostas, se não pelo Ministério Público Federal – Ações Civis Públicas, por entidades hospitalares que buscaram a chancela do Estado para realizar determinado procedimento, necessário para salvar a vida do(a) paciente, buscando com isso eximir-se de eventual responsabilidade penal, administrativa e de reparação civil. O tema proposto é instigante, pois se trata de uma lacuna no ordenamento jurídico brasileiro, pois não há legislação específica. Há, desta forma, certa insegurança jurídica, uma vez que se questiona qual seria a relevância e a prevalência do instituto da autonomia da vontade, quando confrontado com os demais princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana, o direito à liberdade e à vida, tal qual os arts. 1º, III e 5º, caput, incisos II e III, ambos da Constituição Federal. Assim, pode-se afirmar que a Constituição Federal assevera o princípio da proteção à vida, como sendo o preponderante em relação aos demais. Contudo, o que fazer quando o(a) paciente opta por testar sua vontade e abreviar seu sofrimento? A Constituição Federal, em conjunto com o Código Civil, assevera que o direito à vida não é absoluto, conforme dicção do já mencionado art. 5º, II e III, da Constituição Federal e também dos art. 11 e 15, ambos do Código Civil. Percebe-se, então, uma certa antinomia entre normas, mesmo que observada a hierarquia legal, uma vez que a Constituição Federal em vigor assegura a vida enquanto no Código Civil se encontra assegurado o direito à disposição sobre o próprio corpo, restando demonstrado que as normas facultam, em tese, o respeito à autonomia da vontade, garantindo que ninguém será obrigado a fazer o que não estiver previsto em lei. Neste sentido, não haveria motivos para se rejeitar as Diretivas Antecipadas de Vontade, haja vista que sua aceitação está assentada nos princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade. A Resolução n. 1995, de 9 de agosto de 2012, do Conselho Federal de Medicina, determina que a autonomia da vontade do(a) paciente deve ser respeitada e, embora garantidos constitucionalmente os institutos que assegurem a liberdade, dignidade, vida e autonomia da vontade, é necessária uma compreensão jurisdicional que demonstre qual princípio deve prevalecer, uma vez que no caso concreto, em determinados casos, poderá ocorrer a busca jurisdicional requerendo assegurar o direito de exercício de um direito e a análise, no mais das vezes, não poderá aguardar o trâmite judicial, sob pena de se estar ferindo o princípio da dignidade humana, uma vez que o paciente estará refém de sua própria doença e, no mais das vezes, em fase final de vida. Portanto, verifica-se possível dispor do próprio corpo com a utilização das Diretivas Antecipadas de Vontade, conforme a pesquisa jurisprudencial efetuada, em que pese não haver norma específica no ordenamento jurídico brasileiro, excetuando-se as Resoluções ns. 1805 e 1995, ambas do Conselho Federal de Medicina, observantes dos preceitos constitucionais, que possibilitam ao profissional médico que acate à vontade do(a) paciente. As decisões que foram trazidas à colação não trataram de medidas judiciais destinadas a validar a autonomia da vontade do paciente em não se submeter a tratamento considerado indigno ou que provocasse mais sofrimento ou, ainda, questionando a validade ou legalidade de algum documento específico, mas de ações judiciais promovidas por entidades de saúde com o intuito de evitar futuras demandas judiciais de cunho criminal e reparatório, além daquela do âmbito administrativo. O entendimento dos tribunais, até então, assegura ao(à) paciente o direito ao exercício da autonomia da vontade, legitimando o(a) paciente para que faça uso de sua autonomia, via Diretivas Antecipadas de Vontade, uma vez que não se afigura razoável a aplicação de sanção ao profissional médico e à entidade de saúde que realizar tratamento e/ou procedimento requerido (ou não) pelo(a) próprio(a) paciente.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-160/as-diretivas-antecipadas-de-vontade-na-jurisprudencia-brasileira/
Os princípios da bioética
a proposta principal do presente artigo é fazer uma análise introdutória da Bioética, como veículo transdisciplinar de estudo entre Ciências Biológicas, Ciências da Saúde, Filosofia (Ética) e Direito (Biodireito) que investiga as condições necessárias para uma administração responsável da vida humana, animal e ambiental, com esse ponto de partida, pretende-se abordar os princípios referidos pela doutrina especializada como mais importantes, quais sejam: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça. A autonomia pode ser entendido como o poder de tomada de decisão no cuidado da saúde, é a atuação livre de interferências dos outros, além da livre de limitações pessoais que obstam a escolha expressiva da intenção. Já a Não Maleficência determina a obrigação de não infligir danos a quem quer que seja de maneira intencional. A beneficência decorre naturalmente do princípio da não-maleficência, refere-se à ação a ser feita. Ela comporta dois fatores: não fazer o mal ao próximo ou, melhor, positivamente, fazer-lhe o bem. Justiça, em termos de bioética, refere-se à igualdade de tratamento e à justa distribuição das verbas do Estado para a saúde, a pesquisa, e a prevenção, para todos aqueles que fazem parte da sociedade. Visa-se a formação de uma visão ampla sobre o tema proposto para análise.
Biodireito
1. Introdução: A importância dos princípios Quando se pretende estudar determinado assunto é indispensável que se proceda à análise dos pontos básicos, introdutórios do conhecimento pretendido. Os princípios servem para fazer conhecer os pontos mais importantes sobre qualquer assunto que se busque aprofundar. No campo acadêmico, introdutoriamente são evidenciados os elementos indispensáveis para compreensão de determinado conjunto de ideias através da análise dos princípios. Na visão de Streck, os princípios desnudam a capa se sentido imposta pela regra, pelo enunciado, que pretende impor um universo significativo autossuficiente. Em verdade, não há uma lista conclusiva dos princípios de determinada matéria, ao contrário, os estudiosos, os principais autores, elencam de forma livre os princípios que consideram importantes. Para que se tenha uma visão ampla e inicial satisfatória acerca da bioética, ou de qualquer outro campo científico, se faz indispensável à análise dos seus princípios. No campo da Bioética os princípios citados pelos diversos autores servem para fornecer o aparato ideológico necessário para compreensão dos parâmetros éticos buscados nesta ciência. Para que seja possível adentrar no campo dos princípios, no presente trabalho será feita uma retomada histórica do desenvolvimento da bioética como ciência. Em seguida, serão elencados os diversos princípios atribuídos a este campo científico, para enfim ser analisado o documento que reuniu os princípios considerados principais em termos de bioética. 2. A BIOÉTICA: NOVA PALAVRA EM NOVOS CONTEXTOS BUSCANDO NOVAS RESPOSTAS Não se trata do objetivo principal deste artigo analisar a história e surgimento da bioética. No entanto, por ser relativamente novo o seu estudo, especialmente dentro do âmbito jurídico, é indispensável a alocação ao leitor sobre a importância do tema tratado. Assim, objetiva-se contextualizar a premissa da disciplina multifacetária da bioética para somente então, analisar-se a questão principiológica que o rege. Todo um contexto histórico pode colaborar em tal compreensão. A partir dos anos 70, surge uma nova palavra utilizada no mundo da saúde: bioética. Com várias finalidades, o termo foi aceito, mesmo com contestações, porque o mundo ansiosamente esperava por ele. Havia uma preocupação comum, já que, o surgimento de novos poderes com o desenvolvimento biomédico, deixou as pessoas desconcertadas. Havia uma consciência generalizada dos poderes do homem e da dificuldade em dominá-los. Surge, portanto, um novo campo de estudo, sobre vida e morte, saúde e doença, qualidade de vida e sofrimento, entre outras questões, exigindo nova abordagem sobre os temas, com um novo método, especialmente voltado à interdisciplinaridade. Todos estavam ansiosos por novas práticas, nova forma de praticar a ação e de se tomar a decisão, não usando a teoria e reflexão universitária. Por tudo isso, a bioética é um movimento sociocultural, já que não pode ser descrita de forma abstrata e nem reduzida a um simples saber. Por não ser uma “disciplina estruturada”, quanto ao seu surgimento e desenvolvimento, tudo parece acontecer ao mesmo tempo, o que dificulta a sistematização de seu estudo. Não há como determinar um acontecimento fundador único da bioética. No que concerte à palavra bioética, a paternidade é invocada pelo médico americano Van Rensselaer Potter, através de um artigo seu, publicado em 1970: Bioethics, the Science of Survival. A ideia do autor era a criação de uma nova ciência, de sobrevivência, com a aliança do saber biológico e os valores humanos. Haveria a superação da distinção da cultura científica e da cultura clássica (as humanidades), o que geraria um vasto campo de aplicação, como um empreendimento interdisciplinar. Porém, a amplitude dessa visão foi limitada, por muitos autores e praticantes, às questões atinentes às ciências biológicas e sua aplicação na medicina. André Hellegers foi, então, quem primeiro utilizou a bioética no sentido mais estrito de sua aplicação, como o é atualmente. A bioética é, assim, lançada no campo de estudo universitário e como movimento social. Ainda que o legado de Potter acabe se restringindo, praticamente, à criação do termo “bioética”, “sua luta por uma abrangência mais globalizante foi importante e teve a sua repercussão no sentido de não reduzir a Bioética ao enfoque médico”. Se o surgimento da palavra caracterizava um anseio da sociedade, razões não faltavam para isso. O contexto era de uma classe média que crescia e propagava uma nova mentalidade: individualismo, utilitarismo e gosto pelo consumo. Paralelamente, havia o desencantamento do mundo e da história em relação aos mitos, religiões e ideologias, desencadeando uma mentalidade racional e prático-prática. Surgia, ainda, conflitos entre grupos em razão da mutação das relações sociais devida ao feminismo, imigração e aumento da população de terceira idade, além da evidente fragmentação das esferas da vida e da cultura – direito, moral, religião, política, sistema judiciário, família, escola – e da especificação das ocupações e profissões, gerando um universo fracionado e pouco coerente. Concomitantemente a tudo isso, havia o crescimento econômico do pós-guerra, gerando otimismo na população e crença nos valores do desenvolvimento tecnocientífico. Essa era a conjuntura observada quando do surgimento da bioética. Outros fatores, externos e internos, de alguma forma, demonstraram, também, a importância de sua emergência. A própria constituição da bioética como um saber autônomo é bastante recente e o seu processo de surgimento esteve ligado a certos fatores históricos e socioculturais que acabaram determinando suas características, enfoque e metodologia. Em relação aos fatores externos, merecem destaque o desenvolvimento tecnocientífico, a manifestação dos direitos individuais, a modificação da relação médico paciente e o pluralismo social. Depois da segunda guerra, os orçamentos de pesquisa aumentaram constantemente. As descobertas eram aplicadas de forma rápida às intervenções sobre os seres humanos, permitindo, assim, salvar, melhorar, prolongar e manter a vida de uma forma jamais vista anteriormente. Mas tais aplicações levantavam controvérsias entre o público e até mesmo na própria comunidade científica. A demanda era muito grande em comparação com a estrutura e profissionais disponibilizados. Surgem, assim, as questões: quem deve viver? Quem deve morrer? Quem decide? Logo mais adiante, surgem os transplantes e outra questão é suscitada: quando ocorre, de fato, a morte da pessoa? Sobre o uso de respiração artificial, no caso de transplantes ou não, qual o limite ético à retirada do uso do respirador? A engenharia genética, naquele momento, dando os seus primeiros sinais de utilização, colocou outras questões ao debate, especialmente em relação aos riscos das manipulações genéticas e os meios para controlá-los. Em 1975 foi realizada uma grande conferência internacional, em Asilomar, nos Estados Unidos e, após ampla discussão, tal encontro encerrou-se com a decisão de instauração de normas de segurança, que inspiraram, posteriormente, vários organismos e governos. Na França, a partir dos anos 70, ganha-se destaque o debate sobre tecnologias de reprodução. Em meados dos anos 80, surge a amniocentese, um teste que visa à detecção de anomalias do feto durante os primeiros meses de gravidez, aumentando o debate sobre o aborto, já surgido anteriormente, mas com menor fonte tecnocientífica. Com todos esses eventos, questões que pertenciam a zonas obscuras da ética médica e eram decididas apenas no senso de responsabilidade dos médicos, foram levantadas e colocadas em debate. Outras questões, mais novas, já surgiram gerando, também questionamentos éticos: embriões humanos podem ser congelados? Pode-se intervir nos genes de um embrião? É possível transformar o ser humano? Em suma: com o avanço tecnocientífico visto a partir da década de 70, “não há mais a convicção de que a ciência é sempre boa e de que as suas descobertas devam necessariamente ser aplicadas”. Mas não foi só esse desenvolvimento nas pesquisas que clamavam por um novo comportamento ético no que concerne à vida. Em meados de 1960, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, a proteção da liberdade e dignidade do indivíduo já era destacada, em razão da edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Havia uma conscientização dos direitos e, no que se refere à experimentação humana, os “cobaias”, a maior parte advinda de grupos minoritários – como negros, pobres, pessoas com deficiências mentais e presos – tinham noção da garantia de suas dignidades. Aliado a isso, os consumidores, sabedores de seus direitos, reivindicam o direito à saúde de forma efetiva e ampla. O paternalismo médico tradicional sofre duras críticas e os pacientes reivindicam o direito de participar da tomada de decisão referente à sua saúde e ao tratamento necessário. Ganha ênfase a autonomia da pessoa, pelo direito da autodeterminação. Com isso, há uma modificação na relação médico-paciente, especialmente porque deixa de existir o médico familiar. O número de hospitais cresce rapidamente, concentrando todos os profissionais da saúde em um único lugar, com equipamentos necessários aos exames que precisavam ser feitos, já que os laboratórios ganham destaque no conhecimento científico. Unia-se economia e praticidade com o atendimento no hospital. Foram desenvolvidas as especializações e o médico não se concentrava mais no conjunto do corpo, mas apenas na parte de sua especialização. De familiar e pessoal, a atuação do médico torna-se organizacional e impessoal, trazendo maior distância e menor confiança do paciente em relação aos médicos. Assim, surge a vontade de não deixar, mais, somente aos médicos a decisão referente ao paciente. Aliás, a decisão envolve não somente médico e paciente, mas outros atores, como advogados, enfermeiros, juízes, filósofos, parentes, religiosos, caracterizando a multidisciplinaridade da bioética. Outra mudança social inicia-se nos anos 60. Há uma consciência do pluralismo moral existente no mundo e uma contestação das autoridades, em nome da autonomia individual ou grupo desfavorecido. Várias morais e diversidade de sistemas de valores ganharam lugar na sociedade, sendo necessária uma nova abordagem ética, secular. Ao lado de tais fatores externos, acontecimentos geraram escândalos, determinando a intervenção dos organismos públicos e do Estado no campo biomédico. Tanto na pesquisa, quanto na clínica e políticas de saúde, foram verificadas tais eventualidades. Depois da noção das atrocidades cometidas com os seres humanos nos campos de concentração alemães, especialmente no que diz respeito às experimentações com seres humanos, foram elaboradas dez regras, hoje correspondente ao que chamamos de Código de Nuremberg, sobre as experiências com seres humanos. Tais regras não exerceram grande influência nos Estados Unidos, porque entendiam que as regras eram só para os outros, já que os violadores eram os nazistas. No entanto, também lá, a pesquisa originou vários escândalos, como a ingestão de talidomida por mulheres grávidas e o nascimento de várias crianças com más-formações congênitas importantes. Tal medicamento foi usado como teste por pessoas que não sabiam que estavam participando de uma pesquisa. Faltou, portanto, o consentimento livre e esclarecido de todos. Outros escândalos, revelado pelo médico Henry K. Beecher, em artigo escrito no ano de 1966, relatavam, por exemplo, a injeção de células cancerosas em vinte e dois idosos senis e hospitalizados com o objetivo de estudar a resposta imunológica e, ainda, a injeção do vírus da hepatite em várias centenas de crianças residentes em lares para portadores de deficiência mental. Com a indignação do público, ainda mais com a afirmação do autor de que a lista inicial comportaria mais de cinquenta exemplos como esse, as autoridades americanas estabeleceram as Institutional Review Boards (IRB), juntas encarregadas de examinar as condições éticas das pesquisas sobre o ser humano. Mesmo depois disso, outros escândalos também foram revelados nos Estados Unidos, como por exemplo o caso Tuskegee, de 1972, cuja pesquisa consistia em observar a progressão da sífilis em um grupo de mais de quatrocentos negros atingidos pela doença e deixados sem tratamento, alguns deles por mais de quarenta anos, enquanto a eficácia da penicilina para o tratamento já era conhecida. Depois de outras revelações também desse tipo, o Congresso Americano estabeleceu, em 1974, a National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research que produziu, em 1978, o Belmont Report, relatório que apresentava os princípios éticos que deviam guiar toda a experiência com seres humanos. Os princípios citados no referido relatório eram do da beneficência, em atenção aos riscos e benefícios, o princípio da autonomia, com a necessidade do consentimento informado e o princípio da justiça, no que diz respeito à equidade quanto aos sujeitos de experimentação-. No que concerne aos tratamentos e às terapias descobertas, outros casos polêmicos surgiram durante o mesmo período, como o caso John Hopkins Baby, em 1969. Uma criança havia nascido com oclusão intestinal e uma doença mental ligada à Síndrome de Down. Os pais, informados da situação, não deram permissão para que fosse feita uma cirurgia para corrigir a oclusão intestinal e, a criança morreu de fome quinze dias depois. Outro caso de grande repercussão foi de Karen Ann Quinlan. A equipe médica recusava-se a atender ao pedido, então seus pais requereram judicialmente autorização para separar a sua filha, em coma há vários meses, do respirador que a mantinha viva. A decisão judicial foi no sentido da deliberação ficar a cargo do pai, desde que o mesmo obtivesse concordância da família, médicos e comitê de ética do hospital, especialmente a respeito da irreversibilidade do coma. Outro caso que obteve fama foi o Baby Doe, de 1982. A criança apresentava uma trissomia do cromossomo 21, atresia do esôfago e fístula traquoesofagiana. Os pais não permitiram a cirurgia e a criança morreu seis dias depois. Outros casos, envolvendo até crianças maiores, ocorreram na mesma época, suscitando reflexões nos meios de saúde sobre a necessidade de se dotar de instâncias de reflexão apropriadas. Em relação às políticas públicas, evidenciava-se o limite dos recursos. Não há estrutura para o atendimento de todos e, questiona-se, de quem é o acesso aos tratamentos e como é feita a lista de espera. Interessante foi o caso de Oregon, nos Estados Unidos, onde o governo decidiu limitar o acesso a certos tratamentos caros e oferecer tratamentos básicos a uma maior quantidade de pessoas. Porém, a recusa de um transplante de medula para uma criança de sete anos com leucemia, provocou um clamor nacional. Comentando as etapas de desenvolvimento da bioética segundo a socióloga americana Renée C. Fox, Durand, sintetiza que sua evolução se deu em três etapas: a primeira, do início dos anos 1960 até meados da década de 1970, marcada pela experiência com seres humanos e a importância do consentimento livre e informado das pessoas; a segunda, até metade dos anos 1980, com o interesse sobre e início e fim da vida e a terceira fase, a partir dos meados da década de 1980, com a preocupação da sociedade como um todo na restrição orçamentária, relação custo-benefício e distribuição dos recursos. Dentro dessa síntese histórica, portanto, a bioética acaba se firmando como uma disciplina multifacetária, indispensável no estudo tanto das ciências médicas, como humanas. Junges, apontando para uma definição global, observa: “A definição de Bioética que se tornou clássica e se impôs foi proposta pela renomada Enciclopédia de Bioética do Instituto Kennedy: “Bioética é o estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, enquanto esta conduta é examinada à luz de valores e princípios morais.” No entanto, quando tal definição apontou a palavra “princípios”, direcionou a bioética para um modelo de ética aplicada a problemas morais, excluindo “outros tipos de referenciais como convicções, atitudes, virtudes, emoções que poderiam também servir de fontes de conhecimento moral”. Assim, apesar de tantos e diversos antecedentes, a bioética foi marcada pelo Belmont Report, impulsionado pelo Kennedy Institute of Ethics, dando uma abordagem particular à bioética, chamada de principialismo que, tanto nos Estados Unidos quanto em outros lugares, não é unânime. 3. A abordagem da bioética segundo o Principialismo A questão do principialismo é tão forte que, alguns autores, criticam a bioética em geral sem ter a consciência de que atacam uma corrente particular. É uma abordagem clássica, também conhecida como corrente canônica, e o seu estudo, segundo Durand  “centra-se sobretudo em alguns princípios cuja aplicação supostamente leva à solução dos dilemas éticos na saúde: autônoma, beneficência, não-maleficiência, justiça, confidencialidade”. Essa abordagem, tal como feita pelos americanos, “ganham, atualmente, força de lei no plano internacional. Os quatro princípios da bioética americana simplesmente se tornaram os princípios da bioética”. A principal crítica a tal abordagem é de que os princípios são tomados como enunciados, sem preocupação na sua legitimação. Não há uma teoria bioética, embora haja uma prática que apele a tais princípios. Ou seja, há um pragmatismo ético, sendo os princípios aplicados de forma mecânica, automática. Além disso, vem de pontos de partida e matrizes de pensamento diversas, não havendo uma unidade sistemática. Como bem anotado por Junges, os três princípios clássicos adotados pela bioética – de acordo com o Relatório Belmont – são oriundos de três diferentes tradições éticas: o princípio da autonomia reporta-se à filosófica moral de Kant, o princípio da beneficência ao utilitarismo de S. Mill e o princípio da justiça ao contratualismo de J. Rawls. “Essa falta de uma unidade cria problemas práticos e teóricos. Se não existe uma base sistemática que interligue e unifique os princípios entre si, não existe também uma orientação unitária na criação de leis específicas para a ação que sejam claras, coerentes e compreensivas e nem justificação para estas leis”. Não é o foco deste trabalho a pesquisa aprofundada sobre as questões que abordam o principialismo. No entanto, sua citação se faz necessária para que fique justificado o acesso ao princípio da autonomia e seus desdobramentos, onde se aborda a questão da capacidade para decidir. “O puro principialismo peca por ecletismo, racionalismo e deontologismo”. Outros pontos teóricos devem, então, ser adotados para que exista uma integralidade no uso ideal dos princípios. Os conflitos teóricos da bioética contemporânea são consideráveis, e até mesmo os precursores do principialismo, Beauchamp e Childress anotam: “Apesar de havermos descrito nossa abordagem como baseada em princípios, rejeitamos a premissa de que se deve defender um único tipo de teoria, exclusivamente baseado nos princípios, nas virtudes, nos direitos, nos casos, e assim por diante. No pensamento moral, frequentemente se misturam recursos a princípios, regras, direitos, virtudes, paixões, analogias, paradigmas, parábolas e interpretações. Atribuir prioridade a um desses fatores como o elemento-chave é uma pretensão duvidosa, assim como a tentativa de dispensar completamente a teoria ética. Os aspectos mais gerais (os princípios, as regras, as teorias, etc) e os mais específicos (os sentimentos, as percepções, os julgamentos de casos, as práticas, as parábolas etc.) devem ser ligados em nossa deliberação moral.” Assim, não se adota, de pronto, uma via paralela ao principialismo. Há de ser feita uma nova interpretação dos princípios da bioética americana. E para esta reinterpretação do modelo clássico, não há abandono dos princípios, mas menção, também, ao aspecto do respeito à dignidade da pessoa humana. Ainda se atenta à relação médico paciente, de forma que seja baseada em compaixão, empatia e altruísmo, e à justiça do encontro clínico, passando-se do indivíduo ao cidadão para que, num contexto social, seja tomada a decisão. Não basta, assim, a aplicação dos princípios clássicos, atuando como “mantras”, como outrora. A dignidade humana é a categoria primordial da bioética  e o seu respeito emerge no “biodireito como marco irrenunciável em que se deve desenvolver a atividade biomédica, tanto no âmbito clínico como no da pesquisa científica”. 4. Leque de princípios e os principais princípios da bioética Como analisado anteriormente, diversos fatos contribuíram para evolução da bioética como ciência. Frente a diversos casos de manipulação, usando enfermos social e mentalmente fragilizados como sujeitos de experimentação, conhecidos pelo público no início dos anos 70 nos EUA, o congresso americano criou, em 1974, a National Comission for the Protection os Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research, essa comissão tinha por objetivo realizar uma pesquisa e um estudo completo que identificasse os princípios éticos básicos que deveriam nortear a experimentação, em seres humanos, nas ciências do comportamento e na biomedicina. Ao longo dos anos, essa Comissão apresentou seis relatórios, que apresentavam ideias e conclusões de quais seriam os pontos norteadores das experiências científicas que se desenvolviam, um desses relatórios, o Belmonte Reporte, em 1978, foi o estudo responsável por elencar quais os principais princípios da Bioética. Os trabalhos da Comissão representam o estudo mais completo que jamais foi feito dos problemas éticos suscitados pela pesquisa que envolve seres humanos. A Comissão manteve e definiu três princípios principais, fundamentais, que servem de base à ética da pesquisa: o respeito pelas pessoas, a beneficência e a justiça. Cada um desses princípios contém exigências (ou regras) múltiplas. Muito embora a Belmont Report se refira apenas à pesquisa envolvendo seres humanos, suas análises foram rapidamente usadas para o conjunto do campo bioético, especialmente na ética clínica. Alguns autores subdividem o segundo princípio, o da beneficência, em: beneficência e não-maleficência, chegando, portanto, a quatro princípios fundamentais. Outros acrescentam princípios, exemplo a confidencialidade, ou omitem outros, por exemplo, a justiça. O Belmont Report indicava, aliás, que poderia haver outros princípios além dos três principais que foram mantidos. O Enunciado de Política dos três conselhos canadenses enumera oito deles: respeito à dignidade humana, respeito ao consentimento livre e informado, respeito às pessoas vulneráveis, respeito à vida privada e às informações pessoais, respeito à justiça e à integração, equilíbrio das vantagens e dos inconvenientes, redução dos inconvenientes, otimização das vantagens. Outros que podem ser citados, não comercialização do corpo humano, solidariedade, respeito à vida, proteção da qualidade de vida, respeito aos vínculos familiares, proteção do patrimônio genético humano. A literatura bioética cita e analisa diversos princípios, conforme visto, entretanto, os existem aqueles que se destacam, e, por essa razão merecem ser analisados mais detidamente. Os três princípios apresentados pelo Relatório Belmont se tornaram clássicos dentro da Bioética, bem como os procedimentos práticos dele derivados para a solução de conflitos éticos. Os três princípios foram identificados como: 1) beneficência (atenção aos riscos e benefícios); 2) autonomia (necessidade de consentimento informado; 3) justiça (equidade quanto aos sujeitos de experimentação). Segundo o relatório, esses princípios querem ajudar aos cientistas, sujeitos de experimentação, avaliadores e aos cidadãos interessados em compreender os conceitos éticos inerentes à experimentação com seres humanos. O Relatório Belmont relaciona-se com a experimentação em seres humanos. A prática clínica e assistencial não entrava em seu horizonte. Logo se colocou a questão: não seria possível aplicar estes princípios ao exercício da medicina, livrando-o do velho enfoque de deontologia profissional? Este foi o objetivo da obra, que já se tornou clássica, de Tom L. Beuchamp e James F. Childress, Principles of Biomedical Ethics (New York/ Oxford: Oxford University Press, 1979) com uma segunda edição em 1983. Ela significou uma mudança em relação aos velhos manuais de Ética médica, definidos pela perspectiva do juramento e do código. A obra de Beuchamp e Childress assume o enfoque dos princípios e irá determinar o tipo de fundamentação e argumentação ética assumida pela Bioética anglo-saxonica. Mais tarde, apareceu a obra de H.T. Engenlhardt, The Foundations os Bioethics (New York/Oxford: Oxford University Press, 1986) que propõe uma ética para o que ele chama de “estranhos morais” e no contexto de uma sociedade plural e obrigatória na história da Bioética, porque abriram um caminho novo para a ética médica. A apresentação dos três princípios clássicos da Bioética desdobrará o princípio da beneficência em dois: não-maleficência e beneficência, seguindo a sugestão de Beuchamp e Childress. O princípio da autonomia é o ponto de referencia ético para o enfermo, os princípios de beneficência e de não-maleficência para o médico e o princípio da justiça para as instituições de saúde e a sociedade no tratamento de questões relativas à vida e à saúde dos seres humanos. 4.1. Autonomia O conceito de autonomia não é unívoco. No entanto, na bioética, prevalece a concepção de que se trata do poder de tomada de decisão no cuidado da saúde. Beauchamps e Childress entendem que a autonomia é a atuação livre de interferências dos outros, além da livre de limitações pessoais que obstam a escolha expressiva da intenção. É a liberdade e qualidade do agente. É com base nas concepções destes autores, precursores na bioética, que o presente estudo se desenvolve. Como justificativa da autonomia, importante mencionar que Kant já ressaltava que todas as pessoas têm valor incondicional, e capacidade para determinar o seu próprio destino. Para ele, pessoas são vistas como fins e não como meios. No que diz respeito a pessoas que, pela sua própria natureza, não são autônomas, não há que se falar na aplicabilidade da autonomia na forma explicitada. Mas para as pessoas que tem plena capacidade mental, não necessariamente, a jurídica, não basta uma liberdade formal. Materialmente, no caso concreto, a apreciação da liberdade e autonomia deve ser garantida da forma mais ampla possível, como uma demonstração da garantia de uma liberdade de qualidade. Por exemplo: há possibilidade de se afirmar que um alcoólatra tem liberdade? De fato, ele identifica os desejos de preferência básicos, mas a sua realização pode ocorrer por meio de desejos ou preferências de nível superior. E ter autonomia significa dominar as preferências básicas e de nível superior. No nível básico, o alcoólatra quer beber. No nível superior, deseja parar de beber. E este prevalece sobre o inferior. Concebendo a autonomia na bioética, questiona-se qual o desejo mais racional e mais autônomo. Não há uma conclusão contundente que responda, porque o desejo mais racional e autônomo pode ser considerado dessa forma apenas por ser o mais forte. Os desejos de segunda ordem podem ser ocasionados pelo poder dos desejos de primeira ordem ou pela influência de uma condição tal como o alcoolismo que é contrária à autonomia.  Isso não distingue a autonomia da não autonomia. Colocar os desejos em ordem não tem sentido e complica desnecessariamente a teoria da autonomia. É como se precisasse de uma autenticidade desnecessária. Assim, para os autores, ação autônoma é aquela que o agente age intencionalmente; com entendimento (grau substancial, no caso concreto, de entendimento); sem influências controladoras que determinem sua ação, compreendendo que, na verdade, inteiramente autônoma, nenhuma decisão é. As pessoas são sujeitas às autoridades legais, morais, religiosas, familiares e ainda assim, gozarem de autonomia. Tal compatibilidade entre autonomia e autoridade é, portanto, possível. A pessoa pode escolher e aceitar submeter-se à autoridade. Como exemplo, tem-se a testemunha de Jeová: aceita a autoridade de sua instituição religiosa, tendo autonomia para dizer não à transfusão de sangue. O mesmo se diz em relação à tradição moral. Por outro lado, é importante ressaltar que há limitações à autonomia já que, como princípio, deve ser aplicada em sua maior forma possível, mas pode ser excepcionada. Existe a possibilidade do direito de liberdade e autonomia ser restringido pelo direito de outrem. Nesse aspecto, há um amplo acordo da doutrina. Também se menciona a validez prima facie da autonomia, tendo em vista que pode existir uma ou algumas considerações morais concorrentes. Por exemplo, o paciente terminal com câncer pergunta ao médico se morrerá muito em breve e o médico mente. Ou seja, em alguns casos, o respeito à autonomia é menos importante que manifestações de beneficência e compaixão. A autonomia também pode ser vista em sua forma negativa e positiva. Na forma negativa, a pessoa não deve sofrer pressão de ninguém. Em relação à positiva, deve haver revelação de informações e encorajamento da decisão autônoma, especialmente com regras morais: dizer a verdade; respeitar a privacidade dos outros; proteger informações confidenciais; obter consentimento para intervenção nos pacientes; quando solicitado, ajudar os outros a tomar decisões importantes. Assim, o consentimento do paciente deve ser informado e expresso. Além disso, o consentimento pode mudar no tempo, não é uma cláusula que, uma vez formulada, é intangível. Veja-se o seguinte caso: um homem de 28 anos decidiu parar de fazer diálise renal em razão do seu estilo de vida e custo que sua sobrevivência trazia para a família. Tinha diabetes, era cego e não podia andar. Sua esposa e seu médico concordaram com o pedido, que incluía o consentimento de que mesmo que ele assim pedisse, sob influência da dor ou de outras mudanças corporais que ocorressem por estar morrendo. Ocorre que, perto de morrer, acordou com dor e pediu a diálise. A esposa e médico negaram e ele morreu 4 horas depois. A autonomia do paciente poderia, sim, ter mudado com o tempo. Por outro lado, também devem ser respeitadas as decisões autônomas que antecedem períodos de incapacidade. Por exemplo: uma testemunha de Jeová chega consciente ao hospital e proíbe qualquer tipo de transfusão de sangue. Logo fica inconsciente e necessita da transfusão: sua vontade é respeitada como forma de manifestação da autonomia. Quanto à capacidade, os seus julgamentos fazem o papel dos porteiros: se tem capacidade, a autonomia pode ser aceita, se não tem, não pode – quem está acima ou abaixo da marca. Quando se constata a incapacidade, deve se verificar se a mesma pode ser restaurada. Se puder, deve-se esperar para que se respeite a autonomia do paciente. É importante ressaltar que a capacidade está totalmente ligada à autonomia, mas com ela, não se confunde. Capacidade é habilidade de executar uma tarefa e autonomia é o autogoverno. Uma das possibilidades de verificação da correta tomada de decisão encontra-se na estratégia da escala móvel da capacidade: os modelos de capacidade se modificam de acordo com o risco da decisão. Quanto maior o risco, maior a capacidade que deve ser exigida. Em qualquer caso, o consentimento informado é a porta de entrada ao respeito à autonomia. Tal consentimento informado é um ato complexo. Reúne elementos de competência, revelação, entendimento, voluntariedade e o próprio consentimento. Inicialmente, exige-se a capacidade de entender e voluntariedade ao decidir. Isso se configura na competência para a realização do ato. Como elementos da informação, é indispensável a revelação da própria informação material, a recomendação de um plano e o entendimento da revelação e recomendação. A revelação é baseada numa obrigação geral de exercitar um cuidado razoável, fornecendo informações. Tais informações devem ser transmitidas de maneira adequada. Pode se dar pelo modelo de prática profissional, ou seja, pelas práticas habituais da comunidade profissional. É o modelo do médico sensato. Pode se dar, também, pelo modelo da pessoa sensata: a informação a ser revelada é determinada por referência a uma hipotética pessoa sensata. Há, ainda, o modelo subjetivo, que se adequa às necessidades de informação da pessoa específica. Moralmente, é o preferível, por trazer como solução uma troca mútua de informação. Importante ressaltar a possibilidade, também, da não revelação intencional, quando for o caso. Alguns tipos de pesquisa são incompatíveis com a revelação completa (nesse caso, a pesquisa não poderá ser justificada se envolver risco e se o participante não estava ciente do risco) e alguns médicos alegam que a não revelação beneficia o paciente. Além do caso de pesquisas, com as ressalvas citadas, a não revelação intencional também pode se dar em caso de privilégio terapêutico, para paciente deprimido, instável, emocionalmente esgotado. Quanto ao uso terapêutico de placebos, utiliza-se o fundamento da beneficência, deixando de lado, de fato, a autonomia. Tal ação, também, exige uma discussão maior. No que diz respeito ao entendimento que se exige para implementar a autonomia, não se trata de entender tudo, mas pelo menos o diagnóstico, o prognóstico, natureza e propósito da intervenção, além das alternativas a ela, riscos e benefícios, com as recomendações. Quanto aos problemas no processamento das informações pelo paciente, deve-se levar em conta a sobrecarga de informações e o uso de termos não familiares. Deve ser comunicado os aspectos positivos e negativos da informação. Além disso, pode haver problemas de não aceitação e falsas crenças: a pessoa pode compreender a informação, mas não aceitá-la. Ela não acredita na doença que tem, por exemplo. E se há rejeição, pelo paciente, em receber informações? Elas não devem ser impostas. Aqui, percebe-se o problema da renúncia ao consentimento informado. O paciente delega a autoridade da decisão ao médico ou pede para não ser informado. Surge, então, um problema prático: poderia uma renúncia geral abranger consentimento específico? Uma testemunha de Jeová que autorize tudo para se salvar, autorizou a transfusão de sangue? Como elementos do consentimento, tem-se, então, uma decisão em favor de um plano e autorização do plano escolhido. No que diz respeito à voluntariedade necessária no consentimento informado, a pessoa deve ser independente em relação às influências manipuladoras e coercitivas de outros. Voluntariedade não é autonomia porque a pessoa pode ter vontade sob uso de droga, por exemplo. Porém, a influência, nem sempre é controladora. Ela pode ser em forma de coerção (ameaça séria de dano ou violência), persuasão (a pessoa é convencida a acreditar em algo pelo mérito das razões expostas por outra pessoa), manipulação (conduta que inclina a pessoa a fazer o que o manipulador quer). De certo que a coerção e manipulação anulam a autonomia da pessoa. Por outro lado, existem as decisões substitutas, para pacientes não autônomos. Neste caso, pode-se utilizar o melhor interesse, o julgamento substituto e a pura autonomia. No julgamento substituto, o paciente tem o direito de decidir, mas é incapaz de exercê-lo. Por isso, nomeia-se um substituto seu. Só é aplicável para paciente que já foi capaz e a aquele que pode tomar a atitude que o paciente tomaria. Pela pura autonomia, usa-se de julgamentos autônomos feitos anteriormente de forma explícita pelo paciente sem autonomia. A questão é quem decidir qual decisão substituta adotar. É necessária uma reflexão que leva à superação do paternalismo médico, para que a tomada de decisões seja de forma conjunta, como manifestação do consentimento informado. Vê-se, nitidamente, que o juramento de Hipócrates e os códigos clássicos caracterizam-se pelo paternalismo, como se o paciente fosse uma criança. Durante muito tempo o paternalismo determinou a tradição médica. Ficava evidenciada a superioridade moral do médico. Porém, abusos fizeram com que tal paternalismo começasse a ser questionado. Surgiu a consciência de que todo doente é sujeito e não pode ser objeto nem de beneficência. Os pacientes começaram a exigir uma participação ativa no diagnóstico e no prognóstico. Surgiu então a exigência do consentimento informado. Os primeiros direitos dos pacientes, então, surgem do princípio da autonomia. Ou seja, o sujeito tem o direito de decidir autonomamente a aceitação ou rejeição do que se quer fazer com ele, tanto no diagnóstico quanto na terapêutica. A superação do paternalismo não significa, necessariamente, a introdução de uma perspectiva contratualista, porque falta igualdade no intercâmbio. Não é transferir a responsabilidade do médico para o enfermo também, mas promover, no enfermo, a subjetividade e a autonomia. Com tais questões levantadas e em discussão, S. Mill propôs que se leve em consideração a seguinte regra: enquanto a ação de um agente autônomo não infringe a ação de outro agente autônomo, ele deve ser livre de implementar a ação que quiser. Neste caso, teria a resposta a uma questão já proposta: o aborto de uma gravidez de uma adolescente de 14 anos que não deseja tal interrupção, contra a vontade de seus representantes legais.      As escolhas não devem ser decididas por outros, mesmo que fossem objetivamente para o bem do sujeito. Isso é o autogoverno decorrente da autonomia. Assim, a autonomia de qualidade é o próprio consentimento informado, para prevenir a ignorância. O consentimento deve ser genuinamente voluntário e basear-se na revelação adequada das informações. Leva-se em consideração a competência para tal consentimento, em razão das condições físicas e psicológicas, dependendo do contexto apresentado. A competência é determinada, então, por três condições: capacidade de tomar decisões baseado em motivos racionais; capacidade de chegar a resultados razoáveis através de decisões e a própria capacidade de tomar decisão. As questões problemáticas da bioética no que tangem à autonomia do paciente são inúmeras. Não há uma resposta padrão a todos os casos, mas, havendo dúvida sobre a capacidade, competência, voluntariedade e entendimento, alguém deve estar autorizado a decidir. Claro que, em primeiro lugar o próprio enfermo deve decidir. Se este não pode, o seu melhor interesse deve ser respeitado. Tal “melhor interesse, com certeza, ocorre quando a medicina realiza os seus objetivos constitutivos: prevenir, curar, ter o cuidado de reabilitar uma função e aliviar a dor. Se não busca nada disso, com certeza, não há interesse do paciente. Também deve se levar em conta qual escolha faria o enfermo se estivesse consciente, através de sua biografia, para verificar os seus valores, projetos e esperanças. 4.2. Não maleficência Este princípio determina a obrigação de não infligir danos a quem quer que seja de maneira intencional. Na ética médica, ele esteve intimamente associado a máxima “acima de tudo, não causar dano”. De acordo com alguns autores, este princípio está relacionado com o juramento de Hipócrates, ligado a ética médica, quando em um trecho do referido juramento é dito “usarei o tratamento para ajudar o doente, de acordo com a minha habilidade e com o meu julgamento, mas jamais o usarei para lesá-lo ou prejudica-lo”. Importante se faz, analisar o princípio da não maleficência para identificar suas implicações para bioética. Alguns autores não estabelecem distinções entre a beneficência e a não maleficência, mas para Beauchamp e Childress “combiná-los obscurece distinções relevantes”. Pois as obrigações de não causar danos ou prejudicar (como matar, mutilar, roubar) são completamente diferentes das obrigações de ajudar os outros. Não é tarefa fácil identificar qual desses dois princípios possui maior importância, dependendo do caso concreto os danos (por exemplo, furada de agulha) são desconsiderados em prol do benefício que dele advém (por exemplo, a cura de uma doença). Importante caso é lembrado por Beauchamp e Childress para analisar os limites entre os princípios da beneficência e da não maleficência. “Robert Mcfall estava morrendo de anemia aplástica, e seus médicos recomendaram um transplante de medula óssea extraído de um doador geneticamente compatível, o que faria com que suas chances de sobreviver por mais um ano passassem de um índice de vinte e cinco por cento para um intervalo de quarenta a sessenta por cento. O primo do paciente, David Shimp, concordou em se sobmeter aos exames para determinar se seria um doador adequado. Depois de completar os exames de compatibilidade de tecido, ele se recusou a fazer o exame de compatibilidade genética. Havia mudado de ideia sobre a doação”. Sendo ajuizada uma ação, para obrigar o primo a realizar os exames restantes, e caso desse positivo, a se submeter obrigatoriamente ao procedimento, o advogado do enfermo argumentou que ao concordar em se submeter ao primeiro exame e depois desistir havia provocado um prejuízo enorme ao paciente, considerado um atraso de proporções críticas, o que teria violado o princípio da não maleficência. O juiz decidiu em negar o pedido, pois considerou que o primo não violou nenhuma obrigação legal, mas que sua atitude foi moralmente reprovável. Este caso serve para constatar a dificuldade em identificar as obrigações específicas implicadas pelos princípios da não maleficência e da beneficência. Para se conceituar o principio da não maleficência, é indispensável a utilização dos termos prejudicar ou lesar, estes querem dizer: fazer mal, cometer injustiça ou violação. Para Beauchamp e Childress há diferença entre prejudicar e lesar. Lesar envolve prejudicar os direitos de alguém, enquanto prejudicar não envolve necessariamente uma violação. Em conclusão, o principio da não maleficência pressupõe que é dever de todos, proteger as pessoas contra alguns tipos e graus de danos, sendo dever ainda, evitar que danos sejam causados, para os principais autores da bioética, existe uma verdadeira obrigação positiva em proporcionar benefícios, tais como, a assistência à saúde. 4.3. Beneficência      Outro importante princípio da bioética, e que decorre naturalmente do princípio da não-maleficência, é o princípio da beneficência. De fato, a beneficência, como a etimologia indica (ben-facere), refere-se à ação a ser feita. Ela comporta dois fatores: não fazer o mal ao próximo ou, melhor, positivamente, fazer-lhe o bem. Assim, por exemplo, no campo da saúde, esses dois aspectos podem ser traduzidos do seguinte modo: não usar a arte médica para causar males, injustiças ou para prejudicar; aplicar os tratamentos exigidos para aliviar o doente, melhorar seu bem-estar e, se possível, faze-lo recobrar a saúde. É, pois, ao mesmo tempo um dever, uma virtude, um princípio, um valor, a palavra dever designando diretamente a obrigação moral ou a norma; a virtude, a atitude interior; o princípio, a inspiração e a legitimação; o valor, uma espécie de objetivo a ser atingido. “O Princípio da Beneficência não nos diz como distribuir o bem e o mal. Só nos manda promover o primeiro e evitar o segundo. Quando se manifestam exigências conflitantes, o mais que ele pode fazer é aconselhar-nos a conseguir a maior porção possível de bem em relação ao mal.” Nesse sentido, percebe-se que Frankena aproxima bastante a beneficência da não-maleficência, na medida em que este estabelece um non nocere (não fazer o mal), como já visto. Por seu turno, o Relatório Belmont seguiu a mesma tendência do pensamento de Frankena, isto é, incluiu a Não-Maleficência como parte da Beneficência. O Relatório estabeleceu que duas regras gerais podem ser formuladas como expressões complementares de uma ação benéfica: a) não causar o mal e  b) maximizar os benefícios possíveis e minimizar os danos possíveis. Para José Roque Junges, segundo o relatório Belmont, estes princípios querem ajudar aos cientistas, sujeitos de experimentação, avaliadores e cidadãos interessados em commpreender os conceitos éticos inerentes à experimentação com seres humanos. O Relatório Belmont relaciona-se com a experimentação em seres humanos. A prática clínica e assistencial não entrava em seu horizonte. Logo se colocou a questão: não seria possível aplicar estes princípios ao exercício da medicina, livrando-o do velho enfoque de deontologia profissional? Como dito anteriormente, Beauchamp e Childress distinguem a beneficência da não-maleficência, aduzindo que a beneficência corresponde a uma ação feita no benefício de outros, sendo aquele que estabelece uma obrigação moral de agir em benefício dos outros, ao tempo ainda em que também destaca ser importante não confundir estes dois últimos conceitos com a benevolência, que é a virtude de se dispor a agir no benefício dos outros.                   Ao que se percebe, a questão da moral e da ética termina por permear a todos os princípios trabalhados pela bioética, estando ambos intimamente ligados. 4.4 Justiça O quarto princípio a ser estudado é o princípio de justiça. Justiça, em termos de bioética, refere-se à igualdade de tratamento e à justa distribuição das verbas do Estado para a saúde, a pesquisa, e a prevenção, para todos aqueles que fazem parte da sociedade. Para Guy Durand, “há justiça quando se obtém o que se merece, recebe-se o que é devido, colhe-se aquilo a que se tem direito”. A origem histórica do princípio da justiça remonta ao filósofo Aristóteles, fundador da ética como ciência, em meio à crise ética grega, o pensador examina a justiça como uma excelência moral fundamental, a maior das virtudes, o faz na sua obra  “Ética a Nicômaco”, Livro V, e, a partir da análise do comportamento justo e do injusto, proclama a justiça distributiva e a corretiva – esta última subdividida em justiça comutativa e judicial – distinção aceita de maneira geral e prestigiada até os dias atuais. Pela doutrina ética, podem ser analisados dois tipos de justiça, a justiça comutativa se refere à justa relação entre dois indivíduos, dois grupos, à retidão nas trocas. Seria dar a cada um o que lhe é devido, devolver exatamente o que lhe foi tomado de empréstimo, o que foi prometido, fornecer um salário adequado ao trabalho fornecido. E a Justiça distributiva, que se refere antes à relação entre a autoridade e o individuo, o individuo e a autoridade. Ela diz respeito à justa repartição dos encargos e das vantagens da vida social. De modo mais concreto, designa, por um lado, a distribuição equitativa dos custos e benefícios na sociedade (impostos, recursos, privilégios) e, por outro, o justo acesso a esses recursos. Na bioética fala-se mais na justiça distributiva que na cumulativa. Podendo significar, por exemplo, a retidão na alocação de recursos, no acesso a saúde proporcionado por esses recursos. Como objetivo do princípio da justiça, a doutrina costuma enfatizar que seria evitar a exploração de certos grupos de pessoas, por exemplo, crianças, prisioneiros, negros em pesquisas e desigualdade no acesso a tratamentos, transplantes, entre outros. Da análise da literatura básica da Bioética são listadas oito concepções de justiça, ou princípios materiais de justiça: a) O mérito pessoal b) O valor social de um indivíduo c) O bem do maior número d) O respeito da livre escolha e) A prioridade aos mais desfavorecidos f) Os tratamentos fundamentais de cada um g) Igualdade de tratamento em casos similares h) A referência ao acaso. As teorias “O mérito pessoal, valor social de um indivíduo; bem do maior número”, estão ligadas à escola utilitarista; Já “O respeito da livre escolha”, está ligada a escola liberalista; as “A prioridade aos mais desfavorecidos, Os tratamentos fundamentais de cada um, Igualdade de tratamento em casos similares” são correntes do igualitarismo. A maioria das sociedades recorre a vários desses princípios materiais para formular políticas públicas, valendo-se de diferentes princípios em esferas e contextos. Por exemplo, os Estados Unidos filia-se a uma corrente mais liberalista temperada por um sistema de seguridade social para os mais desfavorecidos e para as pessoas idosas. Já o Canadá, está vinculado às corrente utilitarista e igualitarista. 5. Conclusão O presente trabalho teve por objetivo analisar os princípios mais relevantes da Bioética. Para tanto, inicialmente, buscou-se proceder a uma breve análise do desenvolvimento da bioética como ciência. Verificou-se que o termo “bioética”, foi inicialmente proferido pelo médico americano Van Rensselaer Potter, através de um artigo seu, publicado em 1970: Bioethics, the Science of Survival. Tem-se que a bioética se desenvolveu em razão de diversos fatores, como por exemplo, desenvolvimento tecnocientífico, a manifestação dos direitos individuais, a modificação da relação médico paciente e o pluralismo social, o crescimento econômico do pós-guerra. Com o crescimento científico, ocasionado por pesquisas, diversos questionamentos éticos acabam surgindo via de consequência. Chegou-se ao conceito de bioética como sendo o estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, enquanto esta conduta é examinada à luz de valores e princípios morais. Neste breve ensaios foram elencados os diversos princípios mencionados pela doutrina como sendo informadores da bioética. Entretanto, foram selecionados os quatro princípios considerados mais importantes para uma análise mais detida, são eles: a autonomia, a beneficência, a não maleficência e a justiça. Quanto à autonomia, verificou-se que o conceito não é unívoco. Prevalecendo a concepção de que se trata do poder de tomada de decisão no cuidado da saúde. Beauchamps e Childress, os principais autores analisados, entendem que a autonomia é a atuação livre de interferências dos outros, além da livre de limitações pessoais que obstam a escolha expressiva da intenção. É a liberdade e qualidade do agente. É com base nas concepções destes autores, precursores na bioética, que o presente estudo se desenvolve. Não maleficência é princípio que determina a obrigação de não infligir danos a quem quer que seja de maneira intencional. O Princípio da Beneficência não nos diz como distribuir o bem e o mal. Só nos manda promover o primeiro e evitar o segundo. Quando se manifestam exigências conflitantes, o mais que ele pode fazer é aconselhar-nos a conseguir a maior porção possível de bem em relação ao mal. E o princípio da justiça se refere à igualdade de tratamento e à justa distribuição das verbas do Estado para a saúde, a pesquisa, e a prevenção, para todos aqueles que fazem parte da sociedade. Pretendeu-se fazer uma abordagem geral sobre os princípios da bioética para que seja possível ter uma visão ampla dos pontos básicos que norteiam a matéria.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-158/os-principios-da-bioetica/
Críticas abolicionistas à Lei Arouca: uma análise conjuntural teleológica
Esta pesquisa pretende descrever em que conjuntura ética e jurídica está inserida a Lei Arouca bem como a trajetória e contexto de sua criação. Inclusive, analisa-se de que modo a mesma contribui para a manutenção da exploração institucionalizada através do princípio dos 3R’s (replacement, reduction e refinement) e das ideologias do “tratamento humanitário” e do sofrimento “desnecessário”. Além do mais, será verificado o modo em que estes termos normativos atuam para manutenção do status jurídico de propriedade dos animais não-humanos a fim de tornar a indústria da experimentação científica mais produtiva e eficiente, vez que aumenta a adesão popular e silencia discussões acerca da validade de suas premissas. Ainda, examina-se a legitimidade destas normas em face dos dados científicos ora informados, a fim de descontruir as noções de “necessidade” incutidas nas leis de caráter bem-estarista, deste modo, dissolve-se as certezas elucidadas em seu discurso para a identificação de novos problemas. Por fim, serão enumerados os métodos alternativos capazes de manter os experimentos científicos sem a utilização de animais não-humanos.[1]
Biodireito
INTRODUÇÃO É de se esperar pelo prenúncio de Ruesch (1983, p. 675) quando elucida que mais cedo ou mais tarde a vivissecção será considerada ilegal, visto que é da vontade de todos os não humanos, bem como a de todos que cremos na Civilização, na verdadeira Democracia, no Estado de Direito e na Lei. Embora não seja do desejo de nenhum ser vivo a imposição da morte intempestiva, os seres humanos vêm, desde os seus primórdios, elaborando as mais diversas justificativas para exclusão dos não humanos de nossa comunidade moral. Algumas os entendem como predestinados pelo Criador à exploração do homem; outras os consideram como meros autômatos incapazes de sentir e, ainda, existem as que elaboram critérios para consideração de alguns seres vivos, no entanto, embora estes parâmetros estejam consideravelmente alargados, baseiam-se em perspectivas antropocêntricas. O fato é que em razão destes modelos ideológicos, por volta de 67 bilhões de animais terrestres, não humanos e sencientes (possuidores de sensibilidade para buscar prazer e evitar a dor) são mortos por animais humanos, ao ano, para fins de consumo. (HUMANE SOCIETY INTERNATIONAL, 2012). Para a experimentação científica, estima-se que o número de 100 milhões, somente nos Estados Unidos da América. (NATIONAL ANTI-VIVISSECTION SOCIETY, 2015a). Apesar dos sucessivos desastres e da comprovação da inutilidade do modelo, nos Estados Unidos da America, a maior parte da pesquisa médica é financiada pelo National Health Institute que possui o orçamento anual de 30 milhões de dólares em média. Cerca de 50% deste orçamento é entregue aos pesquisadores que realizam experimentos com o modelo animal. Quem decide o destino deste dinheiro são comitês formados pelos próprios cientistas que realizam pesquisas através da vivisseção. (GREEK, 2010). Estes investimentos estapafúrdios não ocorrem apenas quanto aos laboratórios de pesquisa, fornecedores de equipamentos e de animais também movimentam uma indústria milionária. O próprio comércio de camundongos no ano de 1999 correspondeu a 200 milhões de dólares, assim como os utensílios de contensão e eleminação de animais não humanos podem varias de 4 a 27 milhões de dólares a unidade. (GREEK; GREEK, 2002, P. 24 apud FELIPE, 2014, p. 144). Enquanto investimentos bilionários são feitos e para a manutenção de uma indústria infrutífera pelos EUA, incluindo os investimentos em guerra, cerca de 21 mil pessoas morrem de fome por dia no mundo, sem contar a AIDS, Malária, Pneumonia, Diarreia, Febre Amarela e entre outros (POVERTY.COM, 2016). No entanto, este país destina apenas 0,15% de seu PIB, para o fundo Oficial de Assistência ao Desenvolvimento (ODA) que intenta auxiliar os países extremamente pobres à saírem desta situação, quantia esta que passa longe do ideal seria de 0,7%. (SACHS, 2005, p. 6-7). Em suma, este estudo intenta, primeiramente, identificar de que forma a Lei Arouca, assim como todo o paradigma em que está inserida, é responsável pela manutenção da exploração institucionalizada de não-humanos, confrontando-a com as circunstâncias que a cercam, a partir do método dedutivo, eis que se parte de uma análise sistêmica geral para posterior relação com a lei específica, a partir de revisão bibliográfica. 1. SOBRE O HISTÓRICO-NORMATIVO E FINALIDADE DE CRIAÇÃO A conjuntura jurídica internacional mais recente e o histórico normativo brasileiro estão de acordo com o paradigma bem-estarista quanto à exploração de animais não-humanos para experimentação científica, baseando-se na ideologia do tratamento “humanitário”, que intenta promover melhorias na alimentação, condições do cativeiro e diminuição do estresse, respeitando padrões “éticos” para evitar o “sofrimento desnecessário”, ressaltando a obrigatoriedade de aplicação de anestésicos e outros métodos indolores, logo, não é um movimento contrário à vivissecção. Para tanto, aplica-se o princípio dos 3R’s (Replacement, Refinament, Reduction), divulgado por Russel e Burch através do seu livro The Principle of Humane Experimentation Tecnhique (1959), responsável por difundir o “critério humanitário” em práticas vivissecionistas (GREIF; TRÉZ, 2000, p. 67). Seguindo esse princípio, toma-se a premissa de que, na medida do possível, faz-se imperativa a substituição por métodos alternativos, a aplicação de métodos de menor invasão e a redução da quantidade de animais em teste. Em sentido contrário, o abolicionismo considera válido somente o princípio do 1R, ou seja, so      mente a substituição por meios alternativos que não utilizem animais. (GREIF; TRÉZ, 2000, p. 24). Cita-se como exemplo a Declaração Universal de Direito dos Animais proclamada em Assembleia da UNESCO (1978) que, embora não tenha força normativa, serve como carta de princípios para os países signatários, dentre eles o Brasil. Esta enuncia que todos os animais nascem iguais perante a vida e tem o mesmo direito de existência (art. 1º); o homem, sendo uma espécie de animal, não poderá exterminar outros, devendo pôr os seus conhecimentos aos seus serviços (art. 2º); nenhum animal deve ser maltratado, se for necessário matá-lo, que seja sem dor (art. 3º); considera a crueldade incompatível, ainda que para fins científicos, com a atribuição de direitos aos animais não-humanos, incentivando também o desenvolvimento e uso de métodos alternativos (art. 8º). (UNESCO, 1978). Não se pode olvidar que o bem-estarismo é vívido nesta declaração, na medida em que se promove a “necessidade” da morte por meios indolores. Embora se incentive a elaboração de métodos alternativos, reprimem-se apenas os experimentos ditos cruéis, ou seja, aqueles que promovem “sofrimento desnecessário”. Posteriormente, o International Guiding Principles for Biomedical Research Involving Animals (CIOMS, 1985) consiste em um documento com 10 princípios reforçadores da necessidade de consideração primeira de meios alternativos ao uso de animais no ensino e na pesquisa, conforme o sistema dos 3R’s, entretanto, eleva a importância de manutenção da experimentação, destacando o seu indispensável papel para o avanço da ciência. Em seguida, a European convention for the protection of vertebrate animals used for experimental and other scientific purposes (EUROPEAN UNION, 2001), descreve os animais não-humanos vertebrados como agentes passivos de obrigações morais, visto que possuem memória e capacidade de sofrimento, impondo limites em seu uso quando possível; bem como incentiva a preferência por métodos alternativos. Finalmente, a Diretiva 2010/63/UE do Parlamento Europeu e do Conselho (2010) entende que a exploração de animais para fins científicos e educacionais só deverá ser considerada quando não existir possibilidade alternativa, mencionando expressamente o princípio dos 3R’s em diversos momentos. Conclusivamente, todas estas normas, em alguma medida, entendem que o uso de animais poderá ser necessário, sem estabelecer objetivamente a motivação. No Brasil, a primeira regulamentação do uso de animais em testes científicos, condenando as condutas cruéis, foi o Decreto nº 24.645/34, considerando como maus-tratos a mutilação voluntária do animal, a menos que seja realizada em interesse do próprio, do homem ou da ciência (art. 3º) (BRASIL, 1934). Esse decreto foi promulgado por iniciativa da União Internacional de Proteção aos Animais – UIPA, sendo a primeira entidade de proteção brasileira, que importou a legislação vigente da Europa (DIAS, 2006, p. 155). Em seguimento, o Dec. Lei nº 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais) tipificou como contravenção a exposição pública de experimento científico doloroso ou cruel, ainda que para fins didáticos, segundo o art. 64, § 1º. (BRASIL, 1941). Percebe-se, portanto, que os experimentos científicos dolorosos não expostos ao público também não eram objeto de qualquer repressão, haja vista o potencial de gerar bem-estar ao homem sem molestar a integridade mental da coletividade. Posteriormente, a Lei nº 5.197/67, conhecida como o Código de Caça, em seu art. 14, possibilitou que cientistas de instituições registradas coletassem “materiais” (animais não-humanos) para a ciência, por meio da concessão de licença especializada (BRASIL, 1967). Finalmente, criada para tratar especificamente da experimentação em animais para fins científicos, a Lei nº 6.638/79 passou a exigir que os biotérios estivessem devidamente registrados e autorizados pelo órgão competente para a realização de experimentos (art. 2º); bem como proibiu a vivissecção sem anestesia e sem a supervisão de técnico especializado; inclusive, vedou-a em locais frequentados por menores de idade (art. 3º). Ademais, a lei estabeleceu a pena do art. 64 caput da Lei de Contravenções Penais no caso de descumprimento de qualquer obrigação prevista na referida Lei, punindo a reincidência com o cancelamento do registro do biotério (art. 5º, inc. I e II). (BRASIL, 1979). Em continuidade, a Constituição Federativa do Brasil de 1988, no art. 225, § 1º, inc. VII, vedou expressamente práticas que expunham o animal à crueldade, de forma genérica (BRASIL, 1988). Isso ocorreu em razão das mobilizações dos movimentos de proteção aos animais. Coube à Liga de Prevenção da Crueldade contra o Animal – LPCA, em conjunto com a União dos Defensores da Terra – OIKOS, presidida pelo então Deputado Fábio Feldman, e a Associação Protetora dos Animais São Francisco de Assis – APASFA, que deram cabo a um abaixo assinado para obter 30 mil assinaturas. Embora só tivessem conseguido 11 mil, o dispositivo descrito acima fora inserido (DIAS, 2006, p. 160). No intuito de regulamentar o mandamento Constitucional, cria-se a Lei de nº 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais) que, em seu art. 32, § 1º, criminaliza a realização de experimentos científicos dolorosos e cruéis, ainda que para fins didáticos e científicos, quando existirem métodos alternativos (BRASIL, 1998). Nota-se que há autorização legal para a ocorrência de crueldade, na medida em que se promove limitação tão somente quanto ao “sofrimento desnecessário”, contudo, compreende-se que a “necessidade do sofrimento” se tornou cada vez mais restrita considerando que a finalidade científica já não é automaticamente autorizadora da exploração, devendo-se, primeiramente, verificar a existência de recursos alternativos. Finalmente, o objeto principal desta análise, a Lei de nº 11.794/08 (Lei Arouca), surge para regulamentar a disposição genérica da Constituição Federal, especificamente no âmbito do ensino de graduação e na pesquisa. O projeto da lei foi elaborado por uma ativista juntamente com o Dr. Silvio Vale (pesquisador da Fiocruz), apresentada pelo Deputado Sergio Arouca ao Congresso Nacional, no entanto, a Academia Brasileira de Ciências não somente recusou o projeto como apresentou o seu próprio na tentativa de desconsiderar o então Projeto de Lei. Nessa mesma ocasião, a Sociedade Educacional “Fala Bicho”, a Liga de Prevenção da Crueldade contra o Animal – LPCA e a Frente Brasileira para a Abolição da Vivissecção – FBAV apresentaram um Projeto de Lei com uma leitura abolicionista para a vivissecção. Este foi encaminhado ao Deputado Fernando Gabeira e foi apensado ao PL do Deputado Sérgio Arouca. Em seguimento, militantes cariocas procuraram a Academia Brasileira de Ciências, no Rio de Janeiro, e passaram a elaborar em conjunto um projeto de lei para a regulamentar a experimentação científica em animais, que substituiria o PL da Lei Arouca. Este trabalho foi encaminhado ao Congresso Nacional e transformado no PL nº 3.964/97, também apensado ao documento anterior. Os projetos continuaram tramitando até aprovação da forma que conhecemos hoje, como a Lei de nº 11.794/08. (DIAS, 2008, p. 139-140). Esta lei põe em destaque o princípio dos 3R’s e os demais sustentáculos bem-estaristas, incluindo a morte por tratamento “humanitário” (art. 3º, inc. IV); a aplicação de “cuidados especiais” antes e depois do experimento (art. 14, caput); a aplicação de métodos substitutivos quando possível (art. 5º, inc. III); a redução do número de animais explorados, atenuando-se ao máximo a sua dor pela aplicação de sedação e analgésicos (art. 14, § 4º e 5º). Inclusive, o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal – CONCEA, poderá restringir, ou mesmo proibir, a ocorrência de práticas que sejam extremamente agressivas (art. 15). (BRASIL, 2008). Após a observação dos textos normativos ora descritos, é possível dizer que, embora a Constituição Federal proíba, genericamente, práticas cruéis, estas continuam a ser permitidas em virtude da existência de uma “necessidade”, ou seja, quando entendemos que há potencial de gerar bem-estar para a nossa espécie. Quando partimos da premissa de que interesses de outras espécies sempre devem ser colocados em segundo plano ao julgarmos, estamos internalizando uma lógica “especiecista”, conceito criado por Rychard Ryder na década de 70 que, em síntese, trata-se da ideologia de que é moralmente justificável dar preferência a certos seres vivos pelo simples fato de serem membros da espécie homo sapiens. (SINGER, 2006, p. 13). Nas atuais circunstâncias de exploração institucionalizada, não podemos entender que o sentido de “crueldade” presente no art. 225, § 1º, inc. VII, da Constituição Federal de 1988 possa ser compreendido da mesma forma quando associado aos humanos. Exemplifica-se com o conceito do verbete cruelty apresentado pelo The Free Dictionary.com (2012), que designa a crueldade em humanos como qualquer comportamento abusivo e ultrajante para o homem; qualquer imposição deliberada de dor física e mental. Quanto a sua aplicação em animais, a crueldade é considerada somente quando há influição de dor ou morte sem “necessidade”. Assim sendo, entende-se mandatória a investigação da extensão desta “necessidade”, visto que a regulamentação normativa bem-estarista tem o intuito de estabelecer limites somente no que a tangencia. Nessa lógica, questiona-se quando o uso de animais é “necessário” e o que ela realmente significa. Quando recorremos ao ordenamento jurídico para tentar compreender estes termos, percebemos que o sentido aplicado nos conflitos entre humano e não-humano é completamente diverso de quando estamos tratando de conflito entre humanos. Em nosso sistema normativo, não há regular admissão de práticas que permitam sacrifícios, mesmo quando benefícios poderiam ser gerados para a maioria. Por exemplo, não há permissão jurídica para realização de pesquisas dolorosas em humanos, sem consentimento, mesmo que tenham como objetivo identificar a cura para o câncer, visto que consideramos todos como possuidores de valor inerente e igual formalmente. A contrário senso, os animais são constantemente abatidos, por meio de autorização legal, em razão da possibilidade de nos gerar “bem-estar”, ou seja, tudo aquilo que é capaz de nos agregar bens de valor. Isto ocorre, pois, humanos e animais são entidades diferentes, sendo uma reconhecida como pessoa e a outra como propriedade. Logo, em um conflito entre pessoas, ambos os direitos serão considerados de forma equivalente; já os animais, sendo compreendidos pela lei como incapazes de possuir direitos, embora sejam alvo de eventuais proteções para atender fins de terceiros, seus interesses não serão considerados de forma direta (FRANCIONE, 1995, p. 10-23). Desta feita, embora se possa afirmar que as leis anti-crueldade sejam capazes de limitar a exploração, o status de propriedade é determinante no que diz respeito ao alcance desta proteção, pois conduz a forma de tratamento político e jurídico dos animais não-humanos, valorando-os na medida em que são úteis e produtivos, e não a partir dos seus próprios interesses, já que legalmente não possuem. Assim, em um conflito entre humanos e não-humanos o resultado é predeterminado pelo tratamento jurídico de ambas as entidades, tendo em vista que a mera propriedade não possui qualquer interesse jurídico a ser protegido. (FRANCIONE, 1995, p. 14). O status de mera “coisa” e a resultante inviabilidade de se balancear interesses são acobertados pelos termos normativos já apontados, que servem para legitimar a opressão e torná-la ainda mais eficiente, na medida em que desvia as atenções de reflexões éticas e geram aceitação a partir de uma ideologia de proteção. Isto ocorre porque associamos o sentido destes quando empregados em uma linguagem ordinária, contudo, não é o mesmo denotado neste paradigma legal. Na experimentação animal, observamos a constante menção ao tratamento “humanitário”, quando se está falando em tamanho mínimo de cela, e sofrimento “desnecessário”, quando se está ressaltando a importância da aplicação de anestésicos; entretanto, embora sejam termos revestidos de uma ideologia protetiva, o significado comum destes é deveras distinto do utilizado pelo bem-estarismo. Seres humanos não podem, formalmente, ser explorados a ponto de abrir mão de direitos indisponíveis, sem qualquer consentimento. Destaca-se, portanto, que esses termos normativos são construídos pelo grupo dominante, sendo visível a disparidade econômica entre as entidades. (FRANCIONE, 1995, p. 16). Desta forma, o revestimento jurídico que se reportar ao tratamento “humanitário” e ao sofrimento “desnecessário” é responsável por legitimar a hegemonia humana. Prontamente, se assumimos que os não-humanos são mera propriedade, cuja existência é limitada à satisfação de nossos interesses, a única dúvida seria determinar em quais circunstancias a lei interferirá no uso, havendo sempre consideração primeira do direito do proprietário. (FRANCIONE, 1996, p. 25-30). Nesse contexto, nota-se que o nosso sistema jurídico é estruturado para entender qualquer exploração, que não seja totalmente gratuita e que tenha potencial para gerar bem-estar para humanos como “necessária”. Assim sendo, o tratamento dado pela lei aos animais é determinado, não por questões morais, conforme ludibriam os termos normativos, mas na medida em que aumenta a eficiência da exploração, utilizando-se do mínimo para prover o máximo e, assim, valoriza-se a propriedade. Não é à toa que este status jurídico de mera coisa, já foi imposto às pessoas, continue sendo atribuído a animais, pois não há outro que melhor atenda à finalidade de agregar bens de valor ao homem, sendo este o desígnio do bem-estarismo. (FRANCIONE, 1995, p. 23). 2. DOS ANIMAIS NÃO HUMANOS ABARCADOS O art. 2º da Lei Arouca dispõe que a mesma se aplica aos animais das espécies do filo Chordata e subfilo Vertebrata. Logo em seguida, o art. 3º clarifica que, para as finalidades da Lei, animais do Filo Chordata são aqueles que possuem, como características exclusivas, ao menos na fase embrionária, a presença de notocorda, fendas branquiais na faringe e tubo nervoso dorsal único; o subfilo Vertebrata seria constituído por animais cordados que têm, exclusivamente, um encéfalo grande encerrado em uma caixa craniana e uma coluna vertebral. (BRASIL, 2008). Para melhor compreensão, o Reino Animália, trata-se de um grupo de seres vivos que se distingue dos demais por serem multicelulares e heterótrofos (não produzem seu próprio alimento), pois são aclorofilados, englobando desde as esponjas marinhas, até os seres humanos. Nesse reino, há o filo dos Chordatas, que possuem as características já descritas, e dentro do mesmo há três subfilos: 1. Urochordata, 2. Cephalochordata e 3. Vertebrata. (SOBIOLOGIA, 2008). Embora a Lei estabeleça determinações apenas ao subfilo Vertebrata, a Diretiva 2010/63/UE do Parlamento Europeu e do Conselho (2010), no capítulo 1, artigo 1, nº 3, em que trata das provisões gerais, inclui também os Cephalopodes vivos em seu âmbito de regulamentação, estando abarcados por serem capazes de vivenciar dor e sofrimento. Ainda, reafirmando tal constatação, Tanner (2009, p. 7) certifica que os Cephalopodes possuem um sistema nervoso complexo, atividade cerebral, sendo capazes de vivenciar felicidade, tristeza, prazer e dor. Em suma, são considerados seres sencientes. 3. A REGULAMENTAÇÃO NO ÂMBITO DA PESQUISA E A CONJUNTURA CIENTIFICA ATUAL A vivissecção pode ser entendida como qualquer experimento científico realizado em animais vivos, não havendo necessidade de corte para que se caracterize, embora possa ser questionada a relevância de seus propósitos em razão do grande número de ensaios de desígnios supérfluos como, por exemplo, o sacrifício de um cão para mensurar a agonia de Cristo durante a sua crucificação, ou a extração das vísceras de uma cadela prenha para analisar o seu instinto materno. (RUESCH, 2008, p. 30-33). Estima-se que quase 100 milhões de animais são utilizados ao ano nos EUA para fins científicos, movimentando uma indústria multibilionária; compreendendo o ramo farmacêutico, universitário, militar armamentista e laboratorial. Em linhas gerais, os animais não-humanos são utilizados como modelos vivos de sistemas biológicos e fontes de tecido, células e outros órgãos. Nessa perspectiva, a experimentação animal é defendida como um meio para entender o comportamento e desenvolvimento de organismos vivos e tratar doenças. Os animais utilizados com maior frequência são ratos, rãs, camundongos e pássaros. Entretanto, The Animal Walfare Act (1966), a lei que regulamenta a experimentação científica em animais nos EUA, não os abrange em sua contagem. Entre os animais considerados pela lei, no ano de 2014, foram postos a testes, tanto para educação quanto para pesquisa, 59.358 cães; 169.528 porcos da índia; 10.315 ovelhas; 57.735 primatas não-humanos; 121.930 hamsters; 21.083 gatos; 27.393 demais animais de fazenda; 45.392 porcos; 150.344 coelhos; 171.735 de outras espécies, perfazendo um total de 834.453 mil. (NATIONAL ANTI-VIVISSECTION SOCIETY, 2015a). Embora a Lei Arouca não exija o registro do número de animais utilizados, é obrigatório que as instituições estejam devidamente credenciadas pelo CONCEA, inclusive, determina-se que referido conselho mantenha cadastro atualizado dos procedimentos realizados no país (art. 5º, inc. II, III e VII). Além disso, impõe como condição indispensável para o credenciamento, a constituição prévia de Comissões de Ética no Uso de Animais, chamadas de CEUAs (art. 8º), integradas por médicos, veterinários, biólogos, docentes, pesquisadores e um representante de sociedades protetoras dos animais (art. 9º, inc. I, II e III). É de sua competência examinar previamente os experimentos realizados pela instituição, manter cadastro atualizado dos procedimentos realizados e notificar o CONCEA de qualquer ocorrência (art. 10, inc. I a VI). Ainda, compete ao Ministério da Ciência e da Tecnologia licenciar as atividades destinadas à criação de animais para a ciência (art. 11), sendo a fiscalização de competência dos Ministérios da Agricultura; da Pecuária e Abastecimento; da Saúde; da Educação; da Ciência e Tecnologia; e do Meio Ambiente, em suas respectivas áreas (art. 21). (BRASIL, 2008). Contudo, Greif e Tréz (2000, p.72) asseveram que, na prática, os comitês têm por função principal fornecer certificados que avalizem os cientistas a publicarem seus trabalhos em periódicos dos quais exijam o cumprimento dos requisitos estabelecidos em lei, seja qual for o “refinamento” utilizado com base no princípio dos 3R’s. Inclusive, observam que a maioria dos membros desses conselhos é composta por vivissectores que não recusariam aprovar projetos do seu interesse. Sobre os experimentos realizados, verifica-se que há diversos procedimentos para inúmeras finalidades. Na indústria química e cosmética, por exemplo, o papel da vivissecção é tornar os componentes tóxicos aceitáveis e seguros para o público. Toda a garantia é oriunda de práticas vivissecionistas que atestam a toxidade, nível de irritação da pele, carcinogenicidade, mutagenicidade, teratogenicidade (defeitos no nascimento), toxidade reprodutiva e outros. Os métodos mais utilizados são: 1. Draize Skin Test, para verificar a sensibilidade cutânea; 2. Draize Test, que mede o nível de irritação ocular de determinada substância; 3. Lethal Dose 50, que avalia o nível de toxidade suficiente para matar 50% da população em teste. (GREIF; TRÉZ, 2000, p. 9-10). No Draize Skin Test, depila-se o corpo do animal para aplicação da substância tóxica a ser testada, o que ocasiona muitas vezes o enrijecimento cutâneo, úlceras e edemas. É uma experiência extremamente dolorosa e incoerente visto que as constituições epidérmicas da pele humana são diferentes das postas em testes (peles de porcos, coelhos e roedores). A propósito, as reações imunológicas são características de cada espécie, logo, não há como considerar a credibilidade do resultado. (GREIF; TRÉZ, 2000, p. 9). Já o teste de irritação ocular (Draize Test) se propõe a verificar as reações oculares e perioculares aos componentes químicos, aplicando uma solução concentrada diretamente no olho de coelhos albinos, que permanecem em caixas de contenção com o pescoço imobilizado (alguns chegam a quebrá-lo tentando escapar) e as pálpebras ficam presas em grampo para que o olho se mantenha constantemente aberto, sem a aplicação de analgésico, pois altera o resultado do experimento. Isso pode durar de 3 a 18 dias, tendo como consequência processos inflamatórios das pálpebras e íris; úlceras e hemorragias. Entretanto, os olhos dos coelhos apresentam estrutura e fisiologia diversa, visto que a sua córnea é mais delgada e suas glândulas lacrimais são menos eficientes, possuindo ainda uma membrana nictitante (uma espécie de 3ª pálpebra) que nós não possuímos, o que já demonstra uma grande diferença no pH do humor aquoso. Desta feita, não há como realizar uma leitura de alta confiabilidade, visto que ocorrem enormes variações de laboratório para laboratório. (GREIF; TRÉZ, 2000, p. 10). E, por fim, o Lethal Dose 50, consiste em verificar a dose necessária de uma substância para matar 50% da população em teste, forçando o animal a ingerir uma determinada quantidade de substâncias através de uma sonda gástrica que muitas vezes mata o animal por perfuração. Os efeitos geralmente observados são convulsões, dispneia, diarreia, úlceras, emagrecimento, postura anormal, epistaxe (sangramento nasal), hemorragias, lesões pulmonares, hepáticas e renais, coma e morte. As críticas são em relação à falta de um método científico confiável, haja vista que os resultados são afetados pela espécie, idade, sexo, condições de alojamento, temperatura, época do ano, hora do dia e o método de administração da substância. (GREIF; TRÉZ, 2000, p. 10). Vê-se que tais experiências são extremamente cruéis e, embora o § 5o do art. 14 da Lei Arouca determine que as práticas capazes de causar dor ao animal devem se desenvolver sob sedação, analgesia ou anestesia adequada (BRASIL, 2008). Ruesch (2008, p. 91) assevera que o anestésico serve somente para a opinião pública, pois é incompatível com as observações pós-operatórias em ensaios sobre o sistema nervoso, dor, estresse, conduta, com todos os experimentos de larga duração, com testes em que se causa previamente o dano para depois estudá-lo, com exames que medem toxidade; e com os que verificam a eficácia preventiva de remédios. Logo, na prática, raramente se utiliza a anestesia. Quando aplicada, administra-se apenas no começo do procedimento para manter o animal quieto, ou seja, o efeito é de curta duração e não é capaz de inibir a dor pós-operatória, que pode durar por anos. O seu verdadeiro intento é manter a vivissecção como prática regular na medida em que convence a população de que mera supressão da dor regulamentada por leis aparentemente severas, seria requisito autorizador suficiente para exploração científica do animal. Quanto à saúde humana, são realizadas pesquisas a respeito da Diabetes, Câncer, HIV/AIDS, doenças cardíacas e etc. Em 2006, The Diabetes Research Institute anunciou que, apesar de terem sido gastos milhões de dólares e 30 anos de pesquisa, descobriu-se que a estrutura interna da produção de insulina humana é dramaticamente diferente da dos roedores, portanto, essas pesquisas não são mais relevantes para o estudo humano. (NATIONAL ANTI-VIVISSECTION SOCIETY, 2015b). Em relação ao câncer, é uma doença extremamente individual pois os tumores e as reações variam de pessoa para pessoa em razão da variação genética individual, logo, induzir câncer em animais não-humanos que possuem outro modelo genético, imunológico e celular, não é um jeito eficaz de estudar a doença, inclusive Robert Weinberg, pioneiro em pesquisas sobre o câncer, afirma que milhares de dólares são desperdiçados com esses modelos (NATIONAL ANTI-VIVISSECTION SOCIETY, 2015b). A respeito da AIDS, o modelo animal é utilizado ostensivamente desde a década de 80. Muitos já foram infectados com o vírus HIV e não desenvolveram a síndrome da mesma forma que os humanos, até mesmo os chimpanzés não desenvolvem a AIDS do mesmo jeito como os humanos. Muito progresso já se fez no que tange à compreensão da doença e como ela se espalha, mas, pouco desse avanço foi graças ao modelo animal utilizado, e sim em decorrência de estudos epidemiológicos e clínicos que nos fizeram aprender sobre o curso natural da doença e seus fatores de risco associados. O mesmo insucesso também é visto nas pesquisas referentes às doenças da artéria coronária, visto que já foram utilizadas 20 espécies diferentes de animais, incluindo cangurus e pelicanos, porém, não se obteve nenhum sucesso. Os avanços quanto à prevenção se dão graças aos estudos epidemiológicos, autópsias, pesquisas in vitro, observação clínica e técnicas cirúrgicas testadas em cadáveres humanos. (NATIONAL ANTI-VIVISSECTION SOCIETY, 2015b). Ademais, uma das maiores críticas à experimentação científica em animais não-humanos são os elementos intervenientes que comprometem o resultado. Entre os fatores ambientais externos estão: a) a temperatura; b) umidade relativa; c) ruído; d) trocas de ar; e) intensidade da luz; f) dieta g) o ambiente social que a cobaia está inserida, considerando o grupo social e o tamanho desta; h) o ambiente biológico, considerando infecções virais, bacterianas e parasitárias; i) o fator emocional da cobaia, incluindo o medo e o stress desde o seu transporte. Quanto aos fatores ambientais internos, verificam-se que padrão genético, sexo, idade e variações circadianas também poderão alterar o resultado do experimento. Logo, estas implicações devem ser consideradas, tendo em vista que os animais de laboratório realizam grande mudança no metabolismo como forma de compensar variações do meio ambiente, portanto, sofrem alterações em sua fisiologia, o que influencia diretamente no resultado do experimento (ANDRADE; PINTO; OLIVEIRA, 2002, p. 289-294). Não é sem razão que cientistas renomados como o PhD Linus Pauling, vencedor por duas vezes do Prêmio Nobel e o doutor G. H. Walker, médico do Royal Hospital e Children’s Hospital em Sunderland, na Inglaterra, classificaram categoricamente como inúteis as pesquisas que utilizam modelo animal como referência para o homem. O primeiro, no que diz respeito às investigações contra o câncer, afirma que todos deveriam saber que se tratam de fraude. Já o segundo considera que o estudo da fisiologia humana através da experimentação animal é o erro mais grotesco cometido pela atividade intelectual da história humana. (GREIF; TRÉZ, 2000, p. 40). Considerando essas informações, Ramberck (apud FELIPE, 2014, p. 96-97) desmistifica algumas afirmativas associadas ao modelo animal de investigação científica para a medicina, entretanto, descrever-se apenas as mais relevantes: O primeiro mito é a ideia de que todo o conhecimento médico estaria fundamentado em experiências com animais. Contudo, o autor assevera que este conhecimento é pautado na observação de animais humanos doentes e sadios. Afirma também que muitos medicamentos foram desenvolvidos sem experiências em animais, à base de vegetais, incluindo o ácido acetilsalicílico (contra febre) e o ácido fenobarbital (contra a epilepsia). (RAMBERCK, 1997, p. 11-17 apud FELIPE, 2014, p. 96). Em segundo lugar, tem-se a ideologia de que a expectativa de vida aumentou devido aos experimentos com modelo animal. O autor esclarece que, na realidade, este crescimento teria ocorrido em razão do declínio das doenças infectocontagiosas e a consequente diminuição da mortalidade infantil devido à melhoria nas condições de higiene, alimentação e saneamento. (RAMBERCK, 1997, p. 11-12 apud FELIPE, 2014, p. 96). O terceiro mito é a respeito da ideia de que, somente com a experimentação animal, seria possível a pesquisa médica. Na verdade, existem os experimentos in vitro, como a cultura de microrganismos e células cujos resultados superam os experimentos em animais. (RAMBERCK, 1997, p. 12 apud FELIPE, 2014, p. 96). O último mito é a ideologia de que tais experiências são necessárias para encontrar a cura de doenças agressivas. No entanto, apesar do excesso de experimentos, como já foi dito, as doenças mais graves não se tornaram mais próximas da cura graças a essas práticas, ademais, não há dúvidas de que nós mesmos causamos a maioria delas através de maus hábitos alimentares, dependências tóxicas, estresse e etc. (RAMBERCK, 1997, p. 13 apud FELIPE, 2014, p. 97). Continuando, a crítica mais severa ao modelo de experimentação com animais não-humanos é a ocorrência constante de desastres iatrogênicos. Muitas drogas já tidas como seguras, após inúmeros testes provocaram a morte ou anomalias irreversíveis em milhares de pessoas. O exemplo mais conhecido é o da Talidomida (1958), um ansiolítico desenvolvido para mulheres grávidas a fim de combater náusea e insônia que não foi testado em fêmeas grávidas antes de ser liberada para o consumo. Em teste, apresentou um nível de toxidade baixíssimo combinado com uma ação sedativa favorável e efeitos colaterais discretos em roedores, primatas e cães, justificando então a execução de experimentos clínicos em humanos. Entretanto, ocasionou cerca de 10 mil efeitos congênitos e 3 mil natimortos, sendo que, nos animais testados, raramente, ocorreram variações teratogênicas. Em caminho contrário, a Aspirina, comprovadamente teratogênica para roedores, primatas, cães e gatos, é amplamente utilizada por mulheres grávidas sem apresentação de qualquer tipo de malformação. (GREIF; TRÉZ, 2000, p. 35-37). Além do mais, mesmo a utilização de técnicas de transgênese, da qual se trata da modificação genética dos animais em teste para a compatibilização com o gene humano que, inclusive, foi eleita viabilizadora para os transplantes de órgãos de uma espécie para a outra (xenotransplante), não pode ser vista de forma acrítica. Essa tecnologia traz sérios riscos de disseminar doenças, não só epidemias, mas verdadeiras pandemias que afetam rapidamente a coletividade de forma transfronteiriça, como ocorreu recentemente com a gripe suína. (SANTOS, 2015, p. 141-142). Continuando, Greif e Tréz (2000, p. 68-73) afirmam que, entre os anos de 1968 e 1993, pelo menos 124 drogas foram retiradas do mercado após terem recebido o certificado público de segurança dos laboratórios que realizaram exaustivamente testes em animais. Os autores registraram também os remédios que causaram efeitos adversos para animais, mas foram liberados para humanos. Vejamos alguns exemplos: 1. Aceltilcolina – dilata artérias em cães, mas contrai as de humanos; 2. Antimonia – engorda suínos, mas mata humanos; 3. Arsênico – seguro para ovelha, porém letal para humanos; 4. Bradiquinina – contrai vasos sanguíneos cerebrais em cães, contudo relaxa o de humanos; 5. Depo-provera – seguro em humanos, mas, em cadelas, causa câncer e infecções no útero nas mamas; 6. Encainida – nenhuma alteração no ritmo cardíaco de animais, entretanto causa ataque cardíaco em humanos, provocando a morte de 3 mil pessoas; 7. Penicilina – letal para porcos-da-índia, porém antibiótico para humanos. Outra falta de Lei em comento é pela ausência de proibição expressa da utilização de animais para a produção de cosméticos, ao contrário do Regulamento (CE) Nº 1223/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho que determina proibição gradual, até que se alcance definitivamente o fim da produção e venda dos produtos que contêm uso de animais não-humanos (nº 42). (PARLAMENTO EUROPEU, 2009). Sabe-se que os cosméticos estão longe fazer parte de nossas necessidades vitais, não passando de adorno estético. Qualquer interpretação propriamente bem-estarista já seria impeditiva da continuidade de tais experimentos. Não foi sem razão que, em 2013, ativistas resgataram 200 cães da raça Beagle do Instituto Royal, no município de São Roque, do Estado de São Paulo. Estes apresentavam notórios sinais de maus-tratos, mutilação, tumores, incluindo um grupo sem olho e muitos fetos imersos em nitrogênio líquido. (ALVES, 2013). Após manifestações de grupos protetores de animais, foi promulgada a Lei Estadual de nº 15.316/14, em São Paulo, que proíbe a experimentação em animais para o desenvolvimento de cosméticos, produtos de higiene pessoal, perfume e seus componentes (art. 1º). (SÃO PAULO, 2014). 3.1 A regulamentação no âmbito do ensino e suas implicações no aprendizado. A dissecação é a separação, por instrumentos cirúrgicos, de órgãos ou parte do corpo de animais não-humanos para fins didáticos (GREIF, 2003, p. 19). A estatística mais tímida descreve que, nos EUA, 6 milhões de animais são utilizados por ano para essa finalidade. Entretanto, há quem afirme que o verdadeiro montante seja cerca de 10 milhões. (NATIONAL ANTI-VIVISSECTION SOCIETY, 2015c). Os animais mais utilizados pelas instituições universitárias são principalmente os sapos, todavia, são também comumente utilizados ratos, gatos, camundongos, porcos, cães, coelhos, minhocas, fetos de porcos e peixes. Estes podem ser capturados diretamente da natureza, junto a organizações estatais que cuidam de animais em situação de abandono, ou ainda podem ser fornecidos por criadores e em matadouros. (PETA, 1997). Nas universidades brasileiras, animais são estudados para observação de fenômenos fisiológicos e comportamentais através da administração de substâncias químicas; quando em cativeiro; para compreensão da anatomia; prática de cirurgia ou para obtenção de células e outros tecidos específicos. No geral, os cursos de graduação que aplicam a dissecação são os de Medicina Humana, Veterinária, Biologia, Bioquímica, Farmacologia, Psicologia, Química, Educação Física e Enfermagem. (GREIF, 2003, p. 20). Greif e Tréz (2000, p. 13) listam alguns dos procedimentos aplicados, quais sejam: Miografia – que consiste na retirada de um músculo esquelético, geralmente da perna de uma rã viva ocasionalmente anestesiada com éter, para observação em gráfico das respostas fisiológicas aos estímulos elétricos; Análise da arco-reflexão – a partir da observação do sistema nervoso de uma rã decapitada, a partir da introdução de um instrumento pontiagudo em sua espinha dorsal, para observação dos músculos esqueléticos que respondem sem o comando do cérebro; Observação do sistema cardiorrespiratório – através da abertura do tórax de um cão para verificação dos movimentos pulmonares e cardíacos, antes e após a injeção de adrenalina e acetilcolina, até que se chegue a parada cardíaca do animal; Observação da anatomia interna – a partir do uso de cadáveres de animais; Estudos psicológicos – através da privação de alimentos e água, baseado na estratégia do castigo e recompensa; isolamento social, privação materna, eletrochoques e indução a stress; Treinamento de habilidades cirúrgicas – em que, geralmente, utiliza-se de animais vivos anestesiados; Experimentos farmacológicos – que utiliza animais pequenos para injeção de drogas por via intravenosa, oral, intramuscular ou por gavagem (alimentação forçada) para a mera observação e registro dos efeitos. Estes ensaios trazem consequências irreversíveis, como bem descreve Lima (apud Greif, 2003, p. 21-22), em algumas aulas práticas do curso de ciências biológicas da USP, após a retirada do cerebelo de um pombo para estudo de suas funções, o não-humano perdeu a capacidade de se manter na função vertical, o seu senso de direção, o equilíbrio e a capacidade de se alimentar, pois vomitava constantemente. Outro dano corriqueiro ocorre da má administração de anestésico, em muitas ocasiões, as cobaias expostas ao éter e clorofórmio chegam a óbito em razão da aplicação imprecisa decorrente das peculiaridades individuais de cada animal. Não obstante, a aplicação insuficiente de anestésico pode fazer com que o animal seja capaz de acordar no meio do experimento. O autor ainda cita casos em que não é permitida a aplicação de substâncias químicas em razão de comprometer a finalidade do experimento, sendo que, nesta situação, o animal pode ser contido através da fixação com alfinetes em bandejas de dissecação ou espinhalamento; já os animais maiores são amarrados firmemente às mesas cirúrgicas ou contidos por outros materiais. Já para o sacrifício sem substâncias químicas, a técnica utilizada pode ser guilhotina ou o giro pela cauda para bater contra um anteparo. Por conseguinte, o uso de animais no ensino vem sendo questionado por diversos grupos da sociedade civil, inclusive por cientistas, professores e estudantes. Um dos motivos é o impacto ambiental, haja vista que a população de rãs, sapos, salamandras vem declinando vertiginosamente, ocasionando severas extinções na América do Sul, América do Norte, América Central e na Europa, por conta da retirada massiva destes animais por cientistas para fins didáticos (BOOTH, 1989). Além disso, esses anfíbios consomem grande quantidade de insetos, servindo de controle natural contra as pragas que degradam o cultivo. Não é sem motivo que a Índia aboliu o tráfico de sapos, visto que o declínio destes aumentou consideravelmente a população de insetos predadores, prejudicando o que era cultivado para exportação. (K.S., 1987, apud BALCOMBE, 2000, p. 33). Ainda, a importação de animais exóticos para outros países também gera impacto quando estes conseguem se reproduzir no novo ambiente, atacando e competindo com as populações nativas (GREIF, 2003, p. 24). Outro motivo que gera críticas negativas corresponde ao fato de, por vezes, os experimentos não alcançarem os resultados almejados, dando margem a interpretações errôneas, podendo ser em decorrência de imperícia técnica; do desequilíbrio da saúde física e psíquica do animal pelo estresse anterior ao experimento; das diferenças individuais de cada animal de mesma população; dos fatores externos, entre outros. Não obstante, mesmo quando os objetivos do experimento são atingidos, não houve a concentração desejada do estudante para o aprendizado, haja vista o dispêndio excessivo de atenção para o procedimento em si (GREIF, 2003, p. 25). Por conta disso, não é rara a desistência nos cursos que envolvam a dissecação, tendo em vista que muitos alunos não conseguem lidar com o sofrimento do animal durante as aulas (HOLANDA, 2013). Quanto ao treinamento de técnicas cirúrgicas, sabe-se que a anatomia dos animais não-humanos, embora, de certo modo similar ao dos humanos, ainda é diferente. Logo, não há nada mais perigoso do que tentar adquirir a destreza manual com animais tendo em vista que a falsa sensação de aprendizado torna o cirurgião menos prudente em razão da confiança em sua técnica. (RUESCH, 2008, p. 176-177). Por fim, outra crítica é a dessensibilização estudantil devido à intimidade com o procedimento, tornando o estudante indiferente ao sofrimento do animal ao ponto de negar a existência do mesmo ou entender que é necessário para os objetivos do teste. (HEIM, 1981, apud BALCOMBE, 2000, p. 16). Neste sentido, Lima (apud GREIF, 2003, p. 26) realizou uma análise psicológica sobre a banalização da vivissecção entre estudantes universitários, abarcando experimentos que atingiam dimensões extremamente cruéis e observou o comportamento acrítico dos estudantes, mesmo os que se consideravam amantes da natureza e dos animais, que nem sequer questionavam a necessidade do procedimento, demostrando passividade e inércia. Esta prática se revelou desagradável para a maioria dos discentes, entretanto, consideravam-na como indispensável, desta forma, o autor da pesquisa identificou um forte comportamento antropocêntrico, tecnicista e limitado racionalmente e decisoriamente. Em outras palavras, a dessensibilização do estudante em razão da exposição constante ao sofrimento o torna indiferente, enfraquecendo o sentimento de alteridade e respeito. Não é por acaso que o número de alunos cuja posição é contra a vivissecção vem crescendo exponencialmente. Embora alguns optem por desistir de seus cursos de graduação, outros apresentam objeção de consciência. O primeiro caso ocidental registrado foi na Califórnia, onde Jenifer Graham, ainda no colegial, recusou-se a dissecar um sapo em suas aulas de biologia. Ameaçada pela escola a ter a suas notas baixadas, recorreu ao Tribunal californiano e abriu precedentes para que, na escola, os estudantes pudessem optar por dissecar, ou não, animais nas aulas de ciência (BALCOMBE, 2000, p. 72). No Brasil, um recente caso de escusa de consciência foi apresentado pelo aluno Róber Freitas Bachinski do curso de Ciências Biológicas, pois se recusou a participar das disciplinas que realizavam a dissecação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cuja dispensa não foi autorizada. No entanto, após propor uma ação ordinária, foi reconhecido o seu direito à liberdade de consciência (art. 5º, inc. VI da CF/88), convicção filosófica (art. 5º, inc. VIII da CF/88) e ao pluralismo político (art. 1º, inc. V da CF/88). (PORTO ALEGRE, 2008). Portanto, visto que inexiste lei no Brasil na qual obrigue o aluno a dissecar, ainda que exista autonomia didático-científica das universidades (art. 207 da CF/88), não se pode afastar a liberdade de convicção, consciência e escolha política. (LEVAI, 2007, p. 12). 4. SOBRE OS MÉTODOS ALTERNATIVOS O Decreto 6.899/09 foi criado para regulamentar a Lei Arouca no que tange a designar o que sejam os “métodos alternativos”. O conceito divulgado por Russel & Burch define o “Replacement”, ou seja, método alternativo, como aquele capaz de substituir totalmente o uso de animais, reduzir o número utilizado, ou causar menor sofrimento. Destarte, dividem-se em alternativas absolutas (sem qualquer uso de animal) e relativas (continuam utilizando, de maneira refinada ou reduzida). (RIVERA, 2006, p. 173 apud SANTOS, 2015, p. 43). Este fora o mesmo entendimento aplicado no referido Decreto que, em seu art. 2º, inc. II, alíneas “a”, “b”, “c”, “d” e “e”, clarificou a possibilidade de os procedimentos alternativos validados internacionalmente substituir os métodos que utilizam os animais não-humanos; podendo usar espécies de ordem “inferior”; empregar menor número de animais; utilizar sistemas orgânicos ex vivos ou atenuar o sofrimento. (BRASIL, 2009). É visivelmente ilógico e perverso afirmar primeiramente que se faz necessária a substituição por meios “alternativos” e, logo após, designar estes meios como os que reduzem ou refinam. Essa perspectiva nos leva a crer que não existe boa pesquisa sem o uso de animais não-humanos. Greif e Tréz (2000, p. 68) afirmam que os 3R’s exaltaram a vivissecção ao ponto de fazer da sua primeira premissa a assertiva de que não existe avanço científico sem experimentação em animais, qualificando-a como um mal necessário. Portanto, se entendermos como “método alternativo” todos aqueles que substituem, reduzem ou infligem menor dor, qual será o incentivo para que os centros de pesquisa, de fato, busquem métodos que não utilizem animais? Não se pode ignorar que a Constituição Federal já vedou expressamente práticas que submetam o animal à crueldade, assim como a Lei de Crimes Ambientais proíbe, ainda que para fins didáticos e científicos, a experimentação cruel de animais quando existirem recursos alternativos. Portanto, uma interpretação lógica nos leva a crer que a única compreensão aceitável é que “métodos alternativos” são somente aqueles que substituem por completo o uso de animais, ou seja, métodos substitutivos em absoluto, vez que seria uma enorme incoerência flexibilizar a Lei ao ponto de permitir que a mera redução do número de animais ou aplicação de métodos de menor invasão seja moralmente equivalente à completa substituição. Entretanto, o art. 225, caput da Constituição Federal ainda classifica a natureza, incluindo os animais não-humanos, como “bem de uso comum do povo”, ou seja, como propriedade coletiva, o que abre margem para interpretações antropocêntricas, ainda que de maneira alargada. (BRASIL, 1988). 4.1 Alternativas absolutas na Pesquisa É bem verdade que os métodos substitutivos sempre estiveram disponíveis, dependendo unicamente da capacidade de o cientista em escolhê-los (GREIF; TRÉZ, 2000, p. 76). Por exemplo, a partir da tecnologia in vitro, desenvolveu-se o Eyetex, substituto do Draize Test, produzido pela National Testing Corporation em Palms Springs/Califórnia, para verificar o nível de irritação ocular. Este utiliza uma proteína retirada da semente do feijão capaz de reproduzir as reações de uma córnea durante o teste (GREIF; TRÉZ, 2000, p. 64). Há também o Skintex, substituto do Draize Skin Test, que serve para avaliar a irritação cutânea através da semente de abóbora, pois é capaz de simular a reação quando substâncias estranhas são aplicadas na pele. O Edipack também é substituto da pele humana, utilizando tecido humano clonado para testar substâncias potencialmente tóxicas, produzido pela Clonetics em San Diego, na Califórnia. Ainda, o Neutral Red Bioassay, criado pela Universidade de Rockfeller, consiste no uso de células humanas em cultura empregadas para calcular a absorção de um pigmento hidrossolúvel, medindo a toxidade relativa. Por fim, o Test skin, produzido pela Organo genesis, localizada em Cambridge, Massachusetts, também faz uso de pele humana cultivada em plástico, podendo ser aproveitada para medir a irritação cutânea. (GREIF; TRÉZ, 2000, p. 64). O Harvard’s Wyss Institute criou “organ-on-chip”. Trata-se do cultivo de células humanas para mimetizar a estrutura e função de órgãos e sistema. Esse chip pode ser usado para substituir animais em testes referentes a medicamentos e toxidade de substâncias. Estes se mostraram mais eficientes em replicar fisiologia humana e suas reações, já sendo utilizado pela HµRel Corporation. Outros procedimentos in vitro também são constantemente adotados, como, por exemplo, o Ceetox, que verifica o potencial da substância de causar alergia; o MaTek’s Epi Derm, um modelo tridimensional de célula humana cultivada, que replica traços da pele humana normal, substituindo-se, assim, os porcos-da-índia e coelhos em testes. (PETA, 2015). Simuladores em computador também foram desenvolvidos com o propósito de reproduzir a biologia humana e a progressão de doenças. Estudos mostram que tais modelos são capazes de prever precisamente o modo como os novos medicamentos irão reagir. O QSARs (relações de atividades estruturais quantitativas) é um software capaz de substituir experimentos em animais fazendo estimativas sofisticadas da probabilidade de a substância apresentar riscos, baseando-se na semelhança estrutural com outras substâncias e no nosso conhecimento sobre a biologia humana. Este método tem sido amplamente utilizado por Governos e Companhias Norte-Americanas. (PETA, 2015). Inclusive, é possível verificar a mutagenicidade, carcinogenicidade, teratogenicidade e a toxidade através do TOPKAT, produzido pela Health Design Inc em Rochester, Nova York. Do mesmo modo, o Ames Test também se propõe avaliar a carcinogenicidade, através da cultura de Salomenella Typhimuriume enzimas, podendo detectar cerca de 150 carcinógenos. Há ainda o Método de Difusão em Agarose (Agarose Difusion), no qual avalia a toxidade de materiais plásticos e sintéticos que constituem os equipamentos hospitalares, tais como válvulas cardíacas, articulações artificiais e matérias para infusão intravenosa. (GREIF; TRÉZ, 2000, p. 65). Ao Lethal Dose 50, o professor Heinrich Koch do departamento de Química Farmacêutica da Universidade de Viena, descobriu um método substitutivo a partir do levedo de cerveja, que ao invés de matar metade dos animais testados, mata-se metade das células do levedo. (GREIF; TRÉZ, 2000, p. 66). Não obstante, estudos epidemiológicos são considerados os maiores responsáveis pelos avanços na saúde humana no que tange à redução de incidência de doenças contagiosas, por melhorias nas condições de higiene e saneamento. Estes são baseados em comparações dos níveis de presença de doenças em grupos com diferentes condições de exposição ao objeto investigado. A maioria das doenças como malária, cólera, leptospirose, febre amarela e dengue, está relacionada a condições de higiene e saneamento. Estes também estabeleceram as relações entre o colesterol e doenças do coração; câncer com o fumo; defeitos do nascimento com exposição a químicos (nicotina, álcool e drogas testadas em animais, como a talidomida); e também os mecanismos de transmissão da AIDS. (GREIF; TRÉZ, 2000, p. 57). Além do mais, estudos clínicos e anatômicos também são responsáveis por grandes avanços científicos, visto que há observação do quadro sintomático do homem doente através de inúmeros modelos como o CATscan, capaz de reconstruir imagens tridimensionais do corpo humano através de raios-X, ou o PETscan (Positron Emission Tomograph) e o MRI (Magnetic Ressonance Imaging), que elaboram mapas funcionais do cérebro humano, identificando anomalias, podendo monitorar doenças do fluxo sanguíneo. No geral, estes se propõem a detectar anormalidades nos portadores de doenças como Alzheimer, epilepsia ou autismo. (GREIF; TRÉZ, 2000, p. 59). A prevenção de doenças, sem sombra de dúvidas, também se faz imperativa nos cuidados contra a saúde, entretanto, não é hábito muito estimulado devido à drástica queda lucrativa que sofrerão os laboratórios se as doenças desaparecerem em razão de simples melhorias na qualidade de vida. Cabe destacar que os medicamentos são elaborados para atenuar sintomas, não havendo qualquer previsão para finalizar a terapia. Destarte, há um ciclo ininterrupto de consumo de drogas para se alcançar hipotética cura, chegando-se ao ponto de consumir medicamentos para atenuar efeitos causados por outros medicamentos. As principais causas da mortalidade no Ocidente são derrames, distúrbios cardíacos, pressão sanguínea, doenças respiratórias e câncer. Todas elas são passíveis de prevenção, porém a cura é extremamente difícil ou impossível atualmente. (GREIF; TRÉZ, 2000, p. 60). 4.2 Alternativas absolutas na Educação A experimentação animal pode ser substituída na educação por alternativas absolutas, em razão desses testes já terem sido conduzidos repetidamente, ano após ano, apresentando os mesmos parâmetros e resultados já conhecidos. Essa medida não compromete o rigor científico da aula, haja vista que o processo de aprendizado é o que conta, e não o resultado do experimento em si. (NAB, 1989, apud BALCOMBE, 2000, p. 55). A simulação computacional é uma alternativa altamente interativa, podendo incorporar gráficos, filmes e sons. As vantagens dessa técnica são o menor custo, se considerarmos a manutenção do biotério, preparação e manipulação do animal e a quantidade utilizada. O aprendizado se demonstra superior visto que o estudante poderá voltar atrás, a qualquer momento, em um estágio que não tenha compreendido prontamente. Cada aluno poderá aprender no seu próprio ritmo, podendo ser utilizada em casa sem auxílio técnico especializado. Esses métodos não submetem o animal à crueldade, não geram conflitos entre os alunos que não se sintam confortáveis com a dissecação e proporcionam a concentração desejada do estudante no procedimento. (GREIF, 2003, p. 34-35). Há inúmeros softwares que se propõem a substituir o modelo animal como, por exemplo, o Froguts, que utiliza recursos gráficos para explanar as teses sobre estruturas anatômicas, as funções biológicas, musculatura, funcionamento cardiovascular e o procedimento de dissecação de sapos (FROGUTS, 2012). Balcombe (2000) lista a constatação de cientistas que realizaram estudos comparativos entre métodos alternativos e tradicionais, demonstrando não haver diferenças significativas na produção daqueles cujos métodos adotados foram os substitutivos absolutos, sendo que alguns estudantes apresentaram melhores resultados com as simulações. Citam-se apenas alguns dos comentários, sendo um deles publicado por Dewhurst e Meeham (apud BALCOMBE, 2000, p. 41), declarando que alguns alunos, ao utilizarem softwares e outros substitutos, apresentaram o mesmo desempenho daqueles que empregaram métodos tradicionais em laboratórios de fisiologia e farmacologia. Inclusive, seis estudantes que realizaram estudos autônomos por simulação apresentaram os mesmos conhecimentos dos alunos ao fazer uso do método tradicional com acompanhamento supervisionado. Ademais, Lilienfield e Broeing (apud BALCOMBE, 2000, p. 41) afirmam que os utilizadores da simulação em computador alcançaram nota significativamente maior em exames sobre o sistema cardiovascular. Phelps (apud BALCOMBE, 2000, p. 41) também confirma que estudos por vídeos interativos produzem melhor performance do que modelos vivos em laboratório. CONCLUSÃO Embora esteja claro que a Lei Arouca é instrumento para a manutenção dos termos opressores, travestindo-os de termos “racionais” amplamente aceitos e sem qualquer reflexão mais aprofundada, o que não está claro é de que forma o Direito seria capaz de abarcar um paradigma diverso. Como realmente seja possível abolir a exploração institucionalizada? A simples modificação do status jurídico dos não-humanos, passando da condição de propriedade para a de pessoa, não é garantia de efetividade, podendo se tornar um mero simbolismo para que, novamente, transforme-se em um artifício funcionalista, dotado de carga antropocêntrica, haja vista que os interesses em manter estrutura econômica existente ainda são extremamente fortes. Entretanto, o obstáculo não reside na impossibilidade de consideração jurídica equitativa entre humanos e não-humanos, mas da dependência de uma anterior inclusão em nossa comunidade moral, haja vista que é discursivamente mais “dócil”, portanto, mais efetivo em manter a dominação. Para isto, as contradições lógicas, éticas e científicas devem ser expostas.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-158/criticas-abolicionistas-a-lei-arouca-uma-analise-conjuntural-teleologica/
O direito da mulher ao parto natural no Brasil: responsabilidade civil do médico
O presente artigo aborda o direito feminino em realizar parto natural e sua relação com a responsabilidade civil do médico. Existe uma dificuldade na efetivação do direito citado por conta da resistência do sistema, que prioriza a cesariana, havendo demanda para disponibilizar um meio jurídico de indenização a certos casos e inibição dos mesmos. Observou-se o contexto brasileiro quanto à epidemia de cesáreas, seu impacto na mulher e recém-nascido causando dano jurídico; elencaram-se casos de falsas evidências das quais médicos se utilizam para influenciar ao parto cesárea, sendo tais dados colhidos através de pesquisa feita por profissionais da saúde; e analisou-se a responsabilidade civil do médico, seus elementos e a possibilidade de dano moral, material e estético. O presente artigo não prega o fim dos partos cesáreos, como será explicado à frente, e sim a necessidade do Direito proteger a mulher na escolha do parto natural e proporcioná-la indenização pelos danos sofridos, além de desestimular os médicos de considerarem ganhos financeiros e não a dignidade da pessoa humana. Foi feita análise bibliográfica com livros, notícias e artigos científicos jurídicos e área de saúde, por ser um tema interdisciplinar. A pesquisa é quantitativa e qualitativa, além de ser exploratória e bibliográfica.[1]
Biodireito
INTRODUÇÃO O Direito é ciência que regula relações sociais relevantes ao mundo jurídico e o processo de nascimento do ser humano não deixa margem de dúvida quanto à sua relevância social, psicológica, cultural e, por consequente, jurídica, pois todos estão aqui presentes através do fenômeno do parto. Com a chegada do mundo moderno, o parto deixou de ser um assunto de mulheres para mulheres e um momento de empoderamento feminino, para se transformar na maioria das vezes em ato cirúrgico esterilizado tendo o médico como figura principal e fazendo as mulheres acreditarem que, sem sua ajuda, são incapazes de viver tal momento. O Direito deve levar sua atenção a esse fenômeno social a partir do momento em que cresce o número de mulheres que não conseguem efetivar seu direito ao parto natural por conta da resistência desse sistema capitalista que estimula o parto por cesariana, muitas vezes desnecessário. Esse estímulo se deve às inúmeras vantagens financeiras e comodidade para a equipe médica. As mulheres são vítimas desse sistema em três viés: pela sua incapacidade em efetivar um direito constitucional de liberdade de escolha e obter o desejado parto natural; por muitas vezes serem enganadas por médicos que se utilizam de mitos para convencê-las ao parto mais vantajoso para eles; e por terem, no fim, tal momento de vínculo com seu ou sua filha roubado, frutificando danos de origem física ou material, psicológica ou moral e até danos estéticos. Cabe ao direito, portanto, disponibilizar o instrumento para indenizar tal mulher na proporção de seu dano e concomitantemente desestimular que médicos continuem realizando cesáreas desnecessárias. O presente artigo utilizou para sua fundamentação artigos científicos, pesquisas, livros e notícias, além do uso de dados, porcentagens e análise sociológica, para por fim abordar a questão jurídica. Analisa-se, ao final, a teoria adotada pelo Código Civil Brasileiro da responsabilidade subjetiva do médico, além de apontar como causas de indenização a falta do médico no dever de informar, de atualização, de assistir e de abstenção de abuso. 1 O DIREITO DA MULHER AO PARTO NATURAL 1.1 Epidemia de Cesáreas no Brasil Emanado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, a preferência da gestante pelo tipo de parto que vai realizar está relacionado ao direito constitucional de liberdade de escolha. Diversos aspectos, sejam eles culturais, sociais, regionais e psicológicos permeiam essa decisão. Entretanto, a discussão mais comum está entre o parto cirúrgico (cesárea) e o parto vaginal (normal), porém vale a pena ressaltar que existe uma diferenciação entre parto normal e natural. O natural é aquele sem intervenções, respeitando as necessidades básicas e a integridade da mulher, enquanto o normal significa que o canal vaginal será o canal de nascimento, mas pode haver intervenções cirúrgicas desnecessárias, como a episiotomia, incisão efetuada na região do períneo (área muscular entre a vagina e o ânus) para ampliar o canal de parto. (CALVETTE, 2015) Como elucida o documentário "O Renascimento do parto", de Eduardo Chauvet, antigamente, o parto era um assunto de mulher para mulher, cujo protagonismo feminino era presente durante todo o processo. Era humanizado, longe da esterilidade e frieza da maioria dos hospitais. Com o avanço da tecnologia, a figura do médico se apropriou do parto, que deixou de ser um assunto feminino e tornou a gravidez um estado patológico, convencendo quase todas as mulheres de que são incapazes de conseguirem por si mesmas parirem. Ocorre que, com o passar dos anos, criou-se a chamada "cultura da cesárea" no Brasil: ao invés desse procedimento cirúrgico estar sendo utilizado em casos de real necessidade, os médicos vêm cada vez mais realizando cesáreas sem indicação, ou a pretexto de falsas evidências. Além disso, as mulheres suscitaram medos e ansiedades quanto ao parto normal. (BARBA, BARIFOUSE, 2014). A ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) elucida que no ano de 2015 a taxa de cesárea em plano de saúde foi 84,6% contra os 10 a 15% recomendados pela OMS (Organização Mundial de Saúde). A intervenção deixou de ser um recurso para salvar vidas e passou, na prática, a ser regra. "Quando realizadas por motivos médicos, as cesarianas podem reduzir a mortalidade e morbidade materna e perinatal. Porém não existem evidências de que fazer cesáreas em mulheres ou bebês que não necessitem dessa cirurgia traga benefícios. Assim como qualquer cirurgia, uma cesárea acarreta riscos imediatos e a longo prazo. Esses riscos podem se estender muitos anos depois de o parto ter ocorrido e afetar a saúde da mulher e do seu filho, podendo também comprometer futuras gestações. Esses riscos são maiores em mulheres com acesso limitado a cuidados obstétricos adequados." (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 2015, p 01) Essa epidemia de cesarianas no Brasil tem como principais causas as falhas na regulamentação do sistema de saúde do país, falta de informação sobre o assunto e o interesse financeiro dos médios obstetras, sendo mais lucrativo para eles o agendamento desse tipo de parto (um profissional recebe valor semelhante para realizar uma cesárea, que dura cerca de 3 horas, e um parto normal, que pode passar das 12 horas; além de ser mais cômodo para o mesmo pois na cesárea é possível agendar, sem precisar desmarcar compromissos) Tal realidade faz com que mulheres que optam pelo parto natural enfrentem uma verdadeira resistência do sistema, e muitas, no final das contas, acabam sendo forçadas a realizar cesáreas contra sua vontade. (BARBA, BARIFOUSE, 2014) É importante ressaltar que o presente artigo não prega o fim dos partos cesáreos. Como foi explicado acima, tal parto deve ser feito quando necessário e quando for escolha da mulher, respeitando sua autonomia de vontade e liberdade de escolha, já que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Entretanto, cabe observar que a maioria das mulheres prefere o parto normal ou natural e acabam não resistindo ao sistema que impõe a cesariana, como será abordado mais à frente por meio de dados que comprovam essa afirmação. Cabe ao Direito garantir que essas mulheres que optam pelo parto normal ou natural possam concretizar esse direito tão importante nas suas vidas e dignidades. Para tanto, faz-se necessário seguir um passo-a-passo para construir a linha de raciocínio proposta por esse artigo. Deve-se, primeiramente verificar o impacto dessa cirurgia, quando desnecessária, na saúde da mulher e do recém-nascido, para se compreender os danos no aspecto cível. Depois, analisar os casos de falsas evidências que os médicos se utilizam para influenciar ao parto cesárea, enquadrando-se, aqui, a conduta médica passível de responsabilização. E, em seguida, discorrer sobre a responsabilidade civil propriamente dita, seus elementos e a possibilidade de dano moral, material e estético. 1.2 Impactos da Cesariana Desnecessária à Mulher e ao Recém-Nascido Dentre os aspectos negativos da cesariana estão: maior risco de morte e de infecção hospitalar tanto ao bebê como à mãe; risco do bebê nascer prematuro, pois há possibilidade de erro de até uma semana na marcação da idade gestacional; aumento da incidência de doenças respiratórias ao bebê; maior dificuldade no aleitamento e probabilidade de desmame precoce; dificuldades de vínculo com a mãe; maior risco de infertilidade da mãe posteriormente; risco de endometriose; sensibilidade na cicatriz em longo prazo (coceira, dor e sensação de estiramento); maior risco de trombose e doenças correlatas (incluindo embolia); maior índice de depressão pós-parto; entre outros. (Portal Brasil, 2015) A melhor forma de entender a necessidade de se priorizar o parto natural é compreendendo a fisiologia do processo de nascimento. Além da necessidade de se esperar o momento que o bebê está pronto para nascer, o parto natural e humanizado favorece, de acordo com o documentário "O Renascimento do Parto", o coquetel de hormônios que é liberado durante o parto, chamados hormônios do amor (ocitocina, endorfina, prolactina e adrenalina) que gera uma vinculação entre mãe e filho. Esses hormônios entram em ação durante o parto por um motivo, que é fazer a conexão e ligação da mãe com o seu bebê. No parto cesáreo esses hormônios ficam comprometidos, pois se utiliza grande parte de maneira sintética, o que está relacionado desde a dificuldade de vinculo entre os dois até a depressão pós-parto. Após esse tópico, alcançou-se o momento de analisar os casos de falsas evidências já alertadas pela comunidade científica que os médicos se utilizam para influenciar ao parto cesárea. 1.3 Evidências sem Respaldo Científico para Realização de Parto Cesárea As indicações de cesariana são divididas em absolutas e relativas. Ressalta-se que, atualmente, a maioria das indicações é relativa. As mais utilizadas estão demonstradas no quadro que a seguir, porém cabe ressalvar que nenhuma dessas condições representa indicação absoluta de cesariana, e o parto vaginal deveria ser preferido em vários casos, exceto em algumas situações especiais. (AMORIM, PORTO, SOUZA, 2010, a) Os médicos costumam perpetuar o mito de que quando a mulher já realizou um parto cesárea, não pode mais ter um parto normal. Porém o parto vaginal pode ser tentado com sucesso em torno de 70% das vezes. (AMORIM, PORTO, SOUZA, 2010, b) Somado a isso, existe no âmbito da saúde obstetrícia algumas práticas que também não são comprovadas cientificamente como benéficas, mas que já viraram rotineiras no mundo dos partos. Uma delas é o uso da ocitocina sintética para acelerar o parto, comumente ministrado na paciente sem mesmo obter seu consentimento. Entretanto o Ministério da Saúde já informou que não recomenda essa prática e lembrou que o governo vem tentando combater o número crescente de cesáreas, com iniciativas como a criação da Rede Cegonha e das chamadas Casas de Parto, que têm como metas incentivar o parto normal humanizado. (BARBA, BARIFOUSE, 2014) A decisão para a realização de uma cesariana deve ser criteriosa e discutida com a paciente. É necessário prover informações com base em evidências para as gestantes durante o período pré-natal de forma acessível. 1.4 A Dificuldade das Mulheres em Efetivar o Direito ao Parto Natural No sistema da “indústria da cesárea” que prioriza o parto cesárea e ignora seus malefícios à mãe e ao bebê, percebe-se que frequentemente os médicos atribuem a escolha do tipo de parto à gestante. Entretanto, não é isso que comprovam diversos materiais de pesquisa. Um estudo feito pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) que ouviu 437 grávidas constatou que 70% delas não tinham a cesárea como preferência, mas 90% acabaram realizando-a, e em 92% dos casos, a cirurgia foi realizada antes de a mulher entrar em trabalho de parto, ou seja, antes mesmo do bebê estar preparado a nascer. Além disso, não se pode esquecer o peso da opinião médica e a falta de interesse desse profissional pelo parto normal. (BARBA, BARIFOUSE, 2014) Pesquisadores da Fiocruz esclarecem que o processo para decidir qual o tipo de parto vai ser realizado é permeado por uma relação de poder estabelecida na interação entre o médico e a mulher, e que o médico muitas vezes inibe qualquer questionamento de sua decisão. Tal conduta intervencionista desse profissional molda, ou influencia a mudança de decisão da mulher no tipo de parto. É nesse momento no qual o médico molda a decisão da gestante utilizando as falsas evidências demonstradas acima para convencê-la ao parto por cesariana que interessa ao direito, pois priva as mulheres de diversos benefícios inerentes ao parto natural já explicitados mais acima, além de provocar os malefícios do parto cesáreo. 2. A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO E SUA RELAÇÃO COM A MÁ INDICAÇÃO DO TIPO DE PARTO Dentro do assunto responsabilidade civil, sabe-se que existem três elementos constitutivos para que haja interesse em pleitear indenização. São eles a conduta de ação/omissão, nexo causal, dano e, nos casos de responsabilidade subjetiva, um quarto elemento que é dolo ou culpa (imperícia, imprudência e negligência). No caso dos médicos, a teoria adotada pelo Código Civil Brasileiro é a subjetiva, ou seja, é necessária a comprovação dos quatro elementos citados. Portanto, a culpa médica se classifica pela conduta omissiva ou comissiva do profissional imprudente, negligente ou imperita que causa dano ao paciente. (FUNES, PETROUCIC, 2008) Como objeto de estudo desse artigo, a conduta médica em questão foi a abordada nos pontos acima, referente ao uso de falsas evidências na recomendação do parto cesárea e aproveitando a relação de poder com a paciente para influenciá-la. Os danos dessa atitude também foram demonstrados ao tratar dos impactos da cesárea na mulher e no recém-nascido, e, mais à frente, serão aprofundados no âmbito moral, material e estético. O nexo causal, que é a ligação entre a conduta médica e o dano (consequência) deve ser devidamente comprovado pelo autor da ação de responsabilidade civil. O elemento da teoria da responsabilidade subjetiva, ou seja, a culpa médica, será melhor destrinchado nos próximos tópicos. A responsabilidade civil médica se refere à obrigação destes profissionais de suportarem as consequências decorrentes de seus atos no exercício de sua profissão quando preenchidos os requisitos legais. (FUNES, PETROUCIC, 2008) Segundo a CREMESP (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), o argumento do procurador geral da Corte de Apelação de Milão coloca a responsabilidade médica sobre a ótica da ponderação. Tal argumento afirma que o imperito não é quem não sabe, mas aquele que não sabe aquilo que um médico ordinariamente deveria saber, não é negligente quem descura alguma norma técnica, mas quem descura aquela norma que todos os outros observam; não é imprudente quem usa experimentos terapêuticos perigosos, mas aquele que os utiliza sem necessidade. "As ações de indenização decorrentes de responsabilidade médica e hospitalar na Justiça Brasileira crescem de forma alarmante a cada ano, de forma que em uma década, segundo dados do Conselho Federal de Medicina (CFM), o número de processos por imperícia ou negligência aumentou sete vezes. As causas desse aumento são inúmeras: qualidade insuficiente de ensino, serviços insatisfatoriamente prestados, maior procura pelo serviço e, até mesmo, maior consciência por parte da população sobre seus direitos e facilidade de acesso à Justiça." (FUNES, PETROUCIC, 2008, p 01) É importante frisar a existência das excludentes da responsabilidade civil médica, que são descritas no Código Civil Brasileiro, artigo 393, sendo elas o caso fortuito e a força maior, culpa exclusiva do paciente, fato de terceiro e a cláusula de não indenizar. (OLIVEIRA, 2008) "Cumpre-se ressaltar que a responsabilidade é do Estado (Administração Pública), nos termos do artigo 37, §6º da Constituição Federal, se a falha ou erro médico ocorrer em hospital ou qualquer outro estabelecimento público. É o princípio da responsabilidade objetiva do Estado pelos danos que seus agentes causem a terceiros, que estabelece que demonstrado o dano, independentemente de culpa ou não deste ente, cabe a indenização por este, a menos que seja hipótese de culpa exclusiva da vítima (paciente), caso fortuito ou força maior. Há, consequentemente, direito de regresso do ente público contra o médico (empregado), desde que haja dolo ou culpa por parte deste." (FUNES, PETROUCIC, 2008, p 03) Também é causa de indenização a falta do médico no dever de informar, dever de atualização, dever de assistir e dever de abstenção de abuso. No primeiro, que está relacionado à obtenção de consentimento do paciente, deve o médico prestar todas as informações necessárias àquele, como por exemplo possibilidade de intervenções, riscos, consequências do tratamento, entre outras. O artigo 59 do Código de Ética Médica reforça tal dever afirmando que é vedado ao médico deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, devendo, nesse caso, a comunicação ser feita ao seu responsável legal. Caso desrespeite esse dever, pode o paciente buscar a devida reparação dos prejuízos. (OLIVEIRA, 2008) Percebe-se que a falta do médico no dever de informar engloba, nos termos do assunto do artigo, o fato de muitas vezes o médico não prestar as devidas informações à gestante ou mulher no pós-parto sobre os procedimentos que serão feitos e suas consequências. Muitas mulheres não têm consciência do que está sendo feito no corpo dela, atingindo, dessa forma, o princípio da dignidade humana e um dano à integridade física. Pode citar como exemplo desse caso tanto a episiostomia quanto o uso de ocitocina sintética, como foi citado anteriormente no artigo. O dever de Atualização significa que o médico deve se manter em aprimoramento constante e atualizado das técnicas para aplicá-las. Já o dever de assistência ou assistir significa que o médico deve estar disponível aos chamados do paciente, esclarecendo dúvidas, poder ser encontrado quando necessitado, não devendo agir com descaso, caso contrário, estará praticando negligência. Percebe-se que muitas das vezes esses dois deveres não são colocados em prática. (ARGENTIN, SILVA, 2016) O dever de abstenção de abuso consiste no fato de que o médico deve priorizar princípios éticos e não visar apenas lucros ou vantagens financeiras, ocorrendo tal abuso quando há oportunismos. Um exemplo disso é quando o médico desrespeita a vontade do paciente, com exceção de alguns casos. (OLIVEIRA, 2008) O erro médico é uma falha na prestação do serviço pelo médico. Ocorre uma falha na prestação de serviços, devido a ato lesivo do médico ocasionado por sua conduta culposa. É um agir ou um não-agir contrariando uma conduta recomendada pela Ciência Médica. (DROPA, 2004) Tal erro pode ser proveniente de despreparo técnico e intelectual, por grosseiro descaso ou por motivos ocasionais que se referem às condições físicas ou emocionais do profissional. A prova dessa falha pode se dar por fichas médicas, prontuários, perícia, entre outras, e deve-se comprovar o dano e o nexo causal com o erro médico, além de sua culpa ou dolo. (OLIVEIRA, 2008) 2.1 Possibilidade de Danos Morais, Materiais e Estéticos Uma das possibilidades de se pleitear indenização na justiça para as mulheres que são o foco desse artigo é o dano moral. Maria Helena Diniz estabelece o dano moral como “a lesão de interesses não patrimoniais de pessoa física ou jurídica, provocada pelo ato lesivo”. (DINIZ, 2003, p. 84). Já Carlos Roberto Gonçalves esclarece que o dano moral atinge o ofendido como pessoa, não lesando seu patrimônio, estando relacionado aos direitos da personalidade, como a honra, a dignidade, intimidade, entre outros. A lesão proveniente do dano moral atinge psicologicamente o indivíduo, causando frustração, angústia e sofrimento. A mulher que foi iludida pelo médico por motivos sem respaldo científico, como já foi visto anteriormente, para fazer o parto cesariano, e teve seu momento de protagonismo feminino e empoderamento roubado por ele, possui todo o fundamento para buscar indenização por danos morais. Quanto aos danos materiais, que são aqueles que atingem o patrimônio do sujeito, necessitando de prova efetiva e podendo ser classificados em danos emergentes (o que efetivamente se perdeu) ou lucros cessantes (o que razoavelmente se deixou de lucrar), a mulher que passou pelo parto cesariano desnecessário e influenciado pelo médico pode alegar gastos pecuniários em decorrência desse fato, como remédios, materiais pós-cirúrgicos, necessidade de tratamentos médicos por conta de complicações pós-parto cesariano, entre outras despesas. Referente ao dano estético pode-se enquadrar aqui as cicatrizes deixadas pela cirurgia da cesariana e outros resultados da mesma natureza, como marcas, alterações morfológicas e deformações. O dano estético nada mais é que a lesão à harmonia corporal do agente e está relacionado à integridade física da pessoa. (OLIVA, 2009) Quando a ocorrência de um dano causado pelo erro, negligência, imprudência ou imperícia do médico é confirmada, fica evidenciada sua responsabilidade civil, surgindo, portanto o dever de reparação. Nos casos em que ficar evidenciado o nexo causal entre o dano e o prejuízo experimentado pelo paciente este tem o direito ao ressarcimento de seu prejuízo, seja este material ou moral. (OLIVEIRA, 2008) CONCLUSÃO Antigamente, o parto era um assunto de mulheres para mulheres, cujo protagonismo feminino era presente durante todo o processo. Era também humanizado, longe da esterilidade e frieza da maiorias dos hospitais. Com o avanço da tecnologia, a figura do médico se apropriou do parto, que deixou de ser um assunto entre mulheres e tornou a gravidez um estado patológico, convencendo quase todas as mulheres de que são incapazes de conseguirem por si mesmas parirem. Hoje, existe no Brasil um sistema que prioriza o parto cesárea, mesmo que esse procedimento cirúrgico seja indicado apenas em casos de real necessidade. As mulheres que buscam o parto natural, legitimadas pela garantia constitucional de liberdade de escolha, encontram forte resistência para efetivar essa escolha. Muitas vezes são influenciadas pelos médicos, que obtêm mais vantagens de diversas naturezas com o parto cesárea e utilizam de indícios não-científicos e não-comprovados para amedrontá-las. Prezando pela comodidade, muitos médicos colocam em risco o bem estar da mulher e do bebê, aumentando o risco de morte e de infecção hospitalar deles, risco de prematuridade, incidência de doenças respiratórias ao bebê; dificuldade no aleitamento e probabilidade de desmame precoce; dificuldades de vínculo com a mãe; maior risco de infertilidade da mãe posteriormente e depressão pós-parto, entre outros. Um dos mitos mais famosos utilizados pelos médicos é aquele que afirma da impossibilidade da mulher ter parto normal depois que já realizou uma cesariana. Porém o parto vaginal pode ser tentado com sucesso em torno de 70% das vezes. Um estudo feito pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) que ouviu 437 grávidas constatou que 70% delas não tinham a cesárea como preferência, mas 90% acabaram realizando-a, e em 92% dos casos, a cirurgia foi realizada antes de a mulher entrar em trabalho de parto, ou seja, antes mesmo do bebê estar preparado a nascer. A teoria adotada para responsabilidade civil dos médicos é a subjetiva, ou seja, é necessária a comprovação de culpa na conduta omissiva ou comissiva do profissional imprudente, negligente ou imperita que causa dano ao paciente. Ressalta-se as excludentes da responsabilidade civil médica presentes no art. 393 do Código Civil. Cabe ao médico ressarcir a mulher pelo seu momento de protagonismo da qual foi roubada quando a cesariana era desnecessária, além de indenizar os danos materiais, morais e/ou estéticos decorrentes disso. Também é causa de indenização a falta do médico no dever de informar, dever de atualização, dever de assistir e dever de abstenção de abuso.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-157/o-direito-da-mulher-ao-parto-natural-no-brasil-responsabilidade-civil-do-medico/
Embrião in vitro como sujeito de direito: uma análise do art. 5º da Lei nº 11.105/2005 sob a perspectiva da teoria concepcionista
Trata-se o presente trabalho de fomentar a discussão acerca da condição de sujeito de direito do embrião crioconservado através de estudos científicos, biológicos e jurídicos das teorias que propõem um marco inicial para o início da vida, a fim de justificar as decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510.Adotando a teoria concepcionista como a mais correta do ponto de vista biológico, entende-se que a vida humana se inicia a partir da fecundação, momento no qual – salvo por razões adversas, tais como mutações biológicas ou intervenções externas – a pessoa desenvolve-se até o nascimento. Contudo, muito embora se defenda a concepção como o estágio inicial da vida, impende ressaltar que a decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da permissibilidade na utilização de células-tronco embrionárias para fins de pesquisas científicas fora acertada pelo benefício social que tais estudos trarão à coletividade.
Biodireito
INTRODUÇÃO Desde os primórdios da cientificização da humanidade discute-se acerca do momento em que se principia a vida humana, muito embora, até a presente data, doutrinadores das áreas jurídicas e biomédicas não tenham chegado a um consenso acerca deste estágio inicial. Tais divergências se dão especialmente porque a temática que envolve o início da vida é permeada por diferentes esferas de conhecimento da humanidade, razão pela qual argumentos eivados de religião, fé, crenças diversas, conhecimento biológico e científico, bem como convicções pessoais convivem em pé de igualdade, o que dificulta o trabalho do operador do direito nos caminhos da perquirição. Nesta busca incessante por respostas, três principais teorias acerca do surgimento da vida humana se desenvolveram na esfera jurídica, quais sejam, a teoria natalista, a teoria da personalidade condicionada e a teoria concepcionista. A primeira, a teoria natalista – muito presente entre os doutrinadores clássicos –, defende que a vida humana somente pode ser observada quando do nascimento. Por outro viés, e buscando ser menos conservadora que a natalista, a teoria da personalidade condicionada dispõe que a vida humana também tem seu início quando do nascimento com vida, mas esta se preocupa em ressalvar alguns direitos do nascituro, os quais possuem como condição suspensiva exatamente o nascimento. Ambas pecam por não conseguirem responder um questionamento simples, a saber, seria então o nascituro uma coisa que não a vida humana em desenvolvimento? Por entender que a vida humana perpassa por diferentes estágios, nos quais deverá o direito intervir para garantir o respeito às suas prerrogativas mínimas, se optou no presente trabalho pela adoção da teoria concepcionista, a qual dispõe que a vida humana se inicia a partir da concepção, ou seja, da junção entre gameta feminino e masculino. Desde 2005, contudo, assiste-se a debates acalorados acerca do início da vida e de sua proteção jurídica, posto que em 24 de março do referido ano fora editada a Lei nº 11.105/2005, mais conhecida como Lei de Biossegurança, na qual se permitiu a utilização de células-tronco embrionárias para fins de pesquisas científicas. O procurador geral Cláudio Lemos Fonteles à época ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510 por entender que o artigo 5º da lei supramencionada desrespeitava o princípio da dignidade da pessoa humana quando permitia a utilização do embrião crioconservado em pesquisas com células-tronco, haja vista vislumbrar a vida humana em seu estágio laboratorial no embrião in vitro. O Supremo Tribunal Federal, contudo, após escutar em audiência pública diversos representantes das mais variadas áreas do conhecimento humano acerca do início da vida, entendeu pelo não provimento do pedido declaratório de inconstitucionalidade do referido artigo, argumentando indiretamente que o embrião crioconservado não se apresentava como sujeito de direito, mas tão somente como coisa jurídica eivada de vida, razão pela qual sopesou que permitir tais pesquisas seria imperativo para a qualidade de vida de diversas pessoas já nascidas detentoras de doenças degenerativas. Nesta esteira, o presente trabalho se propôs a uma tarefa difícil, haja vista ter defendido que a condição de sujeito de direitos do embrião crioconservado – exatamente porque a vida humana se inicia a partir da concepção, quer seja esta realizada de maneira natural ou artificial – não impediria a pesquisa com células-tronco embrionária exatamente porque tantas outras vidas seriam beneficiadas com esta permissibilidade. Para tanto, a problemática apresentada fora analisada em três distintos capítulos. O primeiro, mais introdutório, se propôs a trazer à baila as três principais teorias acerca do início da vida, quais sejam, teoria natalista, da personalidade condicionada e a concepcionista, bem como seus maiores defensores, ultrapassando uma análise jurídica e biológica na busca de respostas para tal momento precípuo. Entendendo ser a mais acertada a teoria concepcionista, exatamente por trazer proteção mais ampla sobre a vida humana, passou a referida pesquisa à análise da constitucionalização do direito civil pátrio exatamente para que pudessem ser estudados os princípios constitucionais aplicáveis ao embrião crioconservado, chegando-se aos princípios da dignidade da pessoa humana e do direito à vida. Todavia, tais princípios não devem ser aplicados da mesma maneira que são à vida humana já nascida, por se entender que tais estágios da vida humana merecem tutela específica e distinta entre si. Para tanto, contrapõem-se os estágios pelos quais perpassam a pessoa, realizando-se um estudo comparativo entre o embrião in vitro, o nascituro e a vida humana já nascida. Desta feita, o terceiro capítulo atinge o cerne do presente trabalho, pois que se passa a estudar os questionamentos trazidos pela ADI nº 3510 acerca da inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança, tendo em vista que tal dispositivo passou a permitir a pesquisa com células-tronco embrionárias. Destarte, o referido artigo fora pausadamente estudado a fim de se verificar a sua constitucionalidade, vislumbrando-se para tanto a morte presumida do embrião crioconservado após três anos de congelamento, bem como os benefícios trazidos a toda coletividade quando da utilização de embriões in vitro para fins de pesquisa com células-tronco. 1. Teorias sobre o Início da Vida e da Personalidade Jurídica do Embrião no Direito Brasileiro. 1.1. Contextualização à Temática: Desde o fim da Iª Guerra Mundial, observa-se a ascensão na utilização de aparatos tecnológicos e científicos nos mais variados âmbitos da vida. Em um passado não muito distante, visualizou-se o crescimento industrial e suas devidas consequências, as quais desembocaram no mundo ainda mais globalizado ao que anteriormente habitado. Atualmente, todavia, vivencia-se o ápice desta amplitude científica com a utilização de tecnologias avançadas inclusive nos estudos sobre fertilização in vitro – mais conhecida como fecundação extracorpórea –, clonagem e pesquisas com células-troncos que envolvem a origem da vida como questionamento máximo. Segundo a juíza federal Elídia Aparecida de Andrade Côrrea, a primeira década do século XXI pronunciou que se ultrapassou a fase de desenvolvimento enfático da química e da física para se vivenciar o “século da revolução biológica” [1]. É neste sentido que surge como disciplina ainda considerada nova no ramo jurídico o Biodireito, transportando acontecimentos científicos para a seara jurídica, no sentido de estabelecer limitações para a autonomia privada nas pesquisas envolvendo vida humana, bem como definir licitude e ilicitude de determinas condutas. Todavia, resta importante ressaltar que o Biodireito – aliado à bioética – estuda e estabelece os parâmetros para as pesquisas na área da medicina e da biotecnologia que envolvem a vida e o corpo humano e, consequentemente, a proteção constitucional máxima acerca da dignidade da pessoa humana. Neste viés, urge necessária a resposta de um questionamento tão antigo quanto o próprio surgimento da humanidade: quando começa a vida humana? É a partir desta resposta que será definido o momento em que a pessoa será investida de proteção jurídica advinda de sua própria personalidade jurídica, de maneira que a legislação vigente aplicar-se-á ao indivíduo. Muitas são as correntes doutrinárias que se desenvolveram na esfera jurídica na tentativa de responder o questionamento acima apresentado acerca do início da vida. Todavia, três são as principais correntes apresentadas pelos doutrinadores brasileiros: teoria natalista, teoria da personalidade condicional e teoria concepcionista. Importante ressaltar, em consonância à lucidez doutrinária da Doutora Silmara J. A. Chinelato e Almeida, que estas correntes não são estanques e absolutamente opostas entre si[2], de maneira que abaixo se passa ao estudo específico de cada uma destas teorias no intuito de tecer explicações sobre o porquê da adoção da teoria concepcionista como norte deste trabalho. 1.2. Teoria Natalista: Esta teoria, a qual prevalecia há pouco entre os civilistas clássicos, defende que o nascituro não pode ser considerado pessoa quando da interpretação do artigo 2º do Código Civil, tendo em vista que só a partir do nascimento surge a personalidade civil deste. Vejamos o artigo mencionado: “Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.[3] Trata-se, todavia, de uma interpretação literal e simplificada do que leciona o dispositivo em sua primeira parte. O concepto, neste sentido, não possuiria personalidade civil e tampouco seria considerado pessoa para esta corrente. Neste sentido, importante as lições da exímia Professora e Doutora Carolina Ferraz Valença: “A teoria da natalidade se posiciona pela inexistência de individualidade do concepto, pois nas entranhas da sua mãe não pode ser considerado como um ser individualizado, caracterizando-se apenas como parte da geriatriz”.[4] Segundo a doutrina contemporânea, o grande problema desta teoria é que ela se exime de analisar a segunda parte do dispositivo supramencionado, de maneira que não atribui direito algum ao nascituro, em dissonância aos ensinamentos da hermenêutica jurídica, no sentido de que as normas devem ser interpretadas em conexão ao que legisla o ordenamento pátrio como um todo. A interpretação sistemática, portanto, deve prevalecer. O texto legal não deve ser interpretado de maneira estanque, solitária, mas sim em consonância aos preceitos legais que legitimam o direito nacional em si. De outra maneira não são os ensinamentos do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Graus: “Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele – do texto – até a Constituição. Um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado algum”.[5] Outra crítica interessante à teoria natalista reside no seguinte questionamento: Mas se o nascituro não se apresenta como detentor de personalidade jurídica antes do nascimento, seria este uma coisa? A resposta, segundo Flávio Tartuce, acaba sendo positiva a partir da constatação de que antes do nascimento apenas há expectativa de direitos, segundo os natalistas. [6] Além disso, é importante trazer à baila o fato de que esta teoria encontra-se muito distante da realidade atual se analisarmos o surgimento de novas tecnologias de reprodução assistida, de pesquisas com células-troncos embrionárias e, consequentemente, na proteção dos direitos do embrião. Em que pese o dito sobre o distanciamento da teoria natalista à realidade em que se encontra o Direito atual, apud Carolina Ferraz, o doutrinador Reinaldo Pereira e Silva ressalva que esta teoria ainda encontra muita aceitação no seio social. Senão vejamos: “Essa teoria, após todo o avanço da embriologia humana, não pode ser considerada apta a formar a conceituação do início da vida humana, mas no contexto cultural ela ainda é muito influente”.[7] Destarte, do ponto de vista prático, a teoria em comento nega ao nascituro – e, nesta esteira, ao embrião crioconservado – os seus direitos fundamentais, tais como os direitos da personalidade e o direito à vida. Sua doutrina esbarra, inclusive, na segunda parte do artigo 2º do Código Civil, conforme acima esposado, no sentido de que esta Lei ressalva determinados direitos ao nascituro. 1.3. Teoria da Personalidade Condicionada: Esta teoria, semelhantemente à natalista, defende que a personalidade civil tem seu início a partir do nascimento com vida, fazendo a ressalva, contudo, de que determinados direitos do nascituro estão sujeitos a uma condição suspensiva, ou seja, são direitos eventuais. Um dos principais nomes filiados a esta teoria é Serpa Lopes que, no sentido de atribuir a condição suspensiva aos direitos do nascituro, invoca Salvat para advertir que no Direito argentino o nascimento se apresenta como uma condição resolutória, enquanto que no sistema pátrio o nascimento tem-se como uma condição suspensiva.[8] Entende-se assim porque no ordenamento argentino, o ser já concebido é considerado um ser real, já existente e, portanto, capaz de adquirir direitos; enquanto que no Brasil o nascituro é detentor de alguns direitos não pela sua condição de sujeito de direitos, mas tão somente pela possibilidade do nascimento. São in verbis as palavras de Serpa Lopes: “De fato, a aquisição de tais direitos, segundo o sistema do nosso Código Civil, fica subordinada à condição de que o feto venha a ter existência; se tal sucede, dá-se a aquisição; mas, ao contrário, se não houver o nascimento com vida, ou por ter ocorrido um aborto ou por ter o feto nascido morto, não há uma perda ou transmissão de direito, como deverá de suceder, se ao nascituro fosse reconhecida uma ficta personalidade. Em casos tais, não se dá a aquisição de direitos”[9]. Conforme sabido, a condição suspensiva é aquela capaz de atribuir aos negócios jurídicos subordinação a evento futuro e incerto. Por outro lado, a condição resolutória diz que o negócio jurídico será extinto mediante a ocorrência de determinado fato. Ora, analisando a premissa apontada por Serpa Lopes, no sentido de atribuir condição suspensiva ao nascimento com vida do nascituro, é importante ressaltar que o não nascimento acarretará a inexistência de direitos a este, de maneira que se queda latente o caráter de condição resolutiva do evento nascimento. Neste sentido, Silmara Chinelato, fazendo referência às conclusões de Serpa Lopes e de Gastão Grossé Saraiva acerca do nascimento ser condição suspensiva, leciona que: “Suas conclusões reduz-se a duas premissas básicas: a) a personalidade jurídica do homem começa desde a concepção; b) os direitos do nascituro estão sujeitos a uma condição suspensiva (a do seu nascimento com vida). Parecem-no inconciliáveis essas premissas. Se a personalidade é condicional, desde a concepção, a condição do nascimento – sem vida – é resolutiva, e não suspensiva.”[10] Outra crítica contundente a esta teoria da personalidade condicionada é sua preocupação eminentemente patrimonial, olvidando-se de tratar acerca dos direitos da personalidade no que tange à condição de sujeito de direito do nascituro e do embrião crioconservado. Na verdade, vivencia-se a era de constitucionalização do direito civil, no sentido de que a dignidade da pessoa humana tem-se como valor máximo do ordenamento pátrio. Desta maneira, questões essencialmente patrimonialistas não devem prevalecer sob os direitos da personalidade. Importante ressaltar também que os direitos da personalidade, por encontrarem amparo constitucional, não estão sujeitos a qualquer condição, termo ou encargo como defende tal corrente[11], de maneira que não pode prevalecer a mera expectativa de direitos enquanto o nascimento como condição resolutiva não ocorrer. Neste viés, pactua-se com o entendimento do Professor Flávio Tartuce ao considerar a teoria da personalidade condicional como essencialmente natalista. Isso porque ambas as teorias partem da premissa de que é o nascimento com vida que dá início à personalidade civil, de modo que apenas a partir deste fato é que o indivíduo será detentor de direitos[12]. 1.4. Teoria Concepcionista: Em contraponto às duas teorias acima aduzidas, a concepcionista defende que a vida – e, portanto, a personalidade civil do indivíduo – se inicia com a concepção, de maneira que não mais prevalece o entendimento de que é o nascimento com vida o marco inicial capaz de gerar tutela jurídica ao nascituro e ao embrião in vitro. Neste sentido, R. Limongi França (apud CHINELATO, 2000, p. 159) defende que a personalidade civil passa a existir a partir da concepção, refutando a ideia defendida pela teoria da personalidade condicionada, a qual perpetua ensinamentos no sentido de que a proteção jurídica do nascituro só passaria a existir a partir da condição do nascimento com vida. “A condição do nascimento não é para que a personalidade exista, mas tão somente para que se consolide a sua capacidade jurídica”. Indubitáveis são as transformações pelas quais o Direito vem passando se analisarmos os grandes avanços tecnocientíficos na embriologia moderna. Os debates acerca do início da vida tornaram-se mais frequentes e, por óbvio, mais férteis em argumentos biológicos. Neste sentido, registre-se que a teoria concepcionista a princípio debatia apenas acerca do início da personalidade civil do nascituro, considerado como o ser já concebido no ventre materno, mas ainda não nascido, sem que para tanto fossem analisados os direitos do embrião crioconservado. Isso porque, conforme dito acima, as técnicas de reprodução assistida e as pesquisas embrionárias são novidade para o mundo científico e, principalmente, para o mundo jurídico. Seus estudos, no campo do Direito pátrio, não datam mais de 15 anos (a exceção de estudos pontuais)[13], de maneira que apenas recentemente passou-se a discutir a condição de sujeito de direito do embrião produzido em laboratório. Consequentemente, inúmeras teorias acerca do início da vida despontaram com as novidades da embriologia, apresentando extrema relevância científica na datação da fecundação. Antes de adentrarmos no estudo destas novas teorias, é importante trazer à baila a diferença entre os termos fertilização e concepção em seus sentidos estritamente biológicos, posto serem utilizados como sinônimos pela doutrina civilista. A fertilização é o momento exato em que o espermatozoide (gameta masculino) penetra o óvulo (gameta feminino). Desde este momento, para a biologia moderna, iniciam-se uma série de reações irreversíveis, as quais culminarão na formação de um novo indivíduo. Já a concepção é o momento em que há a fusão nuclear entre o espermatozoide e o óvulo, ou seja, trata-se de período posterior à fertilização. É nesta ocasião em que a célula passa a possuir apenas um núcleo, adquirindo garantias genéticas únicas e distintas das advindas de seus progenitores. Nesta esteira, surgiram a Teoria da Singamia e a Teoria da Cariogamia. A primeira faz referência ao processo de fertilização, aduzindo que é a partir deste momento que uma série de reações em cadeia garante o que se pode denominar de individualização/personalização do homem (FERRAZ, 2011, p.17). A segunda, todavia, defende que o início da vida se dá a partir da fusão dos pronúcleos feminino e masculino no interior do ovo, sendo o resultado desta fusão o ser humano concebido (FERRAZ, 2011, p.17 e 18). Em que pese o surgimento destas novas teorias acerca do início da vida e suas exatidões acerca de termos biológicos, é importante ressaltar que ambas são consideradas para a doutrina civilista ramificações da Teoria Concepcionista. Inegáveis são as diferenças entre a Teoria da Singamia e da Cariogamia. Todavia, a sua importância parece mais conceitual do que prática, tendo em vista que o lapso temporal entre a fertilização e a concepção é de 12 horas[14]. Assim sendo, optando por seguir uma ou outra, o operador do direito estará igualmente tutelando a condição de sujeito de direito e, consequentemente, de pessoa humana em formação do embrião produzido em laboratório, razão pela qual opta-se a presente pesquisa pela adoção da Teoria Concepcionista sem as devidas especializações por se entender que esta possui maior relevância na doutrina jurídica pátria. 1.5. A Personalidade Civil do Embrião no Ordenamento Pátrio: Antes de adentrar-se na especificação do tema, faz-se necessário um breve apanhado acerca do entendimento psicológico e jurídico – a fim de diferenciá-los – do conceito de personalidade. Para a psicologia, a personalidade pode ser conceituada como as peculiaridades apresentada por determinado indivíduo, nas quais influenciam sua conjuntura civil, ideológica, moral e pessoal, bem como a comunidade em que habita. Neste sentido: “A personalidade de certo indivíduo é a reflexão de um complexo de fatores desde o fisiológico ao psicológico, ela é a combinação da constituição temporal e fruto da construção do caráter e temperamento individual, estes latentes em cada um de nós”.[15] Diferentemente do conceito psicológico, o conceito jurídico de personalidade em seu sentido clássico envolve uma criação do Direito acerca do momento em que um indivíduo passa a ser apto a exercer direitos e contrair obrigações. Comparativamente, Clóvis Beviláqua (apud CHINELATO, 2000, p.127) entende que não cabe confusão entre os conceitos jurídicos e psicológicos da personalidade. “Certamente o indivíduo vê em sua personalidade jurídica a projeção de sua personalidade psíquica; todavia, na personalidade jurídica intervém um elemento, a ordem jurídica, do qual ela depende essencialmente, do qual recebe a existência, a forma, a extensão, a força ativa”. Assim sendo, a personalidade jurídica é instituto atribuído e reconhecido para todo e qualquer ser humano, independentemente de haver consciência ou vontade em suas ações. Este é, pois, atributo inseparável do indivíduo, sendo ele pessoa humana nascida ou em plena formação, sem que para tanto haja avaliação de seu estágio de crescimento. Cumpre o exame, neste passo, da capacidade civil, conceito atrelado ao da personalidade, mas que com este não se confunde. O art. 1º do atual Código Civil reconhece a capacidade como a medida da personalidade, atribuindo-a a todo e qualquer indivíduo. Observemos: “Art. 1º Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.”[16] Nas sábias palavras da Doutora Maria Helena Diniz, a capacidade é a “maior ou menor extensão dos direitos de uma pessoa”[17]. Este instituto, no ordenamento pátrio, divide-se em capacidade de gozo ou de direito e capacidade de fato ou de exercício. A primeira (capacidade de gozo) em muito se assemelha à própria personalidade jurídica, posto ser considerada como a aptidão do indivíduo para adquirir direitos e contrair obrigações na vida civil. Doutrinadores renomados, inclusive, consideram que entre ambos os conceitos há confusão, citando-se Clóvis Beviláqua (apud CHINELATO, 2000, p.128) e Orlando Gomes. Já a capacidade de fato pode ser conceituada exatamente como a possibilidade do indivíduo de, por si mesmo,exercer os atos da vida civil. Tal capacidade, por óbvio, depende de critérios como discernimento e experiência. Ultrapassada as discussões conceituais, torna-se oportuno adentrar no cerne do questionamento a fim de possibilitar os debates acerca do início da personalidade jurídica para o ser humano e, consequentemente, na sua aplicação aos embriões in vitro. De fato, a doutrina majoritária vem se pronunciando no sentido de atribuir personalidade jurídica ao nascituro, ou seja, o ser humano já concebido, mas ainda em formação no ventre materno. Grandes questionamentos, todavia, ainda circundam a aplicação destes direitos aos embriões crioconservados, a saber, embriões produzidos artificialmente e congelados em baixíssimas temperaturas para a sua conservação no intuito de uma futura implantação no útero materno. Acredita-se que a vida humana não poderá sofrer determinadas diferenciações que as descaracterizem enquanto pessoa, muito embora se encontre em fases de desenvolvimento distinta e, portanto, suas peculiaridades devam ser respeitadas. Se é a partir da concepção que surge o processo de individualização do ser, diferenciando-o geneticamente da geratriz, é neste momento que deve ser adquirida a personalidade jurídica e, consequentemente, a capacidade de direito. Neste ponto, não se exime o presente trabalho de transcrever os ensinamentos de Dernival Brandão (apud FERRAZ, 2011, p. 21), que levanta questionamentos extremamente interessantes sobre a questão: “De fato, existem autores que procuram definir reparos de tempo para tentar introduzir conceitos sobre o início da vida. Entretanto, essas definições esbarram na limitação em definir o que seria o estágio imediatamente anterior. Se a vida do novo ser humano se inicia na implantação endometrial, o que era antes? Já que fica difícil admitir pela intensa divisão e diferenciação celular que era um material humano sem vida, seria vida sem ser humana? Mas se fosse vida sem ser humana, como é que exibe os cromossomos característicos da espécie humana, os mesmo que são mantidos até a morte no período senil? (…) Por outro lado, é também verdade que o embrião se encontra numa fase inicial da existência. Mas a dignidade não se vincula a esta ou àquela fase da vida: ela é inerente à condição humana. Se assim não fosse, estaríamos abrindo as portas para todo tipo de arbítrio, onde os mais fortes decidiriam pela sorte dos mais fracos.” [18] (grifos nossos). Importa ressaltar que, muito embora ainda se encontrem dificuldades na quebra de paradigmas para que o embrião seja considerado sujeito de direito, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 478/2007, mais conhecido como Estatuto do Nascituro, o qual visa, para fins de personalidade jurídica, equiparar os nascituros e os embriões. Assim dispõe o parágrafo único do art. 2º deste projeto: “Art. 2º Nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido. Parágrafo único. O conceito de nascituro inclui os seres humanos concebidos “in vitro”, os produzidos através de clonagem ou por outro meio científica e eticamente aceito”.[19] Desta maneira, não vislumbramos nenhuma dificuldade em considerar o ser humano já nascido, o nascituro e o embrião in vitrocomo sujeitos de direitos e, portanto, detentores de capacidade de direito e personalidade jurídica. Muito embora se encontrem em momentos diferenciados em seu desenvolvimento e em sua evolução, tal fato não é capaz de diminuir ou restringir a sua situação no mundo jurídico. [20] A capacidade de fato, por outra esteira, não poderia ser atribuída ao nascituro, tampouco ao embrião crioconservado, tendo em vista que ambos não podem por motivos óbvios exercer por si mesmos os atos da vida civil. 2. A Condição de Sujeito de Direito do Embrião in vitro. 2.1. A Situação Jurídica dos Embriões, dos Nascituros e da Pessoa Natural sob uma Análise Comparativa: A fim de ampliar a discussão acerca da condição de sujeito de direito do embrião crioconservado, um estudo comparativo quanto ao nascituro e à pessoa já nascida se faz necessário ante a polêmica da tese em defesa. Inicia-se, pois, tal análise partindo-se da conceituação destas três fases por quais perpassam a vida humana, sendo a primeira obrigatória tão somente em casos de geração da vida por métodos de reprodução assistida. Conforme anteriormente explanado, o nascituro conceitua-se doutrinária e biologicamente como a vida humana em fase de crescimento e desenvolvimento intrauterino. Assim como o nascituro, o embrião in vitro também se trata de vida humana em formação, ou seja, já concebida, mas que ao momento se encontra em fase laboratorial criopreservada. Ultrapassada a discussão acerca do início da vida humana com a escolha pelo entendimento de que esta se inicia a partir da concepção, pois que diante deste momento encetam-se uma série de divisões celulares que desembocam no nascimento – salvo se houver algum problema de má-formação ou quaisquer outro sinistro de natureza biológica –, enxerga-se que a diferenciação entre o nascituro e o embrião crioconservado reside na nidação. Nestes termos, a nidação é a fase em que o óvulo já concebido implanta-se naturalmente na cavidade intrauterina, momento no qual o embrião passa a ser chamado de nascituro[21]. Ora, vislumbra-se claramente uma semelhança entre ambos os estágios da vida humana, pois que o embrião crioconservado quando implantado no útero materno será nascituro e, por óbvio, o nascituro antes do processo nidatório encontrava-se no estágio de embrião. Alguns advogam na tese de que há grande incerteza na continuidade do desenvolvimento da vida humana no que tange ao embrião crioconservado. Mas tal incerteza, ressalta-se, permeia também a vida intrauterina, pois que não há como afirmar categoricamente que haverá o nascimento, muito embora a medicina tenha conseguido avanços extraordinários quanto aos estudos de doenças e más-formações no desenvolvimento no interior do útero materno. Neste sentido são as lições de Carolina Ferraz: “No tocante ao desenvolvimento do nascituro, durante sua vida intrauterina não há certeza de nascimento com vida, mesmo considerando o acompanhamento médico, o avanço da medicina de diagnóstico e neonatal; na mesma medida o descongelamento e implantação do ser humana in vitro também podem ensejar no óbito da pessoa humana em situação de laboratório, seja pelo uso de técnicas equivocadas, ou pela interrupção da gravidez em decorrência, por exemplo, de problemas de saúde da geriatriz”.[22] Impende ressaltar, ademais, que atualmente há um crescimento relevante na adoção da teoria concepcionista dentre os doutrinadores mais renomados no que tange ao nascituro, muito embora doutrinadores mais clássicos permaneçam defendendo que o início da vida humana só se dará com o nascimento[23]. Destarte, não faz muito tempo que o nascituro era relegado completamente ao estado de coisa jurídica, sem que para tanto lhe fosse concebido o status de vida humana que lhe é inerente. O que se verifica são os avanços nos estudos científicos e jurídicos acerca do início da vida, de maneira que o posicionamento supramencionado precisou ser revisto. Vislumbra-se, ademais, esta mesma fase de adaptações conceituais e modificações de entendimentos com o embrião crioconservado. Reconhece-se que a vida humana aqui perpassa a fase de laboratório e que seu reconhecimento enquanto ser humano invade uma série de dogmas e questionamentos que tornam quase impossível que tal concepção seja aceita sem quaisquer ressalvas. Mas é preciso que se diga que a desconstrução de conceitos pré-formados – especialmente porque a ciência e a medicina avançam a passos largos, o que gera grande impacto na esfera jurídica do ser – se faz necessária para que seja protegido o que de mais único existe na existência humana: a própria continuidade da espécie. E não há que se falar que a reprodução natural basta para esta perpetuação, pois que o crescimento na busca de técnicas de fertilização artificial cresce consideravelmente em nosso país. Senão vejamos: “A Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher – PNDS 2006 (Berquó, E; Garcia, S; Lago, T, 2008) revelou que 37% das mulheres em idade fértil declararam não poder ter filhos ou mais filhos, seja porque foram esterilizadas ou porque são inférteis. Este percentual cresce para 57% no grupo de mulheres de 35 a 49 anos. Por outro lado, das férteis nessa faixa etária, 7% declararam querer ter filhos. Se levarmos em conta os níveis de arrependimento associados às prevalências de esterilização femininas e também o eventual adiamento do desejo da maternidade, teremos um elevado percentual de mulheres que poderão recorrer aos serviços de reprodução assistida para engravidar. A demanda por serviços baseados nas Tecnologias de Reprodução Assistida (TRA) tem crescido substancialmente nos países europeus e nos Estados Unidos (Spar 2006). Mas também no Brasil, há demanda crescente por serviços de reprodução assistida que, em sua vasta maioria, são oferecidos por clínicas privadas a um custo significativamente elevado. Além da regulação ainda tímida e incipiente, a elaboração de políticas de saúde e de C&T nessa área se ressentem da falta de conhecimento sobre como esse mercado de serviços se caracteriza. Essa proposta visa investigar a situação da demanda e oferta dos serviços de reprodução assistida no Brasil, bem como seus aspectos sociodemográficos, legais e éticos”.[24] Outra pesquisa, realizada com mulheres de 25 (vinte a cinco) a 37 (trinta e sete) anos no período entre os anos de 1998 e 2008, indica um aumento na porcentagem de pacientes acima de 35 anos quanto à procura de clínicas de reprodução assistida, conforme gráfico abaixo[25]. Ademais, ainda no que tange ao estudo comparativo entre embrião crioconservado e nascituro, dispõe-se que ambos passaram a ter direitos assegurados no ordenamento pátrio, seja por intermédio de decisões jurisprudenciais, seja por entendimento das Jornadas de Direito Civil. A priori, cita-se como exemplo o posicionamento atualmente adotado pelo STJ, no sentido de conferir a possibilidade na existência de danos morais ao nascituro, concedendo-lhes, portanto, a condição de sujeito de direitos e, como tais, detentores de personalidade jurídica. Senão vejamos: “AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MATERIAIS E MORAIS. NASCITURO. PERDA DO PAI. (…) 2.- "O nascituro também tem direito aos danos morais pela morte do pai, mas a circunstância de não tê-lo conhecido em vida tem influência na fixação do quantum" (REsp 399.028/SP, Rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, DJ 15.4.2002). (…) 4.- "Em ação de indenização, procedente o pedido, é necessária a constituição de capital ou caução fidejussória para a garantia de pagamento da pensão, independentemente da situação financeira do demandado" (Súmula 313/STJ). (…) 7.- Agravo Regimental improvido”. [26] Quanto ao embrião crioconservado, também se pode observar certa regulamentação jurídica enquanto sujeitos de direitos, embora ainda sejam tímidas. Cita-se como exemplo a possibilidade do embrião in vitro receber herança, conforme a Jornada de Direito Civil. Senão vejamos: “Enunciado 267, da CJF – Art. 1.798: A regra do art. 1.798 do Código Civil deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição da herança.”[27] “Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”.[28] Finaliza-se este estudo comparativo entre o embrião crioconservado e o nascituro, para que possam ser analisadas as relações de similitude entre aquele e a pessoa humana já nascida, com as belíssimas palavras de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka: “o conceito tradicional de nascituro – ser concebido e ainda não nascido – ampliou-se para além dos limites da concepção in vivo (no ventre feminino), compreendendo também a concepção in vitro (ou criopreservação). Tal ampliação se deu exatamente por conta das inovações biotecnológicas que possibilitam a fertilização fora do corpo humano, de modo que nascituro, agora, permanece sendo o ser concebido embora ainda não nascido, mas sem que se faça qualquer diferença o locus da concepção.”[29] De logo, importante ressaltar que se defende a ideia de que a grande diferença entre o embrião in vitro e a pessoa humana já viva é o grau de desenvolvimento de ambos. Se por um lado há uma pessoa detentora da capacidade de direito e de fato – esta última se não configurados os requisitos excludentes dos artigos 3º e 4º do Código Civil –, por outro há pessoa em situação de laboratório detentora tão somente de capacidade de direito, pois que esta é inerente ao ser humano[30]. Outrossim, toda a argumentação no sentido de demonstrar as semelhanças entre nascituro e embrião in vitro se aplicam ao ser humano já nascido, tendo em vista que este já figurou como embrião em alguma fase de seu desenvolvimento, bem como restou demonstrado que a pessoa em estado de laboratório possui alguns direitos da personalidade resguardados pela doutrina majoritária, inclusive no que tange ao recebimento de herança. Inegável, contudo, que o sentimento exposto e transmitido a uma pessoa já nascida, a um o nascituro e a um embrião crioconservado ultrapassam fases inexoravelmente diferentes. Prova disto é que a pessoa em situação de laboratório majoritariamente não é vista como pessoa, pois que os indivíduos carregam consigo uma concepção pré-formada de que só é humano aquilo que possui uma forma que minimamente o caracterize como tal. Todavia, independentemente de sentimento, o que se defende com afinco é o respeito à vida humana em qualquer estágio, posto que, conforme explanado anteriormente, não há a posicionamento uníssono acerca do momento em que a vida se inicia após a concepção.Assim, indicar qualquer momento posterior ao começo das divisões celulares, as quais desembocarão na pessoa humana nascida, como o início da vida é decisão arbitrária e, como tal, poderá gerar uma série de desrespeitos ao princípio da dignidade humana, que rege todo o nosso ordenamento. 2.2. A Constitucionalização do Direito Privado e os Princípios Constitucionais aplicáveis ao Embrião In Vitro: Desde o advento do mundo romano-germânico assiste-se a uma distância fática entre direito constitucional e direito civil, pois que ambos seriam diametralmente opostos ante o entendimento do direito aplicável à época. Atualmente esta máxima encontra-se hermeneuticamente ultrapassada, haja vista que vivenciamos no neoconstitucionalismo uma aproximação entre direito público e direito privado[31]. A chamada “constitucionalização do direito civil” advém exatamente da inserção nas constituições de conceitos fundamentais historicamente atribuídos ao direito civil. Neste sentido, claras são as lições do mestre Paulo Lôbo. Senão vejamos: “Os estudos mais recentes dos civilistas tem demonstrado a falácia dessa visão estática, atemporal e desideologizada do direito civil. […] Na atualidade, não se cuida de buscar a demarcação dos espaços jurídicos distintos e até contrapostos. Antes havia a disjunção; hoje, a unidade hermenêutica, tendo a Constituição como ápice conformador da elaboração e aplicação da legislação civil. A mudança de atitude é substancial: deve o jurista interpretar o Código Civil segundo a Constituição e não a Constituição, segundo o Código Civil, como ocorria com frequência (e ainda ocorre).”[32] Detendo-se ao fato de que a partir de então a interpretação do código civil deve ser realizada mediante uma interligação obrigatória ao texto constitucional, é preciso ressaltar que aLex Matterpátria possui como fundamento máximo a dignidade da pessoa humana, razão pela qual qualquer regulamentação infraconstitucional deverá observá-la veemente. Assim sendo, o Código Civil de 2002 e o Código Civil de 1916 se diferenciam em sua essência, pois que os criadores do texto antigo pretenderam apresentar resoluções a todos os problemas jurídicos existentes a partir de situações categóricas. O novo Código Civil, pelo contrário, optou por uma análise jurídica diferenciada, pautando-se acima de tudo em princípios jurídicos e metajurídicos, mais especificamente nos princípios da socialidade e da eticidade. Importa, neste momento, trazer à baila as palavras do maior idealizador do atual Código Civil, a saber: “Daí a consequência de novo entendimento do que seja “sujeito de direito”, não mais concebido como um indivíduo in abstracto, em uma igualdade formal, mas sim em razão do indivíduo situado concretamente no complexo de suas circunstâncias éticas e socioeconômicas”.[33] Destarte, mediante esta breve análise acerca da intercomunicação apresentada entre direito civil e direito constitucional é que o presente trabalho pode se ater aos princípios constitucionais aplicáveis ao embrião crioconservado, pois que enquanto sujeito de direitos – pessoas em formação – merecem tutela de sua dignidade e de sua vida. A priori, é preciso que se diga que o princípio do direito à vida pode ser retirado do caput do art. 5º da nossa Constituição Federal quando esta nos diz que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade nos seguintes termos”[34]. Trata-se, pois, da tutela da integralidade existencial ante o consequente enquadramento da vida como um direito fundamental. Ora, se o presente trabalho se propõe a defender que a vida se inicia desde a concepção, seria ilógico não coadunar com a aplicação deste princípio ao embrião in vitro que, apesar de sua existência se dar fora do ventre materno, apresenta-se como sujeito de direitos ante o ordenamento pátrio. Sobre o sentido da palavra vida para o Direito, belíssimas são as lições do renomado doutrinador José Afonso da Silva (apud Ferraz, 2011, pág. 36): “É um risco de se ingressar no terreno suprarreal, que não levará a lugar algum. Mas alguma palavra há de ser dita sobre esse ser que é objeto de direito fundamental. Vida, no sentido constitucional (art. 5º, caput), não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante autoatividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas compreensão, porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando, então de ser vida para ser morte. Tudo que interfere em prejuízo desse fluir espontâneo e incessante contraria a vida.” Assim, se é certo afirmar que não há posição uníssona quanto ao início da vida, pois que cada indivíduo se atém a esferas de suas próprias crenças para balizar a existência humana, correto é dizer que a não aplicação das diretrizes básicas do princípio do direito à vida ao embrião crioconservado por entendê-lo enquanto coisa jurídica é deveras perigosa. O argumento de que a Constituição Federal não apresenta fundamentos suficientes para a proteção da vida em laboratório demonstra-se raso, pois que seu texto fora construído em cima de princípios e conceitos abertos exatamente para abarcar novas situações existentes no mundo fático, as quais in casu originam-se da efervescência científica presenciada. Isso porque, quando da sua criação em 1988, seria impossível que a constituinte originária pudesse prever todas as situações futuras a serem tuteladas, de maneira que a interpretação do texto constitucional deve ser realizada mediante uma observância macro da realidade social atual. Os operadores e intérpretes do ordenamento, portanto, devem levar em consideração novas situações ante a sua importância para toda a humanidade. Não se coaduna com o posicionamento, contudo, que o princípio do direito à vida aplicável ao embrião crioconservado pode ser interpretado como um direito absoluto, dando-lhe uma concepção de que o embrião tem direito a nascer sob qualquer hipótese; não podendo, portanto, ser utilizado em pesquisas embrionárias. Neste sentido, fazemos oposição às palavras da professora Carolina Ferraz, que parece entender o princípio do direito à vida enquanto garantia fundamental e absoluta. Senão vejamos: “Sobre o direito de nascer devemos considerá-lo como sendo o direito que toda pessoa concebida tem de nascer e de não ter impedido o desenvolvimento de sua vida, a fim de alcançar o seu desenvolvimento pessoal, espiritual e material. […] Consideramos o direito à vida como o direito a não morrer, em outras palavras a não ser descartado, cedido a experimentos científicos – inviabilizando dessa maneira o nascimento; a não sofrer também redução embrionária, pois entendemos ser esta uma prática abortiva.”[35] Com a devida vênia ao pensamento acima esposado, não se harmonizam os pensamentos ora apresentados com uma aplicação cega e desmedida do princípio do direito à vida ao embrião in vitro, tendo em vista que outros fatores devem ser sopesados. É preciso analisar a questão por um viés principiológico: se de um lado tem-se o direito à vida aplicável ao embrião, de outro há o princípio da solidariedade, pois que a pesquisa com célula-tronco trata de uma possível melhoria de vida a ser vivenciada por toda a coletividade. Nesta diapasão, importantes são as palavras do doutrinador francês Léon Duguit (APUD Marcos Ehrhardt), as quais demonstram visceralmente os direitos do indivíduo enquanto ser social de uma coletividade. Senão vejamos: “[…] o ser humano nasce integrando uma coletividade; vive sempre em sociedade e assim considerando só pode viver em sociedade […] o fundamento do direito deve basear-se, sem dúvida, […] [no] indivíduo comprometido com os vínculos da solidariedade social. Não é razoável afirmar que os homens nascem livres e iguais em direitos, mas sim que nascem partícipes de uma coletividade e sujeitos, assim, a todas as obrigações que subentendem a manutenção e desenvolvimento da vida coletiva. […] Se uma doutrina adota como lógica definida a igualdade absoluta e matemática dos homens, ela se opõe à realidade e por isso deve ser prescindida.”[36] Vislumbrando-se, pois, que por vezes os interesses individuais devem ceder diante de interesses coletivos, ou até mesmo diante de outros interesses individuais, é que se verifica não haver no ordenamento pátrio nenhum princípio de caráter absoluto, conforme defende a técnica de ponderação de princípios defendida por Robert Alexy. Este doutrinador entende ocorrer ponderação quando dois princípios,que poderiam ser aplicados ao caso concreto, se demonstram colidentes, razão pela qual a questão deve ser solucionada a partir da escolha de um deles. Desta feita, um deverá ceder ao outro, muito embora ambos sejam válidos para o ordenamento, através de um sopesamento dos interesses apresentados na lide. O posicionamento acerca da não existência de princípios absolutos na legislação pátria encontra respaldo no entendimento do Supremo Tribunal Federal, conforme as palavras do ministro Gilmar Ferreira Mendes abaixo colacionadas: “[…] em palavras do próprio Alexy, o princípio da dignidade da pessoa comporta graus de realização, e o fato de que, sob determinadas condições, com um alto grau de certeza, preceda a todos os outros princípios, isso não lhe confere caráter absoluto, significando apenas que quase não existem razões jurídico-constitucionais que não se deixem de comover para uma relação de preferência em favor da dignidade da pessoa sob determinadas condições.”[37]  In casu, estamos diante do choque de dois princípios constitucionais (para que não se apresentem por ora outros tantos princípios vislumbrados nesta celeuma): o princípio do direito à vida x o princípio da coletividade, este último aplicável no que tange especificamente à utilização de embriões crioconservados para pesquisas com células tronco. A doutrinadora acima mencionada, a honrada professora Carolina Ferraz, a quem fazemos oposição ao momento, entende que o direito à vida deverá prevalecer. Entende-se, contudo, que a questão merece análise mais detida, razão pela qual será utilizado o terceiro capítulo do presente trabalho para um estudo mais direcionado a fim de que seja defendido o ponto de vista de que o princípio da solidariedade devepreponderar. Além do princípio do direito à vida, doutrinadores especialistas em biodireito apontam também para o princípio da dignidade da pessoa humana como outra garantia aplicável ao embrião in vitro. Trata-se de fundamento da República Federativa brasileira enquanto Estado Democrático de Direito, conforme art. 1º, III, da Constituição Federal[38]. Importante destacar a definição trazida pelo mestre Alexandre de Moraes, a saber: “a dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão do respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos”.[39] Considera-se tal assertiva deveras lúcida, pois que o autor teve a sensibilidade de demonstrar a dignidade humana enquanto garantia determinante para a efetivação do respeito ao ser humano e ao seu mínimo existencial, sem se olvidar de que – assim como qualquer princípio – este poderá sofrer limitações quando necessárias sem permitir, contudo, o desprezo à condição humana inerente à pessoa. Quanto à aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana ao embrião crioconservado, entende-se ser perfeitamente aplicável, pois que se trata da vida humana já concebida, mas ainda em formação. Nestes termos, colacionamos as palavras de Jussara Maria Leal de Meirelles (apud FERRAZ, 2011, p. 44): “é preciso lembrar que os embriões de laboratório podem representar as gerações futuras; e, sob ótica oposta, os seres humanos já nascidos foram, também, embriões na sua etapa inicial de desenvolvimento (e muitos deles foram embriões de laboratório). Logo, considerados os embriões humanos concebidos e mantidos in vitro como pertencentes à mesma natureza das pessoas humanas nascidas (…) a elas são perfeitamente aplicáveis o princípio fundamental da dignidade (…)”[40] Em que pese o dito, mais uma vez ressalta-se que não se coaduna com parte da doutrina que defende ser aplicável irrestritamente o princípio da dignidade da pessoa humana ao embrião crioconservado, exatamente nas mesmas proporções que este se aplica ao ser humano já formado. A posição aqui adotada é no sentido de que o princípio da dignidade da pessoa humana tem função precípua no combate à manipulação do embrião in vitro tão somente para fins de pesquisas científicas. É preciso que se diga que, muito embora seja defendida a utilização do embrião crioconservado em pesquisas com célula tronco pelos motivos mais a frente esposados, não se aceita a ideia de sua produção tão somente com este objetivo, pois que se trata de vida humana em formação. Admiráveis, portanto, são as palavras de Maria Celina Bodin de Moraes: “compõe o imperativo categórico a exigência de que o ser humano seja visto, ou usado, jamais como um meio para atingir outras finalidades, mas sempre como um fim em si. Isto significa que todas as normas decorrentes da vontade legisladora dos homens precisam ter como finalidade o homem, a espécie humana enquanto tal. O imperativo orienta-se, então, pelo valor básico, universal e condicional da dignidade humana”.[41] Ademais, ressalta-se que a defesa na utilização de embrião in vitro para fins de pesquisas com células-tronco não se trata de oposição à dignidade da pessoa humana desta vida em formação, pois que se verifica mais uma vez o choque deste princípio com o princípio da solidariedade. Conforme a citação acima, a vida humana nunca deverá ser utilizada para outras finalidades, mas tão somente tendo como finalidade a própria vida humana. Ora, e qual outra finalidade que a pesquisa com células-tronco nos apresenta senão a melhoria de condições à vida da coletividade? É, pois, a utilização do ser humano buscando avanços científicos que possibilitem maior qualidade de vida para si mesmo. Ademais, os doutrinadores que são contrários à utilização da vida embrionária in vitroapresentam como argumento uma possível instrumentalização da vida humana ali presente. Vejamos as palavras de Carolina Ferraz: “temos o desrespeito à vida da pessoa humana em fase embrionária, quando os embriões in vitro são eliminados, ou ainda ocorrendo manipulação com o firme propósito de assegurar pesquisas em detrimento da vida humana que ali se encontra.”[42] Acerca desta sobredita possibilidade de instrumentalização, a bem da verdade é preciso que seja pontuada a necessidade de se proceder com a coleta de mais de um óvulo para o sucesso da técnica e bem-estar psicofísico da paciente. Isto porque quando maior o número de embriões formados, maior será a probabilidade de eficácia da técnica. Neste sentido, contudo, importa ressaltar que o Conselho Federal de Medicina regulamentou através da Resolução CFM nº 2013/13 a quantidade de embriões máxima a ser implantada no útero materno seguindo-se uma proporcionalidade ante a idade materna. Vejamos: “I – Princípios Gerais: 6 – O número máximo de oócitos e embriões a serem transferidos para a receptora não pode ser superior a quatro. Quanto ao número de embriões a serem transferidos faz-se as seguintes recomendações: a) mulheres com até 35 anos: até 2 embriões; b) mulheres entre 36 e 39 anos: até 3 embriões; c) mulheres entre 40 e 50 anos: até 4 embriões; d) nas situações de doação de óvulos e embriões, considera-se a idade da doadora no momento da coleta dos óvulos.”[43] A grande problemática reside exatamente nos embriões excedentários, haja vista que alguns destes embriões formados por técnica de reprodução assistida não são utilizados na implantação uterina. Dois são os seus destinos mais recorrentes: ou o descarte ou a sua manipulação para fins de pesquisa com células-tronco. Neste sentido, claras são as palavras de Heloisa Helena Barbosa: “A instrumentalização do embrião, em afronta à dignidade humana, e a sua destruição, a significar a exterminação da vida, ainda que em seu estágio inicial, transformam-se em obstáculos ao avanço ilimitado e incontrolado das pesquisas, na medida em que investem contra valores intangíveis”.[44] Conforme anteriormente esposado, aqui se defende a possibilidade de utilização destes embriões crioconservados excedentários para fins científicos, numa clara ponderação de princípios constitucionais entre o direito à vida e o princípio da solidariedade. Desta feita, não se coaduna com o posicionamento de que esta permissividade possa tornar a reprodução assistida mecanismo para a instrumentalização destes embriões, posto que tal técnica tão somente pode ser utilizada segundo a legislação pátria para fins de fecundação. O que se utiliza são os embriões que não foram implantados, os que não seriam viáveis para a implantação ou, ainda, os que – com a permissividade dos genitores – foram destinados à pesquisa. Não se trata, portanto, de uma instrumentalização, mas tão somente de uma utilização inteligente da existência humana, numa interessante simbiose em que a vida humana gera benefícios para a própria vida humana. Ainda que se apegue ao sentido de instrumentalização, a saber, a utilização de determinada coisa para a persecução de um fim, entende-se que tal aparelhamento do embrião crioconservado não é possível, tendo em vista a ausência de permissividade na geração deste tão somente para fins de estudos científicos. Em outras palavras, ao se afirmar que não se vislumbra instrumentalização refere-se o presente trabalho ànão possibilidade de instrumentalização do método de reprodução assistida para fins de formação de matéria-prima a ser utilizada em pesquisas com célula-tronco. Isto não é possível diante da legislação brasileira, a qual apresenta uma série de prerrogativas a fim de permitir a utilização dos embriões crioconservados nos estudos supramencionados. Aliado a tudo quanto fora dito, constata-se ainda que este temor na possível criação de um “mercado de embriões e tecidos humanos” não merece prevalecer, posto que a própria Lei nº 11.105/2005, a qual será mais a frente esmiuçada, proíbe e criminaliza esta comercialização de material biológico. Senão vejamos: “Art. 5o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: […] § 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997[45]. Art. 15. Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano: Pena – reclusão, de três a oito anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa.” Portanto, pensar em uma possível instrumentalização da reprodução humana assistida objetivando tão somente a criação de matéria-prima para pesquisas científicas trata-se de posicionamento descabido. Primeiramente porque a fertilização in vitro não perde seu caráter de planejamento familiar para a procriação, ressaltando-se, ademais, a proibição legislativa no sentido de comercialização de material biológico. Argumenta-se também que o congelamento de embriões excedentários é uma realidade social para a qual o Direito não pode se descuidar. Ora, quando do sucesso do tratamento, os embriões formados por intermédio de procedimento artificial que não foram implantados no útero serão armazenados para que posteriormente possam ser utilizados pela genitora. A verdade é que em boa parte das vezes não há mais o interesse em utilizá-los para nova reprodução, e o armazenamento através da crioconservação é custoso, de maneira que restam três alternativas para os progenitores: (a) doação para outros casais, (b) doação a fim de permitir pesquisas científicas ou (c) descarte. A doação para a utilização de outros casais, por óbvio, não consegue acompanhar a quantidade de embriões excedentários crioconservados, posto ser da natureza humana a vontade de gerar prole com sua origem genética. Na prática, restam duas alternativas, a saber, a doação para pesquisas científicas ou o descarte. Desta feita, em se tratando de embriões fadados ao descarte, não vislumbramos dificuldades na aceitação de sua utilização para fins de pesquisas com células-tronco, as quais – ressalta-se! – visam garantir uma melhoria na qualidade de vida de pessoas nascidas com doenças e más-formações. Através de tudo quanto fora explanado, entende-se que a ponderação entre o direito à vida e o direito à dignidade da pessoa humana do embrião crioconservado merecem ceder ante o princípio da solidariedade, no sentido de que inúmeras vidas serão beneficiadas com a permissividade nas pesquisas com células-troncos embrionárias. 3. A Constitucionalidade do art. 5º da Lei nº 11.105/2005: Direitos Individuais x Direitos Coletivos. 3.1. A Lei de Biossegurança e a ADI nº 3510 – o posicionamento do STF quanto à condição jurídica do embrião crioconservado: Aos dias 24 de março de 2005 o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 11.105/2005, apelidada de “Lei de Biossegurança” pelos juristas. No corpo de seu texto, o legislativo regulamentou temática polêmica, capaz de suscitar expressivamente discussões acerca do início da vida sob um ponto de vista biológico, científico, ético e religioso. O artigo 5º da supramencionada lei, devidamente colacionado abaixo afim de proporcionar aprofundamento no presente estudo, passou a permitir pesquisas com células-tronco embrionárias, retiradas de embriões humanos criados através do método de reprodução assistida heterólogo, qual seja, fertilização in vitro. Senão vejamos: “Art. 5o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I – sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. § 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. § 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa. § 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997”.[46] Tamanha fora a inovação que o então Procurador Geral da República, o Dr. Cláudio Lemos Fonteles, ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3510-0 objetivando questionar a constitucionalidade do referido artigo, tendo em vista que entendeu ser este violador do princípio do direito à vida mediante a condição de sujeito de direito do embrião crioconservado. Em brevíssimas linhas, fora defendido nesta ADI, pois, que o embrião humano encontra-se na posição de vida humana e permitir a pesquisa com célula-tronco embrionária ia de encontro à dignidade da pessoa humana, princípio norteador do nosso atual Estado Democrático de Direito. Por entender, ademais, que tal julgamento seria de extrema importância para o ordenamento pátrio – e vislumbrando seus desdobramentos para além da esfera jurídica – o relator do processo, o ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, admitiu a entrada de diversas entidades da sociedade civil brasileira na posição de amicicuriae, bem como determinou a realização de audiência pública. Desta feita, duas correntes restaram bem delineadas ante os debates ocorridos entre as mais diversas entidades: a primeira, a qual defendia a existência da vida humana a partir da fecundação do óvulo feminino pelo espermatozoide masculino, ou seja, a partir da concepção, seja esta realizada in vivo ou in vitro; e a segunda, a qual defendeu ser o embrião um organismo vivo, mas que – muito embora possa constituir o início da vida – não se configura igualmente à vida humana já nascida ou em fase de desenvolvimento uterino[47]. O relator, a fim de demonstrar a dicotomia apresentada acima, colacionou ao seu voto a posição da DrªMayanaZatz, professora de genética da Universidade de São Paulo, e a da DrªLenise Aparecida Martins Garcia, professora do departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília, os quais seguem respectivamente abaixo: “Pesquisar células embrionárias obtidas de embriões congelados não é aborto. É muito importante que isso fique bem claro. No aborto, temos uma vida no útero que só será interrompida por intervenção humana, enquanto que, no embrião congelado, não há vida se não houver intervenção humana. É preciso haver intervenção humana para a formação do embrião, porque aquele casal não conseguiu ter um embrião por fertilização natural e também para inserir no útero. E esses embriões nunca serão inseridos no útero. É muito importante que se entenda a diferença.[48] Nosso grupo traz o embasamento científico para afirmarmos que a vida humana começa na fecundação, tal como está colocado na solicitação da Procuradoria. (…) Já estão definidas, aí, as características genéticas desse indivíduo; já está definido se é homo ou mulher nesse primeiro momento (…). Tudo já está definido, neste primeiro momento da fecundação. Já estão definidas eventuais doenças genéticas (…). Também já estarão aí as tendências herdadas: o dom para a música, pintura, poesia. Tudo já está ali na primeira célula formada. O zigoto de Mozart já tinha dom para a música e Drummond, para a poesia. Tudo já está lá. É um ser humano irrepetível.”[49] Demonstradas as opiniões formadas na ADI em análise, importante ater toda a atenção ao texto do art. 5º da Lei 11.105/2005 para que se possa futuramente esposar a conclusão a que chega a presente pesquisa. Cumpre demonstrar, a priori, que o caput deste artigo passou a permitir a pesquisa com células-tronco embrionárias retiradas de embriões humanos produzidos através da fertilização in vitro. Para tanto, seguiram-se em seus incisos diversas prerrogativas a serem atendidas. Assim sendo, para serem utilizados em pesquisas científicas seria necessário que os embriões fossem inviáveis – ou seja, incapazes de perpetuar a vida humana caso implantados no útero materno – ou que estes embriões estivessem há 03 (três) anos ou mais congelados, quer seja após a publicação da lei, quer seja, a partir desta, quando completos os três anos como pré-requisito apresentado. Acaso restem dúvidas acerca do parecer de inviabilidade do embrião, importante são as palavras da antropóloga Débora Diniz: “O diagnóstico de inviabilidade do embrião constitui procedimento médico seguro e atesta a impossibilidade de o embrião se desenvolver. Mesmo que um embrião inviável venha a ser transferido para um útero, não se desenvolverá em uma futura criança. O único destino possível para eles é o congelamento permanente, o descarte ou a pesquisa científica”.[50] Ademais, objetivando propor condições ainda mais rígidas, impôs a lei que, em ambos os casos, seria necessário o consentimento dos genitores para a utilização dos embriões em pesquisas científicas, bem como deveriam os pesquisadores possuir aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa para a permissividade de tais estudos. Por fim, dispõe o parágrafo terceiro do referido artigo que a prática de comercialização do embrião crioconservado é vedada, sob pena de se responder pelo crime de “comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano”[51], o qual possui pena em abstrato de três a oito anos, e multa de 200 (duzentos) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa. Deste texto, duas conclusões foram retiradas a partir dos entendimentos acerca do início da vida acima esposado, bem como da condição ou não de pessoa humana do embrião crioconservado. A primeira reflete o entendimento do próprio relator da ADI 3510, qual seja, a opinião de que o texto do referido artigo se demonstra preocupado com questões bioéticas, respeitando o embrião crioconservado como o início da vida, mas não como sujeito de direito. São estas as palavras do relator: “Ao inverso, penso tratar-se de um conjunto normativo que parte do pressuposto da intrínseca dignidade de toda forma de vida humana, ou que tenha potencialidade para tanto, ainda que assumida ou configurada do lado de fora do corpo feminino (caso do embrião in vitro)”.[52] A segunda, por outro viés, considera o texto legal um absurdo, pois que desrespeita a vida humana em formação, ferindo cabalmente o princípio da dignidade da pessoa humana. Argumenta-se, para tanto, que pesquisas com células-tronco poderiam seguir seus caminhos utilizando-se tão somente as que poderiam ser retiradas de uma pessoa já nascida, sem que para tanto fosse praticada espécie de aborto com a pessoa humana em situação de laboratório[53]. Em que pesem as duas opiniões parecerem paradoxais, não são. Ambas apresentam pontos em que se demonstram mais razoáveis e mais dignas com a vida humana em seus diversos estágios de evolução. Todavia, ambas pecam pelo seu radicalismo: a primeira chega à conclusão correta, mas para tanto reduz o embrião crioconservado à situação de coisa jurídica; já a segunda defende a condição de sujeito de direito do embrião, reconhecendo sua fase evolutiva na vida humana em formação, mas chega à conclusão de que a legislação pátria desrespeita prerrogativas constitucionais, deixando de lado os avanços que poderão existir – e beneficiar milhões de pessoas já nascidas, ressalta-se! – com a permissão da pesquisa com células tronco. Permanecendo nesta análise de ambos os posicionamentos apresentados, importa tecer as críticas necessárias aos dois entendimentos. Parte-se, para tanto, do posicionamento adotado por algumas entidades representativas que ingressaram na ADI 3510-0 na posição de amicicuriae, bem como de alguns biológicos e cientistas: o embrião crioconservado enquanto pessoa humana em situação de laboratório. É bem verdade que ao longo deste trabalho defendeu-se com afinco a condição de sujeito de direito do embrião in vitro, exatamente por se entender que a vida se inicia a partir da concepção – junção do óvulo feminino com o espermatozoide masculino –, quer seja esta realizada pela forma natural ou pela artificial. Assim se posicionou a presente pesquisa por vislumbrar que a vida humana se inicia a partir da fecundação e, neste exato instante, o processo de desenvolvimento da cadeia da vida não será paralisado senão por motivos adversos e fortuitos ou por manipulação científica, a qual somente ocorre quando da concepção realizada de maneira laboratorial, isto é, fora do ventre materno. Neste sentido são as palavras de Eliana Franco Neme: “Não há mais dúvida, para a ciência, de que, a partir do momento em que o óvulo é fecundado, inaugura-se uma nova vida que não é nem a do pai nem a da mãe, mas sim a de um novo ser humano que se desenvolve por conta própria. Nunca mais se tornaria humana, se não o fosse desde então. O embrião humano pertence à categoria dos seres dotados de vida humana pessoal. O embrião humano, a partir, pois, de sua concepção, tem todos os direitos de vida humana e merece todo o respeito enquanto tal”.[54] Todavia, se por um lado se é favorável à condição de sujeito de direito do embrião crioconservado – exatamente pelas razões demonstradas ao longo deste trabalho –, não se coaduna com a conclusão a que chega tal corrente formada na ADI 3510, tendo em vista que merece prevalecer o entendimento favorável no que tange à possibilidade de utilização das células-tronco embrionárias para fins de pesquisas científicas. Ressalva-se, de imediato, que não se vislumbra a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, tampouco o princípio do direito à vida, ao embrião in vitro tal qual estes se aplicam à pessoa humana já nascida. Conforme demonstrado no capítulo 02 do presente trabalho, entende ser a aplicação destes princípios uma maneira de evitar a instrumentalização na utilização das células-tronco embrionárias em pesquisas científicas. Ou seja, defende-se que, muito embora as pesquisas com células-tronco retiradas de embriões crioconservados devam ser permitidas, não deverá ser tutelada em nenhum momento uma possível instrumentalização nesta utilização. E este é o papel da Lei de Biossegurança, pois que o art. 5º anteriormente colacionado traz pré-requisitos para a realização da pesquisa que não permitem sob qualquer circunstância a feitura de embriões in vitro tão somente para fins de estudos científicos. Quer se dizer, portanto, que a concepção heteróloga – ultrapassados 06 (seis) anos após o julgamento da ADI 3510 – continua com sua função tão somente reprodutiva, permitindo o planejamento familiar tal qual seu objetivo precípuo. Desta maneira, o posicionamento adotado por alguns dos mais renomados doutrinadores da área no que tange a uma possível instrumentalização não merece prevalecer, pois que a realidade demonstra que as condições trazidas pelo art. 5º da Lei nº 11.105/20015 são capazes de prevenir qualquer espécie de desrespeito à vida humana. O fato é que se defende o princípio da dignidade da pessoa humana aplicável ao embrião crioconservado, todavia em moldes diferentes da maneira aplicável ao nascituro e à pessoa humana já nascida, em virtude de ser enxergada a vida humana em diferentes estágios e que, portanto, merecem tratamento desigual haja vista seus aspectos peculiares. Assim foi o posicionamento de Débora Diniz quando da audiência pública de julgamento da ADI 3510: “Quando a vida humana tem início? O que é vida humana? Essas perguntas contêm um enunciado que remete à regressão infinita: há células humanas no óvulo antes da fecundação, assim como em um óvulo fecundado em um embrião, em um feto, em uma criança ou em um adulto. O ciclo interminável de geração da vida humana envolve células humanas e não humanas, a tal ponto que descrevemos o fenômeno biológico como reprodução, e não simplesmente como produção da vida humana. Isso não impede que nosso ordenamento jurídico e moral possa reconhecer alguns estágios da Biologia humana como passíveis de maior proteção que outros.”[55] É preciso, portanto, entender-se que, muito embora se defenda a vida humana em situação de laboratório no que tange ao embrião in vitro, vislumbra-se – apesar das semelhanças demonstradas no capítulo segundo do presente trabalho – diferenças entre este e a pessoa nascida capazes de diferenciar o tratamento jurídico de ambos. Se por um lado a vida humana já nascida é tutelada quase que absolutamente pelo princípio da dignidade da pessoa humana e pelo princípio do direito à vida, por outro vemos que até neste estágio da vida tais princípios na se mostram absolutos diante de uma ponderação de valores constitucionais. Senão vejamos: “Direito nenhum é absoluto. Nem a vida o é, mas não o é por duas e apenas duas normas de exceção domésticas: uma de ordem biojurídica, segundo a qual o abortamento necessário é via única de preservação da vida maternal, de modo que impunível (CP, art. 128, I); outra, de fundo político-jurídico, permissora da pena capital em época de guerra declarada pelo Presidente da República (CF, art. 5º, XLVII, a, e art. 84, XIX).”[56] Neste sentido, se para a vida humana já nascida o princípio do direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana sucumbem ante outros princípios constitucionais em colisão, o que dizer destes princípios quando aplicáveis à pessoa humana em condição de laboratório? De imediato, no que tange especificamente à permissividade de pesquisa com células tronco embrionárias em contrapartida ao princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida do embrião crioconservado, opta-se neste trabalho pela defesa da utilização do embrião in vitro para fins de estudos e pesquisas terapêuticas pelas razões adiantes aduzidas. Em primeiro lugar, é preciso que se diga que alguns princípios são aplicáveis quando da defesa da possibilidade de pesquisa científica com células-tronco embrionárias, a saber, o princípio da solidariedade, o princípio da livre expressão da atividade científica e o princípio do direito à saúde. Todos os princípios supramencionados também não são absolutos (nenhum o é em nosso ordenamento), razão pela qual se vislumbra um conflito entre princípios constitucionais: de um lado o direito à vida e a dignidade da pessoa humana do embrião crioconservado, do outro o princípio do direito à saúde, da solidariedade e da livre expressão da atividade científica. Qual destes merece prevalecer ante o caso concreto? Inicialmente, ressalta-se que a permissão para pesquisas com células-tronco embrionárias se fez tão somente por seus promissores resultados ante as características destas células a fim de permitir um futuro de menos sofrimento a pessoas detentoras de enfermidades capazes de serem revertidas com tais estudos. Acredita-se, pois, que as pesquisas com células-tronco embrionárias trarão resultados mais eficazes do que as realizadas com células-tronco adultas, tendo em vista que aquelas são detentoras de pluripotência, ou seja, possui capacidade de diferenciação adequada para originar todos os tecidos de um indivíduo adulto. Senão vejamos a opinião de Marcos Antônio Zago: “Apesar da grande diversidade de células que podem ser reconhecidas em tecidos adultos, todas derivam de uma única célula-ovo, após a fecundação de um óvulo por um espermatozoide. Essa única célula tem, pois, a propriedade de formar todos os tecidos do indivíduo adulto. Inicialmente, essa célula totipotente divide-se formando células idênticas, mas, muito precocemente, na formação do embrião, os diferentes grupos celulares vão adquirindo características especializadas e, ao mesmo tempo, vão restringindo sua capacidade de diferenciação”.[57] Diante desta propícia célula-tronco embrionária, capaz de se transformar em quase todos os tecidos humanos, substituindo-os ou regenerando-os nos respectivos órgãos e sistemas, não permitir o avanço em suas pesquisas é ferir de morte a dignidade da pessoa humana já nascida, pois que se estaria negando aos enfermos possíveis tratamentos para suas doenças que até então são tidas como incuráveis. E não há que se argumentar sobre outros meios de pesquisa com células-tronco, inclusive com as células-tronco adultas, pois que ambas não se excluem, mas sim se complementam numa possibilidade de descobertas mais eficazes e ágeis capazes de conceder expressivas melhorias na vida de enfermos. Assim temos que: “Mais ainda, pesquisa científica e terapia humana em paralelo àquelas que se vêm fazendo em células-tronco adultas,na perspectiva da descoberta de mais eficazes meios de cura de graves doenças e traumas do ser humano. Meios que a literatura especializada estuda e comenta por esta forma: ‘O principal foco atual de interesse da terapia celular é a medicina regenerativa, em que se busca a substituição de células ou tecidos lesados, senescentes ou perdidos, para restaurar sua função. Isso explica a atenção que desperta, porque as moléstias que são alvos desses tratamentos constituem causas de morte e de morbidade das sociedades modernas, como as doenças cardíacas, diabete melito, câncer, pneumopatias e doenças genéticas”[58] Esta melhoria de vida das pessoas humanas já nascidas, configurada no princípio do direito à saúde já bastaria para que fosse defendida a necessidade de pesquisas com células-tronco embrionárias. Mas optou-se por ir além, na tentativa de que fossem exauridos quaisquer questionamentos acerca de princípios constitucionais e suas ponderações. No que tange ao princípio da solidariedade, este se encontra incrustado na Constituição Federal em seu artigo 3º como um dos objetivos da República Federativa do Brasil[59]. Objetiva-se, pois, o alcance de uma sociedade mais igualitária, especialmente no que tange à dignidade de seus formadores. Nestes termos, Carolina Altoé Velasco faz uma interessante comparação entre a doação de órgãos e a utilização de células-tronco embrionária para fins de pesquisa. Senão vejamos: “Finalmente, invocando o princípio da solidariedade, entende-se cabível uma analogia quanto à doação de órgãos para transplante e a permissão de utilização de embriões para pesquisa científica. Em ambos os casos, os envolvidos desejam a produção de um bem maior, qual seja, permitir real qualidade de vida aos beneficiados e a efetividade da dignidade humana”.[60] Igualmente entende-se que a permissibilidade na condução de pesquisas com células tronco embrionárias, nos limites incertos na legislação anteriormente estudada, traz benefícios irrefutáveis à coletividade em si, deixando-se, portanto, de analisar a sociedade como um conglomerado de pessoas, mas sim como uma unidade social formada por indivíduos que se auxiliam mutuamente. Também não se coaduna com a ideia defendida por alguns doutrinadores que a utilização do embrião crioconservado em pesquisas fere o direito à vida, por entenderem tratar-se este princípio de uma garantia que possibilite ao embrião direito a nascer de qualquer modo. Ora, o processo de reprodução heteróloga através da fertilização in vitro tem como único objetivo o planejamento familiar, de maneira que – e tendo conhecimento de que são manejados diversos embriões para que seja garantida a eficácia do procedimento – afirmar ser dever da mulher gerar todo e qualquer embrião crioconservado é um desrespeito a esta, ferindo a dignidade da pessoa humana feminina. No que tange à obrigação do casal em gerar tais embriões excedentários, cirúrgicas são as palavras do ministro Carlos Ayres Britto: “Minha resposta, no ponto, é rotundamente negativa. Não existe esse dever do casal, seja porque não imposto por nenhuma lei brasileira (‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’, reza o inciso II do art. 5º da Constituição Federal), seja porque incompatível com o próprio instituto do ‘planejamento familiar’ na citada perspectiva da ‘paternidade responsável’. Planejamento que só pode significar a projeção de um número de filhos pari passu com as possibilidades econômico-financeiras do casal e sua disponibilidade de tempo e afeto para educá-los […]”[61] Destarte, no que tange à pesquisa com células-tronco embrionárias, entende-se que acertou o STF em permiti-la, muito embora tenha pecado em reduzir o embrião crioconservado à situação de coisa jurídica, haja vista o entendimento de que há importância maior em permitir melhorias na condição de vida da pessoa humana já nascida. 3.2. O Artigo 5º da Lei nº 11.105/2005 e a Morte Presumida do Embrião in vitro para o Ordenamento Brasileiro: Ultrapassado o julgamento da ADI 3510, bem como o posicionamento no presente trabalho defendido acerca das conclusões e das fundamentações utilizadas pelo Supremo Tribunal Federal para que a pesquisa com célula-tronco embrionária fosse permitida, impende ao momentoque seja realizada uma análise das consequências geradas no âmbito jurídico. É preciso relembrar, contudo, que tais pesquisas somente podem ser realizadas a partir do preenchimento de determinados requisitos: ou o embrião excedentário é inviável ou o embrião excedentário se encontra há mais de 03 (três) anos crioconservado.  Não se olvide, ademais, que em ambos os casos será necessário o consentimento dos genitores para a sua utilização, bem como será obrigatória a submissão dos projetos de pesquisa às instituições de pesquisa e serviços de saúde competentes para fins de apreciação e aprovação pelos respectivos comitês de ética em pesquisas. Vislumbra-se que tal legislação, tal qual já fora dito, não vai de encontro aos direitos dos embriões crioconservados enquanto pessoa em situação de laboratório, pois que não há desrespeito à sua dignidade humana, tampouco à sua vida, mas tão somente uma ponderação de valores constitucionais, na qual erigiu os princípios da solidariedade, do direito à saúde, da livre expressão da atividade científica e do planejamento familiar. O artigo 5º da Lei nº 11.105/2005, pois, pelo contrário, defende o embrião in vitro de uma possível instrumentalização em seu uso, apresentando uma série de condições, sob pena de ser o violador imputado no crime do art. 15, da Lei nº 9.434/97, com pena em abstrato de três a oito anos, mais multa de 200 (duzentos) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa. Acerca do dispositivo analisado na ADI 3510, seguem as lúcidas palavras do Professor Flávio Tartuce, de onde a aluna tirou sua inspiração para o presente trabalho: “Ora, parece-nos que o que faz o dispositivo é proteger a integridade e também a vida do embrião, cujo conceito, como exposto, confunde-se com o de nascituro, no tocante à proteção dos direitos da personalidade. Isso porque as suas células embrionárias somente podem ser utilizadas nos casos de inviabilidade para a reprodução, ou após um período de três anos. Na opinião deste autor, a lei está prevendo essa utilização em casos em que se presume a morte do embrião, ou seja, a impossibilidade de sua utilização para fins reprodutivos. Como a regra é a sua não-utilização, foi adotada a teoria concepcionista, reconhecendo-se que o nascituro é uma pessoa humana”[62] O professor Flávio Tartuce no trecho acima colacionado levanta uma importante posição quanto à utilização dos embriões excedentários quando estes se encontram inviáveis para a reprodução, alegando uma possível morte presumida. Desta feita, entendeu o autor que sem o fim precípuo a que se destina, o embrião crioconservado enquanto impossibilitado de se desenvolver para gerar vida humana nascida, se encontra presumidamente morto para o Direito. O instituto da morte presumida, ademais, não é novo no ordenamento pátrio, pois que ele já merecia guarida no atual Código Civil, mais especificamente em seus artigos 6º e 7º. Senão vejamos: “Art. 6º A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva. Art. 7º Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência: I – se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; II – se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra.”[63] A morte presumida para o direito brasileiro nada mais é do que uma presunção iuris tantum de que determinada pessoa não possui mais vida pelos indícios de seu desaparecimento. Tal como se apresenta para a vida humana já nascida, a morte presumida também se aplica ao embrião crioconservado, tanto aos excedentários que não possuem mais capacidade de se desenvolver, ou seja, os inviáveis, quanto para os que, ultrapassados três anos, possam ser utilizados para fins de pesquisa com células-tronco embrionárias. No que tange aos embriões excedentários que não apresentam nenhum tipo de incapacidade para se desenvolver, importante trazer à baila o que os cientistas falam acerca deste tempo de três anos de crioconservação. Vemos a seguir respectivamente as posições dos doutores Ricardo Ribeiro dos Santos e Patrícia Helena Lucas Pranke quando da audiência pública na ADI 3510. “A técnica do congelamento degrada os embriões, diminui a viabilidade desses embriões para o implante; para dar um ser vivo completo (…). A viabilidade de embriões congelados há mais de três anos é muito baixa. Praticamente nula.[64] Teoricamente, podemos dizer que, em alguns casos, como na categoria D, o próprio congelamento acaba por destruir o embrião, do ponto de vista da viabilidade de ele se transformar em embrião. Para pesquisa, as células estão vivas; então, para pesquisa, esses embriões são viáveis, mas não para a fecundação.”[65] Outrossim, demonstrada a morte presumida do embrião crioconservado, quer seja pela sua inviabilidade, quer seja porque ultrapassado o prazo de 03 (três) anos de congelamento imposto pela legislação, e por todos os outros argumentos fáticos e jurídicos apresentados no presente trabalho, entende-se que acertou o STF em permitir as pesquisas com células-tronco embrionárias, razão pela qual abaixo se transcreve passagem do voto do relator por entendê-lo enquanto riquíssima contribuição à construção da tese em apreço. “Remarco a tessitura do raciocínio: se todo casal tem o direito de procriar; se esse direito pode passar por sucessivos testes de fecundação in vitro; se é da contingência do cultivo ou testes in vitro a produção de embriões em número superior à disposição do casal para aproveitá-los procriativamente; se não existe, enfim, o dever legal do casal quanto a esse cabal aproveitamento genético, então as alternativas que restavam à Lei de Biossegurança eram somente estas: a primeira, condenar os embriões à perpetuidade da pena de prisão em congelados tubos de ensaio; a segunda, deixar que os estabelecimentos médicos de procriação assistida prosseguissem em sua faina de jogar no lixo tudo quanto fosse embrião não requestado para o fim de procriação humana; a terceira opção estaria, exatamente, na autorização que fez o art. 5º da Lei. Mas uma autorização que se fez debaixo de judiciosos parâmetros, sem cujo atendimento o embrião in vitro passa a gozar de inviolabilidade ontológica até então não explicitamente assegurada por nenhum diploma legal (pensa-se mais na autorização que a lei veiculou do que no modo necessário, adequado e proporcional como o fez)”.[66] Assim sendo, entre as três possibilidades apontadas, pensa-se que a melhor maneira de se respeitar a vida humana, seja ela em qualquer estágio, é levando em consideração a sua potencialidade de beneficiar as gerações futuras. E não é isto que os embriões crioconservados utilizados para fins de pesquisas com células-tronco embrionárias estão fazendo? A perpetuação de nossa espécie e a dignidade da pessoa humana ultrapassam os paradigmas passados de que a vida humana deve ser absoluta sob todas as formas, razão pela qual entre a vida humana em situação de laboratório e a vida humana já nascida enferma, opta-se pelo melhoramento da segunda mediante a utilização da primeira, uso este que deverá sempre obedecer às normas de cunho bioético contida no art. 5º da Lei 11.105/2005. Conclusões Ultrapassadas as discussões acerca do início da vida, e optando pela teoria concepcionista por se entender que esta abarca de maneira mais abrangente as prerrogativas da vida humana em todos os estágios por que perpassa, o presente trabalho pretendeu analisar detidamente o artigo 5º da Lei 11.105/2005 e sua constitucionalidade. Tais questionamentos surgiram mediante a visibilidade que fora trazida à presente discussão pela ADI nº 3510 proposta pelo procurador geral Cláudio Lemos Fonteles, haja vista que houve o entendimento de que a permissibilidade na utilização de embriões crioconservados para fins de pesquisas com células-tronco se demonstrava desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida. Pela relevância do assunto, o Ministro Relator Carlos Ayres Britto entendeu por bem permitir a audiência pública para que as discussões acerca do início da vida se dessem por intermédio de debates entre as mais variadas esferas de conhecimento. Ao serem analisados os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal – ressaltando que o presente trabalho se deteve a uma análise mais profunda do voto do relator supramencionado por vislumbrar neste uma compilação mais densa das ideias apresentadas – percebeu-se que a conclusão pelo não provimento do pedido de inconstitucionalidade, consequentemente permitindo as pesquisas com células-tronco embrionárias, fora acertada, muito embora as argumentações se dessem por um viés de negação do início da vida humana na concepção. Procurou a presente pesquisa, portanto, demonstrar que não há necessariamente um paradoxo entre considerar o embrião crioconservado como sujeito de direito e permitir as pesquisas com células-tronco embrionárias retiradas dos embriões in vitro. Se a priori tal conclusão parece lógica e irremediável, analisaram-se tais assertivas sob a ótica constitucional para que fosse demonstrada a ponderação de princípios sem que para tanto houvesse o desrespeito à vida humana. Primeiramente, foram apresentadas as duas posições majoritárias que erigiram quando da realização da audiência pública no julgamento da ADI nº 3510. A primeira dispunha que a vida humana se iniciava quando da fecundação entre gameta masculino e feminino, razão pela qual a permissão na utilização de células-tronco para fins de pesquisa científica ia de encontro aos princípios protetores da vida humana. A segunda, por outro viés, alegava que o embrião se configurava como um organismo vivo, mas que não se configurava vida humana como a própria pessoa já nascida, razão pela qual a pesquisa com células-tronco embrionárias poderia ser permitida sem maiores problemáticas éticas. Mediante as pesquisas realizadas, seria incongruente não ser defendido o início da vida humana quando da concepção, razão pela qual a partir deste momento haveria um sujeito de direitos a ser tutelado pela legislação pátria. Mas não permitir a pesquisa com células-tronco embrionárias seria um desrespeito às possíveis descobertas científicas no que tange à cura de doenças degenerativas que assolam parte relativa da população nacional. Por outro lado, muito embora a pesquisa tenha se proposto a apresentar um posicionamento favorável acerca de tais pesquisas, não se pode olvidar que os embriões in vitro se tratam de vida humana em condição de laboratório, de maneira que se configuram como sujeitos de direito e não apenas como organismos vivos como defendeu o relator da ADI 3510. Desta feita, entende-se que considerar o embrião crioconservado como um estágio da vida humana e permitir a sua utilização para fins de pesquisa com células-tronco não se mostra entendimento desconexo, posto que fora verificada a ponderação de princípios constitucionais, a saber, a princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida do embrião in vitro versus o princípio da solidariedade, o princípio da livre expressão da atividade científica e o princípio do direito à saúde aplicáveis à vida humana já nascida. Neste embate, vislumbra-se que a vida humana já nascida merece tutela mais específica do que a vida humana em fase laboratorial, posto que o sentimento que envolve a vida de uma pessoa já nascida é imensuravelmente maior do que a vida humana presente em uma placa de petri, razão pela qual as pesquisas com célula-tronco foram positivamente permitidas pelo STF a fim de que sejam possibilitados avanços nos estudos de cura de doenças degenerativas. Ademais, não há que se falar em possível instrumentalização da vida humana em fase embrionária para fins de produção de material de pesquisa, posto que a fecundação in vitro desde 2008, ano em que efetivamente as pesquisas foram permitidas, até o presente ano ainda mantém sua função tão somente reprodutora. Tampouco deve ser alegado desrespeito pela vida humana no artigo 5º da Lei de Biossegurança, tendo em vista que se entende que as condições apresentadas para a utilização dos embriões crioconservados em pesquisas científicas se demonstram exatamente como prerrogativas de respeito à vida e o combate a uma possível instrumentalização, conforme acima demonstrado. Outrossim, e vislumbrando que experts no assunto apontam que após um período de três anos após o congelamento, o embrião demonstra baixa eficácia para fins de desenvolvimento da vida humana através da implantação no útero materno, a morte presumida do embrião após perpassado o prazo supramencionado – e constante em lei – permitiram que acertadamente o STF tomasse posicionamento favorável às pesquisas com células-tronco embrionárias, ressalvando-se, contudo, a condição de vida humana e de sujeito de direito do embrião crioconservado.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-156/embriao-in-vitro-como-sujeito-de-direito-uma-analise-do-art-5-da-lei-n-11-105-2005-sob-a-perspectiva-da-teoria-concepcionista/
In dubio pro vita – a impossibilidade jurídica da descriminalização do aborto
Este artigo visa observar a possibilidade jurídica da descriminalização do aborto no ordenamento jurídico pátrio, tendo em vista a forma como o mesmo se posiciona, ao regulamentar diversas situações que envolvem o nascituro, adotando a teoria concepcionalista. Para a elaboração deste trabalho, buscou-se observar a atual legislação. Por esta razão, desenvolveu-se uma pesquisa do tipo bibliográfica, de abordagem qualitativa e exploratória. Inicialmente, explicou-se o conceito de aborto, abordou os argumentos favoráveis a descriminalização, bem como os que o refutam. Posteriormente, foram apresentadas as teorias acerca do início da personalidade jurídica e como a legislação brasileira adota uma destas.
Biodireito
Introdução O polêmico tema do aborto tem sido posto em pauta, chamando atenção dos estudiosos de áreas que possam melhor compreender a possibilidade da descriminalização ou não desta conduta. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal se manifestou acerca do tema entendendo não ser crime o aborto realizado durante o primeiro trimestre da gestação. Sendo essa temática diretamente ligada à ciência jurídica, deve ser feito um estudo sobre essa possibilidade através do olhar técnico do Direito, ao analisar se o ordenamento jurídico brasileiro é ou não receptivo para com descriminalização desta prática. É importante tratar deste tema, pois o mesmo está diretamente ligado a possível violação do direito à vida. 1. Aborto O aborto é a interrupção de gravidez, ocorrido com a expulsão do embrião ou do feto do útero da mulher. Pode ser espontâneo, quando ocorre em razão de fatores biológicos que levam a expulsão do feto do corpo ou induzido, quando a mulher, por vontade própria, provoca o aborto através da ingestão de medicamentos ou de procedimentos cirúrgicos. (DINIZ; ALMEIDA, 1998). Atualmente, o ordenamento jurídico brasileiro entende que os únicos abortos induzidos que são legais são os realizados em gestantes que correm claro risco de vida e em mulheres grávidas em razão de estupro. Em ambos os casos não se faz necessária a autorização judicial ou processo contra o agente da prática de estupro. 1.1. Argumentos pro choice É possível observar que aqueles que fazem a defesa do aborto trazem para a questão o conflito de normas constitucionais entre o direito à vida e “direito da gestante à intimidade, à privacidade, e ao direito de dispor do próprio corpo”. Além destes, é defendido, ainda, que o nascituro não tem direito à vida por não ser um ser vivo independente do corpo materno. O que adentra na questão de que não há vida ainda para ser retirada, o que desconstituiria o aborto, até determinado período da gestação, como crime contra a vida. Este período é o ponto mais discutido entre aqueles que são a favor ou contra a descriminalização da conduta. O momento mais aceito por aqueles que são pro choice para ser o início da vida humana é a formação do sistema nervoso. Para isso, é traçado um paralelo com o que se entende como morte atualmente para fins de doação de órgãos. A ideia é que, se a morte cerebral é o momento em que é possível considerar o fim da vida humana e que este é o parâmetro para a retirada de órgãos, então vê-se que o início da formação do sistema nervoso deve ser considerado como o momento em que o nascituro passa a ter vida, não havendo mais a possibilidade de retirada do feto do ventre sem que haja um crime contra a vida a partir deste momento. Outra questão trazida pelos defensores da descriminalização do aborto é o número de mortes de mulheres em razão da prática em clínicas clandestinas. O que tornaria a descriminalização uma questão de saúde pública. É mencionada também o fato de que os homens tendem a deixar as mulheres desamparadas quando as engravidam de forma indesejada. Além de, quando muito, apenas fornecem auxílio financeiro a distância, sem ajudar na criação do filho, seja na condução de ensinamentos da vida, seja nas tarefas que os mesmos terminam por fazer surgir. 1.2. Argumentos pro life A defesa da criminalização do aborto ressalva bastante a questão de responsabilidade individual. A liberdade de dispor do próprio corpo não pode ser irrestrita a ponto de afetar direito à vida de terceiro. Nesse entendimento, a liberdade não é dissociada da responsabilidade, isso significa que devemos ser livres para cometermos atos sendo responsáveis pelas consequências dos mesmos. Dessa forma, uma vez que para se chegar ao aborto se tem um caminho longo com uma séria de falhas sucessivas, resultantes da não utilização de nenhum dos métodos contraceptivos já existentes em razão do desenvolvimento tecnológico resultante do avanço do capitalismo. Assim, após não se utilizar desses métodos contraceptivos, abortar seria como dissociar a responsabilidade das consequências resultantes dos atos cometidos em liberdade. O direito à vida é a base de qualquer sociedade moral, antecedendo o direito a liberdade. Sobre isso, Ubiratan Jorge Iorio (2012) escreve, em seu artigo intitulado Os Valores de uma Sociedade Livre e Virtuosa, o seguinte entendimento: “Nunca devemos nos esquecer de que liberdade e virtude são indissociáveis, o que significa, simplificando um pouco as coisas, que só faz sentido falarmos em liberdade se a essa liberdade estiver associada alguma obrigação, que é a de respeitar os direitos de terceiros. Um exemplo claro, cristalino, irrefutável é a polêmica em torno da legalização do aborto, defendida tradicionalmente tanto pela chamada "esquerda" como por alguns libertários radicais: é verdade que a mulher deve ter a liberdade para dispor do próprio corpo como lhe aprouver, isto é, de acordo com seus princípios morais ou com sua simples vontade, mas é também verdade que se ela matar o feto que se desenvolve em seu ventre estará agredindo um direito básico, que é o direito à vida desse futuro bebê, que não lhe pertence e que já é uma pessoa humana, embora em formação, dotada de vida e de dignidade; além disso, estará maculando também um direito de propriedade, ao dispor sobre a propriedade de outrem, já que o feto, por definição (e por mais que queiram negá-lo certos grupos defensores do aborto) é proprietário de seu próprio corpo, mesmo estando este ainda em formação.” (IORIO, 2012). Se há a liberdade de haver práticas sexuais sem métodos contraceptivos existentes que impedem a gravidez, tais pessoas devem estar prontas para lidarem com as consequências destas práticas. Ron Paul (2013) escreve em sua obra Definindo a Liberdade que há uma grande arbitrariedade na defesa do aborto, na medida em que não há uma distinção da prática para outras práticas criminosas, como o homicídio. Theodore Darlymple (2015) escreveu que aqueles que apreciam a liberdade e a almejam trocariam a mesma por segurança, caso tivessem de lidar com as consequências daquela. “Se a liberdade acarretar responsabilidade, muitos não querem nenhuma das duas. Felizes trocariam a liberdade por uma segurança modesta, ainda que ilusória. Mesmo aqueles que dizem apreciar a liberdade ficam muito pouco entusiasmados quando se trata de aceitar as consequências dos atos. O propósito oculto de milhões de pessoas é ser livre para fazer, sem mais nem menos, o que quiserem e ter alguém para assumir quando as coisas derem errado.” (DALRYMPLE, 2015). Tratar a questão como saúde pública significa cobrar impostos de pessoas que são contrárias às práticas de aborto e destinar estes para estas práticas seria suprir a liberdade destas pessoas e obrigar elas a pagarem por algo que jamais fariam e repudiam. Neste ponto, o conflito seria entre a liberdade da mulher e das pessoas que não desejam custear o serviço. Quanto ao aborto ser um fato social existente, a falha do argumento consiste que o mesmo é aplicável à outras práticas criminosas, como roubo ou homicídio. Não se pode descriminalizar uma conduta em razão de ela ser um fato social que não deixará de acontecer ou porque aquele que a pratica poderá sofrer as consequências da própria prática em si. Esse tipo de argumentação abre precedentes para descriminalização de outras condutas criminosas. Isso faria com que a sociedade civilizada se voltasse para o caos. O ponto a ser discutido deve ser a possibilidade de se estar ou não retirando a vida, bem indisponível, de outrem. Pois, se há atentado contra a vida, é irrelevante as consequências que o criminoso poderá vir a sofrer em razão da conduta criminosa. Aqueles que rebatem tal argumento comparam a situação de risco que um assaltante de banco corre ao praticar a conduta criminosa. Sobre isto, John Locke (2014), ao falar sobre o poder legislativo, entende que as leis não podem ser definidas de forma arbitrária pelo mesmo, pois devem ter como escopo o bem da sociedade, não podendo ocasionar resultados inesperados, ainda que sua intenção seja boa. “Ninguém tem um poder arbitrário absoluto sobre si mesmo ou sobre qualquer outro para destruir sua própria vida ou privar um terceiro de sua vida ou de sua propriedade. Foi provado que um homem não pode se submeter ao poder arbitrário de outra pessoa; por outro lado, no estado de natureza, o poder que um homem pode exercer sobre a vida, a liberdade ou a posse de outro jamais é arbitrário, reduzindo-se àquele a ele investido pela lei da natureza, para a preservação de si próprio e do resto da humanidade; esta é a medida do poder que ele confia e que pode confiar à comunidade civil, e através dela ao poder legislativo, que portanto não pode ter um poder maior que esse.” A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento resultante da Revolução Francesa que levou em consideração os direitos naturais, pertinentes da natureza humana, dispôs em seus artigos 4º e 5º sobre liberdade, seguindo a mesma linha de pensamento: “Art. 4.º A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos.” Desta forma, é possível observar que a discussão sobre o momento em que se inicia a vida parece mais correta. Todavia, é um erro supor que há um consenso na área médica de que este momento seria a formação do sistema nervoso, uma vez que a distinção entre a doação de órgãos e a do aborto se dá na disposição da vontade daquele que se torna doador. A falta de possibilidade de manifestação do feto torna a questão injusta para aqueles que são a favor de mantê-lo no ventre. A liberdade de escolher dispor sobre o próprio corpo não poderia ser, assim, argumento em favor da descriminalização do aborto, tanto em razão de o corpo do nascituro não se tratar do corpo da mulher, apesar de depender deste, como não é possível que haja liberdade irrestrita sem que a sociedade civilizada perca a noção de ordem e moral que a norteia, a ponto de agredir direito à vida de terceiro. 2. Impossibilidade jurídica da descriminalização do aborto Se faz necessário que seja buscado o entendimento do que realmente quer dizer o trecho “desde a concepção” citado no artigo 2º do Código Civil ao dispor sobre quando surge a personalidade civil, momento no qual o indivíduo se torna sujeito de direitos apto a contrair direitos e deveres. É preciso trazer esta norma jurídica para tratar sobre o tema em estudo, porque ela dispõe que, a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. O mesmo Código dispõe em seu art. 1º que "toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil", enquanto o Estatuto do nascituro dispõe, ainda, que nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido. Ou seja, não há que se discutir se o nascituro tem ou não vida humana, apesar de alguns insistirem nessa questão. A lei não garante a personalidade jurídica ao nascituro, de imediato, todavia, a mesma deixa claro que essa personalidade é retroativa até o momento da concepção, devendo o feto nascer com vida para adquirir a personalidade presumida. Nelson Hungria (1953) asseverou que, “o código ao incriminar o aborto, não distingue entre óvulo fecundado, embrião ou feto: interrompida a gravidez, antes de seu termo normal, há o crime de aborto. Qualquer que seja a fase da gravidez (desde a concepção até o início do parto, isto é, até o rompimento da membrana amniótica) provocar sua interrupção é cometer o crime de aborto”. É possível observar que a legislação é omissa quanto ao momento em que se inicia a gravidez, tornando a conduta crime, seja em qual momento da gravidez for, uma vez que esta seja iniciada, o aborto voluntário é crime. 2.1. Teorias acerca do início da personalidade jurídica do nascituro Acerca do tema, existem três correntes de pensamento. A teoria natalista, aquela na qual se entende que o feto adquire personalidade jurídica somente após o nascimento com vida e que, qualquer período anterior a este, o nascituro não é pessoa, não podendo, portanto, ser sujeito de direito, somente adquirindo essa condição posterior ao nascimento com vida. A teoria concepcionalista, todavia, compreende que o nascituro é pessoa desde sua concepção, adquirindo personalidade jurídica neste momento, sendo reconhecido como sujeito de direitos, portanto, já considerado pessoa com vida. Por fim, a teoria mista compreende que, desde a concepção, há personalidade jurídica, sendo que os efeitos desta personalidade estão condicionados ao nascimento com vida do nascituro. Ou seja, esta teoria entende que a personalidade jurídica retroage ao momento da concepção se houver nascimento com vida. 2.2. Ordenamento jurídico brasileiro A corrente natalista não é compatível com o ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição garante a “inviolabilidade do direito à vida” em seu art. 5º presente no título "Dos Direitos e Garantias Fundamentais". A lei que dispõe sobre os direitos das Crianças e dos Adolescentes trata de garantir direitos que somente poderiam beneficiar nascituros. Ou seja, garante direitos para pessoas que ainda estão para nascer. Dentre as normas, é possível encontrar garantias às gestantes que permitam o nascimento do nascituro, reconhecimento de filiação, nomeação de curador em seu favor, direito à ser beneficiário de doação, a capacidade sucessória, dentre outros. A Lei dos Alimentos Gravídicos disciplina sobre o direito de alimentos da mulher gestante. Oliveira (2015) trata em seu artigo sobre a presença da teoria concepcionalista na Lei dos Alimentos Gravídicos: “Cabe destacar, que ao nascituro cabe sim, ser protegido, desde a concepção, atribuindo-lhe personalidade e capacidade para configurar nas relações jurídicas, pois ele não é menos humano nem menos dependente de sua mãe do que o já nascido. É preciso desvincular a visão romanista que ainda se tem do nascituro, de que ele é apenas uma parte da mulher, mas que ele tem uma vida independente que depende tanto da mãe quanto o já nascido.” (OLIVEIRA, 2015). Segundo Leandro Soares Lomeu, "Os alimentos gravídicos podem ser compreendido como aqueles devidos ao nascituro, e, percebidos pela gestante, ao longo da gravidez". (LOMEU, 2016). Desta forma, a percepção dos alimentos gravídicos serem feitas pela gestante não elimina o entendimento de que os mesmos são devidos ao nascituro e não a mãe. A própria LAG disciplina em seu art. 6º que tais alimentos serão convertidos em pensão alimentícia em favor do infante após o seu nascimento com vida, demonstrando este fato. O Código Civil garante a capacidade sucessória ao herdeiro não nascido, mas já concebido, conforme disposto no artigo 1798 “legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”. Ao tratar da tutela do nascituro no direito sucessório brasileiro, Ximenes (2011) escreveu “o ordenamento jurídico brasileiro criminaliza o aborto, pois o direito à vida está acima de todos os outros”. É possível aferir de acordo com o exposto, que o nascituro é sim titular de direitos da personalidade, visto que, o ordenamento assim o acolheu através de diversos dispositivos ao longo do Código Civil, legislação penal, Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei Magna de 1988 e legislação extravagante. Conforme entendimento de Diniz (2010), se as normas protegem o nascituro garantindo-lhe direitos, o mesmo tem personalidade jurídica. “Se as normas o protegem é porque tem personalidade jurídica. Na vida intrauterina ou mesmo in vitro, tem personalidade jurídica formal, relativamente aos direitos da personalidade, consagrados constitucionalmente, adquirindo personalidade jurídica material apenas se nascer com vida, ocasião em que será titular dos direitos patrimoniais, que se encontravam em estado potencial, e do direito às indenizações por dano moral e patrimonial por ele sofrido.” (DINIZ, 2010). Ao dispor o aborto como crime, o Código Penal visa a proteção da vida, que é considerada um “bem indisponível”. Ou seja, não é possível que um sujeito de direitos possa dispor do bem vida. O objetivo da tipificação da conduta "provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque", bem como as condutas nas quais terceiro pratica aborto em outro, é evitar a prática ou punir aquele que agride a este bem indisponível. Ao colocar o aborto como crime, o Direito visa proteger terceiro, o nascituro, e não interferir no direito da mulher sobre o próprio corpo. 2.3. Entendimento dos tribunais O Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em recurso que tratou acerca da possibilidade indenização por morte de feto em razão de atropelamento de mulher grávida, dispôs que o dano-morte alcança pessoa formada, plenamente apta à vida extra-uterina, ainda que não nascida. Segue parte da fundamentação: “Tenho que a interpretação mais razoável desse enunciado normativo, consentânea com a nossa ordem jurídico-constitucional, centrada na proteção dos direitos fundamentais, é no sentido de que o conceito de ‘dano-morte’, como modalidade de ‘danos pessoais’, não se restringe ao óbito da pessoa natural, dotada de personalidade jurídica, mas alcança, igualmente, a pessoa já formada, plenamente apta à vida extra-uterina, embora ainda não nascida, que, por uma fatalidade, acabara vendo a sua existência abreviada em acidente automobilístico.” (BRASIL, 2010). Ron Paul (2013) fala que “abortar raramente é uma solução no longo prazo: a mulher que aborta uma vez tem maior probabilidade de fazer outro aborto”. O que é possível observar ao avaliarmos o caso da uma mulher que teve seu pedido de aborto negado pela Justiça de Minas Gerais. (PAUL, 2013). O juiz titular da 32ª Vara Cível de Belo Horizonte, Geraldo Carlos Campos, ressaltou que a mulher fez um aborto com autorização judicial no ano anterior e não tomou qualquer medida contraceptiva para evitar a possibilidade de nova gravidez. Vê-se que o Judiciário concedeu o pedido em razão do risco de vida da mãe que, por ser portadora de doença cardíaca, não poderia engravidar. A mesma foi orientada acerca da extrema necessidade de "estabelecimento de método de contracepção eficaz e definitivo" em razão de sua situação de risco. Todavia, retornou ao judiciário com o mesmo pedido encontrando-se no oitavo mês de gestação no ano seguinte. Assim, é notável que o ordenamento jurídico pátrio não é receptivo com a conduta do aborto, tendo em vista que entende ter o nascituro direito à vida, o que é reforçado por diversas leis existentes. 3. In dubio pro vita Oliveira (2015) diz que “O início da personalidade humana nas legislações civilistas recebe notória influência do pensamento e ensinamento científico-biológico acerca do início da vida”. Certamente, o início da vida é uma questão que envolve conhecimento na área médica e biológica. “A presença da dúvida deveria militar em favor da vida humana e contra as práticas abortivas. Afinal, quem defenderia a tese de que, na dúvida de haver uma pessoa dentro de um prédio, poder-se-ia optar por implodi-lo sem qualquer culpa? O autor defende a ficção, presunção (ou se preferir, a cautela ou cuidado) estabelecida em prol da vida humana que passa a ser tutelada com a proibição do aborto pela legislação e até sua criminalização. Havendo a dúvida quanto à humanidade do concepto, a possibilidade ainda que remota de lesão a uma vida humana não permitiria a assunção do risco, de forma que a "transformação do aborto num direito subjetivo, sua possível banalização" seria um extremo lamentável.” (CABETTE, 2010). Cabette (2016) ensina que tal dúvida deve fazer com que não se descriminalize o aborto. Não saber afirmar com rigor quando a vida se inicia, mas ser a favor de tal ato soa absurdo, uma vez que, se o que se considera como início da vida incidir em erro, teremos no ato de abortar o assassinato. In dubio pro vita: em caso de dúvida, esteja a favor da vida. Segundo Frédéric Bastiat (2010), a lei é pervertida quando não se mantem em seu limite e destrói direitos que deveria respeitar influenciada pela falsa filantropia. “Enquanto se admitiu que a lei possa ser desviada de seu propósito, que ela pode violar os direitos de propriedade em vez de garanti-los, então qualquer pessoa quererá participar fazendo leis, seja para proteger-se a si próprio contra a espoliação, seja para espoliar os outros”. (BASTIAT, 2010). Conclusão Posto isso, é equivocado o entendimento de que há a possibilidade de descriminalizar o aborto no Brasil. Não só porque o ordenamento jurídico brasileiro não adota a teoria natalista, que é compatível com a descriminalização do aborto, como, em razão do avanço tecnológico, é possível constatar que o nascituro tem atividade cerebral e cardíaca, ainda que dependente do corpo da mãe para sobreviver. Assim, a legalização do aborto no Brasil é, atualmente, inviável, tendo em vista que o ordenamento não acolhe este entendimento de que o nascituro não é pessoa de direitos, ainda que se tenha apenas expectativa de direitos, pois o curso natural da gravidez acarreta no nascimento com vida, fazendo com que a personalidade retroaja até o momento da concepção. Além de que a descriminalização desta prática acarretaria na desordem social, na medida que se perde a noção da virtude e moralidade da sociedade. Os maiores genocídios que ocorreram na história da humanidade tiveram como base a mentalidade revolucionária de “oprimido versus opressor”.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-156/in-dubio-pro-vita-a-impossibilidade-juridica-da-descriminalizacao-do-aborto/
A eutanásia, a distanásia e a ortotanásia à luz da justiça brasileira
A abordagem deste artigo concentrara-se em reflexão e análise dos processos da eutanásia, distanásia e ortotanásia no Brasil, que consiste basicamente na abreviação da morte do paciente, procedimento conhecido na literatura médica como a “morte digna”. O enfoque central sobre a matéria traz o limites e os princípios da justiça brasileira, a responsabilidade civil, penal dos profissionais de saúde, especialmente os médicos. A metodologia aplicada foi a pesquisa bibliográfica face aos livros, legislações, jurisprudências, artigos e periódicos consultados ao logo do desenvolvimento e desfecho final do trabalho. Na análise e discussão de dados constatou-se alguns casos de exceção da aplicação da eutanásia no Brasil, as decisões judiciais favoráveis da ortotanásia com base nos princípios da liberdade e dignidade da pessoa humana e no chamado “testamento vital”, bem como a não recomendação da distanásia por ferir o princípios constitucional brasileiro da dignidade humana, em razão deste tratamento ser desumano e degradante ao paciente em situação de estágio vegetativo permanente.
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1. INTRODUÇÃO Na antiga Grécia, a sociedade acreditava que os médicos tinham o poder da cura porque agiam em nome dos deuses, e na qualidade de semideuses decidiam sobre a vida ou morte das pessoas, já que seus métodos eram inquestionáveis. Com a passagem do mundo moderno para o contemporâneo, Renê Descartes, inspirado em suas teorias iluministas, defendeu o método científico racional atribuindo à própria Ciência médica o papel de desenvolver métodos para a cura, e ao mesmo tempo afastando atitude sobrenatural dos médicos semideuses. Com o avanço tecnológico, a Medicina passou por profundas modificações ao longo do Século XX. As conquistas na área médica, sobretudo nas áreas cirúrgica, terapêutica, de anestesia e de reanimação e no campo da tecnologia têm originado melhorias significativas na saúde, em relação ao controle ou à eliminação de doenças, o que torna cada vez mais raros os casos de morte natural. O fato é que, esses avanços da Medicina têm proporcionado uma melhoria na qualidade de vida das pessoas, principalmente nas sociedades em países desenvolvidas face a uma progressiva diminuição da mortalidade. Por outro lado, essa sobrevida maior decorre do prolongamento desnecessário e de tratamentos injustificáveis, com a obstinação terapêutica a qualquer custo. Em razão da busca da longevidade, muitos seres humanos que sofrem de doenças crônicas não conseguem a devida cura e acabam chegando à fase da terminalidade. Esse estágio terminal faz necessário serem discutidos os conceitos do que vem a ser boa morte ou morte digna entre doentes, equipe médica, o Estado pelo poder judiciário e a própria sociedade. Neste sentido, a morte digna deve sustentar-se de uma decisão consciente e informada do paciente, o que implica responsabilizar aquele profissionais da área de saúde em suas atitudes ou decisões acerca do tratamento de um paciente em estágio terminal face as restrições éticas e legislativas. Diante disso, a Medicina se utiliza de diversos métodos terapêuticos para evitar a morte de um paciente, muitos deles podem aliviar seu sofrimento outros não. Desse modo, torna-se indispensável a discussão no meio jurídico sobre os métodos artificiais utilizados para prolongar a vida e a atitude de deixar a doença seguir sua história natural, com destaque para a eutanásia, a distanásia e a ortotanásia. Dessa forma, conceitua-se eutanásia como o ato de tirar a vida do ser humano sem dor, isto é, sem sofrimento. A distanásia entende-se como aquela morte difícil ou penosa, pois a vida do paciente é prolongada por meio de tratamento, sem preocupar-se com a qualidade e dignidade da vida do paciente. Já a ortotanásia significa a morte almejada, sem o uso de método artificial para prolongar a vida do paciente, utilizando procedimentos que acarretam aumento do sofrimento, o que altera o processo natural do morrer. No Brasil, a eutanásia é proibida por caracterizar-se um suicídio assistido e ainda há proibição da participação de médico em seus processos, conforme dispõe o Código de Ética dos Médicos, porém, essa prática é aceita em outros estados estrangeiros como Holanda e Bélgica. Assim, as práticas ou modalidades aceitas em nossa pátria mãe somente a distanásia e ortotanásia. Diante dos fatos surge a seguinte pergunta: a morte digna como valor e direito constitui uma violação ao direito de liberdade e dignidade da pessoa humana tipificada na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1998? A pesquisa em foco propõe como objetivo geral identificar quais dispositivos legais regulamentam a prática da eutanásia, distanásia, ou ortotonásia no Brasil, estabelecendo como metas específicas estudar à luz a justiça brasileira as terapias adequadas no diagnóstico e prognóstico dos pacientes em seus estágios doentios, analisar os principais julgados da matéria em foco, e verificar quais as medidas tomadas pelos tribunais brasileiros. A relevância do tema justifica-se não só como uma espécie de guia de orientação jurídica para os profissionais e estudantes de direitos, como também para o órgão representativo da classe (OAB) e as Entidades de Ensino Superior(IES), rediscutiram e adotarem novas políticas públicas de abordagem deste assunto aos seus públicos alvo. A metodologia utilizada na pesquisa foi do tipo bibliográfica e a fonte de coleta de dados, a documental. O enquadramento metodológico deveu-se à consultada aos inúmeros livros, leis, recursos judiciais, pareceres, decisões judiciais e artigos científicos ao longo do seu desenvolvimento. Segundo Beuren (2003), a pesquisa bibliográfica é aquela elaborada com base em material já publicado, principalmente livros e artigos científicos. O Trabalho encontra-se dividido em Quatro Capítulos. O primeiro aborda a introducão. O Segundo retrata o desenvolvimento e/ou revisão da literatura. O terceiro é a parte final da pesquisa chamada conclusão e, por ultimo, as referências blibliográficas. 2. DESENVOLVIMENTO 2.1. A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E OS PROCESSOS DA EUTANÁSIA, DISTANÁSIA E ORTOTANÁSIA No ordenamento jurídico brasileiro e no campo da Medicina, muito tem se discutido a relevância da eutanásia, distanásia e ortotanásia. O direito sobre a morte digna do paciente, mesmo sendo uma vontade própria, passa por regulamentação e proibição dos órgãos representativos da classe médica e Poder Judiciário. A discussão a respeito da morte digna aponta quatro principais condutas: a distanásia, o suicídio assistido, a eutanásia e a ortotanásia. Maria Luiza Monteiro da Cruz e Reinaldo Ayer de Oliveira (2013, pg. 407), afirmam que: “A distanásia, em regra, não envolve uma conduta do enfermo. Trata-se de um conjunto de tratamentos médicos que visam estender a sobrevida do paciente em fase terminal. Apesar de prolongar a vida do enfermo, a distanásia relega a segundo plano a qualidade de vida do paciente. Por tal motivo, é também conhecida como “obstinação terapêutica . De fato, há pacientes que optam pela distanásia, mas a prática tornou-se quase que um tratamento padrão dispensado a pacientes em fase terminal de vida e sem participação na decisão do tratamento”. Segundo Antônio Chaves (1986, p.65), a eutanásia caracteriza-se pela prática na qual “se busca abreviar, sem dor ou sofrimento, a vida de um doente, reconhecidamente incurável, angustiado por um mal atroz”. José Roque Junges et. al. (2010, pg. 277), explicam que a eutanásia é um processo de morte de um enfermo por intervenção com o objetivo último de levar à morte, aliviando um sofrimento insuportável, é a prática mais conhecida. Sua forma de punição depende do país em que ocorre. Na eutanásia produz-se a causa imediata da morte, o que é crime, encaixando-se a conduta na previsão do homicídio privilegiado do texto do Código Penal atual, tendo sempre a participação de um terceiro. No Brasil, a prática da eutanásia adquiriu caráter criminoso, sendo condenada possivelmente devido à propagação de um discurso religioso de proteção à vida e em virtude da racionalização e da humanização do direito. Vejamos abaixo a integra do artigo 121, § 3º do Código Penal(CPB): […] § 3º “Se o autor do crime agiu por compaixão, a pedido da vítima imputável e maior, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave: Pena: reclusão de três a seis anos.”
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O reconhecimento da tutela e salvaguarda do patrimônio genético como elemento integrante do princípio do meio ambiente ecologicamente equilibrado
Inicialmente, cuida salientar que o meio ambiente, em sua acepção macro e especificamente em seu desdobramento natural, configura elemento inerente ao indivíduo, atuando como sedimento a concreção da sadia qualidade de vida e, por extensão, ao fundamento estruturante da República Federativa do Brasil, consistente na materialização da dignidade da pessoa humana. Ao lado disso, tal como pontuado algures, a Constituição de 1988 estabelece, em seu artigo 225, o dever do Poder Público adotar medidas de proteção e preservação do ambiente natural. Aliás, quadra anotar, oportunamente, que tal dever é de competência político-administrativa de todos os entes políticos, devendo, para tanto, evitar que os espaços de proteção ambiental sejam utilizados de forma contrária à sua função – preservação das espécies nativas e, ainda, promover ostensiva fiscalização desses locais. Neste aspecto, o presente visa analisar, à luz da doutrina especializada, o alcance axiológico da locução “integridade do patrimônio genético”, expressamente previsto no §1º do artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
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1 Ponderações Introdutórias: Breves notas à construção teórica da Ramificação Ambiental do Direito Inicialmente, ao se dispensar um exame acerca do tema colocado em tela, patente se faz arrazoar que a Ciência Jurídica, enquanto um conjunto multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as robustas ramificações que a integram, reclama uma interpretação alicerçada nos plurais aspectos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste alamiré, lançando à tona os aspectos característicos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com ênfase, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Ora, infere-se que não mais prospera o arcabouço imutável que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios da população, suplantados em uma nova sistemática. Com espeque em tais premissas, cuida hastear, com bastante pertinência, como flâmula de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Destarte, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas fincadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não fiquem inquinados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo primevo é assegurar que não haja uma vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras em que o homem valorizava a Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade. Ademais, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, precipuamente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica jaz, justamente, na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais e os institutos jurídicos neles consagrados. Ainda neste substrato de exposição, pode-se evidenciar que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda dos mencionados sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis, diante das situações concretas. Nas últimas décadas, o aspecto de mutabilidade tornou-se ainda mais evidente, em especial, quando se analisa a construção de novos que derivam da Ciência Jurídica. Entre estes, cuida destacar a ramificação ambiental, considerando como um ponto de congruência da formação de novos ideários e cânones, motivados, sobretudo, pela premissa de um manancial de novos valores adotados. Nesta trilha de argumentação, de boa técnica se apresenta os ensinamentos de Fernando de Azevedo Alves Brito que, em seu artigo, aduz: “Com a intensificação, entretanto, do interesse dos estudiosos do Direito pelo assunto, passou-se a desvendar as peculiaridades ambientais, que, por estarem muito mais ligadas às ciências biológicas, até então era marginalizadas”[4]. Assim, em decorrência da proeminência que os temas ambientais vêm, de maneira paulatina, alcançando, notadamente a partir das últimas discussões internacionais envolvendo a necessidade de um desenvolvimento econômico pautado em sustentabilidade, não é raro que prospere, mormente em razão de novos fatores, um verdadeiro remodelamento ou mesmo uma releitura dos conceitos que abalizam a ramificação ambiental do Direito, com o fito de permitir que ocorra a conservação e recuperação das áreas degradadas, primacialmente as culturais.  Ademais, há de ressaltar ainda que o direito ambiental passou a figurar, especialmente, depois das décadas de 1950 e 1960, como um elemento integrante da farta e sólida tábua de direitos fundamentais. Calha realçar que mais contemporâneos, os direitos que constituem a terceira dimensão recebem a alcunha de direitos de fraternidade ou, ainda, de solidariedade, contemplando, em sua estrutura, uma patente preocupação com o destino da humanidade[5]·. Ora, daí se verifica a inclusão de meio ambiente como um direito fundamental, logo, está umbilicalmente atrelado com humanismo e, por extensão, a um ideal de sociedade mais justa e solidária. Nesse sentido, ainda, é plausível citar o artigo 3°., inciso I, da Carta Política de 1988 que abriga em sua redação tais pressupostos como os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direitos: “Art. 3º – Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária”[6]. Ainda nesta esteira, é possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Com o escopo de ilustrar, de maneira pertinente as ponderações vertidas, insta trazer à colação o entendimento do Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 1.856/RJ, em especial quando destaca: “Cabe assinalar, Senhor Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível”[7]. Quadra anotar que os direitos alocados sob a rubrica de direito de terceira dimensão encontram como assento primordial a visão da espécie humana na condição de coletividade, superando, via de consequência, a tradicional visão que está pautada no ser humano em sua individualidade. Assim, a preocupação identificada está alicerçada em direitos que são coletivos, cujas influências afetam a todos, de maneira indiscriminada. Ao lado do exposto, cuida mencionar, segundo Bonavides, que tais direitos “têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”[8]. Com efeito, os direitos de terceira dimensão, dentre os quais se inclui ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, positivado na Constituição de 1988, emerge com um claro e tangível aspecto de familiaridade, como ápice da evolução e concretização dos direitos fundamentais. 2 Comentários à concepção de Meio Ambiente Em uma primeira plana, ao lançar mão do sedimentado jurídico-doutrinário apresentado pelo inciso I do artigo 3º da Lei Nº. 6.938, de 31 de agosto de 1981[9], que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências, salienta que o meio ambiente consiste no conjunto e conjunto de condições, leis e influências de ordem química, física e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Pois bem, com o escopo de promover uma facilitação do aspecto conceitual apresentado, é possível verificar que o meio ambiente se assenta em um complexo diálogo de fatores abióticos, provenientes de ordem química e física, e bióticos, consistentes nas plurais e diversificadas formas de seres viventes. Consoante os ensinamentos apresentados por José Afonso da Silva, considera-se meio-ambiente como “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”[10]. Nesta senda, ainda, Fiorillo[11], ao tecer comentários acerca da acepção conceitual de meio ambiente, coloca em destaque que tal tema se assenta em um ideário jurídico indeterminado, incumbindo, ao intérprete das leis, promover o seu preenchimento. Dada à fluidez do tema, é possível colocar em evidência que o meio ambiente encontra íntima e umbilical relação com os componentes que cercam o ser humano, os quais são de imprescindível relevância para a sua existência. O Ministro Luiz Fux, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 4.029/AM, salientou, com bastante pertinência, que: “(…) o meio ambiente é um conceito hoje geminado com o de saúde pública, saúde de cada indivíduo, sadia qualidade de vida, diz a Constituição, é por isso que estou falando de saúde, e hoje todos nós sabemos que ele é imbricado, é conceitualmente geminado com o próprio desenvolvimento. Se antes nós dizíamos que o meio ambiente é compatível com o desenvolvimento, hoje nós dizemos, a partir da Constituição, tecnicamente, que não pode haver desenvolvimento senão com o meio ambiente ecologicamente equilibrado. A geminação do conceito me parece de rigor técnico, porque salta da própria Constituição Federal”[12]. É denotável, desta sorte, que a constitucionalização do meio ambiente no Brasil viabilizou um verdadeiro salto qualitativo, no que concerne, especificamente, às normas de proteção ambiental. Tal fato decorre da premissa que os robustos corolários e princípios norteadores foram alçados ao patamar constitucional, assumindo colocação eminente, ao lado das liberdades públicas e dos direitos fundamentais. Superadas tais premissas, aprouve ao Constituinte, ao entalhar a Carta Política Brasileira, ressoando os valores provenientes dos direitos de terceira dimensão, insculpir na redação do artigo 225, conceder amplo e robusto respaldo ao meio ambiente como pilar integrante dos direitos fundamentais. “Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, as normas de proteção ambiental são alçadas à categoria de normas constitucionais, com elaboração de capítulo especialmente dedicado à proteção do meio ambiente”[13]. Nesta toada, ainda, é observável que o caput do artigo 225 da Constituição Federal de 1988[14] está abalizado em quatro pilares distintos, robustos e singulares que, em conjunto, dão corpo a toda tábua ideológica e teórica que assegura o substrato de edificação da ramificação ambiental. Primeiramente, em decorrência do tratamento dispensado pelo artífice da Constituição Federal, o meio ambiente foi içado à condição de direito de todos, presentes e futuras gerações. É encarado como algo pertencente a toda coletividade, assim, por esse prisma, não se admite o emprego de qualquer distinção entre brasileiro nato, naturalizado ou estrangeiro, destacando-se, sim, a necessidade de preservação, conservação e não-poluição. O artigo 225, devido ao cunho de direito difuso que possui, extrapola os limites territoriais do Estado Brasileiro, não ficando centrado, apenas, na extensão nacional, compreendendo toda a humanidade. Neste sentido, o Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N° 1.856/RJ, destacou que: “A preocupação com o meio ambiente – que hoje transcende o plano das presentes gerações, para também atuar em favor das gerações futuras […] tem constituído, por isso mesmo, objeto de regulações normativas e de proclamações jurídicas, que, ultrapassando a província meramente doméstica do direito nacional de cada Estado soberano, projetam-se no plano das declarações internacionais, que refletem, em sua expressão concreta, o compromisso das Nações com o indeclinável respeito a esse direito fundamental que assiste a toda a Humanidade”[15]. O termo “todos”, aludido na redação do caput do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, faz menção aos já nascidos (presente geração) e ainda aqueles que estão por nascer (futura geração), cabendo àqueles zelar para que esses tenham à sua disposição, no mínimo, os recursos naturais que hoje existem. Tal fato encontra como arrimo a premissa que foi reconhecido ao gênero humano o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao gozo de condições de vida adequada, em ambiente que permita desenvolver todas as suas potencialidades em clima de dignidade e bem-estar. Pode-se considerar como um direito transgeracional, ou seja, ultrapassa as gerações, logo, é viável afirmar que o meio-ambiente é um direito público subjetivo. Desta feita, o ideário de que o meio ambiente substancializa patrimônio público a ser imperiosamente assegurado e protegido pelos organismos sociais e pelas instituições estatais, qualificando verdadeiro encargo irrenunciável que se impõe, objetivando sempre o benefício das presentes e das futuras gerações, incumbindo tanto ao Poder Público quanto à coletividade considerada em si mesma. Desta feita, decorrente do fato supramencionado, produz efeito erga mones, sendo, portanto, oponível contra a todos, incluindo pessoa física/natural ou jurídica, de direito público interno ou externo, ou mesmo de direito privado, como também ente estatal, autarquia, fundação ou sociedade de economia mista. Impera, também, evidenciar que, como um direito difuso, não subiste a possibilidade de quantificar quantas são as pessoas atingidas, pois a poluição não afeta tão só a população local, mas sim toda a humanidade, pois a coletividade é indeterminada. Nesta senda de exposição, quadra apontar que o direito à integridade do meio ambiente substancializa verdadeira prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, ressoando a expressão robusta de um poder deferido, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas num sentido mais amplo, atribuído à própria coletividade social. Salta aos olhos que, com a nova sistemática entabulada pela redação do artigo 225 da Carta Maior, o meio-ambiente passou a ter autonomia, tal seja não está vinculada a lesões perpetradas contra o ser humano para se agasalhar das reprimendas a serem utilizadas em relação ao ato perpetrado. Figura-se, ergo, como bem de uso comum do povo o segundo pilar que dá corpo aos sustentáculos do tema em tela. O axioma a ser esmiuçado, está atrelado o meio-ambiente como vetor da sadia qualidade de vida, ou seja, manifesta-se na salubridade, precipuamente, ao vincular a espécie humana está se tratando do bem-estar e condições mínimas de existência. Igualmente, o sustentáculo em análise se corporifica também na higidez, ao cumprir os preceitos de ecologicamente equilibrado, salvaguardando a vida em todas as suas formas (diversidade de espécies). Por derradeiro, insta mencionar, ainda, que o quarto pilar é a corresponsabilidade, que impõe ao Poder Público o dever geral de se responsabilizar por todos os elementos que integram o meio ambiente, assim como a condição positiva de atuar em prol de resguardar. Igualmente, tem a obrigação de atuar no sentido de zelar, defender e preservar, asseverando que o meio-ambiente permaneça intacto. Aliás, este último se diferencia de conservar que permite a ação antrópica, viabilizando melhorias no meio ambiente, trabalhando com as premissas de desenvolvimento sustentável, aliando progresso e conservação. Por seu turno, o cidadão tem o dever negativo, que se apresenta ao não poluir nem agredir o meio-ambiente com sua ação. Além disso, em razão da referida corresponsabilidade, são titulares do meio ambiente os cidadãos da presente e da futura geração. 3 Singelos Comentários ao Meio Ambiente Natural: Tessituras Conceituais sobre o Tema No que concerne ao meio ambiente natural, cuida salientar que tal faceta é descrita como ambiente natural, também denominado de físico, o qual, em sua estrutura, agasalha os fatores abióticos e bióticos, considerados como recursos ambientais. Nesta esteira de raciocínio, oportunamente, cumpre registrar, a partir de um viés jurídico, a acepção do tema em destaque, o qual vem disciplinado pela Lei Nº. 9.985, de 18 de Julho de 2000, que regulamenta o art. 225, §1º, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências, em seu artigo 2º, inciso IV, frisa que “recurso ambiental: a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora”[16]. Nesta esteira, o termo fatores abióticos abriga a atmosfera, os elementos afetos à biosfera, as águas (inclusive aquelas que se encontram no mar territorial), pelo solo, pelo subsolo e pelos recursos minerais; já os fatores bióticos faz menção à fauna e à flora, como bem assinala Fiorillo[17]. Em razão da complexa interação entre os fatores abióticos e bióticos que ocorre o fenômeno da homeostase, consistente no equilíbrio dinâmico entre os seres vivos e o meio em que se encontram inseridos. Consoante Rebello Filho e Bernardo, o meio ambiente natural “é constituído por todos os elementos responsáveis pelo equilíbrio entre os seres vivos e o meio em que vivem: solo, água, ar atmosférico, fauna e flora”[18]. Nesta senda, com o escopo de fortalecer os argumentos apresentados, necessário se faz colocar em campo que os paradigmas que orientam a concepção recursos naturais como componentes que integram a paisagem, desde que não tenham sofrido maciças alterações pela ação antrópica a ponto de desnaturar o seu aspecto característico. Trata-se, com efeito, de uma conjunção de elementos e fatores que mantêm uma harmonia complexa e frágil, notadamente em razão dos avanços e degradações provocadas pelo ser humano. Ao lado do esposado, faz-se carecido pontuar que os recursos naturais são considerados como tal em razão do destaque concedido pelo ser humano, com o passar dos séculos, conferindo-lhes valores de ordem econômica, social e cultural. Desta feita, tão somente é possível à compreensão do tema a partir da análise da relação homem-natureza, eis que a interação entre aqueles é preponderante para o desenvolvimento do ser humano em todas as suas potencialidades. Patente se faz ainda, em breves palavras, mencionar a classificação dos recursos naturais, notadamente em razão da importância daqueles no tema em testilha. O primeiro grupo compreende os recursos naturais renováveis, que são os elementos naturais, cuja correta utilização, propicia a renovação, a exemplo do que se observa na fauna, na flora e nos recursos hídricos. Os recursos naturais não-renováveis fazem menção àqueles que não logram êxito na renovação ou, ainda, quando conseguem, esta se dá de maneira lenta em razão dos aspectos estruturais e característicos daqueles, como se observa no petróleo e nos metais em geral. Por derradeiro, os denominados recursos inesgotáveis agasalham aqueles que são “infindáveis”, como a luz solar e o vento. Salta aos olhos, a partir das ponderações estruturadas, que os recursos naturais, independente da seara em que se encontrem agrupados, apresentam como elemento comum de caracterização o fato de serem criados originariamente pela natureza. Nesta linha, ainda, de dicção, cuida assinalar que o meio ambiente natural encontra respaldo na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 225, caput e §1º, incisos I, III e IV. “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. §1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas [omissis] III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;   IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade”[19]. Ora, como bem manifestou o Ministro Carlos Britto, ao apreciar a Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade N° 3.540, “não se erige em área de proteção especial um espaço geográfico simplesmente a partir de sua vegetação, há outros elementos. Sabemos que fauna, flora, floresta, sítios arqueológicos concorrem para isso”[20]. Verifica-se, assim, que o espaço territorial especialmente protegido do direito constitucional ao meio ambiente hígido e equilibrado, em especial no que atina à estrutura e funções dos diversos e complexos ecossistemas. Nessa esteira de exposição, as denominadas “unidades de conservação”, neste aspecto de afirmação constitucional, enquanto instrumentos de preservação do meio ambiente natural, configuram áreas de maciço interesse ecológico que, em razão dos aspectos característicos naturais relevantes, recebem tratamento legal próprio, de maneira a reduzir a possibilidade de intervenções danosas ao meio ambiente. Diante do exposto, o meio ambiente, em sua acepção macro e especificamente em seu desdobramento natural, configura elemento inerente ao indivíduo, atuando como sedimento a concreção da sadia qualidade de vida e, por extensão, ao fundamento estruturante da República Federativa do Brasil, consistente na materialização da dignidade da pessoa humana. Ao lado disso, tal como pontuado algures, a Constituição da República estabelece, em seu artigo 225, o dever do Poder Público adotar medidas de proteção e preservação do ambiente natural. Aliás, quadra anotar, oportunamente, que tal dever é de competência político-administrativa de todos os entes políticos, devendo, para tanto, evitar que os espaços de proteção ambiental sejam utilizados de forma contrária à sua função – preservação das espécies nativas e, ainda, promover ostensiva fiscalização desses locais. Verifica-se, portanto, que o escopo repousa em assegurar que, por meio da fiscalização, o indivíduo tenha acesso às formações naturais como elemento inerente à dignidade da pessoa humana. 4 O Princípio da Unidade da Constituição como vetor de interpretação da Matéria Ambiental Estabelecidos, com profundos sulcos, os pontos limítrofes e o objeto a que se junge o presente, cuida, por oportuno, rememorar que a Constituição Federal de 1988, de maneira paradigmática, introduz no ordenamento jurídico nacional uma nova realidade, concatenada com princípios e paradigmas que valoram e conferem substância ao ideário de solidariedade, preceito axiológico volvido para a preservação do gênero humano, encarado na condição de coletividade, tanto para as presentes como futuras gerações. Neste talvegue, em alinho ao acimado, cuida repisar que o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é síntese robusta de tal axiologia constitucional. Com efeito, o princípio da unidade da Constituição sublinha que, na condição de preceito hermenêutico, jamais deve ser esquecida na interpretação de uma infraconstitucional, arriscando o intérprete ser levado a conclusões equivocadas e em descompasso com a mens do Texto de 1988. Consoante José Fialho Moreira assentou, “pelo princípio da unidade da Constituição os textos não devem ser analisados isoladamente, senão em sua globalidade e inteireza, levando-se em consideração o conjunto de normas constitucionalmente previstas, o que se justifica, inclusive, em razão da unidade do poder constituinte”[21]. Destarte, uma interpretação calcada apenas em partes do texto constitucional não pode encontrar plena validade, porquanto, ao compara-la em um quadro sistemático, resultados distintos podem ser obtidos. Frequentemente, aludido cenário nebuloso é verificável em conflitos envolvendo competências em matéria ambiental, na qual o intérprete tem se alicerçado apenas em parte das normas constitucionais, sobremaneira aquelas que versam acerca da repartição de competências entre os entes da federação. Salta aos olhos que as regras de competência desempenham substancial papel na solução de sobreditos conflitos, porém não são as únicas disposições da Carta de Outubro que convergem para tal espeque. Em complemento, há uma plêiade de princípios, contidos no Texto de 1988, que devem pautar a resolução desses conflitos, primacialmente aqueles corolários que ambicionam a salvaguarda de valores fundamentais da sociedade, os quais não são passíveis de negligência ou violados pela solução adotada. Ademais, calha sublinhar que o corolário da unidade da Constituição é um preceito de interpretação constitucional, desenvolvido a partir de uma postura metódica hermenêutico-concretizante, ponto de referência obrigatório da teoria da interpretação constitucional. O preceito em comento ambiciona evitar contradições entre as normas e os princípios do Texto de 1988, pois impõe ao intérprete a considerar as disposições constitucionais em sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar. Destaca-se que o intérprete deve considerar as normas constitucionais não como disposições isoladas e dispersas, mas sim como paradigmas integrados num sistema interno unitário de normas e princípios. Sublinhe-se, ainda, que a unidade da Constituição deve afastar as colisões e as antinomias entre as suas normas, incumbindo ao intérprete buscar a compreensão de todo o texto constitucional, de modo a que nenhuma normal anule a outra. Assim, o intérprete, ao se debruçar sobre as disposições constitucionais, deve trazer a campo a ponderação de bens e de valores que elas salvaguardam, cotejando-as com a intenção do legislador constituinte que pode ser alocada nos princípios fundamentais da Constituição. No mais, em sede de matéria ambiental, quadra destacar que é rotineira a incidência de normas contrastantes. Neste diapasão, a Constituição de 1988 permite que a União estabeleça normas gerais sobre proteção do meio ambiente e controle da poluição, contudo não exclui a competência suplementar dos Estados sobre o mesmo assunto. Os Estados legislam e suas leis, por vezes, parecem colidir com as disposições estabelecidas nas normas gerais da União sobre a mesma matéria. Entrementes, o aparente conflito não comporta a solução simplista que conclui pela prevalência da lei federal em detrimento da norma estadual, unicamente alicerçada nas regras de competências constitucionais. Logo, caso determinada legislação estadual ofereça maior proteção ao meio ambiente ou, ainda, assegure um melhor controle da poluição, não se poderá concluir que essa norma esteja inquinada de inconstitucionalidade porque teria invadido competência de lei federal. Sobre a robustez do meio ambiente, o Ministro Celso de Mello já decidiu que: “Ementa: Reforma Agrária – Imóvel rural situado no pantanal mato-grossense – Desapropriação-sanção (CF, art. 184) – Possibilidade – Falta de notificação pessoal e prévia do proprietário rural quanto à realização da vistoria (Lei nº 8.629/93, art. 2, par. 2) [omissis] A questão do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – Direito de terceira geração – Princípio da solidariedade. – O direito a integridade do meio ambiente – Típico direito de terceira geração – Constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao individuo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, a própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade. Considerações doutrinarias.” (Supremo Tribunal Federal – Tribunal Plenno/ MS 22.164/ Relator: Ministro Celso de Mello/ Julgado em 30 out. 1995/ Publicado no DJ em 17 nov. 1995). Comumente, em situações concretas, o que se verifica é a colisão entre interesses econômicos e interesses da preservação ambiental. Com efeito, o confronto de valores é inevitável em sede de questões ambientais, porquanto a exploração econômica é a principal causadora dos impactos negativos no meio ambiente. Entrementes, a Constituição previu essa disputa e estabeleceu que a ordem econômica deve observar, dentre outros corolários, a defesa do meio ambiente. Em alinhavo, o equilíbrio entre esses interesses e valores é que deve ser ambicionado pelo intérprete da Constituição de 1988, extraindo-lhe a sua essência quanto à atividade econômica pode avançar sobre o meio ambiente e como este deve ser defendido, sem que o primeiro seja indevidamente restringido e propiciando a necessária preservação deste último. Assim, denota-se que o corolário da unidade da Constituição se apresenta como dogma imprescindível para a interpretação sistemática das normas. 5 Patrimônio Genético e o alargamento das dimensões de direitos fundamentais Verifica-se, em decorrência da promulgação do Texto Constitucional, em 1988, que o patrimônio genético passou a usufruir de tratamento jurídico, sendo que a contemporânea ótica adotada buscou salientar a necessidade de preservar não apenas a diversidade e a integridade do supramencionado patrimônio, como também estabelecer determinação, em relação ao Poder Pública, para promover fiscalização as entidades que se dedicam à pesquisa e à manipulação de material genético. Desta feita, emerge a autorização constitucional com os limites estatuídos na própria redação da Carta de Outubro, com o escopo de dispensar tutela jurídica à produção e à comercialização, tal como emprego de técnicas, métodos e substâncias que abarquem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Neste passo, a tutela jurídica do patrimônio genético da pessoa humana encontra proteção ambiental constitucional, sendo imperiosa a observância dos incisos II, IV e V do §1º do artigo 225[22], sendo cediço que, em sede infraconstitucional, a Lei Nº 11.105, de 24 de Março de 2005[23], que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei n o 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências, foi responsável por estabelecer as normas de segurança, tal como mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam os organismos geneticamente modificados. Cuida anotar que a Lei de Biossegurança objetivou destacar no plano jurídico ambiental a tutela jurídica concernente ao patrimônio genético da pessoa humana, “assegurando em sede infraconstitucional tanto a tutela jurídica individual das pessoas humanas (como o direito às informações determinantes dos caracteres hereditários transmissíveis à descendência)”[24], em especial os referentes ao povo brasileiro, atento, porém, para a sua dimensão metaindividual. Quadra salientar que o diploma legislativo em comento afixou sanções para apenar a responsabilidade civil, administrativa e criminal em decorrência de possíveis condutas ou mesmo atividades consideradas lesivas ao patrimônio genético da pessoa humana. Neste passo, ainda, cuida rememorar que a Lei de Biossegurança não está adstrita ao patrimônio genético humano, mas compreende também à informação de origem genética contida em amostras de todo ou de parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, na forma de moléculas e substâncias oriundas do metabolismo desses seres vivos e de extratos colhidos desses organismos vivos ou mortos. Ao lado disso, é possível assinalar, ainda, que as referidas amostras podem ser obtidas in situ, tal como os domesticados ou mantidos em coleções ex situ, desde que coletados, porém, em condições in situ no território brasileiro, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva. Com efeito, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[25] possibilitou que as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético desenvolvessem atividades destinadas, maiormente, para a solução dos problemas brasileiros, sensíveis não apenas à preservação da diversidade e integridade do patrimônio genético para as presentes e futuras gerações, tal como os fundamentos elencados no artigo 1º do texto constitucional. “Ementa: Direito constitucional. Direito administrativo. Direito processual civil. Agravo retido prejudicado. Algodão. OGM. Meio ambiente. Produção de espécie não autorizada. Necessidade do parecer favorável da CTNbio. Infringência à Lei Nº. 11.105/205. Auto de infração. Multa. Termo de fiscalização. Termo de suspensão da comercialização. Fundamentação e motivação presentes. Legalidade dos atos administrativos. Portaria nº. 437/2005. Interpretação. Sentença mantida. […] 2. A impetrante insurgiu-se contra auto de infração e termos de fiscalização e suspensão de comercialização de algodão tido como transgênico, pugnando pela sua anulação, uma vez que a pluma do algodão não se enquadraria no conceito de organismo geneticamente modificado (OGM), autorizando a sua comercialização e beneficiamento ou, ao menos, o beneficiamento, ou, ainda, a redução do valor da multa aplicada. 3 . Ora, não se deve olvidar que o caso em tela envolve interesses sociais relevantes, tutelados pela Constituição Federal de 1988, pois, de um lado, nos termos do artigo 225, todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, devendo ser preservado para as gerações presentes e futuras. […] 5. Resta evidente a preocupação do legislador constituinte em conciliar os direitos que inscreveu na Carta Magna, surgindo, porém, inequívoca a qualificação do meio ambiente como direito fundamental, devendo o Poder Público exigir estudos de impacto ambiental para autorizar a exploração de variedades oriundas de organismos geneticamente modificados, ou para a instalação de obra ou outra atividade qualquer, sempre com a finalidade de evitar degradação ambiental. 6. A impetrante cultivou espécie de algodão com presença de OGM não autorizado, o que ensejou a autuação e suspensão de sua comercialização, conquanto a cultura foi feita sem a devida liberação e parecer favorável da CTNBio, órgão que delibera a respeito da segurança dos produtos que contenham organismos geneticamente modificados – OGM, sendo que o seu parecer técnico favorável é exigência imposta por lei, a teor do artigo 6º, inciso VI, da Lei nº. 11.105.2005. […] 11. Nesse contexto e considerando as circunstâncias do caso concreto, de um lado, o parecer técnico favorável da CTNBio constitui exigência inafastável para o cultivo de organismos geneticamente modificados, e de outro, nem se cogita que o Poder Judiciário está autorizado a liberar a comercialização da produção do algodão objeto de autuação legítima, por se tratar de variedade de OGM cujo cultivo não foi liberado. 12. Agravo retido prejudicado e apelação a que se nega provimento.” (Tribunal Regional Federal da Terceira Região – Terceira Turma/ AMS 0002621-46.2007.4.03.6000/ Relator: Juiz Convocado Valdeci dos Santos/ Julgado em 18.03.2010/ Publicado em 30.03.2010, p. 560). Denota-se, desta sorte, que a Lei de Biossegurança apoia e estimula as empresas que invistam em pesquisa e criação de tecnologias adequadas ao Brasil dentro de orientação constitucional voltada maciçamente para a solução de problemas nacionais, assim como para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional. O mencionado diploma legislativo viabilizou, no plano infraconstitucional a contemporânea visão adotada Carta de 1988, que já buscava realçar no final do século passado a necessidade de preservar não apenas a diversidade como a integridade de referido patrimônio genético brasileiro. “A norma aludida não se esqueceu de também determinar em referido plano jurídico de que forma a incumbência constitucional destinada ao Poder Público, no sentido de fiscalizar as entidades que se dedicam à pesquisa”[26], consoante bem observa Fiorillo, tal como manipulação do direito material genético, deverá ser realizada concretamente. Ao lado disso, a autorização constitucional com os limites estabelecidos no Texto Constitucional passa a ser regulamentar pela Lei de Biossegurança, objetivada conferir viabilidade jurídica à produção e comercialização, tal como a utilização de técnicas, métodos e substâncias que ofereçam risco para a vida, a qualidade de via e o meio ambiente. Assim, como a produção e a comercialização, tal como o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem riscos para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente serão controladas carecidamente pelo Poder Público, notadamente em razão da existência de atividades que pelo menos potencialmente possam causar significativa degradação ambiental. Para tanto, destaque-se, é imperiosa a estruturação do Estudo Prévio de Impacto Ambiental a que se dará sempre publicidade. Desta feita, o Poder Público deverá exigir, na forma da lei, o EIA sempre que ocorrer iniciativa destinada a instalar obra ou mesmo atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental. 6 O Reconhecimento da Tutela e Salvaguarda do Patrimônio Genético como elemento integrante do Princípio do Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado Tecidas as considerações apresentadas até o momento, é imprescindível destacar que a locução “integridade do patrimônio genético”, insculpida no §1º do artigo 225 da Constituição Federal de 1988[27], não encontra conceituação no ordenamento jurídico em vigor. Contudo, em decorrência do conteúdo axiológico encerrado no dispositivo supramencionado, faz-se carecido estabelecer claros pontos limítrofes conceituais, sobretudo em razão da complexidade que reveste a temática, notadamente por se tratar de um imperativo constitucional que determina, ao Poder Público, que se preserve e restaure como condição necessária para assegurar o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Silva[28], nesta linha de exposição, ao analisar a locução em comento, vai reconhecer que se trata de um postulado cogente, responsável por preservar todas as espécies vivas no interior do território nacional, compreendendo, com efeito, todos os reinos biológicos (animais e plantas). No mais, cuida ponderar que tal preservação configura, antes de tudo, um mecanismo assecuratório e um investimento imprescindível para a manutenção e melhoria da produção agrícola, florestal e pesqueira, notadamente para manter opções futuras. Em igual perspectiva, a locução em comento implica, ainda, a proteção contra as mudanças ambientais perniciosas e para dispor de matéria-prima para numerosas inovações científicas e industriais. Trata-se, ainda, em observância à bússola axiológica decorrente do primado em comento, a integridade do patrimônio genético assume especial pertinência ao reconhecer que aludida locução encontra contrastante relação com o meio ambiente ecologicamente equilibrado, substancializando patrimônio não quantificável monetariamente e cuja expressão implica na formação de meio ambiente plural e diversificado, o qual configura sedimento indissociável para a realização humana. Nesta esteira, o patrimônio genético configura bem de interesse de todos, reclamando, pois, uma efetiva proteção e salvaguarda. Em alinho com as ponderações aventadas, cuida anotar que três são as maneiras de se promover a preservação da diversidade genética. A primeira delas é nominada in situ, sendo que a preservação dá-se mediante a proteção do ecossistema e do habitat natural e a manutenção e recuperação de populações viáveis de espécies em meio natural e, nas hipóteses de espécies domesticadas, nos meios em que tenham desenvolvido suas propriedades características. A segunda espécie é denominada ex situ e compreende duas modalidades: (i) apenas parte dos organismos, preservando-se a semente, o sêmen ou, ainda, qualquer outro elemento, a partir do qual é possível a reprodução do organismo; e (ii) o organismo inteiro, o que se dá por meio de uma certa quantidade de indivíduos do organismo em questão, sendo mantida fora de seu meio natural, em plantações, jardins botânicos ou zoológicos, aquários, prédios ou coleções para cultivo. Ora, uma proteção adequada da diversidade e da integridade do patrimônio genético requer planejamento e manejo cuidadoso dos recursos genéticos, com fixação de prioridades para a preservação dos gêneros monotípicos (aqueles que consistem em uma única espécie), das espécies raras e daquela em extinção.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-154/o-reconhecimento-da-tutela-e-salvaguarda-do-patrimonio-genetico-como-elemento-integrante-do-principio-do-meio-ambiente-ecologicamente-equilibrado/
Primeiras considerações à locução integridade do patrimônio genético no texto constitucional: exame axiológico do alcance do §1º do artigo 225 da Carta de Outubro
Inicialmente, cuida salientar que o meio ambiente, em sua acepção macro e especificamente em seu desdobramento natural, configura elemento inerente ao indivíduo, atuando como sedimento a concreção da sadia qualidade de vida e, por extensão, ao fundamento estruturante da República Federativa do Brasil, consistente na materialização da dignidade da pessoa humana. Ao lado disso, tal como pontuado algures, a Constituição de 1988 estabelece, em seu artigo 225, o dever do Poder Público adotar medidas de proteção e preservação do ambiente natural. Aliás, quadra anotar, oportunamente, que tal dever é de competência político-administrativa de todos os entes políticos, devendo, para tanto, evitar que os espaços de proteção ambiental sejam utilizados de forma contrária à sua função – preservação das espécies nativas e, ainda, promover ostensiva fiscalização desses locais. Neste aspecto, o presente visa analisar, à luz da doutrina especializada, o alcance axiológico da locução “integridade do patrimônio genético”, expressamente previsto no §1º do artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Biodireito
1 Ponderações Introdutórias: Breves notas à construção teórica da Ramificação Ambiental do Direito Inicialmente, ao se dispensar um exame acerca do tema colocado em tela, patente se faz arrazoar que a Ciência Jurídica, enquanto um conjunto multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as robustas ramificações que a integram, reclama uma interpretação alicerçada nos plurais aspectos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste alamiré, lançando à tona os aspectos característicos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com ênfase, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Ora, infere-se que não mais prospera o arcabouço imutável que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios da população, suplantados em uma nova sistemática. Com espeque em tais premissas, cuida hastear, com bastante pertinência, como flâmula de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Destarte, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas fincadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não fiquem inquinados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo primevo é assegurar que não haja uma vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras em que o homem valorizava a Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade. Ademais, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, precipuamente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica jaz, justamente, na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais e os institutos jurídicos neles consagrados. Ainda neste substrato de exposição, pode-se evidenciar que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda dos mencionados sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis, diante das situações concretas. Nas últimas décadas, o aspecto de mutabilidade tornou-se ainda mais evidente, em especial, quando se analisa a construção de novos que derivam da Ciência Jurídica. Entre estes, cuida destacar a ramificação ambiental, considerando como um ponto de congruência da formação de novos ideários e cânones, motivados, sobretudo, pela premissa de um manancial de novos valores adotados. Nesta trilha de argumentação, de boa técnica se apresenta os ensinamentos de Fernando de Azevedo Alves Brito que, em seu artigo, aduz: “Com a intensificação, entretanto, do interesse dos estudiosos do Direito pelo assunto, passou-se a desvendar as peculiaridades ambientais, que, por estarem muito mais ligadas às ciências biológicas, até então era marginalizadas”[4]. Assim, em decorrência da proeminência que os temas ambientais vêm, de maneira paulatina, alcançando, notadamente a partir das últimas discussões internacionais envolvendo a necessidade de um desenvolvimento econômico pautado em sustentabilidade, não é raro que prospere, mormente em razão de novos fatores, um verdadeiro remodelamento ou mesmo uma releitura dos conceitos que abalizam a ramificação ambiental do Direito, com o fito de permitir que ocorra a conservação e recuperação das áreas degradadas, primacialmente as culturais.  Ademais, há de ressaltar ainda que o direito ambiental passou a figurar, especialmente, depois das décadas de 1950 e 1960, como um elemento integrante da farta e sólida tábua de direitos fundamentais. Calha realçar que mais contemporâneos, os direitos que constituem a terceira dimensão recebem a alcunha de direitos de fraternidade ou, ainda, de solidariedade, contemplando, em sua estrutura, uma patente preocupação com o destino da humanidade[5]·. Ora, daí se verifica a inclusão de meio ambiente como um direito fundamental, logo, está umbilicalmente atrelado com humanismo e, por extensão, a um ideal de sociedade mais justa e solidária. Nesse sentido, ainda, é plausível citar o artigo 3°., inciso I, da Carta Política de 1988 que abriga em sua redação tais pressupostos como os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direitos: “Art. 3º – Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária”[6]. Ainda nesta esteira, é possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Com o escopo de ilustrar, de maneira pertinente as ponderações vertidas, insta trazer à colação o entendimento do Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 1.856/RJ, em especial quando destaca: “Cabe assinalar, Senhor Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível”[7]. Quadra anotar que os direitos alocados sob a rubrica de direito de terceira dimensão encontram como assento primordial a visão da espécie humana na condição de coletividade, superando, via de consequência, a tradicional visão que está pautada no ser humano em sua individualidade. Assim, a preocupação identificada está alicerçada em direitos que são coletivos, cujas influências afetam a todos, de maneira indiscriminada. Ao lado do exposto, cuida mencionar, segundo Bonavides, que tais direitos “têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”[8]. Com efeito, os direitos de terceira dimensão, dentre os quais se inclui ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, positivado na Constituição de 1988, emerge com um claro e tangível aspecto de familiaridade, como ápice da evolução e concretização dos direitos fundamentais. 2 Comentários à concepção de Meio Ambiente Em uma primeira plana, ao lançar mão do sedimentado jurídico-doutrinário apresentado pelo inciso I do artigo 3º da Lei Nº. 6.938, de 31 de agosto de 1981[9], que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências, salienta que o meio ambiente consiste no conjunto e conjunto de condições, leis e influências de ordem química, física e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Pois bem, com o escopo de promover uma facilitação do aspecto conceitual apresentado, é possível verificar que o meio ambiente se assenta em um complexo diálogo de fatores abióticos, provenientes de ordem química e física, e bióticos, consistentes nas plurais e diversificadas formas de seres viventes. Consoante os ensinamentos apresentados por José Afonso da Silva, considera-se meio-ambiente como “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”[10]. Nesta senda, ainda, Fiorillo[11], ao tecer comentários acerca da acepção conceitual de meio ambiente, coloca em destaque que tal tema se assenta em um ideário jurídico indeterminado, incumbindo, ao intérprete das leis, promover o seu preenchimento. Dada à fluidez do tema, é possível colocar em evidência que o meio ambiente encontra íntima e umbilical relação com os componentes que cercam o ser humano, os quais são de imprescindível relevância para a sua existência. O Ministro Luiz Fux, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 4.029/AM, salientou, com bastante pertinência, que: “(…) o meio ambiente é um conceito hoje geminado com o de saúde pública, saúde de cada indivíduo, sadia qualidade de vida, diz a Constituição, é por isso que estou falando de saúde, e hoje todos nós sabemos que ele é imbricado, é conceitualmente geminado com o próprio desenvolvimento. Se antes nós dizíamos que o meio ambiente é compatível com o desenvolvimento, hoje nós dizemos, a partir da Constituição, tecnicamente, que não pode haver desenvolvimento senão com o meio ambiente ecologicamente equilibrado. A geminação do conceito me parece de rigor técnico, porque salta da própria Constituição Federal”[12]. É denotável, desta sorte, que a constitucionalização do meio ambiente no Brasil viabilizou um verdadeiro salto qualitativo, no que concerne, especificamente, às normas de proteção ambiental. Tal fato decorre da premissa que os robustos corolários e princípios norteadores foram alçados ao patamar constitucional, assumindo colocação eminente, ao lado das liberdades públicas e dos direitos fundamentais. Superadas tais premissas, aprouve ao Constituinte, ao entalhar a Carta Política Brasileira, ressoando os valores provenientes dos direitos de terceira dimensão, insculpir na redação do artigo 225, conceder amplo e robusto respaldo ao meio ambiente como pilar integrante dos direitos fundamentais. “Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, as normas de proteção ambiental são alçadas à categoria de normas constitucionais, com elaboração de capítulo especialmente dedicado à proteção do meio ambiente”[13]. Nesta toada, ainda, é observável que o caput do artigo 225 da Constituição Federal de 1988[14] está abalizado em quatro pilares distintos, robustos e singulares que, em conjunto, dão corpo a toda tábua ideológica e teórica que assegura o substrato de edificação da ramificação ambiental. Primeiramente, em decorrência do tratamento dispensado pelo artífice da Constituição Federal, o meio ambiente foi içado à condição de direito de todos, presentes e futuras gerações. É encarado como algo pertencente a toda coletividade, assim, por esse prisma, não se admite o emprego de qualquer distinção entre brasileiro nato, naturalizado ou estrangeiro, destacando-se, sim, a necessidade de preservação, conservação e não-poluição. O artigo 225, devido ao cunho de direito difuso que possui, extrapola os limites territoriais do Estado Brasileiro, não ficando centrado, apenas, na extensão nacional, compreendendo toda a humanidade. Neste sentido, o Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N° 1.856/RJ, destacou que: “A preocupação com o meio ambiente – que hoje transcende o plano das presentes gerações, para também atuar em favor das gerações futuras […] tem constituído, por isso mesmo, objeto de regulações normativas e de proclamações jurídicas, que, ultrapassando a província meramente doméstica do direito nacional de cada Estado soberano, projetam-se no plano das declarações internacionais, que refletem, em sua expressão concreta, o compromisso das Nações com o indeclinável respeito a esse direito fundamental que assiste a toda a Humanidade”[15]. O termo “todos”, aludido na redação do caput do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, faz menção aos já nascidos (presente geração) e ainda aqueles que estão por nascer (futura geração), cabendo àqueles zelar para que esses tenham à sua disposição, no mínimo, os recursos naturais que hoje existem. Tal fato encontra como arrimo a premissa que foi reconhecido ao gênero humano o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao gozo de condições de vida adequada, em ambiente que permita desenvolver todas as suas potencialidades em clima de dignidade e bem-estar. Pode-se considerar como um direito transgeracional, ou seja, ultrapassa as gerações, logo, é viável afirmar que o meio-ambiente é um direito público subjetivo. Desta feita, o ideário de que o meio ambiente substancializa patrimônio público a ser imperiosamente assegurado e protegido pelos organismos sociais e pelas instituições estatais, qualificando verdadeiro encargo irrenunciável que se impõe, objetivando sempre o benefício das presentes e das futuras gerações, incumbindo tanto ao Poder Público quanto à coletividade considerada em si mesma. Desta feita, decorrente do fato supramencionado, produz efeito erga mones, sendo, portanto, oponível contra a todos, incluindo pessoa física/natural ou jurídica, de direito público interno ou externo, ou mesmo de direito privado, como também ente estatal, autarquia, fundação ou sociedade de economia mista. Impera, também, evidenciar que, como um direito difuso, não subiste a possibilidade de quantificar quantas são as pessoas atingidas, pois a poluição não afeta tão só a população local, mas sim toda a humanidade, pois a coletividade é indeterminada. Nesta senda de exposição, quadra apontar que o direito à integridade do meio ambiente substancializa verdadeira prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, ressoando a expressão robusta de um poder deferido, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas num sentido mais amplo, atribuído à própria coletividade social. Salta aos olhos que, com a nova sistemática entabulada pela redação do artigo 225 da Carta Maior, o meio-ambiente passou a ter autonomia, tal seja não está vinculada a lesões perpetradas contra o ser humano para se agasalhar das reprimendas a serem utilizadas em relação ao ato perpetrado. Figura-se, ergo, como bem de uso comum do povo o segundo pilar que dá corpo aos sustentáculos do tema em tela. O axioma a ser esmiuçado, está atrelado o meio-ambiente como vetor da sadia qualidade de vida, ou seja, manifesta-se na salubridade, precipuamente, ao vincular a espécie humana está se tratando do bem-estar e condições mínimas de existência. Igualmente, o sustentáculo em análise se corporifica também na higidez, ao cumprir os preceitos de ecologicamente equilibrado, salvaguardando a vida em todas as suas formas (diversidade de espécies). Por derradeiro, insta mencionar, ainda, que o quarto pilar é a corresponsabilidade, que impõe ao Poder Público o dever geral de se responsabilizar por todos os elementos que integram o meio ambiente, assim como a condição positiva de atuar em prol de resguardar. Igualmente, tem a obrigação de atuar no sentido de zelar, defender e preservar, asseverando que o meio-ambiente permaneça intacto. Aliás, este último se diferencia de conservar que permite a ação antrópica, viabilizando melhorias no meio ambiente, trabalhando com as premissas de desenvolvimento sustentável, aliando progresso e conservação. Por seu turno, o cidadão tem o dever negativo, que se apresenta ao não poluir nem agredir o meio-ambiente com sua ação. Além disso, em razão da referida corresponsabilidade, são titulares do meio ambiente os cidadãos da presente e da futura geração. 3 Singelos Comentários ao Meio Ambiente Natural: Tessituras Conceituais sobre o Tema No que concerne ao meio ambiente natural, cuida salientar que tal faceta é descrita como ambiente natural, também denominado de físico, o qual, em sua estrutura, agasalha os fatores abióticos e bióticos, considerados como recursos ambientais. Nesta esteira de raciocínio, oportunamente, cumpre registrar, a partir de um viés jurídico, a acepção do tema em destaque, o qual vem disciplinado pela Lei Nº. 9.985, de 18 de Julho de 2000, que regulamenta o art. 225, §1º, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências, em seu artigo 2º, inciso IV, frisa que “recurso ambiental: a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora”[16]. Nesta esteira, o termo fatores abióticos abriga a atmosfera, os elementos afetos à biosfera, as águas (inclusive aquelas que se encontram no mar territorial), pelo solo, pelo subsolo e pelos recursos minerais; já os fatores bióticos faz menção à fauna e à flora, como bem assinala Fiorillo[17]. Em razão da complexa interação entre os fatores abióticos e bióticos que ocorre o fenômeno da homeostase, consistente no equilíbrio dinâmico entre os seres vivos e o meio em que se encontram inseridos. Consoante Rebello Filho e Bernardo, o meio ambiente natural “é constituído por todos os elementos responsáveis pelo equilíbrio entre os seres vivos e o meio em que vivem: solo, água, ar atmosférico, fauna e flora”[18]. Nesta senda, com o escopo de fortalecer os argumentos apresentados, necessário se faz colocar em campo que os paradigmas que orientam a concepção recursos naturais como componentes que integram a paisagem, desde que não tenham sofrido maciças alterações pela ação antrópica a ponto de desnaturar o seu aspecto característico. Trata-se, com efeito, de uma conjunção de elementos e fatores que mantêm uma harmonia complexa e frágil, notadamente em razão dos avanços e degradações provocadas pelo ser humano. Ao lado do esposado, faz-se carecido pontuar que os recursos naturais são considerados como tal em razão do destaque concedido pelo ser humano, com o passar dos séculos, conferindo-lhes valores de ordem econômica, social e cultural. Desta feita, tão somente é possível à compreensão do tema a partir da análise da relação homem-natureza, eis que a interação entre aqueles é preponderante para o desenvolvimento do ser humano em todas as suas potencialidades. Patente se faz ainda, em breves palavras, mencionar a classificação dos recursos naturais, notadamente em razão da importância daqueles no tema em testilha. O primeiro grupo compreende os recursos naturais renováveis, que são os elementos naturais, cuja correta utilização, propicia a renovação, a exemplo do que se observa na fauna, na flora e nos recursos hídricos. Os recursos naturais não-renováveis fazem menção àqueles que não logram êxito na renovação ou, ainda, quando conseguem, esta se dá de maneira lenta em razão dos aspectos estruturais e característicos daqueles, como se observa no petróleo e nos metais em geral. Por derradeiro, os denominados recursos inesgotáveis agasalham aqueles que são “infindáveis”, como a luz solar e o vento. Salta aos olhos, a partir das ponderações estruturadas, que os recursos naturais, independente da seara em que se encontrem agrupados, apresentam como elemento comum de caracterização o fato de serem criados originariamente pela natureza. Nesta linha, ainda, de dicção, cuida assinalar que o meio ambiente natural encontra respaldo na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 225, caput e §1º, incisos I, III e IV. “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. §1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas [omissis] III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;   IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade”[19]. Ora, como bem manifestou o Ministro Carlos Britto, ao apreciar a Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade N° 3.540, “não se erige em área de proteção especial um espaço geográfico simplesmente a partir de sua vegetação, há outros elementos. Sabemos que fauna, flora, floresta, sítios arqueológicos concorrem para isso”[20]. Verifica-se, assim, que o espaço territorial especialmente protegido do direito constitucional ao meio ambiente hígido e equilibrado, em especial no que atina à estrutura e funções dos diversos e complexos ecossistemas. Nessa esteira de exposição, as denominadas “unidades de conservação”, neste aspecto de afirmação constitucional, enquanto instrumentos de preservação do meio ambiente natural, configuram áreas de maciço interesse ecológico que, em razão dos aspectos característicos naturais relevantes, recebem tratamento legal próprio, de maneira a reduzir a possibilidade de intervenções danosas ao meio ambiente. Diante do exposto, o meio ambiente, em sua acepção macro e especificamente em seu desdobramento natural, configura elemento inerente ao indivíduo, atuando como sedimento a concreção da sadia qualidade de vida e, por extensão, ao fundamento estruturante da República Federativa do Brasil, consistente na materialização da dignidade da pessoa humana. Ao lado disso, tal como pontuado algures, a Constituição da República estabelece, em seu artigo 225, o dever do Poder Público adotar medidas de proteção e preservação do ambiente natural. Aliás, quadra anotar, oportunamente, que tal dever é de competência político-administrativa de todos os entes políticos, devendo, para tanto, evitar que os espaços de proteção ambiental sejam utilizados de forma contrária à sua função – preservação das espécies nativas e, ainda, promover ostensiva fiscalização desses locais. Verifica-se, portanto, que o escopo repousa em assegurar que, por meio da fiscalização, o indivíduo tenha acesso às formações naturais como elemento inerente à dignidade da pessoa humana. 4 O Princípio da Unidade da Constituição como vetor de interpretação da Matéria Ambiental Estabelecidos, com profundos sulcos, os pontos limítrofes e o objeto a que se junge o presente, cuida, por oportuno, rememorar que a Constituição Federal de 1988, de maneira paradigmática, introduz no ordenamento jurídico nacional uma nova realidade, concatenada com princípios e paradigmas que valoram e conferem substância ao ideário de solidariedade, preceito axiológico volvido para a preservação do gênero humano, encarado na condição de coletividade, tanto para as presentes como futuras gerações. Neste talvegue, em alinho ao acimado, cuida repisar que o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é síntese robusta de tal axiologia constitucional. Com efeito, o princípio da unidade da Constituição sublinha que, na condição de preceito hermenêutico, jamais deve ser esquecida na interpretação de uma infraconstitucional, arriscando o intérprete ser levado a conclusões equivocadas e em descompasso com a mens do Texto de 1988. Consoante José Fialho Moreira assentou, “pelo princípio da unidade da Constituição os textos não devem ser analisados isoladamente, senão em sua globalidade e inteireza, levando-se em consideração o conjunto de normas constitucionalmente previstas, o que se justifica, inclusive, em razão da unidade do poder constituinte”[21]. Destarte, uma interpretação calcada apenas em partes do texto constitucional não pode encontrar plena validade, porquanto, ao compara-la em um quadro sistemático, resultados distintos podem ser obtidos. Frequentemente, aludido cenário nebuloso é verificável em conflitos envolvendo competências em matéria ambiental, na qual o intérprete tem se alicerçado apenas em parte das normas constitucionais, sobremaneira aquelas que versam acerca da repartição de competências entre os entes da federação. Salta aos olhos que as regras de competência desempenham substancial papel na solução de sobreditos conflitos, porém não são as únicas disposições da Carta de Outubro que convergem para tal espeque. Em complemento, há uma plêiade de princípios, contidos no Texto de 1988, que devem pautar a resolução desses conflitos, primacialmente aqueles corolários que ambicionam a salvaguarda de valores fundamentais da sociedade, os quais não são passíveis de negligência ou violados pela solução adotada. Ademais, calha sublinhar que o corolário da unidade da Constituição é um preceito de interpretação constitucional, desenvolvido a partir de uma postura metódica hermenêutico-concretizante, ponto de referência obrigatório da teoria da interpretação constitucional. O preceito em comento ambiciona evitar contradições entre as normas e os princípios do Texto de 1988, pois impõe ao intérprete a considerar as disposições constitucionais em sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar. Destaca-se que o intérprete deve considerar as normas constitucionais não como disposições isoladas e dispersas, mas sim como paradigmas integrados num sistema interno unitário de normas e princípios. Sublinhe-se, ainda, que a unidade da Constituição deve afastar as colisões e as antinomias entre as suas normas, incumbindo ao intérprete buscar a compreensão de todo o texto constitucional, de modo a que nenhuma normal anule a outra. Assim, o intérprete, ao se debruçar sobre as disposições constitucionais, deve trazer a campo a ponderação de bens e de valores que elas salvaguardam, cotejando-as com a intenção do legislador constituinte que pode ser alocada nos princípios fundamentais da Constituição. No mais, em sede de matéria ambiental, quadra destacar que é rotineira a incidência de normas contrastantes. Neste diapasão, a Constituição de 1988 permite que a União estabeleça normas gerais sobre proteção do meio ambiente e controle da poluição, contudo não exclui a competência suplementar dos Estados sobre o mesmo assunto. Os Estados legislam e suas leis, por vezes, parecem colidir com as disposições estabelecidas nas normas gerais da União sobre a mesma matéria. Entrementes, o aparente conflito não comporta a solução simplista que conclui pela prevalência da lei federal em detrimento da norma estadual, unicamente alicerçada nas regras de competências constitucionais. Logo, caso determinada legislação estadual ofereça maior proteção ao meio ambiente ou, ainda, assegure um melhor controle da poluição, não se poderá concluir que essa norma esteja inquinada de inconstitucionalidade porque teria invadido competência de lei federal. Sobre a robustez do meio ambiente, o Ministro Celso de Mello já decidiu que: “Ementa: Reforma Agrária – Imóvel rural situado no pantanal mato-grossense – Desapropriação-sanção (CF, art. 184) – Possibilidade – Falta de notificação pessoal e prévia do proprietário rural quanto à realização da vistoria (Lei nº 8.629/93, art. 2, par. 2) [omissis] A questão do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – Direito de terceira geração – Princípio da solidariedade. – O direito a integridade do meio ambiente – Típico direito de terceira geração – Constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao individuo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, a própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade. Considerações doutrinarias.” (Supremo Tribunal Federal – Tribunal Plenno/ MS 22.164/ Relator: Ministro Celso de Mello/ Julgado em 30 out. 1995/ Publicado no DJ em 17 nov. 1995). Comumente, em situações concretas, o que se verifica é a colisão entre interesses econômicos e interesses da preservação ambiental. Com efeito, o confronto de valores é inevitável em sede de questões ambientais, porquanto a exploração econômica é a principal causadora dos impactos negativos no meio ambiente. Entrementes, a Constituição previu essa disputa e estabeleceu que a ordem econômica deve observar, dentre outros corolários, a defesa do meio ambiente. Em alinhavo, o equilíbrio entre esses interesses e valores é que deve ser ambicionado pelo intérprete da Constituição de 1988, extraindo-lhe a sua essência quanto à atividade econômica pode avançar sobre o meio ambiente e como este deve ser defendido, sem que o primeiro seja indevidamente restringido e propiciando a necessária preservação deste último. Assim, denota-se que o corolário da unidade da Constituição se apresenta como dogma imprescindível para a interpretação sistemática das normas. 5 Primeiras Considerações à Locução “Integridade do Patrimônio Genético” no Texto Constitucional: Exame axiológico do alcance do §1º do artigo 225 da Carta de Outubro Tecidas as considerações apresentadas até o momento, é imprescindível destacar que a locução “integridade do patrimônio genético”, insculpida no §1º do artigo 225 da Constituição Federal de 1988[22], não encontra conceituação no ordenamento jurídico em vigor. Contudo, em decorrência do conteúdo axiológico encerrado no dispositivo supramencionado, faz-se carecido estabelecer claros pontos limítrofes conceituais, sobretudo em razão da complexidade que reveste a temática, notadamente por se tratar de um imperativo constitucional que determina, ao Poder Público, que se preserve e restaure como condição necessária para assegurar o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Silva[23], nesta linha de exposição, ao analisar a locução em comento, vai reconhecer que se trata de um postulado cogente, responsável por preservar todas as espécies vivas no interior do território nacional, compreendendo, com efeito, todos os reinos biológicos (animais e plantas). No mais, cuida ponderar que tal preservação configura, antes de tudo, um mecanismo assecuratório e um investimento imprescindível para a manutenção e melhoria da produção agrícola, florestal e pesqueira, notadamente para manter opções futuras. Em igual perspectiva, a locução em comento implica, ainda, a proteção contra as mudanças ambientais perniciosas e para dispor de matéria-prima para numerosas inovações científicas e industriais. Trata-se, ainda, em observância à bússola axiológica decorrente do primado em comento, a integridade do patrimônio genético assume especial pertinência ao reconhecer que aludida locução encontra contrastante relação com o meio ambiente ecologicamente equilibrado, substancializando patrimônio não quantificável monetariamente e cuja expressão implica na formação de meio ambiente plural e diversificado, o qual configura sedimento indissociável para a realização humana. Nesta esteira, o patrimônio genético configura bem de interesse de todos, reclamando, pois, uma efetiva proteção e salvaguarda. Em alinho com as ponderações aventadas, cuida anotar que três são as maneiras de se promover a preservação da diversidade genética. A primeira delas é nominada in situ, sendo que a preservação dá-se mediante a proteção do ecossistema e do habitat natural e a manutenção e recuperação de populações viáveis de espécies em meio natural e, nas hipóteses de espécies domesticadas, nos meios em que tenham desenvolvido suas propriedades características. A segunda espécie é denominada ex situ e compreende duas modalidades: (i) apenas parte dos organismos, preservando-se a semente, o sêmen ou, ainda, qualquer outro elemento, a partir do qual é possível a reprodução do organismo; e (ii) o organismo inteiro, o que se dá por meio de uma certa quantidade de indivíduos do organismo em questão, sendo mantida fora de seu meio natural, em plantações, jardins botânicos ou zoológicos, aquários, prédios ou coleções para cultivo. Ora, uma proteção adequada da diversidade e da integridade do patrimônio genético requer planejamento e manejo cuidadoso dos recursos genéticos, com fixação de prioridades para a preservação dos gêneros monotípicos (aqueles que consistem em uma única espécie), das espécies raras e daquela em extinção.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-153/primeiras-consideracoes-a-locucao-integridade-do-patrimonio-genetico-no-texto-constitucional-exame-axiologico-do-alcance-do-1-do-artigo-225-da-carta-de-outubro/
Anotações ao Código dos Direitos de Saúde das Comunidades: um painel à luz da bioética
O presente está assentado em examinar a proeminência da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos como documento legitimador da quarta dimensão dos direitos humanos e sua vinculação com o Código dos Direitos de Saúde das Comunidades. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos. Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade. Os direitos de segunda dimensão são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou mesmo de um Ente Estatal especificamente.
Biodireito
1 Comentários Iniciais Em um primeiro momento, imperioso faz-se versar, de maneira maciça, acerca da evolução dos direitos humanos, os quais deram azo ao manancial de direitos e garantias fundamentais. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. “A evolução histórica dos direitos inerentes à pessoa humana também é lenta e gradual. Não são reconhecidos ou construídos todos de uma vez, mas sim conforme a própria experiência da vida humana em sociedade” (SIQUEIRA, PICCIRILLO, 2009, s.p.). Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos. Nesta perspectiva, ao se estruturar uma análise histórica sobre a construção dos direitos humanos, é possível fazer menção ao terceiro milênio antes de Cristo, no Egito e Mesopotâmia, nos quais eram difundidos instrumentos que objetivavam a proteção individual em relação ao Estado. “O Código de Hammurabi (1690 a.C.) talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relação aos governantes”, como bem afiança Alexandre de Moraes (2011, p. 06). Ainda nesta toada, nas polis gregas, notadamente na cidade-Estado de Atenas, é verificável, também, a edificação e o reconhecimento de direitos basilares ao cidadão, dentre os quais sobressai a liberdade e igualdade dos homens. Deste modo, é observável o surgimento, na Grécia, da concepção de um direito natural, superior ao direito positivo, “pela distinção entre lei particular sendo aquela que cada povo da a si mesmo e lei comum que consiste na possibilidade de distinguir entre o que é justo e o que é injusto pela própria natureza humana”, consoante evidenciam Siqueira e Piccirillo (2009, s.p.). Prima assinalar, doutra maneira, que os direitos reconhecidos não eram estendidos aos escravos e às mulheres, pois eram dotes destinados, exclusivamente, aos cidadãos homens, cuja acepção, na visão adotada, excluía aqueles. “É na Grécia antiga que surgem os primeiros resquícios do que passou a ser chamado Direito Natural, através da ideia de que os homens seriam possuidores de alguns direitos básicos à sua sobrevivência, estes direitos seriam invioláveis e fariam parte dos seres humanos a partir do momento que nascessem com vida” (MORAES, 2011, p. 06). O período medieval, por sua vez, foi caracterizado pela maciça descentralização política, isto é, a coexistência de múltiplos centros de poder, influenciados pelo cristianismo e pelo modelo estrutural do feudalismo, motivado pela dificuldade de práticas atividade comercial. Subsiste, neste período, o esfacelamento do poder político e econômico. A sociedade, no medievo, estava dividida em três estamentos, quais sejam: o clero, cuja função primordial estava assentada na oração e pregação; os nobres, a quem incumbiam à proteção dos territórios; e, os servos, com a obrigação de trabalhar para o sustento de todos. “Durante a Idade Média, apesar da organização feudal e da rígida separação de classes, com a consequente relação de subordinação entre o suserano e os vassalos, diversos documentos jurídicos reconheciam a existência dos direitos humanos” (MORAES, 2011, p. 06), tendo como traço característico a limitação do poder estatal. Neste período, é observável a difusão de documentos escritos reconhecendo direitos a determinados estamentos, mormente por meio de forais ou cartas de franquia, tendo seus textos limitados à região em que vigiam. Dentre estes documentos, é possível mencionar a Magna Charta Libertati (Carta Magna), outorgada, na Inglaterra, por João Sem Terra, em 15 de junho de 1215, decorrente das pressões exercidas pelos barões em razão do aumento de exações fiscais para financiar a estruturação de campanhas bélicas, como bem explicita Comparato (2003, p. 71-72). A Carta de João sem Terra acampou uma série de restrições ao poder do Estado, conferindo direitos e liberdades ao cidadão, como, por exemplo, restrições tributárias, proporcionalidade entre a pena e o delito, devido processo legal, acesso à Justiça, liberdade de locomoção e livre entrada e saída do país. Na Inglaterra, durante a Idade Moderna, outros documentos, com clara feição humanista, foram promulgados, dentre os quais é possível mencionar o Petition of Right, de 1628, que estabelecia limitações ao poder de instituir e cobrar tributos do Estado, tal como o julgamento pelos pares para a privação da liberdade e a proibição de detenções arbitrárias (FERREIRA FILHO, 2004, p. 12), reafirmando, deste modo, os princípios estruturadores do devido processo legal. Com efeito, o diploma em comento foi confeccionado pelo Parlamento Inglês e buscava que o monarca reconhecesse o sucedâneo de direitos e liberdades insculpidos na Carta de João Sem Terra, os quais não eram, até então, respeitados. Cuida evidenciar, ainda, que o texto de 1.215 só passou a ser observado com o fortalecimento e afirmação das instituições parlamentares e judiciais, cenário no qual o absolutismo desmedido passa a ceder diante das imposições democráticas que floresciam. Outro exemplo a ser citado, o Habeas Corpus Act, de 1679, lei que criou o habeas corpus, determinando que um indivíduo que estivesse preso poderia obter a liberdade através de um documento escrito que seria encaminhado ao lorde-chanceler ou ao juiz que lhe concederia a liberdade provisória, ficando o acusado, apenas, comprometido a apresentar-se em juízo quando solicitado. Prima pontuar que aludida norma foi considerada como axioma inspirador para maciça parte dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, como bem enfoca Comparato (2003, p. 89-90). Enfim, diversos foram os documentos surgidos no velho continente que trouxeram o refulgir de novos dias, estabelecendo, aos poucos, os marcos de uma transição entre o autoritarismo e o absolutismo estatal para uma época de reconhecimento dos direitos humanos fundamentais (MORAES, 2011, p. 08-09). As treze colônias inglesas, instaladas no recém-descoberto continente americano, em busca de liberdade religiosa, organizaram-se e desenvolveram-se social, econômica e politicamente. Neste cenário, foram elaborados diversos textos que objetivavam definir os direitos pertencentes aos colonos, dentre os quais é possível realçar a Declaração do Bom Povo da Virgínia, de 1776. O mencionado texto é farto em estabelecer direitos e liberdade, pois limitou o poder estatal, reafirmou o poderio do povo, como seu verdadeiro detentor, e trouxe certas particularidades como a liberdade de impressa, por exemplo. Como bem destaca Comparato (2003, p. 49), a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia afirmava que os seres humanos são livres e independentes, possuindo direitos inatos, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, a felicidade e a segurança, registrando o início do nascimento dos direitos humanos na história. “Basicamente, a Declaração se preocupa com a estrutura de um governo democrático, com um sistema de limitação de poderes”, como bem anota Silva (2004, p. 155). Diferente dos textos ingleses, que, até aquele momento preocupavam-se, essencialmente, em limitar o poder do soberano, proteger os indivíduos e exaltar a superioridade do Parlamento, esse documento, trouxe avanço e progresso marcante, pois estabeleceu a viés a ser alcançada naquele futuro, qual seja, a democracia. Em 1791, foi ratificada a Constituição dos Estados Unidos da América. Inicialmente, o documento não mencionava os direitos fundamentais, todavia, para que fosse aprovado, o texto necessitava da ratificação de, pelo menos, nove das treze colônias. Estas concordaram em abnegar de sua soberania, cedendo-a para formação da Federação, desde que constasse, no texto constitucional, a divisão e a limitação do poder e os direitos humanos fundamentais (SILVA, 2004, p. 155). Assim, surgiram as primeiras dez emendas ao texto, acrescentando-se a ele os seguintes direitos fundamentais: igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política, princípio da legalidade, princípio da reserva legal e anterioridade em matéria penal, princípio da presunção da inocência, da liberdade religiosa, da livre manifestação do pensamento (MORAES, 2003). 2 A Primeira Dimensão dos Direitos Humanos: A construção dos denominados “Direitos de Liberdade” No século XVIII, é verificável a instalação de um momento de crise no continente europeu, porquanto a classe burguesa que emergia, com grande poderio econômico, não participava da vida pública, pois inexistia, por parte dos governantes, a observância dos direitos fundamentais, até então construídos. Afora isso, apesar do esfacelamento do modelo feudal, permanecia o privilégio ao clero e à nobreza, ao passo que a camada mais pobre da sociedade era esmagada, porquanto, por meio da tributação, eram obrigados a sustentar os privilégios das minorias que detinham o poder. Com efeito, a disparidade existente, aliado ao achatamento da nova classe que surgia, em especial no que concerne aos tributos cobrados, produzia uma robusta insatisfação na órbita política (COTRIM, 2010, p. 146-150). O mesmo ocorria com a população pobre, que, vinda das regiões rurais, passa a ser, nos centros urbanos, explorada em fábricas, morava em subúrbios sem higiene, era mal alimentada e, do pouco que lhe sobejava, tinha que tributar à Corte para que esta gastasse com seus supérfluos interesses. Essas duas subclasses uniram-se e fomentaram o sentimento de contenda contra os detentores do poder, protestos e aclamações públicas tomaram conta da França. Em meados de 1789, em meio a um cenário caótico de insatisfação por parte das classes sociais exploradas, notadamente para manterem os interesses dos detentores do poder, implode a Revolução Francesa, que culminou com a queda da Bastilha e a tomada do poder pelos revoltosos, os quais estabeleceram, pouco tempo depois, a Assembleia Nacional Constituinte. Ao lado disso, cuida mencionar que esta suprimiu os direitos das minorias, as imunidades estatais e proclamou a Declaração dos Direitos dos Homens e Cidadão que, ao contrário da Declaração do Bom Povo da Virgínia, que tinha um enfoque regionalista, voltado, exclusivamente aos interesses de seu povo, foi tida com abstrata (SILVA, 2004, p. 157) e, por isso, universalista. Ressalta-se que a Declaração Francesa possuía três características: intelectualismo, mundialismo e individualismo. A primeira pressupunha que as garantias de direito dos homens e a entrega do poder nas mãos da população era obra e graça do intelecto humano; a segunda característica referia-se ao alcance dos direitos conquistados, pois, apenas, eles não salvaguardariam o povo francês, mas se estenderiam a todos os povos. Por derradeiro, a terceira característica referia-se ao seu caráter, iminentemente individual, não se preocupando com direitos de natureza coletiva, tais como as liberdades associativas ou de reunião. No bojo da declaração, emergidos nos seus dezessete artigos, estão proclamados os corolários e cânones da liberdade, da igualdade, da propriedade, da legalidade e as demais garantias individuais. Nesta esteira, ainda, é denotável que o diploma em comento consagrou os princípios fundantes do direito penal, dentre os quais sobreleva destacar princípio da legalidade, da reserva legal e anterioridade em matéria penal, da presunção de inocência, tal como liberdade religiosa e livre manifestação de pensamento. Os direitos de primeira dimensão compreendem os direitos de liberdade, tal como os direitos civis e políticos, estando acampados em sua rubrica os direitos à vida, liberdade, segurança, não discriminação racial, propriedade privada, privacidade e sigilo de comunicações, ao devido processo legal, ao asilo em decorrência de perseguições políticas, bem como as liberdades de culto, crença, consciência, opinião, expressão, associação e reunião pacíficas, locomoção, residência, participação política, diretamente ou por meio de eleições. “Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade” (BONAVIDES, 2007, p. 563), aspecto este que passa a ser característico da dimensão em comento. Com realce, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado, refletindo um ideário de afastamento daquele das relações individuais e sociais. 3 Direitos Humanos de Segunda Dimensão: Os anseios sociais como substrato de edificação dos Direitos de Igualdade Com o advento da Revolução Industrial, é verificável no continente europeu, precipuamente, a instalação de um cenário pautado na exploração do proletariado. O contingente de trabalhadores não estava restrito apenas a adultos, mas sim alcançava até mesmo crianças, os quais eram expostos a condições degradantes, em fábricas sem nenhuma, ou quase nenhuma, higiene, mal iluminadas e úmidas. Salienta-se que, além dessa conjuntura, os trabalhadores eram submetidos a cargas horárias extenuantes, compensadas, unicamente, por um salário miserável. O Estado Liberal absteve-se de se imiscuir na economia e, com o beneplácito de sua omissão, assistiu a classe burguesa explorar e “coisificar” a massa trabalhadora, reduzindo seres humanos a meros objetos sujeitos a lei da oferta e procura. O Capitalismo selvagem, que operava, nessa essa época, enriqueceu uns poucos, mas subjugou a maioria (COTRIM, 2010, p. 160). A massa de trabalhadores e desempregados vivia em situação de robusta penúria, ao passo que os burgueses ostentavam desmedida opulência. Na vereda rumo à conquista dos direitos fundamentais, econômicos e sociais, surgiram alguns textos de grande relevância, os quais combatiam a exploração desmedida propiciada pelo capitalismo. É possível citar, em um primeiro momento, como proeminente documento elaborado durante este período, a Declaração de Direitos da Constituição Francesa de 1848, que apresentou uma ampliação em termos de direitos humanos fundamentais. “Além dos direitos humanos tradicionais, em seu art. 13 previa, como direitos dos cidadãos garantidos pela Constituição, a liberdade do trabalho e da indústria, a assistência aos desempregados” (SANTOS, 2003, s.p.). Posteriormente, em 1917, a Constituição Mexicana, segundo Moraes (2011, p. 11), refletindo os ideários decorrentes da consolidação dos direitos de segunda dimensão, em seu texto consagrou direitos individuais com maciça tendência social, a exemplo da limitação da carga horária diária do trabalho e disposições acerca dos contratos de trabalho, além de estabelecer a obrigatoriedade da educação primária básica, bem como gratuidade da educação prestada pelo Ente Estatal. A Constituição Alemã de Weimar, datada de 1919, trouxe grandes avanços nos direitos socioeconômicos, pois previu a proteção do Estado ao trabalho, à liberdade de associação, melhores condições de trabalho e de vida e o sistema de seguridade social para a conservação da saúde, capacidade para o trabalho e para a proteção à maternidade. Além dos direitos sociais expressamente insculpidos, a Constituição de Weimar apresentou robusta moldura no que concerne à defesa dos direitos dos trabalhadores, primacialmente “ao instituir que o Império procuraria obter uma regulamentação internacional da situação jurídica dos trabalhadores que assegurasse ao conjunto da classe operária da humanidade, um mínimo de direitos sociais” (SANTOS, 2003, s.p.), tal como estabelecer que os operários e empregados seriam chamados a colaborar com os patrões, na regulamentação dos salários e das condições de trabalho, bem como no desenvolvimento das forças produtivas. No campo socialista, destaca-se a Constituição do Povo Trabalhador e Explorado, elaborada pela antiga União Soviética. Esse Diploma Legal possuía ideias revolucionárias e propagandistas, pois não enunciava, propriamente, direitos, mas princípios, tais como a abolição da propriedade privada, o confisco dos bancos, dentre outras. A Carta do Trabalho, elaborada pelo Estado Fascista Italiano, em 1927, trouxe inúmeras inovações na relação laboral. Dentre as inovações introduzidas, é possível destacar a liberdade sindical, magistratura do trabalho, possibilidade de contratos coletivos de trabalho, maior proporcionalidade de retribuição financeira em relação ao trabalho, remuneração especial ao trabalho noturno, garantia do repouso semanal remunerado, previsão de férias após um ano de serviço ininterrupto, indenização em virtude de dispensa arbitrária ou sem justa causa, previsão de previdência, assistência, educação e instrução sociais (SANTOS, 2003, s.p.). Nota-se, assim, que, aos poucos, o Estado saiu da apatia e envolveu-se nas relações de natureza econômica, a fim de garantir a efetivação dos direitos fundamentais econômicos e sociais. Sendo assim, o Estado adota uma postura de Estado-social, ou seja, tem como fito primordial assegurar aos indivíduos que o integram as condições materiais tidas por seus defensores como imprescindíveis para que, desta feita, possam ter o pleno gozo dos direitos oriundos da primeira geração. E, portanto, desenvolvem uma tendência de exigir do Ente Estatal intervenções na órbita social, mediante critérios de justiça distributiva. Opondo-se diretamente a posição de Estado liberal, isto é, o ente estatal alheio à vida da sociedade e que, por consequência, não intervinha na sociedade. Incluem os direitos a segurança social, ao trabalho e proteção contra o desemprego, ao repouso e ao lazer, incluindo férias remuneradas, a um padrão de vida que assegure a saúde e o bem-estar individual e da família, à educação, à propriedade intelectual, bem como as liberdades de escolha profissional e de sindicalização. Bonavides, ao tratar do tema, destaca que os direitos de segunda dimensão “são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal” (2007, p. 564). Os direitos alcançados pela rubrica em comento florescem umbilicalmente atrelados ao corolário da igualdade. Como se percebe, a marcha dos direitos humanos fundamentais rumo às sendas da História é paulatina e constante. Ademais, a doutrina dos direitos fundamentais apresenta uma ampla capacidade de incorporar desafios. “Sua primeira geração enfrentou problemas do arbítrio governamental, com as liberdades públicas, a segunda, o dos extremos desníveis sociais, com os direitos econômicos e sociais”, como bem evidencia Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2004, p. 47). 4 Direitos Humanos de Terceira Dimensão: A valoração dos aspectos transindividuais dos Direitos de Solidariedade Conforme fora explanado até o momento, cuida reconhecer que os direitos humanos originaram-se ao longo da História e permanecem em constante evolução, haja vista o surgimento de novos interesses e carências da sociedade. Por esta razão, alguns doutrinadores, dentre eles Bobbio (1997), os consideram direitos históricos, sendo divididos, tradicionalmente, em três gerações ou dimensões. A nomeada terceira dimensão encontra como fundamento o ideal da fraternidade (solidariedade) e tem como exemplos o direito ao meio ambiente equilibrado, à saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos, a proteção e defesa do consumidor, além de outros direitos considerados como difusos. “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo” (BONAVIDES, 2007, p. 569) ou mesmo de um Ente Estatal especificamente. Ainda nesta esteira, é possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Os direitos de terceira dimensão são considerados como difusos, porquanto não têm titular individual, sendo que o liame entre os seus vários titulares decorre de mera circunstância factual. Com o escopo de ilustrar, de maneira pertinente as ponderações vertidas, insta trazer à colação o robusto entendimento explicitado pelo Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 1.856/RJ: “Cabe assinalar, Senhor Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível” (Supremo Tribunal Federal – Tribunal Pleno/ ADI nº. 1.856/RJ/ Relator: Ministro Celso de Mello/ Julgado em 26 mai. 2011). Nesta feita, importa acrescentar que os direitos de terceira dimensão possuem caráter transindividual, o que os faz abranger a toda a coletividade, sem quaisquer restrições a grupos específicos. Neste sentido, pautaram-se Motta e Motta e Barchet, ao afirmarem, em suas ponderações, que “os direitos de terceira geração possuem natureza essencialmente transindividual, porquanto não possuem destinatários especificados, como os de primeira e segunda geração, abrangendo a coletividade como um todo” (2007, p. 152). Desta feita, são direitos de titularidade difusa ou coletiva, alcançando destinatários indeterminados ou, ainda, de difícil determinação. Os direitos em comento estão vinculados a valores de fraternidade ou solidariedade, sendo traduzidos de um ideal intergeracional, que liga as gerações presentes às futuras, a partir da percepção de que a qualidade de vida destas depende sobremaneira do modo de vida daquelas. Dos ensinamentos dos célebres doutrinadores, percebe-se que o caráter difuso de tais direitos permite a abrangência às gerações futuras, razão pela qual, a valorização destes é de extrema relevância. “Têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta” (BONAVIDES, 2007, p. 569.). A respeito do assunto, Motta e Barchet (2007, p. 153) ensinam que os direitos de terceira dimensão surgiram como “soluções” à degradação das liberdades, à deterioração dos direitos fundamentais em virtude do uso prejudicial das modernas tecnologias e desigualdade socioeconômica vigente entre as diferentes nações. 5 Os Direitos de Quarta Dimensão: As inovações biotecnológicas enquanto elementos de alargamento dos Direitos Humanos É de amplo conhecimento que a sociedade atual tem, como algumas de suas principais características, o avanço tecnológico e científico, a difusão e o desenvolvimento da cibernética, consequências do processo de globalização. Ocorre que tais perspectivas trouxeram situações inovadoras e que não correspondem aos fundamentos das gerações mencionadas anteriormente. Trata-se de um cenário dotado de maciça difusão de conhecimento e informações, bem como fluída alteração de paradigmas, notadamente os relacionados ao desenvolvimento científico e biológico. Em meio a esse contexto, para a regularização das situações decorrentes das transformações sociais, surgiram os Direitos de Quarta e Quinta Dimensão, os quais serão estudados doravante. Particularmente à Quarta Dimensão de Direitos, um dos seus principais idealizadores foi Bonavides, para o qual “são direitos da quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta para o futuro, em sua dimensão de máxima universalidade” (2007, p. 571). Com o passar do tempo, conforme bem salientou Serraglio (2008, p. 04), as descobertas científicas proporcionaram, dentre muitos avanços, o aumento da expectativa de vida humana, vez que, ao homem, tornou-se possível alterar os mecanismos de nascimento e morte de seus pares. Sendo assim, a proteção à vida e ao patrimônio genético foi incluída na categoria dos direitos de quarta dimensão. Em consonância com Motta e Barchet (2007, p. 153), atualmente, tais direitos referem-se à manipulação genética, à biotecnologia e à bioengenharia, e envolvem, sobretudo, as discussões sobre a vida e morte, sempre pautadas nos preceitos éticos. Ao lado do exposto, é fato que o fenômeno globalizante foi responsável por conferir um robusto desencadeamento de difusão de informações e tecnologias, sendo responsável pelo surgimento de questões dotadas de proeminente complexidade, os quais oscilam desde os benefícios apresentados para a sociedade até a modificação do olhar analítico acerca de temas polêmicos, propiciando uma renovação nos valores e costumes adotados pela coletividade. Como bem destaca Lima Neto (s.d., s.p.), o florescimento dos direitos humanos acampados pela quarta dimensão só foi possível em decorrência do sucedâneo de inovações tecnológicas que deram azo ao surgimento de problemas que, até então, não foram enfrentados pelo Direito, notadamente os relacionados ao campo da pesquisa com o genoma humano. Para tanto, carecido se fez a estruturação de limites e regulamentos que norteassem o desenvolvimento das pesquisas, tal como a utilização dos dados obtidas, com o escopo de preservar o patrimônio genético da espécie humana. Dentre os documentos legais que se dedicam à regulamentação das pesquisas científicas relacionadas à vida humana, cumpre-se mencionar, primeiramente, a Declaração dos Direitos do Homem e do Genoma Humano, criada pela Assembleia Geral da UNESCO em 1997. Conforme esclarece Motta e Barchet (2007, p. 153), é necessário consolidar os direitos de quarta geração, pois assim serão delineados os fundamentos jurídicos para as pesquisas científicas, no sentido de impor limites a estas e de garantir que o Direito não fique apartado dos avanços da Ciência. Vieira complementa esse entendimento, ao afirmar que: “a lei deve assegurar o princípio da primazia da pessoa aliando-se às exigências legítimas do progresso de conhecimento científico e da proteção da saúde pública” (1999, p. 18). 6 Anotações ao Código dos Direitos de Saúde das Comunidades: Um Painel à luz da Bioética Os avanços das descobertas científicas, juntamente com o desenvolvimento tecnológico acelerado, contribuíram com a ampliação de uma conduta ética que integrasse os valores morais e humanos aos desafios sociais impostos pelos progressos científicos. Ao lado disso, partindo do pressuposto das manifestações bioéticas e da necessidade de sua regulação jurídica a fim de dar suporte aos debates trazidos pelas descobertas e inovações científicas, em 19 de outubro de 2005 foi aprovado por unanimidade pelos 191 países membros da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, tendo como diretrizes precursoras a Declaração Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos e a Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos. A DUBDH é uma ferramenta normativa internacional composta por 28 artigos e seus princípios podem ser divididos em princípios referentes à pessoa humana, princípios sociais e princípios ambientais. O princípio norteador do documento é o princípio da dignidade da pessoa humana, que abre caminhos para uma listagem de outros princípios correlacionados, como por exemplo: o princípio do benefício e dano, autonomia e responsabilidade individual, capacidade do consentimento, respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade individual, igualdade, justiça e equidade, respeito pela diversidade cultural e pelo pluralismo, solidariedade e cooperação, proteção das gerações futuras, entre outros. “Haja vista o conteúdo principiológico da Declaração pode-se afirmar que sua maior empresa foi ter estabelecido um marco de princípios e critérios dentro dos quais os Estados poderão legislar sobre temáticas bioéticas. Com efeito, a Declaração tem como objetivo nodal fixar princípios gerais de caráter ético em um texto “aberto”, o que se revela positivo porquanto possibilita sua interpretação e aplicação conjugada com normas nacionais e internacionais”. (OLIVEIRA, 2010) A Declaração engloba demandas éticas acendidas pela medicina, pelas ciências da vida e pelo desenvolvimento das tecnologias, agregando suas aplicações aos seres humanos. Objetiva a explanação das normas bioéticas conforme os direitos humanos, sendo os mesmos decisivos para consolidar o alargamento científico e tecnológico. Traz a Bioética como protetora desses direitos e contextualiza sua inserção política, já que possui como fundamento a cooperação internacional dos Estados participantes e seu comprometimento em exercer seus deveres propostos pela DUBDH no âmbito social. É importante ressaltar que embora a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos releve questões que envolvam medicina e tecnologia, a Bioética vai além dos desafios da ética médica. Ela expande sua atuação para situar o campo social-político atual no contexto dos progressos científicos. “Os avanços alcançados pelo desenvolvimento científico e tecnológico nos últimos 30 anos, especialmente no campo da biotecnologia e da saúde humana, permitiram realizações antes inimagináveis. Doenças até então incuráveis hoje têm tratamento, organismos tidos como enigmáticos hoje têm seus genomas sequenciados, situações tidas como impossíveis, como a manipulação genética de organismos vivos e a clonagem, são hoje reproduzidas por metodologias de rotina em diversos pontos do Brasil e do mundo. Ao mesmo tempo em que a humanidade obtém conhecimento e poder para melhorar de modo substancial sua qualidade de vida, paradoxalmente adquire também conhecimento e poder para provocar danos em larga escala ou irreversíveis. Devastação de imensas áreas florestais (em função da agricultura extensiva ou da extração de madeira), liberação de gases que afetam a camada de ozônio (pelo uso de combustíveis fósseis não renováveis) e construção de armas de destruição em massa são exemplos que evidenciam a fragilidade moral da espécie humana. As grandes questões éticas colocadas em função do avanço científico e tecnológico não se referem às potencialidades do ser humano, mas a suas responsabilidades. As pesquisas podem seguir, teoricamente, em diversas direções, mas, na prática, nem todos os caminhos trazem benefícios para a humanidade ou os trazem de forma imediata, criando, porém, a possibilidade de haver consequências custosas em longo prazo. Dessa forma, o problema não está em rejeitar a utilização de novas tecnologias por não serem moralmente aceitas pela sociedade, mas, antes, no controle ético que deve ser exercido”. (CRUZ; OLIVEIRA; PORTILLO; 2010) Dessa forma, tal perspectiva tende a enxergar a Bioética como instrumento para solucionar problemas relacionados não só às ciências da vida, como também solucionar os conflitos apresentados pelas ciências sociais. Dentro das discussões levantadas, há um embate social sobre os direitos de 4ª geração – são direitos que englobam questões de inovações tecnológicas (alteração do patrimônio genético, haja vista o desenvolvimento científico e tecnológico) – sendo delegada à Bioética se posicionar sobre o tema, baseando-se nos princípios propostos pela DUBDH. O desenvolvimento da engenharia genética e a possibilidade de manipulação do genoma humano remetem-se ao princípio da responsabilidade e proteção das gerações futuras, proposto pela DUBDH. Embora tenha objetivo de beneficiar as gerações futuras, as intervenções ou manipulações do genoma podem possuir efeitos negativos, violando o direito à identidade genética do indivíduo e não preservando o patrimônio genético atual, pondo em risco o futuro das características genéticas dos seres humanos, pois pode contribuir para a disseminação da ideia de hegemonia racial. “O que parece temer-se realmente, mais do que a terapia gênica reprodutiva em si, é a possibilidade de alterações genéticas com vistas a uma ―melhoria genética não terapêutica, tanto do ser humano individual (o que poderia dar-se mesmo através da manipulação somática), como de seres humanos futuros e da espécie humana em seu conjunto. De fato, pode ser tênue a linha a separar a alteração genética para a cura de uma ―anormalidadeou ― defeito genético (enfermidade, má-formação) de uma ideia de ― melhoria ou aprimoramento, que poderia favorecer e estimular uma perigosa mentalidade eugênica e conduzir a práticas discriminatórias em razão das características genéticas dos seres humanos — além de desconsiderar, como referido, um direito do ser humano atual e futuro a ter preservado o que seria sua constituição genética natural”. (Möller, 2007) Nesse sentido, há o resgate sobre a individualidade do ser humano, em que a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos (1997), considerada a certidão de nascimento do direito genético e antecedente histórico da DUBDH, veicula o genoma humano a uma identidade genética, veda a utilização do genoma para fins financeiros, estabelece direitos e sanções para pessoas envolvidas no experimento e reafirma os princípios bioéticos. Assim, ao fixar seus princípios e garantir suporte aos avanços dos estudos científicos e sua relação com a sociedade, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos estabelece uma tutela universal baseada nos princípios bioéticos e jurídicos, criando uma responsabilidade para os Estados e os indivíduos, visando garantir a proteção do patrimônio genético atual para assegurar os direitos humanos fundamentais. A complexidade dos direitos ditos de quarta geração e a célere transformação da realidade social com o surgimento de demandas inéditas, logo atingiu o ordenamento jurídico brasileiro influenciando no surgimento de legislação relacionada ao tema, ainda que precária. Ante o iminente risco da disponibilidade de interesses difusos relacionados à biodiversidade e meio ambiente, bem como da proteção do ser humano em sua dignidade, a preservação do patrimônio genético passou a ser uma preocupação do Estado Brasileiro. A Carta Constitucional de 1988 trata sobre o patrimônio genético através do Artigo 225, § 1º, inciso II: “Preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e à manipulação de material genético” (BRASIL, 1988), bem como pelo artigo 225, §1º, inciso V: “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente” (BRASIL, 1988). O patrimônio genético foi definido pela Medida Provisória 2.186-16/2001, capítulo II, art. 7º, I, como toda informação de origem genética, contida em amostras do todo ou de parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, na forma de moléculas e substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos obtidos destes organismos vivos ou mortos, encontrados em condições in situ, inclusive domesticados, ou mantidos em coleções ex situ, desde que coletados em condições in situ no território nacional, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva. Destaca-se que esta definição não se aplica ao patrimônio genético humano. Os Organismos Geneticamente Modificados (OGM) e seus derivados, bem como a Engenharia Genética, por sua vez, estão regulados pela Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança). “Art. 1o Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente”. (BRASIL, 2005) Malgrado os direitos decorrentes dos efeitos da manipulação genética em seres humanos não se encontrarem expressos na Constituição Federal, a garantia de preservação do patrimônio genético humano revela-se um direito fundamental, já que é o direito de todo ser humano não sofrer interferências artificiais contrárias à própria natureza humana. A clonagem de seres humanos com a finalidade reprodutiva, a manipulação genética em célula germinal com o intuito de aperfeiçoamento da espécie humana (eugenia) e ainda, o diagnóstico genético pré-implantacional, a fim de selecionar embriões com as características desejadas configuram-se preocupantes desdobramentos da evolução genética. Nesta linha de dicção, cuida reconhecer o Código dos Direitos de Saúde das Comunidades se apresenta como proeminente diploma integrador das bases teóricas da Bioética, conferindo-lhe, ainda, maior solidez. Aludido código explicita que é essencial para a comunidade ser organizada, pois assim poderá participar, através de suas lideranças e organizações, ao longo das investigações. A comunidade tem o direito de ser plenamente informada sobre a natureza, objetivos, vantagens e eventuais riscos da pesquisa a ser realizada. Ninguém poderá ser submetido a investigação sem que tenha sido previamente informado e concordado. Nenhum procedimento experimental poderá ser planejado de maneira a retirar medidas preventivas e/ou terapêuticas, seja parcial ou totalmente. Nenhuma comunidade poderá ser submetida a experimentos que agravem qualquer risco de saúde preexistente no seu meio. Nenhuma comunidade poderá ser privada de qualquer cuidado de saúde que tenha direito, em função de ter recusado previamente a se submeter a uma pesquisa. O trabalho comunitário não deverá terminar até que seja completada a investigação. Os seus resultados deverão ser traduzidos em ações úteis à comunidade. Os serviços locais de saúde deverão ser informados sobre a investigação e, sempre que possível, fazerem parte dela. Todo o conhecimento derivado da investigação deve ser encaminhado às autoridades de saúde competentes, desta forma os resultados serão utilizados por todos. Para que os direitos de saúde das comunidades sejam observados: 1 – Eles devem ser incorporados no Código de Ética Médica do Brasil. No futuro este Código poderá ser capaz de legislar as práticas médicas relativas às comunidades; 2 – Comitês de Ética deverão ser criados nas escolas médicas, hospitais e institutos de pesquisas governamentais e privados; 3 – Comitês de Ética deverão ser criados nas agências brasileiras de fomento e financiamento à pesquisa, tais como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), etc. Diante do painel apresentado, cuida reconhecer que o longo processo de edificação dos Direitos Humanos confunde-se com a própria história de evolução da sociedade, notadamente no que toca a contínua busca pela eliminação dos tratamentos díspares e no reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Nesta toada, a edificação das tradicionais dimensões dos direitos supramencionados reflete, com propriedade, as lutas de classes e a busca incessante pelo reconhecimento de direitos e garantias inerentes aos indivíduos, culminando no fortalecimento e remodelagem da acepção do vocábulo dignidade, passando a emoldurá-lo com contornos tipicamente jurídicos. Ao lado disso, é possível, ainda, explicitar que a concepção de uma quarta dimensão, contemporânea e atenta ao manancial de desdobramentos advindos da sociedade, sobretudo no pós-segunda guerra mundial e avanços da biotecnologia e engenharia genética, guarda plena relação com a busca maciça pela materialização da dignidade da pessoa humana, encontrando, primacialmente, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos um importante diploma reconhecedor.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-153/anotacoes-ao-codigo-dos-direitos-de-saude-das-comunidades-um-painel-a-luz-da-bioetica/
Poder de polícia e segurança alimentar e nutricional: tessituras à vigilância sanitária e a função fiscalizadora de produtos e serviços de alimentos
O objetivo do artigo científico está assentado em discorrer acerca do poder de polícia, bem como seus aspectos caracterizadores e premissas de atuação. Cuida anotar que o Estado deve atuar à sombra do princípio da supremacia do interesse público. No que tange à atuação do princípio da supremacia do interesse público, como vetor de inspiração na confecção das normas, mister faz-se destacar, com cores fortes e acentuados tracejos, que uma das distinções que bem delineia o direito privado do público, cinge-se ao interesse que busca proteger; o direito privado contém normas de interesse individual e, o direito público, normas de interesse público. Ora, quadra sublinhar, ainda, que a sobreposição da supremacia do interesse público sobre o interesse privado se apresenta como bastião sustentador do Direito em qualquer sociedade. Com efeito, a valoração do interesse público, neste aspecto, se apresenta como conditio sine qua non para a manutenção e preservação da ordem social. Destarte, o corolário da supremacia do interesse público ostenta, como núcleo sensível, a busca pela promoção e alcance dos interesses da coletividade, sobrepujando, por via de extensão, o interesse particular. Assim, quando o Poder Público interfere na órbita do interesse privado para salvaguardar o interesse público, restringindo direitos individuais, atua no exercício do poder de polícia. A partir de tais ideários, a pesquisa desenvolvida está assentada no método de revisão bibliográfica, conjugado, no decorrer do artigo, da legislação nacional pertinente, com vistas a esmiuçar os requisitos enumerados.
Biodireito
1 Poder de Polícia: Ponderações Introdutórias Em sede de comentários introdutórios, cuida anotar que o Estado deve atuar à sombra do princípio da supremacia do interesse público. No que tange à atuação do princípio da supremacia do interesse público, como vetor de inspiração na confecção das normas, mister faz-se destacar, com cores fortes e acentuados tracejos, que uma das distinções que bem delineia o direito privado do público, cinge-se ao interesse que busca proteger; “o direito privado contém normas de interesse individual e, o direito público, normas de interesse público”[1]. Ora, quadra sublinhar, ainda, que a sobreposição da supremacia do interesse público sobre o interesse privado se apresenta como bastião sustentador do Direito em qualquer sociedade. Com efeito, a valoração do interesse público, neste aspecto, se apresenta como conditio sine qua non para a manutenção e preservação da ordem social. Neste sedimento, tal como dito acima, em que pese a inexistência de expressa menção do postulado em comento pelo texto constitucional, é impende destacar, com o realce que o tema carece, que “as atividades administrativas são desenvolvidas pelo Estado para benefício da coletividade. Mesmo quando age em vista de algum interesse estatal imediato, o fim último de sua atuação deve ser voltado para o interesse público”[2]. Destarte, o corolário da supremacia do interesse público ostenta, como núcleo sensível, a busca pela promoção e alcance dos interesses da coletividade, sobrepujando, por via de extensão, o interesse particular. Assim, quando o Poder Público interfere na órbita do interesse privado para salvaguardar o interesse público, restringindo direitos individuais, atua no exercício do poder de polícia. Ao lado do exposto, a locução poder de polícia abarca dois sentidos, um amplo e um estrito. Em uma acepção ampla, poder de polícia assume significação de toda e qualquer ação restritiva do Estado em relação aos direitos individuais. Especial relevância assume a função do Poder Legislativo incumbido do ius novum uma vez que apenas as leis, organicamente consideradas, têm o condão de delinear o perfil dos direitos, elastecendo ou reduzindo o seu conteúdo. Trata-se, pois, de reafirmação do corolário da legalidade, expressamente consagrado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[3]. Em uma fisionomia mais estrita, o poder de polícia se configura como atividade administrativa, que materializa verdadeira prerrogativa conferida aos agentes da Administração, consistente no poder de restringir e condicionar a liberdade e a propriedade. Substancializa, dessa maneira, atividade tipicamente administrativa e, como tal, subjacente à lei, de forma que esta já preexiste quando os administradores cominam a disciplina e as restrições aos direitos. Neste sentido, Celso de Mello explicita que: “A expressão “poder de polícia” pode ser tomada em sentido mais restrito, relacionando-se unicamente com as intervenções, quer gerais e abstratas, como os regulamentos, quer concretas e específicas (tais as autorizações, as licenças, as injunções), do Poder Executivo destinadas a alcançar o mesmo fim de prevenir e obstar ao desenvolvimento de atividades particulares contrastantes com os interesses sociais. Esta acepção mais limitada responde à noção de polícia administrativa”[4]. À luz das ponderações aventadas, com espeque na concepção de José dos Santos Carvalho Filho[5], o poder de polícia materializa a prerrogativa de direito público que, assentada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e o gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade. Segundo Celso de Mello[6], o poder de policia, em uma conotação mais restrita e assentada em função precípua administrativa, materializa atividade da Administração Pública, sendo expressa em atos normativos ou concretos, de condicionar, com arrimo em sua supremacia geral e na forma da lei, a liberdade e a propriedade dos indivíduos, por meio de ação ora fiscalizadora, ora preventiva, ora repressiva, cominando coercitivamente aos particulares um dever de abstenção (non facere), com o escopo de conformar-lhes os comportamentos aos interesses sociais consagrados no sistema normativo em vigor. Trata-se, em linhas conceituais, do modo de atuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das atividades individuais suscetíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por escopo evitar que sejam produzidos, ampliados ou generalizados os danos sociais que os diplomas legais procuram prevenir. No que tange ao benefício resultante do poder de polícia, materializa fundamento dessa prerrogativa do Poder Público o interesse público. Logo, a intervenção do Estado no conteúdo dos direitos individuais somente encontra amparo ante a finalidade que deve sempre orientar a ação dos administradores públicos, qual seja: o interesse da coletividade. Noutro ângulo, a prerrogativa em si está alicerçada na supremacia geral da Administração Pública, ou seja, aquela mantida em relação aos administrados, de modo indistinto, flagrante superioridade, pelo fato de satisfazer, como expressão de um dos poderes do Estado, interesses públicos. No que pertine à finalidade, salta aos olhos que o poder de polícia objetiva promover a proteção dos interesses coletivos, o que explicita umbilical conotação como próprio fundamento do poder, ou seja, se o interesse público é o axioma inspirador da atuação restritiva do Estado, há de constituir alvo dela a proteção do mesmo interesse. Cuida anotar que este deve ser compreendido em sentido amplo, abarcando todo e qualquer aspecto. Em sede de âmbito de incidência, cuida reconhecer que é bastante amplo o círculo em que se pode fazer presente o poder de polícia. Em tal alamiré, qualquer ramo de atividade que possa contemplar a presença do indivíduo possibilita a intervenção restritiva do Estado. Em outros termos, não há direitos individuais absolutos a esta ou àquela atividade, mas, ao reverso, deverão estar subordinados aos interesses coletivos. Daí é possível dizer que a liberdade e a propriedade são sempre direitos condicionados, eis que se sujeitam às restrições necessárias a sua adequação ao interesse público. “É esse o motivo pelo qual se faz menção à polícia de construções, à polícia sanitária, à polícia de trânsito e de tráfego, à polícia de profissões, à polícia do meio ambiente”[7]. Em todos esses segmentos aparece o Estado, em sua atuação restritiva de polícia, com o escopo de assegurar a preservação do interesse público. 2 Competência do Poder de Polícia A competência para exercer o poder de polícia é, em um primeiro momento, da pessoa federativa à qual a Constituição Federal conferiu o poder de regular a matéria. Com destaque, os assuntos concernentes ao interesse nacional ficam sujeitas à regulamentação e policiamento da União; as matérias de interesse regional estão condicionadas às normas e à polícia estadual; e os assuntos de interesse local estão subordinados aos regulamentos edilícios e ao policiamento administrativo municipal. Com destaque, o sistema de competências constitucionais é responsável por afixar as linhas básicas do poder de regulamentação das pessoas federativas, não sendo, entretanto, possível esquecer que as hipóteses de poder concorrente ensejarão o exercício conjunto do poder de polícia por pessoas de nível federativo diverso, consoante se extrai dos artigos 22, parágrafo único, 23 e 24 da Constituição Federal[8]. Carvalho Filho[9] explicita que será inválido o ato de polícia praticado por agente de pessoa federativa que não tenha competência constitucional para regular a matéria e, portanto, para impor a restrição. Igualmente, só pode ter-se por legítimo o exercício de atividade administrativa materializadora do poder de polícia se a lei em que estiver calcada a conduta da Administração encontrar guarida no Texto Maior. Caso a lei seja inconstitucional, os atos administrativos, que com fundamento nela sejam praticados, serão considerados ilegítimos, caso sejam voltadas a uma pretensa tutela do interesse público, substancializada no exercício do poder de polícia. Destarte, conclui-se que só há poder de polícia legítimo se legítima for a lei que o sustenta. Ao lado disso, imprescindível faz-se anotar que, como o sistema de partilha de competências constitucionais envolve três patamares federativos – o federal, o estadual e o municipal -, e tendo em vista o contraste de competências privativas e concorrentes, salta aos olhos que, dada a complexidade da matéria, comumente surgem hesitações na doutrina e nos Tribunais quanto à entidade competente para a execução de certo serviço ou para o exercício do poder de polícia. Com o escopo de fortalecer o acimado, cuida transcrever o paradigmático entendimento: “Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Distrital N. 3.460. Instituição do programa de inspeção e manutenção de veículos em uso no âmbito do Distrito Federal. Alegação de violação do disposto no artigo 22, inciso XI, da Constituição do Brasil. Inocorrência. 1. O ato normativo impugnado não dispõe sobre trânsito ao criar serviços públicos necessários à proteção do meio ambiente por meio do controle de gases poluentes emitidos pela frota de veículos do Distrito Federal. A alegação do requerente de afronta ao disposto no artigo 22, XI, da Constituição do Brasil não procede. 2. A lei distrital apenas regula como o Distrito Federal cumprirá o dever-poder que lhe incumbe — proteção ao meio ambiente. 3. O DF possui competência para implementar medidas de proteção ao meio ambiente, fazendo-o nos termos do disposto no artigo 23, VI, da CB/88. 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente.” (Supremo Tribunal Federal – Tribunal Pleno/ ADI 3.338/ Relator: Ministro Joaquim Barbosa/ Relator p/ Acórdão: Ministro Eros Grau/ Julgado em 31.08.2005/ Publicado no DJe em 05.09.2007). À luz do exposto, incumbe ao intérprete promover detida análise da hipótese concreta, buscando estabelecer uma adequação pertinente ao sistema estabelecido no Texto Constitucional. Oportunamente, convém explicitar que o poder de polícia, sendo atividade que, em algumas hipóteses, acarreta competência concorrente entre pessoas federativas, enseja sua execução em sistema de cooperação calcado no regime de gestão associada, encontrando respaldo no artigo 241 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[10]. Ao lado disso, em tais hipóteses, os entes federativos interessados firmarão convênios administrativos e consórcios públicos destinados ao atendimento dos objetivos do interesse comum. 3 O Exercício do Poder de Polícia em prol da Saúde Pública: Primeiras Linhas ao exercício da Vigilância Sanitária como atribuição do Poder Público À luz das ponderações estabelecidas até o momento, cuida reconhecer que o poder de polícia é exercido nas mais diversas áreas, em especial na saúde pública, encontrando, com efeito, neste segmento, na execução da parte de suas funções na vigilância sanitária que recebe proeminente destaque. Ao lado disso, prima sublinhar que vários são os níveis que tocam a vigilância sanitária, responsáveis por conferir contornos próprios, como a dimensão política, ideológica, técnica e jurídica e o seu poder normativo, educador e de polícia. Hodiernamente, a Lei Orgânica da Saúde explicita que se entende por vigilância sanitária como um conjunto de ações capazes de eliminar, diminuir ou prevenir os riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e da circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde, compreendendo: (i) o controle de bens de consumo que, direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde, abarcando todas as etapas e processos, da produção ao consumo; (ii) o controle da prestação de serviços que relacionem direta ou indiretamente com a saúde. É, portanto, plenamente observável que o diploma em comento, ao tratar sobre o poder de polícia, conferiu ampliação sensível na locução vigilância sanitária, que passa a incorporar ações que interferem em toda a cadeia de produção, nos servidores prestadores de ações de atenção à saúde e ao meio ambiente. Em complemento ao acimado, o poder de polícia, em sede de saúde pública, desempenha proeminente papel na seara da vigilância, epistemológica e sanitária, como órgãos fiscalizadores sobre o ambiente de trabalho, atribuição incorporada ao texto legal por meio da inclusão do §3º do artigo 6º da Lei Orgânica da Saúde. Entende-se por saúde do trabalhador, para fins da Lei Organização de Saúde, um conjunto de atividades que se destina, através das ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, à promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa à recuperação e reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho, abrangendo: (i) assistência ao trabalhador vítima de acidentes de trabalho ou portador de doença profissional e do trabalho; (ii) participação, no âmbito de competência do Sistema Único de Saúde (SUS), em estudos, pesquisas, avaliação e controle dos riscos e agravos potenciais à saúde existentes no processo de trabalho; (iii) participação, no âmbito de competência do Sistema Único de Saúde (SUS), da normatização, fiscalização e controle das condições de produção, extração, armazenamento, transporte, distribuição e manuseio de substâncias, de produtos, de máquinas e de equipamentos que apresentam riscos à saúde do trabalhador; (iv) avaliação do impacto que as tecnologias provocam à saúde; (v) informação ao trabalhador e à sua respectiva entidade sindical e às empresas sobre os riscos de acidentes de trabalho, doença profissional e do trabalho, bem como os resultados de fiscalizações, avaliações ambientais e exames de saúde, de admissão, periódicos e de demissão, respeitados os preceitos da ética profissional; (vi) participação na normatização, fiscalização e controle dos serviços de saúde do trabalhador nas instituições e empresas públicas e privadas; (vii) revisão periódica da listagem oficial de doenças originadas no processo de trabalho, tendo na sua elaboração a colaboração das entidades sindicais; e (viii) a garantia ao sindicato dos trabalhadores de requerer ao órgão competente a interdição de máquina, de setor de serviço ou de todo ambiente de trabalho, quando houver exposição a risco iminente para a vida ou saúde dos trabalhadores. No mais, as ações da vigilância sanitária estão inseridas em um contexto mais ampliado, a saber: as ações de saúde, buscando a prevenção, a promoção e a recuperação da saúde dos indivíduos, sobremaneira em decorrência do contorno de fundamentalidade conferido ao direito à saúde, expressamente atribuído pelo Texto Constitucional de 1988. Neste talvegue, as ações de vigilância sanitária estão insertas dentro do campo do direito sanitário, um ramo do direito administrativo. Como desenvolve ações de controle sanitário de portos, aeroportos e fronteiras, insere-se no direito sanitário internacional, ramificação do direito internacional público. Assim, ainda no que toca à tal seara de incidência do poder de polícia, é plenamente denotável que a vigilância sanitária tem muitas atribuições, e todas, quando verificadas sob a ótica de suas ações, são atividades complexas, porém, na maioria das vezes, normatizadas. Exerce funções relacionadas tanto ao poder vinculado da administração (expedição de licenças) como ao poder discricionário (autorizações). Sublinha-se, entrementes, que todos são atos administrativos e, portanto, limitados por lei no que concerne à competência, forma, fins, motivos e objeto, sempre buscando a satisfação do interesse público a ser protegido, buscando compatibilizar o exercício dos direitos individuais com o bem-estar social. 4 Segurança Alimentar e Nutricional e Direito à Alimentação Adequada: Contornos Primários Em alinho às ponderações aventadas até o momento, o direito à alimentação adequada realiza-se quando cada homem, mulher e criança, sozinho ou em companhia de outros, tem acesso físico e econômico, ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos meios para sua obtenção. O direito à alimentação adequada não deverá, portanto, ser interpretado em um sentido estrito ou restritivo, que o equaciona em termos de um pacote mínimo de calorias, proteínas e outros nutrientes específicos. O direito à alimentação adequada terá de ser resolvido de maneira progressiva. No entanto, os estados têm a obrigação precípua de implementar as ações necessárias para mitigar e aliviar a fome, mesmo em épocas de desastres, naturais ou não. Adequação e sustentabilidade do acesso e da disponibilidade de alimento. Com destaque, quadra reconhecer que o conceito de adequação é particularmente significativo com relação ao direito à alimentação, na medida em que ele serve para salientar vários fatores que devem ser tomados em consideração para determinar se os alimentos ou dietas específicas que estão disponíveis podem ser considerados os mais apropriados, em um conjunto determinado de circunstâncias. A noção de sustentabilidade está intrinsecamente ligada à noção de alimentação adequada e segurança alimentar, o que significa estar o alimento disponível tanto para a geração atual, como para as futuras gerações. O significado preciso de “adequado” está condicionado, em grande parte, pelas condições sociais, econômicas, culturais, climáticas, ecológicas, e outras mais, que prevalecem, enquanto que a “sustentabilidade” incorpora a noção de disponibilidade e acessibilidade em longo prazo. Considera-se que o conteúdo essencial do direito à alimentação adequada consiste do seguinte: (i) a disponibilidade do alimento, em quantidade e qualidade suficiente para satisfazer as necessidades dietéticas das pessoas, livre de substâncias adversas e aceitável para uma dada cultura; (ii) A acessibilidade ao alimento de forma sustentável e que não interfira com a fruição de outros direitos humanos. Por necessidades dietéticas entende-se que a dieta, como um todo, deva conter uma mistura de nutrientes necessários para o crescimento físico e mental, desenvolvimento e manutenção, e atividade física, que estejam de acordo com as necessidades fisiológicas humanas em todas as etapas do ciclo de vida, e de acordo com o gênero e a ocupação. É possível que medidas precisem ser tomadas para manter, adaptar ou fortalecer a diversidade dietética e os padrões de consumo e administração dos alimentos, o que inclui a amamentação, ao mesmo tempo em que se assegura que mudanças na disponibilidade e acessibilidade aos alimentos pelo menos não afetem negativamente a composição da dieta e o consumo. A necessidade de estar livre de substâncias adversas estabelece requisitos para a segurança do alimento e para um conjunto de medidas, públicas e privadas, destinadas a impedir a contaminação do alimento por adulteração e/ou más condições higiênicas, e por manuseio inadequado nas diferentes etapas da cadeia alimentar; é preciso tomar cuidados para identificar, impedir ou destruir toxinas que ocorrem naturalmente. A aceitabilidade cultural ou do consumidor implica, também, a necessidade de tomar-se em consideração, tanto quanto possível, valores que não estão ligados à valorização do conteúdo nutricional do alimento, mas sim estão ligados ao alimento, em si, ou ao seu consumo, e a preocupações do consumidor bem informado sobre a natureza do suprimento de alimentos disponíveis. No mais, cuida sublinhar que a disponibilidade abrange alternativas de alimentar-se, diretamente da terra produtiva ou de outros recursos naturais, como através de sistemas eficientes de distribuição, processamento, e venda, que possam transportar o alimento de sua origem para onde seja necessário, de acordo com a demanda. A acessibilidade abrange tanto a acessibilidade econômica como a física: Acessibilidade econômica significa que os custos financeiros, pessoais e familiares, associados com a aquisição de alimento para uma determinada dieta, deveriam ser de tal ordem que a satisfação de outras necessidades básicas não fique ameaçada ou comprometida. Acessibilidade econômica aplica-se a qualquer esquema de aquisição ou habilitação, utilizado pelas pessoas para obter o seu alimento, e é uma medida da adequação do processo de fruição do direito à alimentação adequada. Grupos socialmente vulneráveis, como os sem terra e outros segmentos empobrecidos da população podem necessitar do apoio de programas especiais. Acessibilidade física significa que uma alimentação adequada deve ser acessível a todos, inclusive aos indivíduos fisicamente vulneráveis, tal como crianças até seis meses de idade e crianças mais velhas, pessoas idosas, os deficientes físicos, os doentes terminais e pessoas com problemas médicos persistentes, inclusive os doentes mentais. Vítimas de desastres naturais, pessoas vivendo em áreas de alto risco e outros grupos particularmente prejudicados, podem necessitar de atenção especial e, em certos casos, ser priorizados com relação à acessibilidade ao alimento. Uma vulnerabilidade particular é aquela de grupos indígenas, cujo acesso às suas terras ancestrais pode estar ameaçado. Denota-se, portanto, que o direito à alimentação adequada, na contemporaneidade, recebeu especial relevo, sobremaneira quando compreende, de maneira determinante, a realização plena do indivíduo, substancializado o superprincípio da dignidade da pessoa humana. 5 Poder de Polícia e Segurança Alimentar e Nutricional: Tessituras à Vigilância Sanitária e a Função Fiscalizadora de Produtos e Serviços de Alimentos Antes de adentrar no cerne do presente, cuida trazer à colação uma sintética análise dos aspectos caracterizadores do poder de polícia, a saber: autoexecutoriedade e coercibilidade. A Administração pode tomar as providências que modifiquem imediatamente a ordem jurídica, cominando, desde logo, obrigações aos particulares, com o escopo de atender ao interesse coletivo. Assim, diante de tal primado, não pode a Administração ficar à mercê do consentimento dos particulares. Em situação distinta, cumpre-lhe agir de imediato. “A prerrogativa de praticar atos e colocá-los em imediata execução, sem dependência à manifestação judicial, é que representa a autoexecutoriedade”[11]. Ao lado disso, tanto é autoexecutório a restrição cominada em caráter geral, como a que se dirige diretamente ao individuo, quando, à guisa de citação, comete transgressões administrativas. O sentido da autoexecutoriedade repousa na premissa de que, uma vez verificada a presença dos pressupostos legais, a Administração pratica-o imediatamente e o executa de forma integral. Ao exemplificar, Celso de Mello esclarece, oportunamente que: “Assim, uma ordem para dissolução de comício ou passeata, quando estes sejam perturbadores da tranquilidade pública, será coativamente assegurada pelos órgãos administrativos. Estes se dispensam de obter uma declaração preliminar do Judiciário, seja para declaração do caráter turbulento do comício ou da passeata, seja para determinar sua dissolução. A interrupção de um espetáculo teatral, por obsceno, será procedida do mesmo modo, pela Administração Pública, sem que esta obtenha prévia declaração judicial reconhecendo e autorizando a paralisação da exibição teatral. A apreensão de gêneros alimentícios impróprios para o consumo, por deteriorados ou insalubres, também é medida coativa passível de ser posta em prática pelo Executivo, sem recurso às vias judiciárias, tão logo constate a irregularidade”[12]. Outro ponto que merece ser considerado faz alusão à autoexecutoriedade não depende de autorização de qualquer outro Poder, desde que a legislação autorize o administrador a praticar o ato de forma imediata. Assim, acertada é a decisão segundo a qual, no exercício do poder de polícia administrativa, não depende a Administração da intervenção de outro poder para torná-lo efetivo. Quando a lei estabelece o exercício do poder de polícia com autoexecutoriedade, é porque se faz necessária a proteção de determinado interesse coletivo. Impõem-se, ainda, duas observações. A primeira está assentada no fato de que existem atos que não autorizam a imediata execução pela Administração, a exemplo do que ocorre com as multas, cuja cobrança só é efetivamente materializada pela ação própria na via judicial. A outra repousa no ideário de que a autoexecutoriedade não deve integralizar objeto do abuso de poder, de maneira que deverá a prerrogativa guardar compatibilidade com o princípio do devido processo legal para o fito de ser a Administração Pública obrigada a respeitar as normas legais. A característica em comento explicita o grau de imperatividade de que se revestem os atos de polícia, porquanto, como é natural, a polícia administrativa não pode curvar-se ao interesse dos administrados de prestar ou não obediência às imposições. Destarte, se a atividade corresponder a um poder, decorrente do ius imperi estatal, há de ser desempenhada de maneira a obrigar todos a observarem os seus comandos. Oportunamente, urge explicitar que é intrínseco a essa característica o poder que tem a Administração de empregar a força, quando necessária para vencer eventual recalcitrância. Celso de Mello[13], em seu escólio, oportunamente, frisa que é natural que seja na seara do poder de polícia que se manifesta de modo frequente o exercício da coação administrativa, pois os interesses coletivos defendidos frequentemente não poderiam, para assegurar a eficaz proteção, depender das demoras advindas do procedimento judicial. Ora, tal situação renderia ensejo ao perecimento dos valores sociais resguardados por meio de polícia, observadas, evidentemente, porém, as garantias individuais do cidadão constitucionalmente estabelecidas. A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. A segurança alimentar e nutricional abrange: I – a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio da produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, do processamento, da industrialização, da comercialização, incluindo-se os acordos internacionais, do abastecimento e da distribuição dos alimentos, incluindo-se a água, bem como da geração de emprego e da redistribuição da renda; II – a conservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos; III – a promoção da saúde, da nutrição e da alimentação da população, incluindo-se grupos populacionais específicos e populações em situação de vulnerabilidade social; IV – a garantia da qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos, bem como seu aproveitamento, estimulando práticas alimentares e estilos de vida saudáveis que respeitem a diversidade étnica e racial e cultural da população; V – a produção de conhecimento e o acesso à informação; e VI – a implementação de políticas públicas e estratégias sustentáveis e participativas de produção, comercialização e consumo de alimentos, respeitando-se as múltiplas características culturais do território nacional. Estabelecidos tais marcos e diante da proeminência assumida pelo direito à alimentação adequada, cuida realçar que a regulamentação da temática e a competência de inspecionar e fiscalizar vindicam algumas reflexões. Nesta linha de raciocínio, com a promulgação do Texto de 1988, a fiscalização e a inspeção de alimentos recebeu contornos constitucionais. Nesta esteira, cuida reconhecer que o poder de polícia, no que atina à fiscalização de alimentos, sobretudo se esses atendem, ou não, os critérios estabelecidos pelas normas de padronização e de vigilância sanitária, configura mecanismo imprescindível para assegurar que o direito à alimentação adequada seja substancializado, sobretudo em sede de dimensão de segurança alimentar e nutricional. A fiscalização, in casu, é instrumento imprescindível para que, por meio de padrões rígidos de segurança e qualidade os alimentos possam atender ao ideário de alimentação qualitativa e não apenas quantitativa.
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Polícia técnica com foco em investigação criminal. DNA forense: aplicações e limitações
Os avanços científicos em ciências forenses, ocorridos nos últimos anos, têm contribuído bastante para a resolução de casos e na elucidação de crimes considerados muita vezes insolúveis. Estudos crescentes na área de genética forense tornaram a busca por vestígios biológicos para exame de DNA um dos grandes objetivos dos investigadores policiais. Cada pessoa possui seu perfil genético, que é único e a distingue de todas as outras. Pessoas mortas a dezenas, centenas de anos, podem ser identificadas por meio do DNA extraído (recuperado) de ossos ou dentes; criminosos podem ser associados ao local do crime e; amostras biológicas de desaparecidos, vivos ou mortos, podem ser confrontadas a de familiares. A determinação da identidade genética pode ser usada ainda para apontar criminosos, exonerar inocentes, identificar corpos ou restos humanos em desastres aéreos e campos de batalha, determinar paternidade com confiabilidade praticamente absoluta, elucidar trocas de bebês em berçários e detectar substituições e erros de rotulação em laboratórios de patologia clínica, entre outros. Contudo, esta técnica é apenas uma ferramenta e diversas limitações podem tornar seu uso inviável, tais como: ausência de suspeitos para confronto contaminação ou degradação da amostra biológica, mistura de materiais entre outras.
Biodireito
1. INTRODUÇÂO 1.1. A Molécula de DNA: Aspectos Estruturais O século XX foi caracterizado por um grande progresso na biologia, assim como os séculos anteriores haviam produzido um conjunto de explicações sobre a matéria inanimada, como a natureza do átomo, a química e o eletromagnetismo. O curso da história da Biologia Molecular nos últimos anos foi, indubitavelmente, estarrecedor: ninguém poderia sequer imaginar o que aconteceria no milênio que passou. A estrutura tridimensional da molécula de DNA – a dupla hélice – foi descoberta em 1953, por Francis Crick, James Watson e Maurice Wilkins, quando trabalhavam em Cambridge, no Reino Unido. O prêmio Nobel lhes foi outorgado em 1962. Eles construíram modelos de cartolina e arame para entender e descrever o DNA e o resultado foi publicado em duas páginas da revista Nature, em 25 de abril de 1953, há pouco mais de 50 anos. O texto de apenas 900 palavras era acompanhado de um esboço simples de uma dupla hélice e atraiu pouca atenção da comunidade científica. O estudo só ganhou destaque em 1957, quando cientistas demonstraram que o DNA se auto-replica, como os dois autores haviam previsto. Sem dúvida, como em outras descobertas, tributo deve ser feito a alguns predecessores como Gregor Mendel, cujas pesquisas sobre hereditariedade ficaram esquecidas por mais de 30 anos, até serem redescobertas em 1900, assim como Charles Darwin e sua teoria da evolução de 1958 (ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA, 2005). O DNA, ou Ácido Desoxirribonucléico, é o material hereditário de humanos e de quase todos os outros organismos, com exceção de alguns vírus que tem seu material genético composto unicamente por RNA (Ácido Ribonucléico). Uma molécula de DNA é uma longa cadeia de blocos de construção, moléculas pequenas chamadas nucleotídeos. Da mesma maneira como as moléculas de proteína são cadeias de aminoácidos, também as moléculas de DNA são cadeias de nucleotídeos. A molécula de DNA é pequena demais para ser vista, mas sua forma exata foi engenhosamente decifrada por meios indiretos. Ela consiste em um par de cadeias de nucleotídeos torcidas juntas, formando uma espiral elegante, a “dupla hélice”, a “espiral imortal” (DAWKINS, 2007). Os nucleotídeos constituintes existem em apenas quatro tipos diferentes, cujos nomes podem ser abreviados para “A”, “T”, “C” e “G”. A informação no DNA é armazenada como um código composto por estas quatro bases químicas: adenina (A), guanina (G), citosina (C) e timina (T). Elas são as mesmas em todos os animais e plantas. O que difere é a ordem na qual estão enfileiradas. Um constituinte G de um homem é, em todos os detalhes, idêntico a um constituinte G de um caramujo. Mas, a seqüência dos constituintes em um homem não é apenas diferente daquela em um caramujo. É também diferente – embora em menor grau – da seqüência em todos os outros homens (excetuando-se o caso especial de gêmeos idênticos). Todas as células do corpo de uma pessoa têm o mesmo DNA. A maior parte do DNA está localizado no núcleo das células (onde é chamado de DNA nuclear), mas uma pequena quantidade de DNA também pode ser encontrado nas mitocôndrias (onde é chamado DNA mitocondrial ou mtDNA). O DNA mora dentro dos corpos. Ele não se concentra em uma parte específica do corpo, mas é distribuído entre as células. Existem cerca de um milhão de bilhões de células constituindo um corpo humano médio e, com algumas exceções que podemos ignorar, cada uma dessas células contém uma cópia completa do DNA daquele corpo. Este DNA pode ser considerado como um conjunto de instruções sobre como construir um corpo, escrito no alfabeto A, T, C e G dos nucleotídeos. É, como se em cada quarto de um imenso prédio existisse uma estante contendo os planos do arquiteto para todo prédio. A “estante” em uma célula é chamada de núcleo. No homem, os planos do arquiteto montam 46 volumes – em outras espécies o número é diferente. Os volumes são chamados de cromossomos. São visíveis sob o microscópio como longos fios e os genes estão enfileirados em ordem ao longo deles. Não é fácil e, de fato, talvez nem seja significativo decidir onde um gene termina e o seguinte começa (DAWKINS, 2007). As bases de DNA pareiam-se entre si na seguinte ordem: A com T e C com G, para formar unidades chamadas de pares de bases. Cada base é também ligada a uma molécula de açúcar e uma molécula de fosfato. Esse conjunto de base, açúcar e fosfato é chamado de nucleotídeo. Os nucleotídeos por sua vez são organizados em duas vertentes longas que formam uma espiral chamada de dupla hélice. A estrutura da dupla hélice pode ser comparada a uma escada em espiral, com os pares de bases formando os degraus dessa escada e o açúcar e moléculas de fosfato formando as hastes verticais da escada. O DNA humano é composto por cerca de três bilhões de bases, e mais de 99% destas são as mesmas em todas as pessoas. A ordem, ou seqüência delas determina a informação disponível para a construção e manutenção do organismo, similar à maneira em que as letras do alfabeto aparecem em certa ordem para formar palavras e frases. Uma propriedade importante do DNA é que ele pode se auto-replicar, e fazer cópias de si mesmo. Cada cadeia de DNA em dupla hélice pode servir como um padrão para a duplicação da seqüência de bases. Isto é importante, pois quando as células se dividem, cada nova célula-filha tem uma cópia exata do DNA presente na célula mãe. Dawkins explica que as moléculas de DNA fazem duas coisas importantes. Em primeiro lugar, elas se replicam, o que significa que elas fazem cópias de si mesmas. Isso é facilmente compreendido se imaginarmos um homem adulto, com um milhão de bilhões de células, que começou, em sua versão original, com uma única célula. Esta única célula se dividiu em dois e, por meio de sucessivas divisões, chegou a 4, a 8, a 16, a 32 e assim por diante, até chegar ao homem adulto. Pode-se dizer que a função de replicar do DNA é como se fosse a função de uma fábrica modelo, com qualidade cem por cento, onde os “planos do DNA” são copiados com fidelidade, praticamente sem erros (DAWKINS, 2007). De acordo com esses “planos do DNA”, para que um corpo seja ‘construído’, não basta que ele se duplique. É preciso que alguma coisa mais aconteça. Assim, o DNA faz uma supervisão indireta da fabricação de um tipo diferente de molécula, que é a proteína. Dawkins lembra que fazer proteínas talvez pareça estar muito longe da fabricação de um corpo, mas, diz ele, esta é a primeira pequena etapa nesta direção, uma vez que as proteínas constituem grande parte da estrutura de um corpo e, além disso, controlam os processos químicos dentro da célula, ligando-os e desligando-os no momento e no lugar certo. E essa movimentação toda dentro das células é que leva uma primeira célula a vir a formar um bebê e, mais tarde, um corpo adulto. Destaca-se ainda que o DNA é uma molécula que apresenta características favoráveis para identificação humana uma vez que apresenta fundamentação científica nos mesmos atributos inerentes à datiloscopia, quais sejam: perenidade, imutabilidade, variabilidade, observando as necessárias ressalvas quanto às pessoas que realizaram transplante de medula óssea , e aos gêmeos univitelinos, os quais possuem o mesmo perfil genético, o que na datiloscopia não ocorre, pois não existem pessoas com as mesmas impressões papilares (ACADEMIA DE POLÍCIA CIVIL, 2008). O DNA Forense O avanço da ciência e tecnologia a nível forense teve seu ponto culminante em meados dos anos 80, quando as técnicas de identificação, fundamentadas na análise direta do ácido desoxirribonucléico (DNA), tornaram-se uma das mais poderosas ferramentas para a identificação humana e investigações criminais. A determinação de identidade genética pelo DNA pode ser usada para demonstrar a culpabilidade dos criminosos, exonerar os inocentes, identificar corpos e restos humanos em desastres aéreos e campos de batalha, determinar paternidade com confiabilidade praticamente absoluta, elucidar trocas de bebês em berçários e detectar substituições e erros de rotulação em laboratórios de patologia clínica (PENA, 2005). O primeiro método de utilização da análise do DNA para identificar indivíduos foi desenvolvido em meados da década de 1980 por Sir Alec Jeffreys, da Universidade de Leicester (JEFFREYS ET AL., 1985) e, apesar do seu enorme poder potencial, houve sérias reservas quanto o seu uso real, pois no início, havia muitas dúvidas quanto à reprodutibilidade e à confiabilidade dos métodos. Com o conhecimento atual, ao menos duas grandes vantagens devem ser citadas sobre a tipagem molecular: o DNA possui uma alta estabilidade química mesmo após um longo período de tempo e está presente em todas as células nucleadas do organismo humano, o que facilita a obtenção do mesmo. As primeiras técnicas forenses de identificação humana eram convenientes apenas para análise de DNA de evidências biológicas que contivessem células nucleadas. Atualmente, com a implementação do seqüenciamento do DNA mitocondrial, essa limitação tem sido superada (LEE e LAAD, 2001). Se antes, impressões digitais e outras pistas eram usadas para desvendar crimes; hoje, são inúmeros os espécimes biológicos dos quais o DNA pode ser extraído. Podemos encontrá-lo em pequenas amostras de sangue, ossos, sêmen, cabelo, dentes, unhas, saliva, urina, entre outros fluidos, e análises cuidadosas desse material ajudam a identificar criminosos. As aplicações da Biologia Molecular no laboratório criminal centralizam-se, em grande parte, na capacidade da análise do DNA em identificar um indivíduo a partir de cabelos, manchas de sangue e fluidos corporais, entre outros itens recuperados no local do crime. Essas técnicas são conhecidas como datiloscopia genética (genetic fingerprinting), embora o termo mais preciso e utilizado para designá-las seja perfil de DNA (BROWN, 2001). O perfil de DNA se baseia no fato de que gêmeos idênticos são os únicos indivíduos que possuem cópias idênticas do genoma humano, mas este, em indivíduos diferentes, contém muitos polimorfismos, que são posições onde a seqüência de nucleotídeos difere em cada membro da população. Para ser considerado um polimorfismo, o alelo raro de um determinado loco deve estar presente em mais de 1% dos indivíduos da população. Assim, com esta grande variação no número e no tipo de variações, fica possível identificar uma pessoa com base no seu padrão de polimorfismos. A tipagem do DNA para finalidades forenses se baseia nos mesmos princípios fundamentais e usa as mesmas técnicas que são rotineiramente empregadas em uma ampla variedade de situações médicas e genéticas, tais como: o diagnóstico e o mapeamento genético (DUARTE et al., 2001). O DNA é resistente a muitas condições que destroem a maioria dos outros compostos biológicos, como as proteínas. Além disso, somente poucas células nucleadas, que contenham pequenas quantidades de DNA, são necessárias para a identificação de um indivíduo. Por essas razões, as análises diretas do DNA freqüentemente dão resultados úteis em situações em que os métodos mais antigos, como os que empregavam grupos sangüíneos e enzimas, fracassavam (DUARTE ET AL., 2001). Com uma incrível sensibilidade e poder de discriminação, a análise de DNA tem sido a “figura-chave” e promete grandes progressos no campo da ciência forense (LEE e LAAD, 2001). Por possuir um alto poder de discriminação, a tipagem do DNA tem fornecido aos investigadores uma grande chance de excluir suspeitos que não estão relacionados à cena do crime. O número de tribunais que têm aceitado evidências baseadas no DNA cresce a cada dia, levando-nos a crer que, em um futuro não muito distante, esta tecnologia será empregada em todo o Sistema Legal. Porém, para que não ocorra nenhum tipo de erro e para a precisão dos resultados, regras rígidas de coleta e processamento das amostras devem ser adotadas (LEE e LAAD, 2001). Nas últimas décadas, muitas técnicas foram desenvolvidas, objetivando a identificação genética precisa de indivíduos. Dentre elas, as mais significativas são: RFLP, VNTR, PCR e STR (KOCH & ANDRADE EM REVISÃO, 2008). 2. DESENVOLVIMENTO 2.1. Utilização do DNA nuclear e mitocondrial na investigação criminal: Aplicações e limitações 2.1.1. Utilização do DNA nuclear na genética forense A primeira abordagem de identificação genética consistia na análise de marcadores imunológicos, como o sistema sanguíneo ABO, por metodologias de imunologia. De fato, desde inícios do século XX que a descoberta deste sistema sanguíneo e a sua caracterização em diversos grupos populacionais mostraram a sua importância para a identificação genética dos indivíduos. Adicionalmente, foram identificados outros sistemas imunológicos, como o Rh e o MN. Seguidamente, verificou-se ser possível o estudo de marcadores protéicos, cuja distinção entre isoformas era possível devida a diferenças de mobilidade eletroforética consoante o pH do sistema de tipagem. Ambos estes marcadores eram, contudo, limitados possuindo uma variabilidade reduzida. A limitação da variabilidade genética foi contornada com a tipagem direta de DNA nuclear, cuja aplicação no campo das ciências forenses ocorreu por volta de meados dos anos 80. Em 1985, foi descrito a tecnologia do DNA fingerprinting, a qual é altamente informativa para a identificação humana. Esta técnica tira partido da elevada variabilidade existente entre os indivíduos em algumas regiões genômicas designadas por minisatélites ou VNTRs (abreviatura de Variable Number of Tandem Repeats). Os VNTRs são regiões em que uma sequência de bases (podem ir de 10 a cerca de 100 pares de bases) está repetida sequencialmente várias vezes (em tandem), o número das quais é altamente variável entre os indivíduos (AFONSO, 2008). Quando o DNA nuclear de um determinado indivíduo é submetido ao corte por várias enzimas de restrição, vai ficar fragmentado em inúmeros blocos de tamanho diverso devido aos polimorfismos dos VNTRs e da própria atuação polimórfica das enzimas de restrição, gerando um padrão de bandas quando a amostra é separada em eletroforese. Os polimorfismos de restrição são designados por RFLPs (de Restriction Fragment Length Polymorphism). Estas primeiras técnicas moleculares tinham as desvantagens de serem fastidiosas e ser necessária uma quantidade elevada de DNA, num bom estado de conservação. Estes fatores limitavam grandemente a aplicação forense onde, na extensa maioria dos casos, a prova biológica se encontra em quantidade vestigial e em condições de degradação e contaminação. Ainda em 1985, Kary Mullis e colaboradores apresentaram uma técnica conhecida por PCR – Polimerase Chain Reaction, que torna possível obter milhões de cópias de um determinado fragmento de DNA, a partir de uma pequena quantidade de DNA inicial. Esta metodologia revolucionou todas as áreas de diagnóstico e investigação em genética. No que concerne às ciências forenses, com o PCR iniciou-se a aplicação de um novo tipo de marcadores genéticos altamente polimórficos, os microsatélites também conhecidos por STRs (de Short Tandem Repeats), possuindo uma taxa de mutação de cerca de 10-3 por locus por ano (BRINKMANN ET AL., 1998). Os STRs são um tipo particular de VNTRs, em que o motivo repetitivo tem cerca de 2 a 6 bp, geralmente repetidos em número inferior a 50. Deste modo, os fragmentos analisáveis por PCR são pequenos, contendo aproximadamente entre 100 a 300bp, o que possibilita a obtenção de resultados mesmo a partir de amostras degradadas. Com o desenvolvimento concomitante dos métodos de detecção de DNA após eletroforese, como seja a marcação por fluorescência, foi possível desenvolver sistemas multiplex de STRs, em que vários marcadores são estudados simultaneamente. Entre 1990 e 1996 apareceram os primeiros kits comerciais multiplex para STRs, que permitem a amplificação de até 15 loci, que reduzem substancialmente a quantidade de amostra necessária para a análise e minimiza o tempo necessário para a obtenção de resultados, bem como o seu custo e a possibilidade de erro por troca de amostras. Recentemente, há um interesse crescente na utilização de outro tipo de marcadores genéticos, os SNP (Single Nucleotide Polymorphism) no campo da genética forense. Estes caracterizam-se por serem substituições nucleotídicas pontuais (sendo por vezes também incluídas inserções/deleções de uma a duas bases), as quais apresentam uma taxa de mutação de 10-8 por base por ano, para o genoma humano. Os marcadores autossômicos permitem uma identificação individual porque um determinado perfil genético é específico de um só indivíduo, sendo apenas partilhado por gêmeos monozigóticos. Na validação de um dado sistema genético a ser implementado para aplicação forense é necessário fazer um estudo populacional prévio para caracterização das freqüências genéticas. É indicado que cada laboratório caracterize a população na qual vai realizar o seu trabalho de investigação pericial ou, na impossibilidade, use as frequências de uma população próxima. Esta caracterização da população permite a quantificação da prova genética: quantas vezes é mais provável que um dado perfil genético de uma prova pertença ao suspeito do que a um indivíduo ao acaso da população (AFONSO,2008). Os vários marcadores autossômicos estudados devem ter transmissão independente, devendo estar localizados em cromossomos diferentes ou em braços diferentes do mesmo cromossomo. Assim sendo, são passíveis de aplicação da regra do produto: os índices (sejam de paternidade ou de identidade entre prova e suspeito) individuais podem ser multiplicados para a obtenção de um índice global. E é possível determinar frequências genotípicas esperadas a partir das frequências alélicas observadas, pela aplicação do produto do binômio, logo que os marcadores estejam em equilíbrio de Hardy-Weinberg. Curiosamente, se os marcadores autossômicos são poderosos para a identificação individual, já não possuem poder distintivo para a identificação de grupos populacionais. 2.1.2. Casos de aplicação do DNA nuclear A utilização do DNA nuclear é a regra geral, sempre que possível sua extração a partir evidências biológicas procede-se a obtenção do perfil do DNA da amostra questionada, sendo o DNA extranuclear uma fonte alternativa e suplementar para exames posteriores ou para quando não for possível obter o perfil através do DNA nuclear. As limitações quanto ao uso exclusivo do DNA nuclear estendem-se a diversos fatores como descritos a seguir. i Quando gêmeos idênticos são suspeitos de crime em que o autor deixou vestígios, o DNA nuclear em nada poderia colaborar para a elucidação do delito, uma vez que não consegue distinguí-los por serem geneticamente idênticos. Neste caso a datiloscopia convencional seria útil, se dentre os vestígios deixados, existissem impressões digitais. ii Quando as condições de preservação do material biológico de um cadáver carbonizado ou que tenha ficado por muito tempo submerso no mar, muitas vezes não permitem, através da análise do DNA nuclear, que se alcancem dados com significância estatística para que se possa afirmar sua identidade, ao passo que neste sentido seria mais significativo o exame de sua arcada dentária. iii Destaca-se ainda, nas limitações do DNA, principalmente na área criminal, diz respeito a peculiaridades da análise. Muitas vezes, quaisquer vestígios de roupas coloridas, que possa ser encontrado nas evidências biológicas, acabam inibindo a reação de PCR (BONACCORSO, 2004). Outro ponto importante é o fato de que casos específicos, identificação genética de espécies nos crimes contra fauna, só é possível através da análise de regiões do DNA mitocondrial. Vale ressaltar ainda que quando há a mistura de fluidos biológicos a exemplo de crimes sexuais as investigações de STRs de regiões não convencionais do DNA nuclear (cromossomo Y) são úteis, pois rotineiramente são encontradas misturas de secreção vaginal com sêmen, e a partir da análise do cromossomo Y é possível separar o material da vítima e do suspeito. 2.1.3. Utilização do mtDNA em genética forense Dentre as organelas presentes no citossol da célula dos organismos superiores encontram-se as mitocôndrias. São responsáveis pelo processo de respiração celular, possuindo um tamanho variando de 0,5 a 1,0 µm de diâmetro e 5,0 a 10 µm de comprimento. São consideradas autênticas fábricas de produção da energia necessária para o bom funcionamento da célula. Pode-se acrescentar ainda que são em si, providas de uma carga genética própria, o mtDNA (DE ROBERTIS, 2003). Diferente do DNA nuclear que forma longas fitas, constituídas cada uma por dupla hélice e que codificam aproximadamente 100.000 genes, o mtDNA representa de 1 a 2% do DNA celular, em duplo filamento circular, codificando 37 genes. Ele codifica aproximadamente 10% das proteínas constitutivas das mitocôndrias, como conseqüência, para um bom funcionamento destas, é necessária uma boa cooperação entre o DNA nuclear e o mtDNA. Este não tem nada de especial em sua composição química que o diferencie do DNA nuclear, entretanto, possui um código genético próprio. Por outro lado sua organização é grandemente econômica, já que somente 10% de sua totalidade é não codificante. Seu genoma é haplóide devido sua herança ser estritamente materna, por isso não está submetido a processos de recombinação. O mecanismo pelo qual a mitocôndria paterna é excluída do embrião logo após a fertilização ainda não está bem esclarecido, tendo permanecido obscuro o mecanismo de eliminação. Embora a grande maioria dos genes se localize no núcleo (DNA nuclear), um subgrupo pequeno, mas importante, reside no citoplasma, especificamente nas mitocôndrias (mtDNA). Todas as células humanas possuem centenas de mitocôndrias, cada uma contendo várias cópias de uma pequena molécula circular, o cromossomo mitocondrial (KOCH & ANDRADE EM REVISÃO, 2008). Este DNA se encontra entre as menores moléculas de DNA, é circular com um tamanho de 16.569 pares de base, tendo sido completamente seqüenciado por Anderson et al. (1981). O mesmo autor ainda assinalou a todos os genes mitocondriais suas funções e seus produtos gênicos, incluindo 13 proteínas, 2 rRNAs e 22 genes tRNA. As fitas de mtDNA tem uma distribuição assimétrica de guaninas e citosinas, o que gera uma cadeia pesada (H) e outra leve (L). Cada fita é transcrita a partir de um promotor PL e PH1, localizados na região controle, na qual se inclui o D-Loop, que é uma região gerada pela síntese de um segmento curto da cadeia pesada H denominado 7SDNA, onde se encontra a origem da replicação da cadeia H. Esta região é muito importante do ponto de vista forense, devido ser uma região hipervariável e suficientemente pequena para ser abordada por meio de seqüenciamento por PCR. A principal vantagem do DNA mitocondrial, em comparação com o DNA nuclear, é que ele está presente num total aproximado de 500 a 2.000 cópias por célula, o que lhe confere um menor risco de degradação em relação ao DNA nuclear. Por ele estar protegido por uma membrana, o torna extremamente importante quando do estudo de espécimes biológicas antigas, cujo DNA nuclear, em cópia única, em geral, encontra-se degradado. Nesse contexto a análise do mtDNA é particularmente útil em investigações criminais, uma vez que esta abundância oferece uma maior chance de algumas cópias suportarem a degradação das amostras obtidas para a análise forense. Apesar de o DNA nuclear possuir um ótimo poder para as identificações criminais, ele aparece com uma freqüência de apenas duas cópias por célula diplóide (ALBUQUERQUE0, 2004). Uma característica importante do DNA mitocondrial é que ele é herdado uniparentalmente, pois apenas as mitocôndrias do gameta materno estão presentes no embrião e conseqüentemente no indivíduo adulto. Sendo assim, as relações familiares pela linhagem materna são reconhecidas facilmente (ALBUQUERQUE, 2004).  Os alvos do seqüenciamento do DNA mitocondrial são duas regiões específicas do cromossomo, denominadas de regiões hipervariáveis I e II (HV1/HV2) presentes na região controle. Devido sua grande variabilidade, a região controle é a que normalmente se analisa. Mede aproximadamente 1.100 pares de base e se subdivide nessas duas regiões maiores: a região hipervariável 1 (HVI), que compreende as posições 16.024 à 16.035, e a região hipervariável II (HVII), que compreende as posições 73 a 340 e uma região hipervariável menor (HVIII) . Convencionou-se iniciar a numeração nucleotídica da mitocôndria na região controle, de modo que esta região compreende as posições finais (16.024 a 16.569) e iniciais (1 a 576). A região controle é responsável pela regulação da replicação e da transcrição de todo o mtDNA. A replicação tendo início nesta região é realizada por deslocamento de uma fita em relação à outra, formando uma alça, denominada D-Loop (displacemente loop). Na região controle, são verificados os polimorfismos do mtDNA. A grande variação desta região é devida a vários fatores: i. O mtDNA é muito sensível  ao dano oxidativo causado principalmente por um grande número de radicais livres proporcionado um ambiente favorável a mutação do DNA; ii. O mtDNA não possui histonas, que exerce um papel protetor no DNA nuclear; iii.A mtDNA polimerase possui uma pobre atividade reparadora se comparada a polimerase nuclear; iv.A reparação do DNA dependente de excisão de nucleotídeos não está presente em mitocôndrias; v. A típica estrutura D-Loop, onde há formação momentânea de fitas simples pode influenciar o padrão de mutação pontual, já que a taxa de depurinação de DNA fita-simples é quatro vezes maior que a do DNA fita-dupla. Todos estes fatores fazem com que o DNA mitocondrial tenha uma taxa de evolução 5 a 10 vezes maior que o DNA nuclear, o que implica em uma hipervariabilidade entre a população humana. A alta taxa de substituição de bases possibilita que seja observada uma ou mais diferenças na seqüência nucleotídica das regiões hipervariáveis do mtDNA, quando indivíduos da linhagem materna de uma mesma família são comparados. Espécimes biológicos são analisados comparando o polimorfismo encontrado nas regiões HV1 e HV2 com aqueles encontrados na linhagem materna, ou a partir de um banco de dados evolucionário, biológico ou antropológico da população, quando se deseja enquadrar um suspeito em algum grupo étnico, por exemplo, uma vez que cada população de origem distinta possui um conjunto específico de SNPs nesta região. Entretanto, deve-se levar em conta que a tipagem de DNA mitocondrial só dará um resultado correto e definitivo se a variação do DNA do indivíduo em questão for concordante com a de seus parentes maternos, pois uma vez que a taxa de mutação é muito alta, uma diferença de seqüência não significa necessariamente que os indivíduos comparados não sejam relacionados. A ocorrência de heteroplasmia é outro fator que se deve levar em conta ao analisar o mtDNA. Esta se caracteriza pela presença, em um mesmo indivíduo de mais um genótipo de DNA mitocondrial. O fenômeno pode decorrer da mutação do genoma de uma ou mais mitocôndrias, gerando uma mistura de moléculas mutantes e normais (DOLINSKY E PEREIRA EM REVISÃO, 2007). Quando uma célula heteroplasmática se divide, a herança mitocondrial nas células filhas ocorre ao acaso. Depois de vários ciclos de divisão celular, é possível que prevaleça, dentro de uma célula, somente uma das formas de mtDNA, ou o normal ou o mutante. Esse processo pode ocorrer em uma célula somática quanto em células germinativas femininas. Especial relevância adquire a heteroplasmia quando se compara DNAs mitocondriais de familiares, principalmente, quando vestígios em análise podem ser provenientes de amostras biológicas de diferentes tecidos do mesmo indivíduo. Quando a mesma heteroplasmia é observada na amostra em questão e na referência, interpreta-se como reforço para a vinculação entre as mesmas. É mais provável que a heteroplasmia seja uma herança materna quando é detectada em todos os tecidos estudados. Por outro lado, a ocorrência de heterplasmia em um único tecido de um indivíduo parece ser proveniente de mutação somática (CALLOWAY ET AL, 2000). É mais freqüente o encontro de heteroplasmia em indivíduos com idade mais avançada. 2.1.4 Casos de aplicação do mtDNA O método mais utilizado no estudo do polimorfismo do mtDNA consiste em amplificar a região controle, por meio da técnica de PCR e seqüenciar o produto amplificado. Então, são verificadas mutações pontuais, inserções e deleções em relação à seqüência padrão, descrita por Anderson (1981). Com relação ao DNA mitocondrial antigo, deve-se estar atento ao fato de que este se apresenta em baixas concentrações, e a presença de um DNA externo à preparação pode facilmente provocar uma contaminação. As regiões hipervariáveis contem um sitio rico em citosina, denominado poli C, apresentando uma timina localizada aproximadamente no centro da seqüência. Estes sítios são altamente susceptíveis a mutação, e, usualmente, é verificada a substituição de timina por citosina. Também pode ocorrer o acréscimo de uma ou duas citosinas àquela região em algumas populações de mitocôndria, gerando heteroplasmia. Este tipo de mutação pode promover o surgimento de cópias mais curtas em 10 pares de base (10pb), quando na amplificação in vitro por PCR, considerando que o sítio poli C encontra-se localizado na região finalizadora HVII. O sítio “poli C” estando no centro da região HVI promove o abortamento precoce da reação de PCR. A substituição do tipo transição é o polimorfismo dominante e a troca entre as bases T e C são mais freqüentes. Em estudo sobre o padrão de substituição de nucleotídeos nas regiões HVI e HVII, observou-se uma taxa de substituição em HVI duas vezes maior que HVII. Esta diferença é devida, principalmente, à alta freqüência de transições de pirimidina em HVI. Para fins forenses, a análise do mtDNA deve se restringir a situações em que não é possível a análise do DNA nuclear (fios de cabelo sem bulbo), isto é, quando não há material genético adequado e/ou suficiente para tipagem de regiões STR do DNA genômico, ou quando o material apresenta alta grau de degradação (ossos antigos), em casos de grandes desastres, incêndios, explosões, queda de aviões. Destaca-se ainda casos de exame de maternidade sem pai e identificação de espécies a partir do gene do citocromo B (mtDNA) em casos de crime contra fauna (JACQUES, 2005). Apesar da limitação quanto ao uso forense do mtDNA, por meio do conhecimento adquirido sobre sua estrutura, o estudo da evolução humana experimentou enormes avanços, tendo em vista a possibilidade de se analisar com êxito, restos humanos antigos, como tecido cerebral de 7.000 anos de idade e ossos de até 5.500 anos. Como exemplo de estudos de evolução, a análise das variações do mtDNA permitiu a reconstrução de eventos migratórios de mulheres ancestrais e a conseqüente divisão de haplotipos, tendo sido proposto que a espécie humana surgiu na África a aproximadamente 150.000 anos (VIGILANT, et al, 1991). Para identificar os haplogrupos mais antigos, os haplotipos humanos foram comparados ao mtDNA de chipanzé. Os haplotipos africanos apresentam a maior variação, e a raiz mais profunda da árvore filogenética, consiste na origem, na África da espécie humana. A árvore filogenética consiste nos seguintes grupos: Africano, com 3 haplotipos (L1, L2, e L3); Europeu com 9 haplotipos (H, T, U, V, W, Y, I, J, K); Asiático, com 2 macrohaplogrupos, divididos em vários haplotipos e, Americano, com 5 haplotipos (A, B, C, D e X). Uma vez que os haplotipos A, B, C e D são características do grupo Asiático, especula-se que o grupo Americano teria se originado deste por meio de migrações a partir da Sibéria. Este tipo de estudos populacionais baseados no mtDNA permitiram um avanço de uma nova modalidade do DNA forense (retrato genético), onde geneticamente pode-se predizer algumas características fenotípicas do suspeito, tais como sua provável etnia, e consequentemente os traços característicos de cada uma. CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise do DNA é um dos maiores progressos técnicos da investigação criminal desde a descoberta das impressões digitais. Métodos para determinar o perfil do DNA estão firmemente embasados na tecnologia molecular. Quando a determinação do perfil e feita com cuidados adequados, os resultados são altamente reprodutíveis (DUARTE ET al., 2001). Os métodos baseados na PCR são imediatos, requerem apenas uma pequena quantidade de material e podem fornecer identificação não-ambígua de alelos individuais. Assim, vários métodos de PCR, particularmente os que usam os STRs, estão sendo cada vez mais usados.  A tecnologia do perfil e os métodos relacionados a analise de DNA progrediram a ponto de não colocar em duvida a admissibilidade dos dados sobre o DNA quando adequadamente coletados e analisados (DUARTE ET al., 2001). No futuro, espera-se que as técnicas de biologia molecular existentes sejam aprimoradas e que novos e melhores métodos para analise sejam desenvolvidos, a fim de que a grande maioria dos casos de investigações forenses cíveis e criminais tenha um desfecho que não possa ser questionado nos tribunais.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-153/policia-tecnica-com-foco-em-investigacao-criminal-dna-forense-aplicacoes-e-limitacoes/
Resolução 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina – uma reflexão sobre a seleção embrionária e a terapia gênica sob a perspetiva do direito brasileiro
O presente artigo científico tem como objetivo elucidar os dispositivos da Resolução no 2121/2015 do Conselho Federal de Medicina, que traz regras deontológicas acerca da realização da reprodução assistida no Brasil, propondo uma análise crítico-reflexiva sobre a mesma especificamente no que diz respeito à seleção embrionária e à terapia gênica. Seriam tais procedimentos desdobramentos do direito à saúde? Como fruto da pesquisa serão apresentados argumentos favoráveis e desfavoráveis à realização de tais procedimentos à luz do Direito Brasileiro e dos princípios que norteiam a Bioética.
Biodireito
Introdução A Resolução 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina prevê regras deontológicas relativas à realização da reprodução humana assistida (RHA) no Brasil, tendo sido precedida por outras que trataram da mesma temática. Tal normativa é destinada a médicos e clínicas que realizam RHA, não podendo ser considerada lei, já que não cumpriu o devido processo legislativo e nem tem eficácia erga omnes. Frise-se que embora o ordenamento jurídico brasileiro ainda não tenha se debruçado sobre a temática, um relativamente novo ramo do Direito – o Biodireito – fundado nos princípios norteadores da Bioética, tem se desenvolvido a partir da reflexão sobre o intercruzamento dos temas vida, ética e Direito. Uma das polêmicas geradas pelo Conselho Federal de Medicina quando trata das técnicas de RHA é o fato de permitir a seleção embrionárias e a terapia gênica, colocando em voga a discussão sobre a legitimidade da eugenia nos dias atuais, dividindo opiniões. O termo eugenia, por si só, tem o significado de gerar bem, mas indica, também, a ciência que estuda as melhores condições para a reprodução e o aprimoramento da espécie humana. Criado em 1883 por Francis Galton, foi um termo definido como estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades das futuras gerações seja física ou mentalmente. Durante toda a história da humanidade diversos povos eliminavam pessoas que nasciam com deficiência, com má-formação e, também, pessoas doentes. Os grandes avanços tecnológicos na área da Medicina propiciam a potencialização do direito à saúde, elevando-o a outro patamar de discussão. A terapia gênica proporciona uma análise revolucionária do direito à saúde, uma vez que possibilita o direito de uma pessoa nascer sem vários tipos de doenças, como diabetes, miopia, hemofilia, dentre outras. Assim, o desenvolvimento deste trabalho vai tratar do progresso científico que permite a detecção, prevenção e tratamentos de numerosas enfermidades até o momento sem solução, vislumbrando o direito de nascer saudável, ou seja, o direito de não nascer deficiente diante do elevado patamar de desenvolvimento em que se encontram as técnicas de engenharia genética. Contudo, pergunta-se: existe limites para o direito à saúde? Pode-se afirmar a existência do direito de não nascer com certas doenças considerando o atual estágio de desenvolvimento da genética? A seleção embrionária e a terapia gênica geram risco de discriminação genética? Se se afirmar a existência do direito de não nascer com doenças passíveis de serem extirpadas do embrião através de tais procedimentos, como se daria a logística para que estes, ainda muito caros no Brasil, pudessem ser ofertados no Sistema Único de Saúde? E, por fim, tudo que é medicamente possível é desejável sob o ponto de vista ético e jurídico? Por meio dessas questões, a eugenia deixa de ser um assunto apenas de saúde individual e torna-se uma questão social. O presente trabalho foi construído com base em uma pesquisa qualitativa, essencialmente bibliográfica e documental, feita a partir do diálogo entre Biodireito e Direito Constitucional. 1 A Resolução 2121/2015 do Conselho Federal de Medicina: da reprodução assistida no Brasil Primeiramente, é importante conceituar reprodução assistida, bem como elucidar as técnicas mais utilizadas para a realização da mesma. De forma bem objetiva, reprodução humana assistida pode ser definida como um conjunto de operações para unir, artificialmente, os gametas feminino e masculino, dando origem a um ser humano. Segundo Moreira Filho, “é indicada para casos de infertilidade, que atinge 20% da população. O casal deverá optar pelas técnicas de reprodução assistida quando o motivo da infertilidade não puder ser sanada pelos métodos médicos, ou seja, a saúde reprodutiva do casal não for propícia para a procriação, assim, as técnicas de reprodução assistida têm o papel de auxiliar nos problemas de infertilidade, quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes (…)” (2005, p. 217). Neste mesmo sentido, Pessini e Barchifontaine explicam a importância do diagnóstico de infertilidade, já que para eles, “(…) é possível tratar as causas de infertilidade sem precisar da fertilização assistida. Assim, se opta pela reprodução assistida nos casos mais complicados: contagem baixa de espermatozoides, no homem; obstrução das duas trompas e problemas graves de ovulação, na mulher” (2008, p. 398). A reprodução humana assistida poderá dar-se pelos métodos ZIFT e do GIFT. Segundo Diniz, “a ectogênese ou fertilização in vitro concretiza-se pelo método ZIFT (Zibot Intra Fallopian Transfer), que consiste na retirada de óvulo da mulher para fecundá-lo na proveta, com sêmen do marido ou de outro homem, para depois introduzir o embrião no seu útero ou no de outra. Como se vê, difere da inseminação artificial, que se processa mediante o método GIFT (Gametha Intra Fallopian Transfer), referindo-se à fecundação in vivo, ou seja, à inoculação do sêmen na mulher, sem que haja qualquer manipulação externa de óvulo ou de embrião” (2009, p. 543).  Ambos procedimentos podem ser classificados em homólogos – quando envolver material genéticos apenas dos autores do projeto parental – ou heterólogos – quando houver necessidade de utilização de gametas, óvulos ou espermatozóides, de doadores.  No Brasil não há legislação específica a respeito da reprodução humana assistida. Não obstante a lacuna legislativa, o Conselho Federal de Medicina regula o assunto através de Resoluções emanadas deste órgão, as quais possuem caráter deontológico e são destinadas a médicos e clínicas que realizam este tipo de atividade. Antes da Resolução atual, de número 2.121/2015, já estiveram em vigor as Resoluções 1.358/1992, 1.957/2010 e 2.013/2013 – todas tratando da mesma temática. Em seus Considerandos, a Resolução 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina destaca que a infertilidade humana é um problema de saúde com implicações médicas e psicológicas e que é legítimo o anseio de superá-la; que o avanço do conhecimento científico permite solucionar vários casos de problemas de reprodução humana; que o Supremo Tribunal Federal reconhece como entidade familiar as uniões homoafetivas, as quais poderão recorrer às técnicas de RHA para realizarem seu projeto parental; e que há necessidade de harmonizar o uso destas técnicas com os princípios da ética médica. Em sua primeira parte, a Resolução traz princípios gerais, dentre os quais devem ser destacados os seguintes: As técnicas de RHA possuem o papel de auxiliar na resolução de problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação, e poderão ser usadas desde que exista probabilidade de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para o/a paciente ou o possível descendente. A regra geral é que a idade máxima das candidatas à gestação é 50 anos, podendo ser aberta exceção mediante fundamentação técnica e científica pelo médico responsável após os devidos esclarecimentos às pacientes quanto aos riscos envolvidos. O consentimento livre e esclarecido não é exigido apenas nesta situação, mas para todos os pacientes submetidos às técnicas de reprodução assistida, devendo o mesmo ser objeto de formulário especial. A Resolução sob comento fixou alguns limites e proibições para o uso daquelas técnicas, como a proibição da sexagem, ou seja, a aplicação da técnica de Reprodução Assistida para selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, bem como a proibição da fecundação de óvulos com qualquer outra finalidade que não seja a procriação humana. Outro limite imposto pela Resolução é que o número máximo de oócitos e embriões a serem transferidos para a receptora não pode ser superior a quatro. Quanto ao número de embriões a serem transferidos faz as seguintes recomendações: mulheres com até 35 anos, até 2 embriões; mulheres entre 36 e 39 anos, até 3 embriões; mulheres entre 40 e 50 anos, até 4 embriões; nas situações de doação de óvulos e embriões, considera-se a idade da doadora no momento da coleta dos óvulos. Com relação aos possíveis pacientes das técnicas de reprodução assistida, a Resolução determina que o são todas as pessoas capazes que tenham solicitado o procedimento e cuja indicação não se afaste dos limites da atual Resolução. É expressa no sentido de que pares homoafetivos poderão recorrer à RHA, bem como as pessoas solteiras, reservado ao médico o direito de objeção de consciência nestes casos. No caso de união homoafetiva feminina, uma mulher poderá gerar o embrião obtido a partir da utilização dos óvulos da outra. Ressalta, mais uma vez, a necessidade de que os participantes estejam devidamente esclarecidos para que se possa falar em consentimento livre e informado. Com relação à doação de gametas, nunca poderá ter caráter lucrativo ou comercial, como ocorre em outros países. Os doadores de gametas não deverão conhecer a identidade dos receptores e vice-versa, sendo garantido sigilo relativamente a este aspecto, exceto em situações especiais, por motivação médica, ficando a informação adstrita ao meio médico. Médicos e funcionários das clínicas de reprodução assistida não poderão ser doadores de gametas. A escolha do doador de gametas leva em consideração a semelhança fenotípica deste com os autores do projeto parental. Óvulos, espermatozóides e embriões já formados podem ser armazenados em clínicas através da técnica da criopreservação (congelamento). No momento da criopreservação os pacientes devem deixar expresso em documento escrito, qual o destino do material em caso de morte, divórcio ou se estiverem em alguma situação em que não será possível a manifestação do consentimento para sua utilização. Permite-se a reprodução assistida post mortem, ou seja, após a morte do titular do material genético criopreservado, desde que haja consentimento expresso neste sentido dado em vida. Permite-se a gestação de substituição, que só poderá ocorrer se existir um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética ou em caso de união homoafetiva. Em ambos os casos a geratriz não poderá cobrar para gerar o filho de outrem. As doadoras temporárias de útero precisam ser parentes consangüíneas até o quarto grau de um dos envolvidos na concepção do projeto parental, sendo que casos excepcionais deverão ser analisados pelo Conselho Regional de Medicina. Por fim, a Resolução dispõe sobre a possibilidade de diagnóstico genético pré-implantatório de embriões, situação que é o foco de estudo do presente trabalho. Segundo estabelece referida normativa, “1 – As técnicas de RA podem ser utilizadas aplicadas à seleção de embriões submetidos a diagnósticos de alterações genéticas causadoras de doenças – podendo nesses casos serem doados para pesquisa ou descartados. 2 – As técnicas de RA também podem ser utilizadas para tipagem do sistema HLA do embrião, no intuito de selecionar embriões HLA-compatíveis com algum(a) filho(a) do casal já afetado pela doença cujo tratamento efetivo seja o transplante de células-tronco, de acordo com a legislação vigente” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA). Feitas tais considerações iniciais para contextualizar a seleção embrionária e a terapia gênica, passar-se-á ao estudo das mesmas para, ao final, propor uma reflexão crítico-jurídica sobre sua realização no Brasil.       2 Terapia gênica e seleção embrionária – conceituação e efeitos Antes de explicar o que vem a ser terapia gênica e seleção embrionária, é essencial destacar que ambos procedimentos foram possibilitados e potencializados a partir do desenvolvimento do Projeto Genoma Humano (PGH), um dos mais importantes empreendimentos científicos dos séculos XX e XXI em virtude de seu potencial para alterar, com profundidade, as bases da Biologia, por ser uma revolucionária tecnologia de sequenciamento genético baseada em marcadores de DNA que permitem a localização fácil e rápida dos genes. Com isso o genoma humano, que é propriedade inalienável da pessoa e patrimônio comum da humanidade (art. 1º da Declaração Universal sobre o Genoma e Direitos humanos), passou a ser a base de toda pesquisa genética humana. Esse projeto, ao descobrir e catalogar o código genético da espécie humana, efetuando um mapeamento completo do genoma humano, possibilitou e ainda possibilitará a cura de graves enfermidades, explorando as diferenças entre uma célula maligna e uma normal para obter diagnósticos e terapias melhores (SIMPSON apud DINIZ, 2009, p. 440). Os avanços da investigação genética permitem antecipar em menor ou maior medida a probabilidade de que uma pessoa desenvolva determinada enfermidade. O uso que a sociedade pode fazer da referida informação abre muitas portas, as quais, em sua maioria, são positivas, como é a possibilidade de identificação, prevenção e cura de enfermidades hereditárias. Porém, outras são de caráter negativo, com a possível discriminação por motivos genéticos. Conforme destaca Araújo, “a fusão das descobertas atuais sobre o genoma humano ao avanço das técnicas de reprodução assistida abriu novas possibilidades à concretização do pensamento eugênico. O valor preventivo das análises genéticas em torno do processo de reprodução, hoje, é o fator responsável por tal abertura. Aconselhamentos genéticos, diagnósticos em gametas, embriões e fetos e a engenharia genética são as técnicas novas que fizeram ressurgir a admissibilidade do pensamento eugênico, traduzido, como neoeugenia. Tal denominação tem por finalidade enfatizar as diferenças entre o pensamento eugênico atual e o pensamento eugênico do século XX” (2014, p. 105), O termo eugenia, por si só, tem o significado de gerar bem, mas indica, também, a ciência que estuda as melhores condições para a reprodução e o aprimoramento da espécie humana. Criado em 1883 por Francis Galton, o termo eugenia foi definido como o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades das futuras gerações seja física ou mental. Durante toda a história da humanidade, diversos povos eliminaram pessoas que nasciam com deficiência, com má-formação e, também, pessoas doentes. Conforme Mai e Angerami existem duas formas de intervenção desse saber-fazer biotecnocientífico, resultante da junção entre o conhecimento racional da biologia molecular e o saber operacional da engenharia genética,“eugenia negativa, que se ocuparia da prevenção e cura dedoenças e malformações consideradas de origem genética, com ações de caráter restritivo, diretamente sobre o patrimônio genético do indivíduo e que têm sido aceitas sem grandes questionamentos morais, e a eugenia positiva, socialmente mais polêmica, a qual buscaria a melhoria ou a criação de competências humanas como inteligência, memória, criatividade artística, traços do caráter e várias outras características psicofísicas, no sentido de potencializá-las nos diversos contextos do convívio social” (2006). A eugenia negativa, técnica defendida pelo presente trabalho, tem por objetivo não só prevenir o nascimento de pessoa com patologia congênita, mas, também, evitar a transmissão do gene defeituoso, ou seja, de moléstias hereditárias. Já a eugenia positiva pode acabar fomentando preconceitos ao atender caprichos individuais ou selecionar um determinado estereótipo social, defini-lo como melhor do que os demais, e aplicar técnicas para “padronagem” de embriões com essas determinadas características tidas como melhores ou superiores. Neste sentido, Féo explica que “as técnicas de reprodução assistida devem ser utilizadas em prol do ser humano. Selecionar embriões visando afastar transmissão de doença genética ou cromossômica grave, interrompendo a linha de transmissão para as futuras gerações é um grande passo da medicina. A eugenia negativa é benéfica ao homem. A contrário sensu, eugenia positiva deve ser afastada” (2005, p. 256) Os diagnósticos decorrentes das análises genômicas podem ter a simples finalidade de aconselhamento – pessoal ou familiar – ou de procriação, no sentido de avaliar determinadas condições da prole eventual. “Os profissionais aconselhadores devem repassar a informação genética isenta de valores pessoais ou julgamentos que possam direcionar sua compreensão. O reconhecimento da neutralidade moral do aconselhador em face da informação genética confirma o fato de que “o aconselhamento genético não é mais um instrumento de higiene social servindo a ideais eugênicos, mas uma peça educativa fundamental à promoção da saúde pública e dos direitos humanos” (ARAÚJO, 2014, p. 133). Segundo explica Araújo, “o aconselhamento genético com o objetivo de planejamento reprodutivo tem a finalidade de saber sobre a probabilidade de manifestação de doenças no filho pretendido. O ato está associado à decisão reprodutiva do casal que buscou o estudo. Sobre o propósito do aconselhamento, Carlos Maria Romeu Casabona afirma que é um processo de informação sobre as conseqüências e riscos de uma doença que pode ser transmitida hereditariamente com o intuito de evitá-la. A par do resultado do aconselhamento, os indivíduos passarão à tomada de decisão reprodutiva, podendo-se vislumbrar distintas possibilidades” (2014, p. 134). A mesma autora acrescenta que “a medicina preventiva é uma conseqüência direta da medicina preditiva, posto que, primeiro se prediz ou se anuncia o que pode se suceder no futuro de um indivíduo, para que, posteriormente, se possa promover a prevenção, antecipando a preparação de uma resposta ou um tratamento àquilo que se anunciou. A análise de natureza preditiva pode ser instaurada em diferentes grupos, como em pessoas, embriões, mulheres grávidas, nascituros ou em determinado grupo étnico. Podem ser também realizadas em determinados grupos de parentes ou individualmente com vistas a fins de reprodução. Em sede procriativa, é Possível realizar exames genéticos em diferentes estágios, antes da fecundação de gametas, apos a fecundação, estando o embrião em estado de pré-implantação tendo em vista ter sido concebido em laboratório, ou antes do nascimento, diretamente no feto” (ARAÚJO, 2014, p. 132). A presente pesquisa se restringiu aos dois primeiros casos acima mencionados. Neste contexto, a Engenharia Genética constitui um ramo da ciência que utiliza procedimentos técnicos idôneos para a transferência de certas informações genéticas para as células de um organismo. Tais informações advêm de fonte diversa da carga genética da célula onde foram introduzidas e são responsáveis pelas novas características nesta incutidas ou no individuo receptor (ESPINOSA apud DINIZ, 2009, p. 434). Tais técnicas de Engenharia Genética, segundo Diniz, “(…) permitem identificar pessoas portadoras de genes patológicos e retirar genes defeituosos para serem reparados e rejeitados no organismo, possibilitando a correção do mal pela substituição do gene avariado por outro normal, impedindo-se que aquele seja transmitido aos filhos, através da pesquisa, por exemplo, de embriões para detectar doenças antes do nascimento, dando assim origem à terapia gênica ou geneterapia” (2009, p. 435). Assim, conforme elucida Diniz, a terapia gênica ou geneterapia “(…) visa à transferência de informação genética, ou melhor, de genes de um  organismo para outro para curar ou diminuir distúrbios, moléstias genéticas ou não genéticas. Com a terapia gênica utilizam-se vírus, que transportam genes, em lugar de medicamentos para tratamento de doenças. Tal terapia é considerada por muitos cientistas como uma possível solução para corrigir males advindos de moléstias hereditárias ou das provocadas por falhas no DNA” (2009, p. 457).  Essa terapia por transferência de informação genética é, em regra, usada para correção de moléstias hereditárias, mediante a escolha de um vírus que, “aleijado” pelo geneticista, ataque certas células do corpo humano, para que as invada sem sua carga viral, não podendo atingir o organismo. Em seguida inserem-se genes nesse vírus, que, assim modificado, será injetado no organismo do paciente, que não receberá a carga viral, mas os novos genes, os quais, então, funcionarão como se fizessem parte do material genético do paciente, corrigindo sua enfermidade. Tal terapêutica atingirá determinada célula do corpo humano encarregada da produção da proteína ou do hormônio ausente, modificando sua estrutura genética, para que possa cumprir adequadamente a função a que está destinada e que por uma falha na informação hereditária não pode desenvolver (MARTINEZ apud DINIZ, 2009, p. 461). Contudo, é importante ressaltar que a terapia gênica pode ocorrer tanto em células germinativas, na fase pré-embrionária, o que é oportunizado pelas técnicas de reprodução assistida, quanto nas células somáticas humanas, nas demais etapas do desenvolvimento humano. A terapia genética de células germinativas (TGCG) realiza-se na fase pré-implantatória, quando o zigoto apresenta algumas células, ou antes da fertilização, atuando sobre o espermatozóide, o óvulo ou o pré-embrião (célula totipotente), que ainda não alcançou uma fase de desenvolvimento celular diferenciado, com o objetivo de corrigir a anomalia genética que neles esteja configurada, mudando em definitivo o genoma (ESPINOSA apud DINIZ, 2009, p. 462). A terapia gênica de células somáticas humanas (TGCS) do paciente em qualquer etapa de seu desenvolvimento, menos na fase pré-embrionária, é utilizada para curá-lo de uma enfermidade, sendo admissível ética e juridicamente, desde que se tomem precauções para não prejudicar a sua integridade física ou aumentar seu sofrimento, piorando suas condições de vida, ou, ainda, para não afetar a sua descendência. Essa terapia opera-se por meio de duas técnicas: a ex vivo, mediante a retirada de células do paciente, por exemplo, as da medula óssea, para efetivação de uma cultura, usando-se vetores virais para nelas inserir o gene previamente isolado, levando se depois, por infusão, tais células tratadas de volta ao paciente; a in vivo, em que o gene “engenheirado” é levado diretamente ao organismo do paciente, pelo emprego de vetores, mas dispensando-se a retirada de células e sua subsequente reintrodução no paciente (AZEVEDO apud DINIZ, 2009, p. 458). Além da terapia gênica de células germinativas, no contexto da reprodução assistida pode ocorrer, ainda, a seleção embrionária ou seleção de embriões que serão implantados no útero da geratriz. Féo explica que a seleção embrionária ou seleção de embriões “(…) é realizada através do Diagnóstico Pré-implantatório (DPI), que permite detectar alterações genéticas ou cromossômicas em pré-embriões fecundados in vitro, antes da sua transferência ao útero materno. Através desta técnica, doenças hereditárias graves ligadas ou não ao sexo, assim como alterações cromossômicas (aneuploidias) podem ser afastadas” (2005, p. 250). De uma forma mais didática, pode-se dizer que para este procedimento é necessário o processo de fertilização in vitro para a obtenção dos ovócitos necessários à fertilização. Para tanto, a mulher se submete a uma indução hormonal para estimulação folicular e os ovócitos são capturados mediante punção transvaginal guiada por ecografia. Estes ovócitos serão inseminados com o fim de se obter embriões. Os embriões originados desta reprodução assistida serão biopsados. Na biópsia, são retiradas, através de um micro-manipulador, uma ou duas células de cada um dos embriões originados. Realizada a biópsia, os embriões livres de alterações genéticas e cromossômicas, considerados “normais”, estarão prontos para a transferência ao útero da mulher (FÉO, 2005, p. 250-251).  3 Análise crítico-reflexiva da seleção embrionária e da terapia gênica sob a perspectiva do direito brasileiro Demonstradas as possibilidades que as técnicas de reprodução assistida possibilitam no sentido de potencialização da qualidade genética dos indivíduos que dela advirão através do diagnóstico pré-implantatório, da terapia gênica e da seleção embrionária, importante refletir juridicamente sobre as mesmas, principalmente num terreno em que o Legislativo ainda não se manifestou. Ainda que tais procedimentos potencializem o direito à saúde, deve-se partir do pressuposto de que nem tudo o que é possível é aceitável sob o ponto de vista ético e/ou jurídico. Para tanto, partir-se-á dos princípios que, por nortearem a Bioética, norteiam, também, o Biodireito e, portanto, devem influenciar a reflexão jurídica sobre a temática. 3.1 Dos princípios fundamentais que regem a Bioética e o Biodireito Conforme dito anteriormente, no Brasil não há legislação que regulamente a reprodução assistida, bem como a terapia gênica e a seleção embrionária, o que não quer dizer que tudo deve ser permitido nesta seara. Os princípios básicos que regem a Bioética devem, consequentemente, nortear o Biodireito, contexto em que tais procedimentos estão inseridos. De forma bem resumida, a Bioética iniciou-se por volta dos anos 60, como dimensão moral da Medicina, ampliando seus conceitos a todas as áreas correlacionadas com os avanços científico-biológicos. Em 1971, Van Renssealer Potter, médico oncologista, propôs a primeira formulação da Bioética sob a argumentação de que a humanidade necessitava desenvolver um saber ético[1] frente às inovações tecnológicas para não correr riscos futuros. Por tratar do estudo da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde, a Bioética fez surgir princípios e regras jurídicas que deveriam ser observados pelos cientistas sendo a base para a prática da Bioética moderna. Esta observação por parte dos cientistas de princípios e regras jurídicas, por conseguinte, levou a necessidade de estudo do Biodireito. Segundo Magno e Guerra, “(…) o estudo da bioética não se restringe à área médica, abrange também psicologia, biologia, antropologia, sociologia, ecologia, teologia, filosofia e, in casu, Direito. Não bastasse essa interdisciplinaridade, os princípios éticos esgotam sua operatividade no plano interno da consciência pessoal, o que acarreta na iminente necessidade de um instrumento de controle social e institucional. Um novo âmbito do dever-ser em que se regulem as relações inter-subjetivas à luz dos princípios da Bioética, qual seja o biodireito” (2005, p. 5). Assim, portanto, se fez necessário o surgimento do Biodireito, norteando questões, repensando constantemente as práticas científicas de cada caso concreto. Os princípios orientadores da Bioética e, portanto, do Biodireito tiveram sua formulação basilar com a publicação do Relatório de Belmont, em 1978. O Princípio da Beneficência traduz a ideia de fazer o bem, maximizando os benefícios e minimizando danos e prejuízos. Seu conteúdo deve ser conjugado ao do Princípio da Não-Maleficência, segundo o qual não se deve cometer o mal intencionalmente. Nesse diapasão, a doutrina imputa ao médico a total atenção e cuidado na utilização das práticas biomédicas em seres humanos, buscando sempre o bem-estar dos mesmos. O Princípio da Autonomia incorporou duas convicções éticas: que os indivíduos devem ser tratados como seres autônomos e que devem as pessoas de autonomia diminuída serem protegidas. Pessoa autônoma é aquela capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e de agir conforme suas próprias decisões. Segundo Magno e Guerra, “o princípio da autonomia significa, no âmbito médico, necessidade de manter o paciente bem informado, respeitando o consentimento da pessoa. Veio para se contrapor ao “paternalismo médico”, numa tradição de que o médico era o “grande pai” e o enfermo um incapaz, carente de zelo extremo, amor e carinho. Este corolário “requer que o profissional da saúde respeite a vontade do paciente, ou de seu representante, levando em conta, em certa medida, seus valores morais e crenças religiosas”” (2005, p. 9). Portanto, tal princípio considera o paciente capaz de autogovernar-se, ou seja, de fazer suas opções e agir sob a orientação dessas deliberações tomadas, devendo sua vontade ser respeitada. O Princípio da Justiça tem como ideologia a distribuição equitativa quer dos ônus, quer dos benefícios decorrentes dos serviços de saúde. Assim, garante a relação equânime, justa e universal dos benefícios dos serviços de saúde, significando equidade no tratamento, naquilo que concerne à organização e recursos á saúde. Segundo Magno e Guerra “(…) deve haver uma distribuição justa e equitativa dos recursos técnicos e financeiros da atividade cientifica e dos serviços de saúde; mas ao que se deve somar uma necessária retidão na difusão de benesses e riscos, dentro das praticas cientificas, sob justificativa de que “os iguais deverão ser tratados igualmente”. Decorre do direito à vida mesmo, inerente a toda pessoa humana, no sentido de a sociedade lhe assegurar todos os recursos médico-científicos ou tecnológicos disponíveis no âmbito do conhecimento, a fim de lhe preservar ou resguardar” (2005, p. 10). 3.2 Limites e possibilidades do uso da terapia gênica – há limites para o direito à saúde? Ligada à tutela da pessoa humana, a saúde no Brasil apenas começou a receber tratamento diferenciado com a Constituição Federal de 1988. Surgindo uma visão mais democrática da saúde. A preocupação passou a não ser apenas com a ausência de doenças, e sim, uma preocupação com o bem-estar físico, mental e social, com o intuito de maior efetivação da garantia da Dignidade da Pessoa Humana. A saúde também é protegida como parte da seguridade social. A Constituição Federal lhe atribui um acentuado viés prestacional: “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Segundo Teixeira “(…) saúde é um direito individual, de todo cidadão, que objetiva o completo bem-estar físico e mental, em que seja aplicado, ao mesmo tempo, um modelo de promoção e prevenção da saúde, englobando os avanços tecnológicos da engenharia genética, dando condições de igualdade às pessoas no intuito de elevar a expectativa e também a qualidade de vida” (2010, p. 23). Conforme esclarece a autora, o acesso aos avanços da Engenharia Genética compõe o direito à saúde na atualidade. O século em curso é considerado o Século da Biotecnologia. Segundo Pessini e Barchifontaine, “(…) está em ascensão a chamada medicina genômica ou preditiva, estreitamente ligada aos progressos e pesquisas do genoma, e que, mais do intervir a partir de sintomas de doenças já instaladas no corpo, vai atuar na raiz das predisposições genéticas, será possível alterar o estilo de vida da pessoa para evitar o aparecimento de uma determinada doença, por exemplo” (2008, p. 384). Contudo, ainda que a Resolução 2121/2015 coloque à serviço da população o diagnóstico pré-implantatório, a terapia gênica e a seleção embrionária, há que se ter muita cautela na realização de tais procedimentos.      Como já exposto no segundo capítulo deste trabalho, diversas são as formas de terapia genética humana que se distinguem entre a transferência de ácidos nucleicos e células germinativas ou de células adultas, já diferenciadas do organismo humano, tratando-se de terapia genética somática.      Segundo Baracho “a terapia com modificações de células germinativas com alterações das células reprodutoras são transferidas as células germinativas, que são aquelas em cuja função no organismo é perpetuar a espécie como óvulo e o espermatozoide e seus precursores. Uma terapia genética implica a reprogramação das células germinativas, alterando o genoma dos descendentes da pessoa que está submetida à essa terapia. A terapia genética somática, em humanos, transfere o ácido nucleico para as células somáticas” (2005, p. 43). Portanto, a terapia somática afeta apenas a pessoa que está sendo tratada, já a terapia germinal, implicam mudanças que podem passar às gerações futuras, por isso, ocorre uma maior resistência da doutrina em seu uso, além de existir proibição legal, conforme analisaremos a seguir. O uso da terapia gênica em células somáticas tem como intuito atingir tais células, modificando sua estrutura genética, fazendo com que as mesmas exerçam seu adequado funcionamento. Nesse intuito, a terapia gênica em células somáticas humanas é permitida ética e juridicamente para a cura de enfermidades, desde que não seja usada na fase pré-embrionária e não prejudique a integridade física ou piore as condições de vida da pessoa a ela submetida e nem afete a sua descendência. Segundo Pessini e Barchifontaine, “(…) as intervenções genéticas em células somáticas, e que portanto não são transmitidas aos descendentes, representam a medicina do futuro. Por exemplo, em vez de administrar insulina a uma pessoa diabética, não seria muito melhor se seu corpo voltasse a produzi-la? A expectativa é que isso seja possível no futuro, quer pela técnica de terapia celular com células-tronco (promovendo a substituição de tecidos defeituosos), quer pela terapia gênica (a correção ou substituição de genes defeituosos” (2008). Por outro lado, a terapia gênica em células germinativas levanta um maior questionamento por parte da doutrina, possuindo, inclusive, proibição legal. Essa resistência doutrinária e legal decorre do fato de tal técnica poder afetar o embrião ou aquele que advier dessas células, bem como sua descendência, pois haverá risco de se criar nova anomalia hereditária. Nesse sentido Diniz explicita que “(…) terapia gênica em células germinativas não tem sido recomendada pela Associação Médica Mundial, nem aceita pela legislação de alguns países, mesmo porque a intervenção técnico-genética sobre o óvulo fecundado constitui alteração em sua identidade e eliminação radical da pessoa humana em potencial” (2009, p. 463). Em conformidade com os seguintes dispositivos legais: Lei n° 11.105/2005, art. 6º, II, III, e Decreto nº 5.591/2005, art. 69, X e XI, no Brasil somente é lícita a terapia gênica para corrigir defeitos físicos graves, vedando-se a manipulação genética de células germinais humanas, a intervenção de material genético humano in vivo e o manejo in vitro de DNA/RNA natural ou recombinante, salvo para fins terapêuticos. Nesse diapasão, temos as lições de Pessini e Barchifontaine de que “(…) até o momento, todos os esforços na terapia genética em seres humanos se concentram nas células somáticas. O grande receio é que, se a terapia genética somática em seres humanos for aceita pela medicina, haverá fortes motivos para estender a terapia genética também às células germinativas. Embora as terapias de células germinativas e de zigotos sejam muito promissoras para o futuro, as incertezas técnicas, o abuso da tecnologia do DNA para fins não-terapêuticos levantam serias questões éticas acerca de nossa relação com a posteridade” (2008, p. 361). Em todas as áreas, é de suma importância discutir sua utilização e respectivas limitações da mesma. Segundo Rocha, “(…) dependendo da forma como sejam utilizadas as informações advindas do estudo do genoma, os resultados podem ser extremamente benéficos ou, por outro lado, se mal utilizados podem gerar sérios danos à sociedade. É essencial e urgente definir limites, pois o avanço científico já quase atinge proporções geométricas. Assim é necessária uma sólida reflexão ética, jurídica e científica, que indique caminhos para a garantia da proteção da saúde e da integridade física e moral dos seres humanos” (2005, p. 309). Fácil perceber que os avanços das tecnologias biomédicas, podem ser usadas para o bem ou para o mal, nesse sentido, encontra-se a importância da existência de comitês de ética para que se estabeleçam limites para o uso de tais tecnologias, de forma a evitar lesões a um preceito protegido constitucionalmente: a dignidade da pessoa humana. Clara se torna a necessidade – perante o grande passo de acesso ao genoma humano – de se definir os limites aceitáveis de interferência no mesmo, até aonde se pode ir, os limites aceitáveis para o desenvolvimento da ciência e da utilização dos resultados de pesquisas em seres humanos. Cabendo ao Direito intervir, proibindo práticas nocivas aos seres humanos, e zelar pela boa utilização das técnicas de pesquisa disponíveis. O uso e o acesso ao Genoma Humano envolvem diversas questões de natureza ética, que não podem ficar apenas restritas à análise de profissionais da área genética, mas também do ponto de vista econômico, jurídico, político, bem como nos diversos segmentos existentes na sociedade. A terapia gênica em embriões com o intuito de excluir doenças, em tese, é excepcional. Contudo, há um risco muito grande de escolha de um padrão genético e fenotípico a ser seguido. Além disso, a interferência sobre o padrão genético da prole é um direito dos pais? Atualmente, percebe-se que a saúde está muito atrelada à ideia de autonomia do paciente, manifestada através de seu consentimento livre e esclarecido, autonomia esta que o embrião ainda não possui. Assim, a pessoa tem o direito a decidir sobre a própria saúde e a se submeter à terapia gênica caso seja indicada para seu caso, o que é muito diferente de ter direito a optar pela melhora genética de seus descendentes. Enquanto não houver regras claras e severas sobre a utilização de terapia em embriões em estágio pré-implantatório o que se verá é uma restrição ao direito à saúde proporcionada pela Engenharia Genética.        Para uma maior efetivação do direito à saúde, é preciso pensar o Direito no mesmo patamar de desenvolvimento das tecnologias na área médica. A saúde não pode ser limitada frente aos grandes avanços tecnológicos na área médica por causa da inércia do Direito. O presente estudo foi realizado com o intuito de divulgar esta problemática e forçar o posicionamento do Direito sobre a mesma, já que o Direito à saúde pode ser potencializado, em benefício de todos e das futuras gerações. No momento, conta-se com o bom senso daqueles responsáveis pela realização das técnicas de reprodução assistida, que possuem um enorme poder nas mãos… Conclusão O direito de não nascer com deficiência é idealizado por muitos, mas é condenável por um grande grupo social, e fere diretamente os princípios defendidos pelo Direito. Neste contexto a eugenia visa favorecer ou desfavorecer a transmissão de um determinado gene. O perigo, portanto, encontra-se no eugenismo visto como movimento sociopolítico e ideológico desvirtuado. O progresso científico que permite a detecção, prevenção e tratamentos de numerosas enfermidades genéticas, deve ser interpretado pelo Direito como forma de efetiva proteção ao direito fundamental à saúde, frente ao elevado patamar de desenvolvimento que se encontram as técnicas de engenharia genética. No uso de tais técnicas devem ser observados limites ético-jurídicos para a sua utilização em seres humanos. Deve-se buscar os benefícios que tais técnicas proporcionam e, ao mesmo tempo, proteger a integridade física e moral da pessoa a ela submetida, visando sempre a sua saúde, bem como a das futuras gerações. A seleção embrionária deve ser tratada de forma cautelosa, buscando sempre evitar o seu uso nocivo, proporcionando à medicina o cumprimento de seu papel, qual seja, ofertar ao ser humano uma melhor qualidade de vida. Quando fala-se em qualidade de vida, necessariamente, há que se pensar na vida das futuras gerações. A criação e reprodução de um padrão genético desejável poderia acarretar danos irreversíveis ao curso da humanidade. Frente à possibilidade da Neoeugenia, cabe ao Estado intervir, regulamentando, primeiramente, a realização da reprodução assistida e seus limites, já que estas são a porta de entrara da a Engenharia Genética realizada na fase embrionária que antecede o desenvolvimento do embrião no útero da geratriz.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-153/resolucao-2-121-2015-do-conselho-federal-de-medicina-uma-reflexao-sobre-a-selecao-embrionaria-e-a-terapia-genica-sob-a-perspetiva-do-direito-brasileiro/
Reprodução humana assistida como direito fundamental: a judicialização como consequência da ausência de lei regulamentadora
O presente trabalho demonstra que ainda que não esteja expresso como direito fundamental, o direito à saúde reprodutiva está implicitamente abarcado no direito fundamental à saúde e, assim como este, deve ser respeitado e garantido pelo Estado. Porém, devido à ausência de lei regulamentadora, tal direito ficou a mercê do fenômeno da judicialização, que tomou conta dos tribunais brasileiros nos últimos tempos. [1]
Biodireito
Introdução A sociedade brasileira enfrenta várias questões polêmicas que se tornam ainda mais sensíveis pelo fato de não possuírem regulamentação legislativa. Este trabalho tem como objeto um destes temas, a reprodução humana assistida, prevista no país apenas pela Resolução 2121/2015 do Conselho Federal de Medicina, que possui caráter deontológico e é direcionada aos médicos e clínicas que realizam referido procedimento. Sabe-se que o direito ao planejamento familiar é garantido tanto na Constituição Federal de 1988 quanto na Lei 9.263/96, contudo, a obrigatoriedade de oferta da reprodução assistida pelo Estado, gratuitamente, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), gera discussões pelo fato de a mesma não estar expressa no texto constitucional e por ser algo que demandaria grande quantidade de recursos públicos para a sua concretização. Devido às várias mudanças que ocorreram nos últimos tempos em relação ao papel das mulheres na sociedade, muitas acabaram por retardar o sonho da maternidade e, quando se viram preparadas para a concretização deste projeto, acabaram se deparando com problemas de cunho reprodutivo que as impediram de gerar um filho. Somada a esta perspectiva cultural, as mulheres enfrentam doenças que não eram muito frequentes no passado e que hoje aumentaram significativamente, como a endometriose[2], por exemplo. Esta realidade não está restrita às mulheres. Estima-se que no Brasil 30% dos casos de infertilidade se devem ao fator masculino. Isto se deve a fatores intrínsecos (produção de hormônios, de espermatozóides e de vários tipos de câncer, por exemplo) e a fatores extrínsecos (exposição à radiação, uso de drogas e anabolizantes, por exemplo)[3]. Assim, no momento em que tais pessoas descobrem a impossibilidade ou dificuldade de gerar filhos pela via tradicional – através de relações sexuais –, resta às mesmas buscar a reprodução assistida. Contudo, referidos tratamentos são caros e não estão ao alcance de grande parte da população. Consequentemente, estas pessoas de parcos recursos materiais recorrerem ao SUS para que seu problema reprodutivo seja remediado e a resposta que lhes é dada normalmente não é boa: poucos hospitais públicos oferecem reprodução assistida e, dos que oferecem, alguns estão com as inscrições suspensas e outros possuem filas de espera enormes, com estimativa de que o paciente precise aguardar em torno de 4 a 5 anos para fertilização in vitro e de 2 a 5 anos para a realização de inseminação intra-uterina, conforme dados fornecidos pelo Hospital Regional da Asa Sul em Brasília (HIMB). Sendo assim, alguns casais que já estão na fila de espera ou que não conseguiram realizar sua inscrição em programas do tipo, vêem suas esperanças se esvaírem com o passar do tempo e não possuem outra alternativa senão pleitear que o Judiciário obrigue o Estado a oferecer o tratamento, ainda que seja através de custeio de tratamento particular, se for o caso. De um lado tem-se a alegação de que o direito à reprodução assistida seria considerado fundamental e, de outro, o argumento da “reserva do possível” utilizado pelo Estado no sentido de que não há recursos públicos para garantir este procedimento de forma gratuita. É neste cenário que o presente estudo se situa, tendo se desenvolvido através de uma pesquisa qualitativa, essencialmente bibliográfica, documental e interdisciplinar, a partir do diálogo entre Biodireito e Direito Constitucional. 1 Direito fundamental à reprodução assistida? Nos dias atuais, observa-se corriqueiramente as expressões direitos humanos e direitos fundamentais sendo confundidas como se fossem sinônimas, bem como que os mesmos devem ser garantidos a todos, sem qualquer restrição ou limitação. Segundo Sarlet, há uma grande diferença entre direitos fundamentais e direitos humanos: “a pertinência da diferenciação conceitual entre direitos humanos e fundamentais se fundamenta no sentido de que os direitos humanos, antes de serem reconhecidos e positivados nas Constituições (quando então se converteram em direito positivado e assumiram a condição de direitos fundamentais), integravam apenas uma espécie de moral jurídica universal, de tal sorte que os direitos humanos referem-se ao ser humano como tal (pelo simples fato de ser pessoa humana) ao passo que os direitos fundamentais (positivados nas Constituições) concernem às pessoas como membros de um ente público concreto” (2015).  Diante disso, analisar-se-á se os direitos à saúde e à reprodução humana assistida podem ser considerados direitos fundamentais. Contudo, antes de adentrar nesta seara, faz-se mister um breve panorama do surgimento das gerações de direitos fundamentais. Os direitos fundamentais tem sua origem em teorias históricas e filosóficas que buscavam a proteção das liberdades dos indivíduos. Com a positivação dos direitos humanos no cenário internacional, estes começaram a ser validados pelos Estados internamente, gerando a coincidência entre alguns direitos humanos e direitos fundamentais. Os direitos fundamentais foram divididos em direitos de primeira, segunda, terceira e quarta geração, porém, com o aumento das pesquisas científicas “e com o fenômeno da globalização, alguns doutrinadores e estudiosos acreditam que poderá ocorrer o surgimento de novas gerações como o de quinta, sexta e sétima geração” (PINHEIRO NETO, 2012, p. 49). Os direitos de primeira geração são aqueles ligados à liberdade do indivíduo, onde não deve haver a intervenção do Estado. Ou seja, são os direitos civis e políticos, “tem por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributo da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado” (BONAVIDES, 2014, p. 578). Esta geração de direitos foi uma reação aos ditames do poder absolutista e, fez com que surgissem questionamentos ao limite do poder estatal. Tais direitos só se aperfeiçoaram a partir das primeiras Declarações de Direitos, em meados do século XVIII. Os direitos de primeira geração são aqueles que apresentam como característica “à resistência e oposição ao Estado” (SARLET, 2003, p. 126). Ou seja: “Representaram historicamente a positivação da superação do absolutismo através do estabelecimento do estado liberal de direito, que se instituiu em função e para preservar direitos do indivíduo face ao Estado” (SARLET, 2003, p. 126). São considerados direitos que valorizavam o homem individual, primeiramente. Com a positivação desses direitos, ocorreu o surgimento de um sistema em que a economia de mercado livre acabou por criar imensa desigualdade social entre os indivíduos, já que o Estado somente representava os interesses dos mais abastados, não se preocupando em salvaguardar os mais fracos daquela sociedade. Diante desse cenário surgiram reivindicações sociais, que acabaram por servir de base para a segunda geração de direitos. Estes direitos nasceram abraçados ao Princípio da Igualdade e, como ocorreu com os direitos fundamentais de primeira geração, sofreram especulações, mas acabaram sendo confirmados em diversas Constituições, principalmente no período pós-guerra. É certo que sua eficácia foi tida como duvidosa, já que estes dependem diretamente do aparato estatal para que possam ser cumpridos na vida do indivíduo e, muitas vezes, essa prestação esbarra na “carência ou limitação essencial de meios e recursos” (BONAVIDES, 2014, p. 579).  Os direitos de segunda geração englobam os direitos sociais, culturais e econômicos. Neste caso, é imprescindível a intervenção do Estado para que as desigualdades entre os indivíduos, possam ser reduzidas. Surge, então, a ideia da igualdade material: “o estado se obriga, mediante retificação na ordem social, a remover as injustiças encontradas na sociedade” (SARLET, 2003, p. 129). Diante de um mundo dividido entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, surgiu a necessidade da busca por uma terceira geração de direitos, geração esta assentada na fraternidade e não somente naqueles direitos que protegiam o indivíduo e a coletividade. Tais direitos se fortaleceram no final do Século XX e possuem a finalidade única de proteger o ser humano, afirmando assim uma verdadeira evolução na consumação dos direitos fundamentais, já que estes surgiram de reflexões relacionadas “ao desenvolvimento, a paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade” (BONAVIDES, 2014, p. 584). Em resumo, entende-se que “os direitos de terceira geração dizem respeito à coletividade, aos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído” (BOBBIO apud PINHEIRO NETO, 2012, p. 47). Há que se destacar que o direito ao desenvolvimento do Estado é considerado por alguns como direito de terceira geração (ETIENE apud BONAVIDES, 2014, p. 584). O neoliberalismo e a crescente globalização com sua política econômica de poder e dominação, que enfraquece a soberania e doutrina a despolitização da sociedade, já era uma realidade e, diante disso, surge a quarta geração de direitos. Segundo Bonavides: “São direitos da quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles dependendo a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, (…).”Para ele, “os direitos de quarta geração não somente culminam a objetividade dos direitos das duas gerações antecedentes como absorvem- sem, todavia, removê-la -a subjetividade dos direitos individuais, a saber, os de primeira geração” (2014, p. 586). Com a universalidade dos direitos fundamentais estes passaram a afigurar no mais alto degrau de juridicidade, pois é através da universalidade de direitos, que todos os outros direitos são fortalecidos e, com seu fortalecimento, consequentemente. ocorrerá a sua efetivação e positivação através das diversas Convenções e Constituições dos Estados. 1.1                Direito à saúde como direito fundamental Conforme definição apresentada anteriormente, o direito à saúde pode ser considerado como um direito fundamental, já que se encontra positivado na Constituição Federal. Contudo, antes disso, em 1946, o Preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde já previa que: “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social”. Ademais, desde 1948 o Brasil assinou na ONU a Declaração Universal dos Direitos do Homem que prevê, em seu art. 25, que: “Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e a sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto a alimentação, ao vestuário, ao alojamento, a assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários; e tem direito a segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade”. Além disso, em 1969 aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos que em seu art. 4° expressa que “toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral”. Com isso, pode-se observar que o Brasil se ligou ao constitucionalismo democrático e social que se deu no Pós-Guerra, porém tal positivação de direitos só se deu efetivamente com a promulgação da Constituição de 1988. “Antes de 1988, a proteção do direito à saúde ficava restrita a algumas normas esparsas, tais como a garantia de “socorros públicos” (Constituição de 1824, art. 179, XXXI) ou a garantia de inviolabilidade do direito à subsistência (Constituição de 1934, art. 113, caput). Em geral, contudo, a tutela (constitucional) da saúde se dava de modo indireto, no âmbito tanto das normas de definição de competências entre os entes da Federação, em termos legislativos e executivos (Constituição de 1934, art. 5º, XIX, “c”, e art. 10, II; Constituição de 1937, art. 16, XXVII, e art. 18, “c” e “e”; Constituição de 1946, art. 5º, XV, “b” e art. 6º; Constituição de 1967, art. 8º, XIV e XVII, “c”, e art. 8º, § 2º, depois transformado em parágrafo único pela Emenda Constitucional nº 01/1969), quanto das normas sobre a proteção à saúde do trabalhador e das disposições versando sobre a garantia de assistência social (Constituição de 1934, art. 121, § 1º, “h”, e art. 138; Constituição de 1937, art. 127 e art. 137, item 1; Constituição de 1946, art. 157, XIV; Constituição de 1967, art. 165, IX e XV)” (SARLET; FIGUEIREDO, 2008). A saúde provida pelo Estado até meados de 1970 tinha a sua operabilidade questionada, pois era ligada a Previdência Social e “o fato de prestar saúde àqueles que efetivamente contribuíam para a previdência causava severo incômodo, sobretudo em um pais desigual e com relevantes índices de desemprego como o Brasil” (SABINO, 2016, p. 153). Sendo assim, a partir da: “(…) redemocratização, intensificou-se o debate nacional sobre a universalização dos serviços públicos de saúde e com a atuação do movimento sanitarista, durante a Assembléia Constituinte, deu-se a criação do SUS. A Constituição estabeleceu e passou a prever em seu artigo 196 que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, além de instituir o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação” (BARROSO, 2007, p. 98). De fato, a Constituição de 1988 foi audaciosa, pois além de dizer que saúde é um direito de todos, garantiu o mesmo por meio do poder estatal, com o intuito de promover o acesso igualitário e universal aos tratamentos de saúde. Diz-se que foi audaciosa, pois em muitos países não se observa tal direito como garantia constitucional. Em muitos destes, o acesso da população a alguns serviços de saúde são limitados e só garantidos por meio de algum tipo de pagamento (Tailândia e EUA, por exemplo). Desta maneira, a partir de 1988, qualquer indivíduo, independente de classe social, cor, sexo ou se havia contribuído para a Previdência ou qualquer outro órgão estatal, passou a ter acesso aos serviços de saúde e qualquer tratamento disponibilizado pelo Estado, garantia inscrita no artigo 194, I e II da CF/88, que estabeleceu a universalidade e a uniformidade e equivalência dos serviços e ações à toda população. A partir do momento em que a saúde foi garantida no texto constitucional, tornou-se necessário que o legislador constituinte determinasse diretrizes e meios para que a mesma fosse efetivamente implementada e, nos artigos 198 e 200 do referido texto constitucional, foi definido o instrumento que teria a responsabilidade de executar as políticas de saúde pública no Brasil, denominado Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS é regido por uma lei própria, a Lei 8080/90 que, além de regê-lo, confirma a universalidade das ações e serviços de saúde. Tal direito ainda se confirma com a leitura do artigo 7° da Lei 8080/90 no sentido de que as ações e os serviços de saúde devem ser universais e em todos os níveis, devendo ser prestados tanto pela rede pública quanto pela rede privada conveniada ao Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo Sarlet, “Por mais estranho que possa parecer, muitas pessoas ainda questionam a razão pela qual um direito à saúde (como de resto boa parte dos direitos sociais) encontra-se previsto na Constituição. Da mesma forma, há quem questione até mesmo o fato de advogados, promotores, defensores públicos e juízes estarem a se ocupar com essa temática, que por certo, a prevalecer esse ponto de vista, deveria ser da competência dos médicos, governos, dos hospitais ou das empresas de planos de saúde!” (2007). Tal indagação é respondida através da observação de que a Constituição de 1988 foi a primeira a consagrar o direito à saúde como um direito fundamental da pessoa humana e não só este, mas, também, o direito à educação, à alimentação, à proteção à maternidade e à infância, entre outros. Krell salienta que os direitos sociais, normalmente chamados de segunda geração (ou dimensão), são direitos de prestações normativas e materiais do Estado para realizar o princípio elementar da igualdade entre os diferentes membros da sociedade, revelando, ao mesmo tempo, “uma transição das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas” (2009, p. 109). Ao mesmo tempo em que a Constituição Federal de 1988 reconhece o direito à saúde como direito fundamental, “é necessário referir, em primeiro lugar, que as normas que o garantem têm aplicação imediata, na forma do § 1º do art. 5º do próprio texto constitucional” (SARLET apud LIMA, 2006). Além do que, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, elencado em seu artigo 1°, está diretamente ligado ao direito à saúde: o princípio da Dignidade da Pessoa Humana.  A propósito, Clève (apud PINHEIRO NETO, 2012, p. 69) defende a supremacia da dignidade da pessoa humana sobre o Estado, pois este seria uma realidade instrumental, composta por órgãos constitucionais, cujo objetivo é a plena realização dos direitos da pessoa humana. Neste sentido, Sarlet destaca que “uma das funções exercidas pelo princípio da dignidade da pessoa humana, é o fato de ser, simultaneamente, elemento que confere unidade de sentido e legitimidade a uma determinada ordem constitucional,(…). (…), a Constituição , a despeito de seu caráter compromissário, confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais, que , por sua vez, repousa na dignidade da pessoa humana, isto é, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado(…)” (2012, p. 91). Sarlet acrescenta que, “Em suma, o que se pretende sustentar de modo mais enfático é que a dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental, exige e pressupõe reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferirmos), (…). Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade (…) (2012, p. 101-102). Por fim, Bontempo completa: “(…) são autênticos os direitos fundamentais, dotados de eficácia e plenamente exigíveis judicialmente (…). Partindo do pressuposto, portanto, que os direitos sociais são direitos fundamentais, submetem-se eles à principiologia e lógicas próprias dessa categoria de direitos. Vale dizer: devem ser interpretados de modo a garantir a dignidade da pessoa humana; seus efeitos devem ser maximizados ou otimizados, nos termos do principio da aplicabilidade imediata e são intangíveis (…)” (2005, p. 192). Dessa forma, vê-se que o Direito à saúde não é simplesmente um direito garantido na CF/88 em seus artigos finais, mas um direito que pode ser visto no decorrer de todo o texto constitucional, o que acaba por calar qualquer pretensão ou tentativa de que seja tolhido do indivíduo, uma vez estar diretamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana. 1.2. Direito à reprodução assistida como direito fundamental Em 1978 nasceu Louise Brown, o primeiro bebê gerado por fertilização in vitro no mundo (FIV). A partir daí, começaram as técnicas de Reprodução Humana Assistida (RHA) se desenvolverem e virarem uma realidade. O primeiro bebê de proveta do Brasil nasceu em 1984 (LEITE; HENRIQUES, 2014, p. 31). Hoje, em 2016, a RHA ainda não é muito familiar à maioria da população, causando estranheza e até mesmo preconceito, já que existem grupos que são contra tais técnicas por acreditarem que somente os filhos gerados de maneira convencional seria o correto, segundo suas convicções religiosas. Deixando de lado julgamentos religiosos contra a RHA, passar-se-á à análise sobre se o acesso à mesma pode ser considerado um direito fundamental. Tal investigação passará, obrigatoriamente, pela análise de se o direito à procriação também seria um direito fundamental. Primeiramente, importa ressaltar que a Constituição Federal prevê que “fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício deste direito” (art. 226, §7o). Regulamentando este dispositivo constitucional, a Lei de Planejamento Familiar (Lei 9263/96) considera o mesmo parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde (art. 3o.). Para tanto, garante um conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal (art. 2o). Frise-se que o parágrafo único do art. 3o. prevê expressamente que “As instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde, em todos os seus níveis, na prestação das ações previstas no caput, obrigam-se a garantir, em toda a sua rede de serviços, no que respeita a atenção à mulher, ao homem ou ao casal, programa de atenção integral à saúde, em todos os seus ciclos vitais, que inclua, como atividades básicas, entre outras: I – a assistência à concepção e contracepção; II – o atendimento pré-natal; III – a assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato; IV – o controle das doenças sexualmente transmissíveis; V – o controle e a prevenção dos cânceres cérvico-uterino, de mama, de próstata e de pênis”.  Nota-se, portanto, que a Lei de Planejamento Familiar visa à saúde reprodutiva de todo indivíduo e garante que para o exercício deste direito “serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitas, e, que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção” (art. 9o). Fica claro, assim, que a Lei de Planejamento Familiar promove a saúde reprodutiva para que os indivíduos possam elaborar o planejamento familiar garantido na Constituição, que pode ser traduzido como projeto parental. Em outras palavras, a tentativa de garantir a saúde reprodutiva de todas as pessoas potencializa o livre desenho do projeto parental de cada uma delas. De qualquer forma, mesmo com a saúde reprodutiva totalmente garantida, a Constituição condiciona o livre planejamento familiar a ser elaborado pelo casal à dignidade da pessoa humana e à paternidade responsável. Daí conclui-se que o direito à procriação não é um direito de exercício individual, nem é absoluto, uma vez condicionado à dignidade da pessoa humana e à paternidade responsável. Desta conclusão pode-se chegar a outra: a assistência à concepção proporcionada pela reprodução assistida só será garantida pelo SUS como política pública voltada à garantia da saúde reprodutiva. Assim, conforme explica Pinheiro Neto, “(…) retumba plausível que o direito à saúde alberga o direito de acesso às técnicas de reprodução humana assistida, com o intuito de promover a plenitude da saúde sexual e da dignidade da pessoa humana, constituindo um dever do Estado a sua promoção ante a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais” (2012, p. 53). Isso quer dizer que apenas casais que não conseguirem ter filhos em virtude de problemas de saúde reprodutiva poderiam exigi-la do SUS. Como salienta Straube (apud PINHEIRO NETO, 2012, p. 66), “A capacidade de perpetuar a espécie representa uma essência para a realização do ser humano, em todos os tempos, em todos os povos. A preocupação com a fecundidade vem se desenrolando na história de tal modo que a incapacidade de gerar representou, sempre, uma ameaça, um temor que poderia significar motivo de degradação nos grupo familiar e social. Ser infértil resulta em um mal-estar, fonte de sofrimento e dissabores como frustração, culpa, inferioridade, pois significa ser portador de um estigma que marca e discrimina quem se desvia dessa ordem social estabelecida”. No mesmo sentido, Krell entende que “Pode-se afirmar que o desejo compreensível de gerar seus próprios filhos com o fito de constituir uma família com prole, aliado ao planejamento familiar adequado às necessidades do casal, é fator elementar que justifica o pretenso direito fundamental à Reprodução Assistida” (2009, p. 109). Embora muitos defendam que a reprodução assistida não possa ser considerada direito fundamental garantido ao indivíduo (pois se assim o fosse teria que ser garantida pelo SUS a todas as pessoas, indiscriminadamente, com ou sem problemas de saúde reprodutiva), acredita-se que a mesma constitua uma faceta do direito fundamental à saúde reprodutiva. Importante ressaltar que sendo a infertilidade um estigma social, a reprodução assistida promoveria tanto a saúde reprodutiva quanto a saúde emocional. A Organização Mundial de Saúde diz que saúde não é somente a ausência de doenças, mas um bem estar físico, mental e espiritual. Relatos clínicos contam que as pessoas que não conseguem ter filhos podem desenvolver transtornos psicológicos e alguns atentam contra a própria vida pelo fato de não terem a possibilidade de gerar uma criança. Tais distúrbios, se não forem evitados, poderão, também, gerar demandas ao SUS. Conclui-se que o direito à reprodução assistida não seria, por si só, um direito fundamental. Ele estaria situado no âmbito do direito fundamental à saúde e só seria garantido gratuitamente aos cidadãos que efetivamente possuíssem problemas de saúde reprodutiva. Tal conclusão pode parecer simples e óbvia, mas a Resolução 2121/2015 do Conselho Federal de Medicina (CFM) que dispõe sobre a reprodução assistida no Brasil, bem como aquelas que lhe precederam e que regulavam a mesma matéria, traz um leque infinitamente maior de possíveis beneficiários de tal procedimento. Isso gera a ilusão errônea de que todos os casos mencionados em tal Resolução poderiam ensejar pedido de RHA formulados ao SUS. No capítulo seguinte será apresentada referida Resolução para que tal confusão deixe de existir, facilitando a análise sobre a obrigatoriedade do SUS de ofertar tratamentos de reprodução assistida. 2 A normatização da reprodução humana assistida no Brasil Primeiramente, antes de adentrar na análise da normatização da reprodução assistida no Brasil, serão tecidas algumas considerações sobre tal procedimento que abriga várias técnicas, cada uma indicada para uma situação peculiar. Normalmente, quando se fala de Reprodução Humana Assistida, todos acreditam que esta se limita à inseminação artificial e à fertilização in vitro, mas isso não procede. Existem tratamentos onde não se manuseiam gametas, que se restringem ao uso de medicamentos, sob supervisão médica, para que se estimule a ovulação, por exemplo. As técnicas de RHA utilizadas no Brasil hoje se resumem em intracorpóreas (inseminação artificial), extracorpórea (fertilização in vitro), homólogas (utilizam gametas do próprio casal) e heterólogas (gametas masculino ou feminino, ou ambos, de doadores). Temos ainda a gestação de substituição (mais conhecida como “barriga de aluguel”). Neste último caso o CFM estabelece que a doadora genética tem que ter algum problema que a impossibilite de gerar o bebê, que a doadora temporária do útero seja parente até o 2° grau e que a doação seja gratuita (SOUZA, 2010, p. 350-351). Como mencionado anteriormente, no Brasil não há lei que regulamente a reprodução humana assistida, ainda que existam vários Projetos de Lei sobre a temática em trâmite. Muito provavelmente, isso ocorra em virtude dos conflitos éticos e religiosos que o tema desperta. Destaca-se, aqui, o PL 5624/2005 do deputado Neucimar Fraga (PL-ES) que “cria programa de reprodução assistida no Sistema Único de Saúde e dá outras providências.” Em termos de normatização sobre reprodução assistida, o que se tem, hoje, é a Resolução 2121/2015 do Conselho Federal de Medicina e a Portaria 2048/09 do Ministério da Saúde que garante os tratamentos necessários àqueles que possuem algum problema que os impede de gerar filhos. Por meio de tal portaria o SUS se compromete a realizar desde os mais simples até os mais complexos tratamentos, inclusive serviços de assistência em média e alta complexidade em Reprodução Humana Assistida. Ao se fazer uma leitura da Portaria, vemos que com ela o Ministério da Saúde deu poderes aos entes federados para expedirem normas suplementares e complementares e, com isso regular o atendimento àqueles que buscam pela reprodução humana assistida. Entretanto, o que se observa é que poucas instituições públicas oferecem ou estão capacitadas a oferecer os tratamentos quando são solicitados pela população. Importante destacar que o Ministério da Saúde, por meio da Comissão sobre Acesso e Uso do Genoma Humano, instituída pela Portaria n.º 1679/GM, de 28 de agosto 2003, vem discutindo proposta em relação à regulamentação para o emprego de técnicas de reprodução humana assistida. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) coordenou um grupo de trabalho para elaboração de proposta de normatização para o funcionamento dos bancos de células e tecidos germinativos. Esta norma técnica encontra-se em fase final de confecção e deveria ser publicada em 2005 (revogada pela Portaria 2048/09). Foi criado, em agosto de 2004, um grupo de trabalho para elaboração de uma proposta de atenção integral em reprodução humana assistida na rede SUS para os casais com infertilidade conjugal e para os casais que convivem com o HIV que desejam ter filhos (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005). Com relação à Resolução 2121/2015, importante ressaltar que referido documento levou em consideração os seguintes fatos, todos consignados em seu preâmbulo: 1) a infertilidade humana como um problema de saúde, com implicações médicas e psicológicas, e a legitimidade do anseio de superá-la; 2) que o avanço do conhecimento científico já permite solucionar vários problemas de reprodução humana; e 3) que o pleno do Supremo Tribunal Federal reconheceu e qualificou como entidade familiar a união homoafetiva. Na parte de seus princípios gerais, explica que as técnicas de reprodução assistida possuem a função de ajudar na resolução de problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação. Para saber quais seriam estes problemas, basta ler toda a Resolução. Na parte que trata dos beneficiários da técnica, há previsão de que estes podem ser todas as pessoas capazes que tenham solicitado o procedimento e que cuja indicação não se afaste dos limites da própria Resolução. Além disso, há menção expressa de que é permitido o uso das técnicas a pares homoafetivos e pessoas solteiras, ressaltando-se que é permitida gestação compartilhada em união homoafetiva feminina em que não exista infertilidade. No item que dispõe sobre diagnóstico genético pré-implantatório, garante que as técnicas de reprodução assistida podem ser aplicadas para a realização de seleção embrionária submetidos a diagnóstico de alterações genéticas causadoras de doenças, podendo, neste caso, serem destinados ao descarte ou à pesquisa. Outra função da reprodução assistida consiste na utilização para tipagem do sistema HLA do embrião para garantir embriões HLA-compatíveis com algum filho do casal já nascido e afetado por doença cujo tratamento efetivo seja o transplante de células-tronco. Por fim, a reprodução assistida também pode ser utilizada, conforme estabelece a Resolução 2121/2015, para a realização da procriação post mortem, quando houver autorização específica de uma pessoa falecida para usar seu material biológico congelado (criopreservado). Nota-se, portanto, que a Resolução 2121/2015 do CFM prevê muito mais hipóteses de utilização da reprodução assistida do que a garantia da saúde reprodutiva, promovendo o direito fundamental à saúde. Como ressaltou José Hiran da Silva Gallo, membro do CFM “é natural que o CFM amplie o alcance das normas e faça alterações para garantir tanto a segurança do paciente quanto o escopo do trabalho do médico” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2015). 3 O Judiciário brasileiro enfrenta o tema O objetivo deste capítulo é demonstrar como o Poder Judiciário enfrenta a questão da judicialização das políticas públicas no Brasil, já que, cada vez mais aumenta o número de ações interpostas contra o Estado nesse sentido, colocando-se em xeque o Princípio da Separação dos Poderes. Segundo Ferreira, “Se por um lado é certo que a função de concretizar estes direitos herdados do Estado Social coube ao Poder Executivo, é certo também que o Poder Judiciário passou a ganhar espaço e importância como fiscalizador desta implementação de direitos, e principalmente como agente dessas políticas públicas, (…) por meio de decisões que tem obrigado o Estado a fornecer os meios necessários para a efetivação destes direitos” (2014, p. 11). É importante destacar, também, que um dos fatores que reafirmaram a judicialização, foi a doutrina da efetividade, “uma consequência da força das normas constitucionais da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988” (BARROSO apud CASTRO, 2012, p. 20). Barroso explica que “essa doutrina vem para proteger a tutela do direito ou bem jurídico que foi violado por ação ou omissão do Estado, desta forma garantindo a ordem jurídica. Afirmando que a essência da doutrina da efetividade é tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e indiretamente, na extensão máxima de sua efetividade. Nesse sentido de imperatividade é que surge a corrida ao judiciário para que seja cumprido o que está determinado na norma constitucional, provocando a judicialização” (BARROSO apud CASTRO, 2012, p. 20). Desta forma, o Poder Judiciário começa a tomar decisões que influenciam não somente um indivíduo, mas, muitas vezes, toda a sociedade. Nascem os fenômenos da judicialização e do ativismo judicial que, embora não sejam exclusividade do Brasil, se manifestam de forma peculiar no país em virtude da extensão e do modo como se instalaram. Como salienta Barroso: “Circunstâncias diversas, associadas à Constituição, à realidade política e às competências dos Poderes alçaram o Supremo Tribunal Federal, nos últimos tempos, às manchetes dos jornais. Ou seja, o Supremo Tribunal Federal tem desempenhado um papel ativo na vida institucional brasileira (…). Mas não só este, como todo o Judiciário”. Diante deste panorama a judicialização ganha cada vez mais força na sociedade, já que por meio das decisões judiciais o Estado vê-se forçado a concretizar o direito do cidadão, muitas vezes postergado ou negado por aquele, fato que poderia ser chamado de “transmutação do Estado Legislativo para o Estado Judiciário” (ALMEIDA; BITTENCOURT, 2008, p. 247). Por sua vez, a judicialização acabou provocando o ativismo judicial. Em casos de demandas que envolvem a efetivação do direito à saúde, especificamente, indaga-se se os magistrados teriam capacidade e conhecimento técnicos para avaliar se o tratamento ou medicamento requerido é realmente necessário ou se é o que melhor se encaixa na situação do paciente. Diante disso, muitos juízes acabam por decidir de acordo com o que consta no parecer médico, principalmente por serem demandas relacionadas ao direito à saúde, que na maioria das vezes não podem esperar. Alguns tribunais, com o intuito de auxiliar os magistrados na tomada de decisões relacionadas a pedidos desta natureza, criaram núcleos de assessoria técnica em ações judiciais de saúde, o NAT. Esta ideia surgiu no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e o núcleo conta com profissionais das mais diversas áreas da saúde. Importante salientar que o NAT é só um instrumento de avaliação técnica para o auxílio do magistrado e que este não é obrigado a recorrer ao núcleo sempre que sentenciar alguma questão inerente a pedidos relacionados ao direito à saúde. Por fim, fica confirmado que tanto a judicialização quanto o ativismo judicial são fenômenos que serão uma constante nos tribunais brasileiros, pelo menos por um bom tempo e por isso é necessário esclarecer as características de cada um. 3.1 Judicialização e ativismo judicial Com é sabido, o Brasil enfrenta vários desafios, tanto na área econômica, quanto na área social. A falta de políticas públicas eficazes acaba por não garantir ao indivíduo alguns direitos fundamentais expressos na Carta Magna de 1988. Diante disto e de uma sociedade cada vez mais consciente de seus direitos, resta ao indivíduo recorrer ao Poder Judiciário, já que acredita que em tal esfera seus direitos básicos poderão ser confirmados e garantidos. Surgem, então, os fenômenos da judicialização e do ativismo judicial. A judicialização, segundo Barroso, ocorre quando: “algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso nacional e o Poder Executivo.(…), a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade”. É algo complexo que, visto sob a perspectiva institucional, traduz-se na ocorrência da “transferência decisória dos Poderes Executivos e Legislativo para os magistrados e tribunais, que passam dentre outros temas controversos, a revisar e implementar políticas públicas e rever as regras do jogo democrático” (VIERA; CAMARGO; SILVA, 2009, p. 1). Sob o enfoque sociológico, seria o modo como a sociedade resolveria questões, coletivas ou não. E, por último, poderia ser visto pelo ponto de vista lógico-argumentativo, difundindo suas normas “para fóruns políticos, institucionais ou não, representando, assim, a completa domesticação da política e das relações sociais pela “linguagem dos direitos” e, sobretudo, pelo discurso constitucional” (VIERA; CAMARGO; SILVA, 2009, p. 1). Portanto, é sistema jurídico vindo a amparar a Lei Maior, reconhecendo o que está escrito no texto constitucional com o objetivo não só de “regulamentar a vida em sociedade, mas também de integrá-la, amoldá-la e modificá-la” (ALMEIDA; BITTENCOURT, 2008, p. 252). Dentre as causas da judicialização no Brasil temos a redemocratização do país a partir da Constituição de 1988, a constitucionalização abrangente[4] e o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade[5]. Sendo assim, a judicialização não ocorreu porque o magistrado assim o desejou, mas por um cenário brasileiro favorável ao surgimento deste fenômeno. E com o ativismo judicial não foi tão diferente. Conforme explica Barroso, “a Judicialização e o Ativismo são primos. Vêm, portanto, da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. (…)A judicialização é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou,(…).(…), o Judiciário decidiu porque era oque lhe cabia fazer, sem alternativa.(…).Já o Ativismo Judicial é uma atitude, uma escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo deslocamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva”. O ativismo judicial pode ocorrer de duas maneiras: a primeira, quando ocorre por meio de alguma prestação jurisdicional e a outra, não menos conhecida, que se faz presente no dia a dia da população, quando há pronunciamentos de magistrados na mídia, por exemplo. Tal fenômeno tem um viés positivo, já que o Judiciário passou a satisfazer necessidades da população que até então aguardavam uma ação dos outros Poderes. Porém, ao mesmo tempo, demonstra o quão os outros dois poderes estão inertes em relação às suas funções e isso pode gerar uma crise institucional, com riscos para a legitimidade democrática (juízes e magistrados não são eleitos pelo povo) e o risco de politização da justiça. Além do que, com o aumento da procura pelo Poder Judiciário, a justiça se sobrecarregou a tal ponto que não tem conseguido dar conta do imenso volume de processos que são distribuídos todos os dias, o que acaba contribuindo para sua morosidade e ineficácia, apesar de ser enxergada “como canal de representação de minorias e grupos sociais excluídos” (VERÍSSIMO, 2008, p. 411). Especificamente em relação a prestação de direitos sociais, especialmente no que concerne ao direito à saúde, o ativismo se tornou intenso. Segundo explica o jurista francês Antonie Garapon, “A judicialização surge pelo enfraquecimento dos poderes legislativo e executivo e torna o judiciário um crescente ator político, que diretamente interfere nas decisões de políticas publicas e sendo visto como ultimo refúgio para uma democracia idealizada, e na mesma medida que cresce o crédito na justiça, diminui a confiança e o interesse na política. (…) a cooperação entre os diferentes atores da democracia não é mais assegurada pelo Estado, mas pelo direito, que se coloca, assim, como a nova linguagem política na qual são formuladas as reivindicações políticas. justiça tornou-se em um espaço de exigibilidade da democracia. Ela oferece potencialmente a todos os cidadãos capacidade de interpelar seus governantes, de tomá-los ao pé da letra e de intimá-los a respeitarem as promessas contidas na lei” (GARAPON apud CASTRO, 2012, p. 26). No entanto, o ativismo judicial em excesso poderia fazer nascer uma verdadeira ditadura de juízes, e, que os verdadeiros legitimados a criar políticas públicas estariam sendo tolhidos da sua função. Ocorreria talvez, com isto, a possibilidade de conferir poder constituinte aos magistrados, fazendo com que, no fim, o próprio legislativo criasse políticas públicas de acordo com as convicções e ideias desses juízes. Porém, em decisão proferida pelo STF no Agravo Regimental 175, o Ministro Gilmar Mendes salientou que “ao deferir uma prestação de saúde incluída entre as políticas sociais e econômicas formuladas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o Judiciário não está criando política pública, mas apenas determinando o seu cumprimento”[6]. Destaca-se, também, como consequência da judicialização, o fato de que ao se beneficiar uma pessoa com certos tipos de tratamento ou medicamento de valores altíssimos, estar-se-se-ia prejudicando o restante da sociedade diante do comprometimento do orçamento estatal. A titulo de ilustração, CASTRO (2012, p. 14) aponta que “No Rio Grande do Norte, por exemplo, somente no ano de 2008 foram gastos cerca de 14 milhões de reais com demandas envolvendo a saúde, e a previsão do orçamento era de três milhões. Em São Paulo apenas no primeiro semestre de 2010 tinham 25 mil ações tramitando pela justiça com pedidos na área da saúde, e os gastos chegam a 25 milhões de reais, por mês para cumprir essas liminares. No Rio Grande do Sul são 4,5 mil ações referentes à saúde por semestre, e o gasto é demais de 6,5 milhões mensais. No Espírito Santo, de janeiro a setembro de 2009 existia360 ações judiciais envolvendo a saúde. Esses casos ilustrativos mostram o quanto o judiciário tem sido mobilizado pela população para reivindicar seu direito à saúde”. A partir disto, podem surgir várias outras indagações, como por exemplo: a saúde é só para os que recorrem ao Judiciário? E aqueles que não possuem meios para isso? O magistrado teria a capacidade de definir quem deve ou não viver? E esse direito individual estaria lesionando o coletivo? São questões e problemas vivenciados quase que todos os dias pelos juízes Brasil afora. Independente das questões negativas que o Ativismo Judicial possa gerar, na atual conjuntura está sendo, talvez, o único caminho para aqueles que precisam da efetivação completa de um direito fundamental que está sendo negado pelo Estado. 3.2 O ativismo judicial no âmbito da oferta da reprodução assistida pelo Sistema Único de Saúde Nos últimos tempos houve um aumento significativo de ações judiciais no Brasil em busca da efetivação do direito à saúde. Neste contexto inserem-se as demandas em que pleiteia-se o acesso gratuito às técnicas de reprodução assistida. Normalmente o pedido tem como fundamento tratar-se de direito fundamental que só estaria sendo colocado à disposição de quem pode custear tais tratamentos. Em contrapartida, a maioria dos magistrados nega o pedido com base no Princípio da Reserva do Possível, do Mínimo Existencial e na não evidência que a não realização deste tipo de tratamento acarrete ofensa à vida ou á saúde dos requerentes. A teoria da reserva do possível originou-se por volta dos anos 70, na Alemanha. Conforme explica Sarlet e Figueiredo, “(…) a noção de reserva do possível, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos. (…), passou a traduzir ( tanto para a doutrina majoritária, quanto para a jurisprudência constitucional na Alemanha) a ideia de que os direitos sociais a prestações materiais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado, disponibilidade esta que estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público” (2007, p. 188). No Brasil, o princípio da Reserva do Possível se liga ao Princípio da Razoabilidade, ou seja, deve-se tentar equacionar eficácia com eficiência, pois desse modo se garante vários direitos a toda a coletividade. Barcellos (apud CUNHA, 2011, p. 11) define Reserva do Possível como “(…) a expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre finitas a serem por eles supridas. No que importa ao estudo aqui empreendido, a reserva do possível significa que, além das discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do Estado – e, em última análise, da sociedade, já que é esta que o sustenta – é importante lembrar que há um limite de possibilidades materiais para esses direitos”. O Princípio da Reserva do Possível, então, estabelece a viabilidade e a amplitude do poder estatal na concretização de certos direitos fundamentais e sociais e, como condição para tal efetivação, é necessário que haja recursos públicos disponíveis. Tal princípio sempre é citado quando de decisões judiciais relacionadas à concessão de direitos sociais que podem onerar os cofres públicos demasiadamente. A teoria do mínimo existencial também surgiu na Alemanha. No Brasil se fortaleceu na última década, sendo este “compreendido como todo o conjunto de prestações materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida condigna, no sentido de uma vida saudável” (SARLET; FIGUEIREDO, 2007, p. 184). Ou seja, o princípio do mínimo existencial estaria diretamente ligado aos direitos e garantias fundamentais necessários para que o indivíduo possa usufruir de uma vida plena e livre, sem qualquer intervenção e garantida pelo ente estatal. Como bem observa Torres, “Há um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas. O mínimo existencial não tem dicção constitucional própria. Deve-se procurá-lo na ideia de liberdade, nos princípios constitucionais da igualdade, do devido processo legal e da livre iniciativa, na Declaração dos Direitos Humanos e nas imunidades e privilégios do cidadão. Carece o mínimo existencial de conteúdo específico. Abrange qualquer direito, ainda que originariamente não-fundamental (direito à saúde, à alimentação etc.), considerado em sua dimensão essencial e inalienável” (1989, p. 29). As decisões judiciais que concedem o pedido de acesso gratuito às técnicas de reprodução assistida se sustentam na ideia de que a infertilidade é problema de saúde e que é direito do cidadão o planejamento familiar. Por outro lado, as decisões que rejeitam este pleito fundamentam-se na reserva do possível e no mínimo existencial, acima explicitados. Conclusão O trabalho em questão tentou demonstrar que a reprodução assistida pode ser considerada parte integrante do direito fundamental à saúde, devendo seu pleito, para tanto, estar atrelado a um problema de saúde de cunho reprodutivo. Conforme restou demonstrado, no Brasil não há lei que regulamente a realização da reprodução assistida, apenas a Resolução 2121/2015 do Conselho Federal de Medicina que abre muito o leque de possibilidades de quando e quem pode recorrer à mesma. Em várias hipóteses não há problema de saúde reprodutiva, mas impossibilidade natural de engravidar do marido falecido, engravidar do(a) companheiro(a) do mesmo sexo em casos de pares homoafetivos ou engravidar sem que se tenha um parceiro(a) para manutenção de relações sexuais, como no caso das “produções independentes”, por exemplo. Nestes casos, portanto, não há que se falar no direito fundamental à reprodução assistida, que sempre este deve ser analisado, obrigatoriamente, no contexto do direito fundamental à saúde e, portanto, à saúde reprodutiva. Quando a Lei de Planejamento Familiar prevê a disponibilização da reprodução assistida no Sistema Único de Saúde o faz dentro de um conjunto de políticas públicas de atenção à saúde reprodutiva, devendo restringir-se a este âmbito particular sua oferta à população. Partindo desta premissa de que haja problema de saúde reprodutiva, não haveria nada mais justo do que oferecer a este meios e tratamentos para a restauração de sua saúde. Ressalte-se que problemas de infertilidade, quando não tratados, podem desencadear transtornos mentais e psicológicos. Diante da inércia do poder legislativo em criar uma lei que regulamente a reprodução assistida e de onde sairiam os recursos para tal implementação, está cabendo aos magistrados interpretar se a mesma é ou não um direito fundamental que deve ser prestado pelo Estado e se este direito do particular pode se sobrepor ao direito da coletividade. É imprescindível, com todo o avanço de tais técnicas, que o Estado brasileiro regulamente o uso das mesmas, principalmente no âmbito de sua oferta gratuita a usuários do SUS, para que tal política pública seja implantada com sucesso, sem causar prejuízo à outras áreas da saúde pública que já enfrentam problemas relacionados à falta de recursos.
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O biodireito e o defeito metabólico da fenilcetonúria
A fenilcetonúria, é uma espécie de deficiência e aquelas que a carregam, no decorrer de suas vidas, necessitam adotar muitos cuidados, porque inolvidavelmente carecem enfrentar limitações diversas, para a prática de seus intentos diários, já que refere-se à defeito do metabolismo e que necessita ser controlado, mediante alimentação pobre em fenilalanina, sendo detectado através do exame do pezinho, nas primeiras horas de vida do bebê, a fim de se evitar o desenvolvimento de deficiência mental. O biodireito constitui-se num dos ramos do Direito que volta-se para a proteção da dignidade humana, podendo-se inferir que é um instrumento viabilizador da clamada inclusão social.
Biodireito
1 INTRODUÇÃO Os portadores de deficiência em seu metabolismo são conhecidos por fenilcetonúricos. O artigo demonstrará quem são os fenilcetonúricos, elucidando os dispositivos legais que contemplam a proteção dos mesmos e ao perpassar sobre a análise dos ideais inclusivistas, clamados pela Constituição vigente, anseia proceder a averiguação acerca da possibilidade de considerar-se a aludida categoria de pessoas enquadrada ao conceito de pessoas com deficiência. Assim, pretende conceituar a inclusão social e sua abrangência hodiernamente considerada, preocupando-se em apontar o significado jurídico que lhe é atribuído, a fim de posicionar a fundamentação da proteção destas pessoas, sob o espeque do princípio da dignidade humana, constitucionalmente salvaguardado. A atuação estatal deve centrar-se na fiscalização dos produtos, postos no mercado de consumo, os quais necessitam trazer em seus rótulos as informações condizentes aos seus componentes, tal qual exigido pelo Código de Defesa do Consumidor, sendo certo que para os fenilcetonúricos, a obtenção desta informação (ausência de fenilalanina nos produtos) constitui-se imprescindível, por comportar o direito de conseguirem se manter saudáveis (sem o comprometimento de seu metabolismo). O biodireito é um ramo do direito que vem constituindo-se elemento protetivo basilar, porque efetivamente enfatiza a proteção da vida, independentemente das técnicas empregadas, para tanto. 2 O DEFEITO METABÓLICO DA FENILCETONÚRIA A definição do termo fenilcetonúria, segundo a Revista Sentidos[1], especializada em assuntos que tratam de saúde, é tida como sendo: “Fenilcetonúria: Síndrome hereditária detectável no teste do pezinho. È caracterizada pela falta de uma enzima que impede o organismo de eliminar fenilalanina, substância presente em alimentos como leite, carne, ovos, leguminosas e queijo. Em excesso, é tóxica para o sangue, leva o indivíduo a ter convulsões e causa deficiência mental. É preciso seguir uma dieta especial, que deve ser iniciada nos primeiros dias de vida, antes que a síndrome afete o sistema nervoso. Ocorre em uma criança a cada 14 mil.” Assim, os fenilcetonúricos são pessoas que possuem deficiência em seu metabolismo, sendo detectada através do teste do pezinho, efetuado em amostras de sangue, coletadas após setenta e duas horas de vida do bebê, e uma vez resultando positivo, deve ser iniciado tratamento, mediante alimentação pobre em fenilalanina, objetivando evitar deficiência mental. O fenilcetonúrico deve seguir uma dieta balanceada para que possa ter uma vida saudável, o que por consequência resulta na prática de atos e hábitos diferenciados daquelas pessoas que não tem a ausência desta enzima, logo têm uma vida regrada. Trata-se de uma síndrome genética, que obriga o seu portador a seguir uma dieta especial, com pouca quantidade de fenilalanina. E ainda, por corresponder à deficiência não visível é pouco conhecida, além do que a sua incidência é bastante pequena: uma criança a cada catorze mil, hoje existindo aproximadamente 1% de crianças que são portadoras de fenilcetonúria, e que estão sob tratamento em instituições privadas e públicas, de forma adequada. A fenilcetonúria é também conhecida como oligofrenia fenilpirúvica, e significa segundo síntese do trabalho de Ney Lobato Rodrigues[2], em suma, presença de compostos oriundos da degradação da fenilalanina (aminoácido essencial às atividades metabólicas regulares do organismo), que é encontrado na urina – o fenil-lactato, fenil-piruvato e fenil-acetato, que são extremamente tóxicos para o ser humano, logo, a fenilcetonúria é uma enfermidade que advém da não atuação do metabolismo da fenilalanina e manifesta-se através de debilidade mental. A expectativa de vida de crianças que possuem esta deficiência genética corresponde a: metade morre ao atingir a idade de 20 anos; três quartos, por volta dos seus 30 anos e as demais seguirão sua vida com deficiência mental até a sua morte. Sob o aspecto legal, da obra de Luiz Alberto David Araujo[3], insigne doutrinador, que se debruça nos estudos inerentes às causas das pessoas com deficiência, verificamos que o aumento excessivo da fenilalanina no corpo da criança com esta deficiência metabólica pode causar debilidade mental irreversível. A citada deficiência é detectada por meio do teste do pezinho, aplicada ao recém-nascido; uma vez constada deficiência a criança submete-se a uma rigorosa dieta, no decorrer de toda a sua vida; dieta esta pobre em proteínas, sendo muito difícil a sua elaboração, face à ausência de indicação da quantidade de fenilalanina na composição dos produtos, fixada nas embalagens. 2.1 Enquadramento como deficiência?  A indagação frequente recai sobre o real enquadramento desta síndrome genética ao conceito de pessoa com deficiência, o qual pode ser explicitado, embasado na obra de Ney Lobato Rodrigues[4]: “Deficiência é a alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano e acarreta o comprometimento de algum ou alguns desses segmentos ou de função psicológica, fisiológica ou anatômica. Ocorre em virtude de uma limitação física ou mental que nem sempre atinge os limites da incapacidade jurídica. A grande maioria das pessoas portadoras de deficiências está apta a expressar sua vontade, a exercer seus direitos e os quer exercer.” Torna-se de certa maneira dificultosa a tarefa destinada à tentativa de enquadrar esta síndrome genética ao conceito de deficiência, já que assim como as pessoas diabéticas, por exemplo, carecem apenas seguir uma dieta rigorosa alimentar; para que afastem os riscos. Por outro ângulo de análise, se as pessoas que portam esta síndrome genética têm dificuldades para levar uma vida normal, se não lhes for disponibilizada alimentação e tratamento adequados, então pode-se afirmar que são portadores de deficiência, e porconseguinte tem o irrestrito direito à proteção e salvaguarda estatal, a fim de que possam praticar todos os atos de seu quotidiano. Mesmo porque, recorrendo à definição de pessoa com deficiência, traçada por Luiz Alberto David Araujo, constata-se que são contempladas outras categorias de deficiências, veja: “[…] o que define a pessoa portadora de deficiência não é a falta de um membro nem a visão ou audição reduzidas. O que caracteriza a pessoa portadora de deficiência é a dificuldade de se relacionar, de se integrar na sociedade. O grau de dificuldade para a integração social é que definirá quem é ou não portador de deficiência”.[5] Com isso, a conceituação: pessoas com deficiência abrange as pessoas com fenilcetonúria, visto que a nomenclatura, atualmente adotada abrange a inserção de demais naturezas de deficiência.[6] Inolvidável portanto, que esta é a conceituação mais adequada, ao pretender-se elencar as pessoas com deficiência, por ser bastante abrangente, alcançando diretamente os fins da inclusão social, alicerçados pela Constituição Federal, imiscuindo-se em absoluto toda e qualquer espécie de discriminação e marginalização social, rechaçadas expressamente pelo art. 3º., inciso III. Ademais: a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Estado brasileiro, juntamente com o seu Protocolo Facultativo, em 09 de julho de 2008, faz alusão em seu Artigo 1, nominado Propósito, em seu segundo parágrafo, à nomenclatura que estamos abordando: Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas. Tal assertiva dá azo à compreensão do tema, em conformidade com o que vínhamos expondo linhas acima, e é nesta conjectura de pensamento que se viabiliza o entendimento, restando o mesmo consolidado, face o disposto na alínea ‘e’ do Preâmbulo da aludida Convenção, que preconiza ‘in verbis’: “(…) e. Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras atitudinais e ambientais que impedem sua plena e efetiva participação na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas; (…)”  Logo, é esta a conceituação que pode ser acatada como sendo a mais adequada, em virtude da abrangência a beneficiários dos direitos assegurados a esta categoria de pessoas. Já, os grupos vulneráveis, recebem uma conceituação doutrinária, que requer uma compreensão do tema: minorias, conforme declinaremos. 3 O RESPEITO À DIGNIDADE HUMANA DAS PESSOAS FENILCETONÚRICAS A bioética, ramo do direito ainda ‘jovem’, porque apareceu pela primeira vez em 1971 no título da obra de Van Rens Selaer Potter (Bioetchics: bridge to the future, Prenctice Hall, Englewood Clifs, New York). Para o autor, sua finalidade era de auxiliar a humanidade no sentido de participação racional, porém, cautelosa no processo de evolução biológica e cultural. Seria, portanto, o compromisso com o equilíbrio e a preservação dos seres humanos com o ecossistema e a própria vida do planeta.[7] Assenta, a bioética, a significância da preservação da conduta humana adequada, para que se possa viver em harmonia e esta dignidade da pessoa humana encontra-se disciplinada no Art. 1º, inc. III da Constituição Federal constitui um dos baluartes do Estado Democrático de Direito, se analisado sob o enfoque da proteção da pessoa humana. Na atualidade, a dignidade da pessoa humana constitui-se requisito essencial e inafastável da ordem jurídico-constitucional de qualquer Estado que se pretende Democrático de Direito, e por óbvio, que as pessoas com deficiência, principalmente elas, devem tê-lo reconhecido e exercido. E uma vez que os fenilcetonúricos, podem ser abraçados pelo conceito: pessoas com deficiência, agregam em si (seres humanos, que são) aquela proteção. Etimologicamente, ‘dignidade’ “vem do latim dignitatem, do italiano degnità, do francês dignité, do espanhol dignidad, significando decoro, nobreza, compostura, respeitabilidade”.[8] Todavia, a dignidade não é só um valor intrínseco do ser humano e muito menos exclusivo do ordenamento constitucional brasileiro, importa asseverar que a dignidade abrange sentimentos pessoais e que o ordenamento jurídico não poderia deixar de fora a proteção de tão digno princípio. Desde o nascimento, as pessoas têm assegurado o direito à dignidade, independentemente de sua cor de pele, lugar que nasça, atributos físicos, conta bancária ou doença que porte. “As coisas têm preço, e o homem, dignidade.”[9] A proteção da pessoa humana não se completa se não lhe for garantida a preservação de sua dignidade. E esta preservação à dignidade da pessoa humana implica na preservação e respeito à integridade física e moral, bem como à individualidade e espiritualidade do ser humano. A dignidade, no dizer de Ingo Wolfgang Sarlet[10], mantém estreita relação com as manifestações da personalidade humana. Então, a preservação dos mais íntimos sentimentos devem ser respeitados, porque transcendem a pessoa, atingem o eu de cada ser humano, e se o fim buscado é o de respeitar a igualdade entre os seres humanos, nada pode ocorrer que estremeça a proteção deste direito, seja para qual pessoa for. Com isso, o que não pode haver é qualquer marginalização, seja de que pessoa for, sobre qual aspecto for. Neste viés, independentemente da natureza da deficiência, o que deve preponderar é a concepção de que todos têm direito a um tratamento igualitário, digno; e se para a implementação da efetivação destes direitos, medidas precisem ser adotadas pelo Estado, a fim de atingir este desiderato, já que antes de tudo, são pessoas, as quais merecem e precisam da salvaguarda de sua dignidade, saliente-se que o Estado tem o dever de atuar para o atingimento desta finalidade; pois o direito à dignidade constitui previsão constitucional. Além disso, verifica-se nos ensinamentos de Lafayette Pozzoli que o cristianismo ao retomar o ensinamento judaico e grego, procurando aclimatar no mundo, pela evangelização, a idéia de que cada pessoa humana tem um valor absoluto no plano espiritual, pois Jesus chamou a todos para a salvação. Desse modo, há muito tempo a preservação da dignidade da pessoa humana vem sendo tratada, incutida nos direitos humanos, inclusive verifica-se na obra de Roberto Bolonhini Júnior[11], no item intitulado: A Dignidade Humana como Fonte Mater dos Direitos, que após as grandes guerras mundiais houve a inserção valorativa que aplicou características que enfocam mais a existência que o patrimônio. Com isso, a existência digna do ser humano é tema que clama pela atuação estatal para que se efetive. Verificamos a preocupação com o afastamento de qualquer tipo de discriminação às pessoas com deficiência, no âmbito Internacional, abordando a Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, a qual fora aprovada em dezembro de 2006 pela ONU. Os princípios que norteiam a Convenção, de acordo com seu Art. 3º, são: “Princípios gerais: a) o respeito da dignidade inerente, a autonomia individual, incluída a liberdade de tomar as próprias decisões, e a independência das pessoas; b) a não discriminação; c) a participação e inclusão plenas e efetivas na sociedade; d) o respeito pela diferença e a aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade e a condição humanas; e) a igualdade de oportunidades; f) a acessibilidade; g) a igualdade entre o homem e a mulher; h) o respeito à evolução das faculdades dos meninos e as meninas com deficiência e de seu direito a preservar sua identidade” (grifo nosso).[12] Uma vez mais, observamos a dignidade humana como princípio geral dos direitos das pessoas com deficiência. Assim, o respeito ao ser humano fica novamente evidenciado em um documento internacional, indo ao encontro da proteção contra qualquer discriminação. O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº. 8.078/90) tem sua aplicabilidade igualmente fincada em um número grandioso de princípios, e não se pode considerar que se trate de mera coincidência o disposto no art. 6º. daquele codex, por gizar o princípio da dignidade humana…Ora, para os fenilcetonúricos terem uma existência digna, necessitam alimentar-se adequadamente, dependendo então, das informações constantes nos rótulos dos produtos, para evitarem o desencadeamento de males ao seu organismo, causados pela existência de fenilalanina nos alimentos ingeridos. Portanto, conhecer a composição dos alimentos constitui-se fator primordial para gozarem de uma vida saudável. A ingestão de alimentos, que versem da Tabela, inerente à dieta que balanceia o teor de fenilalanina no organismo é um ato que se constitui de primordial importância na vida dos fenilcetonúricos, uma vez sendo certo que aludida atuação desencadeia o proporcionamento de bem-estar, subsumindo uma significação muito mais abrangente, que é a de conceder a oportunidade destas pessoas terem qualidade de vida, portanto clamando do Estado o desenvolvimento de técnicas e alimentos que observem tais critérios, em sua composição. Isto tudo com o fito de viabilizar a usufruição de uma vida digna, apesar de regrada, por uma dieta balanceada, a qual deve ser seguida diuturnamente. Ora, diante deste panorama, infere-se que é mister a séria atuação estatal, objetivando implementar as dificuldades encontradas por estas pessoas fenilcetonúricas, para o desenvolvimento de suas atividades rotineiras, tal assertiva contempla a disponibilização de uma razoável quantidade de alimentos nos mercados de consumo, proporcional àquele número de produtos alimentícios, que é ofertado aos “não fenilcetonúricos”. A questão é de extremado relevo, a sustentar a preservação da dignidade desta categoria de pessoas (a qual, sublinhe-se, vem sendo objeto de intensa manifestação, destinada à proclamada inclusão social, constitucionalmente declarada, pois se procedida mera análise superficial de uma situação, em que uma criança fenilcetonúrica, ao chegar no Supermercado e parando defronte a uma das prateleiras, visualiza todos os produtos que ali se encontram expostos, chama-lhe a atenção determinado iogurte, cuja composição contém fenilalanina, a mãe da criança ao constatar os olhos de seu filho, fixos no produto, imediatamente tem de repelir a sua vontade e afastá-lo da prateleira, por saber que não pode o produto ser ingerido pelo seu filho, vez que compromete seu estado de saúde. Ora, é de se ver que os fornecedores, por expressa disposição do Código de Defesa do Consumidor inclusive, devem ser incentivados a colocar no mercado de consumo, uma diversidade de produtos, cujos componentes atendam as necessidades das pessoas fenilcetonúricas, vez que isto se constitui verdadeiro tratamento digno a ser dispensado às mesmas. E não só: devem indicar de forma clara e informar ostensivamente os ingredientes do produto, pois constitui-se fator crucial para o fenilcetonúrico a escolha e a decisão de aquisição do produto, a averiguação de seus componentes, haja vista que não podem consumir alimentos que contenham fenilalanina, sob pena de comprometer sua saúde. É inolvidável que a mencionada atividade deve ser objeto de acirrada fiscalização estatal, por seus entes federativos (os três concorrentemente), a fim de zelar pela dispensa de tratamento digno aos seus jurisdicionados. 4 BREVE ABORDAGEM ACERCA DA INCLUSÃO SOCIAL Primeiramente se faz necessária a elucidação do conceito, o que vem a ser a inclusão social? Ab initio pode-se responder que a inclusão social compreende a inserção social, pois a inclusão é um processo, segundo a concepção de Claudia Werneck: “(…) normalizar uma pessoa não significa torná-las normal. Significa dar a ela o direito de ser diferente e ter suas necessidades reconhecidas e atendidas pela sociedade.”[13] Portanto, a inclusão, nos últimos tempos, remete às desigualdades sociais, no dizer de Eugênia Augusta Gonzaga Fávero[14]. Em selecionado artigo, Rossana Teresa Curioni[15] define a inclusão social como sendo: “A inclusão social se fundamenta em princípios éticos de reconhecer e respeitar o preceito de oportunidades iguais perante a diversidade humana, diversidade esta que exige peculiaridade de tratamentos, para não se transformar em desigualdade social.” A idéia de inclusão, para Rossana Teresa Curioni[16] consiste na preocupação com a defesa da igualdade de oportunidade para todos, bem como o acesso a bens e serviços públicos. Ora, há que se ter em mente que é um ser humano que necessita ter a oportunidade de conviver com as pessoas, para continuar a viver e atingir o bem almejado por todos, indistintamente: a felicidade. E é cediço que a República Federativa do Brasil estabelece como objetivo fundamental, além de garantir o direito à igualdade e à não-discriminação, a não exclusão. Em suma, garantiu-se o direito à felicidade, como ensina Antonio Rulli Neto.[17] Sendo assim, constitui-se desígnio clamado pela República Federativa do Brasil, consagrado expressamente na Constituição Federal, os anseios de inclusão social, para tanto esmiuçando os seus propósitos, que se revelam através do rechaçamento a qualquer espécie de discriminação e tratamento preconceituoso, elevando uma incondicional observância ao princípio da igualdade. Ademais, no caso sob comento, há que se visualizar uma abrangência muito maior que se possa imaginar, a vida das pessoas fenilcetonúricas é que está sob destaque, ou melhor, a maneira de viver dos mesmos, e ao dispensar-lhes trato desrespeitoso, por eivado de desprezo e preconceito, a sociedade está contribuindo para o processo de exclusão social destes. Ademais: atentar-se ao respeito pela dignidade da existência das aludidas pessoas subsume conceder-lhes um tratamento igualitário à todas as demais pessoas “não fenilcetonúricas”, conceder a oportunidade de todos poderem conviver: a convivência com a diferença, ganha quem convive, aprende-se a tratar igual quem é visto como diferente de si próprio. Isto pode ser compreendido como o real significado da inclusão social. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O direito de alimentar-se constitui-se prima facie um direito à perpetuação da espécie; sem o alimento o ser humano não sobrevive. Não obstante, alguns carecem não apenas de alimentos, mas alimentos adequados, para que possam obter condições de sobrevivência digna, como é o caso dos fenilcetonúricos. O Estado tem o dever de apoiar, auxiliar, acompanhar, gerir e fornecer todos os meios indispensáveis à esta sobrevivência, já que com esta atuação estará disponibilizando meios aptos à efetivação de justiça, já que o tratamento adequado às pessoas que possuem tal síndrome genética, justapõe a observância dos princípios da igualdade e não=-discriminação, sedimentado no princípio da dignidade da pessoa humana. O direito à alimentação adequada, ainda que não previsto expressamente é direito fundamental de toda a população e, especificamente, da pessoa portadora de deficiência e, assim sendo, a sua efetivação é condição para proteção da dignidade da pessoa humana. O direito à alimentação, é direito do portador de deficiência e, dever do Estado em prestar e assegurar sua efetivação, sob pena de violação dos preceitos constitucionais e do princípio da dignidade humana, norteador do ordenamento jurídico constitucional brasileiro. A legislação ocupa-se em alargar os meios de proteção e através do biodireito especificamente no que se refere ao tema abordado neste artigo, pode-se afirmar com solar clareza que viabiliza o resguardo à dignidade da pessoa humana, mormente porque o dever de inclusão, previsto na Constituição brasileira, somente será efetivado se ocorrer eliminação de barreiras que impossibilitem a vida plena da pessoa portadora de deficiência e, como observado, a ausência de alimentação adequada cria obstáculos de desenvolvimento das atividades do cotidiano, ferindo princípios como a igualdade e a dignidade. Desta feita, para concretização de uma sociedade justa, livre, solidária e inclusivista, apta a receber as pessoas portadoras de deficiência sem discriminações, o direito à alimentação enquadra-se no conceito dos direitos fundamentais, devendo o Estado assegurar tal direito a fim de garantir, não apenas o direito à vida, mas o direito a convivência, possibilitando uma vida plena e digna.
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O direito de acesso à saúde e o direito ao processo justo
A saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade, envolvendo variáveis de tempo e espaço, conforme definição da OMS. Nesse sentido, a saúde é um bem que merece proteção jurídica. Na atualidade, os avanços da medicina tecnológica, a dimensão social do direito à saúde e a noção de dignidade da pessoa humana são aspectos que exigem um debate bioético sobre o tema do acesso à saúde. A dificuldade do acesso universal à saúde decorre, principalmente, da escassez de recursos. No Brasil, o Poder Judiciário assume um importante papel no resguardo do direito à saúde, que deve ser assegurado por meio de um efetivo acesso à justiça.
Biodireito
1 INTRODUÇÃO O presente artigo trata da crescente judicialização do acesso à saúde no Brasil e da necessária observância do direito a um processo justo nessas demandas judiciais. O objetivo geral do texto é demonstrar que nas ações em que se pleiteia o acesso à saúde também deve ser exigido um processo judicial justo, facilitando o acesso à justiça e garantindo os meios que asseguram os direitos envolvidos no conteúdo do direito ao processo justo. De início, na primeira parte, abordaremos a relação do acesso à saúde com a bioética. Em seguida, apresentaremos os dois principais sistemas de acesso à saúde e, ao final, será analisada a confluência entre o acesso à saúde e o acesso à justiça. No segundo ponto do artigo, a proposta é esclarecer quais seriam os direitos envolvidos no conteúdo do direito ao processo justo com maior repercussão em demandas que tratam do acesso à saúde. Nesse aspecto, examinaremos os meios alternativos de resolução de conflitos e o direito à duração razoável do processo. 2 O ACESSO À SAÚDE A Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1948, proclamava que “A saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade” (WHO, 1948). Esse conceito foi criticado pela doutrina, sustentando-se que seria utópico, pois dificilmente um indivíduo gozaria de higidez em todos esses aspectos. No entanto, a definição foi importante por considerar, além das características pessoais, a organização social e o meio ambiente em que o ser humano está inserido. Da mesma forma, superou a definição que compreendia a saúde apenas como a ausência de doenças. Posteriormente, surgiram novas propostas ao conceito da OMS, envolvendo variáveis de tempo e espaço, sendo que atualmente o entendimento é no sentido de que o conceito depende de uma contextualização (BOTELHO, 2011). Em síntese, a saúde é caracterizada como um estado natural de perfeito bem-estar do ser humano, um estado de pleno gozo de suas faculdades físicas, psíquicas e sociais, dependentes do tempo e do espaço. Assim, a saúde pode ser considerada um bem, o qual merece proteção jurídica. 2.1 O acesso à saúde e a bioética Na atualidade, o avanço tecnológico tem possibilitado ao ser humano diversos tratamentos de saúde, que há pouco tempo inexistiam. Como é notório, essa tecnologia é disponibilizada a uma parcela ínfima da sociedade, devido aos custos e aos meios de acesso. Nesse passo, é importante ressaltar a dimensão social do conceito de saúde, que a considera como um direito de todos aos benefícios do desenvolvimento tecnológico, estando associada à questão da justiça distributiva e da solidariedade social. Logo, esse aspecto da definição aproxima a saúde dos conceitos de cidadania e dignidade. Por certo, os avanços da medicina tecnológica, a dimensão social do direito à saúde e a noção de dignidade da pessoa humana são aspectos que exigem uma reflexão ética sobre o tema do acesso à saúde. A bioética aprofunda o estudo de outras matérias relacionadas à medicina, sendo a saúde vista somente como uma questão social. Entretanto, o tema do acesso à saúde merece uma maior atenção sob o ponto de vista ético, principalmente nos dias atuais, quando muitos dos conflitos que se estabelecem na área da saúde tem uma repercussão ética.   Nessa esteira, observou Berlinguer (1996, p. 16): “O tema da saúde raramente está presente no debate bioético. Este privilegia tão-somente as situações extremas como os nascimentos ‘artificiais’, os transplantes de órgãos, as condições de sobrevivência terminal, descuidando-se do fato de que a saúde e a doença são para todos um campo universal de experiência, de reflexão e até de escolhas morais. À saúde frequentemente é negado o título de nobreza como objeto da ética e, na melhor das hipóteses, lhe é atribuído apenas o valor (que para alguns é considerado filosoficamente irrelevante e intelectualmente plebeu) de ‘questão social’.” (grifou-se). Apesar da resistência no enfrentamento do tema sob o aspecto ético, a reflexão vem se ampliando, mormente em países da América Latina, onde as desigualdades sociais provocam uma maior dificuldade no acesso do cidadão à saúde plena e efetiva, o que acarreta constantes questionamentos de ordem ética.  A respeito, comenta Goldim (2009, p.59): “A reflexão bioética sobre temas das áreas da saúde e do ambiente se ampliou e aprofundou em diferentes locais do mundo. (…) Na América Latina, as discussões sobre acesso a sistemas de saúde, sobre pobreza e preservação ambiental, se associaram aos grandes temas de discussão mundial, como privacidade, transplantes, reprodução assistida, eutanásia e suicídio assistido.” Portanto, a reflexão bioética pode ser considerada como um importante meio de auxílio na busca por soluções aos conflitos éticos na área do acesso à saúde. Esses problemas decorrem essencialmente da escassez de recursos e dependem de sistemas de alocação. Os principais sistemas de alocação de recursos na área da saúde são o sistema de tradição liberal, que tem por base o mercado, e o sistema de tradição social, estruturado através da despesa pública. Quanto ao sistema de tradição liberal, o exemplo mais conhecido é o norte-americano, onde o acesso ocorre por meio do seguro saúde. Nesse sistema, o principal problema enfrentado é a deficiência da cobertura securitária. Estima-se que 18% da população não idosa carece de cobertura securitária para a saúde. As causas frequentemente apontadas são o preço e a higidez do mercado de seguros. Diante dessa situação, em 2010, o presidente Barack Obama propôs a Lei do Ato de Saúde Acessível (“The Affordable Care Act”), conhecida como “Obama Care”, que obrigava todos os americanos a adquirirem seguro privado de saúde até 2014, sob a ameaça de multa. O governo subsidiaria as famílias que não tivessem condições de bancar o seguro integralmente (MAIS…, 2013). Sobre o sistema liberal, a teoria de Dworkin (2012) defende que a saúde não seria o bem mais importante do indivíduo, pois existem outros bens que competem com a saúde, tais como a educação, a segurança e a previdência. O autor sustenta que o critério de acesso à saúde pela necessidade, independente do custo, é complexo, uma vez que dependeria da interpretação do que seria uma necessidade. Ainda, argumenta que a regra do resgate, a qual não permite o sofrimento ou a morte da pessoa quando existe um tratamento, enfrenta críticas quando se pensa em prioridades, como no caso de manutenção de enfermos terminais.  Nessa linha, Dworkin (2012, p. 435-436) apresenta os seguintes questionamentos: “Como avaliar a necessidade? Será que alguém “necessita” de uma operação que talvez lhe salve a vida, mas haja poucas probabilidades de isso acontecer? A necessidade de um tratamento que salve a vida de uma pessoa deve sofrer interferência da qualidade que sua vida teria se o tratamento tivesse êxito? A idade do paciente importa? Será que uma pessoa de 70 anos precisa ou merece menos o tratamento do que uma pessoa mais jovem?” Ao que se constata, no sistema liberal de acesso à saúde são aplicados conceitos econômicos, verificando-se o custo de direitos através de uma análise econômica do direito. Consoante Posner (1998), regras de direito devem ser interpretadas com base na eficiência, o que significa a maximização do bem-estar social.    A propósito, questiona Sandel (2013, p. 52): “Será então que toda ação humana pode ser entendida à luz de um mercado? A questão continua sendo objeto de debate entre economistas, cientistas políticos, juristas e outros especialistas. Mas o impressionante é a força adquirida por essa imagem – não só no mundo acadêmico, mas na vida cotidiana. Em grande medida, as relações sociais foram reconfiguradas nas últimas décadas à imagem das relações de mercado. Uma medida dessa transformação é o crescente uso de incentivos monetários para resolver problemas sociais.”  Já em relação ao sistema de tradição social ou sistema público universalista da saúde, o exemplo é o Brasil. No nosso país, o direito à saúde somente era disponibilizado aos trabalhadores segurados do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e depois do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS). Contudo, a partir da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), o acesso à saúde passa a ser um direito de todas as pessoas e cabe ao Estado assegurar esse direito. O Sistema Único de Saúde foi criado com o objetivo de atender a todas as necessidades do cidadão, integrando ações, como a prevenção de doenças, o tratamento e a reabilitação. Além do mais, é possível a complementaridade pelo setor privado, mediante a contratação dos serviços de saúde, caso o setor público se mostre incapaz de atender a demanda, o que é comum no Brasil. A respeito, segundo levantamento divulgado em 2011 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 58,1% dos entrevistados apontou a falta de médicos como o maior problema do SUS. De fato, o número de leitos hospitalares sofreu uma redução de 10,5% entre 2005 e 2012, conforme apurou o Conselho Federal de Medicina (CFM). Diante dessa situação calamitosa, mais de 30% da população paga um valor extra pelos planos privados de saúde (CIGANA; TREZZI, 2013). A desigualdade no sistema de saúde brasileiro foi descrita recentemente pelo Tribunal de Contas da União, que concluiu relatório sistêmico de fiscalização da saúde no país, com a compilação dos trabalhos mais relevantes na área, realizados em 2013. Nesse estudo pioneiro, o TCU avaliou o sistema de saúde brasileiro por meio de indicadores e constatou significativas desigualdades, tanto na comparação do modelo público com o privado, quanto dentro do próprio Sistema Único de Saúde (SUS), quando comparadas as regiões do país, as capitais e o interior. O trabalho identificou problemas graves, como a insuficiência de leitos, a superlotação de emergências hospitalares, a carência de profissionais de saúde, a desigualdade na distribuição de médicos, a falta de medicamentos e insumos hospitalares, a ausência de equipamentos ou equipamentos obsoletos, não instalados ou sem manutenção, a inadequada estrutura física e a insuficiência de recursos de tecnologia da informação (TCU…, 2014). Nesse contexto, a difícil situação da saúde pública nos países latino-americanos motivou a realização do IV Encontro Latino-Americano de Direito à Saúde e Sistemas de Saúde, em abril de 2014, na cidade de Bogotá, Colômbia, que teve como tema: “transparência e prestação de contas, para fazer público o que é público” (ENCUENTRO LATIONOAMERICANO SOBRE DERECHO A LA SALUD Y SISTEMAS DE SALUD, 2014). Os países presentes assumiram compromissos para tornar públicas as informações sobre os sistemas de saúde, através da prestação de contas, divulgação de conflitos de interesses e criação de observatórios (CASAGRANDA, 2014). No sistema universalista, Neves (2014) aborda o tema da alocação de recursos em saúde como uma das mais recentes e urgentes problemáticas para a Bioética, articulando quatro princípios que devem ser considerados na busca por uma solução, que são os princípios da dignidade humana, da participação, da equidade e da solidariedade. Em consequência, surge o conflito entre o “mínimo existencial” e a “reserva do possível”, quando se intenta um acesso universal ao direito à saúde. Observa-se que o conceito de “mínimo existencial” teve origem na Corte Constitucional Alemã, que extraiu esse direito do princípio da dignidade da pessoa humana. Logo, o direito ao “mínimo existencial” asseguraria recursos mínimos para uma existência digna, seria o núcleo essencial de um direito fundamental. Por outro lado, a “reserva do possível”, que também nasceu no Tribunal Constitucional Alemão, decorre da reduzida capacidade econômico-financeira do ente público (BOTELHO, 2011). No intuito de dirimir a celeuma, a doutrina e a jurisprudência estabeleceram critérios para avaliar a possibilidade de prestação pública dos direitos, que são os limites fático e jurídico, além da razoabilidade. O limite fático é a capacidade financeira do Estado para prestar o direito. Já o critério jurídico consiste na possibilidade jurídica de disposição desses recursos. Por fim, a razoabilidade depende da interpretação no caso concreto para avaliar se é razoável que o indivíduo exija do ente público a prestação daquele direito social (GLOECKNER, 2013). 2.2 A caracterização do direito de acesso à saúde e da garantia de acesso à justiça como direitos fundamentais e humanos O Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana dos Direitos Humanos – 1969), integrado ao ordenamento pátrio desde a edição do Decreto n° 678/92, sublinha em seu art. 8°.1 que “toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente (…)”. No Brasil, a Constituição Federal prevê, no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), o direito ao acesso à justiça em seu artigo 5º, XXXV, quando declara que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito.” Esse dispositivo veicula o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional ou princípio do direito de ação (WATANABE, 1980). Ademais, conforme prevê o art. 6º da Constituição Federal, o direito à saúde, como direito social, também é um direito fundamental. Nesse diapasão, considerando que a garantia de acesso à justiça e o direito à saúde, além de estarem previstos no ordenamento constitucional brasileiro, são direitos que transcendem o ordenamento positivo nacional, assumindo atualmente uma validade universal, através de tratados internacionais, pode-se dizer que também são direitos humanos. Todavia, o problema dos direitos humanos é a dificuldade da sua efetividade. A respeito, Villey (2007, p. 5-6) critica a amplitude conferida a esses direitos, o que tornaria difícil a sua concretização: “O erro deles é prometer demais: a vida, a cultura, a saúde igual para todos: um transplante do coração para todo cardíaco? Haveria só com o direito de todo o francês “à saúde”, com o que esvaziar o orçamento total do Estado francês, e cem mil vezes mais!  (…) As promessas das Declarações têm ainda menos possibilidades de ser cumpridas porque suas formulações são incertas, indeterminadas. (…) É delicioso ver-se prometer o infinito: mas, depois disso, surpreenda-se se a promessa não for cumprida!” Segundo Comparato (2001), uma das principais falhas da teoria dos direitos humanos é não ter percebido que o objeto dos direitos prestacionais é justamente uma política pública. O direito humano de acesso à saúde é um direito que o cidadão tem a ações positivas do Estado. Esse direito prestacional pode ser efetivado por meio de ações fáticas ou normativas. Como vimos, a gestão administrativa deve disponibilizar, através do SUS, um acesso universal, célere, gratuito e descentralizado ao sistema de saúde. Entretanto, como é cediço, muitas vezes o acesso à saúde somente é disponibilizado por meio de um processo judicial, o que acarreta a chamada judicialização do direito à saúde.  3 o direito ao processo justo COMO VIA PARA A OFERTA DE PROTEÇÃO EFETIVA À SAÚDE O Direito ao Processo Justo também pode ser considerado como um direito que o jurisdicionado possui de exigir ações positivas do Estado. Nesse passo, os critérios para uma avaliação do Processo Justo podem ter por fundamento o que propõem Comoglio (2004, p. 409) ao elencar as bases constitucionais mínimas do processo civil justo para a América Latina, definindo o seguinte: “A jurisdição se exerce e se atua mediante um processo <<justo>> (ou equitativo). Se considera <<justo>> todo tipo de processo cujas garantias fundamentais sejam reguladas pela lei, em respeito pleno dos direitos invioláveis do homem (…). (tradução nossa)[1].” No caso específico do acesso à saúde, considerando que se busca solução efetiva e celeridade para os conflitos dessa ordem, o processo justo pode ser alcançado, dentre outras formas, através da utilização de meios alternativos para a resolução de conflitos e do respeito à duração razoável do processo. Inicialmente, é recomendável que se busque uma solução por meio da mediação ou da conciliação. No entanto, caso inexitosa essa tentativa de acordo, é fundamental que nas demandas judiciais em que se postula o acesso à saúde o processo tenha uma duração razoável, diante da urgência que é inerente a esse tipo de ação. Nessa perspectiva, refere Rotunno (2011, p. 15): “Na lição de Bernardo Sorj, ‘a judicialização do conflito social leva à transferência das expectativas de atendimento de demandas e resolução de conflitos sociais para o poder judiciário, que seria o único fiador da convivência e o único poder confiável.’ De fato, vários problemas têm sido evidenciados. A demora na prestação jurisdicional é apenas um deles. (…) São ínfimos os espaços para negociação e composição na via judiciária. Assim, passa a ser crucial a procura por outras formas de solução de conflitos, que possam, com autoridade e reconhecimento, satisfazer as partes envolvidas.”    Em síntese, o direito à saúde tem como fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana, sendo um direito social, indisponível, imprescritível e, acima de tudo, um direito humano.  Por essas razões, quando o Estado, através de seus órgãos administrativos, não disponibiliza o devido acesso à saúde, cabe ao Poder Judiciário resguardar o acesso amplo à justiça, permitindo uma tutela jurisdicional efetiva e célere em demandas desta ordem.     3.1 Os meios alternativos de resolução de conflitos e a proteção ao direito à saúde A partir da década de 1960, com maior ênfase nos anos 70, nasce nos Estados Unidos um movimento do meio jurídico e político conhecido como ‘Alternative Dispute Resolution’ (ADR).      Cappelletti (1994) considera a ADR como a terceira onda de acesso à justiça, a qual denomina de justiça coexistencial, porquanto as partes têm uma participação corresponsável na solução dos conflitos. A primeira onda consagrava a gratuidade das custas judiciais e a defensoria pública para os necessitados, tendo a segunda onda previsto as ‘class actions’, legitimando ações coletivas. Decerto, os meios alternativos de resolução de conflitos representam instrumentos de efetivação do direito ao processo justo. Em demandas de saúde, a solução rápida e consensual, decorrente da utilização da mediação e da conciliação, proporciona, acima de tudo, a concretização do direito fundamental à saúde do jurisdicionado. Vem ao caso mencionar Alvarez (2003, p. 304): “[…] o poder das partes para resolver seus próprios conflitos é a expressão de uma sociedade democrática e o acesso à justiça para os grupos mais necessitados é a expressão de uma sociedade justa.” (tradução nossa)[2]. Nessas demandas, a conciliação prévia pode ser uma alternativa eficaz de resolução de conflitos. A respeito, Gilmar Mendes (2009), Ministro do Supremo Tribunal Federal, mencionou a experiência das Defensorias Públicas do Rio de Janeiro e de São Paulo, que buscam a conciliação e alternativas no plano administrativo, principalmente para os casos que envolvem direitos no Sistema Único de Saúde (CONCILIAÇÃO…, 2009). Outro exemplo pode ser visto no Distrito Federal, onde a Câmara Permanente Distrital de Mediação em Saúde (CAMEDIS), instituída em parceria com a Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF) e a Secretaria de Estado de Saúde (SES), foi selecionada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) como experiência a ser avaliada no estudo sobre direito à saúde no país (CÂMARA…, 2014a). Na mesma trilha, o Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso propôs à Secretaria de Estado de Saúde (SES) a criação de uma Câmara de Conciliação para fomentar acordos extrajudiciais dos usuários do sistema de saúde. Um grupo de trabalho formado por integrantes do Poder Judiciário e da Secretaria da Saúde vai elaborar um modelo a ser formalizado via termo de parceria entre os órgãos (CÂMARA…, 2014b). Ainda, no âmbito de atuação do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, recomendou-se a criação de Comissão Permanente de Conciliação para a área de Saúde, em cada unidade da federação. Tal órgão seria composto por representantes do Poder Judiciário, Ministério Público Federal, Advocacia-Geral da União, Defensoria Pública da União, representante da Ordem dos Advogados do Brasil, representante da Procuradoria do Estado e representantes dos Municípios, assessorada por uma Comissão Técnica multidisciplinar (médicos, farmacêuticos, psicólogos, outros profissionais da área de saúde e integrantes do meio acadêmico) com atribuição de identificar as causas passíveis de conciliação e estabelecer medidas de ordem prática para realização de audiências de conciliação (BRASIL, 2014). Por fim, recentemente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo informou que será implantado um núcleo para mediar ações envolvendo assistência à saúde, é o chamado Núcleo de Apoio Técnico e de Mediação (NAT). O Tribunal de Justiça de Minas Gerais possui experiência similar desde 2012, em parceria com o Comitê Estadual de Saúde de Minas Gerais e o Hospital das Clínicas (Celeridade…2015). 3.2 O direito à duração razoável do processo e a tutela do direito à saúde em juízo Entende-se que o prazo razoável do processo é aquele que permite o exercício de todos os direitos e faculdades processuais no menor tempo possível. Para isso, deve ser considerado o comportamento das partes (atuação processual do autor e do réu), a complexidade da causa (fática e jurídica), comportamento das autoridades (prestação jurisdicional), a passagem do tempo (litigantes doentes ou idosos) e a importância do direito em litígio (direitos fundamentais sobre direitos meramente patrimoniais), como esclarece Guerreiro (2007). Especificamente no que se refere às ações que buscam a proteção do direito fundamental à saúde, é importante destacar alguns procedimentos judiciais que asseguram um acesso à justiça em tempo razoável. Nessas demandas, o tempo é o fator de maior relevância, visto que o seu transcorrer pode acarretar a piora do estado de saúde do postulante ao direito. Em vista disso, em ações que pleiteiam o acesso à saúde existe a possibilidade de o juiz deferir a tutela provisória de urgência, que pode ser concedida em caráter antecedente ou incidental, quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo, conforme dispõe o art. 294, parágrafo único e o art. 300, caput do Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015). Outrossim, nos termos do art. 1º da Lei nº 12.016/2009, o procedimento do mandado de segurança serve para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça. No caso das demandas que postulam o fornecimento de medicamentos, ensina Gomes (2012, p. 20): “O direito líquido e certo para a concessão de medicamento pode ser comprovado de plano com a prescrição médica. Resta claro que a dúvida em relação ao medicamento incidirá responsabilidade civil do médico, não violação ao direito do paciente. Em outras palavras, a dúvida que incide sobre a real necessidade ao medicamento, já atestado pelo médico, influi diretamente na dúvida da própria prescrição médica.”  Por derradeiro, o rito dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, previsto na Lei nº 12.153/2009, do mesmo modo possibilita uma tramitação mais célere das ações judiciais que envolvem o direito à saúde, destacando-se que não há prazo diferenciado para a prática de qualquer ato processual pelas pessoas jurídicas de direito público, inclusive a interposição de recursos (art. 7º). Contudo, a competência nesse procedimento é limitada ao valor de 60 (sessenta) salários mínimos (art. 2º). 4 CONCLUSÃO A Constituição Federal de 1988 representou uma evolução teórica no sistema constitucional brasileiro, a qual deveria ter acarretado reflexos na realidade social e política do país. A função das normas programáticas era justamente estimular as mudanças que a sociedade necessitava. Porém, não foi o que ocorreu. Na atualidade, verificam-se constantes omissões dos poderes públicos em relação ao resguardo de direitos sociais previstos na Carta Magna, como é o caso do acesso universal à saúde. Além de tudo, o Poder Legislativo se mostra inerte em promover mudanças na legislação do sistema de saúde pública do país e o Poder Executivo desenvolve uma péssima gestão dos recursos públicos destinados ao setor. Nessa conjuntura, a crise do sistema de saúde brasileiro vem sendo enfrentada pela atuação ativa de Advogados, Defensores Públicos, Promotores de Justiça e Juízes de Direito. A procedência de ações judiciais dessa natureza, além de proteger um direito fundamental do cidadão, representa uma resposta de caráter positivo do Poder Judiciário, reconhecendo-se um direito prestacional em favor do jurisdicionado, que não é cumprido pelos demais Poderes. O Estado deve amparar a defesa dos direitos fundamentais do cidadão e reprimir a violação da dignidade da pessoa humana de todas as formas possíveis, a princípio pelo ordenamento jurídico ou pela gestão pública, senão pelo próprio Poder Judiciário. Ademais, nas demandas judiciais da saúde é apropriada a aplicação do referencial da alteridade para o reconhecimento de direitos existenciais do ser humano. Na bioética tal parâmetro representa um de seus fundamentos. Dessa forma, os julgamentos serão mais humanos e sensíveis ao reconhecimento de direitos existenciais, compreendendo-se o sofrimento enfrentado pelo cidadão que é privado do devido acesso à saúde.
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Bioética, biossegurança e segurança alimentar e nutricional: um exame tridimensional do direito humano à alimentação adequada
O objeto do presente está assentado na imprescindibilidade de se desenvolver um debate sobre os alimentos transgênicos em uma perspectiva da Bioética e do princípio da precaução. Neste aspecto, é possível salientar que o corolário da precaução se apresenta como uma garantia contra os riscos potenciais que, em harmonia com o estado atual de conhecimento, não são passíveis, ainda, de identificação. É desfraldada como flâmula pelo preceito da precaução que, em havendo ausência de certeza científica formal, existência de um dano robusto ou mesmo irreversível reclama a estruturação de medidas e instrumentos que possam minimizar e/ou evitar este dano. Sobreleva salientar que o dogma em apreço encontra seu sedimento de estruturação no princípio quinze da Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como Declaração do Rio/92, que em seu princípio quinze estabelece que, com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. Em tal debate está inserido o desenvolvimento dos alimentos transgênicos, sobretudo suas consequências, tanto para o ser humano como para o meio ambiente, a longo e médio prazo. O axioma em realce, neste cenário, constitui no principal norteador das políticas ambientais, à medida que este se reporta à função primordial de evitar os riscos e a ocorrência dos danos ambientais. Em decorrência da proeminência assumida pelo preceito da precaução, salta aos olhos que é robusto orientador das políticas ambientas, além de ser o alicerce fundante da edificação do jus ambiental. Valendo-se das reflexões fomentadas pela Bioética, o presente busca pautar um exame do tema no cenário nacional.
Biodireito
1 Bioética: Aspectos históricos e princípios orientadores Bioética uma disciplina que visa à junção e a unificação da ética com tudo que concerne à vida, conclui-se tal afirmação quando se separa a palavra bioética, a palavra bio está ligada a tudo que se remete a vida e palavra ética está relacionada aos valores e princípios que orientam a sociedade, observa-se que há códigos de condutas éticas para respectivas profissões, pois há direcionamentos no que tange a forma como cada profissional deve se limitar a agir anexo as respectivas áreas. Foi visando esta ética nos parâmetros biológicos que o bioquímico que pesquisava sobre a oncologia, Van Rensselaer Potter lançou o termo “Bioética” na década de 1970. O objetivo central do Prof. Potter era estabelecer um vínculo entre a Ciência e Ética, para o pesquisador não havia possibilidade de se separar as duas áreas, no que diz respeito à importância que há na vida, a ciência que estuda a mesma não poderia andar sozinha, deveria haver algo que a orientasse e direcionasse. Com intuito de que houvesse o avanço saudável da ciência, Van Rensselaer começa a desenvolver a “Ciência da sobrevivência”, que desencadeia em um novo estudo de ética, que fora denominada como Bioética, para Potter bioética era a Ética da vida, do ser vivo, da sobrevivência. Por meados de 1932 a 1978 ocorreram casos de acontecimentos terríveis ligados à saúde e ao bem-estar do ser humano. A título de exemplificação, é possível fazer menção ao Estudo de Sífilis não-autorizado de Tuskegee, no qual 600 (seiscentos) negros contaminados com sífilis foram levados para um centro de pesquisa para serem estudados e pesquisados, objetivando estudos sobre a doença, ao final, após uma denúncia sobre a pesquisa, restou apenas 74 pessoas ainda infectadas. É oportuno consignar que a contrapartida pela participação no projeto era o acompanhamento médico, uma refeição quente no dia dos exames e o pagamento das despesas com o funeral. Durante o projeto foram dados, também, alguns prêmios em dinheiro pela participação. A inadequação inicial do estudo não foi a de não tratar, pois não havia uma terapêutica comprovada para sífilis naquela época. A inadequação foi omitir o diagnóstico conhecido e o prognóstico esperado. É possível fazer menção à exposição de Goldim, especialmente quando aponta “o objetivo do Estudo Tuskegee, nome do centro de saúde onde foi realizado, era observar a evolução da doença, livre de tratamento. Vale relembrar que em 1929, já havia sido publicado um estudo, realizado na Noruega, a partir de dados históricos, relatando mais de 2000 casos de sífilis não tratado” (GOLDIM, 1999, s.p.). Para que houvesse um norteamento e em resposta aos casos anteriormente ocorridos, o governo norte-americano, em 1974 promoveu uma comissão que fora designada a elaborar princípios éticos primordiais que orientaria a pesquisa por meio de experimento com seres humanos. Esta conferência ficou popularmente conhecida com o Belmont report, que identificou em forma de resumo, os princípios éticos básicos que foram explanados durante os quatro dias de conferência. Atualmente, tais princípios são utilizados para norteamento na realização dos experimentos biológicos em diversos países, os princípios que se trata são: (i) o princípio da beneficência; (ii) o princípio da não-maleficência; (iii) o princípio da autonomia; (iv) o princípio da justiça; e (v) o princípio da equidade. Tradicionalmente, o princípio da beneficência encontra-se associado à excelência profissional desde os tempos remotos da medicina grega, materializando-se no Juramento de Hipócrates: “Usarei o tratamento para ajudar os doentes, de acordo com minha habilidade e julgamento e nunca o utilizarei para prejudicá-los”. Segundo Loch (s.d., p. 03), a beneficência significa fazer o bem, logo, em uma dimensão prática, todos os indivíduos têm a obrigação moral de agir para o benefício do outro. Ora, essa acepção, quando empregada na área de cuidados com a saúde, que compreende todas as profissões das ciências biomédicas, substancializa-se em fazer o melhor para o paciente, não apenas em uma perspectiva técnico-assistencial, mas também do ponto de vista ético. Ao lado disso, é oportuno apontar que se trata de usar todos os conhecimentos e habilidades profissionais a serviço do paciente, considerando, na construção da decisão, a minimização dos riscos e a maximização dos benefícios do procedimento a realizar (LOCH, s.d., p. 03). O princípio da não-maleficência, por sua vez, apregoa que o profissional de saúde tem o dever de, intencionalmente, não causar mal ou danos a seu paciente. “Considerado por muitos como o princípio fundamental da tradição hipocrática da ética médica, tem suas raízes em uma máxima que preconiza: ‘cria o hábito de duas coisas: socorrer (ajudar) ou, ao menos, não causar danos’” (LOCH, s.d., p. 02). O preceito em apreço é empregado frequentemente como uma exigência oral da profissão médica, materializando, desta feita, um mínimo ético, um dever profissional, que, caso não se cumpra, coloca o profissional da saúde numa situação de má-prática ou prática negligente da medicina ou das demais profissões da área biomédica. Há que se reconhecer que o dogma em destaque recebe especial importância em razão de o risco causar danos é inseparável de uma ação ou procedimento que está moralmente indicado. Já o princípio da autonomia estabelece que as pessoas possuem liberdade de decisão, ser autônomo em suas decisões, cada cidadão capaz possui esse direto de autonomia, é a capacidade de autodeterminação. Respeitar a autonomia do ser humano está relacionado com a preservação dos direitos fundamentais do homem e ligado a Dignidade da pessoa humana. E no âmbito da Bioética, para que ocorra o respeito à autonomia das pessoas é essencial à presença de duas condições, a liberdade e a informação. Loch aponta que autonomia é a capacidade de uma pessoa para decidir ou buscar aquilo que ela julga ser o melhor para si mesma, porém para que ela possa exercer a autodeterminação são imprescindíveis duas condições fundamentais, quais sejam: “a) capacidade para agir intencionalmente, o que pressupõe compreensão, razão e deliberação para decidir coerentemente entre as alternativas que lhe são apresentadas; b) liberdade, no sentido de estar livre de qualquer influência controladora para esta tomada de posição” (LOCH, s.d., p. 04). Em se tratando da liberdade, profere-se que o cidadão, possui a liberdade de decisão, sem nenhum tipo de influência e informação se desencadeia no conhecimento que a pessoa tem do seu estado para que possua capacidade de decidir se irá se submeter a algum procedimento. Ademais, há de salientar, que hora e outra não haverá o respeito à autonomia de uma pessoa em favor de beneficiar outras pessoas, exemplificando, fumantes. Por seu turno, os princípios da justiça e da equidade referem-se ao tratamento de todos de uma forma igual, utilizando-se da justa medida. Verifica-se que a equidade presa o atendimento das necessidades de cada pessoa de acordo com que precisa, é disponibilizar aos iguais de forma igual e dar aos desiguais de forma desigual. A questão da Justiça faz alusão ao fato de ser respeitar o direito de cada um de forma imparcial, não concedendo privilégios a alguém. Ao lado disso, insta anotar que Loch destaca que “O conceito de justiça, do ponto de vista filosófico, tem sido explicado com o uso de vários termos. Todos eles interpretam a justiça como um modo justo, apropriado e equitativo de tratar as pessoas em razão de alguma coisa que é merecida ou devida à elas. Estes critérios de merecimento, ou princípios materiais de justiça, devem estar baseados em algumas características capazes de tornar relevante e justo este tratamento. Como exemplos destes princípios materiais de justiça pode-se citar: 1. Para cada um, uma igual porção 2. Para cada um, de acordo com sua necessidade. 3. Para cada um, de acordo com seu esforço. 4. Para cada um, de acordo com sua contribuição. 5. Para cada um, de acordo com seu mérito. 6. Para cada um, de acordo com as regras de livre mercado” (LOCH, s.d., p. 05). Em 2005, houve a 33º conferência geral da UNESCO, em Paris, onde ocorrera o reconhecimento da Bioética em âmbitos universais, fora referendada e ratificada por 191 países, integrantes das nações Unidas. Contudo, houve discussões a cerca das particularidades da Declaração documental da Bioética em relação à particularidade de cada país. A Declaração Universal de Bioética e Direitos humanos descreve e apontam os objetivos, finalidades, princípios e aplicação do mesmo, considerações sobre Bioética; “Reconhecendo que questões éticas suscitadas pelos rápidos avanços na ciência e suas aplicações tecnológicas deveriam ser examinadas com o devido respeito à dignidade da pessoa humana e respeito universal por, e cumprimento dos direitos humanos e liberdades fundamentais, Decidindo que é necessário e oportuno para a comunidade internacional declarar princípios universais que proporcionarão uma base para a resposta da humanidade para os sempre-crescentes dilemas e controvérsias que a ciência e a tecnologia apresentam para a humanidade e para o meio ambiente.” (UNESCO, 2005, p. 65). Observa-se que a conferência geral manteve o intuito do Professor pioneiro Van Rensselaer Potter, foi almejado nesta conferência elaborar um suporte de princípios e procedimentos no que diz respeito à elaboração de suas legislações, construção política e outros ramos que estejam ligados á Bioética. Ao analisar o Documento da Declaração, percebe-se que o mesmo está respaldado por orientações, particularmente os princípios que cercaram a Bioética. No Brasil, em 1995 houve a criação da Sociedade Brasileira da Bioética (SBB), que possui por missão principal difusão da Bioética ao Brasil e tem como objetivo; “Reunir pessoas de diferentes formações, interessadas em fomentar a discussão e difusão da Bioética. Estimular a produção de conhecimento em Bioética; promover e assessorar planos, projetos, pesquisas e atividades na área de Bioética; patrocinar eventos de Bioética, conforme regulamentos próprios; apoiar e participar de movimentos e atividades que visem a valorização da Bioética”. (SOCIEDADE BRASILEIRA DE BIOÉTICA, 1995, s.p.). Como denominou Van Potter, a Bioética é a Ciência da Sobrevivência e promover o avanço da mesma torna-se essencial para um crescimento na tecnologia biológica, permeando-se pelos princípios que a norteiam. Bioética engloba e sociedade em geral, e é de suma importância que as pessoas se interem de seu conceito e princípios, tornando-se similar aos profissionais da saúde. 2 Bioética, Biossegurança e Segurança Alimentar e Nutricional: Um exame tridimensional do Direito Humano à Alimentação Adequada Ao esmiuçar a Lei Nº 11.105, de 24 de Março de 2005, que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências, verifica-se que o legislador infraconstitucional estabeleceu três diretrizes basilares para perseguir a concreção da Política Nacional de Biossegurança. Neste cenário, cuida evidenciar que a primeira diretriz afixada buscar promover o estímulo ao avanço científico na área de Biossegurança e Biotecnologia, fomentando a incitação das atividades destinadas ao desenvolvimento da sistematização do conhecimento nas áreas de biossegurança e da biotecnologia. É importante salientar que, nesta senda, a biossegurança consiste no “conjunto de estudos e procedimentos que visam a controlar os eventuais problemas suscitados por pesquisas biológicas, assim como em face de suas aplicações” (FIORILLO, 2012, p. 416); ao passo que a biotecnologia materializa o uso da ciência norteada a produzir organismos vivos com características particulares, maiormente pela manipulação de material genético diferente. É possível, neste sedimento, trazer à colação o entendimento manifestado pela Ministra Cármen Lúcia: “O termo ‘ciência’, enquanto atividade individual, faz parte do catálogo dos direitos fundamentais da pessoa humana (inciso IX do art. 5º da CF). Liberdade de expressão que se afigura como clássico direito constitucional-civil ou genuíno direito de personalidade. Por isso que exigente do máximo de proteção jurídica, até como signo de vida coletiva civilizada. Tão qualificadora do indivíduo e da sociedade é essa vocação para os misteres da Ciência que o Magno Texto Federal abre todo um autonomizado capítulo para prestigiá-la por modo superlativo (capítulo de nº IV do título VIII). A regra de que ‘O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas’ (art. 218, caput) é de logo complementada com o preceito (§ 1º do mesmo art. 218) que autoriza a edição de normas como a constante do art. 5º da Lei de Biossegurança. A compatibilização da liberdade de expressão científica com os deveres estatais de propulsão das ciências que sirvam à melhoria das condições de vida para todos os indivíduos. Assegurada, sempre, a dignidade da pessoa humana, a CF dota o bloco normativo posto no art. 5º da Lei 11.105/2005 do necessário fundamento para dele afastar qualquer invalidade” (BRASIL, 2008). Com destaque, a primeira diretriz estabelece no plano infraconstitucional os critérios orientadores ao cumprimento da determinação contida no artigo 218 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que impõe ao Estado o dever de promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica, bem como apoiar a formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa e tecnologia concedendo, desta maneira, aos que delas se ocupem meios e condições especiais de trabalho. Quadra anotar que a orientação constitucional é direcionada a brasileiros e estrangeiros residentes no território nacional no plano de direitos individuais e coletivos. Ora, o Estado tem o dever de incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica em face de organismos geneticamente modificados, abarcando desde o cidadão pesquisador até entidades organizadas em proveito da pesquisa, afixando o sucedâneo de regras de apoio e estímulo às empresas que promovam o investimento em pesquisa. “A diretriz visa obviamente ao progresso das ciências no Brasil (art. 218, §1º), destinado evidentemente a assegurar a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, c/c o art. 218, §1º, da CF) dentro de uma ordem jurídica adaptada à economia capitalista (art. 1º, IV, c/c o art. 170, VI, da CF); daí a clara orientação da Carta Magna para estabelecer que a pesquisa tecnológica deverá estar voltada preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros, assim como para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional” (art. 218, §2º, c/c os arts. 3º e 170, VI, da CF)” (FIORILLO, 2012, p. 417). Por seu turno, a segunda diretriz vocaliza a proteção à vida, à saúde humana, animal e vegetal, destinando-se a impor, no plano infraconstitucional, não apenas em relação ao Poder Público, mas também àqueles que dedicam às atividades de pesquisa ou mesmo às atividades de uso comercial a defesa e a preservação da vida, tal como a saúde humana, animal e vegetal em face de obras e atividades vinculadas aos corpos vivos, cujo material genético venha a ser submetido à modificação por qualquer tecnologia. Denota-se que a Lei Nº 11.105, de 24 de Março de 2005, que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providência, buscou dispensar proteção da vida, sendo tal acepção estendida não apenas à espécie humana, mas também compreendendo as demais espécies, tanto vegetal quanto animal, conferindo tutela especial ao tema. Neste passo, a terceira diretriz entalhada na Lei de Biossegurança estabelece a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente, valorando o princípio constitucional do meio ambiente ecologicamente equilibrado alçado à condição de materialização da dignidade da pessoa humana. Susta pontuar que o princípio da precaução, também denominado de princípio da prevenção, foi, de maneira expressa, consagrado na redação da Constituição de 1988, sendo certo que seus influxos passam a permear a Política Nacional de Biossegurança, estabelecendo, no plano infraconstitucional, a precaução como dogma a ser observado no âmbito das normas de segurança, bem como estruturando mecanismos de fiscalização e atividades que envolvam organismos geneticamente modificados. “O princípio da precaução deverá ser verificado caso a caso, ou seja, em face de eventual ameaça à vida em todas as suas formas, e os instrumentos do direito processual ambiental deverão dirimir a controvérsia”, como bem anota Fiorillo (2012, p. 421-422) em seu magistério. Desta feita, o que se ambiciona é estruturar pericialmente a eventual existência de lesão ou ameaça ao bem ambiental juridicamente protegido, por meio de perícia complexa edificar uma resposta jurídica em face da efetiva caracterização do princípio da precaução. É possível salientar que o corolário da precaução se apresenta como uma garantia contra os riscos potenciais que, em harmonia com o estado atual de conhecimento, não são passíveis, ainda, de identificação. É desfraldada como flâmula pelo preceito da precaução que, em havendo ausência de certeza científica formal, existência de um dano robusto ou mesmo irreversível reclama a estruturação de medidas e instrumentos que possam minimizar e/ou evitar este dano. Com destaque, o conteúdo material do patrimônio genético entalhado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, tal como na a Lei Nº 11.105, de 24 de Março de 2005, que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1odo art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providência, está a reclamar dos profissionais de direito e, maiormente, dos juízes, preparo adequado para lidar com a temática em destaque. 3 Alimentos transgênicos: uma tema de incertezas no futuro Nas últimas décadas, o desenvolver-se e o emprego dos organismos geneticamente modificados, ou simplesmente transgênicos, em larga escala na agricultura têm se amparado sob três principais argumentos: a preservação do meio ambiente, o aumento da produção para combater a fome e a redução dos custos de produção. Organizações governamentais e intergovernamentais têm planejado estratégias e protocolos para o estudo da segurança de alimentos derivados de cultivos geneticamente modificados. É nessa linha que verificasse a necessidade de alertar os cidadãos sobre as “verdades científicas” veiculadas nas mídias ou nos discursos políticos sociais. Ribeiro e Marin discutem que: “Ainda hoje, pesquisas e estudos que envolvem os potenciais riscos ao consumo humano de AGM ainda são muito restritos. No entanto, existem estudos sobre o efeito da ingestão de soja Roundup Ready em ratos, que demonstraram em análises ultraestruturais e imunocitoquímica, alterações em células acinares do pâncreas (redução de fatores de “splicing” do núcleo e do nucléolo e acúmulo de grânulos de pericromatina); em testículos (aumento do número de grânulos de pericromatina, diminuição da densidade de poros nucleares e alargamento do retículo endoplasmático liso das células de Sertoli), havendo a possibilidade de tais efeitos estarem relacionados ao acúmulo de herbicida presente na soja resistente, além de alterações em hepatócitos (modificações na forma do núcleo, aumento do número de poros na membrana nuclear, alterações na forma arredondada do nucléolo, indicando aumento do metabolismo) sendo potencialmente reversíveis neste último grupo de células” (RIBEIRO; MARIN, 2012, p.362). De maneira feliz, a posse das discussões sobre a ciências, ética e meio ambiente não pertence mais unicamente aos adeptos do desenvolvimento científico e tecnológico. Não obstante, as controvérsias científicas sempre fizeram parte da cultura da ciência. Já na década de 1950, Jacques Ellul, filósofo francês, abordava essa discussão (Le système technicien, Paris: Calman-Levy, 1977): “Mais o progresso técnico cresce, mais aumenta a soma de efeitos imprevisíveis. Certos progressos técnicos criam incertezas permanentes e em longo prazo […] Processos irreversíveis foram já implementados, particularmente no campo do meio ambiente e da saúde. Os problemas ambientais são exemplares. Criados pelo desenvolvimento tecnológico desenfreado e irrefletido, necessitam sempre de novos instrumentos e técnicas para resolvê-los. Os problemas de saúde pública ou de segurança alimentar são sistematicamente reformulados de modo que possam receber soluções técnicas ao invés de soluções políticas” (ZANONI; FERMENT. 2011, p. 14). A temática dos transgênicos cobre um conjunto de domínios e aspectos sociais, econômicos culturais e ambientais. A grande questão que vem sendo levantada é o quão seguras são essas tecnologias, se elas estão de acordo com o Guia Internacional para Segurança em Biotecnologia(IGSB) aceito pelo Programa Ambiental das Nações Unidas (MOSS, 2008, s.p.). Ultimamente, os assuntos dos adeptos do princípio da precaução forçam os governos de muitos países incluindo o Brasil, a modificar suas políticas e desistir da produção de variedades geneticamente modificadas. Assegura Rubens Onofre Nodari (2003) sobre o assunto, que os testes de segurança são conduzidos caso a caso e modelados para as características específicas das culturas modificadas e as mudanças introduzidas através da modificação genética. Todavia o mesmo autor salienta que o maior problema na análise de risco de organismos geneticamente modificados, é que seus efeitos não podem ser previstos na sua totalidade. Os riscos à saúde humana incluem aqueles inesperados, alergias, toxicidade intolerância. No ambiente, as consequências são a transferência lateral (horizontal) de genes, a poluição genética e os efeitos prejudiciais aos organismos não alvos. Estudos elaborados por Costa (2007) apontam que, todos os fenômenos e eventos indesejáveis resultantes do crescimento e consumo dos organismos geneticamente modificados podem ser classificados em três grupos de risco: alimentares, ecológicos e agrotecnológicos. Os riscos alimentares compreendem: a) efeitos imediatos de proteínas tóxicas oualergênicas do OGM; b) riscos causados por efeitos pleiotrópicos das proteínas transgênicas no metabolismo da planta; c) riscos mediados pela acumulação de herbicidas e seus metabólitos nas variedades e espécies resistentes; d) risco de transferência horizontal das construções transgênicas, para o genoma de bactérias simbióticas tanto de humanos quanto de animais (TEMM et all, 2007, p. 330). Os riscos ecológicos abarcam: a) erosão da diversidade das variedades de culturas em razão da ampla introdução de plantas GM derivadas de um grupo limitado de variedades parentais; b) transferência não controlada de construções, especialmente daquelas que conferem resistência a pesticidas e pragas e doenças, em razão da polinização cruzada com plantas selvagens de ancestrais e espécies relacionadas. Os possíveis resultados são o declínio na biodiversidade das formas selvagens do ancestral; c) risco de transferência horizontal não controlada das construções para a microbiota da rizosfera; d) efeitos adversos na biodiversidade em razão de proteínas transgênicas tóxicas, afetando insetos não alvos, assim como a microbiota do solo, rompendo desta forma a cadeia trófica; e) risco de rápido desenvolvimento de resistência às toxinas implantadas no transgênico por insetos fitófagos, bactérias, fungos e outras pragas devido à pesada pressão seletiva; f) riscos de cepas altamente patogênicas de fitovírus emergirem em razão da interação do vírus com a construção transgênica que é instável no genoma dos organismos receptores e, portanto, são alvos mais prováveis para recombinação com DNA viral (TEMM et all, 2007, p. 330). No que compete aos riscos agrotecnológicos, é possível explicitar: a) riscos de mudanças imprevisíveis em propriedades e características não alvo das variedades GM e em razão dos efeitos pleiotrópicos de um gene introduzido; b) riscos de mudanças transferidas nas propriedades de variedade GM que deveriam emergir depois de muitas gerações em razão da adaptação do novo gene ao genoma, com manifestação da nova propriedade pleiotrópica e as mudanças já citadas; c) Perda da eficiência do transgênico resistente a pragas em razão do cultivo extensivo das variedades GM por muitos anos; d) possível manipulação da produção de sementes pelos donos da tecnologia “terminator” (TEMM et all, 2007, p. 330). Entretanto, observa-se que a preocupação com a produção e utilização dos OGM por sua vez, e a combinação de riscos complexos e incertos com a existência de vulnerabilidades sociais e ambientais, torna ainda mais explosiva a necessidade da dialética entre produção-destruição inerente aos atuais modelos de desenvolvimento econômico e tecnológicos. 4 Direito Humano à Alimentação e o Corolário da Prevenção: Primeiras Reflexões sobre os Alimentos Transgênicos A fome é um problema mundial que aflige quase a totalidade dos países nas mais variadas proporções e magnitudes. Durante praticamente toda a história o homem empreendeu esforços a fim de afastá-la, sendo esta uma tarefa de alta complexidade. A boa alimentação está galgada na capacidade humana de consumir a quantidade de nutrientes suficientes para desenvolver com plenitude suas atividades físicas e intelectuais. De acordo com o discutido no Comitê de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU acerca do direito à alimentação adequada, expressa no Comentário Geral n. 12 ao PIDESC, o referido direito inclui o acesso estável e permanente a alimentos saudáveis, seguros e sadios, em quantidade suficiente, culturalmente aceitos, produzidos de uma forma sustentável e sem prejuízo da implementação de outros direitos para as presentes e futuras gerações (ONU, 1999). Como já dito, no Brasil o direito à alimentação está previsto em vários documentos legais tendo sido incorporado em vários dispositivos e princípios da Carta Constitucional de 1988. Contudo, a ausência de garantia no cumprimento efetivo de tal direito no seio das famílias brasileiras, configura-se como evidente afronta, sobretudo, ao princípio da dignidade humana já que esta se perfaz no respeito à qualidade de vida, à saúde, à alimentação e ao bem estar, destacados já no preâmbulo da CF/88: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (BRASIL, 1988) Assim, a alimentação como direito social e positivado na carta política brasileira integra o rol dos direitos fundamentais inalienáveis e plenamente exigíveis, indicando tal fato, sobretudo, que quando fatores estruturais ou conjunturais do processo econômico e social não possibilitarem a realização do direito à alimentação, o Poder Público pode ser judicialmente acionado para seu devido cumprimento. Ora, há que reconhecer que o direito humano à alimentação substancializa direito inerente a qualquer ser humano, estando, portanto, compreendido no princípio maior da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, no debate acerca dos alimentos transgênicos, sobretudo sua utilização na afirmação do direito humano à alimentação, há defensores que entendem que aqueles serviriam para subsidiar a materialização do direito em comento, porquanto seriam capazes de colocar fim à fome, em especial nos países em que essa é extrema e alcançam índices alarmantes, tal como poderá influenciar diretamente no barateamento dos gêneros alimentícios. Em que pese tal ótica, e como alinhavado em momento anterior, há que se discordar dessa máxima, porquanto os efeitos produzidos pelos organismos geneticamente modificados a longo tempo sobre o ser humano ainda é desconhecido e requer maiores estudos, sobretudo para potenciais maléficos. O direito humano à alimentação não deve ser encarado como sinônimo de utilização de qualquer fonte alimentar, mas sim gêneros que sejam quantitativamente e qualitativamente detentores de condições mínimas. É possível salientar que o corolário da precaução se apresenta como uma garantia contra os riscos potenciais que, em harmonia com o estado atual de conhecimento, não são passíveis, ainda, de identificação. É desfraldada como flâmula pelo preceito da precaução que, em havendo ausência de certeza científica formal, existência de um dano robusto ou mesmo irreversível reclama a estruturação de medidas e instrumentos que possam minimizar e/ou evitar este dano. Neste passo, sobreleva salientar que o dogma em apreço encontra seu sedimento de estruturação no princípio quinze da Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como Declaração do Rio/92, que em seu princípio quinze estabelece: “Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental” (ONU, 1992). Quadra destacar, nesta toada, que a ausência de certeza científica absoluta não deve subsidiar pretexto para postergação do emprego de medidas efetivas que objetivem evitar a degradação ambiental. Mais que isso, é oportuno consignar que, diante da situação concreta, “a incerteza científica milita em favor do ambiente, carregando-se ao interessado o ônus de provar que as intervenções pretendidas não são perigosas e/ou poluentes”, como bem anota Romeu Thomé (2012, p. 69). Neste sentido, inclusive, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, ao relatoriar o Agravo Regimental no Agravo no Recurso Especial Nº 206.748/SP, salientou, com bastante pertinência, a dimensão do princípio da precaução, explicitando que “pressupõe a inversão do ônus probatório, transferindo para a concessionária o encargo de provar que sua conduta não ensejou riscos para o meio ambiente e, por consequência, aos pescadores da região” (BRASIL, 2013). O axioma em realce, neste cenário, constitui no principal norteador das políticas ambientais, à medida que este se reporta à função primordial de evitar os riscos e a ocorrência dos danos ambientais. Em decorrência da proeminência assumida pelo preceito da precaução, salta aos olhos que é robusto orientador das políticas ambientas, além de ser o alicerce fundante da edificação do jus ambiental. Nesse passo, diante da crise ambiental que condiciona o desenvolvimento econômico, de modo sustentável, a segundo plano e da devastação dos diversos ecossistemas em escala vertiginosa, prevenir a degradação do meio-ambiente passou a se objeto da preocupação constante de todos aqueles que buscam melhor qualidade de vida para as presentes e futuras gerações. Entalhou o princípio da precaução a Declaração de Wingspread de 1998, que “quando uma atividade representa ameaças de danos ao meio-ambiente ou à saúde humana, medidas de precaução devem ser tomadas, mesmo de algumas relações de causa e efeito não forem plenamente estabelecidas cientificamente” (MELIM, s.d., s.p.). Os Tribunais Pátrios já se manifestaram quanto à aplicabilidade do princípio em comento, consoante se infere dos arestos colacionados: “Ementa: Pedido de Suspensão. Meio Ambiente. Princípio da Precaução. Em matéria de meio ambiente vigora o princípio da precaução. Esse princípio deve ser observado pela Administração Pública, e também pelos empreendedores. A segurança dos investimentos constitui, também e principalmente, responsabilidade de quem os faz. À luz desse pressuposto, surpreende na espécie a circunstância de que empreendimento de tamanho vulto tenha sido iniciado, e continuado, sem que seus responsáveis tenham se munido da cautela de consultar o órgão federal incumbido de preservar o meio ambiente a respeito de sua viabilidade. Agravo regimental não provido”. (Superior Tribunal de Justiça – Corte Especial/ AgRg na SLS 1.564/MA/ Relator: Ministro Ari Pargendler/ Julgado em 16 mai. 2012/ Publicado no DJe em 06 jun. 2012). “Ementa: Direito Ambiental. Ação Civil Pública. Cana-de-açúcar. Queimadas. Art. 21, parágrafo único, da Lei n. 4771/65. Dano ao meio ambiente. Princípio da Precaução. Queima da palha de cana. Existência de regra expressa proibitiva. Exceção existente somente para preservar peculiaridades locais ou regionais relacionadas à identidade cultural. Inaplicabilidade às atividades agrícolas industriais. 1. O princípio da precaução, consagrado formalmente pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – Rio 92 (ratificada pelo Brasil), a ausência de certezas científicas não pode ser argumento utilizado para postergar a adoção de medidas eficazes para a proteção ambiental. Na dúvida, prevalece a defesa do meio ambiente. […] Recurso especial provido”. (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp nº 1.285.463/SP/ Relator: Ministro Humberto Martins/ Julgado em 28 fev. 2012/ Publicado no DJe em 06 mar; 2012). “Ementa: Processual Civil – Competência para julgamento de execução fiscal de multa por dano ambiental – Inexistência de interesse da União – Competência da Justiça Estadual – Prestação jurisdicional – Omissão – Não-ocorrência – Perícia – Dano Ambiental – Direito do suposto poluidor – Princípio da Precaução – Inversão do ônus da prova. 1. A competência para o julgamento de execução fiscal por dano ambiental movida por entidade autárquica estadual é de competência da Justiça Estadual. 2. Não ocorre ofensa ao art. 535, II, do CPC, se o Tribunal de origem decide, fundamentadamente, as questões essenciais ao julgamento da lide. 3. O princípio da precaução pressupõe a inversão do ônus probatório, competindo a quem supostamente promoveu o dano ambiental comprovar que não o causou ou que a substância lançada ao meio ambiente não lhe é potencialmente lesiva. 4. Nesse sentido e coerente com esse posicionamento, é direito subjetivo do suposto infrator a realização de perícia para comprovar a ineficácia poluente de sua conduta, não sendo suficiente para torná-la prescindível informações obtidas de sítio da internet. 5. A prova pericial é necessária sempre que a prova do fato depender de conhecimento técnico, o que se revela aplicável na seara ambiental ante a complexidade do bioma e da eficácia poluente dos produtos decorrentes do engenho humano. 6. Recurso especial provido para determinar a devolução dos autos à origem com a anulação de todos os atos decisórios a partir do indeferimento da prova pericial”. (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp nº 1.060.753/SP/ Relatora: Ministra Eliana Calmon/ Julgado em 01 dez. 2009/ Publicado no DJe em 14 dez. 2009). Segundo Colombo (2004, s.p.), no direito positivo pátrio, é possível verificar a substancialização do princípio da precaução nos incisos I e IV do artigo 4º da Lei Nº. 6.938, de 31 de Agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências, que, de forma clarividente, expressa a imperiosidade de existir um equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a utilização, de maneira racional, dos recursos naturais, sem olvidar da imprescindível avaliação do impacto ambiental. “Este princípio tem sido muito utilizado em ações civis públicas, seja requerendo a paralisação de obras, seja requerendo a proibição de explorações que possam causar, ainda hipoteticamente, danos ao meio ambiente” (THOMÉ, 2012, p. 69-70). Lançando mão das ponderações apresentadas por Colombo (2004, s.p.), o vocábulo precaução apresenta similitude idiomática com cuidado, logo, é imperioso, em razão do feixe irradiado pelo dogma em análise, o afastamento de perigo e manutenção da segurança das gerações futuras, bem assim da sustentabilidade ambiental das atividades humanas. Verifica-se que o preceito em testilha é a concreção da busca pela proteção da existência humana, seja pela proteção de seu ambiente como também pelo asseguramento da integridade da vida humana. Desta premissa, insta sustar que imperioso se faz considerar não somente o risco eminente de uma específica atividade, mas também os riscos futuros advindos de empreendimentos humanos, os quais, devido à compreensão e ao atual estágio desenvolvimento da ciência, não consegue captar toda densidade. “A aplicação do princípio da precaução deve ainda limitar-se aos casos de ‘ética do cuidado’, que não se satisfaz apenas com a ausência de certeza dos malefícios, mas privilegia a conduta humana que menos agrida, ainda que eventualmente, o meio natural” (THOMÉ, 2012, p. 70). É denotável, deste modo, que a consagração do corolário da precaução se apresenta como robusto instrumento que estabelece a adoção de uma nova postura em relação à degradação do meio ambiente, afixando, por via de consequência, a estruturação de medidas ambientais, tanto por parte do Estado quanto pela sociedade em geral, que obstem a instalação e desenvolvimento de atividade que tenha potencial lesivo ao meio ambiente. No que se referem às indústrias já instaladas, o princípio da precaução assume uma feição que busque cessar o dano ambiental já concretizado, minimizando os efeitos danosos provocados. “A leitura atenta do acórdão combatido revela que seu fundamento de decidir foi o princípio da precaução, considerando que, na dúvida, impõe-se a sustação dos licenciamentos e a realização de estudos de impacto ambiental, sob pena de o dano consumar-se” (BRASIL, 2011), como o Ministro Mauro Campbell Marques explicitou, com clareza solar, ao relatoriar o Recurso Especial N° 1.163.939/RS. Impende destacar, ainda, com grossos traços e cores quentes, que a atividade econômica não pode ser exercida em desacordo com os princípios destinados a tornar efetiva a proteção do meio ambiente. A incolumidade do meio ambiente não pode ser embaraçada por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de âmago essencialmente econômico, ainda mais quando a atividade econômica, em razão da disciplina constitucional, estiver subordinada a um sucedâneo de corolários, notadamente àquele que privilegia a defesa do meio ambiente, o qual abarca o conceito amplo e abrangente de noções atreladas ao meio ambiente em suas múltiplas manifestações, quais sejam: o meio ambiente natural, meio ambiente cultural, meio ambiente artificial e meio ambiente do trabalho (ou laboral). Verifica-se que os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural. Denota-se, portanto, que o princípio da precaução, notadamente em decorrência de seu núcleo sensível, deve ser erigido como flâmula orientadora de inspiração, sobretudo quando, diante dos experimentos científicos, inexistir elementos mínimos capazes de estabelecer as consequências a médio e a longo prazo. Assim, ao se analisar o corolário em debate, cuida reconhecer que a sua materialização reclama a presença de quatro componentes básicos que podem ser resumidos: (i) a incerteza passa a ser considerada na avaliação de risco; (ii) o ônus da prova cabe ao proponente da atividade; (iii) na avaliação de risco, um número razoável de alternativas ao produto ou processo, devem ser estudadas e comparadas; (iv) para ser precaucionária, a decisão deve ser democrática, transparente e ter a participação dos interessados no produto ou processo. “Dessa maneira, esse princípio defende a ideia de que diante da ausência da certeza científica, a existência do risco de um agravo demanda a implantação de medidas que possam prevenir este agravo. Ou seja, ao legislar sobre uma ciência ainda não conhecida, deve-se ser precavido” (RIBEIRO; MARIN, 2012, p. 362). Nesta esteira, o princípio da precaução possui as seguintes características que serão tratadas a seguir: incerteza científica decorrente da possibilidade de graves prejuízos eventuais ou irreversíveis; temporariedade; estrito cumprimento obrigatório do corolário em comento; atuação estatal proporcionalmente; e a distribuição do ônus da prova. Para a sua incidência basta a existência de possível ameaça de eventuais graves prejuízos ou mesmo irreversíveis. Assim, as medidas a serem adotadas correlacionam-se com a proporcionalidade do evento danoso, inclusive, mensurando a impossibilidade de retroagir. Ademais, como se trata de possíveis danos irreversíveis, não se pode permitir a inércia ou omissão de tais danos, fundamentados na análise de probabilidade de incertezas científicas para a adoção de medidas garantidoras, ao oportunizar o seu controle, além de coibir a destruição do meio ambiente. Uma das principais características do princípio da precaução é propiciar às futuras gerações uma melhor qualidade de vida, em consonância com um meio ambiente equilibrado. Desse modo, cuida explicitar, oportunamente, que o Princípio da Precaução reside no fato de procurar atuar previamente à ocorrência do prejuízo ambiental ao adotar medidas com a devida cautela, ao visar os benefícios decorrentes de tais medidas futuramente. No tocante ao estrito cumprimento obrigatório do Princípio da Precaução, ressalta-se a universalidade imperativa dessa imposição uma vez que não é plausível a delimitação e separação do meio ambiente aos países, pois qualquer prejuízo ambiental acarreta efeitos mundiais. Portanto, todas as medidas de cautela a serem adotadas também devem ter seu estrito cumprimento em sede mundial. 5 Conclusão Por se tratar de uma nova tecnologia e considerando o reduzido conhecimento científico a respeito dos riscos de OGMs, torna-se indispensável que a liberação de plantas transgênicas para plantio e consumo, em larga escala, seja precedida de uma análise criteriosa de risco à saúde humana e do efeito desses produtos e serviços ao meio ambiente, respaldadas em estudos científicos, conforme prevê a legislação vigente. Assim, normas adequadas de biossegurança, licenciamento ambiental, e mecanismos e instrumentos de monitoramento e rastreabilidade são necessários para assegurar que não haverá danos à saúde humana, animal e ao meio ambiente. Também são imprescindíveis estudos de impacto socioeconômicos e culturais, daí a relevância da análise da oportunidade e conveniência que uma nação deve fazer antes da adoção de qualquer produto ou serviço decorrente da transgenia. É neste contexto, que a maioria dos países invocam o Princípio da Precaução, como diretriz para a tomada de decisões. Assim, quando há razões para suspeitar de ameaças de sensível redução ou de perda de biodiversidade ou, ainda, de riscos à saúde humana, a falta de evidências científicas não deve ser usada como razão para postergar a tomada de medidas preventivas. Desta forma, a adoção do Princípio da Precaução, constitui uma alternativa concreta a ser adotada diante de tantas incertezas científicas. Desta associação respeitosa e funcional do homem com a natureza, surgem as ações preventivas para proteger a saúde das pessoas e os componentes dos ecossistemas.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-153/bioetica-biosseguranca-e-seguranca-alimentar-e-nutricional-um-exame-tridimensional-do-direito-humano-a-alimentacao-adequada/
Solidariedade alimentar: breve ensaio sobre os influxos dos direitos de terceira dimensão em prol da efetivação do direito à alimentação adequada
É cediço que alimentação e nutrição configuram elementos indissociáveis para o desenvolvimento humano, compondo, a partir de 1996, com o advento da Cúpula de Roma, de maneira expressa, o rol dos direitos humanos. Nesta esteira, como uma típica manifestação dos ideários de solidariedade, o direito à alimentação adequada passa a transpor o individualismo humano, reclamando, por via de extensão, um agir coletivo, encontrando no gênero humano o destinatário de sua efetiva concretização. No cenário nacional, o direito à alimentação adequada foi incluído no rol dos artigos sociais preconizados no artigo 6º da Constituição Federal, passando, por consequência, a compor o denominado “mínimo existencial socioambiental”, ou seja, os elementos mínimos e imprescindíveis para que o indivíduo possa se desenvolver e tenha uma existência digna. Nesta linha de exposição, o presente objetiva promover uma análise sobre a concretização do direito em comento a partir da participação popular. [1]
Biodireito
1 INTRODUÇÃO Há que se reconhecer, inicialmente, que a temática da fome materializa assunto dotado de complexidade e de difícil abordagem pela sociedade, sobretudo em decorrência da fome estar diretamente associada à pobreza, a condições consideradas impróprias para o desenvolvimento humano e, até mesmo, à capacidade de retirar do faminto sua dignidade. Contudo, apesar da negação, este é um problema real que assola as sociedades desde os primórdios das civilizações, delineando diversos momentos de crise, nos quais a fome assumia sua feição mais potencializada, denominada carestia, tornando-se fator de desagregação social. Nesta linha de exposição, cuida ponderar que a fome encontra sua origem, sobretudo na contemporaneidade, em outras mazelas sociais, sobremaneira na desigualdade social e econômica e a ausência de distribuição de alimentos de forma isonômica. Assim, é possível afirmar que as mazelas sociais têm o condão de gerar um “efeito cascata”, desencadeando uma série de outros problemas, os quais vão substancializando um cenário caótico, no qual a população desprovida de condições econômicas é a maior vítima. Entender esse dilema, como ponto de partida da análise proposta no presente, apresenta-se como fundamental. Ora, combater a fome, sobretudo na contemporaneidade, tornou-se uma tarefa hercúlea, um verdadeiro desafio consistente em assegurar a todos o acesso à alimentação adequada e, com isso, ter condições mínimas para assegurar desenvolvimento físico, psíquico e intelectual e, por extensão, a concretização do ideário maior de dignidade da pessoa humana. Em tal cenário, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) desempenha papel fundamental, porquanto seu objetivo maior é aumentar a capacidade internacional para que, de forma eficaz, seja promovido o suporte adequado e sustentável para a segurança alimentar e nutrição global. Desta feita, para que seja possível ter-se uma dimensão do tamanho de tal problemática, quadra reconhecer que alguns dados são fundamentais. Segundo a FAO, cerca de 1,3 bilhão de toneladas de tudo que é produzido por ano é desperdiçado, ou seja, não chega a finalidade a que se destinaria. Ora, 30% (trinta por cento) da produção mundial se perdem na cadeia produtiva e obsta a concretização do direito à alimentação adequada. O desperdício é responsável por cerca de 8% das emissões globais de efeito estufa. Além disso, a produção de alimentos é a principal responsável pelo desmatamento, pela ampliação das fronteiras produtivas e pelo esgotamento de água do planeta. Portanto, mesmo que a produção anual de alimentos tenha alcançado elevados patamares de qualidade e seja mais do que suficiente para atender a população mundial, elevado é o número daqueles que sofrem fome crônica no século XXI. Neste sentido, convém apresentar o Mapa da Fome produzido pela FAO, referente ao biênio 2014-2016: Ora, é ilógico que, com tanto alimento de qualidade sendo produzido no mundo anualmente, o número de pessoas atingido pela fome seja tão elevado. De acordo com os estudos apresentados pela FAO (2016), os maiores índices de fome estão concentrados na Ásia e na África, como se percebe dos dados apresentados: (i) 15,2% da população total da Índia é subnutrida, o que equivale a 194,6 milhões de pessoas; (ii) 16,4% da população de Bangladesh, o que perfaz o número de 26,3 milhões de pessoas; (iii) 47,7% da população da República Centro Africana, o que perfaz 2,3 milhões de pessoas; (iv) 47,8% da população da Zâmbia, isto é, 7,4 milhões de pessoas; (v) 42,3% da população da Namíbia, ou seja, cerca de 1 milhão de pessoas. Entretanto, a problemática não se encontra limitada apenas aqueles continentes, mas também é verificada no continente americano, sendo possível, ainda, fazer alusão: (i) 53,4% da população do Haiti, ou seja, 5,7 milhões de pessoas; (ii) 16,6% da população da Nicarágua, isto é, 1 milhão de pessoas; (iii) 15,9% da população da Bolívia, o que equivale a 1,8 milhões de pessoas. No cenário nacional, a temática da fome, segundo os dados da FAO (2016), apresentou elevada evolução, reduzindo os índices de subnutridos. Neste sentido, convém mencionar que, no período entre 2000-2002, o Brasil apresentava uma população de 19,9 milhões de pessoas subnutridas (FAO, 2016). Contudo, a partir do período 2005-2007 há um salto qualitativo, reduzindo o número de subnutridos a número inferior a 5% da população em estado de subnutrição, o que é verificável no período 2010-2012 e 2014-2016. Ora, há que reconhecer que esses índices sofreram diminuição em especial devido ao programa de redistribuição de renda encampado pelo governo federal, o que se deu, em especial, com o Programa Bolsa Família. Vale ressaltar que o direito à alimentação adequada substancializa um proeminente direito humano e tem amparo jurídico. Isso significa dizer, que a legislação brasileira protege o direito de alimentação da pessoa humana, e mais que isso, tem o intuito de garanti-lo, sendo isso graças à emenda constitucional 064/2010, onde passou a figurar o mesmo, no artigo 6º como direito social. “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988). O real problema da fome vai além de não se ter o que comer, ou seja, identificar a alimentação como uma simples ração a ser distribuída periodicamente, pois não basta ter o que comer, mas sim é necessário comer com qualidade, em quantidade suficiente e hábitos culturalmente aceitáveis para que se supram as necessidades biológicas humanas. Trata-se, aqui, não da fome aguda, aquela passageira, o real intuito deste artigo é falar sobre a fome crônica, aquela a que milhões de pessoas estão expostas. 2 DELINEAMENTO DO VOCÁBULO “SOLIDARIEDADE”: O RECONHECIMENTO DA TERCEIRA DIMENSÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Antes de abordar o que seria propriamente dito o conceito de solidariedade, cabe, aqui, remontar e tratar das dimensões dos direitos fundamentais, para que seja possível, dessa forma, entender, como surgiu e como atinge os indivíduos tal concepção. Os direitos fundamentais, pilares da sociedade, encontram, em seu florescimento, inspiração nos ideais da Revolução Francesa, que tinham como lema os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade (liberté, egalité e fraternité), e, assim, como tal vêm trazer a lume as vontades, anseios e direitos do povo, daquele que não é adornado com privilégios e regalias, ou seja, esses direitos desempenham a função de “barreiras” que protegem o cidadão. “A função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na defesa jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo (sic), o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos” (liberdade negativa). (CANOTILHO apud MORAES, 2003, p. 58). Ainda de acordo com Cunha Júnior (2013), se a dignidade da condição humana reclama o respeito a determinados bens ou valores em qualquer circunstância, responsável pelo aparecimento de direitos humanos, concernentes às liberdades públicas, à exigência de condições sociais aptas a permitir a realização de todas as virtudes do ser humano. O movimento histórico de expansão e afirmação progressiva dos direitos humanos fundamentais que reclama o estudo da temática na evolução do tempo. Os direitos fundamentais vão se dividindo em várias dimensões e, sobre essa expansão, Cunha Júnior (2013, p. 586) explica que essa “corresponde a uma sucessão temporal de afirmação e acumulação de novos direitos fundamentais”. E completa: “As gerações dos direitos revelam a ordem cronológica do reconhecimento e afirmação dos direitos fundamentais, que se proclamam gradualmente na proporção das carências do ser humano, nascidas em função da mudança das condições sociais”. (CUNHA JÚNIOR, 2013, p. 588). A partir desse pensamento que se pode entender o porquê do conceito de solidariedade só vir à tona para discussão agora, pois é com o evoluir da sociedade que vai se dando o seu reconhecimento e sua concretização. Os direitos fundamentais que compõem a primeira dimensão são em geral ligados a ideia de liberdade, ou seja, direitos civis e políticos. Fazem-se presentes em todas as constituições das sociedades democráticas. Nesta dimensão os direitos fundamentais têm como foco o cidadão, são individualistas, portanto, aqui o indivíduo tem reconhecidos os seus direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à segurança, à igualdade de todos perante a lei, o direito a livre iniciativa, a liberdade de opinião, a liberdade para escolha de sua profissão. A pessoa passa a ser senhora de sua vida, escritora de sua própria história. Preciosas são as palavras de Dirley da Cunha Júnior (2013, p.595) ao referenciar que tais direitos “são denominados de direitos de igualdade, porque são animados pelo propósito de reduzir material e concretamente as desigualdades sociais e econômicas até então existentes, que debilitavam a dignidade humana”. Em complemento, Bonavides (2007, p. 563) vai apontar que “os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade”, aspecto este que passa a ser característico da dimensão em comento. Com realce, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado, refletindo um ideário de afastamento daquele das relações individuais e sociais. Neste ponto, o Estado respeita a condição livre de cada indivíduo. Isso significa dizer que aquele Estado que tem por objetivo a consagração de direitos de primeira dimensão é liberal, ou seja, que simplesmente se abstém de intervir na liberdade da pessoa humana. Por isso, inexiste a estruturação de para a atuação em um contexto social, característica essa que se contrapõe ao Estado solidário. Para Cunha Júnior (2013, p. 663), os direitos considerados típicos da primeira dimensão são “todos aqueles que visam à defesa de uma autonomia pessoal no âmbito no qual o indivíduo possa desenvolver as suas potencialidades e gozar de sua liberdade sem a interferência indevida do Estado e do particular”. Neste caso, conclui-se que os direitos de liberdade são assegurados a todos, sendo característico de um governo democrático que concede ampla miscigenação de ideias e opiniões populares, reconhecendo na afirmação da liberdade do indivíduo e na proteção de seus direitos mais basilares, a exemplo de vida, liberdade, livre manifestação e integridade, como expressões claras do reconhecimento do indivíduo como cidadão. Entretanto, como dito acima, ao passo que o indivíduo e a sociedade evoluem esses direitos passam a não ser mais suficientes, e não imprimem mais a realidade de seu tempo. Tratam-se, agora, dos direitos de segunda dimensão (igualdade), direitos sociais, culturais e econômicos, ligados, intrinsecamente, à igualdade do lema supracitado da Revolução Francesa. O Estado, mesmo na sua forma mínima, emerge para garantir os direitos dos cidadãos, contudo não se confunde ainda com a concepção ideológica de solidariedade. Seu surgimento é marcado, em geral, por movimentos de cunho social e oposição à exploração desmedida das classes trabalhadoras e operárias, sobretudo sob o argumento do combate ao lucro e a acumulação de riqueza como justificativa para extenuantes jornadas de trabalho. Bonavides, ao tratar do tema, destaca que os direitos de segunda dimensão “são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal” (BONAVIDES, 2007, p. 564). Os direitos alcançados pela rubrica em comento florescem umbilicalmente atrelados ao corolário da igualdade. Como se percebe, a marcha dos direitos humanos fundamentais rumo às sendas da história é paulatina e constante. Ademais, a doutrina dos direitos fundamentais apresenta uma ampla capacidade de incorporar desafios. “Sua primeira geração enfrentou problemas do arbítrio governamental, com as liberdades públicas, a segunda, o dos extremos desníveis sociais, com os direitos econômicos e sociais”, como bem evidencia Ferreira Filho (2004, p. 47). Cumpre explanar que o Estado nesta dimensão possui um papel dessemelhante do anterior. Melhor dizendo, agora ele passa a agir e garantir o mínimo necessário para que o indivíduo possa ter condições materiais de usufruir os direitos que lhe são consagrados. É a figura do Estado do Bem-estar Social (welfare state) em busca da diminuição das desigualdades sociais, proporcionando até mesmo proteção aos mais fracos. Como, por exemplo, uma pessoa tem o direito à inviolabilidade do domicílio, mas não tem domicílio. Logo, o intento da segunda dimensão é propiciar condições mínimas para que os cidadãos venham exercer plenamente seus direitos de primeira dimensão. Esses devem ser considerados segundo Cunha (2013, p. 587) “como instrumentos de viabilização das próprias liberdades públicas, cujo gozo pressupõe o direito de acesso aos meios de existência”. Logo, neste ponto, o Estado enquanto governo, se levanta em favor do povo usando os seus poderes contra os abusos experenciados pela classe trabalhadora e operária. Portanto, declara Cunha (2013, p. 587) “as liberdades públicas, tornar-se-iam pura utopia se o poder público não interviesse para criar as condições materiais necessárias que habilitassem o indivíduo a efetivamente exercê-las”. Vale ressaltar que esta dimensão não substitui à anterior, ao avesso disso, permite um acréscimo ao rol dos direitos já garantidos. Isto é, conforme novas necessidades vão surgindo, novos direitos são gerados. Conforme assevera Dirley da Cunha Júnior (2013, p.586), “o progressivo reconhecimento de novos direitos fundamentais consiste num processo cumulativo, de complementaridade, onde não há alternância, substituição ou suspensão temporal de direitos anteriormente reconhecidos”. A terceira dimensão dos Direitos Fundamentais remete-se a direitos metaindividuais, também chamados de direitos de solidariedade e fraternidade, dando-se aqui o verdadeiro motivo pelo qual foi relatado acima todas as dimensões anteriores, para que se possa entender que o conceito de solidariedade vai além de garantir liberdades, vai além de buscar respeitar e concretizar essas liberdade, trata-se do dever do Estado de solidariedade para com seu cidadão, não sendo aqui, solidariedade no sentido de caridade, mas no sentido de dever, de obrigação. “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo” (BONAVIDES, 2007, p. 569) ou mesmo de um Ente Estatal especificamente. Essa dimensão recebe esse título, pois segundo Cunha Júnior (2013, p.599) “caracterizam-se por destinarem-se à proteção, não do homem em sua individualidade, mas do homem em coletividade social, sendo, portanto, de titularidade coletiva ou difusa”. Ou seja, possuem maior amplitude, por serem direitos que atingem a todos e não somente a uma pessoa de forma individual. “[…] marcados pela alteração da sociedade, por profundas mudanças na comunidade internacional (sociedade de massa, crescente desenvolvimento tecnológico e cientifico), as relações econômico-sociais se alteram profundamente. Novos problemas e preocupações mundiais surgem, tais como a necessária noção de preservacionismo ambiental e as dificuldades para proteção dos consumidores, só para lembrar aqui dois candentes temas. O ser humano é inserido em uma coletividade e passa a ter direitos de solidariedade” (LENZA, 2008, p.588). Nesta feita, importa acrescentar que os direitos de terceira dimensão possuem caráter transindividual, o que os faz abranger a toda a coletividade, sem quaisquer restrições a grupos específicos. Neste sentido, pautaram-se Motta e Barchet, ao afirmarem, em suas ponderações, que “os direitos de terceira geração possuem natureza essencialmente transindividual, porquanto não possuem destinatários especificados, como os de primeira e segunda geração, abrangendo a coletividade como um todo” (MOTTA; BARCHET, 2007, p. 152). Desta feita, são direitos de titularidade difusa ou coletiva, alcançando destinatários indeterminados ou, ainda, de difícil determinação. Os direitos em comento estão vinculados a valores de fraternidade ou solidariedade, sendo traduzidos de um ideal intergeracional, que liga as gerações presentes às futuras, a partir da percepção de que a qualidade de vida destas depende sobremaneira do modo de vida daquelas. Dos ensinamentos dos célebres doutrinadores, percebe-se que o caráter difuso de tais direitos permite a abrangência às gerações futuras, razão pela qual, a valorização destes é de extrema relevância. “Têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta” (BONAVIDES, 2007, p. 569). A respeito do assunto, Motta e Barchet (2007) ensinam que os direitos de terceira dimensão surgiram como “soluções” à degradação das liberdades, à deterioração dos direitos fundamentais em virtude do uso prejudicial das modernas tecnologias e desigualdade socioeconômica vigente entre as diferentes nações. Dizer que o ser humano tem direito a solidariedade, quer dizer que o Estado deve zelar pelos direitos dos cidadãos, deve garantir que este viva de forma digna, que tenha acesso a alimentação, saúde, educação, lazer e trabalho de qualidade, mas também impõe a sociedade, de maneira geral, um agir pautado no pensamento coletivo, preocupado com os concidadãos e superando a tradicional perspectiva individualista. Esses direitos surgem em pleno século XX, em decorrência das barbáries ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial. O cenário foi propício para os novos direitos alcançados: direito à paz, à solidariedade universal, ao reconhecimento recíproco de direitos entre vários países, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao patrimônio comum da humanidade, ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos, e à comunicação. Segundo Fachin e Silva (2012), os direitos fundamentais, consagrados na terceira esfera, podem ser vistos como escudos protetivos em favor das garantias coletivas e difusas. Os direitos desta dimensão, diferentes dos direitos das dimensões citados anteriormente, não tem como objetivo a liberdade ou a igualdade, mas sim a preservação da própria existência do grupo, do ser humano em si e mais que isso, a perpetuação desse. Portanto, conceituar solidariedade tornar-se-ia impossível se não o fizesse com devido respaldo de como ocorreu o desdobramento dos direitos fundamentais nas dimensões anteriores, dessa forma o principio de solidariedade é nitidamente expresso na Constituição da República Federativa do Brasil: “Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária” (BRASIL, 1988). Nesta linha de exposição, denota-se que o constituinte buscava deixar clara a posição do Estado quanto aos cidadãos, qual seja: um Estado que além de dar direitos (primeira dimensão), dar maneiras pelas quais esses direitos poderiam ser exercidos, políticas públicas (segunda dimensão), daria, também, a oportunidade e a responsabilidade de que os entes sejam responsáveis e solidários uns pelos outros, tornando a violação do direito de um individuo, a violação do direito de todos os indivíduos da cidade, estado federado, país, continente e planeta. Ou seja, isso quer dizer, que as milhares de criança que sofrem de inanição na África todos os dias, é problema de cada individuo do planeta, porque quando uma criança enfrenta a desnutrição grave e a fome, o seu Direito Humano a uma Alimentação Adequada (DHAA) é ferido e junto com ele é ferido o Direito Humano a Alimentação Adequada (DHAA) de cada indivíduo. Isso vem desmontar a ideia de o “meu” direito ou o “seu” direito, o que existe agora é um direito uno, indivisível, que deve ser cuidado e preservado por todos. 3 O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA EM PAUTA: CARACTERIZAÇÃO E DELINEAMENTO Na mesma linha, buscando ainda compreender de forma profunda o conceito de solidariedade e como essa deve ser inserida na vida social, cabe retratar o que seria verdadeiramente o Direito Humano à Alimentação Adequada e quais são suas implicações no campo pratico do direito. O direito à alimentação começa a ser citado e notado como direito humano na Convenção de Genebra (1864), na qual se identificou o poder do alimento como forma de dominação de um ser humano sobre outro, de um Estado sobre o outro e até mesmo como uma possível arma de guerra. Posteriormente, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e com o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), foi reconhecido internacionalmente normativamente como um direito humano, a alimentação adequada, em seus artigos 25 e 11 consecutivamente. “Art. 25 Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, s.p.). “Art. 11 Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas a um nível de vida suficiente para si e para as suas famílias, incluindo alimentação, vestuário e alojamento suficientes, bem como a um melhoramento constante das suas condições de existência. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas destinadas a assegurar a realização deste direito reconhecendo para este efeito a importância essencial de uma cooperação internacional livremente consentida. 2. Os Estados Partes do presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de todas as pessoas de estarem ao abrigo da fome, adotarão individualmente e por meio da cooperação internacional as medidas necessárias, incluindo programas concretos […]” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1966, s.p.). Buscando, ainda, a efetiva concretização desses direitos, partindo do principio de que, se esses permanecessem apenas no plano teórico, não passariam de mera utopia, em 1966, na Cúpula Mundial de Alimentação (CMA), reconheceu-se como um direito fundamental estar o homem livre da fome e, como resultado disso, nasce um Plano de Ação que apontava sete compromissos que buscariam a erradicação da pobreza e da desigualdade e a promoção da segurança alimentar para todos. Em complemento as ponderações apresentadas até o momento, é possível, ainda, se socorrer das lições de Castro, que acenam no sentido que: “Quanto à fome, foram necessárias duas terríveis guerras mundiais e uma tremenda revolução social — a revolução russa — nas quais pereceram dezessete milhões de criaturas, dos quais doze milhões de fome, para que a civilização ocidental acordasse do seu cômodo sonho e se apercebesse de que a fome é uma realidade demasiado gritante e extensa, para ser tapada com uma peneira aos olhos do mundo” (CASTRO, 1984, p. 21). É imprescindível dizer, portanto, que o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) encontra intrínseca relação com o direito à vida, comportando, por vezes, “confusão” ideológica em seu núcleo sensível. Tal fato, destaque-se, decorrer da premissa que a alimentação é condição básica para o exercício do direito à vida e, dessa forma, portanto, fica demonstrado incontestavelmente a importância do reconhecimento e da concretização da essencialidade que o DHAA passa a ser revestido. Neste passo, cuida ponderar que o acesso à alimentação é um direito humano centrado em si mesmo, reconhecendo-se, portanto, que o direito à alimentação constitui o próprio direito à vida. Neste aspecto, negar o direito em comento, antes de qualquer coisa, é negar a primeira condição para o exercício pleno da cidadania que é o próprio direito à vida. Prosseguindo na discussão da temática, é imperioso sublinhar que o Direito Humano à Alimentação Adequada inclui o acesso estável e permanente a alimentos saudáveis, seguros e sadios, em quantidade suficiente, culturalmente aceitos, produzidos de uma forma sustentável e sem prejuízo da implementação de outros direitos para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 2008, p.15). A relação do homem com a alimentação extrapola os fenômenos químicos necessários para a subsistência do individuo, há toda uma cultura ritualística no ato de se alimentar e, sobretudo, há toda uma gama de responsabilidade histórica na ideia de alimentação, já que este é um dos principais motivos pelo qual surgiram as sociedades, e as mesmas evoluíram, ou seja, alimentar-se é preciso, e pode ser feito com mais facilidade em grupo. Primeiramente com a caça, a pesca e a colheita, com os nômades; posteriormente com surgimento da agricultura, nas sociedades mais evoluídas; e, assim por diante, com o surgimento do comércio, por exemplo. Ou seja, a busca pelo alimento, levou o homem a evoluir, o ensinou viver em sociedade. “A fome — eis um problema tão velho quanto a própria vida. Para os homens, tão velho quanto a humanidade. E um desses problemas que põem em jogo a própria sobrevivência da espécie humana, a qual, para garantir sua perenidade, tem que lutar contra as doenças que a assaltam, abrigar-se das intempéries, defender-se dos seus inimigos. Antes de tudo, porém, precisa, dia após dia. encontrar com que subsistir — comer” (CASTRO, 1984, p. 05) Dito isso, é fácil concluir que a alimentação mudou, evoluiu, e com a multiplicação da população mundial, multiplicou-se também a carência por alimentos e, da mesma forma, a necessidade de uma correta distribuição dos mesmos para essa população. O que lamentavelmente inúmeras vezes não ocorre, ferindo assim o DHAA de cada individuo, tanto daquele que passa fome, quando daquele que não passa, já que como supracitado, a responsabilidade de solidariedade trazida pela terceira dimensão dos direitos fundamentais, impõe que quando um único individuo tem seu DHAA ferido, o DHAA de cada individuo do planeta é ferido da mesma forma. Isto é, enquanto houver no planeta um único indivíduo sofrendo de fome, nenhum ser humano terá seu DHAA concretizado. Vale ressaltar que a fome em si, é um problema tão grave, que segundo estudos, as diferenças entre os indivíduos que enfrentam a fome e os que não enfrentam, se manifestam fisicamente e posteriormente intelectualmente, o que por si só gera um circulo vicioso, considerando que essa desnutrição seja causada pelo fator financeiro, já que um indivíduo desnutrido tem sua capacidade intelectual diminuída, já que o cérebro não tem fontes energéticas, nutricionais e hormonais para realizar as sinapses necessárias para a conclusão de raciocínios mais complexos. “[…] outro documento, no mesmo sentido, e talvez ainda mais alarmante, pois se refere à região considerada mais sadia de todo o Brasil: o Rio Grande do Sul, foi referido no O Estado de São Paulo de 12 de agosto: A Revista da Associação Médica do Rio Grande do Sul publicou o resultado de uma pesquisa feita pela entidade, revelando que quase a metade das crianças gaúchas (1 milhão em 2 milhões e 600 mil) são desnutridas (sic). A desnutrição é responsável pela alta taxa de mortalidade infantil e pela evasão escolar: menos de 10% dos alunos matriculados no primeiro ano atingem a oitava série do ensino fundamental. A desnutrição é causada pela falta de alimentos, dificuldades econômicas e desconhecimento dos princípios de alimentação balanceada. Uma criança de quatro anos da classe A (isto é, das camadas ricas da população, lembro eu), diz a revista, é em geral, 9,19 centímetros mais altas que uma da classe B (isto é, das camadas populares, lembro eu) e seu peso é superior” (CASTRO, 1984, p. 13). Isso quer dizer concretamente, que no Brasil temos coexistindo dois tipos de população, uma biologicamente superior e outra biologicamente inferior. Dizer isso parece cruel, mas retrata exatamente o que acontece no país, talvez dessa forma, seja possível alertar o tamanho do problema enfrentado, a gravidade e a complexidade disso, tampo para o direito, quanto para a evolução dessa sociedade, que hoje, já enfrenta números expressivos de desigualdade social, e que só tende a aumentar, pois quanto mais gerações enfrentam essa fome, mais se distanciam esses dois grupos. Josué de Castro em sábias palavras sintetiza essa situação em uma frase, que talvez devesse ser estampada em todos os meios de comunicação possíveis, para que ao mesmo tempo em que chocasse, alertasse para uma realidade que a sociedade atualmente tão capitalista não enxerga: “Enquanto metade da humanidade não come, a outra metade não dorme, com medo da que não come” (CASTRO, 1984, p. 14). O direito humano à alimentação adequada substancializa o direito de todos os seres humanos vivos, entendendo-se neste contexto também o direito de alimentação do nascituro, já que apesar de não nascido, este tem seus direitos resguardados. No primeiro momento, pode parecer óbvio, já que a alimentação do feto depende no primeiro momento da alimentação da mãe, assim como na fase do aleitamento exclusivo, entretanto cabe ressaltar, que no período de gestação, a gestante em prol do nascituro carece de vitaminas, que supram a alimentação, sendo assim, portanto, tais vitaminas não são essenciais para a vida da gestante, mas são fundamentais para a manutenção da vida do nascituro. Dessa forma, entende-se, portanto, que fica assim resguardado também o direito ao acesso a tais vitaminas. Há uma extensão robusta do direito à alimentação adequada, inclusive, para aqueles que foram concebidos, mas, ainda, não nascidos, a fim de resguardar o acesso à possibilidade de desenvolvimento desde o útero materno. Cabe, no mesmo sentido, destacar os diferentes tipos de fome enfrentados atualmente, a saber: a fome aguda e a fome crônica, bem como quais serão as implicações dessas no DHAA de cada indivíduo. Primeiramente, a fome aguda, que é a fome momentânea, ocorre pela privação de alimentação pelo um determinado espaço de tempo; De outro lado, tem-se a fome aguda, que é, realmente, a mais relevante para esse estudo, já que essa é a que causa ao faminto a permanente falta de alimento suficiente para suprir suas necessidades energéticas e nutricionais, é a fome que causa a desnutrição, a perda ou, então, a falta do ganho de peso e que torna os indivíduos, na grande maioria das vezes, menor, em quesito de estatura e de desenvolvimento de suas capacidades biológicas. Neste ponto, vale ressaltar que essas características ficam muito claras e contrastadas na fase da adolescência, fase que comumente o indivíduo daria o chamado “estirão”, ou seja, uma fase em que o indivíduo cresce e tem grandes transformações corporais rapidamente. Para a consecução do DHAA, é importante explicitar que o alimento deve reunir uma tríade de aspectos característicos, a saber: disponibilidade, acessibilidade e adequação. No que concerne à disponibilidade do alimento, cuida destacar que, quando requisitado por uma parte, a alimentação deve ser obtida dos recursos naturais, ou seja, mediante a produção de alimentos, o cultivo da terra e pecuária, ou por outra forma de obter alimentos, a exemplo da pesca, caça ou coleta. Além disso, o alimento deve estar disponível para comercialização em mercados e lojas. A acessibilidade alimentar, por seu turno, traduz-se na possibilidade de obtenção por meio do acesso econômico e físico aos alimentos. “La accesibilidad económica significa que los alimentos deben estar al alcance de las personas desde el punto de vista económico” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 03). Em relação à acessibilidade, as pessoas devem ser capazes de adquirir o alimento para estruturar uma dieta adequada, sem que haja comprometimento das demais necessidades básicas. A acessibilidade física materializa-se pela imperiosidade dos alimentos serem acessíveis a todos, incluindo indivíduos fisicamente vulneráveis, como crianças, enfermos, deficientes e pessoas idosas. A acessibilidade do alimento estabelece que deve ser assegurado a pessoas que estão em ares remotas e vítimas de conflitos armados ou desastres naturais, tal como a população encarcerada. Renato Sérgio Maluf, ao apresentar sua conceituação sobre segurança alimentar (SA), faz menção ao fato de que se deve considerar aquela como “condições de acesso suficiente, regular e a baixo custo a alimentos básicos de qualidade. Mais que um conjunto de políticas compensatórias, trata-se de um objetivo estratégico […] voltado a reduzir o peso dos gastos com alimentação” (1999, p. 61), em sede de despesas familiares. Por derradeiro, o alimento adequado pressupõe que a oferta de alimentos deve atender às necessidades alimentares, considerando a idade do indivíduo, suas condições de vida, saúde, ocupação, gênero etc. “Los alimentos deben ser seguros para el consumo humano y estar libres de sustancias nocivas, como los contaminantes de los procesos industriales o agrícolas, incluidos los residuos de los plaguicidas, las hormonas o las drogas veterinarias” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, s.d., p. 04). Um alimento adequado, ainda, deve ser culturalmente aceitável pela população que o consumirá, inserido em um contexto de formação do indivíduo, não contrariando os aspectos inerentes à formação daquela. 4 SOLIDARIEDADE ALIMENTAR: OS INFLUXOS DA MOLDURA CARACTERIZADORA DO VOCÁBULO SOLIDARIEDADE EM SEDE DE DHAA A possibilidade constitucionalmente reconhecida em prol da participação popular configura um dos mais robustos elementos constituintes do Estado Social de Direito, vez que todos os direitos sociais são a estrutura essencial de uma saudável qualidade de vida, que é um dos pontos cardeais da tutela ambiental. Com realce, a efetiva estruturação do Estado Democrático de Direito reclama o fortalecimento do corolário da obrigatoriedade de atuação estatal e do preceito da participação comunitária, por meio da participação da sociedade nas questões socioambientais, abrangendo a ação conjunta do Estado e da coletividade na preservação dos recursos naturais, bem como na concreção dos direitos fundamentais. Ora, “essa participação também não é substitutiva da atuação do Poder Público. A proteção dos interesses difusos deve levar a uma nova forma participativa de atuação dos órgãos públicos, desde que não seja matéria especificamente de segurança dos Estados” (FACIN, 2002, s.p.). Digno de nota ainda, é que a participação, consagrado entre os ideários do presente baldrame são responsáveis por atuar como maciços sustentáculos do Estado Democrático de Direito, vez que dá corpo a própria democracia, assim como seu exercício. Ora, diante deste cenário, cuida reconhecer que a denominada “solidariedade alimentar” encontra-se vinculada na efetiva participação comunitária na realização do direito à alimentação adequada. Trata-se, com efeito, de um agir ativo em prol daqueles que não possuem, por vezes, acesso à alimentação, sem que isso implique em uma dependência absoluta da atuação estatal e de seus programas. Obviamente, primar pela solidariedade alimentar significa envidar esforços, sobretudo a partir de uma atuação orgânica advinda do seio da população, a fim de estruturar mecanismos e programas sociais que assegurem a concreção do direito em comento. Neste contexto, inúmeras outras instituições atuam na tentativa de transformar a realidade em que vivem, como as organizações sem fins lucrativos. Esses tipos de entidades são movidas pela vontade de ajudar o próximo, reconhecendo como agente transformador da realidade local e identificando o gênero humano como unidade, superando a individualidade como aspecto característico, e têm conseguido expressivos resultados nas áreas em que existem. Como exemplo claro da verificação da “solidariedade alimentar”, como valor orgânico do agir comunitário, pode ser citado o “Projeto Hortão Comunitário”, no Bairro Village da Luz, um dos bairros que apresenta altos índices de população desassistida pelo Poder Público do Município Cachoeiro de Itapemirim – ES. Neste projeto, a população do bairro tem a possibilidade de visitar a horta comunitária, bem como se beneficiar do que é produzido, incorporando em sua alimentação hortaliças e verduras de qualidade e sem agrotóxico. Destaque-se que o projeto, com o escopo de fomentar o fortalecimento da participação da comunidade, não utiliza de qualquer cadastro prévio ou burocracia, adotando, para tanto, o ideário de que todos aqueles que necessitam poderão usufruir da produção local. É interessante, ainda, apontar que a experiência do “Hortão Comunitário” do Bairro Village da Luz já fora implantada em outra oportunidade, porém, aos poucos, justamente em decorrência da comunidade não reconhecer o projeto como algo orgânico em sua realidade, abandonou, até sua completa desativação. No ano de 2015, o projeto foi reimplantado, acompanhado da conscientização da população que poderia usufruir de seus benefícios, produzindo, desta vez, resultados positivos e de significativa relevância para a população. Outro projeto que tem produzido benefícios para a população local é o “Vill’Agindo para ser feliz”, cuja espinha dorsal está estruturada na participação comunitária e na implementação da solidariedade como elementos capazes de desempenhar modificações na realidade dos indivíduos. No projeto são atendidas aproximadamente 250 (duzentas e cinquenta) crianças, adolescentes e jovens residentes no bairro Village da Luz e entorno (Bairro Rubem Braga e Conjunto Fé e Raça), com atividade que visam a participação dos usuários em oficinas culturais, esportivas, recreativas e encontros de formação que despertam o protagonismo juvenil, estimulando habilidades, potencialidades e talentos. Além disso, o projeto em comento, apesar do foco sociocultural, destina esforços para assegurar acesso à alimentação adequada aos participantes, que, em sua maioria, é constituída por uma população que carece da solidariedade alimentar para ter efetivado tal direito. É, exatamente, neste ponto que reside a grande questão, agir de maneira autônoma e organizada, conferindo protagonismo à população como elemento capaz de provocar, assegurar e possibilitar a concreção de direitos, em especial o direito à alimentação adequada por meio de projetos e propostas emancipatórias e inclusivas. Trata-se, igualmente, de reconhecer a corresponsabilização de todos no processo de gestão e efetivação de direitos. Os projetos brevemente apresentados configuram mecanismos, em uma comunidade caracterizada pela diminuta assistência do Poder Público Municipal, de concretização da responsabilidade coletiva e do desenvolvimento do discurso da solidariedade como elemento propulsor, tal como de corresponsabilidade de um indivíduo pelos demais, alcançando a máxima da terceira dimensão dos direitos humanos, encontrando o gênero humano como destinatário e não mais o indivíduo isolado. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Alimentar-se é muito mais do que a mera ingestão de alimentos. É, conforme o artigo 2º da LOSAN, a materialização de um direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o Poder Público adotar as políticas e ações que se façam necessária para promover a segurança alimentar e nutricional da população. O ato de alimentação requer a presença de alimentos em qualidade, em quantidade e de maneira regular, a fim de que haja concretização do ideário de dignidade que reveste a vida humana. A reunião dos três pilares materializa o ideário de segurança alimentar e nutricional e direito humano à alimentação adequada. Denota-se que está se valendo da premissa de acesso de alimentos, o que é diferente de disponibilidade de alimentos, já que esses podem estar disponíveis, mas as populações mais pobres podem não ter acesso a eles, em decorrência da renda ou outros fatores. É possível frisar que a concretização dos direitos humanos, sobretudo o direito humano à alimentação adequada (DHAA), abarca responsabilidade por parte tanto do Estado quanto da sociedade e dos indivíduos. Assim, nas três últimas décadas, denota-se que a segurança alimentar e nutricional passou a ser considerada como requisito fundamental para afirmação plena do potencial de desenvolvimento físico, mental e social de todo o ser humano. Neste cenário, a concepção que orbita no em torno da locução “solidariedade alimentar” configura visão contemporânea de concretização dos direitos humanos, em especial o direito à alimentação adequada, por meio de uma atuação ativa, organizada e orgânica da coletividade, substancializando o ideário da coletividade (gênero humano) como destinatário dos direitos humanos e ultrapassando o discurso individualizado.
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A roda dos enjeitados e a questão ética do aborto no Brasil do séc XIX ao XX à luz do conto “Pai Contra Mãe” de Machado de Assis
Este estudo consiste em analisar a incidência da roda dos enjeitados e da prática do aborto no período colonial do Brasil com base no conto machadiano Pai contra Mãe. Busca a compreensão da sociedade brasileira dos sécs.XIX ao XX no tocante aos reais motivos da incidência do aborto e da entrega de crianças à roda dos enjeitados. O estudo contará com apontamentos jurídicos fazendo uma correlação com as leis penais vigentes àquela época.
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INTRODUÇÃO O presente estudo propõe basicamente analisar o conto “Pai Contra Mãe”, dentro do contexto da escravidão que assolava o Brasil em meados do séc. XIX e início do séc.XX, dando ênfase à questão do aborto e do abandono de crianças na roda dos enjeitados. O conto machadiano servir-nos-á de suporte para algumas reflexões acerca do fenômeno jurídico. Pretende-se, a partir de uma análise jurídico-literária, alcançar a nota distintiva do Direito, implícita em “Pai contra mãe”. Para o desenvolvimento deste raciocínio, empregou-se de um método dedutivo, correlacionando a existência da roda dos enjeitados e da prática do aborto ao caso específico do conto Pai Contra Mãe. I – DO CONTO “PAI CONTRA MÃE” O conto “Pai Contra Mãe” escrito por Machado de Assis[1] e publicado em 1906 no livro Relíquias da Casa Velha, insere-se na fase “madura” do autor, com traços marcantes do Realismo literário. É uma narrativa em terceira pessoa e já no primeiro capítulo, Machado chama atenção do seu leitor que a história a ser tratada no conto ambienta-se no Rio de Janeiro do século XIX antes da abolição da escravatura, tendo como cenário, becos estreitos, sujeira, miséria, falta de oportunidade de emprego se contrapondo com a riqueza e ostentação dos donos de escravos, tudo isto servindo de pano de fundo para a narrativa, não se configurando, porém, como a questão principal. O conto apresenta a história de Cândido Neves, homem branco, caçador de escravos fugitivos, profissão que lhe rende o sustento. Ele se casa com a jovem Clara, menina órfã e criada por sua tia, chamada Mônica, a qual cosia com ela. O sonho do casal é ter filhos, porém é advertido pela tia de Clara que os mesmos não teriam condições de sustentar uma criança. Posteriormente Clara engravida e, portanto, surge o conflito do conto, uma vez que Cândido Neves passa por extrema dificuldade financeira, e sem saber o que fazer para sustentar seu filho, decide desesperadamente em deixá-lo na Roda dos Enjeitados. No percurso crucial que faz com o filho até a roda, ele encontra-se com a escrava fugitiva de nome Arminda, a qual lhe renderia cem contos de réis pela captura. Então ele entrega o filho a um farmacêutico e sai em perseguição à escrava, qual desesperadamente luta por sua liberdade. Ela, uma vez que está grávida, implora por tudo de mais sagrado ao Cândido Neves para que não a entregasse ao seu Senhor, alertando ao mesmo que se tivesse filho, pensasse nele para não capturá-la. E após ser conduzida sob muita luta e violência por parte de Cândido Neves, a escrava é entregada ao seu senhor, ocorrendo desta forma o aborto da criança. Desse modo, Cândido Neves recebe os devidos contos de réis pela captura da escrava e volta desesperado ao encontro de seu filho. De volta a casa com a criança e os cem mil-réis, o pai feliz relata a história da caça e do aborto de Arminda. Tia Mônica perdoa a vinda do bebê já que com ele vinham os cem mil réis. O conto termina com a frase de Cândido que tenta justificar sua tirania: “Nem todas as crianças vingam”. Machado, neste conto, retrata a escravidão de uma maneira brutal e chocante, descrevendo minuciosamente os aparelhos que configuravam a crueldade a qual os escravos eram vítimas, intercalando a miséria social de um branco livre e sem muita expectativa de emprego, com a de uma negra escrava e grávida que sofrendo os horrores da escravidão resolve desesperadamente fugir para que o filho que esperava em seu ventre não viesse a ter a sua sorte. O foco do conto, nesse sentido, está na condição de extrema pobreza, que obriga um pai (Candinho) a lutar com uma mãe (Arminda), ambos lutando pela sobrevivência de seus filhos, o que leva Candinho a abrir mão de sua humanidade e entregar Arminda às mãos de seu senhor, sendo corresponsável pela morte do filho desta, contribuindo para que as formações ideológicas de que escravo não é ser humano se consumam, ao afirmar que nem todas as crianças vingam. Somente algumas crianças daquela época tinham o direito de vingar, e quando escravas deveriam vingar para dar lucros aos seus senhores, é uma troca de vidas: uma criança livre por uma escrava. As formações ideológicas perpassam o discurso de Candinho à medida que apresentam à ideologia branca dos senhores de escravo, que tratavam os negros como coisas, simplesmente inferiores, e que se vingasse deveria ser para o lucro de seu patrão. Segundo Bosi (2004), da prosa machadiana vislumbram-se não os fortes e os felizes destinados compor hinos de glória; mas a mesquinhez dos homens, a sorte precária de cada indivíduo, os homens aceitam uma e outra como herança inalienável, e fazem dela alimento de sua reflexão cotidiana. II – DA REALIDADE DAS ESCRAVAS No conto Pai contra Mãe, a escrava Arminda em tentativa desesperadora de fugir das maldades de seu dono que lhe castigava constantemente com açoites, é surpreendida por Cândido Neves, em um momento crucial da entrega do seu filho à Roda dos Enjeitados. Tal encontro resultou para ele em uma oportunidade financeira que lhe possibilitaria a criar o filho, e em contrapartida, a perpetuação da desgraça da escrava Arminda que abortou a criança em meio à luta pela sua liberdade e sorte de seu rebento. Para Goulart (1971), as maldades sofridas pelas escravas, era na sua grande maioria advinda das sinhás que enraivecidas com as negras e enciumadas com as mulatas que tinham porte físico mais esbelto e beleza física superior a delas, eram deixadas de lado pelos seus esposos que a essas preteriam, razão pela qual de suas piores perversidades, vejamos; “Extirpando olhos, decepando seios, espatifando dentes, cortando narizes, talhando orelhas, lanhando bundas e lombos, deformando faces, aleijando corpos, amputando membros, eliminavam em suas rivais tudo que porventura despertasse o erotismo, a luxúria, a lubricidade de seus cúpidos e sensuais esposos; e quando não por ciúme, cometiam as sinhás os mesmos crimes por motivos outros, de ordem administrativa doméstica, senão por fúteis razões.” (GOULART,1971, pg.49) O escravo, como objeto de propriedade, não tinha direito a sua prole. Ela pertencia ao senhor. A escrava era vista como reprodutora, sobretudo de mulatos, já que o ventre materno determinava a condição do filho. Segundo Debret (1940), sendo ainda criança o escravo, o peso da corrente é de apenas 5 a 6 libras, fixando-se uma das extremidades no pé e a outra no cepo de madeira que ele carregava à cabeça durante o serviço. Para livrar os filhos, os irmãos, e a si próprios da escravidão, os escravos não raro recorriam à fuga, ao suicídio e ao assassinato e para obter a alforria de suas crianças, os escravos convidavam, muitas vezes, uma pessoa de influência para padrinho, a fim de que, pela compra, lhe fosse assegurada a liberdade. Tal incumbência, longe de diminuir, é encarada em virtude das ideias religiosas do povo e da influência do clero, como muito meritória. “O pequeno escravo está quase que assegurado da aquisição da liberdade pelo padrinho, o que é tanto mais fácil quanto o preço do negrinho é insignificante, raramente ultrapassa 60 a 80 piastras”. (Rugendas 1976, PP 149-150). Escreve Walsh (1830) “que este horror à escravidão era tão grande que elas não só suicidavam como também matavam seus filhos para escapar à ela. As negras eram conhecidas como sendo ótimas mães, mas este mesmo amor frequentemente as levava a cometerem infanticídio. Várias delas, sobretudo as negras Minas, tinham a maior aversão a terem filhos e provocavam aborto, precavendo-se assim o desgosto de darem a vida a um escravo”. III – DA RODA DOS ENJEITADOS A roda dos enjeitados parece ter sido utilizada pelas escravas como meio de livrar os filhos da escravidão, como também pelo proprietário que não queria se responsabilizar pelos encargos da criação da prole de seus escravos. Assim, a relação espacial disfórica da personagem com a roda dos enjeitados, espaço que representa a última e mais indesejada hipótese de garantia de vida do filho é o aspecto social que passa, então, a formar a estrutura social do conto machadiano, cujo ponto culminante é o momento em que escrava é presa e sofre o aborto. Criada na França no ano de 1188 pelo papa Inocêncio III, a roda dos enjeitados funcionava como forma de diminuir o índice de recém-nascidos que eram encontrados mortos às margens do rio Tibre. Instalados nas portas de igrejas e conventos, cilindros de madeira giratórios serviam para que mães deixassem seus filhos em mãos seguras, sem serem identificadas. Ao colocar os bebês no cilindro, elas tocavam uma campainha que avisava freiras e padres de que ali estava uma criança abandonada. Naquele país, o mecanismo teve usuários ilustres, como o filósofo francês Jean – Jacques Rousseau (1712-1778), que entregou à igreja os cinco filhos que teve com a serviçal Thérèse le Vasseur. Segundo Gallindo (2006) as primeiras iniciativas de atendimento à criança abandonada no Brasil se deram segundo a tradição portuguesa, instalando-se a roda dos expostos nas Santas Casas de Misericórdia, quando o Estado chamou para si a responsabilidade pelo cuidado com crianças abandonadas, decorrente da política do Direito do Menor. Em princípio quatro: Salvador (1726); Rio de Janeiro (1738); Recife (1789); e ainda em São Paulo (1825), já no início do Império. Outras rodas menores foram surgindo em outras cidades após este período. A “roda dos enjeitados” ou “roda dos expostos” recebia crianças de qualquer cor e preservava o anonimato dos pais. A partir do alvará de 31 de janeiro de 1775, as crianças escravas, colocadas na roda, eram consideradas livres. Este alvará, no entanto, foi letra morta e as crianças escravas eram devolvidas a seus donos, quando solicitadas, mediante o pagamento das despesas feitas com a criação da roda como órfãs e assim os filhos dos escravos seriam criados como cidadãos, gozando dos privilégios dos homens livres. Contudo na prática, isto nem sempre acontecia. Segundo Trindade (1999), na segunda metade do século XIX, as mães[2] que enfrentavam dificuldades para manter seus filhos, viam a Roda dos Expostos como única saída para que os mesmos não morressem de fome, enquanto as mães escravas, por sua vez, encontravam na Roda uma possibilidade de livrar seus filhos da escravidão. A roda dos expostos tinha cunho assistencialista, e foi uma das poucas instituições existentes na história que se preocupou com o bem estar de menores de idade[3].  A última Roda dos Expostos a ser desativada, em 1948, foi na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, que acolheu durante o tempo de seu funcionamento cerca de 5.700 (cinco mil e setecentas) crianças. Porém, de cada dez abandonadas três morriam, pois eram entregues já doentes ou desnutridas, observa Almeida (2008). Atualmente, a Constituição da República do Brasil de 1988 adotou a Doutrina da Proteção Integral, garantindo a crianças e adolescentes direitos individuais, entre eles o direito à vida e a convivência familiar, o que, por si só, afastaria qualquer situação de abandono. Porém, mesmo assim, as notícias sobre o tema são constantes. IV – DO ABORTO A primeira Constituição do Império do Brasil, de 1824, a Carta Magna de 1891 e as Constituições dos Estados Unidos do Brasil, de 1934 e de 1937, não dispunham taxativamente sobre o asseguramento da inviolabilidade a vida.  No período colonial, o Brasil sofria forte influência de Portugal, uma nação essencialmente católica. Sendo assim, o aborto e outras práticas condenadas pela Igreja naquele país também eram tratadas assim no Brasil. O aborto, porém, só foi citado explicitamente na legislação em 1830, no Código Penal do Império. A interrupção voluntária da gravidez na constituição de 1824 era considerada um crime grave contra a vida humana.[4] À época, havia certo cuidado com a punição de mulheres, e quando essa praticava o aborto auto-induzido estava livre de pena. Durante o Brasil República, vigorou o Código Penal da República (1890), em que o aborto novamente foi tratado como crime grave. Ainda com ressalvas para o aborto auto-induzido, a prática da interrupção da gravidez era punida quando feita por terceiros e a pena agravada quando o procedimento resultava na morte da paciente. No entendimento de Galante (2008) O direito à vida é um direito fundamental do homem, e assim, pode-se dizer que é um super direito, pois todos os demais direitos dependem dele para se concretizar, assim, sem o direito a vida, não haveria os relativos a liberdade, a intimidade, etc. Como dito anteriormente, o primeiro código penal brasileiro, em seu capítulo referente aos crimes contra a segurança da pessoa e da vida, contempla o crime de aborto nos dispositivos que se seguem, vejamos: “Art. 199. Occasionar aborto por qualquer meio empregado interior, ou exteriormente com consentimento da mulher pejada. Penas – de prisão com trabalho por um a cinco annos. Se este crime fôr commettido sem consentimento da mulher pejada. Penas – dobradas. Art. 200. Fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaesquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não verifique. Penas – de prisão com trabalho por dous a seis annos. Se este crime fôr commettido por medico, boticario, cirurgião, ou praticante de taes artes. Penas – dobradas.” Inicialmente, o crime de aborto não era considerado uma prática a que devesse ser repreendida pois o feto fazia parte do corpo da mulher e com esse entendimento tinha-se livre a intervenção na gravidez desde que os meios utilizados não fossem substâncias capazes de prejudicar a saúde da mulher gestante adotando o princípio, partus antequam edatur mullieris pars est vel vicerum. A prática delitiva de aborto era freqüente. Com o reinado do imperador Septiminius Severus (193-211 d.C.) o aborto passou a ser censurado por se tratar da frustração de expectativas do homem à descendência.O auto aborto não era previsto como crime nem se atribuía à mulher qualquer atitude criminosa pelo consentimento para o aborto praticado por terceiros, sendo o bem tutelado a segurança da pessoa e da vida. CONSIDERAÇÕES FINAIS O conto “Pai contra Mãe”, corpus do estudo, evidencia a miséria humana materializada nos personagens de Cândido Neves e da escrava Arminda, tal seja o de um pai e de mãe lutando por duas vidas e ao final a troca de uma vida por outra é justificada. Machado evidencia a diferença entre escravos e pobres livres, tanto que Candinho tem todo o direito de criar o seu filho ao passo que a escrava Arminda não o tem. Assim Cândido tem uma alusão de liberdade e de poder criar seu filho. Tanto Cândido quanto Arminda fazem parte dessa porção marginalizada da população. O que dá prerrogativas a Cândido Neves é a “superioridade” da ascendência branca e de sua condição social de homem livre, em detrimento de Arminda, mulata e escrava e de sua criança abortada. Assim sendo, o filho dele pode vingar; o dela, não. A roda dos enjeitados foi a temida solução encontrada por Candinho para que o filho sobrevivesse em meio à sua pobreza. A sua entrega à roda representaria a uma boa criação do filho. Já a escrava Arminda via em sua fuga, como uma maneira de o filho ter uma vida diferente da de escravo. Assim como na ficção machadiana, de fato, nem todas as crianças vingavam no período imperial brasileiro. Em uma sociedade escravista e hierarquizada, grande parte da população livre foi social e economicamente excluída dos quadros hegemônicos. Deste modo, a sobrevivência, muitas vezes, ficou na dependência da roda dos expostos. Quanto à população escrava, mulheres e homens negros foram subjugados física e moralmente por seus senhores brancos, que, no geral, preferiam tirar-lhes a vida a perder poder sobre eles. Portanto, diante das argumentações aqui expendidas é necessário compreender o contexto histórico da existência da roda dos enjeitados e sua relação tão intrínseca com o aborto, o qual já dispunha de dispositivos legais do Código Penal do Império de 1830 que previam a sua criminalização.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-152/a-roda-dos-enjeitados-e-a-questao-etica-do-aborto-no-brasil-do-sec-xix-ao-xx-a-luz-do-conto-pai-contra-mae-de-machado-de-assis/
A responsabilidade civil quanto aos possíveis riscos aos seres humanos em pesquisas de nanomedicamentos
Este trabalho apresenta a configuração atual de responsabilidades direcionadas aos pesquisadores de novos medicamentos, quando utilizadas nos ensaios clínicos com seres humanos as novas tecnologias aplicadas à área da saúde. Apesar do histórico das pesquisas realizadas com indivíduos, não há atualmente uma legislação específica quanto às responsabilidades aplicadas aos pesquisadores e aos obtentores de seus resultados, muito menos medidas protetivas aos próprios pacientes enquanto participantes destas pesquisas que envolvem tecnologias desconhecidas ao público em geral. Atualmente, a legislação aplicada é a lei da biossegurança e as regulamentações sobre pesquisas em fase de testes em humanos, mas por serem antigas, apresentam lacunas quanto às tecnologias em nano escalas que são novas na área da saúde, sendo impossível prever todos os riscos existentes após sua utilização. Logo, temos que buscar a resolução desta ausência, através de estudos de lei e regulamentações para fins de estabelecer e diferenciar as responsabilidades aplicadas a cada sujeito das pesquisas.
Biodireito
Introdução Este trabalho foi desenvolvido em razão da ausência de regulamentação quanto aos ensaios clínicos de novos medicamentos, estes utilizando-se de tecnologia em nano escala, na aplicação direta em seres humanos, para fins de serem disponíveis no mercado de fármacos aos consumidores, produtos que objetivem um maior desempenho na cura, poucos efeitos colaterais e, principalmente, mais seguros. Objetiva-se analisar o direcionamento da responsabilização quanto aos possíveis riscos gerados pela aplicação de material nanotecnológico na área da saúde, em seres humanos. Estabelecer estas funções de responsabilização se torna necessário para auxiliar a sociedade na administração destes novos medicamentos com a consciência das consequências sociais, éticas e legais que permeiam a contemporaneidade da ciência. É preciso entender que até mesmo a ciência possui limites para sua aplicação e utilização, não sendo eticamente correta a aplicação destas novas técnicas de maneira precipitada e indiscriminadamente. A ética a ser aplicada deve levar em consideração as consequências e os efeitos colaterais dos atos dos sujeitos agentes. Acredita-se que, para isto, é preciso que seja estabelecida a segurança jurídica nas relações cientista – médico – paciente, para que desta forma a ciência possa avançar de forma ética e legal. À medida que a tecnologia avança, é preciso que haja uma legislação especifica para que os pacientes participantes nas experiências destes novos produtos estejam protegidos. No entanto, é necessário estabelecer as responsabilidades aos sujeitos envolvidos neste novo campo da saúde, uma vez que os efeitos totais das fórmulas que possuem a tecnologia nano são desconhecidos quando da aplicação no corpo humano, podendo estabelecer alguma reação em momento muito posterior às pesquisas. No Brasil, a resolução 466 de 1996, regulamenta as pesquisas clínicas realizadas com seres humanos, mas deixa lacunas quando o avanço da tecnologia inclui os materiais em escala nano nas formulações existentes para o combate de doenças, principalmente no campo da oncologia. Desta sorte, pretende-se, no presente artigo, primeiramente estabelecer uma construção histórica, com o surgimento da necessidade de proteção aos indivíduos que se sujeitam às pesquisas para a cura das doenças com as novas tecnologias. Em segundo, busca-se esclarecer qual legislação atualmente preenche de forma mais completa a ausência de uma regulamentação específica de responsabilidades e acompanhamento, incluindo aqui questões temporais. O avanço da ciência está hodiernamente em níveis acelerados na busca da implementação de novas tecnologias e a possibilidade de aplicação nas ciências da saúde. Contudo, ao tratar de medicamentos, apesar dos ensaios de laboratórios e os resultados positivos dos testes clínicos realizados em animais e tecidos humanos, é necessário que pesquisas em seres humanos apontem para o sucesso do produto, comprovando a sua atuação benéfica aos indivíduos. No Brasil, as pesquisas clínicas realizadas com seres humanos são reguladas pela Resolução nº 466/2012, complementada pela Resolução nº 251/1997 quando utilizam novos fármacos e medicamentos. No entanto, apesar de as responsabilidades serem minimamente tratadas nas referidas resoluções, não especificam os direitos e deveres dos indivíduos participantes das pesquisas. Assim, pensa-se em até que ponto a regulamentação atual é suficiente, para garantir erros clínicos e possíveis reações indesejáveis ao paciente participante das pesquisas adaptadoras ao ser humano de nanomedicamentos. E, mais que isso, estão os próprios pesquisadores protegidos pela legislação existente no Brasil quanto às incompatibilidades da nanotecnologia ao corpo humano, quando todos os estudos feitos até a aplicação nos indivíduos foram satisfatórios? Há definição quanto a estas responsabilidades e proteções? Estas são algumas das lacunas que merecem nossa atenção. De acordo com as regulamentações vigentes, para que uma pesquisa seja realizada é necessário que todos os riscos previsíveis sejam considerados e investigados previamente por comissões e comitês responsáveis. Estes estudos preliminares com consequentes aprovações ou reprovações, garantem a segurança e proteção dos participantes durante a pesquisa. Em relação aos nanomedicamentos, por apresentarem-se como novas tecnologias com reações desconhecidas ao corpo humano, algumas consequências são imprevisíveis, mesmo com sucesso em ensaios anteriores com animais e tecidos vivos. Entretanto, a ausência de uma legislação especifica quanto aos ensaios clínicos em seres humanos envolvendo partículas de nanoescala, deixam margem para dúvidas quanto à responsabilização do pesquisador, uma vez que as regulamentações vigentes no Brasil apontam que seria sua a responsabilidade por seu projeto. Ocorre que é preciso traçar uma nova linha de estudos e abordagem, pois ao mesmo tempo em que há a vinculação das consequências ao pesquisador responsável, existe uma entidade patrocinadora e viabilizadora da pesquisa e, ainda, diversos comitês de apreciação prévia dos trabalhos que também poderiam ser responsabilizados por possíveis consequências posteriores aos participantes. Mas, considerando a legislação existente no Brasil, em que pese seja previsto na Resolução 251/1997 que o pesquisador e a instituição que estão realizando as pesquisas fiquem vinculados ao pesquisado, bem como geram a obrigação destes garantirem a assistência ao paciente, a questão que se pretende discutir também é temporal. Logo, até que momento esta assistência deve permanecer vinculada ao pesquisador, esta responsabilidade de acompanhamento do pesquisador e o vínculo com o paciente permanecem eternamente? O emprego das nanotecnologias ainda apresentam pontos obscuros quanto aos seus efeitos no organismo humano, sendo correto que este vinculo deva englobar um acompanhamento além do encerramento das pesquisas, porém, não há previsão legal disponível. A regulamentação 251/1997 estipula que o indivíduo que se predispõe de participar de pesquisa científica para fins de implantação da ciência de novos fármacos, deve possuir assistência para fins de evitar quaisquer reações adversas indesejáveis que possam causar maleficência ao paciente. Entretanto, apesar de a lei apresentar a assistência como direito do pesquisado, não estipula como deve se dar este acompanhamento nem por quanto tempo deverá permanecer. Esta lacuna torna-se um problema à medida que não apresenta complementação ao direito regulado, pois os indivíduos participantes serão expostos a tecnologias desconhecidas no ambiente em que estão acostumados e, por maior conhecimento das consequências e reações obtidas em ensaios clínicos anteriores com o medicamento a ser testado, os pesquisadores não podem prever as reações que cada indivíduo possa vir a apresentar, mesmo após o sucesso da pesquisa. Frente ao exposto, é preciso que se investigue um tempo ideal a ser determinado para acompanhamento dos pacientes, eis que podem vir a desenvolver reações adversas à saúde após passarem pelas pesquisas. Existem no Brasil a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, o Conselho Nacional de Biossegurança, bem como Comitês responsáveis pelo controle das pesquisas realizadas em seres humanos e, principalmente, responsáveis pela continuação destas, questiona-se quanto serem corresponsáveis em caso de danos ao paciente. Assim, é preciso estabelecer até que momento a responsabilidade passa da esfera do pesquisador e ingressa em uma responsabilização de terceiros pelos riscos gerados da pesquisa aos participantes. De acordo com as comissões e comitês autorizadores e fiscalizadores das pesquisas, além do pesquisador responsável do projeto de testes, terceiros estão diretamente envolvidos tanto quanto o próprio responsável pela pesquisa, incluindo os patrocinadores, que financiam os estudos e ensaios clínicos. Assim, em uma abordagem ética, seria também de responsabilidade dos terceiros envolvidos nas pesquisas, tanto quanto à fiscalização e autorização de sua realização como patrocinadores para a realização do projeto, ultrapassando assim os limites da regulamentação atualmente imposta que caracteriza apenas a responsabilidade total por acompanhamento e eventuais consequências principalmente ao pesquisador. Ainda, a investigação deve ser contínua e necessária para identificar onde o direito se aplica e quais medidas protetivas de responsabilidade civil existem tanto para questões a favor do paciente pesquisado quanto para auxiliar os pesquisadores, que não podem deixar com que a responsabilidade civil acabe por cercar e limitar o desenvolvimento da ciência. 1 Um breve histórico dos ensaios clínicos em seres humanos As pesquisas realizadas em seres humanos possuem um histórico envolvendo cenas de crueldade, como por exemplo, no regime nazista, onde os cientistas alemães realizavam experiências nos campos de concentração sem quaisquer consentimentos dos pesquisados, os expondo à dor. De acordo com os ensaios clínicos em seres humanos no mundo, entre os históricos, além dos testes por médicos alemães no regime nazista, estão o Código de Nuremberg como o primeiro documento internacional que tratou sobre o tema, a Declaração de Helsinque aprovada pela Assembleia Médica Mundial, relatório de Belmont, entre outras situações históricas internacionais (STARDENBERG, 1999). No Brasil, apenas em 1996, com a Resolução 196, houve uma regulamentação das pesquisas com seres humanos. O Código de Nuremberg estabeleceu padrões de conduta ética a serem seguidos pelos responsáveis das pesquisas, exigindo o consentimento livre e voluntário do participante em querer ser parte da pesquisa (DINIZ, 2014). Na Declaração de Helsinque, os pesquisadores responsáveis comprometem-se a realizar as pesquisas somente após a verificação que a importância do objetivo exceda os riscos e ônus inerentes aos participantes das pesquisas. O Conselho Nacional de Saúde incorporando à Resolução 196 conceitos estabelecidos de bioética entre outros preceitos de regulamentações internacionais, reafirmou o consentimento livre e informado dos indivíduos que se dispõem à participação de pesquisas e a necessidade de aprovação prévia dos protocolos por um comitê independente (STARDENBERG, 1999). Com a característica da velocidade de transferência das informações do mundo atual, a ciência evolui com influências constantes da ética, da sociedade em geral, políticas públicas e privadas, economia, ideologias entre outros fatores que elevam as discussões quanto à utilização e os riscos desta nova ciência. 2 Das lacunas quanto às responsabilidades aplicadas na utilização de nanomedicamentos Apesar de a utilização de seres humanos em ensaios clínicos não ser um assunto novo no mercado de medicamentos, atualmente, a discussão impera nos ensaios clínicos dos conhecidos como novos medicamentos. No presente contexto, emprega-se como novos medicamentos os que apresentam em sua fórmula as novas tecnologias, ou seja, micro partículas apresentadas na escala nano que, por serem muito pequenas, acabam por se tornar portas para a cura de doenças que até então jamais se esperava alcançar. A revista americana The Scientist (AKST, 2014), publicou uma matéria na qual afirmou que os perfis de segurança de alguns nanomedicamentos testados e que se encontram no mercado são de um nível tão elevado, que é possível manter níveis de dosagem combinados com outras terapias reconhecidas. A principal ideia dos pesquisadores é implantar a nanotecnologia para fins de obtermos uma terapia com menos drogas, menos frequência de administração, mas uma maior eficácia do medicamento no paciente, gerando assim menos riscos. Terapias modernas permitem com que o sofrimento do paciente, que já está agravado pelo simples fato da existência da doença, tenha seus efeitos minimizados em razão de intensidades maiores de medicação. Quanto ao tema nanotecnologias, impossível deixar de relacionar o cientista Richard Feynman e seu famoso vídeo There´s plenty of room at the bottom (FEYNMAN, 1959), onde afirmou que seria possível escrever todos os volumes da Enciclopédia Britânica na cabeça de um alfinete. A proposta de Feynman foi criar novas tecnologias que apresentassem como base partículas em nano escala, pois estas seriam capazes de carregar um grande armazenamento de informações e auxiliar no desenvolvimento de novas tecnologias que contribuíssem à sociedade. Esta palestra modificou a forma de pensar da ciência. Após esta exposição, em 1974, o Professor Norio Taniguchi utilizou pela primeira vez o termo nanotecnologia, enquanto lecionava na Tokyo Science University (TANIGUCHI, 1974). Utilizou o termo para fins de descrever os processos controlados na escala nano em seus trabalhos de processamento de ultra precisão de materiais empregando feixes de energia. Com o tempo, passou-se a aplicação da nanotecnologia no trabalho conjunto de ciência e medicina, para assim, descobrir tratamentos que trouxessem mais benefícios aos indivíduos, principalmente no setor de oncologia. Em um relatório de controle apresentado pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial, 2013), envolvendo o emprego da nanotecnologia na área da saúde, apresenta-se um avanço promissor quando em análise das fases em andamento dos testes clínicos realizados atualmente. De acordo com o relatório apresentado, os ensaios clínicos são subdivididos em quatro fases: Fase I, quando o medicamento é testado em pequenos grupos com boa saúde. Esta fase é responsável pela verificação da segurança no consumo daquele medicamento por seres humanos. Entende-se que, esta fase, seria a mais carente de estrutura legislativa, em razão de que um indivíduo participante poderá desenvolver problemas futuros, assumindo riscos que anteriormente as pesquisas não possuíam. Na Fase II, com um número maior de pesquisados, avalia-se a eficácia do novo medicamento a que os indivíduos estão sendo expostos. Juntamente, é verificada a toxidade e os malefícios causados em suas aplicações. Na etapa denominada de Fase III, é realizada uma comparação entre o tratamento convencional já existente e o novo medicamento testado. Logo, dividem-se os pesquisados em dois grupos, onde será analisada a reação de cada medicamento nos mais diferentes indivíduos. Por fim, na Fase IV, o novo medicamento é aprovado pela Anvisa (no caso do Brasil), iniciando-se estudos de adaptação e verificação de reações adversas encontradas nas pesquisas. Ocorre que, apesar de um novo medicamento contendo novas tecnologias ter se desenvolvido de forma satisfatória ao longo das fases da pesquisa clínica, mesmo após a sua aprovação pelo órgão de vigilância responsável, ainda assim pode apresentar efeitos colaterais nos próprios participantes das pesquisas que, já não estão incluídos na fase IV. Assim, apesar das inúmeras possibilidades que se abrem com a nanotecnologia e sua aplicação na área da saúde, é importante atentar para a avaliação dos riscos a que esses pacientes estarão expostos durante e, principalmente, após as pesquisas. Apesar da satisfação dos cientistas com os resultados dos experimentos, não se eliminam todas as incertezas associadas à exposição de um sujeito humano aos nanomedicamentos (RESNIK, 2009). Ou seja, mesmo após a obtenção de resultados satisfatórios nas primeiras fases de pesquisas, ainda assim é necessário um controle permanente do indivíduo participante. Estudos realizados em tecidos vivos e animais têm mostrado que alguns tipos de materiais em nano escalas podem se acumular em algumas partes do corpo e produzir efeitos adversos que variam de acordo com a exposição, por exemplo, uma partícula poderá ser benigna quando ingerida e tóxica quando inalada (RESNIK, 2009). Frente à imprecisão de resultados posteriores às pesquisas, é necessário que se estabeleça linhas de responsabilização. Atualmente, no Brasil, a Resolução 466/2012, estabelece as diretrizes para a realização das pesquisas com seres humanos nas diversas áreas da saúde. Ocorre que, quando passa a esclarecer as responsabilidades, limita-se a concentrar-se em um conceito básico de assistência aos pacientes, direcionando toda e qualquer responsabilidade ao pesquisador responsável pelo projeto. Em contraponto, ainda estabelece danos devidos pelos patrocinadores e instituições envolvidas, sem maiores detalhes. Apesar das resoluções complementares, a única que se aproximaria a uma regulamentação efetiva quanto às pesquisas com medicamentos do setor nanotecnologico, seria a Resolução 251/97, a qual regula as pesquisas realizadas em seres humanos relacionadas a novos fármacos, medicamentos, vacinas e testes diagnósticos. Mesmo assim, já em uma análise superficial da lei, é possível concluir que não seria a legislação mais adequada para a aplicação de responsabilidades na administração de nanomedicamentos. Conforme esta resolução, ao tratar da responsabilidade do pesquisador, fica garantido atendimento ao indivíduo participante da pesquisa com o envio de relatórios, no entanto, não se identifica qual seria o final do acompanhamento do pesquisado, apresentando uma lacuna da regulamentação. No âmbito do direito, Genival Veloso de França (FRANÇA, 20014) apresenta uma seleção de artigos envolvendo o Código Penal, Lei da Biossegurança, Resolução do Conselho de Saúde nº 466/2012 e o Código de Ética Médica. Em seu posicionamento, acredita que o corpo do ser humano é inviolável, sendo qualquer pesquisa de experimentação realizada um ato ilícito, pois coloca a vida do indivíduo exposta a um perigo que anteriormente não estava. Contudo, mostra a importância do avanço da tecnologia biomédica e que ela pode além da melhoria de vida, trazer riscos ao ser humano, devendo ser usada com cautela. A Lei 11.105 de 2005, conhecida com a Lei da Biossegurança, a qual dispõe das normas de segurança a serem observadas nas pesquisas científicas e outros procedimentos, estabelece, já no início, que os responsáveis pelas disposições da então lei são as entidades de direito público e privado, nos levando à ideia de que estes seriam responsáveis por eventuais consequências quanto aos ensaios clínicos. Ainda, referida lei aponta para a necessidade de que o projeto da pesquisa somente será realizado após a autorização da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança. Desta sorte, talvez seja possível traçar um limite quanto à responsabilidade do pesquisador, uma vez que a autorização de terceiros e a verificação direta destes pudessem ser vistas como corresponsabilidade. Referidas regulamentações, apesar de trazerem um norte quanto à aplicabilidade das responsabilizações no campo dos ensaios clínicos com seres humanos, não apresentam uma legislação específica quanto às novas tecnologias, o que acaba por gerar questionamentos, uma vez que algumas das reações ainda são imprevisíveis. O direito precisa estar presente nestas novas descobertas, não como limitador da criatividade dos cientistas, mas sim, para proteger os indivíduos participantes, bem como o próprio pesquisador responsável pela descoberta e aplicação dos nanomedicamentos e outros produtos na área da saúde que utilizam ou venham a utilizar as nanotecnologias (ENGELMANN, 2010). Com base nessas premissas, percebe-se que, não obstante haja resolução próxima ao tema da responsabilização à administração de nanomedicamentos, esse assunto ainda não foi esgotado. Considerando-se a exigência de uma lei específica quanto aos ensaios clínicos de nanomedicamentos, a realização da pesquisa possui pertinência e relevância no sentido de dar efetividade aos direitos dos pacientes e responsabilidades aos pesquisadores, estipulando os termos de início e fim da assistência aos indivíduos participantes, auxiliando assim no avanço da ciência na cura de doenças. Considerações finais Avaliando as novas possibilidades da ciência, é possível concluir que atualmente, existe uma carência legislativa na área da saúde que explora as novas tecnologias. Ao passo que a ciência descobre novas formas de otimização dos recursos disponíveis ao benefício do ser humano, é necessário que se crie um ramo no direito onde todas estas novas questões devem ser reguladas e debatidas de forma ampla e protetiva. Atualmente, uma dezena de nanomedicamentos estão expostos no mercado em suas mais variadas formas de utilização pelos seres humanos (PRESSE, 2014) e, destes, a maioria voltada aos sintomas do câncer, onde o paciente geralmente encontra-se em estágio avançado de sensibilidade. Apurar uma legislação protetiva, tanto para o pesquisador como para o próprio participante dos ensaios clínicos, é garantir que a ciência avance sem riscos. Diversos são os ramos do direito envolvidos, tais como direito médico, responsabilidade civil, direito civil, direito penal, direito do consumidor, entre outros aqui não citados. Desta sorte, é preciso cuidar do paciente e garantir-lhe os cuidados necessários mesmo após o término das pesquisas, em razão de laços temporais desconhecidos pelos  cientistas quando da atuação da nanotecnologia no ser humano. Confiando a ciência e o paciente em pesquisa a uma legislação garantidora de direitos e deveres, os avanços tecnológicos poderão chegar ao limite perseguido sem afrontar qualquer perspectiva de direito dos indivíduos.
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O genoma humano
Este artigo tem por objetivo trazer à discussão os problemas éticos que o avanço da ciência trará ao universo jurídico. Ao iniciar os estudos sobre biodireito e bioética deparei-me com questões novas e desafiadoras, o dever do Direito normatizar as questões ligadas à vida e o que pode ou não ser feito com este direito fundamental é premente. Há que serem definidos os pontos positivos e negativos derivados do avanço da biociência para resguardar a dignidade humana. Assim analisei diversos estudos sobre o tema e conclui que o avanço da biociência é irreversível, que certamente trará para a humanidade incontáveis avanços e eliminará o sofrimento causado por doenças atualmente incuráveis, crônicas, autoimunes, congênitas e tantas outras. Contudo, a espécie humana tem em seu DNA o gene da inquietação científica o que pode levar os estudos com o genoma para caminhos indesejáveis. O ideário da “raça-pura”, que encontra na eugenia seu pilar, é a forma mais cruel de segregação racial é a não aceitação do outro com suas diferenças, e qualidades o que pode levar a humanidade ao descaminho do terror como já ocorrido.
Biodireito
1. INTRODUÇÃO Quando aceitei o tema “Genoma humano e o direito comparado” logo pensei, o que é genoma? Já no início das pesquisas compreendi o seu significado, a sua utilização e o avanço que trará à medicina e consequentemente à humanidade. Então, por que haveria questões éticas e jurídicas no desenvolvimento de experiências com genoma humano, já que o resultado das tais seria uma libertação para a humanidade? Com a utilização do genoma os cientistas buscam encontrar a cura para doenças que hoje são incuráveis, crônicas, degenerativas, etc. Confesso que o tema ora abordado aguçou minha curiosidade. Iniciei as pesquisas assistindo a diversos vídeos, que recomendo, com o objetivo de dar os primeiros passos nesse “admirável mundo novo”. Neste artigo não me ocupei do direito comparado. 2. ASPECTOS HISTÓRICOS: Sendo o genoma um tema novo em minha vivência acadêmica decidi iniciar este artigo tratando dos aspectos históricos. Obviamente que as questões do genoma humano são um avanço da genética, o que hoje nos parece ser uma descoberta atual, não o é outros pesquisadores tanto do século XIX e XX deram os passos iniciais nas pesquisas sobre a transgenia. GREGOR JOHANN MENDEL (1822 – 1884). Dedicou-se ao estudo de experimentos com o cruzamento de variadas espécies de ervilhas. Obteve sucesso ao descobrir as leis básicas da genética. Pesquisou a herança das características dominantes e recessivas. Suas descobertas permaneceram esquecidas por aproximados trinta e cinco anos. Por volta de 1900, Hugo De Vries (Holanda), Karl Corens (Alemanha) e Erich Von Tschermak (Áustria) redescobriram as leis da hereditariedade que haviam sido descritas por Mendel anos antes.. [1] REGINALD CRUNDALL PUNNETT (1875-1967). Pesquisou a morfologia dos vermes (segmentados) nemertinos. Durante seu período em Cambridge interessou-se pelo processo experimental e escreveu a William Bateson, que fazia experimentações mendelianas com plantas e animais. Tal colaboração científica ajudou a estabelecer a “genética” WILLIAM BATESON (1861-1926). Pesquisou a variação e hereditariedade das espécies. Em 1894, publicou o livro Materials for the Study of Variation (Materiais para o estudo da variação). Neste livro, lançou as bases da abordagem experimental que deveriam ser usadas para estudar-se a hereditariedade. Por volta de 1897, Bateson iniciou experimentos híbridos com aves de abate e borboletas. Ao ler os trabalhos de De Vries e Mendel, Bateson percebeu a importância da “Lei de Mendel”, principalmente por causa de seus próprios experimentos. Em 1902, Bateson traduziu os trabalhos de Mendel para o inglês sendo grande defensor das leis de hereditariedade mendelianas. O seu trabalho influenciou outros biólogos e cientistas, tais como Archibald Garrod, Thomas Hunt Morgan, e Charles Davenport. [2] THOMAS HUNT MORGAN. Morgan, Prêmio Nobel de Medicina em 1933, dedicou-se aos estudos sobre fertilidade e esterilidade. “As primeiras pesquisas de Thomas Morgan referem-se à capacidade regenerativa dos anfíbios, equinodermos, moluscos, celenterados, anelídeos e resultaram na teoria de polarização orgânica. Morgan estudou a hereditariedade, fez experiências de cruzamento com a Drosophila ampelophila e com a Drosophila melanogaster, que comprovaram as teorias de Mendel e permitiram determinar os princípios da genética” Enciclopédia Mirador.[3]. Vencidos os aspectos históricos da origem da genética podemos nos dedicar a alguns conceitos. 3 CONCEITOS. “Genética (do grego geno; fazer nascer) é a ciência dos genes, da hereditariedade e da variação dos organismos. Ramo da biologia que estuda a forma como se transmitem as características biológicas de geração para geração. O termo foi primeiramente aplicado para descrever o estudo da variação e hereditariedade, pelo cientista William Bateson numa carta dirigida a Adam Sedgewick, da data de 18 de Abril de 1908”.[4] Já, na pré-história, o homem utilizou de conhecimentos intuitivos da “genética” através do cruzamento seletivo de animais e plantas visando a melhora das espécies. Como podemos observar a humanidade sempre se ateve em questões relativas à melhora das espécies, seja humana ou vegetal. Com o avanço das descobertas no campo da genética foi possível a investigação das funções dos genes. “No interior dos organismos, a informação genética está normalmente contida nos cromossomos, onde é representada na estrutura química da molécula de DNA o que diminui bastante o tempo de espera no cruzamento das espécies”.[5] “Os genes, em geral, codificam a informação necessária para a síntese de proteínas, no entanto diversos tipos de gene não-codificantes de proteínas já foram identificados, como por exemplo, genes precursores de microRNAs (miRNA) ou de RNAs estruturais, como os ribossômicos. As proteínas, por sua vez, podem atuar como enzimas (catalisadores) ou apenas estruturalmente, funções estas diretamente responsáveis pelo fenótipo final de um organismo”.[6] Desta forma, podemos afirmar que genoma é um código genético. Genoma: “Genoma é um código genético, que possui toda a informação hereditária de um ser, e é codificado no DNA. É o conjunto de todos os diferentes genes que se encontram em cada núcleo de uma determinada espécie. Na dotação cromossômica haploide, um núcleo possui só um genoma.” [7] Em 1920 Hans Winkler, professor da Universidade de Hamburgo esclareceu que: “O genoma humano dispõe das informações básicas e necessárias para o desenvolvimento físico de um ser humano, e é formado pela sequência de 23 pares de cromossomos.”[8] Assim, genoma é a soma de genes que define o desenvolvimento e o funcionamento de um ser vivo. Note-se que todos os seres vivos possuem genoma, até mesmo as bactérias.[9] O genoma pode ser definido como a herança genética de uma determinada espécie de ser vivo, porque nele estão gravadas características hereditárias encarregadas de dirigir o desenvolvimento biológico de cada ser.[10] Genoma Humano “O Genoma Humano consiste na sequência dos 23 pares de cromossomos que se encontram dentro do núcleo de cada célula diploide do ser humano. O genoma humano é constituído por aproximadamente 27.000 genes.”[11] Em 2003 os cientistas atingiram, quase que integralmente, o objetivo de mapear a sequencia do genoma humano, identificando assim os nucleotídeos com uma precisão de 99,99%.  “O Projeto genoma humano (PGH) teve início nos Estados Unidos, em 1988, com expectativa de ser concluído em 15 anos, com financiamento anual de US$200 milhões. O projeto tinha como objetivo produzir a sequência completa do genoma humano, com taxas mínimas de erros.”[12] Passado os aspectos históricos e os necessários conceitos iniciais, veremos agora os motivos pelos quais o Direito e a comunidade mundial passaram a se preocupar e a regrar os experimentos genéticos e nesses inclua-se o genoma. 4. EUGENIA Nas palavras de Galton, em 1865: “[..] as forças cegas da seleção natural, como agente propulsor do progresso, devem ser substituídas por uma seleção consciente e os homens devem usar todos os conhecimentos adquiridos pelo estudo e o processo da evolução nos tempos passados, a fim de promover o progresso físico e moral no futuro”. Em detrimento das questões éticas e da inerente discriminação entre as diferenças das raças humanas, em 1865, Galton, defendia a utilização das técnicas de “melhoramento” da nossa espécie.[13] . “Em diversos países foram propostas políticas de “higiene e profilaxia social”, com o objetivo de impedir a reprodução de pessoas que possuíam doenças consideradas hereditárias e, também, exterminar portadores de problemas físicos e mentais. Um exemplo extremo de eugenia foi na Alemanha Nazista, comandada por Adolf Hitler, onde os nazistas almejavam extinguir as “raças humanas” ditas inferiores, deixando apenas as “raças nórdicas” (arianos) que eram consideradas “raças superiores”, resultando no Holocausto.” [14] Nos dias atuais falar sobre uma Sociedade que defenda a prática da eugenia seria uma afronta às questões éticas da comunidade internacional, contudo, em 1918 fundou-se, no Brasil, a Sociedade Paulista de Eugenia, a qual promoveu seu primeiro Congresso, na cidade do Rio de Janeiro em 1929. Neste Congresso, sob o título “O Problema Eugênico da Migração”, foi proposto a “exclusão das imigrações de pessoas não brancas”. O caráter discriminatório da eugenia é latente, ao dizer que um tipo étnico é “superior” a outro tipo é absurdamente danoso à humanidade. Entretanto, em 1931 foi criada a “Comissão Central de Eugenismo com os seguintes objetivos:” [15] “Manter o interesse dos estudos relacionados às questões eugênicas; Disseminar o ideal de regeneração física, psíquica e moral do homem; Prestigiar e ajudar as iniciativas científicas ou humanitárias relacionadas à eugenia”[16]. Hitler um dos grandes admiradores do ideário eugenista utilizou-se cobaias humanas para realizar seus experimentos. Um de seus objetivos era o de encontrar novas terapias que possibilitassem a manutenção dos combatentes do seu exército. “Buscando o desenvolvimento científico no campo da genética, muitas experiências condenáveis e criminosas foram feitas nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, sobretudo em Auschwitz, na Polônia, com o sacrifício de milhares de vidas humanas. As experiências consistiam em esterilizações e inoculações de células cancerígenas, de sífilis, de tifo, e de variadas espécies de vírus nos prisioneiros[17], como em tentativas de alteração da cor dos olhos com injeções de líquidos coloridos. Várias pesquisas genéticas também foram levadas a efeito com o propósito de se alcançar o sonho nazista de uma “raça superior” que dominaria o mundo. E é curioso revelar que, um pouco tempo antes, em 1931, o Governo da Alemanha, ainda não nazista, possuía um “detalhado regulamento sobre procedimentos terapêuticos diferenciados de experimentação humana”, o qual tinha como finalidade a proibição do abuso e do respeito à dignidade humana nas pesquisas científicas”.[18] Diante do horror das experiências nazistas, após o final da Segunda Grande Guerra, no decorrer dos trabalhos do Tribunal Militar de Nuremberg, surge um novo tipo criminal a ser legalizado: “a de experiências de pesquisa, frequentemente fatais, realizadas em prisioneiros de guerra por parte de médicos nazis”[19]. Surge então, o Código de Nuremberg, Agosto de 1947 por juízes dos EUA, com o objetivo de julgar os médicos de Hitler. Frise-se que a Alemanha nazista não foi o único pais a realizar experimentos em humanos, os Estados Unidos da América do Norte, também, realizou experimentos cruéis. 5. CÓDIGO DE NUREMBERG – DIRETRIZES ÉTICAS INTERNACIONAIS –RESOLUÇÃO Nº 466, DE 12 DE DEZEMBRO DE 2012. Diante das terríveis experiências realizadas com prisioneiros na Segunda Grande Guerra, e mediante a necessidade de julgar os atores que as cometeu, o Tribunal de Nuremberg criou o código que levou o seu nome. Esta norma visou proteger a dignidade da pessoa humana impondo limites éticos e morais para as práticas científicas com humanos. O código de Nuremberg determinou: 1. “O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão lúcida. Esse último aspecto exige que sejam explicados às pessoas a natureza, a duração e o propósito do experimento; os métodos segundo os quais o experimento será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos sobre a saúde ou sobre a pessoa do participante, que eventualmente possam ocorrer, devido à sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um experimento ou se compromete nele. São deveres e responsabilidades pessoais que não podem ser delegados a outrem impunemente”.(grifei) 2. “O experimento deve ser tal que produza resultados vantajosos para a sociedade, que não possam ser buscados por outros métodos de estudo, mas não podem ser casuísticos ou desnecessários na sua natureza”. (grifei) 3. “O experimento deve ser baseado em resultados de experimentação em animais e no conhecimento da evolução da doença ou outros problemas em estudo; dessa maneira, os resultados já conhecidos justificam a realização do experimento”. (grifei) 4. “O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar todo sofrimento físico ou mental desnecessário e danos”. (grifei) 5. “Não deve ser conduzido qualquer experimento quando existirem razões para acreditar que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; exceto, talvez, quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento”. 6. “O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância humanitária do problema que o experimento se propõe a resolver”. 7. “Devem ser tomados cuidados especiais para proteger o participante do experimento de qualquer possibilidade de dano, invalidez ou morte, mesmo que remota”. 8. “O experimento deve ser conduzido apenas por pessoas cientificamente qualificadas. O mais alto grau de habilidade e cuidado deve ser requerido de aqueles que conduzem o experimento, através de todos os estágios deste”. 9. “O participante do experimento deve ter a liberdade de se retirar no decorrer do experimento, se ele chegou a um estado físico ou mental no qual a continuação da pesquisa lhe parecer impossível”. 10. “O pesquisador deve estar preparado para suspender os procedimentos experimentais em qualquer estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar, no exercício da boa fé, habilidade superior e cuidadoso julgamento, que a continuação do experimento provavelmente resulte em dano, invalidez ou morte para o participante. (*) Versão em Português no Informe Epidemiológico do SUS Ano IV – 1995”. Assim, a comunidade jurídica e a científica mundial estipularam como valor fundamental a dignidade da pessoa humana. Depois do Código de Nuremberg novos acordos foram firmados dos quais destacamos: Diretrizes Éticas Internacionais. Em 1993, a Council for International Organizations of Medical Siences (CIOMS), em colaboração com a Organização Mundial da Saúde (OMS), Genebra, acordaram as diretrizes éticas internacionais para a realização de pesquisas envolvendo seres humanos. [20] As Diretrizes foram: 1. Consentimento Informado Individual, 2. Informações Essenciais para os Possíveis Sujeitos da Pesquisa; 3. Obrigações do pesquisador a respeito do Consentimento Informado; 4. Indução a participação; 5. Pesquisa envolvendo crianças; 6. Pesquisa envolvendo pessoas com distúrbios mentais ou comportamentais; 7. Pesquisa envolvendo prisioneiros; 8. Pesquisa envolvendo indivíduos de comunidades subdesenvolvidas; 9. Consentimento informado em estudos epidemiológicos; 10. Distribuição equitativa de riscos e benefícios; 11. Seleção de gestantes e nutrizes como sujeitos de pesquisa; 12 Salvaguardas à confidencialidade; 13. Direito dos sujeitos à compensação; Diretriz 14: Constituição e responsabilidades dos comitês de revisão ética; Diretriz 15: Obrigações dos países patrocinador e anfitrião. No Brasil o Conselho Nacional de Saúde, editou em 12 de dezembro de 2012 a resolução 466, determinando as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, que seguiram as diretrizes acima mencionadas. Com isto a comunidade internacional visou e visa garantir a dignidade da pessoa humana restringindo e disciplinando a forma como as pesquisas com a raça humana podem ser realizadas. Contudo, o fato “como aquele registrado nos Estados Unidos, na cidade de Nova York, especificamente no Hospital Willowbrook, no qual foi injetado o vírus da hepatite em crianças retardadas mentais, durante o período de 1950 a 1970; ou então os experimentos feitos pelas Forças Armadas norte-americanas, durante a Guerra do Golfo Pérsico, em seus próprios soldados, mediante vacinas, como a piridostigmine, que objetivava prevenir e tratar as moléstias resultantes de armas químicas”[21], não pode mais ser aceito pela humanidade, há que se impor limites eficazes à tal prática. 6. CONCLUSÃO O avanço da biociência é irreversível, certamente trará à humanidade incontáveis avanços e eliminará o sofrimento causado por doenças atualmente incuráveis, crônicas, autoimunes, congênitas e tantas outras. Contudo, a espécie humana tem em seu “DNA coletivo” o gene da curiosidade científica, o que pode levar os estudos com o genoma a caminhos indesejáveis. O ideário da “raça-pura”, que encontra na eugenia seu pilar, é a forma mais cruel de segregação racial é a não aceitação do outro, com suas diferenças, e qualidades. Essa técnica pode levar a humanidade ao terror como já ocorrido na Alemanha nazista. Valioso frisar que outros países, como os Estados Unidos da América do Norte, realizaram experiências em humanos em prol do avanço científico, sem se importar com a dignidade da pessoa humana, com a ética ou com a moral. As legislações mundiais estão a evoluir na proteção desses princípios, a ótica da biociência deve observar o indivíduo, a coletividade, as referencias da bioética tais como, autonomia, não maleficência, beneficência, justiça e equidade, mas devemos nos ater no fato de que os discursos assim como as legislações, por serem enunciados políticos, podem ser alterados em nome do “progresso”.
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A natureza jurídica dúplice do direito ao próprio corpo
O presente artigo tem por finalidade analisar o direito ao próprio corpo, traçando suas principais características para, ao final, definir sua natureza jurídica, intentando estabelecer uma ponte de ligação entre os direitos público e privado. No escopo do presente trabalho, os esforços estarão empenhados a demonstrar que o direito ao próprio corpo possui natureza dúplice, estando ao mesmo tempo na categoria dos direitos da personalidade e também naquela dos direitos fundamentais.
Biodireito
Introdução Inúmeras foram as descobertas e inovações proporcionadas pela medicina, pela engenharia genética e pelas demais áreas de conhecimento das ciências biológicas, que, de forma inconteste, foram responsáveis por um verdadeiro turbilhão de questionamentos. Nesse diapasão de fatos, não só a medicina, bem como as demais ciências afins, foi posta sob os holofotes de uma sociedade ávida por respostas e, por vezes, perplexa com os acontecimentos. Diversos outros setores do conhecimento foram também chamados para um exercício de reflexão, com o fito de estabelecer balizas para as pesquisas então desenvolvidas. Insta salientar que tamanha preocupação manifestada por diversos âmbitos sociais está relacionada ao envolvimento do próprio homem, que assume o papel de objeto pesquisado. Dentro desse contexto, o Direito foi conclamado a questionar e regulamentar os procedimentos científicos, com vistas a estabelecer um limite de atuação sobre o homem, sua vida e seu corpo. Isso porque não seria factível hodiernamente uma supressão do conceito de homem traduzido em toda uma multiplicidade de elementos complexos por si só. O homem, diferentemente do que já se constatou em tempos pretéritos, não pode ser visto como objeto, como uma cobaia, ainda que tal ideia seja contextualizada em prol do próprio ser humano. Seguindo tal direção, o presente trabalho tem por finalidade analisar o direito ao próprio corpo, seu conteúdo, e determinar sua natureza jurídica, estendendo uma ponte de ligação entre os direitos público e privado. É dizer, no escopo do presente trabalho, os esforços estarão empenhados a demonstrar que o direito ao próprio corpo possui características que o enquadram materialmente na categoria dos direitos da personalidade e dos direitos fundamentais. 1 Direito ao próprio corpo: conceito e conteúdo a ideia de direito ao próprio corpo está relacionada a um ângulo concreto daqueles direitos considerados como inerentes à personalidade individual. É dizer, se por um lado a personalidade humana se expande através de elementos psíquicos, faz-se, sobremaneira, concretano próprio corpo. É o corpo humano o elemento que possibilita a existência, que agrega todos os aspectos pessoais do indivíduo, representando-o, daí a importância que a ele se atribui, mesmo para além da morte. Dentro desse diapasão, em que o corpo insurge como esfera central da existência, é que se faz presente uma gama de direitos de proteção à personalidade individual concretamente considerada. “Os autores, em sua maioria, estabelecem o que se pode chamar de direito moderno corporal” (CHAVES. 1994, p. 87). Essa nova perspectiva que se faz acerca do direito ao próprio corpo está vinculada às inovações tecnológicas e às descobertas científicas, inerentes aos tempos atuais, que implicam, necessariamente, na densificação do conteúdo de tal direito. Nesse sentido, estabelecer a priori um conteúdo fechado, numerusclausus, para esse direito seria incorrer em grave equívoco, pois que constantemente o seu quadro é ampliado. Apesar disso, é possível delimitar algumas facetas do direito ao próprio corpo, cujo reconhecimento já se encontra sedimentado, e que se apresentam como o tronco do conteúdo desse direito. A saber, o direito à integridade física e a possibilidade de se dispor, em vida ou post mortem, do próprio corpo. 1.1. A proteção da integridade física Como muito bem assevera José Afonso da Silva (2002, p.), agredir o corpo humano é também agredir a vida, pois esta se realiza naquele. Dessa sorte, estabelecer meios de proteção para o corpo e, consequentemente, para a integridade física individual, é tornar possível a dignidade humana. Se outrora atentar contra o corpo caracterizava uma prática comum, aceita jurídica e socialmente, nos dias de hoje é inimaginável atos que, de qualquer forma, violem a integridade física individual, de maneira a lhe causar danos. A concepção de direito à integridade física torna inimaginável qualquer ato de ofensa ao corpo humano, considerado em sua completa amplitude. Nas palavras de Rabindranath V. A. Capelo De Souza (1995, p. 213-214), o direito à integridade física compreende não só a proteção do conjunto corporal organizado, mas inclusivamente os múltiplos elementos anatômicos que integram a constituição físico-somática e o equipamento psíquico do homem bom como as reações fisiológicas decorrentes da pertença de cada um desses elementos a estruturas e funções intermédias e ao conjunto do corpo, nomeadamente quando se traduzem num estado de saúde físico-psíquica. Caio Mário da Silva Pereira (2008, p. 250), nesse sentido, ressalta que no conceito de proteção à integridade física inscreve-se o direito ao corpo, no que se configura a disposição de suas partes, em vida ou para depois da morte, para finalidades científicas ou humanitárias, sempre observada a preservação da vida ou de sua deformidade. A considerar a possibilidade de o indivíduo dispor de seu próprio corpo, verificar-se-á uma certa relativização de tal direito. Nessa perspectiva, Adriano De Culpis afirma que: “Ao contrário do direito à vida, direito indisponível, o direito à integridade do homem pode, dentro de certos limites, ser disponível apesar de ser um direito absoluto. O indivíduo pode consentir em dispor de sua integridade física desde que desta disponibilidade não resulte uma diminuição permanente da integridade física ou que não seja contrária à lei e aos bons costumes” (De Culpis,196, p.74). Como se vê, haverá violação da integridade física individual se o ato importar em diminuição permanente da capacidade física do sujeito. De outra feita, lícita será a conduta, que, mesmo a violar a integridade individual, objetivar um fim terapêutico, bem como aquela que não implicar em um atentado à conservação do indivíduo. 1.2. Sobre a disposição post mortem de tecidos, órgãos e partes do corpo humano para fins de transplante A morte se consubstancia como o momento em que a pessoa natural deixa de existir. É dizer, é no fenômeno biológico denominado morte que se inscreve o termo final da personalidade de qualquer ser humano. Destarte, pode-se afiançar, como o faz Antônio Chaves (1982, p. 228), que, após a morte, não há mais se falar em pessoa, mas sim em cadáver. Como afirma o autor, o cadáver é considerado, do ponto de vista jurídico, “coisa” extra commercium, objeto de um direito privado não patrimonial, de origem consuetudinária. Em que pese ser o cadáver uma “coisa”, há se ressaltar que determinados direitos a ele relacionados, inscrevem-se no contexto dos direitos da personalidade, sendo, pois vitalícios, imprescindíveis, como ensina Guillermo Borba, citado por Caio Mário (PEREIRA, 2005, p) Dentro dessa perspectiva galga relevo a discussão acerca do direito de dispor do próprio corpo ou de partes dele para fins terapêuticos post mortem. A matéria encontra-se atualmente regulada pela Lei nº 9.434/97, com as modificações estabelecidas pela Medida Provisória de nº 1.718 e, posteriormente, pela Lei 10.211/ 2001. Sobre o assunto, a referida Lei dispõe: “Artigo 3 – A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina. ” Como fica claro pelo texto da lei, somente será possível a doação de órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplantes ou tratamento, após a constatação da morte do indivíduo, feita por dois médicos não participantes da equipe de remoção e transplantes. Consoante o texto legal, o indivíduo será considerado morto quando constatada sua morte encefálica[1], a qual deverá ser verificada através dos critérios técnicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina. Em síntese, Maria de Fátima aponta como necessários para a constatação de morte cerebral de um indivíduo os seguintes critérios: “I – Em primeiro lugar, verifica-se a história de doença catastrófica – doença estrutural conhecida, ou seja, tumores, infecções, acidentes vasculares cerebrais, ou causa metabólica sistêmica irreversível, como a hipoglicemia, uremia, coma hepático, etc.II – Seis horas de observação da ausência de função cerebral são suficientes em caso de causa estrutural conhecida, quando nenhuma droga ou álcool esteja envolvido na etiologia do tratamento. Caso contrário, doze horas, mais investigação negativa de drogas são necessárias.III – Ausência de função cerebral e do tronco encefálico:  – nenhuma resposta comportamental ou reflexa a estímulos nocivos, na localidade entre a coluna e o crânio;- ausência de resposta oculovestibular ao teste térmico com água gelada, que é procedido injetando-a no ouvido para a verificação de movimentos oculares;- apnéia, que significa a falta de resposta respiratória durante oxigenação por dez minutos. ”  (SÁ, 2000 p.71). Ponto de destaque na discussão acerca da doação de órgãos e tecidos para fins de transplante após a morte é aquele relacionado ao consentimento do morto, manifestado em vida, ou de sua família, após sua morte, quanto à retirada ou não dos órgãos. Em princípio, o tratamento da questão, feito pelo artigo 4º da Lei 9.434/97, estabelecia ser necessária manifestação de vontade em sentido contrário à doação para que não houvesse a retirada dos órgãos, tecidos e partes do corpo. No mesmo sentido, o regulamento de nº 2.268/97 previa a possibilidade da retirada de tecidos, órgãos e partes, após a morte, ainda que inexistisse consentimento expresso da família, se, em vida, não se verificou a objeção por parte do falecido. “O certo é que a interpretação do caput do referido artigo é no sentido de que, a menos que haja manifestação em contrário, no sentido de não se autorizar a retirada de órgãos após a morte, o qual deverá comprovar-se através da expressão ‘não doador de órgãos e tecidos’, gravada tanto na carteira de identidade civil, quanto na carteira nacional de habilitação (§§ 1º, 2º, 3º do art. 4º), o indivíduo, após o seu óbito, torna-se doador. Isto significa que, independentemente da autorização dos familiares, seus órgãos, tecidos e partes do corpo podem ser retirados para fins de transplante e tratamento. A obrigação das equipes médicas cinge-se a devolver o corpo aos familiares do falecido ou a seus representantes legais, após a disposição do mesmo, condignamente recomposto. ” (SÁ, 2000, p. 73) Alterando a sistemática então vislumbrada, a Medida Provisória de nº 1.718/98, transformada na Lei 10.211/ 2001, coadunando o procedimento ao princípio do consentimento ou da autonomia, estabeleceu nova redação para o artigo 4º da Lei 9.434/97:“Na ausência de manifestação de vontade do potencial doador, o pai, a mãe, o filho ou o cônjuge poderá manifestar-se contrariamente à doação, o que será obrigatoriamente acatado pelas equipes de transplante e remoção. ” 1.3. Sobre a disposição de tecidos, órgãos e partes do corpo humano vivo Ao se falar em disposição de tecidos, órgãos e partes do corpo humano vivo, insta salientar, em princípio, a diferença que se faz entre partes renováveis e partes não renováveis. Importa tal distinção, uma vez que o ordenamento jurídico imprime um tratamento diferenciado quanto à disposição dessas partes, conforme sejam elas renováveis ou não. Consideram-se partes renováveis do corpo humano aquelas dotadas de capacidade para se reconstituírem na medida das necessidades orgânicas do indivíduo. Assim, verificar-se-á contínua produção ou renovação de tais partes ao longo da existência do ser humano. A ordem jurídica não traça contornos fortes para delimitar os procedimentos de disposição dessas partes renováveis, pois que, muita vez, seria de excessivo formalismo legal. Dentro desse contexto, é que não há se falar em ato normativo que regule a doação de cabelos, por exemplo, a qual, como bem adverte Pereira, poderá ser feita onerosamente. Não obstante, há se ressaltar que o direito não permite sejam violados os princípios norteadores do direito ao próprio corpo. Sendo assim, por mais banal que aparente ser a doação de saliva (ptialina), ou mesmo de fios de cabelo, não será jurídico o ato de disposição: caso não haja consentimento do doador; caso o ato implique em ofensa à integridade física do indivíduo, sem que haja, em contrapartida, um benefício para a saúde do doador; caso o ato viole, de qualquer forma, a dignidade daquele que dispõe do próprio corpo. Apesar disso, é importante lembrar que existe lei específica para disciplinar os atos de doação e transfusão de sangue, muito embora se trate de um tecido renovável. Nesse sentido, afirma Caio Márioda Silva Pereira (2005, p.) que a necessidade de regulamentação legal para a doação e a transfusão de sangue reside no fato de que os mencionados atos estão subordinados às condições do doador e de seu estado de higidez, como ainda a indagações de ordem técnico-científicas.  A lei 10.205/2001 é que regra a captação, proteção ao doador e ao receptor, coleta, processamento, estocagem, distribuição e transfusão do sangue.  Em seu artigo primeiro, a mencionada lei estabelece, como regra geral, a proibição da compra, venda ou qualquer outro tipo de comercialização do sangue, componentes e hemoderivados, em todo o território nacional. Por outra feita, a disposição de partes não renováveis do corpo humano, contexto que se define mais precisamente no que diz respeito à doação de órgãos, o direito tratou de estabelecer normas objetivas, com o fito de assegurar maiores garantias à tão delicado procedimento. Dentro dessa perspectiva, o Código Civil de 2002 estabelece critérios gerais acerca da disposição do próprio corpo em seu capítulo II, que versa sobre os direitos da personalidade. Nos  termos do artigo 13 do código, in verbis , “salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.” Como se pode concluir da norma em epígrafe, quanto às partes não renováveis, fica absolutamente afastada a possibilidade de se onerar o ato de disposição. Sábias são as palavras de Antônio Chaves, citando Edelberto Luís da Silva: “É generalizado hoje o entendimento expresso pelo assessor jurídico do Ministério da Saúde, EDELBERTO LUÍS DA SILVA, em estudo entregue no dia 19.8.81, considerando que a venda dos próprios órgãos não encontrar amparo legal, e seu aproveitamento para transplanta caracteriza um ato ilegal, cometendo o médico responsável um crime sujeito a opiniões, agravada pelo abuso de direito. [sic. ]”  (CHAVES, 1994, p.238) Chaves alerta ainda que “Iremos talvez nos acostumando com o juízo de que possa alguém amanhã, “vender” um rim pressionado por estado de extrema necessidade, da mesma forma que todos sabemos que infelizes existem que vendem seu sangue por preço superior àquele prato de comida que, em termos biológicos, terá muito menos valor para o organismo. (CHAVES, 1994, p. 238) Tal situação vislumbrada por Antônio Chaves (1994, p. 238) apresenta-se bastante factível. Carlos Fabricio Griesbach (2003) cita, em artigo de sua autoria, o caso de uma desempregada de Joinville, Santa Catarina, que em virtude de problemas financeiros colocou um de seus rins à venda. A considerar apenas os princípios balizadores do direito ao próprio corpo, pode-se afirmar que a disposição onerosa de partes não renováveis do corpo, que impliquem diminuição permanente da integridade física, é incompatível com o ordenamento jurídico, pois que o ato avilta a dignidade do ser humano como pessoa. Não obstante serem os princípios autoaplicáveis, com objetivo de combater a mercantilização dos órgãos humanos, lembra Griesbach (2003) que a lei 10.211/ 2001 alterou o artigo 9º da Lei 9.434/ 97 para estabelecer que somente pode ser doador o cônjuge, parente consanguíneo até o quarto grau ou qualquer outra pessoa mediante autorização judicial. Nos termos em que ficou estabelecido, o legislador atribuiu ao julgador o dever de analisar in concreto se o ato de disposição do corpo em favor de outra pessoa está acorde aos princípios constitucionais da autonomia, da salvaguarda da integridade física e da dignidade da pessoa humana. Ainda no que diz respeito à Lei 9.434/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos tecidos e partes do corpo humano para fins de transplantes e tratamentos, o parágrafo único do artigo 13 do Código Civil faz referência expressa à sua aplicação. Diz o referido artigo que o ato de disposição do próprio corpo será admitido, para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial. Como já ficou bastante claro, a lei especial a que se refere o Código é justamente a Lei 9.434/97, com as alterações feitas pela MP 1.718 e, posteriormente, a Lei 10.211/2001, cuja regulamentação é dada pelo Decreto 2.268/97. A doação in vita, nos termos da lei em comento, deverá ser feita com a observância de diversos critérios, os quais não poderão ser olvidados ao longo do procedimento. Assim é que a doação, primeiramente, há de atender a certa exigência terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora. Não obstante seja comprovada a necessidade do transplante, a opção pelo procedimento in vitasó será aceita, de acordo com o artigo 3º da L. 9434/97, quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo e cuja retirada não implique em risco para a integridade do doador e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável. Dentro desse prisma, sábias são as palavras de Maria de Fátima Freire de Sá, que assevera a importância de o legislador ter dispensado atenção à saúde do doador. Afirma a autora que não será permitida doação, caso fique demonstrado, em exames prévios, a debilidade da saúde ou comprometimento das atividades do potencial doador. “A Lei impede a mutilação ou o prejuízo grave à saúde, restringindo o campo em que a vontade do indivíduo se manifeste, tornando-a nula, se produzida contra legem, não podendo o médico efetuar o transplante. ” (SÁ ,2000, p. 77) Quanto à vontade há se fazer uma análise sob as perspectivas do doador e do receptor. Do ponto de vista do doador, há se ressaltar que somente as pessoas capazes poderão assumir tal condição. Nesse sentido, o artigo 9º da Lei 9434/97 estabelece que é permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo. Ainda a considerar o doador, lembre-se que tal vontade não é absoluta, como já foi abordado ao longo do presente texto, não poderá haver qualquer afronta a sua integridade física, bem como, a princípio, será necessário o vínculo de parentesco entre doador e transplantado. Nos casos em que o doador for incapaz, será inarredável o consentimento de um dos pais ou responsáveis legais. No que diz respeito ao receptor, a vontade também deverá ser considerada. Nos termos da lei, o transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento. Nos casos em que o receptor for incapaz ou quando suas condições não lhe permitam manifestar perfeitamente sua vontade será necessária a manifestação do consentimento de um dos seus pais ou representante legal. Como se pode perceber, a vontade assume papel sobremaneira importante no procedimento de doação de órgãos e tecidos, quer seja analisada sob a ótica do doador ou do receptor. 2. Sobre a natureza jurídica do direito ao próprio corpo 2.1 Aspectos gerais: o que é natureza jurídica? Estabelecer qual a natureza de determinado ente é antes de tudo perquirir quais são os elementos característicos capazes de defini-lo. Trata-se de um processo lógico, no qual se buscará, em um primeiro ato, extrair a essência do objeto sob enfoque e, em seguida, o seu enquadramento em uma determinada categoria de classificação. Para Maurício Godinho “A pesquisa acerca da natureza de um determinado fenômeno supõe a sua precisa definição – como declaração de sua essência e composição – seguida de sua classificação, como fenômeno passível de um enquadramento em um conjunto próximo de fenômenos correlatos. Definição (busca da essência) e classificação (busca do posicionamento comparativo), eis a equação compreensiva básica da ideia de natureza. ” (DELGADO, 2003, p. 70) A definição da natureza jurídica de determinado instituto, faz-se sobremaneira correlata ao procedimento supramencionado. Segundo Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho ao indagar acerca da natureza jurídica de determinada figura, deve o estudioso do direito cuidar de apontar em qual categoria se enquadra, ressaltando as teorias explicativas de sua existência. Nas palavras dos referidos autores, “Afirmar a natureza jurídica de algo é, em linguagem simples, responder à pergunta: que é isso para o direito? ”. (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, 2002, p. 191) Conforme ensina Maurício Godinho (DELGADO,2003, p.70), para se encontrar a natureza jurídica de um instituto do Direito, deverá ser feita, previamente, uma apreensão dos elementos fundamentais que integram sua composição específica, e, em seguida, tais elementos deverão ser contrapostos ao conjunto mais próximo de figuras jurídicas, de modo a classificar o instituto enfocado no universo de figuras existentes no Direito. 2.2O direito ao próprio corpo como um direito da personalidade É certo que a compreensão do direito ao próprio corpo como um direito da personalidade encontra-se, de forma plena, sedimentada no âmbito doutrinário. Como ficou demonstrado ao longo do presente trabalho, o direito que um indivíduo exerce sobre o seu próprio corpo – direito à proteção de sua integridade física e o direito de dispor de seu próprio corpo – consubstancia uma manifestação concreta da personalidade humana. Ora, como já foi dito, é através do corpo que se faz a vida. O corpo é, assim, o locus em que o indivíduo manifesta seus aspectos psicofísicos. Trata-se de uma perspectiva material daquela máscara com a qual o indivíduo se apresenta perante a sociedade. Os direitos de personalidade, como expõe a doutrina, possuem características próprias capazes de defini-los.  A saber: “1) Possuem conteúdo não patrimonial. Sendo assim, não há como se mensurar economicamente o quantum de cada direito de personalidade; 2) São considerados absolutos, porque oponíveis erga omnes; 3) Irrenunciáveis, porque estão vinculados à pessoa de seu titular. Intimamente vinculados à pessoa, não pode, de regra, esta abdicar deles, ainda que para subsistir; 4) Intransmissíveis, porque o indivíduo goza de seus atributos, sendo inválida toda tentativa de sua cessão a outrem, por ato gratuito como oneroso; 5)  Imprescritíveis, porque sempre poderá o titular invocá-los, mesmo que por largo tempo deixe de utilizá-los. Igualmente, não pode o indivíduo autolimitar os direitos inerentes à personalidade”. Não há como deixar de constatar que o direito ao próprio corpo também possui todas essas características mencionadas. Ao longo deste trabalho, o direito ao próprio corpo foi analisado, de forma a se extrair sua essência, o que possibilitou conhecer seus elementos caracterizadores. Pode-se dizer, ainda, que o direito ao próprio corpo é, também, extrapatrimonial, pois insuscetível de uma análise econômica imediata. Como afirma Maria de Fátima: “[…] poder-se-á afirmar ser inaceitável tratar o corpo humano e a integridade física como direito de propriedade, já que, em sendo proprietário, o homem teria o amplo poder de disposição. Daí que a mutilação e a destruição do corpo humano resultariam autorizadas. […]. Portanto, não há se confundir o direito à integridade física com o poder do proprietário, de dispor da coisa que lhe pertence. ” (SÁ, 2000, p. 77). Dentro dessa ideia exposta por Sá, residem outras características do direito ao próprio corpo. É dizer, ser ele irrenunciável e intransmissível. Quanto a irrenunciabilidade nada há para se acrescentar, pois que, intuitivamente, é possível se perceber que seria inadmissível um indivíduo sofrer a perda do direito sobre seu próprio corpo. Nenhuma situação fática ou jurídica é capaz de dissociar o mencionado direito de seu titular. No que concerne ao fato de ser intransmissível o direito ao próprio corpo, há espaço para se fazer um breve questionamento. Como seria possível a doação de órgãos, diante de tal característica? Em primeiro lugar, há se ressaltar ser intransmissível o direito ao próprio corpo, o qual possui, como conteúdo, a possibilidade de o titular do referido direito dispor de partes do seu corpo, obedecidas às prescrições de ordem pública necessárias. Assim, nada há de incompatível com o ato de doar órgãos, tecidos ou outras partes do corpo, desde que atendidos os fins precípuos de tal conduta, e o fato de serem intransmissíveis os direitos da personalidade. Nas palavras de Maria de Fátima: “Enquanto vivo, a nova Lei de Doação de Órgãos, Tecidos e Partes do Corpo […], assegura que, resguardados os riscos à integridade física, o ser humano pode dispor de órgãos, tecidos e partes do corpo: em outras palavras, há a interferência do Estado, sim, no sentido de resguardar a vida e a integridade física do cidadão, não se lhe permitindo a prática de atos temerários, que possam representar graves comprometimentos em suas aptidões vitais e saúde mental (esta é a expressão do § 3º da Lei n. 9.434, de 4/2/97).”  (SÁ, 2000, p. 95). Como ficou demonstrado, o que tal característica imprime ao direito ao próprio corpo é a impossibilidade de o indivíduo transferir a outrem o poder de definir sobre dispor ou não de seu próprio corpo, sem que haja um fundamento para tanto. Cabe ao indivíduo capaz se manifestar nesse sentido, quando em vida, ou, post mortem, “no silêncio, a permissão da família, neste último caso, dado o princípio de piedade que deriva, em última análise, da proteção da sociedade em seus interesses superiores”. (SÁ, 2000, p. 96). Por todo o exposto, o enquadramento do direito ao próprio corpo dentro dessa categoria, faz-se materialmente. É dizer, muito além de ser considerado como um direito de personalidade por mera opção do legislador, o direito ao próprio corpo possui todos aqueles elementos característicos acima expostos.  Considerar o direito ao próprio corpo como um direito de personalidade é, apenas, proceder a um exercício de subsunção de suas características àquelas definidoras dos direitos de personalidade. O direito ao próprio corpo, como há de ser materialmente um direito de personalidade, é inato, possui conteúdo extrapatrimonial, é absoluto, irrenunciável, intransmissível e imprescritível. 2.2 O direito ao próprio corpo como um direito fundamental: uma perspectiva pluridisciplinar Considerar o direito ao próprio corpo como um direito fundamental, é, antes de tudo, reconhecer a diversidade entre tal categoria jurídica e aquela dos direitos de personalidade, as quais, consequentemente, hão de possuir conteúdo específico. De certo, uma parte da doutrina advoga a sobreposição de tais categorias, afiançando não haver qualquer diferenciação entre elas. Acorde com tal posicionamento, o jurista português Rabindranath V. A. Capelo de Sousa (1995) ao discorrer sobre o assunto, afirmou que os direitos reconhecidos pelo Código Civil e pela Constituição portuguesa tratam de forma idêntica os dois direitos, compartilhando, exatamente, o mesmo conteúdo. Para José Serpa de Santa Maria (1987, p. 35) “os direitos humanos são aqueles direitos fundamentais da pessoa humana, de larga abrangência e que englobam inclusive os direitos da personalidade de maior interesse civilista do que de ordem pública constitucional (social e política), ou pública penal. São eles as balizas estruturais que compõem com todos estes últimos em seus vários matizes o painel dos direitos fundamentais da pessoa humana. ” A despeito daqueles que defendem tal equivalência, o contrário parece mais plausível, pois que nem todo direito fundamental há de ser também da personalidade, e vice-versa. Pois bem, por isso mesmo, não se pode cotejar a pretensa analogia, já que, em determinados pontos, certa é a diferença. Gilberto Haddad Jabur (JABUR, 2000, p. 80 e 81), ensina que os direitos não são exatamente os mesmos, muito embora seja inegável o reconhecimento de semelhanças entre eles, primordialmente no tocante às suas gênese e conteúdo. Para o autor, a semelhança far-se-ia mais presente a se considerar que os direitos personalíssimos seriam expressões dos direitos fundamentais em face dos particulares, mas não, exatamente, uma esfera ou ramo daqueles. De acordo com Jabur, para se considerar uma relação de continente e conteúdo entre os dois tipos de direto, seria necessário, além da diversidade de destinatário, a não coincidência de substância, o que in casunão haveria. Ainda segundo o autor, a aproximação entre os direitos fundamentais e os direitos da personalidade estaria no conteúdo e na substância comum, diferenciando-os em função do agente violador. Certo é que, tanto os direitos da personalidade quanto aqueles denominados fundamentais visam, como fim primeiro, a consecução da dignidade da pessoa humana, cujo conclame é histórico e inarredável. Assim, a despeito de se discutir sobre a existência de uma relação de gênero e espécie entre os direitos fundamentais e os da personalidade, é inegável que exista entre eles um ponto de congruência. É dizer, alguns direitos tomados como da personalidade também se enquadram perfeitamente na categoria dos fundamentais, como é o caso do direito ao próprio corpo. Ressalte-se, todavia, que seria um tanto forçoso pretender estabelecer uma perfeita subsunção de todos os direitos ditos personalíssimos à categoria dos direitos fundamentais, uma vez que nem todos galgam talstatus. Em que pese a Constituição ter inscrito em seu bojo uma gama extensiva de direitos, nem todos podem ser ditos fundamentais, quando considerados do ponto de vista material. Dizer que um direito seja materialmente fundamental é representar seu conteúdo como algo inerente ao ser humano, indispensável à sua existência digna. Tal posicionamento implica, necessariamente, em não se admitir qualquer ato do poder legislativo, ou mesmo do constituinte derivado, capaz de suprimir o exercício de tais direitos. Sendo assim, somente aqueles direitos considerados inalienáveis, imprescritíveis e irrenunciáveis poderiam a priori receber o epíteto de direito fundamental do homem. A determinação de um direito como fundamental deve ser feita através da constatação da cláusula protetora da dignidade humana em seu conteúdo. Destarte, como bem assevera PauloLuiz NettoLôbo: “Os direitos à vida, à honra, à integridade física, à integridade psíquica, à privacidade, dentre outros, são essencialmente tais, pois, sem eles, não se concretiza a dignidade humana. A cada pessoa não é conferido o poder de dispô-los, sob pena de reduzir sua condição humana; todas as demais pessoas devem abster-se de violá-los. ” (Lôbo,  2001, p.10). Nesse diapasão de ideias, há se trazer à baila a classificação dos direitos da personalidade em natos e inatos, feita por Caio Mário. A ideia apresentada pelo autor corrobora a existência de vários direitos da personalidade inscritos dentro do âmbito de abrangência da cláusula de proteção à dignidade humana, o que implica classificá-los também como fundamentais. Diz Caio Mário: “[…] dentro da sistemática organizacional, os direitos da personalidade distribuem-se em duas categorias gerais: adquiridos, por um lado, e inatos, por outro lado.Os “adquiridos” (como decorrência do status individual) existem nos termos e na extensão de como o direito os disciplina.Os “inatos” (como o direito à vida, o direito à integridade física e moral), sobrepostos a qualquer condição legislativa, são absolutos, irrenunciáveis, intransmissíveis, imprescritíveis: […]. ” (Pereira, 2005, p. 242). O direito ao próprio corpo, como já ficou devidamente demonstrado no presente trabalho, está imbricado na própria condição de dignidade do homem, sendo considerado, portanto, um direito fundamental, ou como dito por Pereira, um direito da personalidade inato. Conclusão O direito ao próprio corpo, caracterizado como o direito à integridade física e à sua disposição, em todo ou em parte, em vida ou após a morte, pode ser considerado como um direito dual, na medida em que sua natureza jurídica se encontra na intercessão da categoria dos direitos da personalidade e aqueles ditos fundamentais. O reconhecimento da dualidade da natureza jurídicadecorre da possiblidade de se enquadrar o direito ao próprio corpo, como definido, tanto na categoria dos direitos fundamentais, quanto na dos direitos da personalidade. Tal possibilidade implica em reconhecer que as normas jurídicas reguladoras haverão de considerar a proteção tendo por base a possibilidade de violação do direito nos âmbitos público e privado, na medida em que os agentes violadores de cada categoria são distintos. Sendo um direito de personalidade fundamental à dignidade da pessoa humana, pode-se dizer que toda limitação ao exercício de tão importante direito há de estar abarcada pela sistemática constitucional. Assim, limitar atos de disposição do próprio corpo que impliquem em diminuição permanente da integridade física constitui uma observância ao princípio de salvaguarda da integridade física, o qual integra a cláusula de proteção da dignidade humana.De outra sorte, seria aviltante à Constituição determinar, ainda que para fins terapêuticos, que um sujeito doe um de seus órgãos duplos, pois que uma ordem dessa feita afrontaria o princípio da autonomia, também inserto na cláusula de proteção da dignidade do homem.
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A ciência da vida como fonte das novas relações jurídicas
O presente artigo leva emconsideração a crescente capacidade em projetar e trabalhar o perfil biológico do corpo humano, que assume sempre cada vez mais a conotação de objeto de múltiplos interesses como matéria prima e em uma grande fonte de recursos biológicos, eportanto,  perdendo o valor em si mesmo e adquirindo um valor de uso e de substituição. Neste sentido, reduzido a material biológico, que todavia, o expõe à certas práticas que visam a sua exploração comercial. Acredita-se que esta temática é de extrema importância não somente porque as biociências são potencialmente capazes de transformar as formas da política, do direito e da sociedade mas, principalmente o de orientar e modificar o destino da natureza humana.Neste contexto, procura-seconsiderar as diversas funções do direito-biodireito, tratando das questões  jurídicas-legais que afetam a natureza humana considerada até o presente momento inviolável e absoluta, mas, que com os enormes avanços da genética entram em discussão ao uso legítimo do corpo ou parte deste.Desse modo, procura-se abordaralguns aspectos do progresso científico e biotecnológico na sociedade democrática, que não incide unicamente na relação médico paciente, mas que diz respeito principalmente no grande problema entre normas morais, jurídicas, políticas e econômicas.
Biodireito
1. Escravidão e biomercado Os argumentos de determinadassimilitudes com a escravidão, evidenciam certasdistorções de uma visão centrada nos mercados[10].Assim, procurando dar validade moral e legal da escravidão David Brion[11], assevera que a escravidão constituiu um problema estonteante no pensamento aristotélico[12] e lockeniano[13] sobretudo no Séc. XVIII, quando o pensamento ocidental voltou-separa a história para encontrar uma orientação moral e um modo de entendê-la. As controvérsias sobre a escravidão na América e sobre o comércio organizado pelas nações européias, teve um espaço importantíssimo nos clássicos históricos da jurisprudência, economia política e da filosofia moral. O princípio de que todos os seres humanos tivessem direitos iguais e que o corpo humano fosse considerado res non commerciabilis, constituiu a base moral mais coerente dos movimentos abolicionistas. A própria discussão moral sobre o comércio das partes do corpo humano, foi antecipada pela visão  Kantiana em suas lições sobre a ética: “o corpo constitui a condição absoluta para a vida […] podemos usar a nossa liberdade somente através do nosso corpo[…]. O homem não é proprietário de si mesmo, porque isso seria contraditório. Na medida de fato em que ele é uma pessoa ele é também um sujeito. Se talvez fosse uma propriedade de si mesmo, ele seria uma coisa […], é impossível ser uma pessoa e uma coisa. Em base a isso, não  lhe é permitido vender um dente ou uma outra parte de si mesmo[14]. Os problemas históricos e morais que se apresentam, e que dizem respeito tanto ao passado como na atualidade, nos levam a formular alguns questionamentos: até que ponto o mercado do corpo humano pode ser  considerado não uma causa do crescimento, mas de estagnação e de declínio isto é, pode ele tornar-se um obstáculo ao desenvolvimento técnico-científico e social se comparado às vantagens oferecidas por outras soluções? Ou ainda, é justo por um impulso causado pelas exigências do momento, renunciar aos valores históricos-morais que perfazem os componentes fundamentais da nossa civilização?. Em resposta a estes questionamentospor algumas versantes utilizando-se da analogia com a escravidão; verifica-se que esta desenvolveu-se em um contexto primitivo, diferentementeao nosso processo civilizatório democrático, que inicia-se com o “habeas corpus”. O direito à autonomia do corpo deve valer-se então não somente contra o poder político[15], mas também contra o poder totalizante do mercado[16].Não sendo aceitável colocar as liberdades fundamentais em conflito com uma idéia distorcida de bem comum; de qualquer modo, se acolhêssemos liberdade e bem comum,ambas seriam sacrificadas, acarretando graves consequências morais e práticas agregando um pesadíssimo fardo sobre o nosso futuro. Podemosacrescentar, que se aceitássemos os principais argumentos  em favor do mercado biotecnológico isto é, do desequilíbrio entre a oferta e a procura e os benefícios presumíveis dos vendedores[17], efetivamente uma variável do argumento profícuo pode ser feito em referência à possibilidade nos séculos passados de regular e “humanizar”o mercado humano, visando garantir melhores condições aos escravos; como poderia ser feito hoje para o mercado biotecnológico, através da busca pelo preço justo, ou de outras vantagens para aqueles que vendem partes de seus próprios corpos[18]. Em ambos os casos, se pode observar uma intenção humanitária, mas em sua essência, isto significa aceitar as transformações do corpo humano em uma mercadoria, ou em uma reserva de “peças de reposição”. Certamente, comparar a escravidão (que caracterizou-se como um comércio incontrolado do corpo humano em sua totalidade), ao mercado biotécnológico “das partes separadas do corpo” por muitas vezes consideradas como “peças de substituição”,invariavelmente têm aumentado, em vez de reduzir a repulsa que isso alvitra quase que expontaneamente. Todavia, a escravidão também teve os seus defensores, e foi justificada por motivações práticas e éticas. Interessante também,  é que ao se examinar as argumentações morais utilizadas a seu favor nos séculos passados, com o desígnio de se obervar a possibilidade de um confronto sob o prisma análogo,  nos deparamos com a atual discussão pró e contra o mercado biotecnológico. Quando os discursos sobre a  escravidão voltavam-se para humanizá-la, era acolhida quase em sua totalidade. Regulamentá-la, minimizá-la, eliminar os aspectos mais cruéis e desumanos poderia ser em certos casos, o primeiro passo em direção à sua abolição. Já o mercado biotecnológico, ao contrário, é felizmente limitado e a sua aceitação é amplamente rejeitada. A sua legalização, que se de qualquer modo advenha, poderá favorecer a sua generalização[19]. A principal preocupação moral no entanto, não é em direção a esta obscura perspectiva que é amplamente evitável, mas  parao fato de que o problema do mercado humano, seja na forma escravista, seja como mercado biotecnológico, está distante de distanciar-se da nossa realidade. 2.A fisiologia do Direitoe o mercado Os ordenamentos jurídicos normalmente consideram o corpo vivo ou morto e as suas partes como coisas não comerciáveis, res extra commercium, salvo para as partes ou produtos do corpo renováveis. Observando ainda, que a não comerciabilidade é algo distinto da indisponibilidade[20]. Em nenhum ordenamento democrático atual é possível individualizar uma total falta de fontes e normas aplicáveis à tutela da vida à integridade físicaao princípio de igualdade e da não discriminação, ou uma proteção mínima da autodeterminação pessoal nos setores nos quais não afetem interesses coletivos e de terceiros; estes são componentes presentes frequentemente em nível constitucional em todo ordenamento contemporâneo. Atualmente em termos gerais, pode-se notar que o direito que pretende ocupar-se das ciências da vida,encontra-se em uma posição de compreensível e natural dificuldade diante da propagação de um inédito mercado de direitos, onde os direitos econômicos tradicionais atribuídos à liberdade das transações, mesclam-se com os direitos fundamentais, que estranhos à lógica da troca, também procuram uma infinita possibilidade de expansão. Deste modo, compartilhamos com o entendimento de Rodotà ao discorrer sobre o“shoppingplanetário” dos direitos,  que é largamente praticado por sujeitos econômicos à procura de lugares para desenvolverem suas atividades com o máximo proveito e o mínimo controle. E a este antigo e conhecido fenômeno, acompanha-se agora, um crescente turismo dos direitos no qual recorre-se para conquistar direitos negados nos países de origem[21]. Sempre mais evidente de fato, desponta a diferente velocidade com  a qual derivam as inovações científicas e tecnológicas de um lado, e o aprofundamento cultural político e jurídico do outro;  tendo como o resultado, quase que inevitavelmente os tempos e os ritmos da ciência superando aqueles da reflexão ética e da elaboração político-normativa[22]. As ofertas do direito estão se modificando, e a sua extensão global questiona   Rodotà: “poderia colocar qualquer um na condição de escolher modalidade e lugares, para satisfazer os seus próprios interesses? Como se pode conciliar estas necessidades de individualizar os direitos, com uma universalidade proclamada? […].  Deste modo, deve  o legislador estar ciente do peso da deslegitimação que o investe,  quando o seu produto não é socialmente reconhecido. O legislador nacional, deve tomar ciência que existe um contexto global que consente à um número crescente de pessoas de gozarem de direitos que são negados nos seus próprios países de origem[23]. Não é raro,nos depararmos com aparatos normativos superados pelo estado das coisas, ou ainda, por algumas disciplinas legislativas que correm o sério risco de já nascerem ultrapassadas. Assim, se assiste a uma intensa produção normativa na qual a bioética faz parte conjuntamente com  a coordenação e o desenvolvimento de um pólo de aparatos tendencialmente autônomos, em razão da grande quantidade de transferência financeira tanto pública quanto privada, voltada especificamente ao novo mercado sobre a vida. Segundo Stefano Rodotà, ao questionar sobre as funções e os limites do direito, adverte se: “pode o direito –   a regra jurídica – invadir os mundos vitais apoderando-se da vida nua. Os usos do direito estão sempre mais multiplicados e multifacetados […]. Vivemos de certa forma, em uma sociedade saturada de direitos de regras jurídicas de diversas proveniências, impostas pelos poderes públicos ou por potências privadas com um implacável desvio de finalidade. A consciência social, nem sempre adequa-se a complexidade deste fenômeno, que revela assimetrias e descompassos fortíssimos, com um direito assente em vários setores, onde mais se advertem as necessidades. Apoiadas por ações diversas e mesmo contraditórias, o direito se constrói em um mundo próprio. E nesta autonomia jurídica, como em outros aspectos, a autonomia da política, ciência e tecnologia, oculta o perigo de um desejo incontrolável de poder[24]. É manifesto que na reflexão sobre os limites da intervenção do direito, a questão decisiva permeia aquela de quem define os limites entre o direito e o não direito, e dos critérios segundo os quais vem a se realizar. Questão que depende obviamente muito da escolha política; da relação que é estabelecida entre o sistema jurídico e os outros sistemas de regulamentação social.  Neste sentido,Rodotà expõe sua tese:[…] O imperialismo jurídico que emergiu das páginas de Jhering, eram quase sempre uma atitude históricamente temperada pelo fato e no momento em que eram escritas, preponderava uma convenção social que excluía do império o direito de muitas províncias, confiadas a toda sorte ao governo da religião, da ética, dos costumes e da natureza […]. A religião dominava a alma,  a ética apoderava-se dos comportamentos, o costume social, obrigava a natureza demarcar limites intransitáveis. Ditas regras, eram impostas para além de qualquer influência individual, não era possível modificá-la, e a sua transgressão tinha efeitos pesadíssimos de sanções jurídicas”[25]. Para o ilustre autor, a conquista dos territórios reservados à religião  ou ao imperativo ético, representa uma forma de liberalização das regras construtivas não modificáveis pela vontade humana enquanto expressão de divindade. Deste modo, é o próprio direito que deve ser colocado em discussão, que  conforme Rodotá, “não se pode sobrestar o confronto entre um modelo de direito fundado na religião, e em um poder laicizado, expressa num poder terreno. Mas também, o direito modernamente compreendido deve voltar-se mais intensamente à disciplinar os momentos da vida”[26]. O raciocínio  profundo e objetivo que determina uma nova reflexão na razão de ser, e sobre a função do direito que nos parece de certa forma determinada não tão somente voltada às novas sensibilidades sociais, como quanto à sub-posição do direito aos novos dados da realidade, construídos pela ciência e pela tecnologia, são os indicadores que alteram o sentido de apelo ao direito, e as forma da regulação jurídica[27]. Todavia, é carecterística própria do avanço e do desenvolvimento da ciência e em particular da biociência, que altera a gama jurídica e torna gravosa a escritura da ordem social por parte do Direito. Sendo a antropologia do gênero humano, que  abruptamente no giro de poucos anos coloca-se em discussão. Perdida a regra da natureza, a sociedade reflete-se no Direito e a este evoca garantias. Portanto, nesta inquietude de simplificação ao direito, se requer uma reação da reconstrução de uma ordem – quiçá turbada –  e não somente uma regulamentação. As fronteiras do direito, encontram-se sempre cada vez mais instáveis, não há uma certeza “entre direito e não direito” entre a exigência por uma norma ou a sua recusa, entre a necessidade de segurança social, e a instintiva reivindicação de identidade cultural e individual[28]. Por outro lado, deve ser considerada a função historicamente assegurada do direito que se exprime “quando a lei moral é incorporada direta ou indiretamente na dimensão jurídica, a norma jurídica torna-se o escudo, no sentido de que se oferece como o instrumento para sancionar uma violação. E, portanto, colocando-se entre a moral e a política”[29]. De certo modo, Weber[30] definiu o direito como uma técnica de governo, (um poder governamental como qualificou Foucault), que tende a ser institucionalizado, isto é, permanecer ao longo dos tempos por aqueles que exercem o poder em afirmá-lo. A norma jurídica é portanto, uma norma formal, enquanto consente tornar racionais e compor tendências e valores diferentes, atribuindo o sentido de legitimidade. Na concepçãoWebereriana, encontramos que o direito constitui-se em um sistema formal, onde as instituições que dão vida às normas, são antes de mais nada autônomas de outras instituições (como por exemplo as econômicas), enquanto que, as normas para serem como tais, devem constituírem-se como impessoais. A natureza das normas é portanto, àquela de generalidade, abstração e da sua coerência com o sistema jurídico abarcante. A racionalidade da norma, se funda em um escopo racional para além de todas as considerações de ordem éticas-valorativas[31].  Ainda segundo a concepção Weberiana, o direito parece não reconhecer a sua própria racionalidade, a exemplo disso, são aquelas que derivam da força de mercado, nas quais as consequências da norma jurídica não são capazes de determinar ou de prever. A forma abstrata da norma, pode ser conceitualmente considerada como prática governamental sobre os comportamentos e as interações entre sujeitos reconhecidos pelo direito. A relação entre, norma jurídica e formas de interação, torna-se instável quando submetidos a tensões, que por natureza, intensidade e velocidade com as quais se manifestam, modificam a forma de interação jurídica na qual por não poucos aspectos, se vê incapacitada em regulamentar com eficácia o progresso científico[32]. A este respeito, discorre Pizzoferato “o controle sobre o desenvolvimento das biotecnologias avançadas e de suas aplicações constituem um proeminente problema concernente à segurança da saúde pública, ao ambiente e a dignidade do ser humano”[33]. Obeserva-se, que as biotecnologias inovadoras estão determinando um desenvolvimento acelerado da cultura científica, que envolve o interresse industrial na aplicação em vários campos produtivos. E ainda, a celeridade da adequação das normas não são proporcionais a velocidade do desenvolvimento  da ciência e da engenharia genética, e por isso, não consegue resolver o conflito significativo entre a proteção dos livres mercados e a tutela da saúde pública e do ambiente[34]. De acordo com  Pizzoferrato, “criam-se assim, vazios normativos que devem ser superados através da utilização de regras bioéticas geralmente aceitos no sentimento social e moral coletivo”[35]. Neste sentido, as normas jurídicas devem ser construídas em torno a preceitos gerais que se referem à percepção social daquilo que é justo, e daquilo que é considerado censurável em um dado contexto histórico e ambiental de referência. A verificação da legalidade de determinadas práticas ou a utilização de certos produtos, permanece assim ancorados, há um juízo histórico de valores, que renova-se e atualiza-se, em relação ao progresso científico e à impressão que desta, se forma a opinião pública. Se assiste com efeito, como bem demonstrado nas teses de  Ferrarese e Rodotà, novas estratégias, práticas e modalidades de desterritorialização e desnacionalização, onde, alteram-se as antigas hirarquias sociais e econômicas, e as novas tipologias do direito estão portanto, variavelmente conectadas com dois aspectos típicos da globalização, ambos conexos com a evolução da técnica. Em primeiro lugar, a globalização impulsionada por uma capacidade técnica de compressão espacial e temporaral do mundo, que coloca em jogo as antigas linhas de divisão política; em segundo lugar, o fato de que a mesma técnica, também potencializou enormemente os sujeitos privados, principalmente as grandes empresas multinacionais, atentando ao  protagonismo absoluto dos Estados, que era típico do velho cenário[36]. O direito, é portanto, obrigado a ir além dos limites tradicionais, dando lugar à novas relações com novos limites, qualificando assim o Direito Supranacional que mantém uma relação com as fronteiras, mas que vai além daquelas tradicionais configurando um direito para além dos limites, como uma espécie de Direito Universal, que responda às necessidades, motivações, aspirações ou interesses que pertencem a cada ser humano. Considerações finais Muitas considerações poderiam ser feitas partindo desta sintética reconstrução, onde procurou-se percorrer o fio condutor que conecta a vida biológica a Economia ao Direito e a Política. Uma estrada repleta de tragédias e de progressos nos quais hoje, se agrega uma enorme capacidade tecnológica de “transformação” e  com uma grandiosa perspectiva de “produção” das partes do corpo. Tudo isso, alterando consideravelmente o tradicional cenário cultural acenado, tornando-se praticamente inutilizável a dicotomia clássica entre natureza e cultura. Sem sombras de dúvidas, abre-se uma nova fase de relação entre ciência e sociedade, que coloca em causa não somente a Ética mas, a Política o Direito e o Mercado. Tal desafio, nos força a repensar e remodelar  o conjunto de aparatos conceituais que dominaram os séculos passados. Muito embora, o Biodireito não seja o único terreno em que se confrontam instâncias de liberdade e de participação, certamente deve ser considerado como um dos ramos mais profícuos pois, envolve ao mesmo tempo a esfera individual e a coletiva em uma mesma arena,em buscados comandos de regulação,  na qual o desenvolvimento dos conhecimentos científicos e técnicos sempre apresentam novos questionamentos. A forma do direito, entendida como um comando que exprime um forte controle governamental para compreender-se em sua estrutura jurídica, traduz-se em uma solicitação existencial, que vem problematizada enfim nos fundamentos da linguagem das biociências, que se movem  nos limites do direito em direção à instâncias que agem e são eficazes sob um terreno distinto, um plano que se qualifica propriamente como não jurídico. Neste esforço para ir além de si mesmo, o direito se apresenta de certa forma aprisionado ou excessivamente dilatado, enquanto é ainda compelido a seguir os desenvolvimentos das linguagens e gramáticas inteiramente novas e ditadas pelos progressos das biociências. Os temas do Biodireito e suas conexões com o mercado, bem mais apresentado que outros ramos, demonstra a necessidade de uma participação nas escolhas públicas mais amplas daquelas que conhecemos até momento. Pois como assevera-se, a possibilidade de usar partes de nós mesmos como mercadoria, leva-nos a considerar um uso, que por muitas vezes não esteja mais representado por um ato altruístico, mas, em uma nova forma de exploração humana. Se por muitos elementos fundamentais,é verdade também que a vida não pode ser traduzida pela norma, por outro lado, a representação da vida na norma, permitiu construir a civilização das formas e proporções, dos modelos e limites dos juízos e das coisas, que ainda perseveram nas sombras. Em muitos aspectos, a norma possibilitou estender a vida. A vida, pode também ser considerada mutuamente o prolongamento das normas. O poder governamental tornou imprescindível a relação entre norma e vida, pois a vida sem os limites da norma assumiria significados grotescos. A vida necessita de normas para desenvolver-se. Masa grande problemática, diz respeito à adequação destas normas.
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A saúde humana: Uma análise interligada das ciências médicas e jurídicas
A presente pesquisa pretende observar e constatar a significativa relação existente entre as duas ciências: Medicina e Direito, primordialmente, em casos que o judiciário interfere a fim de fazer valer os direitos do paciente em razão de abusividades de contratos e falha médica, ou mesmo protegendo os médicos em face de pleitos dos pacientes frustrados com um determinado tratamento. Parte-se do pressuposto que no que tange cláusulas de plano de saúde e seguro saúde, muitas vezes verifica-se excessos por parte dos operadores destes institutos, limitando direitos dos pacientes, verificando-se abusividade que acarreta a nulidade. Ademais, tem-se visto o considerável aumento de ações judiciais pleiteando indenização em virtude de erro médico, seja com razão, baseando na culpa médica ou equivocadamente, fundamentando em uma frustração pessoal presente em uma obrigação de meio. O que se pergunta e analisa no presente trabalho são dos deveres médicos, bem como direitos dos pacientes e contratantes de planos de saúde, sendo informações de extrema importância e garantia para ambas as partes: paciente e médico. Assim, pretende-se, através de pesquisa bibliográfica e descritiva, conciliar a doutrina vigente com a análise jurisprudencial.
Biodireito
1-  Introdução Cada dia tem se tornado mais necessária interferência do Direito na seara da Medicina, seja em virtude de cláusulas abusivas presentes nos seguros e planos de saúde, seja no que tange ao significativo aumento de ações judiciais pleiteando ressarcimento sob alegação de erro médico. Entretanto, para melhor entendimento acerca dos graves problemas que norteiam a vida e integridade física, direitos fundamentais resguardados a qualquer ser humano, indispensável estabelecer as abusividades que poderão estar presentes em contratos de adesão de coberturas e convênios de plano de saúde, bem como definir a relação existente entre o médico e paciente, os deveres atribuídos ao primeiro, e os requisitos essenciais para responsabilização deste em suposto erro médico. Tais questões são de extrema importância, pois a frustração do paciente por não ter obtido o sucesso desejado em determinado tratamento, não obstante despendido todos os esforços médicos, não poderá recair sobre o profissional da área de saúde, já que é entendimento consolidado que, em regra, a obrigação do médico é de meio, na medida em que este se compromete a prestar o serviço com a diligência necessária, mas cada organismo reage de uma forma ao tratamento e a medicina é considerada uma ciência inexata, não se podendo garantir a cura do paciente em qualquer circunstância. Desse modo, através de pesquisas doutrinárias e a jurisprudenciais, pretende-se constatar problemas que norteiam a saúde, em virtude de cláusulas abusivas de planos de saúde ou até mesmo devido a erros médicos, ou seja, os vícios muitas vezes iniciam por obstáculos postos nos contratos de adesão e permeiam, ainda, nas negligencias, imprudências ou imperícias de médicos. Mas, não se pode perder de vista o excesso de ações judiciais considerando o médico um “garantidor da cura” em qualquer circunstancia, o que não se deve exigir de algo que foge ao controle humano. 2 –  da relação entre as ciências: medicina e direito Cada vez se tornam mais constantes ações judiciais pleiteando indenizações em virtude de erros médicos, bem como anulação de cláusulas abusivas dos contratos de planos de saúde, fazendo-se necessária uma maior regulamentação da área médica. A relação do Direito com a Medicina não é recente, mas ultimamente a ligação entre ambas aumentou. A Medicina tem como seu estudo a melhoria da saúde, prevenindo ou tratando determinada lesão, daí surge sua relação com o Direito, haja vista o cuidado com bens fundamentais protegidos pelo Estado, a exemplo, da vida e  integridade física. Em virtude da interferência de uma ciência na outra, surgiu-se a Bioética e, a partir da incorporação na ordem jurídica pátria, ganha o nome de Biodireito (JÚNIOR, 2011, p.2): “O Biodireio passou a ser o ramo do direito que trata da teoria, da legislação e da jurisprudência relativas às normas positivas reguladoras da conduta humana, em face dos avanços da Biologia, da Biotecnologia e da medicina que concedem tratamento ao homem não como ser individual mas, acima de tudo como espécie a ser preservada.” O surgimento do Biodireito acarretou sua divisão em algumas vertentes, devendo ser considerada como uma delas o Direito Médico, que regulamenta a atividade do médico, efetuando estudos de acordo com as consequências e danos que podem vir a acarretar aos pacientes (JÚNIOR, 2011, p. 3): “Em relação aos profissionais da Medicina, estão estes mais expostos que outros a tais fatores, motivo pelo qual a Sociedade, destes profissionais, requer maior aperfeiçoamento, estudos, seminários, congressos de forma contínua e permanente. A sociedade não tem admitido nenhum tipo de falha médica”. Dessa forma, diante de todo o exposto, cada vez torna-se mais necessário um estudo interligado entre Medicina e Direito, a fim de regulamentar direitos fundamentais do ser humano. 2 – Seguro saúde, os planos de assistência e os problemas advindos destes Primeiramente, cumpre ressaltar que se entende por seguro o contrato firmado entre as partes, em que uma delas se compromete, mediante um prêmio, a garantir o pagamento de valores relacionados a fatos definidos como riscos. Entretanto, a cobertura prestada ao enfermo poderá não ser o seguro, mas sim a assistência, ambas são firmadas através de contrato, porém o que as distingue é que no primeiro caso há escolha acerca de quem prestará os serviços, enquanto que no segundo, o serviço a ser prestado se organiza através de convênios. Desse modo, tratando-se de assistência, o assistido só terá prestação de serviços das pessoas jurídicas que se conveniarem (WERNECK, Ana Carla, 2010 apud MARQUES, Claudia Lima, 1996, p. 71-87):   “Três valores são cada vez mais raros e, por isso, valiosos no mundo atual: segurança, previsibilidade e proteção contra riscos futuros. Estes três valores são oferecidos no mercado através dos planos e seguros privados de saúde, os quais possibilitam  transferência legal de riscos futuros envolvendo a saúde do consumidor e de seus dependentes a serem suportados por empresas de assistência médica, cooperativas ou seguradoras, prometendo a seu turno segurança e previsibilidade, face ao pagamento constante e reiterado das mensalidades ou prêmios.” Assim, as empresas públicas titulares dos planos de saúde têm o dever de cumprir as coberturas, ou seja, o pactuado na contratação, pois o descumprimento poderá acarretar ações processuais ou mesmo seu desligamento pela ANS (Agência Nacional de Saúde). Coadunando com esse entendimento, vale destacar o artigo 26 da Lei 9656/98, “in verbis”: “Art. 26.  Os administradores e membros dos conselhos administrativos, deliberativos, consultivos, fiscais e assemelhados das operadoras de que trata esta Lei respondem solidariamente pelos prejuízos causados a terceiros, inclusive aos acionistas, cotistas, cooperados e consumidores de planos privados de assistência à saúde, conforme o caso, em conseqüência do descumprimento de leis, normas e instruções referentes às operações previstas na legislação e, em especial, pela falta de constituição e cobertura das garantias obrigatórias.”   Ademais, cumpre ressaltar que não somente o descumprimento de cláusulas contratuais levam as sanções às empresas públicas, mas até mesmo o mau atendimento, obstáculos colocados, prejudicando direitos do contratante, podem originar uma responsabilização (RIZARDO, 2008, p.629): “A deficiência dos serviços custeados pelo plano acarreta a responsabilidade dos patrocinadores ou titulares, juntamente com os que prestam serviços ligados à saúde desde que o associado a escolher os profissionais, os hospitais, os ambulatórios, e laboratórios que estão relacionados na lista da operadora, e que são os indicados ou credenciados para a realização dos serviços ligados à saúde. O mau atendimento, as dificuldades colocadas, a exigências descabidas e outros percalços inadmissíveis acarretam a responsabilidade da titular do plano, em conjunto com o hospital ou instituição que oferece os serviços.” Ainda nessa linha de raciocínio, defende o supracitado jurista (RIZARDO, 2008, p. 630):      “Também incide a responsabilidade nos costumeiros óbices ou dificuldades que os hospitais ou médicos colocam no atendimento, como falta de leitos, inexistência de aparelhamentos apropriados, ausência de médicos especialistas na doença.” Apesar da penalidades, atualmente cresce o número de ações judiciais, sob a alegação de descumprimento do contrato de planos e seguros de saúde, sendo que situações abusivas que merecem destaques seriam, dentre outras, a imposição de cláusula determinando antecedência para pleito de internamento ou consulta, consolidando-se abuso com fulcro no artigo 51, inciso I do Código de Defesa do Consumidor, “in verbis”: “Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I – impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis. (…)” Outras situações que devem ser consideradas são alegações dos operadores de inexistência de leitos ou profissionais da área, bem como cláusulas limitando internações, consolidando-se mais casos abusivos, na medida em que, respectivamente, com respaldo no artigo 33 e 10 da Lei 9656/98 alguns direitos são assegurados ao contratante, é o que se verifica, “in verbis”: “Art. 33. Havendo indisponibilidade de leito hospitalar nos estabelecimentos próprios ou credenciados pelo plano, é garantido ao consumidor o acesso à acomodação, em nível superior, sem ônus adicional.” “Art. 10.  É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto: I – tratamento clínico ou cirúrgico experimental;      II – procedimentos clínicos ou cirúrgicos para fins estéticos, bem como órteses e próteses para o mesmo fim; III – inseminação artificial; (…)” Finalizando alguns exemplos de cláusulas, vale destacar que as operadoras de plano de saúde não estão obrigadas a prestar serviços em caso de inadimplência do usuário, entretanto, tendo em vista tratar-se de um serviço que protege direitos fundamentais, alguns procedimentos deverão ser seguidos antes de ocorrer a rescisão ou suspensão do plano. Ademais, nota-se que as operadoras de planos privados de assistência à saúde são responsáveis para escolher os hospitais, laboratórios ou clínicas conveniadas ao plano, bem com quem serão os profissionais credenciados. Desse modo, estão submetidas à responsabilidade objetiva solidária, com fulcro no Código de Defesa do Consumidor, por danos ocasionados ao contratante do plano, na medida em que este se baseia na listagem de conveniados efetuadas pelo operador do plano para posteriormente se sujeitar ao tratamento. Corroborando com esse entendimento, importante destacar o acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais julgado em 15/02/2012 pela 16ª Câmara Cível: “EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. PLANO DE SAÚDE. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. APLICABILIDADE. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. DANOS MORAIS E MATERIAIS. OCORRÊNCIA. 1. Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor às relações estabelecidas com as administradoras de planos de saúde. 2. Tratando-se de responsabilidade objetiva, há dever de indenizar quando da prática de uma conduta ilícita decorre dano, não sendo necessário se provar a ocorrência do requisito subjetivo, qual seja, da culpa ou do dolo. APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0105.10.004422-8/001 – COMARCA DE GOVERNADOR VALADARES – APELANTE(S): UNIMED ESTADO SÃO PAULO FED ESTADUAL COOP MÉDICAS – LITISCONSORTE: ASSIBGE SIND NAC TRABALHADORES FUN PÚBLICAS FEDERAIS GEOGRAGAFIA ESTRA – APELADO(A)(S): MELISSA MEIRA DE VASCONCELLOS”. (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Acesso em 28 de Agosto de 2014). No que tange aos seguros de vida, vale destacar a abusividade quando as apólices contém cláusulas permitindo rescisão unilateral do contrato de seguro ou mesmo retira sua eficácia (MARQUES, 1998, p. 534), sendo que “As clausulas que possibilitem a resolução unilateral por inadimplemento do devedor, no caso dos seguros-saúde, trazem também um novo potencial abusivo. “ Portanto, diante de todo o exposto, patente está a necessidade, muitas vezes, de interferência do poder judiciário para fazer valer os direitos de terceiros frente às cláusulas abusivas dos planos de saúde, que diversas vezes refletem em problemas na saúde e integridade física, direitos fundamentais do ser humano. 3 – Do erro médico Primeiramente cumpre salientar que para um médico ser responsabilizado por suas condutas, indispensável a comprovação de culpa deste, na sua modalidade imprudência, negligência ou imperícia, acarretando lesão ao paciente. É o que se verifica (GOMES, 1999, p.25): “O erro médico pode se verificar por três vias principais. A primeira delas é o caminho da imperícia decorrente da "falta de observação das normas técnicas", "por despreparo prático" ou "insuficiência de conhecimento" como aponta o autor Genival Veloso de França. É mais freqüente na iniciativa privada por motivação mercantilista. O segundo caminho é o da imprudência e daí nasce o erro quando o médico por ação ou omissão assume procedimentos de risco para o paciente sem respaldo científico ou, sobretudo, sem esclarecimentos à parte interessada. O terceiro caminho é o da negligência, a forma mais freqüente de erro médico no serviço público, quando o profissional negligencia, trata com descaso ou pouco interesse os deveres e compromissos éticos com o paciente e até com a instituição. O erro médico pode também se realizar por vias esconsas quando decorre do resultado adverso da ação médica, do conjunto de ações coletivas de planejamento para prevenção ou combate às doenças.” Para melhor esclarecimento acerca das possíveis falhas na atuação médica, indispensável, primeiramente, destacar alguns dos principais deveres do médico, dentre eles, a obrigação de informar ao paciente acerca de todos os riscos de qualquer procedimento ou medicamento, bem como consequências de um tratamento. Deve ainda buscar atender o paciente da melhor forma possível, evitando abusos. Cumpre ressaltar que o médico poderá atuar em três setores diversos, quais sejam, o de pronto atendimento, o de internamento e o de atendimento ambulatorial. Quando se fala em pronto atendimento, consideram-se os primeiros contatos do paciente com o médico, no qual esse deverá tomar as providencias cabíveis para tratamento do doente, até mesmo encaminhando-o a outro setor, conforme se observa (JÚNIOR, 2011, p. 274): “O atendimento de urgência e emergência constitui-se em um importante componente da assistência à saúde e é fonte constante de conflitos envolvendo os médicos do atendimento pré-hospitalar e o médico de hospital, pondo em risco a vida e integridade do paciente socorrido e, pior, da coletividade, face à demora/impedimento do serviço ocasionado pelo médico/instituição receptora.” No segundo caso, internamento, ocorre em situação mais grave, em que exige uma maior cautela e atenção médica, bem como poderão ser realizadas cirurgias. Já o atendimento ambulatorial, é responsável por consultas de rotina. Dessa forma, nesses três setores, patente está a necessidade de atuação do médico, atendendo ao paciente da melhor forma possível, buscando solucionar o caso posto sob sua análise, destacando-se que a relação existente entre o médico e o paciente é contratual, devendo haver aplicação do artigo do 389 do Código Civil, “in verbis”: “Art. 389 – Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.” Assim, considerando os deveres que são impostos ao médico, alguns doutrinadores consideram que a obrigação seria de meio, enquanto para outros seria obrigação de fim. Sendo assim, conforme entendimento majoritário, defendido por Maria Helena Diniz, a obrigação seria, em regra de meio, na medida em que o profissional busca trazer a melhora do doente, mas não poderá garantir sua cura (DINIZ, 2003, p.271): “A responsabilidade do médico é contratual, por haver entre o médico e seu cliente um contrato, que se apresenta como uma obrigação de meio, pôr não comportar o dever de curar o paciente, mas de prestar-lhe cuidados conscienciosos e atentos conforme os progressos da medicina. Todavia, há casos em que se supõe a obrigação de resultado, com sentido de cláusula de incolumidade, nas cirurgias estéticas e nos contratos de acidentes.” Ainda nessa linha de raciocínio (JUNIOR, 2011, p.139): “Se o risco foi assumido pelo contratante (paciente), cumpre-lhe provar a culpa do contratado (médico) pelo dano. Esta é a obrigação de meios. Por outro lado, se o risco é assumido pelo contratado (médico), cumpre a este, para eximir-se de responsabilidade, provar que o inadimplemento da obrigação assumida decorreu de fato que escapou de seu âmbito possível de atuação, quer seja por culpa do contratante, quer seja por caso fortuito ou força maior. Esta é a obrigação de resultado.” Desse modo, quando se fala em obrigação de meio, entende-se que seria o caso em que é dispendido as melhores técnicas e esforços a fim de se obter o resultado pretendido, mas não necessariamente esse poderá ser atingido. É o caso, por exemplo, de terceiro que apresenta determinada doença, não obstante o médico utilize todo o seu saber, poderá vir o paciente a não ver-se curado do mal que lhe acomete. É o que se verifica (VENOSA, 2003, p. 77/78): “(…) obrigações de meio, deve ser aferido se o devedor empregou boa diligência no cumprimento da obrigação. (…) Nas obrigações de meio, por outro lado, o descumprimento deve ser examinado na conduta do devedor, de modo que a culpa não pode ser presumida, incumbindo ao credor prová-lo cabalmente.” Apesar de o médico não poder ser garantidor de uma cura do paciente em todas as situações, aquele não poderá fundamentar na alegação de ausência de equipamentos para ilidir sua responsabilidade, ou seja, havendo qualquer insuficiência de recursos, em regra a responsabilidade é do hospital ou clínica colocar a disposição do médico todos os recursos para que efetue o seu trabalho. Entretanto, é também ônus do médico constatar os aparelhos e equipes postos à sua disposição, a fim de verificar a possibilidade de tratamento naquele local, efetuando as diligências necessárias, de acordo com o caso posto a sua análise. Corroborando com esse entendimento (RAPOSO, p. 21): “Em suma, atendendo a àlea presente em toda a atividade médica e aos riscos imensos com que lida, a ausência de resultado pretendido nem sempre é sinônimo de falta médica. Em contrapartida, não afastam necessariamente a falta médica a escassez de recursos materiais e humanos. Ao médico cumpre confirmar que dispõe de todos os recursos necessários para a intervenção que se propõe fazer, tomar as providencias adequadas para conseguir os meios em falta e, quando de todo não os obtenha, deverá abster-se de atuar e reencaminhar o paciente para outro centro de tratamento melhor apetrechado, a não ser que a urgência da situação não o permita.” Já o caso de obrigação de resultado, sendo encontrada na área médica em menor escala, apenas em casos de cirurgias plásticas estéticas e, para alguns doutrinadores, em casos de anestesia, o médico deverá cumprir a obrigação atendendo ao pretendido pelo paciente (STOCO, 1995, p. 288-289): “(…) na obrigação de resultado o devedor, ao contrário, obriga-se a chegar a determinado fim sem o qual não terá cumprido sua obrigação. Ou consegue o resultado avençado ou deverá arcar com as conseqüências. É o que se dá, pôr exemplo, no contrato de empreitada, transporte e no de cirurgia estritamente estética ou cosmetológica (…) o profissional na área de cirurgia plástica, nos dias atuais, promete um determinado resultado     (aliás, essa é a sua atividade-fim), prevendo, inclusive, com detalhes, esse novo resultado estético procurado. Alguns utilizam-se mesmo de programas de computador que projetam a nova imagem ( nariz, boca, olhos, seios, nádegas, etc.), através de montagem, escolhida na tela do computador ou na impressora, para que o cliente decida. Estabelece-se, sem duvida, entre médico e paciente a relação contratual de resultado que deve ser honrada.” Coadunando com esse entendimento, cabe citar o julgado do Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais, da 14ª  Câmara Cível, em 17/01/2013: “EMENTA: INDENIZAÇÃO – DANOS MORAIS – ERRO MÉDICO – NÃO COMPROVAÇÃO – DANOS MORAIS INDEVIDOS – SENTENÇA MANTIDA.                                                   – Excetuando-se as cirurgias estéticas, a responsabilidade do médico caracteriza-se como de meio, obrigando-se a utilizar corretamente as técnicas e métodos indicados para o tratamento ou cirurgia, e não pelo resultado final. A obrigação de reparar por erro médico exige a comprovação de ter ocorrido imperícia, negligência ou imprudência, além do nexo de causalidade entre a conduta médica e as conseqüências lesivas à saúde do paciente.”                  APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0879.08.000089-3/001 – COMARCA DE CARMÓPOLIS DE MINAS – APELANTE(S): M.F.R.S. REPRESENTADO(A)(S) P/ PAI(S) M.R.S. – APELADO(A)(S): AFRÂNIO BAETA VIANA (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Acesso em 22 de Setembro de 2014). Sendo assim, mostra-se clara a presença, de um lado do médico, cumprindo uma obrigação a ele imposta, ou seja, prestando um serviço ao paciente, que se encontra no outro lado da relação jurídica, caracterizando-se, assim, como um caso de aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, com as devidas especificidades que serão analisadas adiante. 3.1-  Da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor na relação entre médico e paciente Alguns breves comentários deverão ser feitos acerca da possibilidade de utilizar as regras do direito do consumidor na relação entre médico e paciente, na medida em que é incontestável a prestação de um serviço. Porém, há algumas peculiaridades, dentre elas se destaca a interferência do paciente no tratamento. Ademais, a Medicina é considerada uma ciência não exata, que ainda encontra barreiras na seara do conhecimento, haja vista a impossibilidade de se prever todas as situações possíveis, bem como as diferentes formas que o corpo humano poderá reagir a um tratamento. Assim, prescrevem o artigo 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor – Lei 8078 de 1990, “in verbis”: “Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.  § 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. § 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.” Desse modo, resta evidente a possibilidade de adequação do paciente como consumidor, sendo ele o destinatário final do tratamento a que foi submetido e a adequação do médico como fornecedor, pois coloca a disposição do consumidor a prestação de um serviço, que seria o ato médico. Coadunando com esse pensamento (BERNARDI, 2000, p.10): “Analisando-se os aspectos relativos a esses três elementos: consumidor, fornecedor e serviço, podemos chegar às seguintes conclusões: – o médico, ao colocar o seu serviço à disposição do mercado consumidor, in casu, os potenciais pacientes, estaria ele jungido ao conceito de fornecedor, nos termos do art. 3º do CDC. – Da mesma forma, o paciente ao utilizar este serviço em benefício próprio ou de algum familiar ou amigo (de outrem) estaria classificado como consumidor. – E finalmente, o trabalho ofertado ao mercado consumidor (potenciais pacientes), mediante remuneração, encaixa-se no conceito de serviço disposto pelo CDC. Portanto o atendimento médico é um serviço à luz do CDC. Convém mencionar um ponto interessante com relação à remuneração. Esta, a nosso ver, é considerada condição “sine qua non” para que se configure a relação de consumo, uma vez que o trabalho gratuito descaracteriza tal relação e subtrai os elementos caracterizadores da condição fornecedor do serviço.” Uma das principais vantagens desse novo entendimento é a possibilidade de inversão do ônus da prova em favor do paciente quando a comprovação da falha médica tornar-se demasiadamente complexa e de difícil acesso e comprovação. Tal benefício atribuído ao paciente possui respaldo no artigo 6º, VIII do Código de Defesa do Consumidor – Lei 8078 de 1990, “in verbis”: “Art. 6º São direitos básicos do consumidor:(…) VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências.” Portanto, à luz de todo o exposto, o profissional médico deve-se resguardar de possíveis ações judicias, juntando todas as provas postas à sua disposição para ilidir sua responsabilidade quando for imputado a ele o ônus de ressarcir a vítima em virtude de certa lesão suscitada, haja vista que cada vez torna-se mais frequente o ingresso de ações judiciais alegando a responsabilidade civil do médico. 4.Da responsabilidade civil 4.1  Conceito de Responsabilidade Civil Baseando-se no princípio da “proibição de ofender”, a expressão responsabilidade significa garantir, assegurar, assumir a obrigação que se comprometeu ou ato que cometeu (LOPES, 1996, p. 145): “A violação de um direito gera a responsabilidade em relação ao que a perpetrou. Todo ato executado ou omitido em desobediência a uma norma jurídica, contendo um preceito de proibição ou de ordem, representa uma injúria privada ou uma injúria pública, conforme a natureza dos interesses afetados, se individuais ou coletivos.” Desse modo, se há violação de um dever jurídico, ensejador de danos a terceiros, a obrigação de reparar os prejuízos é medida que se impõe, caso estejam preenchidos, em regra, os requisitos, quais sejam, ação ou omissão, dano, nexo causal e culpa. Entende-se, assim, que a responsabilidade seria a consequência que surge para quem agiu ou se omitiu e, dessa situação, veio a acarretar dano a alguém. Segundo Maria Helena Diniz, responsabilidade Civil seria (DINIZ, 2003, p.34): “A aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar – dano moral ou patrimonial causado a terceiro em razão de ato do próprio imputado, de pessoa por quem ele guarda (responsabilidade subjetiva) ou ainda, de simples imposição legal (responsabilidade objetiva).” Cumpre ressaltar que uma das principais classificações das modalidades de responsabilidade civil seria a responsabilidade civil subjetiva e a objetiva. Esta ultima se caracteriza por ser aquela em que o elemento culpa é dispensado, ou seja, a simples comprovação de uma ação e omissão causadora de um dano, havendo nexo de causalidade, já é suficiente para ressarcimento da vítima (DINIZ, 2004, p. 43): “A responsabilidade objetiva funda-se num princípio de eqüidade, existente desde o Direito Romano: aquele que lucra com a situação deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes (ubi emolumentm, ibi onus; ubi commoda, ibi incommoda).” Entretanto, tratando-se se responsabilidade subjetiva, o elemento subjetivo da conduta (dolo ou culpa) é indispensável. O Código Civil Brasileiro (BRASIL, 2002) dispõe sobre a responsabilidade civil em seus artigos 186, 187 e 927, consagrando a responsabilidade civil subjetiva como regra e a objetiva como exceção nos casos previstos em lei ou em atividades que por si só causem riscos a terceiros. É o que se verifica, “in verbis”: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.” Importante elemento da responsabilidade civil, merecedor de breves comentários, seria o dano, na medida em que sem esse não há que se falar em ressarcimento da vítima, sendo indispensável uma lesão a um interesse jurídico tutelado, podendo ser patrimonial ou não, e decorrente da ação ou omissão humana. Dessa forma, se houve lesão, nasce para a vítima o direito de ser ressarcida dos prejuízos, podendo esse dano ser de várias categorias, tais como, moral, estético, material, ou outro. Quando se fala em conduta humana deve-se considerar a necessidade de conhecimento e voluntariedade de agir de tal maneira (GAGLIANO STOLZE, 2011, p. 78) “(…) a ação (ou omissão) humana voluntária é pressuposto necessário para a configuração da responsabilidade civil. Trata-se, em outras palavras, da conduta humana, positiva ou negativa, guiada pela vontade do agente”. No que tange o nexo causal, que deve haver entre o ato e o dano sofrido pela lesado, três correntes surgem para defini-lo: teoria da equivalência das condições, na qual todos os fatores que causam resultado se igualam; Teoria da Causalidade Adequada, em que, para ser causa, a situação anteriormente ocorrida deverá ser necessária e adequada para o resultado e, a terceira e última, teoria da causalidade direta ou imediata, que entende que para o que ocorreu antes ser importante, a lesão tem que decorrer imediatamente e diretamente daquela. Seguindo o posicionamento majoritário, a teoria a ser aplicada seria da Causalidade Adequada (TARTUCE, 2008, p. 184): “Segundo o entendimento majoritário, o CC/02 adotou a teoria da causalidade adequada, conforme a doutrina de Carlos Roberto Gonçalves, que somente considera como causadora do dano as condições por si aptas a produzi-lo. Ocorrendo certo dano, temos de concluir que o fato que o originou era capaz de lhe dar causa. se ocorreu o dano por causa de uma circunstância acidental, diz-se que a causa não era adequada.” Portanto, analisados os principais pontos acerca da responsabilidade civil, imprescindível faz-se uma breve análise de seu histórico a fim de melhor compreensão do tema abordado no presente estudo. 4.2  A evolução da Responsabilidade Civil Vale destacar, ainda, que é inerente ao ser humano a ideia de reagir a qualquer ofensa. Entretanto, antigamente, a noção de reação era entendida como vingança, sem limites e regras, ou seja, se ocorresse uma lesão a resposta era imediatamente efetuada. É o que se verifica (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2003, p. 11 apud SANTOS, Pablo de Paula Saul) “A origem do instituto da responsabilidade civil parte do Direito Romano, e esta calcada na concepção de vingança pessoal.” Desse modo, há anos pregava-se o ideal “dente por dente, olho por olho”, conhecida como Lei do Talião. Entretanto, devido aos diversos problemas desse entendimento, capaz de trazer castigos desleais, com o passar do tempo a responsabilização penal foi afastada da civil e, ainda, posteriormente, fora determinado que a entidade responsável para aplicação de penalidade seria o Estado. O Brasil, até 1916, quando surgiu o primeiro Código Civil, seguia os parâmetros traçados por Portugal. No Código Civil de 1916 adotou a teoria subjetiva da responsabilidade civil, havendo necessidade de se comprovar a culpa do agente ou presumindo esta em alguns casos. Já o atual Código Civil prevê, ainda, reparação do dano causado por ato ilícito (artigos 186 e 187), havendo casos de ressarcimento independentemente de culpa, nas situações expressas em lei, ou quando a atividade desenvolvida, por sua natureza, causar risco para os direitos de terceiros. Em suma, analisando a evolução histórica da responsabilidade civil, nota-se o imperativo de reparar um mal que foi causado a alguém. Primeiramente, as responsabilidades civil e criminal se confundiam, havendo a vingança privada, e posteriormente chegou-se ao conceito subjetivo de reparação, convivendo com a tendência objetiva em alguns casos. Assim, o Código de Hamurabi (Século XVII a. C.) pregava a máxima atenção e perícia do médico no exercício da profissão, sob pena de amputação da mão se a imperícia ocorresse com homens livres e, era devido ressarcimento dos danos em caso de animal ou escravo. É o que se observa abaixo, “in verbis”: “Artigo 218: O médico que mata alguém livre, no tratamento, ou que cega um cidadão livre terá suas mãos cortadas; se morre o escravo, paga seu preço; se ficar cego, a metade do preço.” Já na Mesopotâmia entendia-se que se uma cirurgia ocorresse a perda de um olho, o médico teria as mãos cortadas e, se o paciente nobre falecesse, o médico também perderia a vida. Desse modo, entende-se que a responsabilização do médico em caso de condutas culposas ou dolosas não é recente, vindo aprimorando e adequando-se à realidade social no decorrer dos anos. 4.3Da responsabilidade civil atual em caso de erro médico Conforme analisado anteriormente, a relação existente entre o médico e o paciente é de contrato, podendo haver aplicação do Código de Defesa do Consumidor, na medida em que o médico presta um serviço ao paciente, devendo respeitar as normas e cumprir seu dever de prevenir e/ou curar determinada mal, na medida do possível, não obstante as peculiaridades de lidar com a vida humana fazer com que a aplicabilidade das regras do direito do consumidor seja vista com a devida cautela. Partindo-se da regra que a obrigação atribuída ao médico é de meio, algumas considerações deverão ser feitas, a começar pelas situações em que o médico poderá ser responsabilizado civilmente. Primeiramente, cumpre ressaltar que um dano por ato médico pode ser em decorrência de uma conduta comissiva ou omissiva, que ocorra de forma voluntária e consciente, estando ausente qualquer vício ou coação (RAPOSO, p. 25). “A responsabilidade médica por ação ocorre sempre que o médico atue, em termos de comportamento ativo, em desconformidade com as leges artis e, nesta medida, acabe por causar um prejuízo (um dano, no caso da responsabilidade civil; um dano ou perigo de dano, no caso de responsabilidade criminal) à vida, à saúde, à integridade física ou moral do paciente.                                                    Em contrapartida, existe a responsabilidade por omissão quando o médico se recusa a prestar os cuidados devidos, ou não assegura a sua continuidade em condições que são prejudiciais ao paciente, ou mesmo quando não se socorre do auxílio de outro profissional mais experiente.” Ainda nesse sentido (JÚNIOR, 2011, p.58): “Não é todo mundo que pode ser responsabilizado por omissão, mas somente aqueles que tinham o inafastável dever de interferir, como, por exemplo, o policial de defender com a própria vida a sociedade, ou o médico que, desde que sem risco pessoal, tem o dever de atuar para evitar ou minimizar algum perigo à saúde do paciente, ainda que nunca o tenha visto antes.” Assim, para que haja responsabilização de um médico alguns requisitos deverão ser preenchidos (conduta comissiva ou omissiva, nexo causal, dano e dolo ou culpa). Busca-se, através da responsabilidade civil, fazer justiça, ressarcindo o lesado e punindo, de certa forma, aquele que causou o dano. Assim, o preenchimento dos requisitos acaba por consistir em uma garantia tanto para o paciente, que diante de um dano e demais elementos supracitados, vê-se ressarcido em razão do mal que lhe acomete, bem como serve de garantia para o médico que se protege em razão de possível frustração do paciente (JÚNIOR, 2011, p.57): “É cada vez mais frequente e perigoso para o médico que o paciente, carregado de emoções, o acuse de ter cometido um erro. Quando constata a frustração da intervenção recomendada e a subsistência de sua doença, comumente esquece o paciente do fato de que muitas enfermidades não respondem de forma uniforme e padronizada que se espera no tratamento indicado pela ciência médica.” Caso o médico descumpra qualquer dos deveres a ele impostos e, desse descumprimento, o paciente venha a sofrer danos, de natureza física, material e moral, devidamente demonstrado, na maioria das vezes, por prova pericial, a reparação é medida que se impõe. E, caso haja comprovação dos requisitos, a lei determina o adimplemento de uma indenização à vítima lesada ou aos seus familiares. Além disso, a possibilidade de reparação por dano moral e material encontra previsão no Artigo 5ª da Constituição Federal, é o que se observa “in verbis”: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:(…) V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;(…) X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.” Quando se fala em danos físicos, refere-se a um prejuízo da estrutural corporal do paciente, seja em razão de lesão em órgão, sentido ou função. Enquanto que os danos materiais ou patrimoniais originam, na maioria das vezes, das lesões físicas, em virtude de gastos com medicamentos, internações, consultas, dentre outros, englobando os danos emergentes e lucros cessantes. No que tange aos danos morais, são aqueles que não possuem cunho material, mas afetam a moral do paciente, podendo englobar os danos estéticos, que se caracterizam pelas lesões permanentes à beleza física do paciente, sendo (JUNIOR, 2011, p.173) “O sofrimento humano é insusceptível de ser avaliado por terceiros. Sobretudo, se a avaliação deve ser feita em dinheiro. Tal fato impede a existência de termos e critérios quantitativamente exatos.” Portanto, resta evidente que a responsabilidade civil do médico é respaldada no elemento subjetivo, dizendo-se “subjetiva”, havendo aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, com as devidas cautelas, na medida em que a obrigação nesses casos é, em regra de meio, comprometendo-se o médico em agir com a diligência necessária, mas não garantindo a cura, pois se trata a Medicina de uma ciência inexata, conforme se verifica no artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, “in verbis”: “Art. 14 – O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.(…) §4º: A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.” Entretanto, há casos de exclusão da responsabilidade médica, podendo destacar o previsto no artigo 393 do Código Civil, como se observa “in verbis”: “Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.” Além disso, deverá ser constatado casos de culpa exclusiva do paciente, bem como cláusula de não indenizar ou culpa de terceiros.  A culpa exclusiva do paciente é verificada quando o médico em nada contribuiu para o evento danoso, sendo o prejuízo provocado pelo próprio paciente. Ademais, poderá ocorrer da culpa ser concorrente entre o paciente e o médico, é o que se observa (RODRIGUES, 2002, p. 166): “Casos em que existe culpa da vítima, paralelamente à culpa concorrente do agente causador do dano. Nessas hipóteses o evento danoso decorreu tanto do comportamento culposo daquela, quanto do comportamento culposo deste. Por conseguinte, se houver algo a indenizar, a indenização será repartida entre os dois responsáveis, na proporção que for justa.” Outra situação acontece quando há caso fortuito ou força maior, ou seja, um fato imprevisível, impossível de ser evitado, não só pelo médico, mas por qualquer pessoa que estivesse em seu lugar. Por força maior entende-se como uma situação que se origina exteriormente à relação entre o médico e seu paciente, e que não obstante a sua constatação é inevitável, já o caso fortuito é inerente à ação humana, e não poderá ser esperado e nem evitado. Quanto ao fato de terceiro, é aquela ocasião em que a lesão é decorrente de ação ou omissão provocada por terceiro, alheio à relação médico-paciente (VENOSA, 2003, p. 48): “Temos que entender por terceiro, nessa premissa, alguém mais além da vítima e do causador do dano. Na relação negocial, é mais fácil a conceituação de terceiro, pois se trata de quem não participou do negocio jurídico.” Por fim, a cláusula de não indenização é feita de forma bilateral e prescreve que entre as partes não haverá responsabilidade civil no caso de descumprimento do contrato, não tendo eficácia no que tange a direitos indisponíveis, como, por exemplo a vida  (DINIZ, 2003, p. 108): “Para ter validade, será imprescindível a bilateralidade do consentimento, de modo que será ineficaz declaração unilateral de vontade sem anuência da outra parte. A cláusula de não indenizar, isto é, a limitação convencional da responsabilidade não poderá eximir o dolo de estipulante e, além disso, ela só seria eficaz se correspondesse a uma vantagem paralela em benefício do outro contraente.” Dessa forma, crescente está sendo o número de ações judiciais aduzindo responsabilidade civil por erro médico, mas deverá ser considerado em cada caso concreto, o preenchimento dos requisitos para que haja ressarcimento, sendo de extrema importância que o médico mantenha o paciente informado dos procedimentos e riscos que esse está submetido a fim de ilidir possível responsabilidade, bem como deverá o paciente atentar-se para os casos de exclusão da obrigação de ressarcimento. 6-Conclusão O considerável aumento das demandas judiciais acerca do tema abordado na presente pesquisa leva ao entendimento de que cada vez torna-se mais necessária a maior informação, tanto por parte de médicos como de pacientes, sendo que esta relação, considerada de consumo, deve ser fundamentada de confiança, diálogo e esclarecimento, evitando possíveis equívocos. Tal questão é verificada até mesmo no Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1931/2009), em seu artigo 22, “Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.” Ademais, o direito a informação adequada e clara também está prevista no Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 6º, III. Primeiramente, o paciente deverá ser informado dos riscos que permeiam o tratamento a que será submetido, ciente de que a Medicina, em regra (excetuando-se casos de anestesia e cirurgia plástica estética para corrente majoritária) acarreta ao médico uma obrigação de meio, sendo que o resultado obtido é alheio à sua vontade. Tais informações asseguram ao médico a possibilidade de ilidir uma possível ação de responsabilidade civil, que vem sendo atualmente proposta por pacientes de forma indiscriminada. Desse modo, a fim de verificar a responsabilidade civil ou não do médico em determinada circunstância deverá ser efetuada análise do caso concreto, pois ao paciente é permitido até mesmo a inversão do ônus da prova para provar a falha médica e os requisitos indispensáveis da responsabilidade civil, mas ao médico deverá ser resguardado o direito de defesa quando agiu com a diligencia devida. Ademais, outro ponto que merece consideração, em que também se verifica uma efetiva atuação do Direito na seara médica, seria devido ao excesso de contratos de adesão referentes a seguro saúde e, principalmente, plano de saúde, que inserem cláusulas abusivas com o intuito de limitar direitos reservados ao contratante- paciente. Portanto, inegável nos dias de hoje a intrínseca relação entre as ciências médicas e jurídicas, buscando assegurar direitos fundamentais de todos os seres humanos, destacando a dignidade da pessoa humana, integridade física e, até mesmo, vida. Ambas as ciências são criações humanas e deverão ser usados em favor destes.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-145/a-saude-humana-uma-analise-interligada-das-ciencias-medicas-e-juridicas/
A judicialização da Fosfoetanolamina
O presente artigo aborda a recente e polêmica decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, na Petição (PET) 5828, determinando o fornecimento da substância chamada fosfoetanolamina sintética, a chamada “pílula contra o câncer”, que contradiz o anterior posicionamento do STF na paradigmática STA 175, bem como boa parte da doutrina e jurisprudência sobre a judicialização da saúde, deferindo o uso compassivo de uma substância sem registro na ANVISA, fora de protocolo e em caráter experimental.
Biodireito
Abstract:ThisarticlediscussestherecentandcontroversialdecisionoftheMinisteroftheSupremeCourt, Edson Fachin in thePetition (PET) 5828, determiningtheprovisionofsubstancecalledsyntheticphosphoethanolamine, the "pillagainstcancer", whichcontradictstheprevious position ofthe STF onparadigmatic STA 175, andmuchofthedoctrineandjurisprudenceonthelegalizationofhealth, grantingthecompassionate use of a substancewithoutregistrationat ANVISA, out ofprotocolandon a trialbasis. Keywords:SyntheticPhosphoethanolamine. Legalizationof Health. Na Constituição Federal o direito à saúde é tratado como direito social fundamental (art. 6º), contando com uma normatização específica entre os artigos 196 e 200, cujo intuito é garantir o acesso universal, integral e igualitário aos serviços de saúde pública.A disciplina infraconstitucional desse direito social (Lei 8.080/90) reafirma a saúde como direito fundamental do ser humano, sendo as ações para a sua promoção um dos deveres mais cobrados das três esferas do Estado Brasileiro (art. 2º) que fazem parte do Sistema Único de Saúde. Se é certo que os avanços tecnológicos na área da medicina trazem todos os dias novidades para a promoção da cura das doenças, ou da melhoria da qualidade de vida dos enfermos, não é menos verdade que, em termos de saúde pública, a inclusão das novas tecnologias deve ser apreciada sob diversos prismas, incluindo a relação custo benefício desses avanços, de modo a harmonizar os princípios constitucionais do Sistema Único de Saúde (SUS): universalização do acesso com equidade, integralidade da atenção, unificação institucional do sistema, descentralização, regionalização, hierarquização da rede de serviços e participação da comunidade. Gilmar Ferreira Mendes[1] aponta clara identificação no texto Constitucional de um direito individual e de um direito coletivo de proteção à saúde, sendo na dimensão individual um direito público subjetivo assegurado à generalidade das pessoas, que conduz o indivíduo e o Estado a uma relação obrigacional consubstanciada em uma prestação positiva, um direito a prestações em sentido amplo, de forma que, tratar o dispositivo do art. 196 da Constituição da República como mera norma programática, seria negar-lhe eficácia, ou reduzi-lo a uma promessa inconsequente, como referido pelo Ministro Celso de Mello no AgR-RE n. 271.286/RS[2]. Todavia, apesar da consagração desse direito social como um direito subjetivo exigível do Estado, e do primado da integralidade da atenção, o próprio STF[3] já deixou patente que não há um direito absoluto a toda e qualquer tecnologia disponível “no mercado”, porque em um sistema de saúde pública, fulcrado na “medicina com base nas evidências”, é poder-dever do Estado utilizar apenas e tão-somente as tecnologias comprovadamente seguras, eficientes e com uma relação custo-efetividade que recomende a sua incorporação ao SUS, de forma a estar disponível em condições de igualdade para toda a população. Mesmo assim, a ânsia pela vida e pelo bem-estar, a esperança depositada em tudo que há de novidade, faz com que os cidadãos levem o direito à saúde a ser uma das questões mais debatidas no âmbito judicial atualmente.Basta ver a grande discussão do momento, que é a distribuição da Fosfoetanolamina Sintética, propalada como o “milagre” contra o câncer. A peregrinação de doentes terminais por essa substância levou o STF a admitir o seu uso excepcional e compassivo, contradizendo suas próprias e recentes afirmações, determinando a disponibilização da substância, apesar de a Fosfoetanolamina não possuir sequer pedido de registro na ANVSA, ou ter sido testada validamente em humanos. A fosfoetanolamina sintética é uma substância que foi estudada de forma independente pelo Prof. Dr. Gilberto OrivaldoChierice, outrora ligado ao Grupo de Química Analítica e Tecnologia de Polímeros da Universidade de São Paulo (USP), e querecentemente ficou conhecida como a “pílula do câncer”. Os estudos independentes do Prof. Chierice envolveram a metodologia de síntese da substância que acabou por ser utilizada para fins medicamentosos, por conta e risco do docente em questão. Como alguns pacientes relataram melhora, a notícia se espalhou como um rastilho de pólvora, gerando uma romaria de doentes e familiares em busca de esperança na nova substância. Apesar de a Universidade de São Paulo não possuir acesso aos elementos técnico-científicos necessários para a produção da substância, cujo conhecimento é restrito ao docente aposentado e à sua equipe, além de protegido por patentes (PI 0800463-3 e PI 0800460-9), ocorreu que a USP passou a ser sistematicamente demandada, inclusive judicialmente, para o fornecimento da fosfoetanolamina a doentes dos mais diversos tipos de câncer, como se configurasse um tratamento revolucionário e comprovado para a cura da doença.[4] A Universidade foi obrigada a se manter produzindo o medicamento, mesmo sem condições para isso, de forma que passou a tentar cassar na Justiça de São Paulo as decisões que a obrigavam ao fornecimento. A USP argumenta que não desenvolveu estudos sobre reação dessa substância em seres vivos, muito menos estudos clínicos controlados em humanos, de forma que a fosfoetanolamina sintética não pode ser sequer classificada como medicamento, tanto que não tem bula e a dosagem está sendo administrada conforme entendem os técnicos que produzem a substância. Provocada pela USP, a presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu as decisões de antecipação de tutela para o fornecimento da fosfoetanolamina sintética, com o que advogados e familiares de pacientes com câncer buscaram a reversão da decisão no STF. Em 6 de outubro de 2015, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), naPetição (PET) 5828concedeu medida liminar suspendendo decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) que impedia uma paciente de ter acesso à substância contra o câncer fornecida pela Universidade de São Paulo (Campus de São Carlos). A manifestação do STF incendiou a discussão sobre o assunto e a situação foi amplamente divulgada na mídia, levando o Ministério da Saúde a publicar na sexta-feira, dia 30 de outubro de 2015, a Portaria n.º 1.767 de 29 de outubro de 2015[5], instituindo um grupo de trabalho para apoiar os estudos clínicos necessários ao desenvolvimento clínico da fosfoetanolamina. Segundo o Ministro Fachin, o fundamento da suspensão da tutela guerreada seria apenas a falta de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) da substância requerida, e que, por o tema pender de análise sob o sistema de repercussão geral (RE 657.718-RG, Relator Ministro Marco Aurélio, Dje 12.03.2012 – tema 500), isto emprestaria plausibilidade à tese suscitada pela recorrente, recomendando a concessão da medida cautelar, para suspender decisão proferida pelo Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.[6] Apesar de o Ministro referir que o caso não deveria ser utilizado como precedente, por se tratar de uma situação excepcional, proliferam milhares de ações na Justiça em busca da fosfoetanolamina. O deferimento de uma substância experimental e sem registro na ANVISA é oposto ao que o STF[7] decidiu na paradigmática Suspensão de Antecipação de Tutela n.º 175que reconheceu o registro na ANVISA como condição de partida para a possível inclusão de um medicamento no rol dos fornecidos pelo SUS. Gilmar Ferreira Mendes[8] registra ainda o “dever de proteção” do Estado com relação aos medicamentos ditos “experimentais”: “Na hipótese de o medicamento ainda ser experimental, a Administração Pública deve zelar pela segurança e qualidade das ações e prestações de saúde, não sendo razoável que decisões judiciais determinem o custeio dessa espécie de tratamento, de eficácia duvidosa, associado a terapias alternativas.” A decisão que determina o fornecimento da fosfoetanolamina vai de encontro, também, ao que o Conselho Nacional de Justiça, órgão de cúpula do Poder Judiciário, considerou ao emitir a Recomendação n.º 31/2010, visando melhor subsidiar os operadores do direito, para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a saúde. Na Recomendação 31/2010, no item “b.2”, ficou consignada a orientação aos magistrados para evitar a autorização de fornecimentos ainda não registrados na ANVISA, ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei. A ANVISA na nota técnica n.º 56 SUMED/ANVISA esclarece que não está em curso qualquer pedido de registro para o medicamento com princípio ativo fosfoetanolamina, bem como não há qualquer avaliação de projetos para fins de pesquisa envolvendo seres humanos, sendo que cada fase de pesquisa necessita de aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Finalmente, é preciso salientar que a determinação de custeio da fosfoetanolamina pelo SUS fere frontalmente o artigo 19-T da Lei 8.080/90 (que foi incluído pela Lei nº 12.401, de 2011), uma vez que é vedado à Administração Pública fornecer ou custear fármaco que não possua registro na ANVISA: “Art. 19-T.  São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS:           I – o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA;         II – a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.” O pensamento do Ministro Fachintambém parece não se coadunar com a linha seguida pelo Ministro Barroso[9], que critica as “decisões extravagantes ou emocionais que condenam a Administração ao custeio de tratamentos não razoáveis: “O sistema, no entanto, começa a apresentar sintomas graves de que pode morrer da cura, vítima do excesso de ambição, da falta de critérios e de voluntarismos diversos. Por um lado, proliferam decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis – seja porque inacessíveis, seja porque destituídos de essencialidade –, bem como de medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa, associados a terapias alternativas.(…) Tais excessos e inconsistências não são apenas problemáticos em si. Eles põem em risco a própria continuidade das políticas de saúde pública, desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação racional dos escassos recursos públicos. No limite, o casuísmo da jurisprudência brasileira pode impedir que políticas coletivas, dirigidas à promoção da saúde pública, sejam devidamente implementadas. Trata-se de hipótese típica em que o excesso de judicialização das decisões políticas pode levar à não realização prática da Constituição Federal. Em muitos casos, o que se revela é a concessão de privilégios a alguns jurisdicionados em detrimento da generalidade da cidadania, que continua dependente das políticas universalistas implementadas pelo Poder Executivo.” Ingo Sarlet se manifestou sobre a decisão do Ministro Luiz Edson Fachin em coluna no site Consultor Jurídico[10], afirmando que não é possível desconsiderar o fato de que o critério da excepcionalidade da situação, tal como defendido pelo prolator da decisão, não afasta a correção da justificativa adotada para afastar a possibilidade de via judicial impor ao Estado ou mesmo aos planos de saúde o fornecimento de medicamentos em fase experimental, pelos riscos para a própria saúde do autor da demanda ou mesmo em virtude da ainda não comprovada eficácia do medicamento, ademais de seu custo em relação a medicamentos devidamente aprovados e reconhecidos pela comunidade médica e pelas autoridades sanitárias nacionais. Ainda segundo o renomado autor, mesmo a aquisição particular, por conta e risco do paciente, de um medicamento que sequer foi testado em humanos, já seria questionável, quanto mais impor ao Poder Público e aos planos de saúde o ônus de custear esse tratamento que não pode ser tido como exigência da dignidade da pessoa humana e do direito à vida (quanto mais em face da ausência de comprovação de eficácia). Em início de novembro de 2015, o Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP) chegou a autuar o laboratório da Universidade de São Paulo (USP), no campus de São Carlos (SP), pela ausência de farmacêuticos no local onde é produzida a fosfoetanolamina sintética, registrando as precárias condições sanitárias e ausência de controle na produção[11]. Em 11/11/2015 o site Consultor Jurídico veiculou notícia de que o TJ-SP no Agravo Regimental 2194962-67.2015.8.26.0000/50080, cassou todas as liminares de primeira instância que mandavam USP fornecer "cápsula contra câncer" ao argumento de que seria irresponsável liberar substância química que promete cura de uma doença sem o mínimo rigor científico e ainda com duvidosa eficácia. Os desembargadores também proibiram que juízes do estado tomem decisões futuras com o mesmo tema[12]. Apesar de toda a polêmica criada, e de a decisão do STF já ter se repetido em outro caso, a recomendação do Ministério da Saúde segue sendo de que as pessoas não façam uso da Fosfoetanolamina até que os estudos sejam concluídos[13], sendo que o Ministério da Ciência anuncia um investimento de dez milhões de reais na pesquisa desta substância para os próximos dois anos. A ideia é que os estudos sejam conduzidos por laboratórios que têm parcerias firmadas com o ministério, o Instituto Butantã e os institutos ligados ao Ministério da Saúde[14]. Conclusão: O direito à saúde não é uma promessa constitucional inconsequente, e tampouco um dever ilimitado do Estado. É, isto sim, garantia para o cidadão, e dívida estatal de prestações positivas que concretizem a busca do bem-estar físico e mental da população; um direito fundamental de segunda geração, que habita um terreno permeado por princípios e diretrizes que se prestam a muitos conflitos dada a dimensão coletiva e individual da saúde. Ainda que a medicina seja uma ciência em constante evolução, tornando natural que as pessoas tenham a justa expectativa de viver mais e melhor, a absorção de novas tecnologias em saúde deve atender a processos administrativos específicos, vinculados e orientados pela medicina baseada em evidências, visando garantir a segurança dos usuários e a efetividade dos tratamentos, não sendo diferente com o caso da Fosfoetanolamina Sintética, cujo apelo emocional dos casos de câncer terminal não podem obrigar instituições públicas ou privadas ao fornecimento de uma substância que sequer está em uma fase experimental regular.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-144/a-judicializacao-da-fosfoetanolamina/
O direito à vida, enquanto direito fundamental em relação ao aborto voluntário até o terceiro mês de gestação
O presente artigo aborda o direito à vida, enquanto Direito Fundamental com relação ao aborto voluntário até o terceiro mês de gestação. O direito à vida é direito tutelado mais antigo que a própria teoria dos Direitos Fundamentais, considerando a Legislação Brasileira e doutrinadores, partindo dos direitos fundamentais até o Código Civil e Penal Brasileiro. Iniciando com o Direito Fundamental expresso no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, o objetivo principal é estabelecer a ligação entre o Decreto 678/1992, que tem status de norma constitucional, os termos do art. 2º do Código Civil Brasileiro de 2002, onde se põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro, e, por fim, a punição para a prática ilegal de aborto que está no Código Penal Brasileiro (arts. 124, 125 e 126) que expressa, com nitidez, a proteção à vida do nascituro como pessoa. Sobre essa perspectiva, visa reduzir tanto a morte das gestantes como do feto e, também, a punição dos crimes praticados por aborto ilegal. Este estudo pretende ainda apresentar um histórico sobre o início da concepção humana, descrever em que casos o aborto é permitido, de acordo com a Legislação Brasileira, além de registrar os danos psíquicos causados e as lesões que o aborto pode deixar no corpo da mulher. O método qualitativo é adotado, por meio de uma pesquisa bibliográfica para análise, compreensão e interpretação jurídica acerca do tema, com o auxílio de textos legais e doutrinas a respeito do assunto.[1]
Biodireito
1. INTRODUÇÃO  Considera-se que perguntas sobre o começo da vida são mais antigas, ou iguais, à arte de fazer indagações. O grego Platão, considerado um dos pais da filosofia, em sua obra República, protege a interrupção da gestação para todas as esposas que engravidassem após os 40 anos. Por trás da declaração de Platão permanecia a ideia de que os casais precisariam gerar filhos para o Estado até um período certo. Aos olhos de Platão, não havia problema moral e nem ético na prática de aborto após os 40 anos. Ele visava, prioritariamente, a saúde da mulher na formação do feto.  O marco mais importante para os estudos sobre o início da vida humana se iniciou somente no século XVII, após a criação do microscópio, momento em que os cientistas começaram a estabelecer pesquisas para entender sobre os segredos da vida. Até então, não se sabia, por exemplo, que o sêmen carregava espermatozoides. Em 1870 ocorreu outro avanço a respeito do começo da vida. Os cientistas afirmaram que o espermatozoide seguia até o óvulo, logo o fecundava e, 9 meses após a fecundação, ocorria o nascimento. Essa descoberta foi revolucionária, uniu tanto os religiosos como os cientistas da época, que chegaram, então, à conclusão de que a vida começa no momento da fertilização. O cientista Bernard Nathanson, diz: “Como cientista, eu sei – e não apenas “acredito” – que a vida humana se inicia na concepção”. No livro mais antigo da humanidade, a Bíblia, também há passagens sobre o surgimento da vida. Em Gênesis 2:7, a Bíblia fala da criação do primeiro homem sobre a terra; “Então, formou o SENHOR Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente”. O Livro de Gênesis 2: 21 e 22, faz menção do surgimento da primeira mulher sobre a terra: “Então, o SENHOR Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este adormeceu; tomou uma das suas costelas e fechou o lugar com carne, (…) transformou-a numa mulher (….) Existem diversas passagens bíblicas que falam da criação humana e sobre a procriação do homem na terra. Sob a ótica da bioética, pode-se assegurar que a existência humana, o indivíduo, apresenta-se como uma união de espírito e corpo; equivale à combinação de informações espirituais, intelectivas e morais, além dos aspectos meramente biológicos. Quanto ao aborto, para a ciência exata, interessa definir a partir de que período é um embrião, que é parte de tutela penal. Constata-se que o direito à vida é o direito tutelado considerado mais antigo, até mesmo que a própria teoria dos direitos fundamentais, prevista no art. 5º da Constituição Federal Brasileira (CFB) de 1988. O direito à vida não está apenas na CFB/88 como lei no Brasil. Podemos citar alguns pactos internacionais em que o Brasil é signatário, como o Pacto de São José da Costa Rica, que garante o direito à vida desde o momento da concepção. Em seu artigo 4º, prevê que toda a pessoa tem o direito de que se respeite sua vida, e esse direito deve ser respeitado e protegido por lei desde o momento da concepção, não podendo ser arbitrário. Integrou-se no Ordenamento Jurídico Brasileiro através do Decreto 678/1992 e tem status de norma constitucional, devendo ser analisado pela legislação infraconstitucional. O Código Civil Brasileiro (CC) também prevê direito ao nascituro. Já o Código Penal Brasileiro (CP), no art. 124, tipifica o crime de autoaborto e o aborto consentido. No art. 125, prevê o crime de aborto praticado por terceiro sem o consentimento da gestante e, no art. 128, define as hipóteses de aborto legal. O objetivo jurídico penal é a proteção do direito à vida do feto, podendo-se afirmar que o bem jurídico tutelado é a vida humana intrauterina e a tutela do direito ao nascimento com vida. 2. DIREITO À VIDA E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA A Constituição Federal Brasileira é constituída pela influência mútua de suas normas jurídicas, que se dividem em normas, princípios e regulamentos, conforme a maior ou menor generalidade e concreção, e compõem a integração material da Constituição Federal. Todos os direitos são invioláveis, porém a Constituição Federal fez questão de declarar a inviolabilidade do direito à vida. O direito à vida foi aprovado constitucionalmente, como direito fundamental, no caput do art. 5º da Constituição Federal, que garante a sua inviolabilidade: “Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida (…). § 1º- As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. § 2º – Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” O Brasil ratificou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos em 24 de janeiro de 1992. Esse pacto internacional prevê o genocídio bem como o ato de arbitrariamente extrair a existência de uma pessoa. Essa lei internacional apresenta importância de normativo interno na jurisdição brasileira. “Art. 6º. O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado da vida. (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966)” Convenção Americana Sobre Direitos Humanos. Pacto de San José (Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969): “Art. 4º – Direito à vida. 1. Toda pessoa tem direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.” Declaração Universal Dos Direitos Humanos: “Art. 1º – “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. No Brasil, o direito à vida também é concedido ao nascituro, sendo o nascituro um sujeito de direito, conforme expresso no Código Civil Brasileiro – CC. Tratados da mesma maneira, aquele que teve sua gênese in útero, como aquele originado in vitro. Ainda o CC, considera que o nascituro, independentemente de ter sido gerado desta ou daquela forma, é considerado pessoa, deve ser respeitado pela lei. Art. 2º – “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. (Código Civil Brasileiro (art. 2º). Ainda que existissem correntes em nossa Assembleia Constituinte no sentido de que o direito à vida a ser garantido fosse desde a concepção ou desde o nascimento, o legislador constituinte meramente o garantiu, sem delinear qualquer outra referência, incumbindo a expressão do exato momento do surgimento da vida humana à doutrina e à jurisprudência, com o uso dos dados científicos alcançados com os diversos ramos da ciência. É complexa a tarefa, porém, da fixação do direito à vida, em função do grave ímpeto de introduzir-se no campo da metafísica. Todavia, deve-se avaliar que a vida não se abrevia exclusivamente a sua definição biológica de incessante auto atividade funcional, essencial às matérias orgânicas. Ela é composta por um método vital instaurado com a concepção (ou germinação), e consiste em alvo de inúmeras modificações, até sucumbir-se com a morte. 3. BREVE HISTÓRICO SOBRE A TEORIA DA CONCEPÇÃO E ABORTO. O termo concepto refere-se ao embrião e suas membranas (âmnio, córion, vesícula umbilical, e alantoide). O concepto refere-se aos produtores da concepção; isto é, qualquer coisa que se desenvolva a partir do zigoto. O embrião é a parte embrionária do concepto. Somente no século 17 com a criação do microscópio, que os cientistas iniciam um entendimento mais amplo sobre o segredo da vida. Por volta do ano de 1870, se iniciam os estudos com os aspectos moleculares da biologia do desenvolvimento humano que é chamado de embriologia humana. Esta tem por objetivo preocupar-se com a origem e o desenvolvimento humano desde zigoto até o seu nascimento. O processo se inicia quando um ovócito é fertilizado por um espermatozoide e, juntos, transformam-se em uma única célula, o zigoto, num ser humano multicelular. O aborto é a expulsão, espontânea (quando interrompido natural ou acidentalmente) ou provocada (quando causado por uma ação humana deliberada), do embrião ou feto do útero. A palavra aborto tem sua origem no latim abortus, derivado de aboriri (perecer), ab significa distanciamento e oriri nascer (Koogan & Houaiss, 1999). Segundo Teodoro (2007, p.105), o aborto é uma forma violenta de interromper, impedir um nascimento: “A etimologia da palavra aborto é latina, abortus, sendo que o prefixo ab significa impedir, privar, e ortus ou orior, nascer, nascimento. O abortamento (fesnatiohomicidii) é a interrupção violenta da gravidez antes de seu termo natural, com a consequente morte do feto, podendo este ser expulso do organismo materno, ou não. A morte do feto poderá ocorrer no interior do ventre de sua mãe ou quando da sua expulsão. Enfim, dois são os pressupostos do abortamento: a interrupção da gravidez e a morte do feto. Teodoro (2007, p.105)” O registro mais antigo que se tem sobre o aborto é na China, entre 515 e 500 A. C., que eram os abortos provocados em concubinas reais. Da China provém uma lenda, em que a Imperatriz Xinangue, há mais ou menos cinco mil anos, prescrevia o uso de mercúrio para as mulheres serem induzidas aos abortos. Ao longo do tempo e mais modernamente, as correntes da concepção humana se dividem em quatro teorias que são: a) Teoria da fecundação: resguarda que o início da vida se dá com a concepção; b) Teoria da nidação: acode que o início da vida começa com a implantação do embrião no útero; c) Teoria encefálica: defende que o início da vida ocorre com o começo da atividade cerebral; d) Teoria do Nascimento: defende que o princípio da vida começa com o nascimento com vida do feto.  4. ESPÉCIES E PROCEDIMENTOS DE ABORTOS. O aborto é dividido em espécies e procedimentos, sendo quatro tipos de espécies de interrupções gestacionais; a) aborto terapêutico ou necessário (ITG), ocorre quando a gravidez gera algum risco à vida da gestante (gravidez tubária); b) honoris causa, honroso ou moral (ISG) , que consiste em abortar o feto por ser a gestação resultante de estupro; c) eugênico (IEG), praticado pela medicina nazista, quando a gestante é obrigada a abortar por ser judia, cigana ou negra; questões de racismo e preconceito; d)social ou voluntário (IVG), que é realizado mais pelo fato de a gestante não querer seguir com a gravidez, por questão de controle de natalidade ou por simples vontade. Há vários procedimentos para a interrupções gestacionais, além dos casos caseiros, tais como: A. Por Envenenamento Salino: Esse procedimento é efetuado somente após da 16ª semana de gestação: Introduz-se, no líquido amniótico, uma solução salina concentrada, com uma longa agulha através do abdômen da gestante, na parte interna da bolsa que protege o bebê, para que o feto ingira o líquido. Começa o parto em 12 horas, em que se dá à luz um bebê morto ou moribundo. Na maioria desses casos o feto nasce fazendo movimentos antes de chegar ao óbito, que é causado por desidratação, envenenamento, hemorragia do cérebro e de outros órgãos, queimaduras graves na pele do bebê. B. Por Sucção: Esse procedimento é o mais utilizado nos países mais desenvolvidos, chegando a quase 95% dos abortos através desse procedimento. É feito por uma forte sucção que é considerada 28 vezes mais forte que um aspirador doméstico. Insere-se no útero um tubo oco que tem uma ponta afiada, que despedaça o corpo do feto em desenvolvimento e o absorve. Logo introduz uma longa pinça para extrair o crânio, porque, na maioria das vezes, o crânio não sai pelo tubo de sucção, depositando-o, depois, em um balde. C. Por Dilatação e Curetagem: É utilizado durante o 2º e o 3º trimestre da gestação, quando o bebê já está em um tamanho que não pode ser extraído por sucção. O método é chamado de dilatação e curetagem devido utilizar uma cureta ou faca proveniente de uma colher afiada na ponta, onde vai cortando o feto em pedaços, para facilitar a expulsão pelo colo do útero da gestante. D. Por "D & X" às 32ª semanas: É conhecido como o nascimento parcial, é o método mais espantoso de todos, faz com que o bebê morra e que sua cabeça desabe, é feito quando está próximo ao nascimento do bebê. Dilata o colo uterino durante 03 dias e, guiando por ecografia, são introduzidas várias pinças que agarram os membros e o corpo do bebê, chegando aos ombros, como se o bebê fosse nascer. Devido à cabeça ser grande demais para ser extraída intacta; enterra-se algumas tesouras no crânio do bebê que está vivo e as abre para ampliar. Assim, extrai parcialmente o corpo do bebê, inserindo um cateter para extrair-lhe o cérebro através da sucção, e corta a placenta. E. Por Operação Cesárea: É exatamente igual à operação cesárea até que se corte o cordão umbilical, mas não para salvar a criança; o objetivo é matá-la. F. Mediante Prostaglandinas: É uma droga que se toma em qualquer fase da gravidez, utilizada para matar o bebê, sendo que, muitas vezes, o bebê consegue sair vivo ou causa risco de vida e danos à mãe. As prostaglandinas estão sendo associadas com RU-486 para aumentar a eficácia, o que torna a droga mais perigosa e pode causar sérios danos à gestante. G. Pílula RU-486: É um remédio abortivo conhecido como “pílula do dia seguinte”, usado entre a 1ª e 3ª semana de atraso da primeira menstruação da gestante, que a usa associada com a prostaglandina. Resulta em aborto depois de vários dias de dolorosas contrações devido agir matando de fome o bebê, privando-o de um elemento vital que é o hormônio progesterona. Como se percebe, todos esses procedimentos para se fazer um aborto são práticas violentas que comprometem a saúde da mulher. Essas práticas não lesam somente o feto, podem levar a vida da gestante a óbito. Bem mais fácil prevenir uma gravidez, pois os métodos de prevenção (anticoncepcionais comprimidos via oral, Dispositivo Intrauterino – DIU, adesivos internos ou externos, preservativos) sempre serão menos prejudiciais à vida mulher e ainda são considerados métodos seguros e econômicos para não ocorrer uma gravidez indesejada. 5. ASPECTOS DO CRIME DE ABORTO Acerca de crimes contra a vida, o Direito penal criminaliza comportamentos, dolosos ou culposos, que lesionam ou apresentam os riscos de danos aos bens jurídicos que a sociedade crê como valiosos e que, consequentemente, fazem jus a essa proteção pelos acessos do Direito penal. Os grupos que defendem o aborto usam o argumento de que é direito da mulher a prática do aborto, porém existe um dito popular que diz: “o seu direito acaba onde começa o dos outros”. Este, abrange bom senso, ética e importâncias morais e, além disso, direitos e obrigações garantidos em Lei. Sendo assim, o direito da mulher sobre o seu próprio corpo termina quando começa a gerar um novo ser em seu ventre, que é possuidor de direitos. Tanto é que o Código Penal- CP pune a gestante ou terceiros que ilicitamente ferem o direito do nascituro com a prática do aborto. O procedimento de aborto está tipificado pelo Código Penal Brasileiro entre os artigos 124 e 126. O art. 124 do CP aborda-o como um delito de mão própria, uma vez que se origina do autor do crime uma distinção específica – no caso, estar grávida – e apenas ela, nesta condição, pode efetivar a conduta de autoaborto ou de aceitar que se cometa o método abortivo. Art. 124. “Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.” (Código Penal, Art.124) O aborto praticado por terceiro é a forma mais agravada de aborto. Trata-se da hipótese do aborto atentado por terceiro, sem a aceitação da gestante, lembrando-se que é o exercício de manobra ou procedimento, que gera a morte do feto ou embrião, objetivado de forma livre e consciente, sem que tenha a concordância da gestante. Art. 125. “Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos. Art. 126. – Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.” (Código Penal, Art.125 e 126). Quando se trata de um crime qualificado pela consequência onde há o preterdolo. Permanece dolo na conduta (provocar o aborto) e culpa no resultado (morte, lesão corporal ou grave). Portanto, o agente responderá pelo crime de aborto (Art. 125 ou 126) em sua forma qualificada (Art. 127), e não pelos resultados, independentes de sua pretensão (homicídio ou lesão corporal): Art. 127. “As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte. (Art. 127 do CP).” O CP, também traz um rol onde exclui o crime de aborto, nos casos em que este é necessário, uma vez que a vida da gestante está em risco, por exemplo. Outro caso é quando é uma gravidez resultante de estupro. Art. 128. “Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro  II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. (CP. ART.28).” 5.1. O POSICIONAMENTO DA 1º TURMA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM RELAÇAO AO ABORTO ATÉ O TERCEIRO MÊS DE GESTAÇÃO. A determinação da primeira turma do STF é vista por especialistas como incomum. O Código Penal, prevê que aborto pode ser realizado por um médico somente quando a gravidez apresenta risco à vida da grávida ou quando ela procede de estupro. A decisão da primeira Turma do STF (Supremo Tribunal Federal), de que cometer aborto nos três primeiros meses de gestação não é delito, cria uma prévia a que juízes deem sentenças iguais em outros processos a respeito do aborto. Muito embora isso não descriminalize a prática de aborto no Brasil, determinações que não veem criminalidade no aborto podem ser examinadas por juízes de segunda instância e até pelo próprio STF. Celso Ferenczi, especialista em Direito Constitucional da PUC-SP, a respeito da decisão do STF, opina: “Juízes podem não considerar crime o aborto feito no início da gravidez mencionando essa decisão do STF, mas não estão obrigados a segui-la." A determinação da 1ª Turma do STF amparou exclusivamente um fato, envolvendo funcionários e médicos de uma clínica de aborto em Duque de Caxias no Estado do Rio de Janeiro (RJ), que tiveram a prisão preventiva estabelecida. Ainda que seja assim, a decisão do STF pode embasar decisões feitas por juízes de diferentes instâncias em todo o país. Durante o julgamento do dia 29 de novembro de 2016, os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Rosa Weber tornaram visível a definição de que não é crime a interrupção espontânea da gestação realizada no primeiro trimestre, para, logo, não verem condições que validassem a prisão cautelar dos funcionários e médicos da clínica, bem como risco à aplicação da lei penal, à ordem pública, ou à ordem econômica. Luiz Fux e Marco Aurélio Mello, os ministros que, do mesmo modo, compõem a 1ª Turma, acordaram com a revogação da prisão preventiva por pontos processuais. Porém, não se manifestaram a respeito da criminalização do aborto feito no primeiro trimestre. O ministro Barroso durante sua defesa pelo aborto até o primeiro trimestre, disse, em discurso, que, diante do sofrimento da mulher ante um aborto, o Estado não precisa processá-la, para que sua vida não se torne ainda pior: "Em temas moralmente divisivos, o papel adequado do Estado não é tomar partido e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam a sua escolha de forma autônoma. O Estado precisa estar do lado de quem deseja ter o filho. O Estado precisa estar do lado de quem não deseja – geralmente porque não pode – ter o filho. Em suma: por ter o dever de estar dos dois lados, o Estado não pode escolher um". (Defendeu o ministro Luís Roberto Barroso) 6. OUTROS POSICIONAMENTOS SOBRE O ABORTO. – Para a neurológica: O mesmo início da morte vale para a vida. Ou seja, se a vida conclui quando cessa a agilidade elétrica no cérebro, ela dá início quando o feto expõe agilidade cerebral igual à de uma pessoa. A dificuldade é que esse período não é consensual. Uns cientistas defendem existirem esses sinais cerebrais já na 8ª semana. Outros, na 20ª. – Para a embriológica: A vida dá início na 3ª semana de gravidez, quando é formada a presença humana. Isso porque, até 12 dias após a fecundação, o feto também é capaz de se dividir e dar origem a duas ou mais pessoas. É essa ideia que explica o uso da pílula do dia seguinte e anticoncepcionais dirigidos nas duas principais semanas de gravidez. – Para a genética: A vida humana se inicia na fertilização, quando espermatozoide e óvulo se encontram e combinam seus genes para desenvolver uma pessoa com um conjunto genético exclusivo. De tal modo, é criado um novo indivíduo, um ser humano com direitos semelhantes aos de um outro. É também o conceito da Igreja Católica. Para a metabólica: A discussão a respeito do princípio da vida humana é irrelevante, uma vez que não tem um momento exclusivo no qual a vida inclui o início. Para esta corrente, espermatozoides e óvulos são tão vivos como qualquer pessoa. Além disso, o desenvolvimento de qualquer criança é um método continuado e não necessita ter um marco inaugural. – Para a ecológica: A capacidade de sobrevivência fora do útero é que faz do embrião um ser independente e origina o começo da vida. Médicos consideram que um recém-nascido só se sustenta vivo se existirem pulmões finalizados, o que ocorre dentre a 20ª e a 24ª semana de gestação. Constituiu o critério aceito pela Suprema Corte dos EUA na deliberação que aprovou o direito ao aborto. 6.1. DIANTE DOS POSICIONAMENTOS RELIGIOSOS – Catolicismo – A vida começa na concepção, quando o óvulo é fertilizado formando um ser humano pleno e não um ser humano em potencial. Por mais de uma vez, o Papa Bento XVI reafirmou a posição da Igreja contra o aborto e a manipulação de embriões. Segundo o Papa, o ato de “negar o dom da vida, de suprimir ou manipular a vida que nasce é contrário ao amor humano. – Budismo – A existência é um procedimento contínuo e ininterrupto. Não se inicia no ajuntamento de óvulo e espermatozoide. Porém, está atualizado em tudo o que vive – nossos pais e avós, as plantas, os animais e até mesmo a água. No budismo, os seres humanos são somente uma forma de vida que é acoplada a várias outras. Em meio às correntes budistas, não existe acordo a respeito de aborto e pesquisas com embriões. – Judaísmo – A vida dá início só no 40º dia, quando acreditam que o embrião começa a contrair formato humano. Ao mesmo tempo, a cessação da gravidez não é avaliada como homicídio. Dessa forma, o judaísmo admite a análise com células-tronco e o aborto quando a gravidez abrange risco de vida para a genitora ou deriva de estupro. – Hinduísmo – Alma e matéria se topam na fecundação e é aí que dá início a vida. E assim como o embrião tem uma alma, precisa ser tratado como humano. Na tese do aborto, hindus elegem o ato menos danoso a todos os envolvidos: o pai, a mãe, o embrião e a sociedade. Assim, em geral se opõem à interrupção da gravidez, menos em casos que colocam em risco a vida da mãe. – Islamismo – O início da vida incide quando a alma é soprada por Alá no embrião, cerca de 120 dias em seguida a fecundação. Contudo há estudiosos que creem que a vida tem começo na concepção. Os muçulmanos desaprovam o aborto, porém muitos aceitam a exercício especialmente quando possui risco para a vida da genitora. E apoiam o estudo com células-tronco embrionárias. 6.2 ENTRE OS PAÍSES, RESPOSTAS DA LEI DO ABORTO – Brasil: Nesta ocasião, só existem três circunstâncias em que o aborto é lícito: em acontecimentos de estupro; quando a gravidez sugere risco para a grávida; ou em acontecimento de fetos anencéfalos. – França: Desde 1975, as francesas podem cometer abortos até a 12ª semana de gravidez. Depois desse período, a gestação só pode ser cortada se dois médicos assegurarem que a saúde da mulher está em risco ou que o feto contém problema grave de saúde. Em 1988, a França consistiu-se no primeiro país a regularizar o uso da pílula do aborto RU-486, que pode ser usada até a 7ª semana de gestação. – EUA: O aborto é lícito nos EUA desde 1973, quando a Suprema Corte conheceu que o aborto é um direito afiançado pela Constituição Americana. Pode-se cessar a gravidez até a 24ª semana de gestação – na ocasião em que a lei foi promulgada, era esse o estágio menor de desenvolvimento que um embrião necessitava para continuar a viver fora do útero. – Japão: Foi um dos primeiros países a validar o aborto, em 1948. A prática se tornou o método anticoncepcional preferido das japonesas – em 1955 foram concretizados 1 170 000 abortos contra 1 731 000 nascimentos. Atualmente, o aborto é legal em ocorrência de estupro, risco físico ou econômico à mulher; todavia, exclusivamente até a 21ª semana – atual limite mínimo para o feto sobreviver fora do útero. 7. CONSEQUÊNCIAS DA PRÁTICA DO ABORTO O aborto é censurado exatamente porque pode ser considerado um crime e, em alguns casos, só provoca complicações, independentemente da prática usada. As consequências físicas do aborto são enormes, o aborto pode gerar estragos psicológicos à mãe, em específico, e à família como um todo. Lesões causadas às trompas por provável infecção pós-aborto, originando infertilidade (em 18 % das pacientes) estão sendo as principais consequências da prática do aborto. O Estado não disponibiliza apoio pós-aborto, e essa é a maior preocupação dos grupos pró-vidas, pois já foi comprovado cientificamente que o aborto pode deixar sérias sequelas tanto físicas como emocionais para o resto da vida. Além das prováveis consequências corporais, um aborto costuma gerar conflitos de arrependimento e culpa, e reações psiconeuróticas ou ainda psicóticas mais sérias. Segundo o Dr. L. Clemente de S. Pereira Rolim (especialista em Clínica Médica pela AMB e pós-graduado da Universidade Federal de São Paulo, Escola Paulista de Medicina, UNIFESP-EPM), essencialmente, três são os tipos de fatos psíquicos que acontecem nas mulheres que cometem o aborto: Choro imotivado, medos, pesadelos, sentimentos de remorso e culpa, oscilações de ânimo e depressões. 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS Após uma abordagem histórica, científica e jurídica da definição do início da vida, do direito à vida e ao aborto, pode-se compreender que vida é o maior bem jurídico que se pode ter, e que aqueles que pretendem abordar o assunto do aborto, seja a favor ou contra, concordam em um ponto: os riscos que o aborto gera. Afinal, o aborto é uma realidade presente na sociedade. Este tema levanta grandes divergências, trata-se de uma questão muito delicada e polêmica, com diferentes análises e posicionamentos, apesar de todos concordarem com os riscos ao se fazer um aborto. Já está comprovado que o aborto não é uma saída para problemas psicossociais. Ao contrário, depois do aborto continua a desordem emocional e se acrescenta o risco de novas e mais sérias consequências psíquicas. A mulher, de modo geral, reage emocionalmente de forma incerta, porque é submetida a circunstâncias estressantes na hora do procedimento do aborto, e, portanto, responderá à crise psicológica do aborto com irregularidades psíquicas ainda mais fortes. Hoje em dia, o aborto é legal em vários países. Porém, no Brasil, ainda consiste em ilegalidade. Mesmo assim, há anos e anos, muitas mulheres cessam a gravidez com a prática do aborto ilegal.  Muitas críticas são feitas, da parte de quem é a favor da prática de aborto, alegando que os motivos são atos conservadores de que o feto é um indivíduo humano e que, logo, abortá-lo estabelece o homicídio, delito punido de modo duro e severo pelo ordenamento brasileiro de leis penais. Alguns defendem legalizar o aborto quando as justificativas são: Grandes Incidências de Abortos Clandestinos quando a prática não é legalizada, alegando-se que o ato apresenta risco para a vida da gestante, deixando várias consequências com a tal prática ou até sua morte. Ocorre que esse argumento já foi avaliado falho. Em países onde se legalizou o aborto, as clínicas clandestinas não deixaram de atuar e as mulheres gestantes não procuraram o sistema de saúde regularizado, com a justificativa de fugir do preconceito e da exposição. Outro caso que não justifica: Método de Controle de Natalidade, em momento algum o aborto deve ser conduzido como método de planejamento familiar. Todos os governantes e organizações intergovernamentais e não-governamentais precisam ser solicitados a comprometer-se com o bem-estar das mulheres e a analisar o impacto na saúde corporal e psíquica consentida pelo aborto.  Podemos finalizar, priorizando que a cautela da gravidez indesejada necessita ser a mais elevada prioridade, e todo o empenho deve ser feito para abolir a necessidade de aborto. É passível de comprovação o fato de a sociedade, nitidamente, clamar por uma evolução do conceito de vida. Pode-se concluir que a sociedade precisa de um maior conhecimento na inclusão do uso de anticoncepcionais (existem várias prevenções que as mulheres podem adotar para impedir a gravidez e a ocasião de abortar). Isso torna-se imprescindível para diminuir as enormes sequelas resultantes da prática do aborto, já que o aborto é uma realidade inclusa na sociedade. Conclui-se que o aborto, além de ser crime, é imoral à vida mulher, pois a expõe ao constrangimento, podendo gerar vários danos, tanto físicos como psíquicos, sem reversão.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-156/o-direito-a-vida-enquanto-direito-fundamental-em-relacao-ao-aborto-voluntario-ate-o-terceiro-mes-de-gestacao/
Direito médico e o consentimento informado
Objetivo: Oferecer informações, auxiliando profissionais da saúde a não incorrer em situação de Infrações Civis e Penais no exercício de suas funções, podendo esses profissionais diferenciar e evitar erros durante a prestação dos serviços, além do uso correto do Termo de Consentimento Informado. Métodos: Estudo literário do Direito Médico, analisando situações que facilmente podem ser resolvidas ou evitadas se os profissionais da saúde adotarem medidas de cuidado quando atuando, levando em consideração não só o paciente em si, mas todos os documentos que devem serem feitos com máximo de zelo, fazendo constar no Prontuário Médico tudo que foi realizado no/e para o paciente. Conclusão: Pelo exposto, resta evidenciado que lamentavelmente uma parte significativa dos profissionais da saúde, talvez por um vício de formação negligenciam aspectos relevantes voltados ao registro dos atendimentos prestados, não adotam no exercício de suas atividades profissionais os cuidados necessários, principalmente na elaboração do Termo de Consentimento Informado. o que faz que fiquem passíveis, a processos evitáveis nas esferas Ética, Civil e Penal.
Biodireito
INTRODUÇÃO Como se diz no ditado popular, “é melhor fazer o correto, do que remediar”, isso é extremamente importante na atuação dos profissionais da Saúde aprender a fazer a coisa certa e não pensar que nunca acontecerá nada de mais, do ponto de vista ético e Judicial, portanto o artigo demonstra a importância do Termo de Consentimento Informado para prevenção de processos judiciais com informações, esclarecimentos e conceitos para profissionais da saúde, o que na conclusão ficará claro nosso entendimento, e o rito processual poderá fruir com maior rapidez e economia processual, já na inicial poderemos descartar pessoas que equivocadamente são envolvida atualmente e após esse trabalho estarão sumariamente excluídas do processo quer seja, administrativo, ético ou jurídico. 1. Consentimento Informado Acerca do conceito de Consentimento informado, a Mestre Luciana Mendes Pereira Roberto,[1] foi muito feliz em suas colocações, e considerando ser o assunto extremamente importante para todos que habilitam a ter um conhecimento mais aprimorado no contexto do DIREITO MÉDICO, é que se faz justiça a autora constar para melhor compreendermos o consentimento informado e a sua influência na responsabilidade civil do profissional da saúde é importantíssimo esmiuçarmos a definição de consentimento informado e sua natureza jurídica. Na busca de um conceito preciso, o melhor caminho a ser sentido literal dado à palavra pelos dicionários. Ao buscar a definição de consentimento informado no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001) encontramos: “[…] ato ou efeito de consentir. 1- manifestação a que (alguém) faça (algo);permissão, licença. 2- manifestação de que se aprova (algo); anuência, aquiescência, concordância. 3- tolerância, condescendência. 4- uniformidade de opiniões; concordância de declarações. Acordo de vontades das partes para se alcançar um objetivo comum.” Inúmeras citações da obra de Luciana Mendes Pereira Roberto, Vejamos qual o conceito por ela atribuida: “Consentimento informado. Um acordo [contrato] para permitir que alguma coisa aconteça (como uma cirurgia) baseada numa completa revelação de fatos necessários para fazer a decisão inteligentemente ; isto é conhecimento dos riscos envolvidos, alternativas, etc. Consentimento informado é o nome para um princípio geral da lei que um profissional de saúde tem o dever de revelar, que um razoavelmente prudente profissional de saúde na comunidade médica em exercício de razoável cuidado, deveria revelar para seu paciente, como uma proposta de tratamento, para este paciente, exercitando cuidado básico para seu próprio bem estar, e encarando a escolha de aceitar a proposta de tratamento, ou o tratamento alternativo ou nenhum dos dois, deve exercer de maneira inteligente seu julgamento através da análise razoável da possibilidade dos riscos contra os prováveis benefícios.” A partir dos conceitos trazidos pelos dicionários podemos perceber que se trata de uma manifestação do paciente de que compreende o tratamento a ser realizado, seus riscos e possibilidades e consente com sua efetivação. Acerca do conteúdo do ato de consentimento reitera a autora do livro ja citado nesse artigo, consta que: “O Consciente (paciente que consente) deve saber claramente sobre o tratamento de saúde a que será submetido para que a renúncia à tutela de bem jurídico seja válida. O termo informado, pelo mesmo dicionário é um adjetivo que define o que se informou; esclarecido; instruído.” “O consentimento informado é o consentimento dado pelo paciente, baseado no conhecimento da natureza do procedimento a ser submetido e dos riscos, possíveis complicações, benefícios e alternativas de tratamento. Ou seja, é uma concordância na aceitação dos serviços a serem prestados pelo profissional da saúde em troca do pagamento do paciente ou responsável, estando este informado adequadamente do que está consentindo.” No que se refere a natureza jurídica do consentimento informado devemos primeiramente ressaltar que é de suma importância o conhecimento da natureza jurídica de um instituto, pois isso possibilita uma exata localização do mesmo no contexto jurídico atual. Consta a respeito da natureza jurídica do consentimento informado:- Quanto à natureza jurídica do instituto do consentimento informado, entende-se que não seja um contrato de prestação de serviço de saúde, mas um ato jurídico voluntário com conseqüências provenientes da própria lei (direito à autodeterminação, direito à disposição do próprio corpo, conforme disposições dos artigos13 e 15 do Código Civil) e que apenas terá os efeitos pretendidos em função da relação estabelecida na prestação de serviços de saúde.”(…)O consentimento informado é uma manifestação de vontade do paciente, que assente com o tratamento de saúde, após ser devidamente esclarecido. Pode-se afirmar que é um ato jurídico unilateral, não gerando direitos para a outra parte (profissional da saúde). Apenas torna lícita a agressão à integridade pessoal do paciente conscenciente. 1.1 Breve História sobre o Consentimento Informado Assim, esclarecido o conceito e a natureza jurídica acerca do consentimento informado, é importante ressaltar alguns episódios que marcaram a evolução histórica deste instituto. Na busca pela melhor compreensão e aplicabilidade do consentimento informado, é importante tecermos algumas considerações históricas que levaram o instituto ao seu status atual. O profissional da saúde ao longo da história teve uma posição privilegiada, sendo extremamente importante para a evolução humana. Desde a antiguidade, período no qual a profissão de saúde era como quase divina, o consentimento informado exercia um papel meramente demonstrativo. Porém com a evolução das técnicas médicas e conscientização do doente a respeito de suas possibilidades, o papel do consentimento informado foi evoluindo deixando de ser um instrumento meramente demonstrativo. Num momento posterior, pós revolução Industrial, início do século XIX, o homem vê-se sujeito de direito. Começa a falar de direitos humanos, além do que a medicina e a atividade curativa em geral passam por grande atualização diante de novas técnicas, medicamentos, desenvolvimento de práticas profiláticas (vacinas). Neste contexto, o profissional da saúde, notadamente o médico, passa a ser visto não como uma divindade, mas como pessoa capaz de utilizar-se de técnicas e formas científicas capazes de salvar vidas, e, ainda, de proporcionar o aumento da expectativa de vida do ser humano, gerando uma forma totalmente paternalista de exercício da profissão de saúde. Ao longo dos séculos é certo que tanto o papel do profissional da saúde quanto o papel do consentimento informado sofreram enormes modificações, e alguns episódios que foram determinantes para essas modificações merecem destaque. Ressaltamos como sendo episódios históricos relevantes para o consentimento informado. Infelizmente não se pode deixar de citar o principal acontecimento que consolidou a importância do consentimento informado, que foi a experimentação humana, ocorrida na Segunda Guerra Mundial, período em que pessoas – homens, mulheres e crianças- eram usados como cobaias em testes experimentais cirúrgicos e medicamentos , o que ocasionou o sofrimento e morte de milhares de seres humanos de forma fria e cruel. Ainda no tocante a episódios históricos relevantes para a formação histórica do conceito atual de consentimento informado é importante relatar , que a primeira referência histórica do consentimento informado remonta ao ano de 1767, na Inglaterra. Portanto, ante os breves esclarecimentos históricos que respaldam o conceito atual de consentimento informado é relevante agora um estudo aprofundado do consentimento informado no formato que ele assume hoje, com seus requisitos LEGAIS e particularidades. 1.2 Finalidades e Aplicabilidades Para um profundo conhecimento sobre as finalidades e aplicabilidades do consentimento informado se faz necessário um aprofundamento no estudo dos requisitos que o compõem. O consentimento informado do paciente ao profissional da saúde, para que este exerça sobre seu corpo ou mente um procedimento relacionado a sua saúde, é um ato jurídico lícito como anteriormente aduzido. Assim, deve ser composto de certos requisitos para que seja válido juridicamente, ou seja, para que produza efeitos no mundo jurídico. Enumerado como sendo requisitos do termo de consentimento informado sendo o primeiro pressuposto de admissibilidade é a capacidade; o segundo é a informação e o terceiro e último é o consentimento propriamente dito, livre e esclarecido. Pressuposto de Admissibilidade:- Para que a manifestação de vontade seja “relevante e eficaz”, deve ser prestada por agente capaz. A capacidade é a aptidão das pessoas para realizar atos com valor jurídico. No Brasil, conforme o código civil brasileiro, entende-se que a capacidade é a regra e a incapacidade é a exceção, pois os considerados incapazes estão elencados nos artigos 3º e 4º do citado código. Logo, para que o consentimento informado seja válido e eficaz ele tem que ser consentido por pessoa capaz, ou seja, por pessoa que não esteja elencada pelos artigos 3º e 4º do Código Civil Brasileiro. O segundo pressuposto para que seja válido o consentimento informado é o dever de informar por parte do profissional da saúde. A informação consiste em obrigação do prestador de serviço de saúde. O dever de informação é fundamental para que o paciente possa declarar a sua vontade de forma consciente e isenta de vícios. A informação é elemento fundamental do termo de consentimento , e para que não incorra em nenhum tipo de vício, a mesma deve ser prestada de maneira fiel ao que se pretende realizar. O importante é fornecer informações relevantes e compreensíveis para prevenir ou eliminar quaisquer entendimentos equivocados. Já comentamos o objetivo da informação e do esclarecimento ao paciente é proporcionar a opção entre consentir e não consentir no tratamento de saúde, de acordo com sua condição econômica (valor do tratamento), princípios religiosos (se o tratamento precisa ou não de transfusão de sangue, somente em casos eletivos, ou seja sem risco de perda de vida iminente), situação profissional (afastamento do trabalho), urgência do procedimento (diante de prognóstico de gravidade), efeitos colaterais (cicatrizes, imobilização, medicamentos), alternativas (tratamento cirúrgico, ambulatorial, fisioterápico), riscos e vantagens etc. Informado o paciente acerca das implicações do tratamento, suas conseqüências e alternativas, o mesmo passa a ter a opção de consentir ou não o tratamento proposto. Sendo o Consentimento livre o terceiro pressuposto do termo de consentimento informado. É responsabilidade do profissional da saúde a obtenção do consentimento informado de seu paciente, antes de iniciar qualquer procedimento, fazendo aqui uma resalva nos casos de emergências. Somente após a obtenção do consentimento é que o profissional de saúde executará os tratamentos ou qualquer procedimento no paciente, de forma lícita. Caso contrário, estará incorrendo no risco de estar expondo a integridade física e a saúde dos pacientes a uma unilateral e arbitrária intervenção, atingindo a integridade física, a saúde e a dignidade do paciente. Assim, uma vez informado o paciente, se o mesmo for capaz juridicamente falando, e fornecer o consentimento, estarão preenchidos os pressupostos de validade do consentimento informado. Esclarecida a importância da obtenção do termo de consentimento informado e os requisitos que o cercam, é importante ressaltar que existem exceções ao dever de obter o termo de consentimento informado. 1.3 Situações onde dispensa o Consentimento Informado Há situações em que o consentimento informado será considerado dispensável no momento da atuação do profissional de saúde, como são os casos de tratamento de emergência, privilégio terapêutico e situações de tratamento compulsório, no caso os paciente psiquiatrico surtados, isso ja previsto no codigo penal. No tocante aos tratamentos de emergência, observa a “dispensa” do referido termo é devido ao risco do paciente perder a vida, e não estar no momento em condições clinicas de poder decidir, e a espera por um responsavel legal poderá ser tardia. Orienta-se nesses casos que após a devida atenção a saúde do paciente, fazer todas as anotaçoes no PRONTUÁRIO MEDICO do paciente as condutas que foram tomadas para tentar salvar a vida, preparar um relatorio clinico detalhado para esclarecimento a “posteriori” aos familiares ou seu representante legal. Nos casos de emergências o consentimento informado é relegado a um segundo plano de importância, pois prevalece o dever de zelar pelo bem maior assegurado pela Constituição Brasileira de 1988, ou seja o “direito à vida”. A aplicação da exceção do privilégio terapêutico tem como base a crença de que revelar algumas informações sobre o estado de saúde do paciente pode ser deveras arriscado para sua saúde física ou psíquica. Por exemplo: a revelação de que o paciente cardiopata cronico, o de transtornso psiquicos, sofre de moléstia gravíssima ( ex. CANCER, SIDA ) pode levar a um ataque súbito do coração ou causar tamanho abalo emocional que o leve ao suicídio. Enquadra-se aqui tambem os casos de paciente que tenha uma crença religiosa que o proibe autorizar fazer hemotransfusão, e médico diagnostica risco do paciente perder a vida, portanto cabe ao médico essa decisão em respeito a Constituição Federal ja citado acima. E diante disso tambem dispensa o Termo a seus familiares ou responsavel legal, observar sempre que a vida é o bem maior. Lembrando que tudo deva estar devidamente anotado no PRONTUÁRIO MÉDICO, é portanto para evitar processo judiciais a posteriori, orienta-se ao hospital a comunicar ao Ministério publico do ocorrido, o autoridades policiais com o objetivo de preservação do Direito do Médico. Outra exceção à regra geral do consentimento, tem-se a situação denominada de tratamento compulsório. Neste caso, a saúde e bem estar sociais e comunitários são colocados em superioridade a valores individuais da pessoa, como a liberdade e a autodeterminação, especialmente no que tange ao tratamento das doenças infecto contagiosas, ligadas as Doenças de notificação compulsórias, e ainda dos casos de pacientes psiquiatricos surtados, já comentado, existe amparo legal, pois nessas situações ele é considerado um incapaz jurídicamente, passível de cometer ações criminosas. Consistindo o tratamento compulsório numa exceção de caráter objetivo ao dever de obter o consentimento informado, prevalecendo o bem geral da comunidade sobre o direito subjetivo do paciente. Uma vez evidenciadas as exceções ao dever de obter o consentimento informado mister se faz esclarecimento acerca dos vícios que poder cercar o referido instituto. Uma vez que evidenciamos no corpo deste artigo os requisitos de validade do termo de consentimento informado, imprescindível se torna expressar alguns esclarecimentos no tocante aos vícios que podem prejudicar a validade do mesmo instituto. 1.4 Pressupostos de Admissibilidade Os pressupostos de admissibilidade do termo de consentimento informado, há de se aceitar que este possa ser inválido por diferentes razões, como a falta de capacidade, pela ausência ou inadequação de informação, a vontade manifestada erroneamente, quando não havia necessidade ou indicação para o tratamento de saúde, e também quando o paciente não está muito convicto do que realmente poderá acontecer com ele em relação ao tratamento, portanto tem o paciente o direito de desistir a qualquer momento do ato médico, desde que que assine e justifique no mesmo termo de consentimento informado o motivo de sua decisão de não permitir mais o procedimento. Somos adeptos que em havendo qualquer vício no consentimento, tal como existe os contratos de acordo entre duas partes, tem que estar bem claras se existir algo que o paciente assinou mas não estava bem convencida ou não entendendo bem os termos, ou palabvras usadas, tipo terminologia médicas , no termo esse ato jurídico será anulável e o procedimento de saúde a que foi submetido o paciente foi um ato ilícito, sem seu consentimento. No tocante aos efeitos advindos da correta obtenção do termo de consentimento informado, estes só podem ser benéficos tanto para o paciente quanto para o profissional da saúde, sendo analisado melhor assim; a que torna lícita a atuação do profissional da saúde quando do tratamento de seu paciente seria o objetivo principal.; e o secundário, exonerando-o de certas responsabilidades sobre as quais o paciente foi previamente alertado (riscos e conseqüências) e mais, que isso, afastando a responsabilidade em que incorreria se atuasse sem o consentimento do paciente, ferindo sua liberdade e autodeterminação Porém é importante ressaltar que o Consentimento informado não tem o condão de afastar a responsabilidades civil do profissional da saúde que incorra em erro profissional por dolo ou culpa . O consentimento não deve ser considerado, como excludente de responsabilidade, pois o fato de o paciente aceitar o procedimento não significa que o profissional de saúde esteja liberado de responder legalmente, se causar algum dano. No tratamento de saúde, quando consentido pelo paciente, incluem-se os riscos e a possibilidade de não ter sucesso. O profissional de saúde responsabilizar-se-à se agir com dolo ou culpa (imprudência ou negligência) e se dessa conduta resultar dano ao paciente. Assim, mesmo que o consentimento informado não isente o profissional da saúde de responder por eventual erro que cause dano ao paciente, excetuadas as hipóteses já citados nos presente estudo onde encontramos exceções ao dever de obter o termo de consentimento informado, nos demais casos a obtenção do consentimento informado do paciente é fundamental para legitimar, para tornar lícita a atuação do profissional da saúde. No intuito de evidenciar mais um ponto positivo acerca da obtenção do consentimento informado devemos ressaltar o aspecto preventivo que a aplicação prática do termo de consentimento informado possui, e seus benefícios para o profissional da saúde. A aplicação prática do consentimento informado representa vantagens para o profissional da saúde e para o paciente. Para este, por coroar seu direito a autodeterminação, liberdade, integridade física e moral, vida dignidade e saúde. Para aquele, por ser importante aliado em termos probatórios, além de consolidar que a informação foi devidamente prestada ao paciente, no que tange ao seu tratamento de saúde. Podemos dizer que o consentimento informado é importante para o paciente, pois evidência sua capacidade de decidir sobre a conveniência ou não de um tratamento que afeta diretamente seu bem estar físico ou mental. E, é importante para o profissional da saúde, pois legitima sua atuação tornando-a lícita. O termo de consentimento informado encontra amplo respaldo no ordenamento jurídico brasileiro. Ele se legitima como instrumento que assegura a efetivação de diversos princípios constitucionais e infraconstitucionais que asseguram, principalmente, a dignidade da pessoa humana. A nossa carta magna dentre suas garantias fundamentais assegura ao cidadão o direito à vida, à liberdade, à integridade física, à sua personalidade dentre os quais podemos incluir o direito à autodeterminação, que nos leva diretamente à necessidade do termo de consentimento informado. Numa abordagem mais específica, o código de ética médica, instrumento que rege a conduta dos profissionais da saúde, ressalta em diversas passagens a importância do consentimento informado. Assim, para uma compreensão mais adequada acerca dos aspectos legais que cercam o termo de consentimento informado faz-se necessário um estudo acerca das garantias constitucionais que o embasam. Considerando o consentimento informado como instrumento que visa assegurar o respeito à vida, e a tranquilidade do profissional da saúde em atuar com o máximo de zelo e tranquilidade, vamos ver a importância desse direito fundamental. A vida é o primeiro bem da personalidade do homem, bem essencial, protegido pelo direito e requisito fundamental para que todos os outros bens jurídicos possam ser protegidos.Sendo um dos mais elementares direitos inerentes ao ser humano o direito à vida encontra previsão explicita na Constituição Federal Brasileira. 2. Constituição Federal Brasileira de 1988 e outras fundamentação Legais do Consentimento Informado No artigo 5º, caput da Constituição Federal Brasileira de 1988: “Art.5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade ao direito à vida, à liberdade, a igualdade, à segurança e a propriedade.” Assim, sendo o direito a vida o bem jurídico maior a ser tutelado ele é diretamente protegido pela Constituição Brasileira. Fato que eleva o consentimento informado a uma espécie de instrumento que visa assegurar o direito a preservação da saúde. Uma vez que o ser humano deve sempre ser informado acerca dos procedimentos e riscos que envolvem a manutenção de seu mais precioso bem: a vida. O direito à vida é inato; quem nasce com vida, tem direito a ele. Em relação às leis e outros atos, normativos, dos poderes públicos, a incolumidade da vida é assegurada pelas regras jurídicas constitucionais e garantida pela decretação da inconstitucionalidade daquelas leis ou atos normativos. O direito a vida é supremo: existe em qualquer ramo do direito, inclusive no sistema jurídico supraestatal. O direito a vida é inconfundível com o direito à alimentação, às vestes, a remédios, à casa, que se tem de organizar na ordem política e depende do grau de evolução do sistema jurídico constitucional ou administrativo. O direito à vida passa à frente do direito à integridade física ou psíquica. O direito de personalidade à integridade física cede ao direito de personalidade à vida e à integridade psíquica. Desta maneira, evidenciada a importância jurídica relegada ao direito à vida resta evidente a relevância jurídica dada ao consentimento informado como instrumento garantidor da autodeterminação quanto à preservação da integridade física do ser humano. Podemos concordar que a importância do direito a vida é então, O direito à vida que sustenta todos os outros direitos. Uns mais diretamente, outros de forma mais distante, mas sempre diante da prerrogativa da vida. Logo, esclarecida a essencialidade do direito à vida e sua íntima relação com o termo de consentimento informado, passaremos a observar as demais garantias constitucionais que descendem do direito à vida e que também encontram relação direta com o termo de consentimento informado. Ao estudar a dignidade da pessoa humana como direito fundamental é pertinente uma breve introdução acerca do significado literal do termo dignidade. Tratando-se de direito fundamental, constitucionalmente protegido, a dignidade da pessoa humana encontra-se inserida nos fundamentos da República Federativa do Brasil, estampados no artigo 1º da nossa carta magna: “Art.1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:  I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana;  IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” Retrato do Estado Democrático de Direito existente e em consolidação no Brasil, o fundamento da dignidade da pessoa humana, depois do direito à vida, é a viga- mestra dos direitos e garantias fundamentais proporcionados pela Constituição Federal. Não há que se falar em sistema jurídico legítimo se não fundado na garantia da intangibilidade da dignidade da pessoa humana. Tratando-se de direito fundamental de tamanha importância para o Estado democrático de direito a dignidade da pessoa humana alcança status de “viga-mestra” dos direitos e garantias fundamentais, atuando como peça fundamental para a manutenção do direito a vida e do bem estar individual e coletivo. A dignidade nasce com o individuo e é a ele inata, faz parte de sua essência. Ocorre que, inserta na vida em sociedade, a dignidade da pessoa humana pode ser acrescida de outros elementos e deve ser respeitada,e uma vez que consideramos o direito à vida como a garantia da manutenção de uma vida para que o cidadão possa viver mais e melhor, resta evidente a importância do consentimento informado como instrumento que assegura ao paciente o direito a tomar decisões que preservem tanto sua saúde física quanto sua dignidade. A justificativa primordial do consentimento informado encontra-se nos contornos do fundamento da dignidade da pessoa humana, que, por sua vez, necessita de vida para ocorrer. Todos os outros direitos são conseqüências do respeito à dignidade: liberdade, igualdade, saúde, integridade pessoal, pois é o respeito a estes direitos que consolida uma vida digna. Os direitos fundamentais, o direito à igualdade consta no artigo 5º do Código Civil ao assegurar em seu inciso I que homens e mulheres são iguais perante a lei. “Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;” De um modo geral a Constituição Federal Brasileira ao elencar o direito a igualdade dentre as garantias fundamentais prima pela erradicação da discriminação. Especificamente, no que concerne ao direito à igualdade como fundamento do consentimento informado, temos que observar o respeito a esse princípio na aplicação indiscriminada do termo de consentimento informado. Que é dever do profissional da saúde e o direito de todos os pacientes. No que se refere à igualdade, é este o ideal de todos: que todas as pessoas sejam igualmente consideradas. Com relação ao consentimento informado no tratamento de saúde, considere-se que é o meio que tem o paciente para permitir o tratamento escolhido, e meio que tem o profissional de saúde para realizá-lo, aplicando de toda sua diligência e conhecimentos no paciente sob sua responsabilidade. Assim, tendo em vista o aduzido sobre o princípio da igualdade, passaremos agora a explorar o direito a saúde e de que modo ele fundamenta o termo de consentimento informado. Uma vez legalmente amparado o direito à vida, na busca de sua proficiência a legislação brasileira também ampara o direito à saúde. Constituição federal brasileira traz o direito à saúde dentre os direitos sociais legalmente assegurados em seu art. 6º[2] e art. 196[3]Já a Organização Mundial define a Saúde como:“O mais perfeito bem estar Fisico, Social e Mental, portanto um direito de toda pessoa humana, devendo receber tutela do Estado” A Constituição Brasileira garante o direito a saúde e por lógica juridica fundamenta-se o TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO, uma vez que, o mesmo tem como objetivo final a manutenção digna do direito à saúde. O consentimento informado visa assegurar um esclarecimento ao paciente para que este possa tomar conhecimento dos riscos que envolvem sua saúde, das possíveis soluções e para que possa tomar uma decisão acertada no intuito de proteger este bem jurídico constitucionalmente protegido que é a sua saúde. Com a tomada de decisão esclarecida, o paciente autoriza a prática de intervenção em sua saúde, com o intuito de prevenção, detecção, cura ou atenuação de doenças por parte do profissional competente. Assim, uma vez tecidos breves esclarecimentos acerca do direito a saúde como fundamento jurídico, do termo de consentimento informado, passaremos a avaliar a relação do termo de consentimento informado e os direitos da personalidade. Amplamente amparados pelo Código civil de 2002, os direitos da personalidade ganharam destaque no cenário jurídico moderno. O tema é trazido pelo Código Civil brasileiro vigente nos artigos 11 ao 21, os quais abordam diversos temas conexos à fundamentação do termo de consentimento informado. Pode-se dizer que os direitos de personalidade têm sua base e estrutura na Constituição Federal (direito à vida, à dignidade, à liberdade, à igualdade, à integridade pessoal), mas restam dispostos especificamente no código civil. Além das disposições civilisticas, há outras legislações infraconstitucionais que amparam os direitos da personalidade, tais como:- Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069 de 13.07.1990) Lei dos Transplantes (Lei 9434, de 04.02.1997) Lei dos Direitos Autorais (Lei 9610, de 19.02.1998) Código penal, o qual trata de dispositivos como crimes contra a vida e da saúde, honra, lesões corporais, constrangimento ilegal, entre outros A Constituição Federal expressamente se refere aos direitos da personalidade, no art. 5º, X, que proclama:-  “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra, e a imagem das pessoas, assegurando o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. O Código Civil, por sua vez, preceitua em artigo 11[4]: “Na conceituação de Maria Helena Diniz[5], os direitos da personalidade são direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, a sua integridade física (vida, alimentos, próprio corpo vivo ou morto, corpo alheio vivo ou morto, partes separadas do corpo vivo ou morto); a sua integridade intelectual (liberdade de pensamento, autoria cientifica, artística e literária); e a sua integridade moral (honra, recato, segredo profissional, doméstico, identidade pessoal, familiar e social.” Por serem direitos subjetivos, os direitos da personalidade podem e devem ser defendidos por seus titulares. Sempre com o intuito de preservar sua própria dignidade e assegurar o cumprimento dos diversos preceitos constitucionais que a asseguram. Trata-se de um leque de direitos subjetivos muito amplos, sendo que para o objeto deste estudo devemos destacar apenas alguns que são diretamente conexos ao tema, como por exemplo, o direito à integridade física e moral. Os direitos da personalidade são essenciais, inatos, absolutos, irrenunciáveis, indisponíveis, imprescindíveis e extrapatrimoniais Sendo assim, por ser o direito à integridade física e moral um direito da personalidade e, portanto indisponível, podemos observar sua correlação direta como fundamento do termo de consentimento informado. Uma vez que o termo de consentimento informado tem por escopo fornecer informações precisas ao paciente sobre seu estado de saúde e validar possíveis procedimentos que visam assegurar sua integridade física e moral. Conclusão A obrigação do profissional de medicina pelos seus atos profissionais pode ser de meio ou de resultado, devendo-se sempre analisar de forma concreta o procedimento médico realizado e o acordo pactuado entre este e o paciente, definido no termo de concentimento informado, termo esse amplamente fundamentado nesse artigo, demonstrando sua real importancia no tratamento do paciente. Agindo assim o médico deixa claro sua conduta diante de cada caso e sabendo que cada paciente é um ser individualizado e não pode o profissional médico tratar mesmo que só na conduta como se todos sejam iguais, evitando assim um processo jurídico com com senteça contrario a sua carreira, muitas vezes promissora. Necessário se faz, portanto, que os referidos profissionais da área da saúde médicos, enfermagem, entres outros, sejam "reeducados", no sentido de proteger-se documentalmente, antes mesmo de uma ação indenizatória, nos moldes do ordenamento jurídico vigente, de forma a facilitar a prova de sua inocência na instrução processual de um eventual procedimento de indenização a seu desfavor. Conhecer melhor o que venha ser a verdadeira Iatrogenia, muitas vezes utilizadas por interesse dos advogados, defensores dos médicos que cometem Erros tanto na Imprudência e ou Negligência. Finalizamos, lembrando que cabe ao Magistrado responsável pela causa coibir as extrapolações processuais daqueles pacientes que ingressam com um processo contra determinado médico, ou profissional da saúde visando apenas o enriquecimento ilícito.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-142/direito-medico-e-o-consentimento-informado/
O direito humano à alimentação adequada em uma ótica regionalizada: uma reflexão sobre a universalização da alimentação a partir de uma perspectiva da bioética
O objeto do presente estudo reside na análise da juridificação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) no ordenamento jurídico nacional, em especial devido ao fortalecimento da temática, alçada à condição de política pública, a partir do ano de 2003, com a reconstrução do conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), reclamando maior atenção à promoção de tal direito, em especial no contingente populacional em situação de vulnerabilidade social (insegurança alimentar e nutricional), com vistas a reduzir os alarmantes índices até então existentes. . A discussão existente em torno da alimentação, na condição de direito fundamental, atingiu seu ápice com a Emenda Constitucional nº 64/2010, alterando a redação do artigo 6º da Constituição Federal de 1988, incluindo-a como direito. Inicialmente, a universalização do DHAA traduz-se em assegurar o respeito, a proteção, a promoção e o provimento, desse direito a todos os seres humanos, independente de sexo e orientação sexual, idade, origem étnica, cor da pele, religião, opção política, ideologia ou qualquer outra característica pessoal ou social. Acresça-se que fartas são as evidências de que tal universalização é uma árdua tarefa que incumbe aos Estados e governos de alguns países. Ainda que existam ganhos importantes na órbita internacional, quanto à inclusão do tema na agenda social e política, e conquistas normativas e judiciais, subsiste um caminho longo a ser trilhado Em uma perspectiva mais restrita, o estado do Espírito Santo apresenta índices expressivos de segurança alimentar e nutricional. Porém, ao examinar a temática em uma perspectiva regionalizada, percebe-se que a promoção da SAN e do DHAA é um desafio, em especial devido ao número elevado de indivíduos em vulnerabilidade social (insegurança alimentar). Nesta esteira, ao se valer dos fundamentos alicerçantes da Bioética, o presente visa promover um exame dos esforços envidados na região sul capixaba no que se refere ao DHAA.
Biodireito
1 INTRODUÇÃO Com o findar da Segunda Grande Guerra Mundial, especialmente com a queda do regime nazista, verificou-se um alinhamento dos discursos internacionais voltados para a promoção dos direitos humanos, impulsionado, sobremaneira, pelos eventos nefastos produzidos durante o período bélico.  Assim, é plenamente possível assinalar que o direito estende, maciçamente, a sua incidência sobre novos assuntos sociais que eram tratados, principalmente, de maneira informal no mundo da vida tradicional. Cuida destacar que a regulação jurídica, no que se refere a novos âmbitos da sociedade, é densamente caracterizada pela extensão do direito em consonância com o desmembramento da matéria jurídica global em múltiplas searas peculiares que reclamam especificidades próprias, a exemplo do que se observa com a busca pela erradicação de pobreza e desigualdade social e a expansão continua dos direitos humanos. Vivencia-se, assim, uma constante juridificação de temáticas sociais, buscando, continuamente, a promoção dos indivíduos e de seus respectivos direitos fundamentais. Segundo Andrews (2010, p. 09), “o termo ‘juridificação’ tem um sentido próximo ao termo ‘judicialização’, que corresponde à substituição do debate político pela regulação legal; ainda assim, ele tem um sentido mais abrangente”, porquanto faz referência à formalização de todas as relações sociais e não somente à substituição do debate por normas e leis. Nessa perspectiva, a juridificação é descrita como um processo pelo qual os conflitos humanos são inteiramente despidos de sua dimensão existencial própria por meio do formalismo jurídico, sofrendo, via de consequência, desnaturação em razão da respectiva submissão a processos de resolução de natureza jurídica. Trata-se, dessa maneira, de conferir aspecto jurídico a temas que florescem na dinamicidade da sociedade, a fim de dispensar tutela e salvaguarda jurídica. Assim, é possível frisar que, ao se emprestar a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas como ponto de análise ao tema em destaque, os direitos humanos sofreram alargamento concomitantemente com as ondas de juridificação. Dessa maneira, não causa perplexidade entre os estudiosos do assunto a construção de vasta literatura debruçada sobre os direitos humanos, permeando uma pluralidade de áreas do conhecimento. “Além disso, os assuntos relacionados aos direitos humanos tendem a pautar os debates acadêmicos, sobretudo, por seu aspecto de transversalidade, tendo em vista tratar-se de um tem que interessa às mais distintas áreas do saber” (BORGES, 2008, p. 73). Trata-se de temática que ultrapassa os meandros do direito, comportando uma discussão polissêmica e diversificada, refletindo a complexidade do assunto, notadamente em decorrência de sua influência fluída e pluralizada. O aspecto positivista do direito e o papel desempenhado pelos direitos humanos não podem ser minorados e, certamente, repousa sobre tal aspecto a função da ciência jurídica em busca da construção de tal concepção, objetivando, assim, a continua construção e ampliação de tais temas, permitindo que sejam compreendidos temas contemporâneos, dotados de significação nova e refletindo os anseios da coletividade. As estruturas normativas e os efeitos advindos das normas jurídicas são instrumentos dotados de racionalidade, os quais contribuem para os modos de ação e de compreensão do controle social por meio do direito. As diversificadas situações produzidas na contemporaneidade reclamam um alargamento da estrutura jurídica. “Em função dessa leitura é sinalizada que a interferência sistêmica no mundo da vida traz consigo, inevitavelmente, processos de juridificação constituídos pela tendência de as sociedades modernas ampliarem significativamente a extensão do direito escrito” (BANNWART JÚNIOR; OLIVEIRA, 2009, p. 2.217). Ora, observa-se um cenário dotado de densa mutabilidade e diversificação de estruturas, impulsionado, sobremaneira, pela dinamicidade contemporânea, logo, é imprescindível a edificação de uma ótica jurídica concatenada com tal moldura. Assim, com o objetivo de compreender a juridificação dos direitos, é necessário compreender a paulatina construção dos direitos humanos, os quais deram azo ao manancial de direitos e garantias fundamentais, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. “A evolução histórica dos direitos inerentes à pessoa humana também é lenta e gradual. Não são reconhecidos ou construídos todos de uma vez, mas sim conforme a própria experiência da vida humana em sociedade” (SILVEIRA; PICCIRILLO, 2009, s.p.). Observa-se, sobretudo nas últimas décadas do século XX e no início do século XXI, uma busca desenfreada pelo alargamento de direitos humanos fundamentais, a fim de corresponder às inerentes necessidades apresentadas pelo indivíduo, no que toca ao seu desenvolvimento, com o escopo primordial da promoção do ser humano, o que é retratado em um sucedâneo de compromissos internacionais entre as nações voltados pela erradicação da pobreza e da desigualdade. No cenário interno, tal busca representa a perseguição dos objetivos fundamentais da República, expressamente disposto no artigo 3º, inciso III. Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos. 2 A CONSTRUÇÃO FILOSÓFICA DA LOCUÇÃO DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: A POSSIBILIDADE DE ALARGAMENTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS PROPICIADO PELOS CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS É perceptível que a edificação de um Estado Democrático de Direito, na contemporaneidade, guarda umbilical relação, no cenário nacional, com o ideário da dignidade da pessoa humana, sobremaneira devido à proeminência concedida ao tema na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.  Ao lado disso, não se pode perder de vista que, em decorrência da sorte de horrores perpetrados durante a Segunda Grande Guerra Mundial, os ideários kantianos foram rotundamente rememorados, passando a serem detentores de vultosos contornos, vez que, de maneira realista, foi possível observar as consequências abjetas provenientes da utilização do ser humano como instrumento de realização de interesses. A fim de repelir as ações externadas durante o desenrolar do conflito supramencionado, o baldrame da dignidade da pessoa humana foi maciçamente hasteado, passando a tremular como flâmula orientadora da atuação humana, restando positivado em volumosa parcela das Constituições promulgadas no pós-guerra, mormente as do Ocidente. “O respeito à dignidade humana de cada pessoa proíbe o Estado e dispor de qualquer indivíduo apenas como meio para outro fim, mesmo se for para salvar a vida de muitas outras pessoas” (HABERMAS, 2012, p. 09). É perceptível que a moldura que enquadra a construção da dignidade da pessoa humana, na condição de produto da indignação dos humilhados e violados por períodos de intensos conflitos bélicos, expressa um conceito fundamental responsável por fortalecer a construção dos direitos humanos, tal como de instrumentos que ambicionem evitar que se repitam atos atentatórios contra a dignidade de outros indivíduos. Por óbvio, a República Federativa do Brasil, ao estruturar a Constituição Cidadã de 1988 concedeu, expressamente, relevo ao princípio da dignidade da pessoa humana, sendo colocada sob a epígrafe “dos princípios fundamentais”, positivado no inciso III do artigo 1º. Há que se destacar, ainda, que o aludido preceito passou a gozar de status de pilar estruturante do Estado Democrático de Direito, toando como fundamento para todos os demais direitos. Nesta trilha, também, há que se enfatizar que o Estado é responsável pelo desenvolvimento da convivência humana em uma sociedade norteada por caracteres pautados na liberdade e solidariedade, cuja regulamentação fica a encargo de diplomas legais justos, no qual a população reste devidamente representada, de maneira adequada, participando e influenciando de modo ativo na estruturação social e política. Ademais, é permitida, inda, a convivência de pensamentos opostos e conflitantes, sendo possível sua expressão de modo público, sem que subsista qualquer censura ou mesmo resistência por parte do Ente Estatal. Nesse ponto, verifica-se que a principal incumbência do Estado Democrático de Direito, em harmonia com o ventilado pelo dogma da dignidade da pessoa humana, está jungido na promoção de políticas que visem a eliminação das disparidades sociais e os desequilíbrios econômicos regionais, o que clama a perseguição de um ideário de justiça social, ínsito em um sistema pautado na democratização daqueles que detém o poder. Ademais, não se pode olvidar que “não é permitido admitir, em nenhuma situação, que qualquer direito viole ou restrinja a dignidade da pessoa humana” (RENON, 2009, p. 19), tal ideário decorre da proeminência que torna o preceito em comento em patamar intocável e, se porventura houver conflito com outro valor constitucional, aquele há sempre que prevalecer. Frise-se que a dignidade da pessoa humana, em razão da promulgação da Carta de 1988, passou a se apresentar como fundamento da República, sendo que todos os sustentáculos descansam sobre o compromisso de potencializar a dignidade da pessoa humana, fortalecido, de maneira determinante, como ponto de confluência do ser humano. Com o intuito de garantir a existência do indivíduo, insta realçar que a inviolabilidade de sua vida, tal como de sua dignidade, faz-se proeminente, sob pena de não haver razão para a existência dos demais direitos. Neste diapasão, cuida colocar em saliência que a Constituição de 1988 consagrou a vida humana como valor supremo, dispensando-lhe aspecto de inviolabilidade. É evidenciável que princípio da dignidade da pessoa humana não é visto como um direito, já que antecede o próprio Ordenamento Jurídico, mas sim um atributo inerente a todo ser humano, destacado de qualquer requisito ou condição, não encontrando qualquer obstáculo ou ponto limítrofe em razão da nacionalidade, gênero, etnia, credo ou posição social. Nesse viés, o aludido bastião se apresenta como o maciço núcleo em torno do gravitam todos os direitos alocados sob a epígrafe “fundamentais”, que se encontram agasalhados no artigo 5º da CF/88. Ao perfilhar-se à umbilical relação nutrida entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, podem-se tanger dois aspectos primordiais. O primeiro se apresenta como uma ação negativa, ou passiva, por parte do Ente Estatal, a fim de evitar agressões ou lesões; já a positiva, ou ativa, está atrelada ao “sentido de promover ações concretas que, além de evitar agressões, criem condições efetivas de vida digna a todos” (BERNARDO, 2006, p. 236). Comparato alça a dignidade da pessoa humana a um valor supremo, eis que “se o direito é uma criação humana, o seu valor deriva, justamente, daquele que o criou. O que significa que esse fundamento não é outro, senão o próprio homem, considerando em sua dignidade substância da pessoa” (1998, p. 76), sendo que as especificações individuais e grupais são sempre secundárias. A própria estruturação do Ordenamento Jurídico e a existência do Estado, conforme as ponderações aventadas, só se justificam se erguerem como axioma maciço a dignidade da pessoa humana, dispensando esforços para concretizarem tal dogma. Mister faz-se pontuar que o ser humano sempre foi dotado de dignidade, todavia, nem sempre foi (re)conhecida por ele. O mesmo ocorre com o sucedâneo dos direitos fundamentais do homem que, preexistem à sua valoração, os descobre e passa a dispensar proteção, variando em decorrência do contexto e da evolução histórico-social e moral que condiciona o gênero humano. Não se pode perder de vista o corolário em comento é a síntese substantiva que oferta sentido axiológico à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, determinando, conseguintemente, os parâmetros hermenêuticos de compreensão. A densidade jurídica do princípio da dignidade da pessoa humana, no sistema constitucional adotado, há de ser, deste modo, máxima, afigurando-se, inclusive, como um corolário supremo no trono da hierarquia das normas. A interpretação conferida pelo corolário em comento não é para ser procedida à margem da realidade. Ao reverso, alcançar a integralidade da ambição contida no bojo da dignidade da pessoa humana é elemento da norma, de modo que interpretações corretas são incompatíveis com teorização alimentada em idealismo que não as conforme como fundamento. Atentando-se para o princípio supramencionado como estandarte, o intérprete deverá observar para o objeto de compreensão como realidade em cujo contexto a interpretação se encontra inserta. Ao lado disso, nenhum outro dogma é mais valioso para assegurar a unidade material da Constituição senão o corolário em testilha. Assim, ao se considerar os valores e ideários por ele abarcados, não é possível perder de vista que as normas, na visão garantística consagrada no ordenamento jurídico nacional, reclamam uma interpretação em conformidade com o preceito analisado até o momento. Diante de tal cenário, os valores de igualdade, fraternidade e solidariedade recebem especial relevância em tempos contemporâneos e clamam, assim, por posicionamentos que busquem promover a inclusão por parte dos poderes constituídos em prol da busca do bem comum. Pozzoli (2003, p. 109) afirma que uma nova sociedade, fundada em valores fraternos, teria o amor como princípio dinâmico social. Assim, a sociedade é composta por pessoas humanas e tem como fim precípuo o bem comum coletivo, não significando apenas o bem individual, mas sim o empenho de cada um na realização da vida social dos demais das outras pessoas. O bem comum de um ser humano está calcado na realização do bem comum do outro ser humano. Repousa em tal ideário o verdadeiro sentido do bem comum de uma humanidade. Ainda em relação à proeminência da dignidade da pessoa humana, inclusive no que tange ao alargamento dos direitos fundamentais, consoante a dicção de Rocha, o perfil do Estado Social repousa no fato de ser um Estado intervencionista em duplo aspecto: por um lado, intervém na ordem econômica, seja direcionando e planejando o desenvolvimento econômico, seja promovendo inversões nos ramos da economia considerados estratégicos; por outro turno, intervém no âmbito social, no qual dispensa prestações de bens e serviços e realiza outras atividades visando à elevação do nível de vidas das populações consideradas mais carentes. “O desenvolvimento humano a ser perseguido pelos Estados nacionais liga-se, intimamente, na qualidade de vida do seu povo e a fome, de modo particular, mostra-se como uma forma de afastar o indivíduo da participação nos destinos da democracia de um Estado” (MEDEIROS; SILVA; ARAÚJO, s.d., p. 32). Ocorre, porém, que os famintos excluídos são observados como impotentes para reivindicar direitos, subordinando-se a edificar uma cultura de ver a pobreza social como realidade naturalmente construída. Neste aspecto, Rocha (1995, p. 131), ao discorrer acerca da proeminência do Estado em assumir a função de agente de transformação social, assevera que determinadas mudanças ocorridas em tal ambiente repercuti significativamente. Ora, nas funções do direito, que deixou de ser apenas uma técnica de mediação de comportamentos para promover a transformação em técnica de planificação e planejamento, ou seja, as normas jurídicas passaram a arvorar não apenas regras contendo hipóteses de incidência e consequências jurídicas, mas também escopos a serem alcançados, no plano concreto. Com destaque, o direito à alimentação adequada, em especial, passa a compor a rubrica dos direitos fundamentais, definido expressamente no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), do qual o Brasil é signatário: “ARTIGO 11 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria continua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento. 2. Os Estados Partes do presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, que se façam necessárias para: a) Melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização mais eficazes dos recursos naturais; b) Assegurar uma repartição equitativa dos recursos alimentícios mundiais em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores quanto dos exportadores de gêneros alimentícios” (BRASIL, 1992, s.p.). Amartya Sen (2000, p. 189), ao abordar a temática em comento, explicita que uma pessoa pode ser forçada a passar fome, ainda que haja abundância de alimentos ao seu redor, em decorrência de uma minoração da renda, em razão, por exemplo, de desemprego ou um colapso no mercado dos produtos que essa pessoa produz e vende para se sustentar. Doutro viés, mesmo quando um estoque de alimentos passa a declinar acentuadamente um país ou região, todos podem ser salvos da fome, desde que haja uma divisão melhor dos alimentos disponíveis, promovendo-se, para tanto, a criação de emprego e renda adicionais para as potenciais vítimas da fome. 3 O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA (DHAA) ALÇADO AO STATUS DE DIREITO FUNDAMENTAL É fato que alimentação e nutrição são requisitos básicos para a promoção e a proteção da saúde, viabilizando a afirmação plena do potencial de crescimento e desenvolvimento humano, com qualidade de vida e cidadania, tal como estruturação de condições sociais mais próximas das ideais. Podestá (2011, p. 27-28) destaca que a locução segurança alimentar, durante o período da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), passou a ser empregado na Europa, estando associado estritamente com o de segurança nacional e a capacidade de cada país de produzir seu próprio alimento, de maneira a não ficar vulnerável a possíveis embargos, boicotes ou cercos, em decorrência de políticas ou atuações militares. Contudo, posteriormente à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sobretudo com a constituição da Organização das Nações Unidas (ONU), o conceito da locução supramencionada passa a se fortalecer, porquanto compreendeu. Assim, nas recém-criadas organizações intergovernamentais, era possível observar as primeiras tensões políticas entre os organismos que concebiam o acesso ao alimento de qualidade como um direito humano, a exemplo da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), e alguns que compreendiam que a segurança alimentar seria assegurada por mecanismos de mercado, tal como se verificou no Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco Mundial. Após o período supramencionado, “a segurança alimentar foi hegemonicamente tratada como uma questão de insuficiente disponibilidade de alimentos” (PODESTÁ, 2011, p. 28). Passam, então, a ser instituídas iniciativas de promoção de assistência alimentar, que foram estabelecidas em especial, com fundamento nos excedentes de produção dos países ricos. Havia a visão de que a insegurança alimentar decorria da produção insuficiente de alimentos nos países pobres. Todavia, nas últimas décadas, a concepção conceitual de segurança alimentar que, anteriormente, estava restrita ao abastecimento, na quantidade apropriada, foi ampliada, passando a incorporar, também, o acesso universal aos alimentos, o aspecto nutricional e, por conseguinte, as questões concernentes à composição, à qualidade e ao aproveitamento biológico. Em uma perspectiva individual e na escala coletiva, sobreditos atributos estão, de maneira expressa, consignados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, os quais foram, posteriormente reafirmados no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos e Sociais e incorporados à legislação nacional em 1992 (BRASIL, 1992, s.p.). Historicamente, a inter-relação entre a segurança alimentar e nutricional e o direito humano à alimentação adequada (DHAA) começa a ser delineada a partir do entendimento existente acerca dos direitos humanos na Declaração Universal de 1948. Durante aludido período histórico, a principal preocupação acerca do tema voltava-se para a ênfase acerca da acepção de que os seres humanos, na condição de indivíduos pertencentes a uma sociedade, eram detentores de direitos que deveriam ser reconhecidos e expressos nas dimensões das quais faziam parte, como alude Albuquerque (2009, p. 896). Para tanto, contribuiu para inserir a proposta de que, a efetivação dos direitos, seria imprescindível a inclusão das questões sociais, econômicas, civis e políticas, as quais foram essenciais para identificá-los como direitos atrelados às liberdades fundamentais e à dignidade humana. A partir de tais ponderações, é possível frisar que a concretização dos direitos humanos, sobretudo o direito humano à alimentação adequada (DHAA), abarca responsabilidade por parte tanto do Estado quanto da sociedade e dos indivíduos. Assim, nas três últimas décadas, denota-se que a segurança alimentar e nutricional passou a ser considerada como requisito fundamental para afirmação plena do potencial de desenvolvimento físico, mental e social de todo o ser humano, superando a tradicional concepção que alimentação é o mero ato de ingerir alimentos. A Cúpula de Roma de 1996 estabeleceu, em órbita internacional, que existe segurança alimentar quando as pessoas têm, a todo o momento, acesso físico e econômico a alimentos seguros, nutritivos e suficientes para satisfazer as suas necessidades dietéticas e preferências alimentares, com o objetivo de levarem uma vida ativa e sã. Afirma Podestá que “ao Estado cabe respeitar, proteger e facilitar a ação de indivíduos e comunidades em busca da capacidade de alimentar-se de forma digna, colaborando para que todos possam ter uma vida saudável, ativa, participativa e de qualidade” (PODESTÁ, 2011, p. 26). Dessa maneira, nas situações em que seja inviabilizado ao indivíduo o acesso a condições adequadas de alimentação e nutrição, tal como ocorre em desastres naturais (enchentes, secas, etc.) ou em circunstâncias estruturais de penúria, incumbe ao Estado, sempre que possível, em parceria com a sociedade civil, assegurar ao indivíduo a concretização desse direito, o qual é considerado fundamental à sua sobrevivência. A atuação do Estado, em tais situações, deve estar atrelada a medidas que objetivem prover as condições para que indivíduos, familiares e comunidade logrem êxito em se recuperar, dentro do mais breve ínterim, a capacidade de produzir e adquirir sua própria alimentação. “Os riscos nutricionais, de diferentes categorias e magnitudes, permeiam todo o ciclo da vida humana, desde a concepção até a senectude, assumindo diversas configurações epidemiológicas em função do processo saúde/doença de cada população” (BRASIL, 2008, p. 11). Hirai (2011, p. 74) aponta que os elementos integrativos da concepção de segurança alimentar e nutricional foram sofrendo um processo de ampliação, passando, em razão da contemporânea visão, a extrapolar o entendimento ordinário de alimentação como simples forma de reposição energética. Convém destacar que, no território nacional, o novo conceito de segurança alimentar foi consolidado na I Conferência Nacional de Segurança Alimentar, em 1994. “Assim, no conjunto dos componentes de uma política nacional, voltada para a segurança alimentar e nutricional, estão o crédito agrícola, inclusive o incentivo ao pequeno agricultor; a avaliação e a adoção de tecnologias agrícolas e industriais; os estoques estratégicos; o cooperativismo; a importação, o acesso, a distribuição, a conservação e o armazenamento de alimentos, o manejo sustentado dos recursos naturais, entre outros” (BRASIL, 2008, p.11). No cenário nacional, as ações voltadas a garantir a segurança alimentar dão em consequência ao direito à alimentação e nutrição, ultrapassando, portanto, o setor de Saúde e recebe o contorno intersetorial, sobretudo no que se refere à produção e ao consumo, o qual compreende, imprescindivelmente, a capacidade aquisitiva da população e a escolha dos alimentos que devem ser consumidos, inclusive no que tange aos fatores culturais que interferem em tal seleção. Verifica-se que o aspecto conceitual de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), justamente, materializa e efetiva o direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade satisfatória, de modo a não comprometer o acesso a outras necessidades essenciais da dignidade da pessoa humana. “Nunca é demais lembrar que o direito humano à alimentação adequada tem por pano de fundo as práticas alimentares promotoras de saúde, atinentes à diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis” (MEDEIROS; SILVA; ARAÚJO, s.d., p. 34.). Atualmente, consoante o escólio de Hirai (2011, p. 24), as atenções se voltam para as dimensões sociais, ambientais e culturais que estão atreladas na origem dos alimentos. Ademais, a garantia permanente de segurança alimentar e nutricional a todos os cidadãos, em decorrência da amplitude e abrangência das questões que compreende, passa a reclamar diversos compromissos, tais como: políticos, sociais e culturais, objetivando assegurar a oferta e o acesso universal a alimentos de qualidade nutricional e sanitária, atentando-se, igualmente, para o controle da base genética do sistema agroalimentar. De maneira expressa, a Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006 (Lei Orgânica da Segurança Alimentar), estabeleceu, em seu artigo 2º, que “[…] a alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população” (BRASIL, 2006, s.p.). Igualmente, o diploma legal supramencionado estabelece que a segurança alimentar e nutricional consiste na realização na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem que haja comprometimento do acesso a outras necessidades essenciais, tendo como fundamento práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. Obtempera Ribeiro (2013, p. 38) que o direito humano à alimentação adequada não consiste simplesmente em um direito a uma ração mínima de calorias, proteínas e outros elementos nutritivos concretos, mas se trata de um direito inclusivo, porquanto deve conter todos os elementos nutritivos que uma pessoa reclama para viver uma vida saudável e ativa, tal como os meios para ter acesso. A partir da Lei Orgânica da Segurança Alimentar (LOSAN), a segurança alimentar e nutricional passou a abranger a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio de produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, do processamento, da industrialização, da comercialização, incluindo-se os acordos internacionais, do abastecimento e da distribuição dos alimentos, compreendendo a água, bem como a geração de emprego e da redistribuição de renda. De igual forma, a locução supramencionada compreende, ainda, a conservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos, bem como a promoção da saúde, da nutrição e da alimentação da população, incluindo-se os grupos populacionais específicos e populações em situação de vulnerabilidade sociais. A LOSAN abrange, ainda, a garantia da qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos, bem como seu aproveitamento, estimulando práticas alimentares e estilos de vida saudáveis que respeitem a diversidade étnica e racial e cultural da população. Está inserido, igualmente, na rubrica em análise, a produção de conhecimento e o acesso à informação, bem como a implementação de políticas públicas e estratégias sustentáveis e participativas de produção, comercialização e consumo de alimentos, respeitando-se as múltiplas características culturais do País. Por derradeiro, a visão existente em torno do DHAA alcança como ápice, em sede de ordenamento jurídico interno, a Emenda Constitucional nº 64, de 4 de Fevereiro de 2010, responsável por introduzir na redação do artigo 6º, o direito fundamental em comento, incluindo-o no rol de direitos fundamentais sociais. Neste aspecto, para a consecução do DHAA, é importante explicitar que o alimento deve reunir uma tríade de aspectos característicos, a saber: disponibilidade, acessibilidade e adequação. No que concerne à disponibilidade do alimento, cuida destacar que, quando requisitado por uma parte, a alimentação deve ser obtida dos recursos naturais, ou seja, mediante a produção de alimentos, o cultivo da terra e pecuária, ou por outra forma de obter alimentos, a exemplo da pesca, caça ou coleta. Além disso, o alimento deve estar disponível para comercialização em mercados e lojas. A acessibilidade alimentar, por seu turno, traduz-se na possibilidade de obtenção por meio do acesso econômico e físico aos alimentos. “La accesibilidad económica significa que los alimentos deben estar al alcance de las personas desde el punto de vista económico” (ONU, s.d., p. 03). Ainda no que concerne à acessibilidade, as pessoas devem ser capazes de adquirir o alimento para estruturar uma dieta adequada, sem que haja comprometimento das demais necessidades básicas. Neste aspecto, ainda, a acessibilidade física materializa-se pela imperiosidade dos alimentos serem acessíveis a todos, incluindo indivíduos fisicamente vulneráveis, como crianças, enfermos, deficientes e pessoas idosas. De igual modo, a acessibilidade do alimento estabelece que deve ser assegurado a pessoas que estão em ares remotas e vítimas de conflitos armados ou desastres naturais, tal como a população encarcerada. Renato Sérgio Maluf, ao apresentar sua conceituação sobre segurança alimentar (SA), faz menção ao fato de que se deve considerar aquela como “condições de acesso suficiente, regular e a baixo custo a alimentos básicos de qualidade. Mais que um conjunto de políticas compensatórias, trata-se de um objetivo estratégico […] voltado a reduzir o peso dos gastos com alimentação” (MALUF, 1999, p. 61), em sede de despesas familiares. Por derradeiro, o alimento adequado pressupõe que a oferta de alimentos deve atender às necessidades alimentares, considerando a idade do indivíduo, suas condições de vida, saúde, ocupação, gênero etc. “Los alimentos deben ser seguros para el consumo humano y estar libres de sustancias nocivas, como los contaminantes de los procesos industriales o agrícolas, incluidos los residuos de los plaguicidas, las hormonas o las drogas veterinarias” (ONU, s.d., p. 04). Ao lado disso, um alimento adequado, ainda, deve ser culturalmente aceitável pela população que o consumirá, estando inserido em um contexto de formação do indivíduo, não contrariando os aspectos inerentes à formação daquela. 4 O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA EM UMA ÓTICA REGIONALIZADA: UMA REFLEXÃO SOBRE A UNIVERSALIZAÇÃO DA ALIMENTAÇÃO A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA DA BIOÉTICA A universalização do DHAA traduz-se em assegurar o respeito, a proteção, a promoção e o provimento desse direito a todos os seres humanos, independente de sexo e orientação sexual, idade, origem étnica, cor da pele, religião, opção política, ideologia ou qualquer outra característica pessoal ou social. Acresça-se que fartas são as evidências de que tal universalização é uma árdua tarefa que incumbe aos Estados e governos de alguns países. Ainda que existam ganhos importantes na órbita internacional, quanto à inclusão do tema na agenda social e política, e conquistas normativas e judiciais, subsiste um caminho longo a ser trilhado. “Com efeito, no mundo todo, o problema da universalização do DHAA não é apenas jurídico, mas, num sentido mais amplo, é também político, pois demanda mudanças estruturais, negociação e adoção de medidas concretas capazes de dar operacionalidade a esse direito social” (BRASIL, 2011, p. 11) nos ordenamentos jurídicos internos, o que se dá através de políticas e programas públicos voltados para a promoção e garantia da SAN. Ao lado disso, universalizar o DHAA compreende a concretização dos princípios da indivisibilidade, da interdependência e inter-relação dos direitos humanos, perseguindo a máxima isonômica que todos são igualmente necessários para assegurar uma vida digna e encontram-se organicamente vinculados. Dessa maneira, a vinculação de um reclama a garantia do exercício dos demais, não sendo, portanto, possível falar em liberdade ou em saúde sem uma alimentação adequada, sem acesso à água e a terra. Nesse cenário, é interessante que do Estado Social materializa, segundo o entendimento de Doehring (2008, p. 361), a ideia de uma justiça específica inserida dentro do Texto Constitucional que, entretanto, deve encontrar o seu limite, em que a previsibilidade e a segurança jurídica, ou seja, a concepção do Estado de direito, no sentido formal, será alcançado. Assim, partindo da premissa que orbita em torno da conformação do Estado Brasileiro, há que se reconhecer incumbe deveres quanto à efetividade dos direitos sociais, em especial no que toca à promoção e concretização do DHAA. Desse modo, “ao Estado, cabe prioritariamente a implementação de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, vez que a fome é uma questão que deve estar na agenda prioritária de atuação do poder público” (SEM, 2000, p. 08). Até a introdução do DHAA no Texto Constitucional, havia um debate acerca da possibilidade de exigi-lo tanto na seara administrativa quanto no judiciário. Entretanto, com a introdução daquele na Constituição Cidadã, tal debate não mais subsiste, materializando, doutro ponto, obrigações do Estado e responsabilidades de diferentes atores sociais em relação à concreção e promoção plena, assegurando a todo indivíduo o acesso universal. Examinando a questão sob uma perspectiva da SAN, é necessário resgatar alguns conceitos discorridos no curso da pesquisa, em especial no que se refere ao fato da Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN) instituir um sistema nacional pautado no direito humano à alimentação adequada, culminando, posteriormente, na positivação de tal direito no artigo 6º da CF/88, e na soberania alimentar. Calcado nos princípios da universalidade, participação social, intersetorialidade e equidade, o sistema deve assegurar formas de produzir, abastecer, comercializar e consumir alimentos que sejam suscetíveis a partir de um viés socioeconômico e ambiental, respeitando a diversidade cultural e que sejam promotoras da saúde. Assim, a SAN coloca-se como um objetivo de políticas públicas, na medida em que ela estabelece as orientações a serem seguidas em vários campos, bem como requer mecanismos e instrumentos permanentes para permitir a consecução. Neste aspecto, a promoção da SAN possui três referências: a) direito humano à alimentação adequada; b) soberania alimentar; c) relação com a promoção do desenvolvimento. Dessa maneira, a SAN alude ao direito de todo cidadão e cidadã de estar seguro(a) em relação aos alimentos e à alimentação nos aspectos de suficiência (proteção contra a fome e a desnutrição), qualidade (prevenção de doenças associadas à alimentação) e adequação (preservação da cultura familiar). Burlandy et all explicitam que “assegurar a alimentação significa assegurar o direito elementar à vida. Por essa razão, o direito humano à alimentação adequada é um dos princípios ao qual se subordina a SAN” (2010, p. 38-39). No que toca ao ideário da soberania alimentar, é possível afirmar que SAN sustenta o direito dos povos definirem suas estratégias de produção e consumo de alimentos que necessitam. A terceira referência relaciona o objetivo da SAN com a promoção do desenvolvimento, permitindo afirmar que há uma questão alimentar nos processos de desenvolvimento nos países e regiões e a forma como eles a enfrentam, podendo contribuir para que tais processos promovam crescente equidade social e a melhoria sustentável da qualidade de vida de sua população. A observação comparativa entre os dados da situação de SAN revela grandes semelhanças na condição existente dos domicílios brasileiros e os capixabas, sendo verificado, inclusive, no gráfico 01, ligeira melhora no quadro alimentar da população do Espírito Santo, tendo em vista que a maior parcela desta se encontra em estado de bem-estar alimentar e nutricional, ao se adotar como referência a média nacional. Contudo, convém frisar que, em ambos os contextos de espaço-tempo, a ocorrência da IAN é fomentada e a fome absoluta ou a permanente privação de bens vitais, torna-se situação insustentável (LUCCI, 2013, p. 217). A situação envolvendo a questão de segurança alimentar e os índices de IA, no Espírito Santo, sofrem maciça melhoria, quando da realização da PNAD 2009-2013 (BRASIL, 2014, p. 73), realizada pelo IBGE, demonstrando que o estado passou a ter uma porcentagem de 89,6% dos domicílios particulares permanentes em SAN, ao passo que 10,4% da população se encontrava em alguma situação de IA, a saber: 6,6% estava em IA leve; 1,8%  em IA moderada; e 2% em IA grave.   O estado do Espírito Santo, a partir da pesquisa apresentada pelo IBGE/PNAD, 2013, possui crescimento mais elevado na taxa da SAN e diminuição mais acentuada das taxas de IA em relação ao Brasil, de maneira macro, conforme o gráfico 02. A PNAD 2013 explicita que 77,4% da população brasileira se encontram em situação de SAN, ao passo 22,8% pode ser agrupada em algum grau de IA, dispostos da seguinte forma: 14,8% em IA leve; 4,6% em IA leve; e 2% em IA grave. Igualmente, em comparativo aos demais estados da região sudeste, é possível constatar que o estado do Espírito Santo lidera o crescimento das taxas de SAN, ao passo que os demais estados apresentam as seguintes taxas: Minas Gerais apresenta taxa de 81,6% da população em SAN; Rio de Janeiro 82,2%; São Paulo 88,4%.   Sobre a temática envolvendo SAN, a renda materializa importante aspecto a ser considerado, pois, quanto menor a classe de rendimento mensal domiciliar per capita, maior a proporção de domicílios em situação de IA moderada ou grave. “Estima-se que, em 2009, 58,3% dos domicílios nestas condições estavam na classe de rendimento mensal domiciliar per capita de até ½ salário mínimo”, compreendidos em tais estatísticas aqueles indivíduos sem rendimentos. Em contraponto, quanto maior o rendimento, menor o número estimado de domicílios em situação de IA. Já na pesquisa PNAD 2013, é possível observar que os índices apresentados noticiam diminuição da IA grave e/ou moderada em quatro das seis faixas, de acordo com o gráfico 14. Apresentaram, porém, aumento elevado na IA grave e/ou moderada as faixas que compreendem os sem rendimento e os que recebem até ¼ do salário mínimo. Na primeira faixa, houve elevação 3,3%, no ano de 2009, para 19%, em 2013; já a segunda faixa, em 2009, apresentava porcentagem de 26%, alcançando, em 2013, a porcentagem de 30,5%. Lucci afirma, ainda, que “que ocorre uma concentração dos casos de Insegurança Alimentar Moderada e Grave, isto é, quando há uma redução quantitativa de alimentos (entre adultos e crianças) e registros de ocorrência de fome, sobretudo nas classes de menor poder aquisitivo” (2013, p. 220). No Espírito Santo a renda também se materializa como uma variável relevante em consonância com o cenário nacional observado. Neste aspecto, convém assinalar que é estimado que, no ano de 2009, 59,4% das pessoas em situação de IA moderada e ou grave residiam em domicílios com rendimento mensal de até ½ salário mínimo. Nos domicílios com rendimento entre ½ até 1 salário mínimo moravam 30,0% das pessoas que vivenciaram situação de fome ou redução quantitativa de alimentos ou, ainda, ruptura nos padrões de alimentação, resultante da falta de alimentos. Seguindo uma tendência nacional, o Espírito Santo, na pesquisa de 2013, apresentou crescimento na faixa de sem rendimento daqueles que se encontra em situação de IA moderada e/ou grave. 5 COMENTÁRIOS FINAIS Historicamente, a fome apresenta-se como um evento constante nas sociedades, assumindo, por vezes, índices tão complexos e alarmantes que são capazes de colocar em risco a harmonia social. Trata-se da carestia, ou seja, a fome como crise social econômica acompanhada de má nutrição em massa e epidemias. É interessante, ainda, rememorar que essa manifestação de fome crônica é aquela permanente, ocorrendo quando a alimentação diária não consegue propiciar ao individuo energia suficiente para que seja mantido o seu organismo e para o desempenho de suas atividades cotidianas. Essa materialização da fome traz consigo efeitos devastadores, causando sofrimento agudo e lancinante sobre o corpo, produzindo letargia e debilitando, de maneira gradual, as capacidades mentais e motoras. Há que se reconhecer que o espectro da fome é capaz de desencadear a marginalização social, perda da autonomia econômica e desemprego crônico, em decorrência da incapacidade de executar um trabalho irregular. O ideário de soberania alimentar está assentado na autonomia alimentar do país e a menor dependência das importações e flutuações de preços do mercado internacional. É interessante destacar que o emprego da noção de soberania alimentar tem o início do seu fortalecimento no tema acerca da segurança alimentar, no próprio ano de 1996. Além disso, tal conceito busca dar importância à autonomia alimentar do país e à menor dependência das importações e flutuações de preços do mercado internacional.  Já a segurança alimentar e nutricional, parafraseando a concepção legal contida na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, em seu artigo 3º consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem que haja o comprometimento do acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. Alimentar-se é muito mais do que a mera ingestão de alimentos. É, conforme o artigo 2º da LOSAN, a materialização de um direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na CF/88, devendo o Poder Público adotar as políticas e ações que se façam necessária para promover a segurança alimentar e nutricional da população. O ato de alimentação requer a presença de alimentos em qualidade, em quantidade e regularmente. A reunião dos três pilares materializa o ideário de segurança alimentar e nutricional (SAN) e o direito humano à alimentação adequada (DHAA). A qualidade dos alimentos consumidos preconiza que a população não esteja à mercê de qualquer risco de contaminação, problemas de apodrecimento ou outros decorrentes de prazos de validade vencidos. Trata-se da possibilidade de consumir um conjunto de alimentos de maneira digna, sendo que a extensão de dignidade assume a feição de um ambiente limpo, com talheres e seguindo as normas costumeiras de higiene e as particularidades caracterizadoras de cada etnia ou região. A quantidade dos alimentos ingeridos deve ser suficiente para assegurar a manutenção do organismo e o desenvolvimento das atividades diárias. A regularidade da alimentação, por sua vez, assenta suas bases na premissa que as pessoas têm que ter acesso constante à alimentação, sendo esse compreendido como a possibilidade de se alimentar ao menos três vezes ao dia. Com efeito, inúmeros são os obstáculos a serem superados, sobretudo para a integral substancialização do direito em comento, notadamente quando se analisa uma sociedade dotada de contrastes tão robustos, sobretudo no que concerne à distribuição de renda desigual e a população que se encontra em situação de vulnerabilidade social acentuada. Denota-se, pois, que a materialização do direito humano à alimentação adequada é pilar primordial da promoção da dignidade da pessoa humana, pedra angular do ordenamento jurídico vigente, eis que busca atender a necessidade básica para o desenvolvimento humano. Neste aspecto, historicamente, o Estado Capixaba apresenta um papel de protagonismo no cenário nacional, no que concerne à substancialização de políticas públicas em prol da promoção da segurança alimentar e nutricional, detendo índices expressivos de diminuição de insegurança alimentar, em suas distintas manifestações. Neste aspecto, o reconhecimento das peculiaridades encontradas no Estado do Espírito Santo, no que tange à materialização do direito humano à alimentação adequada, se revela dotada de substancial relevância.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-141/o-direito-humano-a-alimentacao-adequada-em-uma-otica-regionalizada-uma-reflexao-sobre-a-universalizacao-da-alimentacao-a-partir-de-uma-perspectiva-da-bioetica/
As questões jurídicas da inseminação artificial heteróloga
Com a presente pesquisa pretende-se conhecer as possibilidades jurídicas quanto ao instituto das ações de reconhecimento de vínculo biológico e os princípios que a regem em relação aos filhos gerados por inseminações artificiais heterólogas, discutindo sobre o choque dos princípios que regem o direito aos filhos de conhecerem sua origem biológica e do sigilo dos doares ao banco de sêmen, a possibilidade da pensão alimentícia perante o doador, pai biológico, a análise da questão sucessória e patrimonial como direito dos filhos havidos por inseminação artificial heteróloga com a seguinte discussão da Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.358/92 frente aos preceitos jurídicos vigentes. A pesquisa utiliza o método dedutivo para analisar, de modo geral, se as normas que regulam o instituto do reconhecimento de vínculo biológico são eficientes ao tratarem da filiação advinda da inseminação artificial heteróloga e se existe o direito pertinente à herança e pensão alimentícia.[1]
Biodireito
1 INTRODUÇÃO Desde o início da vida, o único meio existente entre os seres humanos de vínculo de paternidade e filiação sempre foi através da reprodução advinda das relações sexuais, também podendo ser chamada de procriação natural. Com o desenvolvimento da espécie humana ao longo dos anos e, também, do progresso científico, para satisfazer a necessidade daqueles que não podem ter filhos, por alguma razão, sendo ela pelo método natural de procriação, foram desenvolvidas técnicas de reprodução assistida, sendo uma delas a inseminação artificial heteróloga. (SPODE e SILVA, 2007). A modernidade trouxe às famílias, ou tão somente às mulheres que, sem o desejo de enlace matrimonial, querem realizar o desejo da maternidade, sendo uma alternativa para o problema, a reprodução assistida em questão discutida. Porém, com o total desenfreio da tecnologia que veio abrangendo de forma avassaladora os métodos que pudessem facilitar a vida das pessoas, estes se esqueceram do afeto entre as pessoas e os problemas futuros que pudessem acarretar. E estes problemas a cada dia surgem com mais freqüência na vida das famílias que recorrem a este tipo de inseminação, sendo que só lhe restam buscar solução através da nossa Justiça. 2 REPRODUÇÃO ASSISTIDA No âmbito da reprodução assistida, existem várias técnicas diferentes de procedimento, assim como explica Balan (2006): “Dentre as principais técnicas atualmente disponíveis, destacam-se: inseminação artificial (IA), fertilização in vitro seguida de transferência de embriões (FIVETE), transferência intratubária de gametas (GIFT), transferência intratubária de zigotos (ZIFT), gestação por mãe substituta (“mãe de aluguel”).” A inseminação artificial se divide em dois tipos, sendo uma denominada de homóloga e a outra heteróloga. A primeira se dá com a utilização do próprio material genético do casal e, a segunda, o sêmen utilizado é de um terceiro doador, que diante do anonimato, doa seus gametas a um Banco de Sêmen. A fertilização in vitro seguida de transferência de embriões (FIVETE), coloquialmente conhecida por “bebê de proveta”, é quando ocorre a fecundação do óvulo pelo espermatozóide fora do corpo, em laboratório. E logo depois de fertilizados, são transferidos para o útero. (CORLETA e KALIL, 2001). A transferência intratubária de gametas (GIFT) é utilizada quando os casos de infertilidade não têm motivo aparente. O procedimento consiste na coleta dos óvulos e espermatozóides que, com a ajuda do laboratório, são colocados dentro das trompas de falópio. (Materbaby). A transferência intratubária de zigotos (ZIFT) utiliza a mesma técnica da transferência intratubária de gametas (GIFT), porém a diferença entre eles é que a ZIFT é utilizada quando o material genético da mulher e do homem não sejam suficientemente bons para a fecundação e boa formação do embrião. Os óvulos são colhidos por ultra-sonografia trans-vaginal e colocados em contato com os espermatozóides dentro de uma trompa artificial e após confirmada a fecundação, é transferida para as trompas naturais. (Materbaby). A gestação por mãe substituta, ou mais conhecida como “mãe de aluguel”, consiste na substituição da gestação transferia a uma terceira pessoa. Existem dois tipos, sendo mãe portadora ou mãe de substituição. A primeira se refere no empréstimo do útero, e segunda além de emprestar o útero também dá seus óvulos. (NERY, 2005). É através destas variadas técnicas, que as pessoas realizam o desejo da criação da família, quando estas se tornam impossibilitadas pelo método natural. E é quanto às inseminações artificiais, em especial a heteróloga, que o presente tema se desenvolve. 3 INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HETERÓLOGA: SUA ORIGEM E ASPECTOS HISTÓRICOS Conceituar a inseminação artificial de maneira mais simples seria dizer que é a introdução, no organismo feminino, de espermatozóides, através de técnicas artificiais. (LOPES, 2000, p. 585). Sobre a origem de tal procedimento, explica ainda Lopes (2000, p. 585): “A literatura registra que a primeira inseminação artificial humana ocorreu na Idade Média. Diz-se que Arnaud de Villeneuve, médico da família real, teria realizado com sucesso uma inseminação artificial com o esperma de Henrique IV de Castela em sua esposa. Todavia, os históricos a respeito do tema na literatura médica habitualmente atribuem o feito da primeira inseminação artificial homóloga ao inglês John Hunter no final do século XVIII. Por outro lado, a primeira inseminação heteróloga aconteceu na Filadélfia, Pensilvânia, em 1884, conduzida por Pancoast, um ginecologista americano.” Ainda sobre a origem do procedimento da inseminação artificial heteróloga, para Gasparotto e Ribeiro (2008, p. 358 apud LAGRASTA NETO, 2002): “[…] os primeiros relatos apontados na história de casos de concepção de filhos sem o ato sexual, por inseminação heteróloga, ou seja, doação de esperma por terceiro, […] realizada por Pancoast, ginecologista americano, utilizando a técnica de conduta daí azoosopermia.” Continua, portanto: “As técnicas de reprodução assistida tiveram seu ápice de destaque na Inglaterra, em 25 de julho de 1978, quando nasceu Louise Brown, o primeiro “bebê de proveta”, cuja mãe submeteu-se à fecundação in vitro (FIVET) com extração e seleção de seus óvulos, e posterior contato com espermatozóides em estufas para formar embriões que, depois de analisados, foram transferidos para o útero da mãe de Louise.” Diante de tantos avanços significativos para a ciência, que com início na década de 60 trouxe as pílulas anticoncepcionais, a contrariedade surgiu anos depois já na década de 70 com os primórdios da reprodução assistida, em conseguinte uma delas, a inseminação artificial heteróloga. (SILVA e LOPES, 2008). Tais avanços, com as influências culturais e religiosas na vida da sociedade, contribuíram para o surgimento de alternativas que pudessem satisfazer as necessidades do ser humano em relação à constituição da família, por conseguinte, a procriação. E foi através de tal fato que a medicina acrescentou a isso os diferentes tipos de inseminação artificial: homóloga e heteróloga. (LOPES, 2000, p. 585). Concluem Gasparotto e Ribeiro (2008, p. 357), que a inseminação artificial “é um procedimento de procriação utilizado na medicina veterinária desde meados do século XVI, em que já havia experiências em peixes, com a finalidade de melhorar a produção, a purificação das raças, a criação de híbridos, para fins médicos, dentre outros”. Não se pode excluir do ramo do Direito, como origem, os fatores culturais que contribuíram para seu surgimento e influenciaram no nascimento das primeiras letras de lei. A religião, como ramo da cultura, também foi fator importante e bastante significativo para nosso ordenamento jurídico desde seus primórdios. Portanto, não dá para falar do surgimento das técnicas de reprodução assistida sem abordar a influência que a religião tem no cotidiano das pessoas e por conseguinte, na nossa jurisdição. Logo, a visão ética deve ser analisada sob os diversos segmentos religiosos em relação às reproduções assistidas. A Igreja Católica, que sempre influenciou o surgimento do Direito desde a época inquisitória, sempre foi contra os avanços tecnológicos relacionados à reprodução humana que não fosse pelos métodos naturais. É evidente e claro sua oposição contra as pílulas anticoncepcionais e o uso do preservativo e não poderia ser diferente em sua posição contra a inseminação artificial heteróloga, a classificando até como ato de adultério, mesmo que a doação seja consentida pelo outro cônjuge. (LOPES, 2000, p. 586). Já a Igreja Islâmica, não somente recrimina a inseminação artificial heteróloga como também a homóloga, que é a doação do sêmen do próprio marido. A Igreja Anglicana tem influências de duas correntes, onde a majoritária e mais conservadora é contra a inseminação artificial heteróloga e a outra corrente mais progressista admite a doação de terceiros. A Igreja Judia também não aceita que seja utilizado sêmen que seja diferente do originado pelo casal. (LOPES, 2000, p. 586). Quem vem se posicionando com mais liberalismo sobre o assunto é a Igreja Protestante, que não vêem barreiras em aceitar as técnicas de reprodução assistida, se os cônjuges concordarem com tal procedimento. (LOPES, 2000, p. 586). A doutrina Espírita também encara as técnicas de reprodução com naturalidade, pois Allan Kardec, pai do espiritismo, já havia esclarecido que a doutrina e a ciência caminham lado a lado rumo à evolução sem se oporem ao desenvolvimento. Somente é ressaltado que tais procedimentos devem ser utilizados para o bem da humanidade. (LOPES, ed. 34, Revista Cristã do Espiritismo). Para Luna (2001, p. 403, apud SILVA e LOPES, 2008): “Na Inglaterra, o caso de mulheres sem experiência sexual nem intenção de tê-la que procuravam clínicas de fertilidade com o intuito de receberem o tratamento de inseminação artificial por doador e engravidarem foi designado pelos meios de comunicação de “síndrome do nascimento virgem”. A atitude dessas mulheres foi encarada com reservas por alguns médicos, colocando-se em pauto que tipo de pessoa seria apta ao tratamento. O tratamento visava a substituir a relação sexual vez de simplesmente contornar um estado estéril, superando dificuldades da natureza. (…) Tal postura contraria os papéis de gênero estabelecidos, segundo os quais as mulheres seriam as guardiãs do ideal de que filhos nascem de relações de parceria, relações essas constituindo o alicerce da vida familiar.” Portanto, os fatores históricos são imprescindíveis e influenciadores no tocante à reprodução assistida e cada evolução e desenvolvimento da ciência tem sua parcela ligada aos costumes da sociedade com o intuito de, a cada dia, solucionarem as dificuldades e desejos de cada ser humano. 4 DIFERENÇAS ENTRE INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA E HETERÓLOGA Dentre as técnicas de reprodução assistida, merecem destacar as diferenças entre a inseminação artificial homóloga da inseminação artificial heteróloga. Conceitua Venosa (2006), que “denomina-se homóloga a inseminação proveniente do sêmen do marido ou do companheiro; heteróloga, quando proveniente de um estranho”. Na visão de Lopes (2000, p. 585), o mesmo denomina a inseminação artificial homóloga como sendo a que: “[…] consiste na introdução de espermatozóides do esposo de qualquer segmento do aparelho genital feminino. Tal procedimento é feito após preparo laboratorial do sêmen. Pode ter lugar em um ciclo espontâneo ou após estimulação da função ovatoriana com indutores da ovulação”. Ainda, discorre Lopes (2000, p. 586), sobre o conceito da inseminação artificial heteróloga: “[…] obedece os critérios técnicos semelhantes àqueles levados a efeito na inseminação artificial homóloga. Exceção, faz-se, quanto a origem da amostra seminal no caso oriunda de um doador”. A inseminação artificial será heteróloga, quando o material genético, espermatozóide ou óvulo, tiverem como origem um doador estranho à pessoa a ser fecundada, podendo ser denominado também de doação. Geralmente, indivíduos que procuram optar pela inseminação artificial heteróloga são aqueles que sofrem de esterilidade ou incompatibilidade sanguínea. (MARQUES, 2003). Conceituam também, Gasparotto e Ribeiro (2008, p. 357): “A inseminação artificial consiste na técnica de fecundação intracorpórea, na qual o espermatozóide é retirado de seu doador (o próprio marido ou de um terceiro) e posteriormente introduzido na cavidade uterina da mulher, de maneira artificial. A fecundação in vitro consiste na técnica de fecundação extracorpórea na qual o óvulo e o espermatozóide são previamente retirados de seus doadores e são unidos em um meio de cultura artificial localizado em vidro especial”. (SAVIN, 1990, p. 237). Em um breve conceito, somente para que haja a identificação das expressões, a inseminação artificial homóloga é aquela feita com o material genético do próprio casal (cônjuges) e a heteróloga é a fecundação realizada com sêmen de terceiro, onde são aproveitados os embriões que excederam ao ser realizada a fertilização in vitro. (RODRIGUES, 2006). Portanto, o método usado nos dois tipos de reprodução assistida são semelhantes e é com a origem do sêmen que poderá ser capaz de conceituar se a inseminação será homóloga (sêmen do marido ou companheiro) ou se será heteróloga (sêmen de terceiro doador), lembrando que ambas são feitas por métodos não naturais.  São três as características fundamentais para a realização da doação heteróloga, sendo elas a gratuidade, não podendo ter fins lucrativos, a licitude, que advém da gratuidade e a mais importante delas que é o anonimato dos doadores e receptores. (MARQUES, 2003) 5 ASPECTOS MÉDICOS SOBRE A INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL Os aspectos médicos sobre a inseminação artificial, consistem nas formas procedimentais técnicas da medicina quanto à sua realização, sobre o Banco de Sêmen e suas características e procedimentos e sobre o Conselho Federal de Medicina que tem como norma reguladora da Reprodução Assistida, a Resolução 1358/92. 5.1 PROCEDIMENTOS TÉCNICOS Trata-se dos procedimentos usados pelas clínicas especializadas em Reprodução Assistida, de modo à realizar o tratamento que ajudará àquelas com dificuldade para engravidar. Por isso, assim alerta Rios, (2006): “Convém mencionar que trata-se de procedimento de custo elevado e cobrado por cada tentativa de engravidar. Dessa forma, devem estar perfeitamente esclarecidas ao casal tais circunstâncias, na medida em que não existe garantia da eficácia da inseminação artificial.” A mulher que deseja utilizar da técnica de reprodução assistida, no caso em tela, tanto a inseminação artificial heteróloga quanto a homóloga, ao procurar um centro especializado, deve passar por alguns procedimentos médicos. Segundo o CEMERJ (Centro de Medicina de Reprodução), o tratamento consiste na inserção do espermatozóide que é depositado na vagina, que logo fará o trajeto até o óvulo e captado pela trompa no momento em que haverá a expulsão pelo ovário. Ainda de acordo com as técnicas do referido Centro, a mulher deverá ser monitorada para que se possa descobrir qual o melhor momento para tal fecundação, pois algumas possuem ovulação espontânea e outras precisam que ela seja estimulada. Em se tratando da ovulação espontânea, esta é monitorada através de ultra-sonografia para devida detecção de hormônios que são liberados pela urina. Nos primeiros dias da ovulação, os ovários são avaliados e se estiverem sem nenhuma restrição, como por exemplo, formação residual, o tratamento é prosseguido. (CEMERJ). Com a ultra-sonografia, no primeiro dia do ciclo, é reiniciado o procedimento, onde diariamente deve ser feito, e, a partir da aparição de uma imagem de folículo maior ou igual a 15 mm, é feito o exame com o hormônio LH (na urina), que com a utilização de um Kit, faz-se a reação da urina pela manhã e no início da tarde. Se a cor do Kit se modificar, estará indicando que a ovulação deverá iniciar entre 24 e 30 horas depois, e assim a inseminação artificial é realizada nesse período (CEMERJ). Quando a ovulação terá que ser induzida, segundo o CEMERJ, essa indução será feita através de medicamentos que estimularão a produção dos hormônios que irão atuar no ovário, ou nos casos mais complexos, pelo monitoramento com ultra-sonografia e avaliação da produção hormonal. São indicadas a este tratamento, mulheres que não possuem ovulação, que a ovulação tem quantidade hormonal baixa ou até ovulação normal. Segundo o Centro de Medicina de Reprodução, no Rio de Janeiro/RJ, o procedimento para o homem é o seguinte: “Após a ejaculação o esperma é misturado a um meio de cultura, e sofre uma separação por centrifugação, o que faz a parte sólida (espermatozóides e células) se separarem do meio líquido. Em seguida colocamos esta parte sólida com uma certa quantidade de meio de cultura, em repouso na estufa. Os espermatozóides, pela sua mobilidade, irão nadar para o meio de cultura. Coletaremos então só o meio de cultura, que deverá conter apenas os espermatozóides mais móveis, e será esta amostra que inseminaremos.” Em relação aos números, o CEMERJ dá estatísticas de seus resultados com as inseminações artificiais homólogas: “Sabemos hoje que a chance natural de um casal que não apresente dificuldades, se situa em torno de 25% a cada ciclo, de engravidar e levar a sua gestação até o término. Na inseminação apesar de controlar a ovulação realizar a inseminação no melhor momento com um esperma de boa qualidade ou melhorado ao máximo, a nossa chance real deverá se situar no máximo em torno deste número. Os nossos últimos resultados, que incluiam todas as indicações, foram de 33% por ciclo tentado. Os extremos desta análise estatística, foram de 6 a 8% para as alterações espermáticas severas, e de 55% para a inseminação com esperma de doador, em que o lado feminino era normal e o esperma reconhecidamente normal.” Insta lembrar que, as técnicas para a inseminação artificial homóloga e heteróloga são as mesmas, o que irá distinguir uma da outra é a origem do sêmen, onde da primeira se dá com o do marido ou companheiro, e da segunda através de um doador anônimo. 5.2 BANCOS DE SÊMEN Segundo a Pro-Seed, em São Paulo/SP, o Banco de Sêmen é um serviço que tem a finalidade de conservar e preservar o material genético masculino congelado que serão utilizados em futuras inseminações artificiais. Esclarece ainda, que os espermatozóides são congelados em nitrogênio líquido (196° negativos) e que são colhidos através da masturbação, coleta no epidídimo[2] e testículos ou através de estímulos com vibro ou eletro-ejaculação. Em relação aos doadores anônimos, a Pro-Seed, afirma: “O Banco de Sêmen de Doadores Anônimos mantém sêmen de homens que voluntariamente doaram seus gametas para casais cujo marido apresenta infertilidade que não pode ser tratada ou doença hereditária conhecida, como por exemplo, hemofilia.”   Explica a diretora da clínica Pro-Seed, em São Paulo, Vera Beatriz Fehér Brand[3], que o doador deve manter abstinência sexual e de ejaculação de pelo menos 3 dias e agendar a coleta de sêmen para análise seminal de segunda à sexta-feira das 08:00 às 15:00 e após a aprovação do doador, as doações podem ser feitas no sábado pela manhã. Esclarece ainda, que o programa de doação de sêmen segue a regulamentação da Sociedade Americana de Reprodução Assistida e Resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Expõe a diretora que há procedimentos que devem ser seguidos, sendo eles a triagem com um médico urologista com um questionário e exame clínico para posterior assinatura do termo de doação, a coleta de sangue para exames sorológicos, como Aids, Hepatite B e C, Sífilis, HTLV, Tipagem sanguínea e eletroforese de hemoglobina. Se o doador for aprovado nos exames e na triagem ele deve agendar as doações de sêmen, sempre mantendo abstinência sexual e de masturbação como já dito anteriormente. É solicitado 6 doações (1 por semana ou uma cada 15 dias), exame de cariótipo e a repetição dos exames de sangue 6 meses após as doações. Como as doações são anônimas e o sigilo deve ser mantido para proteção da identidade dos doadores, é assinado um termo para assegurar tal direito: “INSTRUMENTO DE DOAÇÃO VOLUNTÁRIA DE SÊMEN Eu, ____________________ RG n.º. ________________, CPF n.º._____________, residente à Rua _____________________________________________________ Bairro ___________Cidade _________________ Estado _________ CEP:._______________ Tel.1 ( ) _____________ Tel.2 ( )___________________, DECLARO estar doando, graciosamente, meu sêmen para o Banco de Sêmen da Pro-Seed, de livre e espontânea vontade, sem nenhum tipo de induzimento ou coação. CLÁUSULA I Estou CIENTE e CONCORDO na utilização do sêmen, ora doado, para fertilização assistida em mulheres em idade reprodutiva após a seleção do sêmen doado, sua aprovação e liberação à critério exclusivo da Pro-Seed. Estou ciente de que as amostras que não atenderem aos critérios de armazenamento estabelecidos pela Pro-seed serão por esta descartadas. Declaro-me CIENTE, outrossim, que o procedimento de doação é composto das cinco etapas abaixo definidas, as quais comprometo-me e CONCORDO a seguir SEM QUALQUER INTERRUPÇÃO, sujeitando-me, em caso de interrupção, salvo se por motivo de caso fortuito ou força maior, ao disposto na cláusula IX do presente instrumento particular. 1ª Etapa – Coleta de amostra de sêmen para análise inicial 2ª Etapa – Triagem médica 3ª Etapa – Coleta de sangue para exames sorológicos e cariótipo. Cultura seminal. (Se a cultura seminal apresentar resultado positivo, indicaremos o tratamento adequado, o que permitirá o retorno do doador às doações) 4ª Etapa – Coleta de 5 amostras de sêmen, pelo menos, mantendo pelo menos 3 dias de abstinência sexual e de masturbação. Estas amostras de sêmen deverão ser colhidas no prazo de 3 meses, contados a partir da 1ª Etapa. 5ª Etapa – Coleta de sangue para exames sorológicos 6 (seis) meses após a última doação de sêmen. CLÁUSULA II CONCORDO e ACEITO ser vedado o meu acesso à identidade do receptor e da criança gerada pelo procedimento de fertilização assistida, da mesma forma que será preservado o sigilo da minha identidade e privacidade, de acordo com os termos da legislação vigente. Tenho total ciência de que os dados pertinentes à amostra de sêmen por mim doada poderão ser transmitidos ao médico-responsável por sua utilização, mantendo-se, entretanto, o sigilo de minha identidade e privacidade. CLÁUSULA III A escolha do receptor e do momento da fertilização assistida, será exclusivamente determinado, conjuntamente pela Pro-Seed e o médico-responsável pelo procedimento. CLÁUSULA IV Considerando-se a orientação da Resolução nº 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, o doador será excluído desta condição (de doador) após a obtenção de 2 (duas) gestações, de sexos diferentes, com o mesmo doador, numa área de um milhão de habitantes. CLÁUSULA V DECLARO não ser portador de nenhuma enfermidade conhecida e hereditária, não ser usuário de drogas injetáveis e nem ter tido relações sexuais promiscuas nos últimos seis meses. CLÁUSULA VI OBRIGO-ME a comunicar à Pro-Seed, sobre alterações significativas em meu estado de saúde, principalmente no que se refere às doenças sexualmente transmissíveis, durante o período em que estiver fazendo as doações. CONCORDO, ainda, em ser contatado periodicamente para obtenção de informações a respeito de minha saúde e a manter a Pro-Seed informada quanto a quaisquer alterações em meus dados cadastrais, inclusive endereço, números de telefone, email, e outros. CLÁUSULA VII OBRIGO-ME em submeter-me a coleta de sangue para os testes sorológicos para HIV 1 e 2 (AIDS), HTLV 1 e 2, Hepatite B, Hepatite C e Sífilis, seis meses após a última coleta de sêmen. CLÁUSULA VIII A omissão voluntária à Pro-Seed de informações concernentes ao uso de drogas, doenças sexualmente transmissíveis e hereditárias, pelo doador, caracterizará o crime previsto no art. 132 do Código Penal Brasileiro. CLÁUSULA IX Em caso de INTERRUPÇÃO DO PROCEDIMENTO DE DOAÇÃO, salvo se motivada por força maior ou caso fortuito, declaro-me ciente de que estarei obrigado a RESTITUIR à Pro-Seed todos os custos e despesas por este incorridos até o momento, de acordo com a Tabela de Procedimentos vigente à época da interrupção. CLÁUSULA X (____) AUTORIZO (____) NÃO AUTORIZO a utilização das amostras criopreservadas em projetos de pesquisa que tenham sido previamente aprovados por Comitê de Ética em Pesquisa, livremente eleitos pela Pro-Seed. São Paulo, _____ de _____________ de ________. ____________________________________ Assinatura” Tal contrato, portanto, é o mecanismo indispensável nas doações de sêmen, pois é através dele que o doador terá conhecimento de seus deveres e garantias, sendo a principal delas quanto à sua identidade preservada. 5.3 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA O Conselho Federal de Medicina (CFM) [4]: “[…] é um órgão que possui atribuições constitucionais de fiscalização e normatização da prática médica. Criado em 1951, sua competência inicial reduzia-se ao registro profissional do médico e à aplicação de sanções do Código de Ética Médica, [..] e hoje, as atribuições e o alcance das ações deste órgão estão mais amplas, extrapolando a aplicação do Código de Ética Médica e a normatização da prática profissional. […] o CFM empenha-se em defender a boa prática médica, o exercício profissional ético e uma boa formação técnica e humanista, convicto de que a melhor defesa da medicina consiste na garantia de serviços médicos de qualidade para a população.” Através de sua caracterização como um órgão fiscalizador e normatizador com atribuições constitucionais, através da Resolução nº 1.358, de 11 de novembro de 1992, estabeleceu normas éticas em relação às técnicas de reprodução assistida. Como trata-se de um assunto que lentamente vem sido discutido e aceitado pelas leis brasileiras, o Código Civil vigente pouco trás sobre o tema, restando, portanto, ser regulado pela Resolução nº 1.358 do Conselho Federal de Medicina. Tal resolução trás aspectos importantes quanto à utilização do tratamento da reprodução assistida, assegurando primeiramente a saúde do paciente, trazendo também alguns tipos de vedações. As técnicas utilizadas devem ter exclusivamente a finalidade de auxiliar casais inférteis somente depois de não existir mais nenhuma outra opção para solucionar a infertilidade. Para que as técnicas de reprodução assistida sejam efetuadas, devem haver o consentimento informado obrigatório tanto para o receptor infértil quanto para o doador, anônimo (heteróloga) ou não (homóloga). Este consentimento deve ser sob a forma de um contrato, ou seja, um formulário especial, onde, por escrito, o doador e o receptor dão total concordância com o procedimento. Neste formulário, devem conter cláusulas explicativas e claras, informando ao doador e receptor de todas as etapas a serem seguidas, tais como também, exames a serem realizados, dentre outros procedimentos. A Resolução nº 1.358 também trás algumas vedações, como dito anteriormente. É proibido utilizar as técnicas de reprodução assistida com o intuito de selecionar o sexo ou quaisquer outras características da futura criança, com a exceção de que tal método possa evitar doenças ligadas ao sexo do futuro filho. Outra vedação também expressa na Resolução nº 1.358 se refere sobre a doação temporária do útero, ou também chamada de gestação de substituição, que não deve ter caráter comercial nem lucrativo. A doação de gametas também. Assim como já expressa o Código Civil, em seu artigo 1597, V, e também vem relatado na referida Resolução em discussão, se a receptora for casada ou viver em união estável, é imprescindível a autorização do marido ou companheiro, além do consentimento informado, citado anteriormente. Outro ponto importante trazido pela Resolução nº 1.358 é quanto à responsabilidade civil nestes procedimentos de reprodução assistida, que será, obrigatoriamente, do médico que realizou a inseminação, estando incluídos os procedimentos médicos e laboratoriais. Esta responsabilidade deve ser um dos requisitos mínimos apresentados pelas clínicas, centros ou serviços que aplicam as técnicas da reprodução assistida. É importante também, ser apresentado um registro permanente onde deve estar relatado todos os procedimentos feitos pelo médico desde a manipulação dos gametas até o nascimento da criança, além de provas diagnósticas que têm a finalidade de evitar a transmissão de doenças. Desde então, o ponto mais polêmico trazido pela Resolução nº 1.358 é quanto ao anonimato dos doadores, que diz: “3 – Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.” As doações devem ser voluntárias, e como dito já anteriormente, possuem caráter gratuito e não comercial. O limite de idade é de 45 anos e não podem ser doadores os médicos responsáveis pela clínica nem integrantes de equipe que nela prestam serviços. Também consta como regra onde o doador não poderá produzir mais de 02 gestações, de sexos diferentes, na região em que se localiza o centro especializado, numa área de um milhão de habitantes. Tal regra evita que haja os incestos e suas possíveis conseqüências. Sendo assim, expõe Júnior (2005, p.96, apud CÂNDIDO, 2007): “[…] os filhos devem ter acesso aos dados biológicos do doador para descoberta de possível impedimento matrimonial, pois em se mantendo esse sigilo de forma absoluta, isso poderia redundar, futuramente, em relações incestuosas. Sendo totalmente anônima a paternidade biológica, mantida sob a égide de um sigilo absoluto, nada impede que irmãos (filhos nascidos de material pertencente ao mesmo doador) ou mesmo o próprio doador e uma filha contraiam casamento por absoluta ignorância com relação as suas verdadeiras origens.” O Conselho Federal de Medicina também tratou na Resolução ora discutida, a questão da criopreservação, ou seja, o congelamento dos gametas ou pré-embriões, estipulando que as técnicas de reprodução assistida também podem ser realizadas na preservação e tratamento de doenças hereditárias, onde qualquer intervenção tem que ter o consentimento obrigatório do casal, quando se tratar de pré-embriões in vitro, que tem tempo máximo de desenvolvimento de 14 dias. Outrossim, tratou a Resolução sobre a doação temporária do útero, ou também chamada de gestação de substituição, que é realizada quando há algum problema médico que impeça a gestação na doadora genética. A doadora temporária deve ter parentesco até o segundo grau com a doadora genética, onde se houver casos excepcionais devem ser analisados e autorizados pelo Conselho Federal de Medicina. Deste modo, por falta de amparo legal sobre as questões relacionadas à reprodução assistida, a Resolução nº 1.358 é que vem atualmente regulando tais procedimentos. É interessante abordar também, como são reguladas as técnicas de reprodução assistida fora do Brasil, em uma breve comparação. Na Noruega, por exemplo, é permitida a doação de sêmen, mas proibida a doação de óvulos que, se praticada, vem seguida de uma penalidade de três meses de prisão. Já nos Estados Unidos é permitida a remuneração dos doares do material genético. (LOPES, 2000, p. 586). 6 ASPECTOS JURÍDICOS Os aspectos jurídicos da inseminação artificial consistem na abordagem sobre o princípio da Dignidade da Pessoa Humana como prioridade no direito da personalidade presente na Constituição Federal de 1988, dentre outras fundamentações além do texto constitucional, incluindo também as inovações que o Código Civil de 2002 trouxe à reprodução assistida. Trata também, do choque do direito da personalidade, que protegido pelo princípio da dignidade da pessoa humana e dando à criança o direito de conhecer sua origem biológica, enfrenta opostamente o direito à intimidade e privacidade do doador de sêmen ao ter sua identidade mantida em anonimato e sigilo. Outro aspecto relata sobre a paternidade sócio-afetiva que o marido ou companheiro, que autorizou a inseminação artificial heteróloga, tem com a criança gerada, além dos direitos que o pai biológico e o sócio-afetivo têm perante os instituídos da investigação de paternidade, dos alimentos e da sucessão hereditária. 6.1 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA A sociedade, assim como todo o meio em que vivemos, sempre está em processo de evolução e mudanças. Avanços tecnológicos e científicos a cada vez mais se aperfeiçoam para que a vida do ser humano possa ser facilitada, suprindo suas necessidades, onde de modo natural não seria possível ocorrer. O Direito como ciência humana e reguladora da sociedade, através de seus princípios e normas, também deve sempre caminhar lado a lado com estes avanços, adequando suas leis para proteger e limitar as ações daqueles que, da evolução, a utilizam. O progresso para a vida das pessoas deve atuar sempre de forma positiva e nunca em discordância com o nosso ordenamento jurídico, sendo ele um Estado Democrático de Direito. E como a ciência e a tecnologia lida com a vida do ser humano é imprescindível o respeito à dignidade da pessoa humana. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, trás em seu artigo I que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. E também é na nossa Constituição Federal de 1988 que tal princípio encontra-se elencado no artigo 1º, III, assim interligado com o direito à vida, à liberdade e igualdade, sendo uma das principais garantias fundamentais a qualquer ser humano, assim como já expressa também o artigo 5º, caput, da referida Carta Magna. Quanto às técnicas de reprodução assistida e a garantia do princípio da dignidade da pessoa humana, assim relata Cândido (2006): “O ordenamento jurídico brasileiro acolhe diversos direitos humanos constitucionalmente garantidos como direitos fundamentais como forma de proteção ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, inclusive direitos de quarta geração, que protegem as pessoas envolvidas em procedimentos biotecnológicos como o de aplicação de técnicas de reprodução medicamente assistida heteróloga.” A inseminação artificial heteróloga, além de utilizar-se de material genético de um doador, terceiro a um casal, lida principalmente com a vida de uma criança que está para ser gerada e que posteriormente irá se relacionar com sua família e a ela criar vínculos afetivos. É exatamente por estes vínculos, que a dignidade da pessoa humana deve ser sempre protegida e respeitada, pois futuros questionamentos quanto sua origem genética e biológica são hipóteses naturais de todo ser humano. Frente a essas dificuldades que a legislação Civil vem enfrentando, principalmente no Direito de Família, para adequar a Bioética e, decorrente dela, a reprodução assistida, expõe Balan (2006): “Diante do exposto, conclui-se que a exploração dos temas referentes à reprodução medicamente assistida, em especial à reprodução heteróloga, é relevante pela sua atualidade, uma vez que atinge diretamente a vida da sociedade, onde se busca substituir as dificuldades dos legisladores e aplicadores da lei, diante da inexistência de previsão legal ou inadequação desta, pela busca de um sistema de normas que assegure a realização total das potencialidades humanas e da manutenção de sua dignidade.” O princípio da dignidade da pessoa humana deve sempre se sobrepor como forma de solucionar os conflitos quando a lei for omissa ou não for capaz de resolvê-los por si só, assim como explica Cândido (2007): “Por ser o valor da pessoa humana o motivo da existência de um ordenamento é que se deduz que as normas existam em benefício da pessoa, ou seja, a serviço de sua dignidade. É o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana a tradução jurídica do valor da pessoa humana.” Portanto, a atuação do Direito de Família em conjunto com o princípio da dignidade humana é de extrema importância frente às inseminações artificiais heterólogas, pois é baseando em princípios reguladores das relações familiares, concernentes sobre a filiação, que trará a finalidade ao indivíduo do conhecimento da sua origem biológica. Quanto aos direitos fundamentais, está incluído também o planejamento familiar, que além de estar previsto na Constituição Federal vigente, vem também expresso através da Lei 9263/06, que o regulamenta. A Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, criado pelo Ministério da Saúde, visam também a garantia dos direitos de reprodução entre homens e mulheres. (CÂNDIDO, 2007) A Lei 9263/06 também trouxe o conceito da família monoparental, onde o planejamento familiar deixou de ser direcionado ao casal e passou a considerar o homem e a mulher, individualmente, inclusive com liberdade para adotar as técnicas de reprodução assistida, mas sem ferir o princípio da dignidade da pessoa humana. (RIBAS, 2008). E é por estes fatores que o princípio da dignidade da pessoa humana deve sempre prevalecer para que dê a garantia a esta criança, que será gerada com a ajuda das técnicas da inseminação artificial, de que ela tem o direito de saber sua origem biológica, do mesmo modo de que seus pais também tiveram como garantia o direito e a liberdade de fazerem o planejamento familiar, conforme já exposto, no artigo 226, §7º, da Magna Carta.  Entretanto, o legislador não pode se olvidar em defender a dignidade da pessoa humana com prioridade, pois se trata primeiramente de valores permanentes na sociedade, como a ética coletiva, que advém de valores naturais que fazem parte do Direito Natural. (SOEIRO, internet). 6.1.1 Outras fundamentações Não tão somente fundamenta as questões jurídicas da inseminação artificial heteróloga e as demais técnicas de reprodução assistida, com o princípio da dignidade da pessoa humana. Primordial ele se torna, porém outros princípios basilares também podem ser usados na defesa dos direitos daqueles que recorrem à tecnologia e à ciência. Ainda na nossa Constituição Federal, encontramos no artigo 227, §6º, assim como no artigo 1596, caput, do Código Civil de 2002, a qualificação de igualdade entre os filhos, sendo eles havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção. E por equiparação, os filhos havidos da inseminação artificial heteróloga em relação à paternidade não-biológica, são identificados do mesmo modo do que os adotivos, estabelecendo, portanto, um vínculo sócio-afetivo. Expressa ainda no artigo 226, §4º, da Constituição Federal, a questão da entidade familiar, que pode ser formada também por qualquer descendente e qualquer dos pais, podendo ser exemplificada no modo mais simplista, a mãe solteira. Portanto, para ser considerada família para efeitos jurídicos, não é necessário haver pai, mãe e filhos, sendo admitido quaisquer um deles, conforme já explicou o artigo em questão. A Constituição Federal ainda trás a questão da convivência familiar sem se privar somente à questão da origem genética, estipulando ainda os deveres da família, da sociedade e do Estado e os direitos da criança e do adolescente, conforme o artigo 227, caput. Dispõe ainda, quanto à proteção destes direitos, a Lei 8069 de 13 de Julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), onde em seu artigo 3º também descreve que a criança e o adolescente são detentores dos direitos fundamentais para a dignidade da pessoa humana. O ECA, em seu artigo 20, também estabeleceu a igualdade entre os filhos. Assim relata Lôbo, (2004), quanto à relação dos princípios e da doutrina: “O princípio é um reflexo do caráter integral da doutrina dos direitos da criança e da estreita relação com a doutrina dos direitos humanos em geral. Assim, segundo a natureza dos princípios, não há supremacia de um sobre outro ou outros, devendo a eventual colisão resolver-se pelo balanceamento dos interesses, no caso concreto”. Conclui, portanto, que frente aos conflitos geradores das técnicas da reprodução assistida, não se pode priorizar um princípio sob o outro, pois ambos são necessários, em conjunto com o ordenamento, para a solução dos interesses da criança e de sua família. Não obstante, expõem Gasparotto e Ribeiro, (2008): “Quando a verdade biológica se contrapuser à filiação socioafetiva, deve-se levar em conta dois critérios basicamente: o princípio da razoabilidade / proporcionalidade, porquanto se deve analisar sobre o sacrifício de qual das hipóteses acima gerará menor prejuízo à criança ou ao adolescente, pautando-se na eqüidade e no sendo de justiça, e, com efeito, o princípio do melhor interesse da criança.” 6.2. INOVAÇÕES DO NOVO CÓDIGO CIVIL O surgimento do Código Civil de 1916 foi em uma época em que as atividades eram basicamente no campo, onde as famílias trabalhavam em suas propriedades rurais e de lá tiravam seu próprio sustento. E em decorrência disso o homem era considerado o “chefe da família”, enquanto a mulher, subordinada a suas, ordens era responsável pela casa e pelos filhos. E por este fator, o casamento era o único caminho para a constituição da família para assim, fazer gozo dos direitos do ordenamento. (COSTA, 2006). E deste modo, o artigo 338, do Código Civil de 1916, considerava somente parte da filiação legítima àqueles concebidos na constância do casamento, em 180 dias após a convivência conjugal ou 300 dias após o fim dela, que se desfez por morte, desquite ou anulação, onde claramente é possível notar que nem se cogitava na possibilidade do reconhecimento dos filhos havidos pela reprodução assistida (GASPAROTTO e RIBEIRO, 2008). Além disto, era notável a discriminação entre os filhos, pois também só eram considerados e aceitos pela sociedade àqueles advindos da consangüinidade, de onde detinham todos os direitos inerentes à filiação. (COSTA, 2006). Destarte observar esta discriminação, no capítulo IV, do Código Civil de 1916, nos artigos 355 à 367, que abordava sobre o reconhecimento dos filhos ilegítimos, trazendo, portanto, uma separação entre os filhos advindos do casamento (legítimos) e os extraconjugais (ilegítimos). Como a lei deve sempre estar atenta e caminhar junto com os avanços da humanidade, a atualização da lei civilista trouxe grandes benefícios à sociedade em relação às evoluções tecnológicas e científicas, mas ainda não suficientes. E como se trata de um tema que está em constante discussão é fácil encontrar omissões na lei. A nossa lei pátria deixou uma lacuna em seu ordenamento civilista se esquecendo de que o avanço biológico e tecnológico hoje é meio essencial de vida para as famílias, que por alguma razão, buscam destes meios para solucionar seus problemas. O instituto da reprodução assistida, como já abordado anteriormente, além de ser regulamentada pela Resolução nº 1.358 do Conselho Federal de Medicina, também está prevista no Código Civil de 2002, em vigência. Assim, expõe Ribas, (2008): “As únicas normas existentes estão contidas na Resolução 1.358 do Conselho Federal de Medicina, de 1992, que traça os caminhos éticos a serem seguidos pelos médicos, porém, não possui caráter impositivo ou sancionador em caso de descumprimento de seus preceitos. O atual Código Civil apenas mencionou algumas técnicas de reprodução assistida, constatando sua existência, todavia, deixou de regulamentá-las, motivo pelo qual a matéria precisa ser objeto de regulamentação por lei específica […] Existem alguns projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional sobre a reprodução assistida, consistindo em pequenas variações da Resolução 1.358/92 e que devem ser aperfeiçoados. Um dos projetos mais completos é o elaborado pelo Senador Lúcio Alcântara (nº 90/99), que se encontra em fase mais adiantada de tramitação, embora alguns de seus dispositivos sejam considerados inconstitucionais.” Esta inovação trazida pelo Código Civil de 2002, está no artigo 1597, V, onde estabelece a presunção da filiação àqueles “havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”, veio com o intuito de modernizar o Direito de Família. Contudo, esclarece Cândido, (2007): ‘O novo Código Civil realiza, aquilo que chamamos de “a passagem do modelo clássico para o modelo contemporâneo de filiação”. O que o novo Código Civil resgata, sem vacilações, é que a filiação pode decorrer de fontes plúrimas e não mais, exclusivamente biológica, como preconizava a proposta codificada de 1916. Agora, a filiação pode decorrer dos meros laços sanguíneos (parentesco natural), da mera adoção, ou eleição (parentesco civil), como da pura afeição (parentesco resultante das procriações artificiais).” O inciso V, do artigo 1597, do Código Civil de 2002, trás a expressão “desde que tenha prévia autorização do marido”, o que se faz crer que, mesmo que seja utilizado sêmen de um terceiro doador, é necessário que o casal seja casado. Porém, com a chegada da modernidade e as mudanças nos hábitos culturais, morais e éticos das pessoas em sociedade, sobretudo pela independência financeira, é notável a vontade de algumas mulheres que, sem a vontade de enlace matrimonial ou a união estável, querem constituir família. E cabe a elas recorrer a um banco de sêmen para que possam usufruir das técnicas da reprodução assistida, e assim, através da inseminação artificial heteróloga, conseguirem gerar o tão desejado filho. A mulher solteira pode utilizar das técnicas da inseminação artificial heteróloga? Quanto ao questionamento, diz Lopes (2000, p. 587): “Parece-nos extremamente algoz um código de ética que sacrifique o desejo de uma mulher vir a ser mãe somente porque a mesma não conseguiu lograr um matrimônio. (…) A resolução do CFM que normatiza os procedimentos em reprodução assistida menciona que “toda mulher capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta resolução pode ser receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de maneira livre e consciente, em documento de consentimento informado”. Mais ainda, “estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou companheiro”. Assim sendo, fica patente que entende o colegiado elaborador das citadas normas, que pode a mulher solteira fazer uso de uma técnica de inseminação artificial para satisfazer o seu desejo de ser mãe.” Entretanto, de maneira oposta, expõe Venosa, (2006): “Caio Mário da Silva Pereira (1996:117) observa, com propriedade, que, se a mulher solteira, separada, divorciada ou viúva praticar livremente a inseminação artificial, não pode pretender identificar o doador anônimo do sêmen. A questão, porém, não é de deslinde tão simples com relação ao filho assim concebido, pois há profundas conseqüências éticas, morais e psicológicas a serem consideradas. Essa situação de geração independente do filho pela mulher solteira não pode ser incentivada. (…) Desse modo, o ordenamento e a ética médica devem repelir a possibilidade de procriação artificial à mulher não casada ou não ligada à união estável. Essa proibição, aliás, já consta de projeto de lei sobre reprodução assistida, em trâmite no Congresso”. Ainda, discorre a respeito, Aldrovandi, (2002): “Sendo admitida a inseminação de mulheres solteiras, separadas ou viúvas, como fica a situação da criança gerada, quanto à filiação? Nesses casos não é possível, segundo Moreira Filho (16), atribuir-se ao doador qualquer vínculo de filiação. Sustenta ainda, o referido autor, que deve ser usada analogia ao instituto da adoção, devendo a criança ser registrada somente em nome da mãe, mas podendo no futuro requerer o reconhecimento de seu vínculo genético de filiação biológica. Ressalta, ao final que: "Isto, porém, não acarretará ao doador quaisquer obrigações ou direitos relativos à criança, uma vez que, ao doar seu sêmen ele abdica voluntariamente de sua paternidade, da mesma forma que o faz quem entrega uma criança para adoção ou quem perde o poder-familiar." (apud MOREIRA FILHO, José Roberto. Op. cit. p.3) Ademais, em entrevista à Revista Época online, na coluna Mulher 7×7, em 15/07/2009, a paulistana Lílian Braga, à época com 53 anos, estava grávida através de um sêmen doado, feita por uma reprodução independente. Como consta na entrevista, Lílian era separada do ex-marido, há seis anos e utilizou da técnica da inseminação artificial heteróloga para engravidar: “[…] Quando você decidiu fazer inseminação, procurou seu ex? Nós continuamos amigos – e sócios, porque ainda não vendemos a Locanda (hotel-restaurante). Para mim, era o mais natural. Pedi algumas vezes que ele fosse o pai, mas a resposta foi não. Não conheço os motivos dele. Fiquei triste mas não se pode obrigar ninguém a querer ser pai ou mãe. Aí, no ano passado, conheci um médico fabuloso, Marcio Coslovsky, especialista em reprodução. Perguntei a ele se daria para engravidar na minha idade, já que não entrei na menopausa. Ele disse “sim, mas não garanto”. Em que hospital você buscou o sêmen? No Albert Einstein, em São Paulo. Sei que eles são rigorosos, examinam os antecedentes médicos do doador. Fui lá em novembro e engravidei de primeira, acho que se foi tão fácil é porque era para ser. Tenho consciência de que não é comum. Algumas mulheres tentam de tudo e passam por processos dolorosos. Cada caso é um caso. Que tipo de “pai” você escolheu? Era um banco grande de dados. Escolhi um engenheiro de 37 anos, claro, de olhos claros, cabelos castanhos, alto. Queria alguém que não fosse gordo porque os genes a gente herda. O Einstein tem o histórico de doenças da família do doador. Ele se submete a mil exames para ser aprovado e poder doar seu sêmen. Nós sabemos apenas as características – não sabemos quem é. […] Foi com seu óvulo mesmo? Exatamente. Meu óvulo foi retirado, fecundado, e depois recolocado. […]” É considerável que casos como o citado à cima podem ser comuns entre as mulheres que desejam engravidar e não têm um marido ou companheiro. Porém, é notável a omissão da lei quanto à questão da inseminação artificial heteróloga em mulheres solteiras, pois há somente permissão legal para utilizar as técnicas da reprodução assistida àquelas que forem casadas ou que viverem em união estável, com a autorização do marido ou companheiro. Esta autorização pode ser revogada até o momento da inseminação artificial, ou seja, antes que o sêmen de um terceiro doador seja implantado dentro do útero da receptora. Porém, após a inseminação artificial acontecer, ela é irretratável mesmo quando a sociedade conjugal for desfeita, pois ela é relacionada durante a sua constância e não tem efeitos se ela acabar (GASPAROTTO e RIBEIRO, 2008). Contudo, dispõe Venosa (2006), que “o rigor da lei é importante nesse sentido para que a sociedade não venha enfrentar problemas de difícil solução ética e jurídica no futuro”, pois as conseqüências da inseminação artificial heteróloga envolvem crianças, que posteriormente irão questionar sua origem, com o desejo de descobrir de onde vieram suas características físicas e pessoais. E se a lei deixar brechas, a dificuldade só tem a aumentar para a solução deste problema, pois se trata de vida humana, onde a dignidade deve ser preservada, em primeiro lugar. 6.3. CONHECIMENTO DA ORIGEM BIOLÓGICA X ANONIMATO DO DOADOR O princípio da dignidade da pessoa humana, como já tratado em tópico anterior, garante também ao indivíduo o direito de conhecer sua origem biológica e genética, como parte integrante dos direitos da personalidade. Deste modo, discorrem à respeito sobre a vedação do acesso às origens biológicas sob pena de violar a dignidade humana e integridade, como direitos da personalidade, Costa e Falavigna (2002, p. 210, apud BALAN, 2006): “[…] a situação é semelhante à da adoção, ou seja, se há possibilidade de o filho adotado ver reconhecida sua origem biológica, o mesmo ocorre para os que nasceram de fecundação artificial heteróloga. Nesse caso a legislação é clara de negar qualquer relação jurídica entre o filho dado em adoção e os pais biológicos, sendo omissa em relação às inseminações heterólogas; porém, visto que mesmo em se tratando de adoção há possibilidade de se conhecer a origem biológica, não se negará o direito do filho concebido por reprodução assistida heteróloga.” Este princípio, quando utilizado para a finalidade da descoberta da origem, encontra barreiras frente às normas contidas na Resolução do Conselho Federal de Medicina no 1.358/92, quanto ao anonimato do doador, e seu direito à intimidade e à privacidade perante à criança que vai ser gerada, que tem o direito de buscar sua origem genética No ponto de vista de Lôbo (2004), este explica: “Por fim, o direito ao conhecimento da origem genética não significa necessariamente direito à filiação. Sua natureza é de direito da personalidade, de que é titular cada ser humano. A origem genética apenas poderá interferir nas relações de família como meio de prova para reconhecer judicialmente a paternidade ou maternidade, ou para contestá-la, se não houver estado de filiação constituído, nunca para negá-lo”. Este sigilo tão importante e frisado à todo momento tem como causa a relação que a criança terá com sua família bem como sua integração no meio de modo que possa a evitar a intervenção de pessoas estranhas aos laços e assim impedir que haja uma má formação criando uma visão discriminatória da sociedade perante à criança. (MARQUES, 2003) Essa identidade do doador, só pode ser revelada em casos excepcionais, que sejam indispensáveis à sua saúde, ou quando o material genético do doador conter cargas defeituosas, problemas estes que envolvam critérios médicos de emergência evitando enfermidades hereditárias. O conhecimento da identidade do doador somente serviria para que a criança tomasse conhecimento de sua origem biológica, e nada mais. (BRAUNER, 2003, p. 88, apud BALAN, 2006) Destarte observar, a questão do conhecimento deste vínculo biológico perante os requisitos dos impedimentos matrimoniais. Além de prevenir doenças que são transmitidas pela herança genética, seria um motivo a mais a liberação dos dados do doador e sua identidade para que evite, por exemplo, uma união incestuosa. Para Welter, (2003. p. 231, apud BALAN, 2006): “[…] não importa se a reprodução é natural ou medicamente assistida. Em qualquer caso, os filhos e os pais possuem o direito de investigar e, até mesmo, negar a paternidade biológica, como parte integrante de seus direitos de cidadania e dignidade da pessoa humana. Em caso de interesse do filho o anonimato deveria ser desocultado, uma vez que não participou do acordo entre os doadores e os receptores.”   Ainda no ponto de vista de Welter, (2003. p. 231, apud BALAN, 2006), a investigação da paternidade serviria para que o incesto pudesse ser impedido, além de chegar ao conhecimento de sua ancestralidade, onde também caberia ao doador o direito de investigar. Diante o exposto em questão, para Lôbo (2004): “[…] o estado de filiação de cada pessoa humana é único e de natureza socioafetiva, desenvolvido na convivência familiar, ainda que derive biologicamente dos pais, na maioria dos casos. Portanto, não pode haver conflito com outro que ainda não se constituiu.” A necessidade do anonimato é essencial ao doador do material genético, pois no momento em que assina o termo e faz a doação, ele está abrindo mão da paternidade, inclusive, os direitos e deveres que dela são decorrentes. Porém, no Estatuto da Criança e Adolescente, prevê a investigação da paternidade a qualquer tempo. (RIBAS, 2008). Entretanto, este sigilo não deve ser absoluto, pois como já dito anteriormente, o anonimato da identidade do doador pode gerar uniões incestuosas, sem que os parentes saibam deste vínculo entre si. (RIBAS, 2008). Na visão de Gama, (2003, p. 803, apud BALAN, 2006): “[…] o anonimato das pessoas envolvidas deve ser mantido, mas devem ceder à pessoa que resultou da técnica concepcionista heteróloga, diante do reconhecimento pelo Direito brasileiro dos direitos fundamentais à identidade, à privacidade e à intimidade, podendo a pessoa ter acesso às informações sobre toda a sua história sob o prisma biológico para o resguardo de sua existência, com a proteção contra possíveis doenças hereditárias, sendo o único titular de interesse legítimo para descobrir suas origens.” O doador, mesmo com sua identidade sigilosa, não perde a classificação de pai biológico, só não faz jus ao cargo familiar e nem goza dos direitos e deveres decorrentes à paternidade. Os filhos advindos da técnica da inseminação artificial heteróloga, no Direito de Família, podem ser comparados aos filhos adotivos. Mesmo depois de já formado o vínculo civil entre a criança gerada pelas técnicas da reprodução assistida e seus pais, receptores, diante dos fatores genéticos, não é impedimento para que, no futuro, esta criança diante de real necessidade, venha a conhecer a paternidade biológica. (BALAN, 2006). Há também entendimento de que o direito ao conhecimento da verdade genética pode ser fundamentado através do artigo 227, §6º, da Constituição Federal de 1988, que expressa a igualdade de direitos e qualificações dos filhos, devendo, portanto, dar à criança que foi gerada pela inseminação artificial heteróloga, o direito de saber sua origem biológica, assim como um que nasceu das relações sexuais, também tem. (GASPAROTTO e RIBEIRO, 2008). 6.4. PATERNIDADE SOCIO-AFETIVA Com o surgimento das técnicas de reprodução assistida, em especial, a inseminação artificial heteróloga, e com o anonimato do pai biológico, que doou o sêmen para a fertilização, o marido que autoriza sua esposa a realizar tal técnica, passa a ter a paternidade sócio-afetiva em relação à criança que vai nascer. A expressão pater ist est, quem nuptiae demonstrat, ou seja, o pai da criança é o marido da mãe, foi banida pelo Código Civil de 2002, pois atualmente a relação sexual não é mais a única forma de se constituir família, e com o advento da inseminação artificial heteróloga, hoje é considerada a paternidade sócio-afetiva. (RIBAS, 2008). E atualmente, assim como diz Fernandes, (2008), “presume-se pai o marido da mãe que age e se apresenta como pai, independentemente de ter sido ou não o procriador genético”. E assim, relata Rodrigues, (2006), que “a inseminação artificial é totalmente antagônica a esta idéia, pois nela o marido tem certeza absoluta que não é o pai biológico, e assim mesmo promove a perfilhação, no sentido de consentir no ingresso deste nascituro na sua família”. Também conceitua Lôbo (2004), que “o estado de filiação, que decorre da estabilidade dos laços afetivos construídos no cotidiano de pai e filho, constitui fundamento essencial da atribuição de paternidade ou maternidade”. Entende ainda, que a paternidade sócio-afetiva é o “liame específico, que une duas pessoas em razão do parentesco ou de outra fonte constitutiva da relação de família”. (LÔBO, 2006). Assim trazem Negrão e Gouvêa, (2006), o Enunciado 104 do Conselho de Justiça Federal: “No âmbito das técnicas de reprodução assistida envolvendo o emprego de material fático da relação sexual é substituído pela vontade (ou, eventualmente, pelo risco da situação jurídica matrimonial) juridicamente qualificada, gerando presunção absoluta ou relativa de paternidade no que tange ao marido da mãe da criança concebida, dependendo da manifestação expressa (ou implícita) de vontade no curso do casamento”. No Brasil, na Constituição Federal de 1988, por analogia, pode-se dizer que àqueles que nasceram pelas técnicas da inseminação artificial possuem os mesmos direitos que àqueles que foram adotados, tendo como embasamento o artigo 227, §5º e §6º do texto constitucional, que trata a adoção como escolha afetiva. O parentesco genético é “apagado” da vida da criança assim como todos os vínculos com sua família biológica, para que ela possa interagir com os pais sócio-afetivos e assim fazer parte como um todo da nova família, sem prejuízos psíquicos. E assim, também deve ser com a criança nascida pelas técnicas da inseminação artificial heteróloga. A paternidade sócio-afetiva tem ligação de parentesco civil com a criança, pois o vínculo criado entre eles é absoluto, sendo, portanto, sua paternidade legal e, o reconhecimento é a forma jurídica estabelecida entre o pai e o filho concebido pela inseminação heteróloga. (RODRIGUES, 2006) 6.4.1 Investigação e Negatória de Paternidade A investigação de paternidade, no antigo Código Civil de 1916, era admitida, porém com algumas restrições, e dava legitimidade somente aos filhos naturais entre os ilegítimos. (RODRIGUES, 2006). No artigo 363, do referido Código, trazia algumas regras taxativas em seus incisos com os casos em que se permitia investigar a paternidade, e se estivesse fora dessas situações, mesmo sendo o filho natural, era proibido a investigação de paternidade (RODRIGUES, 2006). Senão vejamos: “Art. 363: I – se ao tempo da concepção a mãe estava concubinada com o pretendido pai; II – se ao tempo da concepção a mãe estava concubinada com o pretendido pai; III – se existir escrito daquele a quem se atribui a paternidade, reconhecendo-a expressamente”. Porém, logo esta regra pôde ser modificada com o advento da Magna Carta em 1988 que trouxe em seu artigo 227, §6º, a igualdade entre os filhos, havidos ou não do matrimônio. Assim, independendo da origem do filho, este passou a poder investigar sem qualquer restrição. (RODRIGUES, 2006). Assim também, o mesmo dispositivo pode ser encontrado no Estatuto da Criança e do Adolescente nos termos do artigo 27, que trata do direito personalíssimo ao reconhecimento da filiação, sem restrição. Com a atualização do Código Civil, em 2002, este manteve o regime adotado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, mantendo livre a propositura para a investigação da paternidade. (RODRIGUES, 2006).  Posiciona-se, contudo, Diniz (Ob. cit., p. 438, apud RIBAS, 2008): “Nessa esteira de entendimento, Maria Helena DINIZ nos ensina que a criança gerada através de reprodução heteróloga tem direito apenas a sua identidade genética, sobretudo para se prevenir de moléstias congênitas e evitar o incesto, o que não se confunde com o direito à filiação, nem gera o direito de reivindicar nome de família, pensão alimentícia e herança do pai genético. Assim, não poderá pleitear o estabelecimento de relação de parentesco, nem responsabilidade civil do doador.” Em vista disso, a criança gerada pela inseminação heteróloga, pode somente investigar a identidade do pai biológico, ou seja, aquele que doou o sêmen, por ter o direito de conhecer sua identidade biológica e também para se prevenir de doenças hereditárias e evitar uniões incestuosas. Para efeitos patrimoniais e alimentares, a investigação de paternidade não é admitida em desfavor do doador, até porque se fosse, não haveria ninguém disposto a doar pelo medo de ser sujeito passivo de milhares de ações do tipo. Assim já decidiu a Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. INVESTIGATÓRIA DE PATERNIDADE CUMULADA COM PETIÇÃO DE HERANÇA. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA. O direito à apuração do verdadeiro estado de filiação biológico torna imprescritível a investigatória de paternidade, permitindo o conhecimento da real origem da pessoa, sem que isso guarde relação com sua idade. A certeza, porém de filiação socio-afetiva entre o investigante e seu pai registral afasta a possibilidade de alteração do assento de nascimento do apelante, em como qualquer pretensão de cunho patrimonial . A instrução deverá prosseguir unicamente com o fito de esclarecer a questão da origem biológica. Deram provimento à apelação, por maioria. (segredo de justiça)” (Apelação Cível Nº 70009550500, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator Vencido: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Redator para Acordão: Walda Maria Melo Pierro, Julgado em 23/02/2005). A criança, fruto da inseminação artificial heteróloga, para valer-se do direito de conhecer o pai biológico, doador do sêmen, esta pode utilizar, também, do remédio constitucional hábeas data, previsto no artigo 5º, LXXI, “a”, da Constituição Federal de 1988, que assegura “o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público”. (GAMA, 2003, p. 803, apud BALAN, 2006). Quanto às regras de reprodução assistida, no artigo 1597, inciso V, do Código Civil atual, somente legaliza a inseminação artificial heteróloga quando esta tiver prévia autorização do marido, pois prevalece a presunção de paternidade, Pater is est, advinda deste, com a realização do casamento: “Art. 1597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”.  Portanto, se o marido autorizou a inseminação, ele não poderá negar a paternidade alegando que não é o pai biológico e nem poderá ser admitida a investigação de paternidade, com o mesmo fundamento. (LÔBO, 2004). Até porque, ele tem a paternidade sócio-afetiva em relação à criança. Trazem, em vista disso, Negrão e Gouvêa, (2006), o Enunciado 258 do Conselho de Justiça Federal: “Não cabe a ação prevista no art. 1601 do Código Civil se a filiação tiver origem em procriação assistida heteróloga, autorizada pelo marido nos termos do inc. V do art. 1597, cuja paternidade configura presunção absoluta”. E deste modo explica Rodrigues (2006), que “o reconhecimento é irrevogável, impedindo o arrependimento”, de acordo com o artigo 1610, do Código Civil de 2002. Logo, manifesta Silva, (2004): “Uma vez julgada procedente a ação de investigação de paternidade e/ou maternidade socioafetiva, decorrem os mesmos efeitos jurídicos dos arts. 39 a 52 do ECA, que são aplicados à adoção, quais sejam: a) a declaração do estado de filho afetivo; b) a feitura ou a alteração do registro civil de nascimento; c) a adoção do nome (sobrenome) dos pais sociológicos; d) as relações de parentesco com os parentes dos pais afetivos; e) a irrevogabilidade da paternidade e da maternidade sociológica; f)a herança entre pais, filho e parentes sociológicos; g) o poder familiar h) a guarda e o sustento do filho ou pagamento de alimentos; i) o direito de visitas etc”. Vale ressaltar, o problema que é gerado se, contudo, o pai sócio-afetivo vier a se separar da mãe. Geralmente nestes casos, o pai deseja a desconstituição de seu nome no registro de nascimento do filho como forma de se livrar das obrigações. (FILHA, 2008). Contudo, explica ainda Filha (2008): “No entanto, o entendimento que vem prevalecendo em casos como esses é o de ser impossível à desconstituição da paternidade, tendo em vista, principalmente, o fato de que o conhecimento da realidade, ou seja, a falta de descendência, impediria a retirada de eficácia do ato realizado.” Em virtude disso, seria descabido a retirada do nome do pai sócio-afetivo da certidão de nascimento do filho, pois há época do registro, o mesmo tinha pleno conhecimento sobre a aceitação da paternidade, além do que consentiu para que sua mulher realizasse a inseminação artificial heteróloga. Para mais, os efeitos gerados também na vida do filho sócio-afetivo com o desligamento da paternidade, geraria transtornos graves, pois além de não se conhecer o pai biológico, estaria sendo abandonado pelo pai que considerava ser. Neste sentido, já decidiu a Sexta Câmara do Tribunal de Justiça de Minas Gerais: “EMENTA: AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. REGISTRO. MANIFESTAÇÃO VOLITIVA. ERRO. INEXISTÊNCIA. PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA. PREPONDERÂNCIA. Àquele que, por ato voluntário, registra alguém como filho, mesmo sabendo não ser o seu pai biológico, não assiste o direito de infirmar a paternidade, após o transcurso de vários anos e o estabelecimento de fortes laços sócio-afetivos entre as partes. Em tal hipótese deve prevalecer a paternidade sócio-afetiva sobre a biológica, em atenção à primazia dos interesses do menor.” (TJMG. Apelação Cível n° 1.0481.04.040675-5/001. Rel. Maurício Barros. 06/02/2009). Assim, no mesmo sentindo, também já decidiu a Nona Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo: “Ementa: Ação negatóna de paternidade – Improcedência – Inconformismo – Desacolhimento – Inexistência de vício de consentimento – Autor que reconheceu espontaneamente a paternidade, a despeito de saber que não era o pai biológico da criança – Relação entre pai e filho que não se rompe com a separação da genitora e do autor – Prevalência da relação socioafetiva sobre o vínculo biológico – Sentença mantida – Recurso desprovido”. (TJSP. Apelação com Revisão nº 6339894800. Rel. Grava Brazil. 10/06/2009). Observa-se, portanto, que o fator da existência da paternidade sócio-afetiva é motivo, mais do que suficiente, para que o desprovimento da desvinculação da paternidade entre o pai e o filho, afetivos. 6.4.1.1 Questões alimentícias e sucessórias Conforme já exposto anteriormente, o pai biológico, doador do sêmen, mesmo que conhecido, não tem responsabilidades patrimoniais nem alimentares perante a criança que nasceu. As questões sucessórias e alimentícias serão tratadas perante o pai sócio-afetivo, conforme permitido em lei. Os alimentos, para o Direito, consistem nas prestações em dinheiro ou espécie, que uma pessoa fornece à outra com a finalidade de suprir o necessário ao seu sustento, vestuário, habitação, assistência médica, ou seja, todos os meios para que o alimentado possa viver de acordo com suas necessidades. (RODRIGUES, 2006). Deste modo, explica Silva, (2004): “No tocante aos filhos menores, é dever dos pais zelar pela sua assistência, criação e educação e, inversamente, os filhos maiores têm o dever de ajudar os pais na velhice. Sendo assim, a família existe enquanto local onde persiste a reciprocidade, visto a família eudemonista recepcionada pela Carta Magna. Nesse sentido, ganha importância a disposição contida no seu art. 229, uma vez que atribui à prole o dever de amparo e assistência aos pais, espelhando o espírito de colaboração que se assenta no interior de qualquer espécie familiar.” Os requisitos básicos para que se possa determinar a fixação dos alimentos, deve observar se há o vínculo de parentesco, a condição financeira do alimentante e a real necessidade do alimentado, conforme art. 1694, caput, do Código Civil vigente. Tal critério deve ser observado pelo binômio da necessidade-possibilidade. (SILVA, 2006). Isto posto, após reconhecido o vínculo sócio-afetivo e em decorrência das necessidades e possibilidades de sustento da família, os alimentos é direito essencial para que, àquele que nasceu de uma inseminação artificial heteróloga, se possa reivindicar. Também é recíproco ao pai sócio-afetivo, que em sua velhice, depois de ter cumprido com suas obrigações paternas, tem o direito de pedir alimentos ao filho. Outra inovação do Código Civil de 2002, em vigência, foi com o artigo 1798, que trata da vocação hereditária, onde dá o direito de suceder aos que já estão concebidos, através da inseminação artificial, no momento da abertura da sucessão. Assim trata o Enunciado nº 267, da III Jornada de Direito Civil, CJF (apud GASPAROTTO e RIBEIRO, 2008): “A regra do art. 1798 do Código Civil deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição de herança”. Portanto, se houve a autorização do marido, conforme já explicado anteriormente, e logo houver a inseminação artificial heteróloga e, antes do nascimento da criança, este marido vier a falecer, esta terá os direitos sucessórios garantidos até nascer, de acordo também com o artigo 2º, do Código Civil de 2002, até poder ter a titularidade dos bens herdados. Os embriões excedentes não são incluídos nesta regra por não existir a presunção de paternidade. (GASPAROTTO e RIBEIRO, 2008). Pelo fundamento da igualdade dos filhos, presente no texto constitucional, garante ao filho sócio-afetivo que participe da vocação hereditária, tendo, portanto, seus direitos de sucedê-lo. Conclui, portanto, Lôbo, (2006): “A paternidade é muito mais que o provimento de alimentos ou a causa de partilha de bens hereditários. Envolve a constituição de valores e da singularidade da pessoa e de sua dignidade humana, adquiridos principalmente na convivência familiar durante a infância e a adolescência. A paternidade é múnus, direito-dever, construída na relação afetiva e que assume os deveres de realização dos direitos fundamentais da pessoa em formação "à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar" (art. 227 da Constituição). É pai quem assumiu esses deveres, ainda que não seja o genitor.”  Se aquele que consentiu, a inseminação do material genético de terceiros em sua esposa, e o fez por livre e espontânea vontade, assume automaticamente a responsabilidade paternal pela criança que vai nascer, assim como vai dar seu nome a ela e encarregar de assumir seus deveres perante os direitos fundamentais que ela terá. Em matéria de Direito Comparado, na Inglaterra, um bombeiro de 37 anos, chamado Andy Bathie, foi contrato por um casal de mulheres homossexuais para ser doador de esperma, e segundo ele, o casal garantiu que ele não seria responsável por nenhuma prestação financeira ou pessoal com a criança. Porém, a Agência de Proteção à Criança da Grã-Bretanha, entrou em contato com o bombeiro e o obrigou a pagar pensão alimentícia às duas crianças, pois na Inglaterra só exime desta responsabilidade os doadores anônimos que doam para clínicas especializadas. Àqueles que fazem doação de outra forma a não ser anônima, são legalmente considerados pais. (Notícias do site Terra, 04 de dezembro de 2007, 07:34, atualizado às 09:43). Por outro lado, na Pennsylvania, a Justiça liberou o doador de esperma, Joel L. McKiernan, a pagar pensão alimentícia aos filhos que nasceram através de sua doação. A mais alta Corte, decidiu que a receptora, Ivonne V. Ferguson, não poderia voltar atrás da decisão que eximia Joel de qualquer responsabilidade perante às crianças geradas através de seus espermatozóides. (Jus Brasil Notícias, 05 de Janeiro de 2008). 7 CONCLUSÃO Com o advento da Constituição Federal de 1988 juntamente com o Código Civil de 2002, as técnicas de reprodução assistida puderam ser inseridas no ordenamento jurídico brasileiro com a finalidade de regular o avanço da ciência que beneficia a sociedade. Porém, tal regulamento ainda é bastante deficiente, pois trata de questões moralmente ainda discutidas, por se tratar de uma questão que interfere na vida e na dignidade da pessoa humana. Ninguém pode negar que as técnicas de reprodução assistida foi um marco tecnobiológico muito forte e de grande repercussão social, que deu esperança àqueles que, pelo método natural, não poderiam realizar o sonho da paternidade e da maternidade. Contudo, é preciso ter cuidado quando se lida com a vida de alguém que não poderá participar deste acordo de vontades. Os efeitos que são gerados com o nascimento daqueles advindos pela inseminação artificial heteróloga são diferentes e mais delicados se comparado com os gerados naturalmente, pois envolvem a curiosidade pela origem biológica que nem sempre poderá ser revelada, pelo fato do doador estar em anonimato. A paternidade sócio-afetiva que existirá também deve ser levada a sério, pois o parentesco civil também tem os mesmos direitos e deveres do parentesco consangüíneo. O consentimento do marido à sua esposa em autorizar que ela insemine material genético de um terceiro anônimo deve ser dotado de certezas, pois futuramente, ele não pode ser desfeito. As técnicas da inseminação artificial heteróloga causam muita polêmica na atualidade e será tema para discussão ainda por muito tempo. Há muito mais em jogo do que se imagina ter, pois as influências religiosas, morais e éticas na vida das pessoas sempre foram muito fortes, o que faz ainda divergir muitos posicionamentos quanto ao direito de saber sua origem e a preservação da identidade daquele que doa para ajudar. As pessoas estão sempre em busca da felicidade exatamente por terem a liberdade que não tinham no passado. A evolução dos tempos também trouxe essa facilidade para a humanidade, o que influencia cada vez mais o direito de ter uma família além de todos aqueles sentimentos necessários para seu bem-estar. E com o afeto reconhecido pelo ordenamento jurídico, torna cada vez mais fácil e mais motivadora a busca pelos sonhos daqueles que, se utilizassem do modo natural, não iriam conseguir. A afetividade sempre existiu desde os primórdios de vida na Terra, mas antes reprimida pelos valores morais que a sociedade impunha acabava se tornando discriminatória e recolhida. Hoje, com o mundo moderno, ela se torna voluntária pelo desejo da convivência familiar, sempre buscando os melhores interesses para a criança e o adolescente. Certo é de que, com amparo legal da constituição, todos têm o direito de saber a real verdade sobre sua origem. Ninguém participa do acordo de vontade em ser gerado, e exatamente por este fator, não se pode proibir o direito de conhecer de quem se foi gerado. Assim como, também, aquele que buscou um banco de sêmen, com o intuito de ajudar às pessoas com dificuldades férteis, não pode ter sua identidade revelada. Destarte concluir que, a criança gerada pela inseminação artificial heteróloga somente poderá ter acesso à identidade de seu pai biológico, quando estiver sofrendo risco de grave moléstia hereditária, ou tão somente para saber sua origem, e nada mais. Os efeitos da real paternidade, a sócio-afetiva será dada ao pai que vai criá-la.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-140/as-questoes-juridicas-da-inseminacao-artificial-heterologa/
Uma análise bioética dos alimentos transgênicos: contornos do princípio da precaução em sede de segurança alimentar
O objeto do presente está assentado na imprescindibilidade de se desenvolver um debate sobre os alimentos transgênicos em uma perspectiva da Bioética e do princípio da precaução. Neste aspecto, é possível salientar que o corolário da precaução se apresenta como uma garantia contra os riscos potenciais que, em harmonia com o estado atual de conhecimento, não são passíveis, ainda, de identificação. É desfraldada como flâmula pelo preceito da precaução que, em havendo ausência de certeza científica formal, existência de um dano robusto ou mesmo irreversível reclama a estruturação de medidas e instrumentos que possam minimizar e/ou evitar este dano. Sobreleva salientar que o dogma em apreço encontra seu sedimento de estruturação no princípio quinze da Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como Declaração do Rio/92, que em seu princípio quinze estabelece que, com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. Em tal debate está inserido o desenvolvimento dos alimentos transgênicos, sobretudo suas consequências, tanto para o ser humano como para o meio ambiente, a longo e médio prazo. O axioma em realce, neste cenário, constitui no principal norteador das políticas ambientais, à medida que este se reporta à função primordial de evitar os riscos e a ocorrência dos danos ambientais. Em decorrência da proeminência assumida pelo preceito da precaução, salta aos olhos que é robusto orientador das políticas ambientas, além de ser o alicerce fundante da edificação do jus ambiental. Valendo-se das reflexões fomentadas pela Bioética, o presente busca pautar um exame do tema no cenário nacional.
Biodireito
1 BIOÉTICA: ASPECTOS HISTÓRICOS E PRINCÍPIOS ORIENTADORES Bioética uma disciplina que visa à junção e a unificação da ética com tudo que concerne à vida, conclui-se tal afirmação quando se separa a palavra bioética, a palavra bio está ligada a tudo que se remete a vida e palavra ética está relacionada aos valores e princípios que orientam a sociedade, observa-se que há códigos de condutas éticas para respectivas profissões, pois há direcionamentos no que tange a forma como cada profissional deve se limitar a agir anexo as respectivas áreas. Foi visando esta ética nos parâmetros biológicos que o bioquímico que pesquisava sobre a oncologia, Van Rensselaer Potter lançou o termo “Bioética” na década de 1970. O objetivo central do Prof. Potter era estabelecer um vínculo entre a Ciência e Ética, para o pesquisador não havia possibilidade de se separar as duas áreas, no que diz respeito à importância que há na vida, a ciência que estuda a mesma não poderia andar sozinha, deveria haver algo que a orientasse e direcionasse. Com intuito de que houvesse o avanço saudável da ciência, Van Rensselaer começa a desenvolver a “Ciência da sobrevivência”, que desencadeia em um novo estudo de ética, que fora denominada como Bioética, para Potter bioética era a Ética da vida, do ser vivo, da sobrevivência. Por meados de 1932 a 1978 ocorreram casos de acontecimentos terríveis ligados à saúde e ao bem-estar do ser humano. A título de exemplificação, é possível fazer menção ao Estudo de Sífilis não-autorizado de Tuskegee, no qual 600 (seiscentos) negros contaminados com sífilis foram levados para um centro de pesquisa para serem estudados e pesquisados, objetivando estudos sobre a doença, ao final, após uma denúncia sobre a pesquisa, restou apenas 74 pessoas ainda infectadas. É oportuno consignar que a contrapartida pela participação no projeto era o acompanhamento médico, uma refeição quente no dia dos exames e o pagamento das despesas com o funeral. Durante o projeto foram dados, também, alguns prêmios em dinheiro pela participação. A inadequação inicial do estudo não foi a de não tratar, pois não havia uma terapêutica comprovada para sífilis naquela época. A inadequação foi omitir o diagnóstico conhecido e o prognóstico esperado. Neste sentido, é possível fazer menção à exposição de Goldim, especialmente quando aponta “o objetivo do Estudo Tuskegee, nome do centro de saúde onde foi realizado, era observar a evolução da doença, livre de tratamento. Vale relembrar que em 1929, já havia sido publicado um estudo, realizado na Noruega, a partir de dados históricos, relatando mais de 2000 casos de sífilis não tratado” (GOLDIM, 1999, s.p.). Para que houvesse um norteamento e em resposta aos casos anteriormente ocorridos, o governo norte-americano, em 1974 promoveu uma comissão que fora designada a elaborar princípios éticos primordiais que orientaria a pesquisa por meio de experimento com seres humanos. Esta conferência ficou popularmente conhecida com o Belmont report, que identificou em forma de resumo, os princípios éticos básicos que foram explanados durante os quatro dias de conferência. Atualmente, tais princípios são utilizados para norteamento na realização dos experimentos biológicos em diversos países, os princípios que se trata são: (i) o princípio da beneficência; (ii) o princípio da não-maleficência; (iii) o princípio da autonomia; (iv) o princípio da justiça; e (v) o princípio da equidade. Tradicionalmente, o princípio da beneficência encontra-se associado à excelência profissional desde os tempos remotos da medicina grega, materializando-se no Juramento de Hipócrates: “Usarei o tratamento para ajudar os doentes, de acordo com minha habilidade e julgamento e nunca o utilizarei para prejudicá-los”. Segundo Loch (s.d., p. 03), a beneficência significa fazer o bem, logo, em uma dimensão prática, todos os indivíduos têm a obrigação moral de agir para o benefício do outro. Ora, essa acepção, quando empregada na área de cuidados com a saúde, que compreende todas as profissões das ciências biomédicas, substancializa-se em fazer o melhor para o paciente, não apenas em uma perspectiva técnico-assistencial, mas também do ponto de vista ético. Ao lado disso, é oportuno apontar que se trata de usar todos os conhecimentos e habilidades profissionais a serviço do paciente, considerando, na construção da decisão, a minimização dos riscos e a maximização dos benefícios do procedimento a realizar (LOCH, s.d., p. 03). O princípio da não-maleficência, por sua vez, apregoa que o profissional de saúde tem o dever de, intencionalmente, não causar mal ou danos a seu paciente. “Considerado por muitos como o princípio fundamental da tradição hipocrática da ética médica, tem suas raízes em uma máxima que preconiza: ‘cria o hábito de duas coisas: socorrer (ajudar) ou, ao menos, não causar danos’” (LOCH, s.d., p. 02). O preceito em apreço é empregado frequentemente como uma exigência oral da profissão médica, materializando, desta feita, um mínimo ético, um dever profissional, que, caso não se cumpra, coloca o profissional da saúde numa situação de má-prática ou prática negligente da medicina ou das demais profissões da área biomédica. Há que se reconhecer que o dogma em destaque recebe especial importância em razão de o risco causar danos é inseparável de uma ação ou procedimento que está moralmente indicado. Já o princípio da autonomia estabelece que as pessoas possuem liberdade de decisão, ser autônomo em suas decisões, cada cidadão capaz possui esse direto de autonomia, é a capacidade de autodeterminação. Respeitar a autonomia do ser humano está relacionado com a preservação dos direitos fundamentais do homem e ligado a Dignidade da pessoa humana. E no âmbito da Bioética, para que ocorra o respeito à autonomia das pessoas é essencial à presença de duas condições, a liberdade e a informação. Loch aponta que autonomia é a capacidade de uma pessoa para decidir ou buscar aquilo que ela julga ser o melhor para si mesma, porém para que ela possa exercer a autodeterminação são imprescindíveis duas condições fundamentais, quais sejam: “a) capacidade para agir intencionalmente, o que pressupõe compreensão, razão e deliberação para decidir coerentemente entre as alternativas que lhe são apresentadas; b) liberdade, no sentido de estar livre de qualquer influência controladora para esta tomada de posição” (LOCH, s.d., p. 04). Em se tratando da liberdade, profere-se que o cidadão, possui a liberdade de decisão, sem nenhum tipo de influência e informação se desencadeia no conhecimento que a pessoa tem do seu estado para que possua capacidade de decidir se irá se submeter a algum procedimento. Ademais, há de salientar, que hora e outra não haverá o respeito à autonomia de uma pessoa em favor de beneficiar outras pessoas, exemplificando, fumantes. Por seu turno, os princípios da justiça e da equidade referem-se ao tratamento de todos de uma forma igual, utilizando-se da justa medida. Verifica-se que a equidade presa o atendimento das necessidades de cada pessoa de acordo com que precisa, é disponibilizar aos iguais de forma igual e dar aos desiguais de forma desigual. A questão da Justiça faz alusão ao fato de ser respeitar o direito de cada um de forma imparcial, não concedendo privilégios a alguém. Ao lado disso, insta anotar que Loch destaca que “O conceito de justiça, do ponto de vista filosófico, tem sido explicado com o uso de vários termos. Todos eles interpretam a justiça como um modo justo, apropriado e equitativo de tratar as pessoas em razão de alguma coisa que é merecida ou devida à elas. Estes critérios de merecimento, ou princípios materiais de justiça, devem estar baseados em algumas características capazes de tornar relevante e justo este tratamento. Como exemplos destes princípios materiais de justiça pode-se citar: 1. Para cada um, uma igual porção 2. Para cada um, de acordo com sua necessidade. 3. Para cada um, de acordo com seu esforço. 4. Para cada um, de acordo com sua contribuição. 5. Para cada um, de acordo com seu mérito. 6. Para cada um, de acordo com as regras de livre mercado” (LOCH, s.d., p. 05). Em 2005, houve a 33º conferência geral da UNESCO, em Paris, onde ocorrera o reconhecimento da Bioética em âmbitos universais, fora referendada e ratificada por 191 países, integrantes das nações Unidas. Contudo, houve discussões a cerca das particularidades da Declaração documental da Bioética em relação à particularidade de cada país. A Declaração Universal de Bioética e Direitos humanos descreve e apontam os objetivos, finalidades, princípios e aplicação do mesmo, considerações sobre Bioética; “Reconhecendo que questões éticas suscitadas pelos rápidos avanços na ciência e suas aplicações tecnológicas deveriam ser examinadas com o devido respeito à dignidade da pessoa humana e respeito universal por, e cumprimento dos direitos humanos e liberdades fundamentais, Decidindo que é necessário e oportuno para a comunidade internacional declarar princípios universais que proporcionarão uma base para a resposta da humanidade para os sempre-crescentes dilemas e controvérsias que a ciência e a tecnologia apresentam para a humanidade e para o meio ambiente”. (UNESCO, 2005, p. 65). Observa-se que a conferência geral manteve o intuito do Professor pioneiro Van Rensselaer Potter, foi almejado nesta conferência elaborar um suporte de princípios e procedimentos no que diz respeito à elaboração de suas legislações, construção política e outros ramos que estejam ligados á Bioética. Ao analisar o Documento da Declaração, percebe-se que o mesmo está respaldado por orientações, particularmente os princípios que cercaram a Bioética. No Brasil, em 1995 houve a criação da Sociedade Brasileira da Bioética (SBB), que possui por missão principal difusão da Bioética ao Brasil e tem como objetivo; “Reunir pessoas de diferentes formações, interessadas em fomentar a discussão e difusão da Bioética. Estimular a produção de conhecimento em Bioética; promover e assessorar planos, projetos, pesquisas e atividades na área de Bioética; patrocinar eventos de Bioética, conforme regulamentos próprios; apoiar e participar de movimentos e atividades que visem a valorização da Bioética.” (SOCIEDADE BRASILEIRA DE BIOÉTICA, 1995, s.p.). Como denominou Van Potter, a Bioética é a Ciência da Sobrevivência e promover o avanço da mesma torna-se essencial para um crescimento na tecnologia biológica, permeando-se pelos princípios que a norteiam. Bioética engloba e sociedade em geral, e é de suma importância que as pessoas se interem de seu conceito e princípios, tornando-se similar aos profissionais da saúde. 2 BREVES CONTORNOS AO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO Em sede de comentários introdutórios, é possível salientar que o corolário da precaução se apresenta como uma garantia contra os riscos potenciais que, em harmonia com o estado atual de conhecimento, não são passíveis, ainda, de identificação. É desfraldada como flâmula pelo preceito da precaução que, em havendo ausência de certeza científica formal, existência de um dano robusto ou mesmo irreversível reclama a estruturação de medidas e instrumentos que possam minimizar e/ou evitar este dano. Neste passo, sobreleva salientar que o dogma em apreço encontra seu sedimento de estruturação no princípio quinze da Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como Declaração do Rio/92, que em seu princípio quinze estabelece que: “Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental” (ONU, 1992). Quadra destacar, nesta toada, que a ausência de certeza científica absoluta não deve subsidiar pretexto para postergação do emprego de medidas efetivas que objetivem evitar a degradação ambiental. Mais que isso, é oportuno consignar que, diante da situação concreta, “a incerteza científica milita em favor do ambiente, carregando-se ao interessado o ônus de provar que as intervenções pretendidas não são perigosas e/ou poluentes”, como bem anota Romeu Thomé (2012, p. 69). Neste sentido, inclusive, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, ao relatoriar o Agravo Regimental no Agravo no Recurso Especial Nº 206.748/SP, salientou, com bastante pertinência, a dimensão do princípio da precaução, explicitando que “pressupõe a inversão do ônus probatório, transferindo para a concessionária o encargo de provar que sua conduta não ensejou riscos para o meio ambiente e, por consequência, aos pescadores da região” (BRASIL, 2013). O axioma em realce, neste cenário, constitui no principal norteador das políticas ambientais, à medida que este se reporta à função primordial de evitar os riscos e a ocorrência dos danos ambientais. Em decorrência da proeminência assumida pelo preceito da precaução, salta aos olhos que é robusto orientador das políticas ambientas, além de ser o alicerce fundante da edificação do jus ambiental. Nesse passo, diante da crise ambiental que condiciona o desenvolvimento econômico, de modo sustentável, a segundo plano e da devastação dos diversos ecossistemas em escala vertiginosa, prevenir a degradação do meio-ambiente passou a se objeto da preocupação constante de todos aqueles que buscam melhor qualidade de vida para as presentes e futuras gerações. Entalhou o princípio da precaução a Declaração de Wingspread de 1998, que “quando uma atividade representa ameaças de danos ao meio-ambiente ou à saúde humana, medidas de precaução devem ser tomadas, mesmo de algumas relações de causa e efeito não forem plenamente estabelecidas cientificamente” (MELIM, s.d., s.p.). Os Tribunais Pátrios já se manifestaram quanto à aplicabilidade do princípio em comento, consoante se infere dos arestos colacionados: “Ementa: Pedido de Suspensão. Meio Ambiente. Princípio da Precaução. Em matéria de meio ambiente vigora o princípio da precaução. Esse princípio deve ser observado pela Administração Pública, e também pelos empreendedores. A segurança dos investimentos constitui, também e principalmente, responsabilidade de quem os faz. À luz desse pressuposto, surpreende na espécie a circunstância de que empreendimento de tamanho vulto tenha sido iniciado, e continuado, sem que seus responsáveis tenham se munido da cautela de consultar o órgão federal incumbido de preservar o meio ambiente a respeito de sua viabilidade. Agravo regimental não provido”. (Superior Tribunal de Justiça – Corte Especial/ AgRg na SLS 1.564/MA/ Relator: Ministro Ari Pargendler/ Julgado em 16 mai. 2012/ Publicado no DJe em 06 jun. 2012). “Ementa: Direito Ambiental. Ação Civil Pública. Cana-de-açúcar. Queimadas. Art. 21, parágrafo único, da Lei n. 4771/65. Dano ao meio ambiente. Princípio da Precaução. Queima da palha de cana. Existência de regra expressa proibitiva. Exceção existente somente para preservar peculiaridades locais ou regionais relacionadas à identidade cultural. Inaplicabilidade às atividades agrícolas industriais. 1. O princípio da precaução, consagrado formalmente pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – Rio 92 (ratificada pelo Brasil), a ausência de certezas científicas não pode ser argumento utilizado para postergar a adoção de medidas eficazes para a proteção ambiental. Na dúvida, prevalece a defesa do meio ambiente. […] Recurso especial provido.” (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp nº 1.285.463/SP/ Relator: Ministro Humberto Martins/ Julgado em 28 fev. 2012/ Publicado no DJe em 06 mar; 2012). “Ementa: Processual Civil – Competência para julgamento de execução fiscal de multa por dano ambiental – Inexistência de interesse da União – Competência da Justiça Estadual – Prestação jurisdicional – Omissão – Não-ocorrência – Perícia – Dano Ambiental – Direito do suposto poluidor – Princípio da Precaução – Inversão do ônus da prova. 1. A competência para o julgamento de execução fiscal por dano ambiental movida por entidade autárquica estadual é de competência da Justiça Estadual. 2. Não ocorre ofensa ao art. 535, II, do CPC, se o Tribunal de origem decide, fundamentadamente, as questões essenciais ao julgamento da lide. 3. O princípio da precaução pressupõe a inversão do ônus probatório, competindo a quem supostamente promoveu o dano ambiental comprovar que não o causou ou que a substância lançada ao meio ambiente não lhe é potencialmente lesiva. 4. Nesse sentido e coerente com esse posicionamento, é direito subjetivo do suposto infrator a realização de perícia para comprovar a ineficácia poluente de sua conduta, não sendo suficiente para torná-la prescindível informações obtidas de sítio da internet. 5. A prova pericial é necessária sempre que a prova do fato depender de conhecimento técnico, o que se revela aplicável na seara ambiental ante a complexidade do bioma e da eficácia poluente dos produtos decorrentes do engenho humano. 6. Recurso especial provido para determinar a devolução dos autos à origem com a anulação de todos os atos decisórios a partir do indeferimento da prova pericial.” (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp nº 1.060.753/SP/ Relatora: Ministra Eliana Calmon/ Julgado em 01 dez. 2009/ Publicado no DJe em 14 dez. 2009). Segundo Colombo (2004, s.p.), no direito positivo pátrio, é possível verificar a substancialização do princípio da precaução nos incisos I e IV do artigo 4º da Lei Nº. 6.938, de 31 de Agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências, que, de forma clarividente, expressa a imperiosidade de existir um equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a utilização, de maneira racional, dos recursos naturais, sem olvidar da imprescindível avaliação do impacto ambiental. “Este princípio tem sido muito utilizado em ações civis públicas, seja requerendo a paralisação de obras, seja requerendo a proibição de explorações que possam causar, ainda hipoteticamente, danos ao meio ambiente” (THOMÉ, 2012, p. 69-70). Lançando mão das ponderações apresentadas por Colombo (2004, s.p.), o vocábulo precaução apresenta similitude idiomática com cuidado, logo, é imperioso, em razão do feixe irradiado pelo dogma em análise, o afastamento de perigo e manutenção da segurança das gerações futuras, bem assim da sustentabilidade ambiental das atividades humanas. Verifica-se que o preceito em testilha é a concreção da busca pela proteção da existência humana, seja pela proteção de seu ambiente como também pelo asseguramento da integridade da vida humana. Desta premissa, insta sustar que imperioso se faz considerar não somente o risco eminente de uma específica atividade, mas também os riscos futuros advindos de empreendimentos humanos, os quais, devido à compreensão e ao atual estágio desenvolvimento da ciência, não consegue captar toda densidade. “A aplicação do princípio da precaução deve ainda limitar-se aos casos de ‘ética do cuidado’, que não se satisfaz apenas com a ausência de certeza dos malefícios, mas privilegia a conduta humana que menos agrida, ainda que eventualmente, o meio natural” (THOMÉ, 2012, p. 70). É denotável, deste modo, que a consagração do corolário da precaução se apresenta como robusto instrumento que estabelece a adoção de uma nova postura em relação à degradação do meio ambiente, afixando, por via de consequência, a estruturação de medidas ambientais, tanto por parte do Estado quanto pela sociedade em geral, que obstem a instalação e desenvolvimento de atividade que tenha potencial lesivo ao meio ambiente. No que se referem às indústrias já instaladas, o princípio da precaução assume uma feição que busque cessar o dano ambiental já concretizado, minimizando os efeitos danosos provocados. “A leitura atenta do acórdão combatido revela que seu fundamento de decidir foi o princípio da precaução, considerando que, na dúvida, impõe-se a sustação dos licenciamentos e a realização de estudos de impacto ambiental, sob pena de o dano consumar-se” (BRASIL, 2011), como o Ministro Mauro Campbell Marques explicitou, com clareza solar, ao relatoriar o Recurso Especial N° 1.163.939/RS. Impende destacar, ainda, com grossos traços e cores quentes, que a atividade econômica não pode ser exercida em desacordo com os princípios destinados a tornar efetiva a proteção do meio ambiente. A incolumidade do meio ambiente, com realce, não pode ser embaraçada por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de âmago essencialmente econômico, ainda mais quando a atividade econômica, em razão da disciplina constitucional, estiver subordinada a um sucedâneo de corolários, notadamente àquele que privilegia a defesa do meio ambiente, o qual abarca o conceito amplo e abrangente de noções atreladas ao meio ambiente em suas múltiplas manifestações, quais sejam: o meio ambiente natural, meio ambiente cultural, meio ambiente artificial e meio ambiente do trabalho (ou laboral). Verifica-se, assim, que os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural. Denota-se, portanto, que o princípio da precaução, notadamente em decorrência de seu núcleo sensível, deve ser erigido como flâmula orientadora de inspiração, sobretudo quando, diante dos experimentos científicos, inexistir elementos mínimos capazes de estabelecer as consequências a médio e a longo prazo. Assim, ao se analisar o corolário em debate, cuida reconhecer que a sua materialização reclama a presença de quatro componentes básicos que podem ser resumidos: (i) a incerteza passa a ser considerada na avaliação de risco; (ii) o ônus da prova cabe ao proponente da atividade; (iii) na avaliação de risco, um número razoável de alternativas ao produto ou processo, devem ser estudadas e comparadas; (iv) para ser precaucionária, a decisão deve ser democrática, transparente e ter a participação dos interessados no produto ou processo. “Dessa maneira, esse princípio defende a ideia de que diante da ausência da certeza científica, a existência do risco de um agravo demanda a implantação de medidas que possam prevenir este agravo. Ou seja, ao legislar sobre uma ciência ainda não conhecida, deve-se ser precavido” (RIBEIRO; MARIN, 2012, p. 362). Nesta esteira, o princípio da precaução possui as seguintes características que serão tratadas a seguir: incerteza científica decorrente da possibilidade de graves prejuízos eventuais ou irreversíveis; temporariedade; estrito cumprimento obrigatório do corolário em comento; atuação estatal proporcionalmente; e a distribuição do ônus da prova. Para a sua incidência basta a existência de possível ameaça de eventuais graves prejuízos ou mesmo irreversíveis. Assim, as medidas a serem adotadas correlacionam-se com a proporcionalidade do evento danoso, inclusive, mensurando a impossibilidade de retroagir. Ademais, como se trata de possíveis danos irreversíveis, não se pode permitir a inércia ou omissão de tais danos, fundamentados na análise de probabilidade de incertezas científicas para a adoção de medidas garantidoras, ao oportunizar o seu controle, além de coibir a destruição do meio ambiente. Uma das principais características do princípio da precaução é propiciar às futuras gerações uma melhor qualidade de vida, em consonância com um meio ambiente equilibrado. Desse modo, o Princípio da Precaução reside no fato de procurar atuar previamente à ocorrência do prejuízo ambiental ao adotar medidas com a devida cautela, ao visar os benefícios decorrentes de tais medidas futuramente. No tocante ao estrito cumprimento obrigatório do Princípio da Precaução, ressalta-se a universalidade imperativa dessa imposição uma vez que não é plausível a delimitação e separação do meio ambiente aos países, pois qualquer prejuízo ambiental acarreta efeitos mundiais. Portanto, todas as medidas de cautela a serem adotadas também devem ter seu estrito cumprimento em sede mundial. 3 ALIMENTOS TRANSGÊNICOS: UMA TEMA DE INCERTEZAS NO FUTURO Nas últimas décadas, o desenvolver-se e o emprego dos organismos geneticamente modificados, ou simplesmente transgênicos, em larga escala na agricultura têm se amparado sob três principais argumentos: a preservação do meio ambiente, o aumento da produção para combater a fome e a redução dos custos de produção. Organizações governamentais e intergovernamentais têm planejado estratégias e protocolos para o estudo da segurança de alimentos derivados de cultivos geneticamente modificados. É nessa linha que verificasse a necessidade de alertar os cidadãos sobre as “verdades científicas” veiculadas nas mídias ou nos discursos políticos sociais. Ribeiro e Marin discutem que: “Ainda hoje, pesquisas e estudos que envolvem os potenciais riscos ao consumo humano de AGM ainda são muito restritos. No entanto, existem estudos sobre o efeito da ingestão de soja Roundup Ready em ratos, que demonstraram em análises ultraestruturais e imunocitoquímica, alterações em células acinares do pâncreas (redução de fatores de “splicing” do núcleo e do nucléolo e acúmulo de grânulos de pericromatina); em testículos (aumento do número de grânulos de pericromatina, diminuição da densidade de poros nucleares e alargamento do retículo endoplasmático liso das células de Sertoli), havendo a possibilidade de tais efeitos estarem relacionados ao acúmulo de herbicida presente na soja resistente, além de alterações em hepatócitos (modificações na forma do núcleo, aumento do número de poros na membrana nuclear, alterações na forma arredondada do nucléolo, indicando aumento do metabolismo) sendo potencialmente reversíveis neste último grupo de células” (RIBEIRO; MARIN, 2012, p.362). De maneira feliz, a posse das discussões sobre a ciências, ética e meio ambiente não pertence mais unicamente aos adeptos do desenvolvimento científico e tecnológico. Não obstante, as controvérsias científicas sempre fizeram parte da cultura da ciência. Já na década de 1950, Jacques Ellul, filósofo francês, abordava essa discussão (Le système technicien, Paris: Calman-Levy, 1977): “Mais o progresso técnico cresce, mais aumenta a soma de efeitos imprevisíveis. Certos progressos técnicos criam incertezas permanentes e em longo prazo […] Processos irreversíveis foram já implementados, particularmente no campo do meio ambiente e da saúde. Os problemas ambientais são exemplares. Criados pelo desenvolvimento tecnológico desenfreado e irrefletido, necessitam sempre de novos instrumentos e técnicas para resolvê-los. Os problemas de saúde pública ou de segurança alimentar são sistematicamente reformulados de modo que possam receber soluções técnicas ao invés de soluções políticas” (ZANONI; FERMENT. 2011, p. 14). A temática dos transgênicos cobre um conjunto de domínios e aspectos sociais, econômicos culturais e ambientais. A grande questão que vem sendo levantada é o quão seguras são essas tecnologias, se elas estão de acordo com o Guia Internacional para Segurança em Biotecnologia(IGSB) aceito pelo Programa Ambiental das Nações Unidas (MOSS, 2008, s.p.). Ultimamente, os assuntos dos adeptos do princípio da precaução forçam os governos de muitos países incluindo o Brasil, a modificar suas políticas e desistir da produção de variedades geneticamente modificadas. Assegura Rubens Onofre Nodari (2003) sobre o assunto, que os testes de segurança são conduzidos caso a caso e modelados para as características específicas das culturas modificadas e as mudanças introduzidas através da modificação genética. Todavia o mesmo autor salienta que o maior problema na análise de risco de organismos geneticamente modificados, é que seus efeitos não podem ser previstos na sua totalidade. Os riscos à saúde humana incluem aqueles inesperados, alergias, toxicidade intolerância. No ambiente, as consequências são a transferência lateral (horizontal) de genes, a poluição genética e os efeitos prejudiciais aos organismos não alvos. Estudos elaborados por Costa (2007) apontam que, todos os fenômenos e eventos indesejáveis resultantes do crescimento e consumo dos organismos geneticamente modificados podem ser classificados em três grupos de risco: alimentares, ecológicos e agrotecnológicos. Os riscos alimentares compreendem: a) efeitos imediatos de proteínas tóxicas oualergênicas do OGM; b) riscos causados por efeitos pleiotrópicos das proteínas transgênicas no metabolismo da planta; c) riscos mediados pela acumulação de herbicidas e seus metabólitos nas variedades e espécies resistentes; d) risco de transferência horizontal das construções transgênicas, para o genoma de bactérias simbióticas tanto de humanos quanto de animais (TEMM et all, 2007, p. 330). Os riscos ecológicos abarcam: a) erosão da diversidade das variedades de culturas em razão da ampla introdução de plantas GM derivadas de um grupo limitado de variedades parentais; b) transferência não controlada de construções, especialmente daquelas que conferem resistência a pesticidas e pragas e doenças, em razão da polinização cruzada com plantas selvagens de ancestrais e espécies relacionadas. Os possíveis resultados são o declínio na biodiversidade das formas selvagens do ancestral; c) risco de transferência horizontal não controlada das construções para a microbiota da rizosfera; d) efeitos adversos na biodiversidade em razão de proteínas transgênicas tóxicas, afetando insetos não alvos, assim como a microbiota do solo, rompendo desta forma a cadeia trófica; e) risco de rápido desenvolvimento de resistência às toxinas implantadas no transgênico por insetos fitófagos, bactérias, fungos e outras pragas devido à pesada pressão seletiva; f) riscos de cepas altamente patogênicas de fitovírus emergirem em razão da interação do vírus com a construção transgênica que é instável no genoma dos organismos receptores e, portanto, são alvos mais prováveis para recombinação com DNA viral (TEMM et all, 2007, p. 330). No que compete aos riscos agrotecnológicos, é possível explicitar: a) riscos de mudanças imprevisíveis em propriedades e características não alvo das variedades GM e em razão dos efeitos pleiotrópicos de um gene introduzido; b) riscos de mudanças transferidas nas propriedades de variedade GM que deveriam emergir depois de muitas gerações em razão da adaptação do novo gene ao genoma, com manifestação da nova propriedade pleiotrópica e as mudanças já citadas; c) Perda da eficiência do transgênico resistente a pragas em razão do cultivo extensivo das variedades GM por muitos anos; d) possível manipulação da produção de sementes pelos donos da tecnologia “terminator” (TEMM et all, 2007, p. 330). Entretanto, observa-se que a preocupação com a produção e utilização dos OGM por sua vez, e a combinação de riscos complexos e incertos com a existência de vulnerabilidades sociais e ambientais, torna ainda mais explosiva a necessidade da dialética entre produção-destruição inerente aos atuais modelos de desenvolvimento econômico e tecnológicos. 4 CONCLUSÃO Por se tratar de uma nova tecnologia e considerando o reduzido conhecimento científico a respeito dos riscos de OGMs, torna-se indispensável que a liberação de plantas transgênicas para plantio e consumo, em larga escala, seja precedida de uma análise criteriosa de risco à saúde humana e do efeito desses produtos e serviços ao meio ambiente, respaldadas em estudos científicos, conforme prevê a legislação vigente. Assim, normas adequadas de biossegurança, licenciamento ambiental, e mecanismos e instrumentos de monitoramento e rastreabilidade são necessários para assegurar que não haverá danos à saúde humana, animal e ao meio ambiente. Também são imprescindíveis estudos de impacto socioeconômicos e culturais, daí a relevância da análise da oportunidade e conveniência que uma nação deve fazer antes da adoção de qualquer produto ou serviço decorrente da transgenia. É neste contexto, que a maioria dos países invocam o Princípio da Precaução, como diretriz para a tomada de decisões. Assim, quando há razões para suspeitar de ameaças de sensível redução ou de perda de biodiversidade ou, ainda, de riscos à saúde humana, a falta de evidências científicas não deve ser usada como razão para postergar a tomada de medidas preventivas. Desta forma, a adoção do Princípio da Precaução, constitui uma alternativa concreta a ser adotada diante de tantas incertezas científicas. Desta associação respeitosa e funcional do homem com a natureza, surgem as ações preventivas para proteger a saúde das pessoas e os componentes dos ecossistemas.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-140/uma-analise-bioetica-dos-alimentos-transgenicos-contornos-do-principio-da-precaucao-em-sede-de-seguranca-alimentar/
Políticas públicas e privadas neohumanistas do direito laboral para um estado ambientalista da felicidade
Considerando a atual fragilidade dos empregos e a crise estrutural que afeta o Direito do Trabalho, o estudo lança um paradigma neohumanista universal para o capitalismo do século XXI, visando a complementar os já conhecidos modelos de proteção dos direitos sociais, desta feita, agregando valores espirituais e conhecimentos multidisciplinares à Jurisciência. A ideia consiste em pacificar os conflitos existenciais e laborais, revitalizar a economia e promover uma justa distribuição de renda, mediante o ensinamento de práticas éticas virtuosas e da inserção de princípios altruístas nas coletividades. Cabendo ao Estado conduzir a juridicização desses processos, o artigo se presta a analisar a possibilidade de implantação e execução da política ambiental da felicidade nos sistemas biolaborais públicos e privados.
Biodireito
INTRODUÇÃO: Com a hegemonia financeira dos conglomerados multinacionais e a capitalização tecnológica da economia, os tradicionais esquemas de proteção de direitos humanos já não são mais suficientes para garantir emprego e renda aos trabalhadores. A desigual distribuição de bens e riquezas no planeta requer um paradigma neohumanista e modelos de produção sustentáveis que atendam aos interesses de todas as classes. Neste contexto, a Jurisciência biolaboral pode inspirar importantes reformas nas sociedades domésticas e na comunidade internacional, na medida em que se propõe a transformar o trabalho como o principal instrumento da revalorização existencial.   Partindo da ideação de uma diretriz global, que busca introduzir políticas públicas e privadas difusoras dos conceitos da felicidade nos ambientes familiares e laborais, os Biojurismos podem redemocratizar a ética e a ordem econômica vigentes. Neste eixo, cabe ao Estado elaborar e ser o protagonista de um sistema jurídico que conduza soluções para a minoração das graves e complexas problemáticas e sociais hoje recrudescidas frente ao açodamento das relações individuais e coletivas. Sem perder de vista métodos descritivos, indutivos, dedutivos e consultas bibliográficas, ferramentas científicas criativas, porém exequíveis, podem revolucionar o Direito Laboral e, assim, ajudar nos processos de paz e na evolução da humanidade. 1. A eticidade e a motivação das questões laborais De forma objetiva e direta, o trabalho sempre esteve associado à subsistência vital e tem sido o grande responsável pela evolução do homem em seu meio ambiente. Mas as atividades laborais, comumente, geraram desgastes individuais e tensão nas atmosferas relacionais. Multiforme ao longo da história da civilização, o trabalho é fonte de forças e também de poderosas opressões, até que, com a industrialização, houve uma discreta regulação e a parcial humanização de seus institutos. Após várias etapas e transformações de processos políticos, econômicos, sociais e culturais, as problemáticas laborais contemporâneas permanecem e se recrudescem. Em que pese o extraordinário avanço técnico-científico hoje conquistado, no campo das relações naturais, os humanismos formais do Direito, em especial do ramo jurídico laboral, não cumpriu a totalidade de sua missão teleológica. Com efeito, no mundo corporativo e negocial, os atores atuais continuam a impingir humilhações, vexames e constrangimentos aos trabalhadores, e, não raro, desprezam a indenidade, física e mental, das pessoas. Através dos mais variados pretextos e camuflagens, os titulares do poder assacam impiedosos sofrimentos, ostensivos ou velados, aos indivíduos que locam sua energia para a produção laboral. Em um cenário ainda marcado pela prática dos anti-humanismos, os abusos, os excessos e os desvios laborais atingem não só a honra e o patrimônio material do trabalhador, mas também sabotam consciências e inteligências, danificando corpos e almas. Os desdobramentos biopsicológicos e jurídicos dos aborrecimentos causados, nos contextos interralacionais, não têm sido estudados, todavia, de forma sistêmica e integrada pela comunidade acadêmica. A despeito da seriedade e da fundamental importância do tema, as Ciências tendem a se especializar cada qual em seus nichos de conhecimento, seguindo a tendência de servirem aos caprichos de um capitalismo atávico, que converte o homem em faturas; e carreiras, em símbolos do mercado. Em uma perspectiva planetária, o Direito Laboral vem perdendo seu eticismo e, por consequência, sua identidade. Os juízos dos desvalores globais é o materialismo egocêntrico, a pujança da ostentação e a futilidade do consumismo máximo, que, sem dúvida, são as chaves para os desentendimentos, a intolerância e a instauração dos conflitos. No centro dos Direitos, o uso dos humanismos virou apenas uma figura de retórica, ou sofismas de cunho filosófico; e o trabalho, um favor ou uma esmola. As políticas sociais precisam evoluir, pois, para um capitalismo justo e trabalhista. 2. A liberdade negocial e o intervencionismo moderado do Direito do Trabalho Os Humanismos significam uma linguagem de expressão racional e que, em sua substância factual, expulsam a falta de eticidade diminutiva das pessoas. Enquanto se busca o primado da justiça material, moral e social, em oposição, os anti-humanismos depreciam obras e destoam dos valores deontológicos dos seres humanos; minam o Estado, instituições e afetam todos os componentes da cadeia produtiva. No Direito do Trabalho, a relação jurídica que une as pessoas tem tradição humanista e, juridicamente, é de índole formal, contratual e, portanto, patrimonialista. Do ponto de vista prático, o vínculo laboral resulta de um acordo de vontade, bilateral ou plurilateral, em que o sujeito empresta sua mão de obra a outrem. Resultando de um nexo que impõe submissão de um objeto, o liame jurídico-trabalhista apresenta especificidades que se originam do Direito Civil (PEREIRA, 1999, p. 20), mas que exibe caracteres próprios, por se tratar de um trato sucessivo, consensual, sinalagmático, oneroso e comutativo, a dizer, norteado por direitos e deveres das partes contratantes. Dentro desta vetusta fórmula, de autonomia da liberdade negocial, foi que o Direito Laboral desenvolveu toda a sua teoria e construiu seus principais pilares científicos, com os temperamentos que lhes foram dados posteriormente por legislações mais protetivas do trabalhador, havido como sendo a parte mais fraca e vulnerável. Desta feita, mesmo sendo regido pelos clássicos elementos obrigatórios de pessoalidade, habitualidade, subordinação e contraprestação, o privatismo das contratações laborais, com o tempo, cedeu lugar a um intervencionismo moderado do Estado, a quem coube a tarefa de buscar salvaguardar as dignidades, os direitos e as garantias de relações de trabalho equilibradas e estáveis, a fim de evitar os conflitos e rechaçar as tiranias humanas, inclusive os aviltamentos ocultos aos tratos laborais. As normas públicas tentam, então, estabelecer um regime de motivação humanística, mas nos organogramas, nos planejamentos e nos orçamentos das instituições, as responsabilidades profissionais, ainda hoje, seguem a lógica de um Direito Econômico do Trabalho, que, imposto pela classe dominante capitalista, fixa as regras e as metas segundo um modelo autocrático; concentrador de poder, bens e riquezas, submetendo às Ciências Sociais a uma crise dogmática existencial. Neste sentido – e nestes últimos tempos-, o homem-trabalhador ainda é visto como uma peça simples e secundária da engrenagem capitalista voltada ao lucro e à ganância individual. 3. As problemáticas e os standards gerais do Direito Laboral contemporâneo Na sequência da compreensão dos institutos laborais que merecem proteção biojurídica especial, outros atrasos ou desajustes ilógicos abalam e empobrecem sobremaneira o primado trabalhista, como as discriminações gratuitas contra os homossexuais, os travestis e as infundadas represálias ou perseguições a trabalhadores; alguns por terem produzido prova testemunhal contra o empregador, acabam perdendo seus postos ou demitidos, sem contar com nenhuma proteção especial neste sentido. De outro flanco, o tratamento distinto reservado a servidores públicos e aos profissionais de outras categorias, filiados a um regime geral, aliado à recente celeuma em torno da detsinação de vagas exclusivas de cargos ou ingressos em empregos mediante o critério de cotas raciais, que favorecem os afrodescendentes ou negros, consagram absurdas segregações que favorecem a criação de castas econômicas e estamentos sociais no âmbito do Direito do Trabalho. Afora disto, como resultado da tendência à flexibilização e à desregulamentação das normas trabalhistas, sobretudo, nos países menos desenvolvidos, a contratação via terceirização é a regra; o emprego formal, a exceção; quando a prestação do serviço não se opera através da pejotização do trabalho, que consiste na tomada de mão de obra substitutiva e indireta de um trabalhador por intermédio do pagamento direto a uma pessoa jurídica, a fim de frustrar os direitos trabalhistas, em cristalino fraude ou escape à regular legislação trabalhista protetiva dos obreiros. A crise do Direito Laboral também resta nítida com o maquiavelismo capitalista de desvalorização salarial e com o bafejamento dos carreirismos. Os estímulos à superprodutividade e a acumulação de funções às custas da privação de direitos básicos por parte de trabalhadores, como as férias, o descanso, os revezamentos e as inadequações das jornadas de trabalho, facilmente, descarrilam tratamentos anti-humanistas e em ambientes carregados, competitivos, exaustivos e antiéticos. Outro problema crucial que se aloja nas entranhas do Direito Laboral, na atualidade, diz respeito à ausência de postos de trabalho estáveis e às políticas de admissão de pessoal que, cada vez mais, exigem mão de obra altamente qualificada. Em contrapartida, o governo e o empresariado não oferece programas sérios e adequados. A capacitação e o treinamento das pessoas, visando a uma política de inserção vertical no mercado de trabalho, nos países subdesenvolvidos ou ditos emergentes, só têm servido para engordar os investidores que se beneficiam dos programas de bolsas financiadas pelo governo oficial, sem qualquer controle mais rigoroso da frequência e do rendimento, escolar ou profissional, dos seus destinatários. Porém, nada mais retrógrado nem paralisante do que os chamados Programas de Transferência de Renda presentes nas nações emergentes, como o Brasil. Ao invés de serem tomados como alternativas políticas de minoração paliativa dos problemas das questões sociais e da violência urbana, estes programas se transformam em vínculos de ociosidades permanentes com um Estado eleitoreiro e patrimonialista. No Brasil, o primeiro Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM) foi instituído em 1991, com o Benefício Prestação Continuada (BPC); depois, seguiram-se tantos outros gratuitos esmolismos que empalam qualquer oportunidade de emancipação do trabalhador, em total desprezo a um capitalismo que tenha mérito social. Sob o pretexto de inclusão social, ou de acabar com a pobreza, o governo brasileiro vem intensificando e solidificando o Programa Nacional de Renda Mínima do Bolsa-Escola; Bolsa alimentação, Auxílio-gás; programas de erradicação do trabalho Infantil (PETI); do agente jovem; e dentre outros projetos assistencialistas que avançam nas novas administrações, que não induzem crescimento econômico e que, como atraso institucional, patenteiam que o trabalho não é prioridade de um Estado e de uma nação. As ideias de estender estas garantias mínimas às pessoas de baixa renda, se, por um flanco, podem traduzir-se em filantropia, por outro, evidencia a velha fórmula do populismo latino-americano de artificializar a cidadania. O negativismo laboral disfarça, pois, um plano partidário-eleitoreiro voltado à perpetuação do caudilho poder. Nesse ponto, as esmolas-cidadão não significam produtividade social, não dinamizam a economia, não melhoram as condições estruturais do país, nem importam qualquer retorno das inversões financeiras, na medida em que incentivam o parasitismo e subtraem do mercado a oferta de empregos, com potenciais desvalores. O assistencialismo, portanto, teatraliza os índices de desenvolvimento humano, não dilui a pobreza, nem aumenta o nível de escolaridade do povo. Ao reverso, marginalizando os processos educativos e produtivos, o bolsismo arrefece políticas laborais e mingua salários, causando como consequência um Estado que dirige pessoas sem qualquer perspectiva de progresso e sem a mínima contraprestação social. Nesta mesma curva de ascendência à asfixia laboral, assiste-se hoje também a um aumento vertiginoso do denominado subempreguismo, notadamente nos países menos desenvolvidos, onde o Direito Laboral assume uma fisionomia fisiológica que legitima o desempenho de trabalhos de baixo custo econômico e fiscal, como se depreende, por instância, da proliferação das contratações temporárias ou por tempo limitado, que escapam de uma regulação intervencionista estatal mais austera. Paripassu, não obstante os princípios de impessoalidade e os requerimentos de profissionalização constantes da máquina pública, no corpo dos organismos governamentais, dorme um Estado clientelista e patrimonialista, sobretudo, nas nações mais jovens e pobres, que continuam a usar do nepotismo e de consultorias familiares contratadas para driblar o esquadro protetivo do Direito Laboral; sem falar no leque de chances que se abrem para a prática de desvios de dinheiro público e corrupção. Outros fatores severos contribuem para que se tenha hoje um quadro de iminente colapso humanista do Direito Laboral, que é sua acentuada litigiosidade e os enormes custos decorrentes para sustentar o orçamento de suas máquinas repressivas. Com efeito, os ilícitos trabalhistas se efetivam na construção de um poderoso e dispendioso aparato estatal, composto de órgãos administrativos, do Ministério Público e do Poder Judiciário, que, nos países latino-americanos, funcionam como um ninho de privilégios e de salários de agentes distantes da dura realidade laboral. Outra tormentosa questão que põe o Direito do Trabalho hodierno em difícil situação é a oneração excessiva da carga tributária incidente sobre os proventos percebidos pelos obreiros, já que o sistema econômico-financeiro é moldado para taxar indiretamente todos os produtos e serviços. A tributação do trabalho e do consumo acaba, então, sendo institucionalizada de modo progressivo. As exações fiscais sobre a folha salarial e sobre os custos iniciais dos produtos até à cadeia final da produção, enfim, retiram do mercado ativos circulantes que poderiam gerar equilíbrio social. Esta situação fica ainda mais dramática nos países que ainda não atingiram elevado grau de automação tecnológica e que ostentam condição de dependência econômica, pois as economias internas desses países, tradicionalmente exportadores de matéria prima e de commodities. Ao baratearem os custos de suas atividades e mão de obra, para propiciar ajustes em sua balança comercial e em déficits públicos, estes Estados não conseguem evitar a evasão de capitais ou a fuga de divisas da nação trabalhadora, já que a prosperidade interna dos investimentos estrangeiros é volátil. Deixando de lado o foco da problemática geopolítica global que vai minando o Direito Laboral, em sua essência humanística, outras questões também são hoje havidas como desafiadoras para que os modelos dos direitos que vêm sucumbindo, já que a saúde e a segurança do trabalhador dependem de empregos. Em temas importantes, como a nutrição, a ergonomia e a ginástica laborais, a atenção é secundária, eis que só existem programas voluntários destas atividades nas instituições. Afora tudo isso, neste tópico, cumpre frisar ainda que o bacharelismo ou a cultura prosaica de classes políticas de governos conservadores ainda resistem à modernização das leis, de modelos e à criação de novos institutos laborais. Daí por isso é que, então, muitas rubricas importantes, como os trabalhos não customizados, a regulação da prostituição, a disciplina do trabalho de rua, o acesso às contas oficiais do Estado e das empresas ainda constituem delicados entraves que vão desmantelando a textura do Direito do Trabalho, que, contudo, necessita superar o imediatismo econômico e as produções científico-jurídicas que favorecem sempre as lógicas e as políticas de ganhos empresariais.  Logo, deve a Jurisciência Laboral revisar sus fontes epistemológicas e reconsiderar todas as relações existenciais humanas. Em breves linhas, já foi exposto que o neoliberalismo e a mentalidade econômica assentes, se, de um lado, trouxeram inúmeras contribuições ao progresso material da humanidade, por outro, não erradicaram o terrível quadro das degradações pessoais e coletivas, produzindo, outrossim, graves contrassensos na vida laboral. De modo igual, os modelos teóricos das doutrinas humanas positivadas vão, aos poucos, desidratando-se, posto que a ideia garantista não se compraz se as relações de emprego se escasseiam no plano da realidade. Neste diapasão, de nada adiantam os novos paradigmas científicos ou legais se as dinâmicas da economia e dos mercados sinalizam o ressecamento e/ou a precarização dos postos de trabalho. A grande verdade é que o Direito do Trabalho precisa reafirmar-se como instrumento social e de justiça. A par destas circunstâncias, os estudiosos vêm propondo um meio ambiente de trabalho ecologicamente equilibrado, que, em suma, correlaciona a saúde física e a segurança das pessoas às necessidades e aos ajustes da política da biodiversidade. Neste prumo, têm-se produzido expeditas normas internas e atos internacionais para um Direito Laboral que leve em conta questões humanistas voltadas para uma sustentabilidade físico-social do meio ambiente. Nestes termos, os países assinam pactos, tratados, convenções e protocolos multilaterais com estes temários. Já as focalizações alusivas, diretamente, a aspectos antropológicos e biopsicológicos da vida e da personalidade das pessoas, do trabalho e das profissões não são abordadas dentro de uma metodologia multifacetária de saúde e segurança dos locais, posto que a dimensão individualista do capitalismo diz respeito mais às políticas laborais de produção e de consumo aos bens materiais da sociedade. Mesmo nos chamados países emergentes, a correlação do trabalho como corolário da dignidade humana vem sofrendo um questionamento pragmático, simplesmente porque a flexibilização dos direitos trabalhistas ataca justamente a camada menos seletiva da população produtiva. Com semelhante inclinação, os standards preconizados pela Organização do Trabalho (OIT, 1919) vêm minguando-se diante da ética capitalista de deixar a cargo de organizações privadas as soluções tópicas para o aperfeiçoamento das grades laborais. A visão de uma justiça laboral universal, assim, desfaz-se sobretudo quando comprovado que o papel interlocutório e dialético da OIT ainda se ressente de um regime sancionador mais eficaz (SAMSON, 1994, p. 123-130). A dilapidação do trabalho e a pauperização do trabalhador parecem certas e irreversíveis. Nem mesmo a organização de blocos locais, regionais ou internacionais, para proteção dos direitos humanos, tem surtido os efeitos de outrora. Muito embora já existam, em muitos países, políticas concretas para a prevenção de acidentes e doenças, as tutelas da vida e da saúde dos trabalhadores partem de premissas ex post facto, que se alimentam de sistemas de responsabilidades e compensações jurídicas reparatórias. Com o fracasso dos modelos de proteção individualista, houve também o enfraquecimento dos movimentos sindicais e, de resto, toda a farta legislação trabalhista, previdenciária e securitária despeja políticas de segurança e de saúde anódinas para modificar o panorama das questões ocupacionais dos trabalhadores, sem levar em conta toda as implicações psicofísicas dessas relações bioexistenciais. Por consequência, hoje há até uma certa inflação legislativa de preceitos normativos laborais, que vão subsistindo e que, em datas mais recentes, passaram a conviver com novas figuras que invadiram os ambientes trabalhistas, tais como o compliance, afeiçoado pelo sistema patronal e que prega um regime de responsabilidade jurídica sem considerar a posição de inferioridade do trabalhador. Revalida-se, assim, o dever estrito de cumprir com a lei e com as metas das organizações, mas não o direito de fruir de similares ganhos ou privilégios contemplados aos investidores capitalistas. Também nesta filosofia de governo autorregulamentável e interprofissional, outra solução genuinamente capitalista de proteção às necessidades geoeconômicas dos obreiros insufla a adoção do conceito de responsabilidade social do empregador (corporate social responsability), que, de maneira curiosa, agita uma ética de sustentabilidade no mundo laboral e dos negócios (DILLER, 1999, p. 100), mas que não estabelece nenhum regime claro nem qualquer tipologia de sanções quanto ao descumprimento de eventuais promessas e normas consignadas em suas cartilhas. Ainda é de origem do patronato capitalista anglo-saxão a regulação de práticas, direitos e obrigações laborais privadas por meio dos chamados códigos de conduta e de programas de qualidade, que fixam padrões de excelência para a produtividade, mas que não abraçam os desejos reais de todos os atores envolvidos. Neste segmento, as famosas auditagens ambientais internas procuram atender mais às respostas mercadológicas do que propriamente tutelar a força do trabalho humano, embora sejam interessantes os estudos incrementados nesta área para favorecer ambientes de trabalho hígidos, cuja prioridade é obter a performance organizacional de entidades; e não avaliar o grau de satisfação existencial plena dos trabalhadores. Urge, pois, formular propostas neohumanistas para uma reengenharia ambiental laboral. 4. Breve reflexão laboral sobre os servidores públicos e as cotas raciais: O estudo das problemáticas dos assuntos laborais são complexos e quiçá inexauríveis. Contudo, são exatamente destas controvérsias, das discussões antropológicas e dos ensaios de experiências empíricas que, em um sentido muito consistente, o Direito Laboral pode voltar a fortalecer-se, ao examinar verbi gratia: as estabilidades trabalhistas; a locação de serviços; a terceirização; o cooperativismo; os ofícios dos profissionais liberais e dos avulsos; o voluntarismo; as licenças; as jornadas de trabalhos e os seus intervalos; os descansos; as compensações; as relações coletivas de trabalho; a greve; o sindicalismo; a distribuição de lucros; a impenhorabilidade do salário como bem de família; a sucessão trabalhista; a responsabilização laboral; a aplicação das tecnologias; o uso das inteligências artificiais; o trabalho domiciliar; a virtualização; o teletrabalho; dentre outras várias novidades temáticas. Em meio a estas relevantes considerações, merece rápida abordagem a situação dos servidores públicos, a matéria concernente às cotas raciais e o favorecimento dos gêneros, à luz de uma abreviada análise do Direito do Trabalho. Em um primeiro escopo, cumpre destacar que é razoável que, em quase todos os países democráticos, existam legislações distintas que regem os trabalhadores comuns e os servidores públicos, vez que a Administração Pública precisa ser dotada de um corpo de funcionários efetivos que detenha estabilidade nos seus cargos em razão do princípio da continuidade dos serviços. Assim, para desempenhar as tarefas que são atribuídas ao Estado, estes trabalhadores, normalmente, possuem um vínculo estatutário, ou seja, um regime próprio de leis que disciplinam as suas atividades, direitos e obrigações, conquanto, na esteira da flexibilização jurídica, esteja havendo uma tendência mundial no sentido de que sejam eles equiparados aos empregados privados. De toda forma, o que se observa é que, no desfecho de processos e julgamentos trabalhistas envolvendo servidores públicos, tem prevalecido a presunção de legitimidade juris tantum de que gozam os atos da Administração Pública sobre os princípios derivados do in dubio pro operário.   Desta feita, em procedimentos disciplinares ou nas lides trabalhistas, há uma inclinação errônea, mas quase que invencível, de submissão das normas que protegem a vulnerabilidade do obreiro ao jugo das teses do Estado-Administração, atropelando-se, assim, princípios e convenções internacionais prodigalizados pela OIT. Essa superposição e supremacia do ato da entidade pública empregadora sobre o trabalhador, em verdade, redunda em uma responsabilidade objetiva, transmitindo em desfavor deste uma ideia de culpa prévia; que, aliás, não tem guarida nem se coaduna com os preceitos protetivos tradicionais do Direito Laboral. Afora esta aberração a axiomas consagrados do Direito Internacional, de outro giro, cumpre refletir, ainda que en passant, sobre a polêmica que cerca o aproveitamento das cotas raciais, sendo certo que, em matérias trabalhistas, na área das políticas afirmativas, imitando o case dos Estados Unidos, boa parte dos países democráticos, vem reconhecendo o direito de preferência, o favorecimento na admissão em emprego e o preenchimento de vagas a determinadas pessoas em instituições governamentais, tão somente em função da sua raça ou cor de sua pele; modelo transplantado para o ingresso de estudantes nas universidades públicas brasileiras. No Brasil, com a promulgação das Leis nºs 12.288/10 e 12.990, criou-se hoje uma reserva de mercado para os negros e pardos que possuem direito a 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos federais, homenageando uma benesse que é de difícil compreensão social e antropológica, mas que foi aceita em definitivo pelas Cortes Superiores do país, sob o pálio do Estatuto da Igualdade Racial. 5.  Das conflituosidades laborais internas, externas e transversais O Direito Laboral atravessa um período histórico de descrença e de comoção. Os concertos mundiais, encabeçados pela globalização da economia e pela hegemonia do capitalismo financeiro, empurram esquemas individualistas de trabalho que, no fim das contas, vem privatizando as soluções dos conflitos de trabalho. A desterritorialização do Direito do Trabalho (ALMEIDA, 1998, p. 37) e dos paradigmas jurídicos, públicos ou privados, integrantes de sua proteção, só não encontram eco nos países altamente desenvolvidos, nos quais os índices de emprego e a proporcionalidade da renda per capita se mantêm elevados (LINARES, 1965, p. 69). Em civilizações de pujança econômica e com notáveis taxas de educação, como os Estados Unidos, a Alemanha, a Inglaterra, a França e, sobretudo, nos países nórdicos, as experiências trabalhistas têm rendido sucesso ao sistema capitalista. De outra banda, a minimização dos padrões sociais e das políticas de emprego na maioria dos países do globo revelam o fracasso dos modelos estéticos, demasiadamente formalistas. A roupagem de uma tutela repressiva está fadada ao erro. Para conter as predações laborais, o Direito global vem lançando mão de importantes providências coletivas que vão da instituição de fundos, conselhos, comissões, comitês, câmaras arbitrais, fóruns, a políticas inclusivas e afirmativas que se agarram a leis e a Constituições internas (MASERMULE, 1996, p. 125-126). Os sistemas de inspeção, segurança, prevenção e proteção de saúde do trabalhador se completam com políticas consistentes de cobertura securitária e de garantias sindicais, via ações de recuperação e de codeterminação (THUSING, 1998, p. 47-48; COPPERS & LYBRAND, 1992, p. 109; RIPPEY, 1988, p. 630; PELTZER, 1983, p. 108). Em países mais adiantados, até mesmo a autonomia das empresas e o direito de greve cederam campo para a dialética das classes (SIMITIS, 1987, p. 124), sugerindo a chance de se pensar em uma ação de probidade administrativa trabalhista. Nas nações latino-americanas, contanto, as estampas das normas humanistas sobre saúde, bases e diretrizes laborais-educativas não conciliam os atores governamentais, empresariais e os empregados, que preferem correr os riscos da conflituosidade, apostando na fraqueza do trabalhador e na demora judicial. Assim, a feição arcaica dos órgãos e dos Tribunais de justiça laboral afastam-se da equidade e, nesta toada, os profissionais, as agências de inspeção e os fóruns das discussões laborais atuam de forma muito mais punitiva do que pedagógica, preventiva ou mediativa. Os Códigos privados do trabalho, internos ou externos, por sua vez, têm caráter semântico e ideológico. Sua vocação de prolatar justiças não é clara e, inclusive, a responsabilidade social distancia-se das concepções de vanguarda em matéria laboral. Enquanto as legislações europeias propagam a obrigatoriedade de instalação de serviços de Medicina do Trabalho, dando-lhes de autonomia em seu funcionamento e poderes de decisão, as políticas públicas dos países subdesenvolvidos ou emergentes ainda se valem de estratégias sindicalistas para evitar a beligerância. Quando os sistemas de proteção trabalhista não se operam via práticas assistencialistas, eleitoreiras ou patrimonialistas, os pactos sociais e laborais destas nações preferem soluções tripartites heterodoxas, imaginando que é possível distribuir direitos, benefícios e regalias sem a correspondente fixação de suas fontes econômicas. Desenhando um quadro infantil de Direitos, todos necessários, mas de difícil implementação, diante dos diferentes matizes de interesses e das vicissitudes das classes de personagens que compõem o capitalismo; a segurança, a saúde e o bem estar das pessoas no trabalho enguiçam em legislações esquizofrênicas e em tratos imaginários. De modo idêntico, a difusão das técnicas de mediação, conciliação e arbitragem laborais não se têm revelado confortáveis para uma burguesia colonialista, que sequer assimilaram, no passado, os paradigmas laborais humanistas. Neste cenário, a proposição de providências de cunho ecocentrista, ou seja, de mera higienização física dos ambientes laborais modernos, não contempla a chancela de sistemática de aspectos psicológicos e bioexistenciais do trabalhador. Com este quadro, anota-se hoje que, sob a militarização das Ciências, há uma verdadeira precarização das relações coletivas, quer dizer, as políticas de controle, direção, decisão, disciplina e dispensa laborais acabam descarregando efeitos anti-humanistas nefastos na saúde e no bem estar das pessoas e dos trabalhadores em geral. A falta de sensibilidade e de atenção holísticas, em especial do Direito e de seus operadores, com as temáticas psicossomáticas derivadas da violência laboral, do assédio sexual e moral, dos bullyngs, mobbings e de figuras afins, mais que provocar os indesejáveis fenômenos do absenteísmo e do turn-over (rotatividade laboral), acarreta prejuízos humanos inenarráveis. O aumento extraordinário das doenças ocupacionais e dos acidentes laborais atravancam, enfim, a cadeia de produção de bens e riquezas. Toda esta tela fático-jurídica de conflituosidades laborais internas, externas e transversais ameaça a gnosiologia do Direito do Trabalho, açoda tragédias individuais e potencializa o judicialismo extremo e perverso das vivências sociais. 6.  A felicidade jurídica como direito subjetivo pessoal e laboral A noção antropológica e funcional de felicidade na vida humana pode ser tautólógica, enfeixando termo ou mensagem que expressa a mesma ideia de realização científica e existencial plena, ou seja, o que dá sentido a todos os propósitos humanos. Visto porém, de formas diferentes, a partir de realidades individuais e coletivas, ou dentro de um conceito jurídico-organizacional, a proposição da felicidade nunca foi levada tão a sério e demoro para se tornar objeto de estudo das Jurisciências. No campo do Direito do Trabalho, a felicidade ainda não desembarcou, mas, para a reconstrução dos seus paradigmas e para que fossem elevados os padrões de vida do homem a um outro patamar qualitativo, já se percebeu a importância do fenômeno de sua interjuridicidade com outros ramos jurídicos, notadamente com o Direito Ambiental. Como elemento deste movimento de intercâmbio e de estreita comunicação informativa de conhecimentos científicos, a Jurisciência progrediu de uma tal maneira que suas fontes podem fornecer uma nova fisionomia aos elementos psicofísicos que resultam das experiências de simbioses individuais com as atuais relações de trabalho. Destarte, os sistemas normativos, locais e internacionais, já vêm confeccionando normas para que os ambientes laborais se tornem mais humanizados e saudáveis. Esses caminhos jurídicos, na verdade, em uma dada época, até chegaram a revolucionar os modelos administrativos de gestão ambiental; produto novo da filosofia laboral contemporânea, a exemplo do que se sucede com as cátedras nórdicas. Mas, a concretização da felicidade possível, seja ela em caráter individual ou coletiva, continua sendo uma miragem na qual as ciências jurídicas e sociais se recusam a aceitar ou acreditar como um fenômeno viável ou factível. No Direito do Trabalho, que é estritamente marcado por disputas e conflitos, o tema felicidade sempre foi impensável: um tabu inconciliável com toda e qualquer utopia humanista jurídica. A resistência de inserção de uma temática desta latitude nos corredores das Ciências Jurídicas decorre do fato de a felicidade estar visceralmente atrelada à coexistência do amor humano e altruísta, que, em seu significado mais puro, foi inapta para transpor o materialismo e o individualismo que justificam os métodos capitalistas. Mas se o Direito Laboral e outras ramificações jurídicas se constituem em ferramenta de execução de direitos sociais, a polarização da felicidade não pode ser alvo ou pretensão da epistemologia dos sistemas já fracassados. Os deveres de solidariedade, de fraternidade e de altruísmo devem sim governar e fomentar as relações coletivas. É evidente que a história registra que a noção antropológica e funcional de felicidade na vida humana corresponde a um ideário de perfeição que não se compadece com qualquer experiência empírica real. As ideias categóricas de políticas humanas, que se sustentam nos ativismos dialéticos de paz, tolerância e abnegação, falharam tanto quanto as lições de cuidado e de amor recíprocos centradas em mandamentos religiosos, morais ou institucionais, uma vez que, diante da diversidade de vontades e de sinergias, há ainda os complexos fatores econômicos, biofísicos e psicológicos dos homens em si. Em qualquer período ou filosofia, contudo, a felicidade se configura como o primeiro e o último objetivo existencial a que se prestam as Ciências, representado o grau máximo almejado pelos homens e bem assim pelas organizações que buscam o sucesso de suas missões, sendo, portanto, uma palavra unânime, de valor transcendental. De origem grega, equivalente à eudaimonia, que exprimia a ideia de ética ou prazer, na etimologia comum, a felicidade vem a ser um estado humano durável de plenitude, uma esfera de satisfação e equilíbrio físico e psíquico, em que o sofrimento e a inquietude são transformados em emoções ou sentimentos que vão desde o contentamento até a alegria intensa ou júbilo. A felicidade tem, ainda, o significado de bem-estar espiritual ou paz interior (apud. site da internet, WIKIPEDIA).    Se o nível de felicidade de uma pessoa ou das coletividades não pode ser mensurado com a certeza e o rigor científico, é inegável, porém, que a apreensão de fatores físicos e psicológicos perceptíveis, mesmo sendo resultantes de políticas religiosas, políticas, morais, sociais, culturais e financeiras, altruisticamente ajustadas, são dignas de elogios por sua inegável contribuição humana, individual e social.   Embora os conceitos tópicos de felicidade variem de acordo com os critérios, culturas, experiências ou preferências pessoais ou espaciais, nestes últimos tempos é a ética econômica consumista que vem pautando o seu determinismo. Porém, nem mesmo o capitalismo egocêntrico e explorador se contrapõe ao fato científico de que a felicidade humana é uma questão de estado de espírito primordialmente mental, que só é obtida pela superação do desejo em todas as suas formas, na esteira do que prega, ilustrativamente, o budismo, o confuncionismo, e, em grande escala, as doutrinas cristãs (CUTLER, H. C. e LAMA, 2000. p. 14,15). Em termos de eticismo jurídico a felicidade, individual, social ou geral, estaria relacionada, pois, ao exercício de virtuosismos e de atividades que propiciem o bem-estar sustentável e racional de todos os homens, não estando, necessariamente, atrelada à prática de atos laborais, políticos, econômicos ou produtivos.  A fiação de uma felicidade jurídica, portanto, pode ser abstraída da concepção idealística esposada pelo filósofo grego ARISTÓTELES, que viveu no século IV a.C., ou no espelho dos ensinamentos judaicos e jesuíticos, que defendiam o amor como o elemento fundamental para a harmonização humana. Daí nada obsta uma juridicização duradoura da segurança e da saúde humana com pretensão universal científica, tendo a felicidade como o ponto de partida (MAZLOUM, 2010).  Excepcionados os modus vivendi da mitologia grega e dos hedonismos epicuristas, que beiravam ao exagero, a felicidade jurídica invade o glossário de uma vida responsável e altruísta. Integra-se também pela prática da caridade, da esperança e da sóbria justiça, conforme outrora agitado pelo profeta árabe MAOMÉ, no século VII. A felicidade jurídica comporta ainda as formas e as substâncias de vida devotada ao utilitarismo da bondade; o que os filósofos ingleses, JEREMY BENTHAM e JOHN STUART MILL, nos séculos XVIII e XIX, já explicitavam ser o papel básico dos governos nacionais a maximização da felicidade coletiva. Não é diferente a visão positivista de AUGUSTO COMTE para quem a definição de ser feliz, com apoio no altruísmo e na solidariedade, deveria converter-se na "religião da humanidade". Em todas as ciências, inclusive na jurídica, já há artigos interessantes sobre a felicidade. Em respeitável estudo, PINHEIRO (apud. Internet) aduz que, apesar de indefinível, a felicidade, inerente a própria natureza humana, equivale ao projeto de vida que leva à realização pessoal e existencial, correlacionando-a dentre os direitos sociais. A junção da felicidade cm a dignidade também vem sendo, entusiasticamente, engolfada por estudiosos brasileiros de renomes. DIAS e ALVES (apud. Internet) veem na felicidade um direito fundamental, um estado de espírito, um sonho humano, que confere uma diretriz de satisfação individual. No Direito Laboral, é apodítica a tese de que o labor pode ser o caminho para a felicidade jurídica, por meio da qual se torna possível o exercício da paz e a garantia concreta de uma vida ideal. Ainda na linha dos utilitarismos e de jurisprudências humanistas, o direito inalienável à felicidade, aliás, já foi reconhecido como sendo uma injunção de estatura constitucional. O Supremo Tribunal Federal brasileiro (STF) cravou esse entendimento, mormente decidiu sobre a autorização de pesquisa com células-tronco embrionárias ínsita à Lei nº 11.105/05, em defesa solidária da biossegurança e da vida (ADI 3510/DF, Relator Min. AYRES BRITTO, j. 29/05/2008, Tribunal Pleno, DJe-096 27-05-2010).  Ipso facto, os valores espirituais representam uma conquista ética intrínseca e imutável necessária à dignificação das pessoas e à evolução das civilizações. Assim, por ocasião do julgamento sobre uniões homoafetivas, o STF brasileiro, ao constitucionalizar uma nova forma de entidade familiar, ainda que não prescrita no texto da Constituição pátria, realçou o tópico relativo à felicidade e ao amor, exprimindo o direito de busca pela felicidade (ADPF 132/RJ, Rel. Min. AYRES BRITTO, j. 05/05/2011, Tribunal Pleno, DJe-198 13-10-2011 e ADI 4277/DF, Rel. Min. AYRES BRITTO, j. 05/05/2011, Tribunal Pleno, DJe-198 13-10-2011). Reportando-se às aplicações práticas de uma doutrina da felicidade pública, o conceito de direito à felicidade, conquanto ainda esteja longe de ser um critério subjetivo ou de inaugurar um princípio, enfeixa uma temática que já se encontra implícita e, definitivamente, incorporada nos países de índole democrática. O direito ao 'bem-estar' da população, aliás, coincide com o plano teleológico da Teoria Geral do Estado, porém sua compreensão, no âmbito da Filosofia e das Ciências Jurídicas, possui um substrato ainda mais sensível e, indissociavelmente, comprometido com o próximo, com vistas ao resgate dos sentimentos humanos nobres. O temário da teoria da felicidade jurídica vem sendo estruturado pelos doutos, como o jovem jurista brasileiro SAUL TORINHO LEAL (apud Internet). Na área administrativa, também existem estudos desenvolvidos pela Universidade de Oxford (apud Internet), que elaborou questionários científicos visando a medir o nível de felicidade das pessoas, levando em conta fatores físicos e psicológicos, dentre outros, em que se ressalta o escudo da dignidade humana e social. As naturais objeções que se evocam contra a subjetividade do significado de direito à felicidade não induzem à ideia de tipos abertos, nem à banalização dos direitos fundamentais, mas sim é fruto de operações intelectuais que têm em mente proporcionar condições minimamente seguras de uma existência humana digna na Terra, afastando-se, portanto, de qualquer retórica delirante, demagógica, perdulária ou irresponsável. A fluidez do conceito de felicidade, a complexidade das relações humanas e a ausência de controle racional da democracia não são motivos para se negligenciar o tratamento jurídico-estatal que o temário está a merecer, em especial na área laboral. De nítidos propósitos universais, podendo ser abordada por métodos científicos que investiguem e debatam as verdades humanas existenciais, a felicidade jurídica, que engloba e responde a inúmeros dilemas contemporâneos relativos à segurança, saúde, a meio ambiente e a outros bens, deve partir do pensamento tuitivo e gestáltico do Estado, e, pelas mãos dos jusfilósofos, aportar um Direito Biolaboral. 7.  Do Estado de Direito Biolaboral A felicidade não é apenas a finalidade maior do Direito e de um Estado, senão a da própria natureza humana. Assim, não se afigura como impróprio falar-se na existência do conceito jurídico de felicidade em matéria de Direito Público e Privado. Sem mais digressões que explicam a multiplicidade de temas fundamentados no direito à felicidade, interessa ver que a sua identidade e a sua substantivação científica precisam ser de logo absorvidas no Direito Laboral. O seu transplante também urge nos princípios do Direito Ambiental global. Dessa conjunção, resultaria possível a criação de um neologismo, ou ramo jurídico denominado Direito Biolaboral. A par da percepção das necessidades últimas da cosmodemocracia e da Antropologia Humanista, em contraponto ao liberalismo materialista e ao consumismo exagerado, que desagrega pessoas e dilui o valor jusfundamental do trabalho, é dessa fusão de interjuridicidades que nasce a doutrina biolaboralista. Secundado em uma compreensão polissêmica dos Biojurismos e das Biociências, o Direito Biolaboral viria para alargar os velhos paradigmas do Direito do Trabalho. Teria, em suma, o objetivo de aplacar conhecimentos multidisciplinares de todas as ciências, de inserir valores espirituais intelectivos e de mover ideais psicofísicos na tutela dos ambientes coletivos. Indo além dos tradicionais institutos usados pela Ciência Laboral e de suas casuísticas, o Biolaboralismo velaria pela integralidade existencial do homem a partir da comunhão do indivíduo em si mesmo e de suas relações laborais, em conciliação às suas aspirações e bens, pessoais e sociais. Neste sentido, com caracteres de especialização e dotada de princípios ônticos próprios, a semente jusbiolaboral se plantaria no ideário da participação pública e democrática da geração de empregos, nos movimentos em prol das garantias de saúde e de realização existencial plena do homem, tendo como escopo um sistema cooperativo e interativo de relações físicas e psicossociais, das pessoas e das famílias.  Um capitalismo trabalhista, altruísta e responsável seria a sua proposta de vivência. A doutrina dos direitos humanos e outros neoparadigmas que surgem, embora sejam úteis e válidos, são simbólicos. O Direito Biolaboral precisa tentar varrer as ilicitudes pessoais, profissionais e as lesões físico-emocionais do trabalhador. Paralelo à oferta de soluções globais para um avanço efetivo dos remédios preventivos e protetivos das problemáticas das ciências humanas e sociais, há de surgir um Estado ambientalista biolaboral contra as vaidades insanas da ditadura capitalista. 8.  Do Ambientalismo Humanista e da Felicidade Biolaboral Na ótica humanista, a energia laboral deve ser a favor da vida, e não do empregador, ou de ciclos econômicos. Logo, As Convenções e as Recomendações da OIT e da OMS mandam atender, prioritariamente, aos locais e às relações do homem em seu ambiente de trabalho. A fisionomia e proposta da Jurisciência biolaboral, porém, é mais ampla e traz a bordo a esperança de execução de um plano e de uma filosofia: a promessa científica de que o progresso e o bem-estar existencial do homem se materializem, em todos os sentidos, a partir da depuração do trabalho e do altruísmo. Neste sentido, urge criar um Estado Ambientalista que promova a felicidade biolaboral. O pioneirismo da ideia pertence, porém, aos Estados Unidos, que em sua Constituição de 1776, já predicava a necessidade de conservação dos direitos e de felicidade do povo através do seu Conselho de Censores; o embrião da Suprema Corte daquele país, onde ali se vislumbravam a temática e o ideário da felicidade jurídica. Neste esquadro, ao aludir que os direitos a um meio-ambiente sadio e equilibrado são de 3ª geração, elasteceu-se a classificação de KAREL VASAK (SILVA, 2005, p. 546-552). No Direito atual, as correntes da bioética, da biossegurança e dos biojurismos formam, então, a figura do Estado ambientalista. Muito embora as questões ambientais sejam tão antigas quanto à história da humanidade, a sua normatividade escrita é relativamente recente. No Brasil, deu-se, primeiro, com a proibição de instalação de indústrias contrárias à saúde do cidadão na Constituição de 1824. De natureza transindividual e difusa, a preocupação global com os direitos ambientais, em curta lembrança, remonta às deliberações da Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano de Estocolmo, ocorrida na Suécia, em 1972, que antecedeu os trabalhos da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento. A Comissão Brundtland, em 1987, já apresentara um documento chamado Our Common Future (“Nosso Futuro Comum”), a partir do qual, com os estudos da degradação ambiental e do desequilíbrio da biota, popularizou-se a expressão “desenvolvimento sustentável”, reproduzida na Lei nº 6.938/81 e na Constitucional de 1988, seguido do Decreto nº 99.274/90, que integram a farta legislação do Brasil. A ideia da obrigação dos Estados ofertarem políticas de emprego, de garantir dos meios de sobrevivência das pessoas, da distribuição de rendas justas e de sistemas laborais ambientais sustentáveis só adveio, porém, com Carta da Holanda de 1983. Já em 1992, a Eco 92 ou Cúpula da Terra, realizada na cidade do Rio de Janeiro, foi um marco decisivo nas negociações internacionais sobre as questões do meio ambiente e desenvolvimento, tendo surgido a Declaração Universal sobre o Meio Ambiente e a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.  Na sequência, a ONU ativou diversos documentos e sistemas de proteção regionais e internacionais sobre o Meio Ambiente; hoje elevados à categoria de reconhecidos direitos essenciais à sobrevivência saudável do homem na Terra (FREITAS, 2002, p. 17), como a Convenções do Clima, a CDB, a Agenda 21, a Declaração do Rio para Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Declaração de Princípios para Floresta e depois o Protocolo de Cartagena sobre produtos transgênicos.   De se ver, também, que, nos países escandinavos, o direito a um meio ambiente laboral equilibrado se transformou em uma política nacional unificada. A concepção de meio ambiente como bem de uso comum do povo e indispensável à sadia qualidade de vida dos povos alcançou, de vez, então, a defesa da higidez das questões físiocênticas extraídas do ambiente laboral para as presentes e futuras gerações. A aplicação da temática da felicidade jurídica no seio das relações individuais, coletivas, sociais, governamentais e na esfera privada, entretanto, ainda constitui matéria nova e desafio a ser encardo pelos standards jurídicos de todo os países, evoluídos, ou não, exigindo positivação e aplicação explícitas, porque ainda inexistem espaços que atraquem a compreensão da eternidade dessas novas mensagens. Ao contrário, nos mundos corporativos, ainda há muitas resistências e preconceitos para entender-se e tentar aplicar-se a juridicização de um ambientalismo da felicidade, por puro medo ou ignorância. A Jurisciência toma, então, esse papel e deve protagonizar o biolaboralismo científico, capaz de concretizar um plano bioexistencial de vida que atenda a todas as aspirações humanas. Em meio à diversidade dos direitos e obrigações, inclusive, os de raiz econômica e produtiva, deve-se criar um Estado de Direito Biolaboral que complete a identidade dos povos e de sua felicidade. A engenharia ambiental da felicidade precisa, pois, ser montada, para reativar a economia e estimular a prática de ações inter-relacionais justas e saudáveis. O Direito Ambiental Biolaboral tem, pois, o fito de propiciar o bem-estar do trabalhador em seus múltiplos aspectos, cuidando das relações individuais, familiares, coletivas, no plano interno e externo.  Em obra a ser melhor estudada, o capitalismo democrático, uma ética econômica biohumanista e a implementação dos novos sistemas de tutela de políticas laborais, é possível, sim, estrear um Estado Ambientalista da Felicidade. 9.  A abordagem da felicidade como política governamental, legal e institucional Os sistemas de inteligência e de concepção do Direito Biolaboral focalizam não só a higidez dos ambientes físicos, mas também as políticas de tratamentos biopsicossociais e de saúde existencial que cercam as pessoas, no sentido de tornar as relações mais amistosas, afáveis e os climas, individuais e coletivos, leves e sadios. As regras da competitividade, imanentes das atuações corporativas, deve tomar uma nova dimensão, para que os processos produtivos se transformem em uma experiência feliz e confortante, em prol do indivíduo, da família e da sociedade. Para abolir ou minorar as práticas dos anti-humanismos e os desvios jurídicos nos ambientes organizacionais, deve o Estado, junto com todos os setores da sociedade, conceber e planificar políticas governamentais, legais e institucionais, conducentes à implementação de paradigmas firmes que evitem, coíbam e que também sancionem as problemáticas que discrepam da atitude racional da felicidade jurídica. É evidente que, neste assunto, não se cogita de qualquer visão pueril idealista, ou entendimentos superficiais e equivocados acerca da felicidade, mas sim da sua vinculação a políticas públicas e privadas que atinjam modelos de comportamentos condizentes com o vetor da dignidade, da segurança e da saúde plena da pessoa humana. Neste ponto, há de partir-se da premissa de que a positivação do direito à felicidade não pode divorciar-se de sua gênese e de sua ética etimológica, contemplando simples desejos ou caprichos individuais. Seu alicerce consiste na proteção de bens e a direitos que permitam, juridicamente, a uma justa expressão do exercício das liberdades fundamentais, que se apoie em uma legislação didática, coercitiva e humanista, que se propugne à arte de levar aos homens o máximo de felicidade, ou o mínimo de infelicidade possível, em alusão a todos os cálculos dos bens e dos males da vida. Sob o esteio do espiral da felicidade é que as normas jurídicas hão de ser afiançadas, fixadas por princípios que assegurem tantos outros direitos fundamentais e institucionais que não se limitem às hipocrisias ou vaidades abarcadas pela sociedade. A OMS identifica que o mal do século está com a globalização materialista, que, carreando depressões, angústias e outros transtornos psicossomáticos, aborrece os governos e os processos produtivos. Daí a chance de testar-se uma política ambiental da felicidade, cujo objetivo seria reencaminhar os humanismos à pasta dos direitos universais, sendo o trabalho a combustão para o desenvolvimento e a prevenção de toda a ordem de patologias limitadoras, incapacitantes ou aviltantes das pessoas. Em excelente monografia, MOSCATELLO (2012) adverte que a ausência de felicidade e de justiça laboral contribui para a depressão, que é uma doença comum, causadora de várias morbidades clínicas, de mortalidade, de suicídios, de perda da qualidade de vida, da diminuição do funcionamento nas atividades diárias, de baixo rendimento no trabalho e de queda no desempenho físico, intelectual e psicológico.  Além de aumentar a produtividade, aquecer a economia e enriquecer as relações biopsicossociais, a política ambiental da felicidade poderia diminuir as discriminações e os constrangimentos que se anotam nos meios sociais e institucionais. Assim, seriam atacados os bullyings (do inglês bully, valentão) e toda a sorte de atos de violência, física ou psicológica (intencionais ou culposos, repetidos ou esporádicos), praticados contra um indivíduo ou grupo de indivíduos, que resultam em dor, pânico e sofrimento angústia, em razão de equações desiguais de tarefas e poder (NETO, 2004). O suporte do Direito Biolaboral seria os ensinamentos e as sanções contra diversas modalidades de coação física ou moral, contra negatividades, desumanidades, condutas desestabilizadoras ou desagregadoras de amizades e de famílias. O Biolaboralsimo evitaria a perda do emprego, o desgaste do ambiente de trabalho e a erosão das relações sociais. O Direito Biolaboral também precisaria intimidar a popularização do assédio, onde o alvo é hostilizado, ridicularizado, inferiorizado e desacreditado pelo agressor, com reflexos irreversíveis para a pessoa e a sociedade. O individualismo competitivo, que faz o perfil das ilicitudes laborais e que ocasiona riscos, invisíveis ou não, compromete a higidez das relações humanas e ambientais. O sistema biolaboral da felicidade, com um didático e justo regime disciplinador, representaria um freio para os fatores que agravam os danos à saúde física e mental, que degeneram pessoas e destroem capacidades trabalhistas em todo o mundo. O enfoque da proteção integral ao trabalhador, que também abrange os seus entes queridos e as suas peculiaridades, seria multidisciplinar e holística, feita por órgãos e profissionais especializados, com a devida autonomia clínica e funcional, firmando recomendações e documentos que relatassem as condições de vida pessoal e profissional do indivíduo nos ambientes laborais. O Direito Bioaboral poderia, então, via um checklist de normas, aferir a sustentabilidade dos níveis de felicidade do meio. De contornos científicos, nas doutrinas biolaborais, a política da felicidade preveniria as causas das patologias que explicam a diminuição da produtividade e trataria os sintomas reais de um indivíduo doente, deprimido, estressado ou em anodinia, com perda de interesse, energia, prazer e concentração psicolaborais. A ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA AMERICANA (1994) também já correlacionou que a infelicidade laboral interfere na autoestima e na autoconfiança do trabalhador, levando-o a ideias delirantes de culpa e inutilidade, a visões desoladas e pessimistas do futuro, a tendências a atos autolesivos, a sonolência, ao sono perturbado, a agitação ou ao retardo psicomotor e à perda ou ao aumento de peso, sem listar outras enfermidades típicas do século XXI, que, sendo crônicas e recorrentes, acabam retraindo o indivíduo, provocando disfunções e acelerando o declínio da qualidade de vida das pessoas, via transtornos mentais, de ansiedade e de personalidade, sem prejuízo do envolvimento ou abuso com drogas, álcool e eventos traumáticos os mais adversos. No biolaboralismo, o diagnóstico da felicidade dos trabalhadores não se restringiria à higidez dos locais e das condições do trabalho. Avaliam-se também pessoas, a postura dos grupos organizacionais e o perfil do quadro de suas chefias, bem como os impactos das perdas econômicas e do desempenho insuficiente do empregado. A abordagem da política da felicidade pode perscrutar, ainda, os motivos dos altos índices de absenteísmo, a queda da produtividade, os gastos com as folhas de pagamento, hospitais, medicamentos, consultas ambulatoriais, tributos, dentre outros custos havidos como encargos pessoais e sociais, que oneram e gizam desperdícios.  Rabiscando planos, programas e estratégias contra as tensões ocupacionais e as desordens psicossociais, as pesquisas sobre o estado de infelicidade, particular ou geral, de atores sociais ou laborais, aliadas a um Estado, verdadeiramente, disposto a prover políticas públicas que atinem para essa nova realidade da vida moderna, precipitariam um movimento revolucionário que nortearia a governança, os gestores, os investidores e toda a classe empresarial. A adesão aos sistemas biolaborais, mais que um salto humanístico, tonificaria as pessoas e os processos econômico-produtivos. Reverbere-se que os conceitos e os institutos biolaborais seriam fabricados e aplacados também a partir dos princípios que regem o Direito Ambiental. Instrumentos públicos, para a democratização do capital e a humanização oficial das relações laborais, constituiriam a coluna fática e jurídica para a cobertura dos esquemas de cooperação e de fomento da política da felicidade, repaginando as relações pessoais e interindividuais. Os naturais excessos desencadeados pela implantação de sistemas biolaborais, ainda que sujeitos ao ativismo judicial ou a aventureiros, priorizariam as políticas preventivas e de mediações contra os ânimos da litigiosidade. O florescente Direito Bioaboral, neorramo da Jurisciência, seria insculpido por políticas biopedagógicas e compensatórias capitaneadas pelo governo para as classes laborais. 10. Dos sistemas básicos de gestão e de defesa do biolaboralismo ambiental De viés multifacetário, o Biolaborismo pretende ser sucedâneo do modelo excessivamente formal e protecionista do Welfare State que, por suposto, não se concentra no eixo ecocêntrico do Direito do Trabalho. O Direito Biolaboral agruparia disciplinas que tratam, atualmente, as políticas ambientais, domésticas ou mundiais. De acordo com os novos paradigmas, as relações biolaborais estariam conjugadas a políticas educativas de uma felicidade existencial plena que envolveriam o governo, entidades privadas e a população como um todo. Um ambientalismo ético (e não somente estético) seria, então, o motor produtivo; e as responsabilidades sociais, repletas de virtuosismos e de altruísmos, o fundamento do crescimento das nações. Armados, primordialmente, para atividades paradidáticas e biopedagógicas, no Direito Biolaboral, os investimentos depois se canalizariam também em políticas conciliativas. O Estado, em todos os seus níveis de organização, haveria de estabelecer para si e para os personagens da vida privada exigências de cumprimento de medidas e políticas sociais e econômicas cujo tema residiria no ambientalismo da felicidade. Neste ponto, caberia aos mandatários do povo positivar as relações biotrabalhistas e, se possível, sistematizá-las no bojo de um constitucionalismo científico que remetesse à lei ordinária os subsídios específicos para a materialização e a processualização dos direitos e deveres. A política ambiental da felicidade, neste caso, também poderia ser copiada, influenciada ou exportada pelo Direito Comparado. Também seria de bom alvitre que a montagem, a gestão e a defesa do biohumanismo ambiental fossem incrementadas por organizações privadas, mas sob um regime de responsabilidade pública. Considerando a plêiade de direitos e de liberdades fundamentais, a lei fixaria efetivos mecanismos políticos de execução para a difusão de uma felicidade ambiental sustentável, prevendo compensações sociais e econômicas, com isenções ou favorecimentos nas áreas fiscais, tributárias e administrativas; tudo para viabilizar os empregos e planificar os programas biolaborais (STIGLITS, 2009). Para pavimentar um “Estado de Direito Ambientalista”, do qual falava Parafraseando o jurista JOSÉ AFONSO DA SILVA (2003, p. 43), estes seriam, grosso modo, os primeiros passos para uma política ambiental cívica, em que a felicidade colore o caráter neohumanista do Biolaboralismo. Aas políticas públicas e privadas, o engajamento sócio-profissional dos atores sociais e uma cultura de paz, de saúde e de prosperidade seriam a excelência de um capitalismo biolaboralista e produtivo. 11. A estruturação e a positivação das políticas públicas e privadas biolaborais O ideário de uma ordem jurídica biolaboral e de um Estado de Direito Ambientalista da Felicidade, no plano pragmático, além de depender da mudança crítica do capitalismo, precisa também de um macrossistema estatal que dê sustentação ao funcionamento de seus sistemas. Planejado dentro de um arcabouço técnico-legal e com procedimentos próprios, a positivação e a codificação das políticas públicas e privadas, promotoras da doutrina de saúde bioexistencial, seriam moldadas dentro de standards oficiais antropocentristas e de uma ação compulsória da prevenção e da mediação. À Jurisciência caberia, assim, arquitetar a estrutura de um civismo cultural, arraigado em prospectos educativos e científicos das noções basilares de justiça altruísta. A política global da felicidade seria, então, parte integrante obrigatória de órgãos governamentais e de todos os setores institucionais da sociedade, Os paradigmas neoambientais humanistas seriam acolhidos nas famílias, escolas e locais de trabalho. Através da oficialização estatal, os aportes de conhecimentos multidisciplinares sobre a política da felicidade existencial ingressariam na medula espinhal do juspositivismo. Uma vez massificados, leis e códigos definiriam novos parâmetros para a atuação da tutela governamental e regras de observância compulsória extensivas para o campo privado. As medidas pedagógicas, de prevenção e de estímulo à conciliação tonificariam as ações e as parcerias público-privadas. A felicidade seria concebida como disciplina integrante das grades de ensino fundamental. No âmbito pessoal ou profissional, a capacitação do significado de uma felicidade cívica seria dever consciente de todos, na busca pela justiça ideal. Os problemas laborais, em substituição aos individualismos, receberiam notas do capitalismo humanista. Os biojurismos da felicidade seriam reproduzidos em sintonia com a legislação e com as variáveis particulares dos sistemas domésticos, sendo recomendável que o Legislativo e o Executivo, no Estado de Direito Ambientalista, usassem técnicas e os pilares obrigatórios de uma política, mundial e cientificista, entronizados pela possibilidade de desenvolvimento máximo das potencialidades humanas. No sentido de recompor os conflitos e empalar a litigiosidade judicial, um esboço sintético da organização da atuação dos meios de operacionalização da Jurisciência Laboral também sugerira a necessidade de algumas reformas nos órgãos públicos e no Poder Judiciário do Trabalho (BRANCO, 2014, passim), sendo a felicidade laboral reconhecido como direito para a realização existencial de todos. 12. Da codificação ambiental da felicidade e da teoria geral do contrato biolaboral A codificação ambiental da felicidade, como direito e obrigação, sem dúvida, modificaria a Teoria Geral do Estado e a doutrina contratual laboral. Os novos paradigmas humanistas assentados na Jurisciência biolaboral indica a ação de um capitalismo ambiental democrático que concorreria para o incremento e perspectiva da sustentabilidade ambiental e da vida, em geral. Os conceitos de bem-estar e de saúde existenciais, estratificados a partir de uma política oficial do Estado, desaguariam em práticas públicas e privadas mais justas e equilibradas, atendendo às expectativas e às missões das entidades e das pessoas. Para o alcance da felicidade jurídica, seria mister a sistematização do Direito Biolaboral em suas fontes material, processual e jusnatural; adicionado por processos de participação popular e por estudos para melhorias técnicas nos modelos de gestão. A existência também de um Direito Digital Laboral complementaria o rol de substratos normativos e visaria a salvaguardar todas as experiências de uma vida ativa, produtiva e saudável, seja ela concebida em seus aspectos psicofisiológicos, estéticos, ergonômicos, ou em termos de regras de segurança, higiene, prevenção e tratamento; não se olvidando da estruturação de um sistema eficaz de sanções gradativas de ilícitos. Como a OMS define um ambiente de trabalho saudável como aquele em que os trabalhadores e gestores colaboram para o uso de “um processo de melhoria contínua de proteção e promoção da segurança, saúde e bem–estar de todos” (SESI, internet), providências de envergadura se tornariam obrigatórias. O Biolaboralismo logo se converteria em vantagem estratégica, competitiva e decisiva no cenário econômico. De outra banda, o clássico contrato de trabalho, baseado na autorregulação patrimonial, também sofreria os efeitos de uma funcionalização social e, portanto, seria revisto à luz das novas diretrizes apresentadas pelo Direito Biolaboral, passando a ser submetido ao controle formal estatal; na esteira do que já se sucede, aliás, até com alguns pactos civis e empresariais (LORENZETTI, 1998, p. 551). Transcendendo à vontade das partes e impregnado de conteúdo social, as ideias de equidade existencial e de justiça altruísta seriam legalizadas e acopladas ao contrato biolaboral, que, assim, deixaria de ser um assunto individual, para atrair o interesse de um Estado interventor e provedor da política ambiental da felicidade. Haveria, assim, uma acomodação imediata dos direitos bioexistenciais, pressupondo pilares jusfundamentais nas veias das Ciências Jurídicas hodiernas. 13. Implantação, massificação e os princípios das políticas da felicidade biolaboral A infelicidade, a depressão e outras reações orgânicas e psicossomáticas, decorrentes da deterioração das condições relacionais de vida e trabalho, são males que lincham e condenam o ser humano a uma execração letal, despojando a fisionomia e o bem estar das pessoas interferindo, inclusive, aos sistemas econômicos produtivos. Em todos as suas nuances, a infelicidade é irracional na estruturação de projetos humanos.  Diante da necessidade de reativação de empregos, da sustentação da renda e da disseminação da felicidade jurídica a partir de políticas biolaborais, a criação de canais de diálogo social e de fundos especiais ensejaria os componentes da perene cooperação ambiental entre governo, empregados, patrões e a sociedade, em geral. Com o afã de mitigar as frustrações existenciais, diluir riscos institucionais, diminuir prejuízos resultantes dos conflitos e eliminar o peso dos litígios oriundos das dissensões relacionais, a standardização e a massificação social das políticas da felicidade ambientais, propostas pelo Estado Biolaboral, customizariam os problemas e indicariam as variáveis das soluções com vistas à economia de tempo e de recursos. Sob este prisma, a implantação de rede de gestões e de organismos fiscalizadores seguiriam modelos dirigidos, planos padrões, princípios rígidos, ou sistemas cativos, sugeridos ou pré-elaborados, para descrever e garantir a rápida circularização da política da felicidade. A tutela pedagógica, jurídica e ambiental da felicidade, com todas as suas facetas e contingências, seria, então, alinhada com a filosofia biolaboral, que tem por escopo casar o bem-estar físico e psicológico de todos. A implantação de políticas sedimentadas nesta nova concepção de vida existencial teria, pois, um leque de planos e programas de preocupações multifacetárias, cuja execução compreenderia a totalidade dos processos de humanização do trabalho, para assegurar, aliás, que a economia cumpra a função de promover o bem-estar social. Com a desoneração do setor produtivo, o aumento da oferta de trabalhos e a redução das jornadas de trabalho, ainda que implicassem em salários sustentáveis, seria a tônica da política oficial bioaboral. A proibição gradativa do acúmulo de funções ou a vedação de bancos de horas por novos empregos, tutelaria novas identidades. Em proteção às políticas micro e macroambientais da felicidade, a Jurisciência biolaboralista, portanto, ainda incentivaria as pesquisas e o uso do capital tecnológico para atividades voltadas à educação, ao lazer, à capacitação profissional, à recuperação, ao equilíbrio e à evolução das pessoas, das famílias e dos trabalhadores 14. Das responsabilidades no Direito Ambiental Biotrabalhista O modelo de compreensão do Direito Biolaboral sai de uma proteção física para a inclusão de fatores neoambientais e psicossociais que envolvem não só a vida do trabalhador. Seria prioridade do Estado também a manutenção dos empregos, o ensino do sentido existencial das pessoas, a chancela das atividades preventivas de saúde, as políticas de execução da doutrina ambientalista da felicidade e um normativismo diretivo sobre seus sistemas de responsabilidade e de sanções.   Com esses os paradigmas biolaborais, a prevenção seria orientada pelos órgãos governamentais e pelas campanhas confiadas ao setor privado. Em qualquer caso, a planifcação básica teria um enfoque legalista. O descumprimento de metas ou de preceitos ensejaria um modelo de responsabilidade reparatória, que teria a finalidade de compensar a vítima e punir, pedagógica e exemplarmente, o agente do dano. Assim, enquanto projetos, programas, auditagens e processos administrativos cuidariam da observância das regas legais sobre segurança, higiene e medicina do trabalho, a responsabilidade biolaboral seria aferida de acordo com o grau de respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, dentro e fora dos seus ambientes de trabalho, com critérios de mensuração baseados na justiça de equidade. De modo geral, a responsabilidade biolaboral exibiria os pressupostos da relação da ação ou omissão; dano efetivo; culpa do agente; e nexo de causalidade, podendo ser examinada em seus conceitos objetivo e subjetivo, mas de preferência regulada sob a objetivo dimensão objetivo aplicada às lesões ambientais, ad exemplum, da Lei nº 6.938/81 (art. 14) e do art. 225, da Carta Magna do Brasil. Esse tipo de tutela, curial à sadia qualidade de vida de todos, é imposta ao Poder Público e à coletividade, açabarcando os danos concretos, efetivos, abstratos e futuros. Assim, as pessoas físicas e jurídicas seriam punidas, segundo os ilícitos e as infrações biolaborais, via processos próprios. Com rigorosas sanções civis, penais e administrativas; o sistema preveria também indenização dos danos hedônicos ou danos existenciais, que seriam uma nova espécie de tutela do gozo da vida (carpe diem), incluída na proteção física e moral. A roupagem do ambientalismo da felicidade se basearia na teoria do risco integral e não elidiria a responsabilidade do trabalhador que incorresse em dolo, penalizando também, de forma exemplar, as condutas que, em tese, configurassem em improbidade ou desvalorização dos direitos fundamentais da vida e do trabalho, admitindo-se, outrossim, a desconsideração da pessoa jurídica (disregard doctrine). 15. A jurisdição biotrabalhista, as certificações ambientais e os biojurismos Havendo a possibilidade do uso de novas modalidades de ações em defesa de direitos plurissubjetivos, como os de características psicofisiobiológicas, para coibir ou punir problemáticas, individuais ou coletivas, referidas nos quadrantes do Direito Biolaboral, em matéria de segurança e saúde ambiental do trabalhador, a jurisdição trabalhista só teria competência para atuar em último caso, quando não resolvida a contento a discussão fática e jurídica sobre o conflito nas instâncias administrativas. Objetivando evitar a instauração e a demora de solução dos litígios, o caso seria submetido a Juizados ou Varas Especiais do Trabalho, com a especificação de pesada multa ao vencido que houvesse recusado a mediação de órgãos leigos, ou à livre arbitragem colegiada. A opção pela judicialização da questão sujeitaria o perdedor a pesado ônus ao final. Assim, os padrões quantitativos e qualitativos da demanda a ser definida pelo serviço jurisdicional seriam valorizados e ganhariam celeridade, sem prejuízo da ampliação de súmulas vinculantes e das perícias bioambientais laborais. Em polo similar, os modelos público-privados de gestão poderiam adotar as políticas de certificações ambientais, para atender as exigências e as condições de aferição da política ambiental da felicidade no seio laboral. As auditagens compreenderiam critérios bioexistenciais que medissem as correlações laborais, os coeficientes de qualidade, de quantidade, de suficiência, de iniciativa, de tirocínios, de colaboração, de ética profissional, do conhecimento do trabalho, do aperfeiçoamento funcional, da compreensão dos deveres e de outros parâmetros do merecimento. A certificação seria um título valorativos de desempenho e da meritocracia particular. Neste contexto, o capitalismo biolaboralista sedimentaria a força psicofisiológica das pessoas; e as atividades profissionais, pautadas na felicidade cívica. Com os biojurismos, haveria, assim, haveria mais empregos e mais mercados para os atores sociais e profissionais; o governo e o empresariado, verdadeiramente, empenhados na luta por uma sociedade mais justa, igualitária e equilibrada. O capitalismo trabalhista e a democratização das tecnologias bioambientais fortaleceria o uso desta nova ideologia, aliançada em princípios de segurança, de produtividade, de saúde e de solidariedade. A Jurisciência e a doutrina ambiental da felicidade, enfim, consagrariam os sonhos bioéticos de uma humanidade mais fraterna e altruísta. A reposição do trabalho como gatilho para a execução de políticas públicas e privadas propiciaria, ao fim, uma melhor qualidade de vida existencial a todos. Conclusão O capitalismo vive o auge de sua prosperidade econômica e financeira. Entrementes, os tradicionais sistemas de defesa dos direitos humanos, fundados na liberdade negocial e no intervencionismo moderado do Estado, não foram suficientes para garantir a proteção ou a promoção de empregos sustentáveis. Apesar do neoliberalismo ter propagado uma série de principios jurídicos, dentre eles o da igualdade, a harmonização dos interesses laborais vem exigindo o uso de novos standards e de experiências que superem as problemáticas do mundo contemporâneo. Os avanços sociais convivem, porém, ainda hoje, com graves retrocessos antropológicos, que impelem o Direito Laboral hoje a revisitar e a evoluir suas fontes epistemológicas. Sendo certa que uma séria crise técnico-humanista aponta para a dispersão estrutural do Direito do Trabalho, ora marcado por conflituosidades laborais internas, externas, transversais e por práticas anti-humanistas, o fenômeno da interjuridicidade vislumbrou no Direito Ambiental a alternativa mais adequada e viável para a revalidação de institutos que levem às aspirações bioexistenciais de todos. Nesta pesquisa, a Jurisciência indaga a felicidade jurídica como direito subjetivo pessoal e laboral, dignificadora de um Estado Ambientalista Biolaboral. Centrado em uma junção difusa dos vetores da paz, da saúde, da segurança, da produtividade e da plena realização humana, a doutrina biolaboral é uma proposta de política governamental, legal e institucional, capaz de reenergizar a economía, garantir emprego e redistribuir renda, bens e riquezas, segundo uma meritocracia altruista. Na planificação dos sistemas de gestão e na tutela dos neodireitos laborais, a juspositivação ambiental da felicidade não prescinde de uma correspondente codificação. Do mesmo modo, a reengenharia da teoria geral contratual, a implantação de princípios fundamentais, a criação de fundos e a massificação das políticas da felicidade biolaboral devem estar a cargo de um Estado, decididamente, humanista. Com estes breves temas, refletiu-se sobre alguns itens das responsabilidades do Direito Ambiental Biotrabalhista, que há de priorizar ações pedagógicas, preventivas e, em última instância, atuar sob a égide de uma jurisdição mais célere e racional, sem prejuízo dos projetos, programas e atividades voluntárias de certificações ambientais. Em apertada síntese, o artigo demonstra que o exercício de humanismos conjugado aos biolaboralismos atuais continua sendo a chama de esperança, na qual as realizações e os sonhos dos homens de um mundo mais justo e melhor se tornem reais.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-140/politicas-publicas-e-privadas-neohumanistas-do-direito-laboral-para-um-estado-ambientalista-da-felicidade/
Singelo painel ao reconhecimento da bioética na condição de direito humano de quarta dimensão: breves ponderações à declaração universal de bioética e direitos humanos
Imperioso se faz versar, de maneira maciça, acerca da evolução dos direitos humanos, os quais deram azo ao manancial de direitos e garantias fundamentais. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos. Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade. Os direitos de segunda dimensão são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou mesmo de um Ente Estatal especificamente.
Biodireito
1 Comentários Introdutórios: Ponderações ao Característico de Mutabilidade da Ciência Jurídica Em sede de comentários inaugurais, ao se dispensar uma análise robusta sobre o tema colocado em debate, mister se faz evidenciar que a Ciência Jurídica, enquanto conjunto plural e multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as pujantes ramificações que a integra, reclama uma interpretação alicerçada nos múltiplos peculiares característicos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste diapasão, trazendo a lume os aspectos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com ênfase, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Ora, em razão do burilado, infere-se que não mais prospera a ótica de imutabilidade que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios da população, suplantados em uma nova sistemática. É verificável, desta sorte, que os valores adotados pela coletividade, tal como os proeminentes cenários apresentados com a evolução da sociedade, passam a figurar como elementos que influenciam a confecção e aplicação das normas. Com escora em tais premissas, cuida hastear como pavilhão de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Deste modo, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas fincadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não fiquem inquinados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo fundamental está assentado em assegurar que inexista a difusão da prática da vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras, nas quais o homem valorizava os aspectos estruturantes da Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade. Afora isso, volvendo a análise do tema para o cenário pátrio, é possível evidenciar que com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, primacialmente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica jaz justamente na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais. Ainda nesta senda de exame, pode-se evidenciar que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda de sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis.   2 Prelúdio dos Direitos Humanos: Breve Retrospecto da Idade Antiga à Idade Moderna Ao ter como substrato de edificação as ponderações estruturadas, imperioso se faz versar, de maneira maciça, acerca da evolução dos direitos humanos, os quais deram azo ao manancial de direitos e garantias fundamentais. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. “A evolução histórica dos direitos inerentes à pessoa humana também é lenta e gradual. Não são reconhecidos ou construídos todos de uma vez, mas sim conforme a própria experiência da vida humana em sociedade”[4], como bem observam Silveira e Piccirillo. Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos. Nesta perspectiva, ao se estruturar uma análise histórica sobre a construção dos direitos humanos, é possível fazer menção ao terceiro milênio antes de Cristo, no Egito e Mesopotâmia, nos quais eram difundidos instrumentos que objetivavam a proteção individual em relação ao Estado. “O Código de Hammurabi (1690 a.C.) talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relação aos governantes”, como bem afiança Alexandre de Moraes[5]. Em mesmo sedimento, proclama Rúbia Zanotelli de Alvarenga, ao abordar o tema, que: “Na antiguidade, o Código de Hamurabi (na Babilônia) foi a primeira codificação a relatar os direitos comuns aos homens e a mencionar leis de proteção aos mais fracos. O rei Hamurabi (1792 a 1750 a.C.), há mais de 3.800 anos, ao mandar redigir o famoso Código de Hamurabi, já fazia constar alguns Direitos Humanos, tais como o direito à vida, à família, à honra, à dignidade, proteção especial aos órfãos e aos mais fracos. O Código de Hamurabi também limitava o poder por um monarca absoluto. Nas disposições finais do Código, fez constar que aos súditos era proporcionada moradia, justiça, habitação adequada, segurança contra os perturbadores, saúde e paz”[6]. Ainda nesta toada, nas polis gregas, notadamente na cidade-Estado de Atenas, é verificável, também, a edificação e o reconhecimento de direitos basilares ao cidadão, dentre os quais sobressai a liberdade e igualdade dos homens. Deste modo, é observável o surgimento, na Grécia, da concepção de um direito natural, superior ao direito positivo, “pela distinção entre lei particular sendo aquela que cada povo da a si mesmo e lei comum que consiste na possibilidade de distinguir entre o que é justo e o que é injusto pela própria natureza humana”[7], consoante evidenciam Siqueira e Piccirillo. Prima assinalar, doutra maneira, que os direitos reconhecidos não eram estendidos aos escravos e às mulheres, pois eram dotes destinados, exclusivamente, aos cidadãos homens[8], cuja acepção, na visão adotada, excluía aqueles. “É na Grécia antiga que surgem os primeiros resquícios do que passou a ser chamado Direito Natural, através da ideia de que os homens seriam possuidores de alguns direitos básicos à sua sobrevivência, estes direitos seriam invioláveis e fariam parte dos seres humanos a partir do momento que nascessem com vida”[9]. O período medieval, por sua vez, foi caracterizado pela maciça descentralização política, isto é, a coexistência de múltiplos centros de poder, influenciados pelo cristianismo e pelo modelo estrutural do feudalismo, motivado pela dificuldade de práticas atividade comercial. Subsiste, neste período, o esfacelamento do poder político e econômico. A sociedade, no medievo, estava dividida em três estamentos, quais sejam: o clero, cuja função primordial estava assentada na oração e pregação; os nobres, a quem incumbiam à proteção dos territórios; e, os servos, com a obrigação de trabalhar para o sustento de todos. “Durante a Idade Média, apesar da organização feudal e da rígida separação de classes, com a consequente relação de subordinação entre o suserano e os vassalos, diversos documentos jurídicos reconheciam a existência dos direitos humanos”[10], tendo como traço característico a limitação do poder estatal. Neste período, é observável a difusão de documentos escritos reconhecendo direitos a determinados estamentos, mormente por meio de forais ou cartas de franquia, tendo seus textos limitados à região em que vigiam. Dentre estes documentos, é possível mencionar a Magna Charta Libertati (Carta Magna), outorgada, na Inglaterra, por João Sem Terra, em 15 de junho de 1215, decorrente das pressões exercidas pelos barões em razão do aumento de exações fiscais para financiar a estruturação de campanhas bélicas, como bem explicita Comparato[11]. A Carta de João sem Terra acampou uma série de restrições ao poder do Estado, conferindo direitos e liberdades ao cidadão, como, por exemplo, restrições tributárias, proporcionalidade entre a pena e o delito[12], devido processo legal[13], acesso à Justiça[14], liberdade de locomoção[15] e livre entrada e saída do país[16]. Na Inglaterra, durante a Idade Moderna, outros documentos, com clara feição humanista, foram promulgados, dentre os quais é possível mencionar o Petition of Right, de 1628, que estabelecia limitações ao poder de instituir e cobrar tributos do Estado, tal como o julgamento pelos pares para a privação da liberdade e a proibição de detenções arbitrárias[17], reafirmando, deste modo, os princípios estruturadores do devido processo legal[18]. Com efeito, o diploma em comento foi confeccionado pelo Parlamento Inglês e buscava que o monarca reconhecesse o sucedâneo de direitos e liberdades insculpidos na Carta de João Sem Terra, os quais não eram, até então, respeitados. Cuida evidenciar, ainda, que o texto de 1.215 só passou a ser observado com o fortalecimento e afirmação das instituições parlamentares e judiciais, cenário no qual o absolutismo desmedido passa a ceder diante das imposições democráticas que floresciam. Outro exemplo a ser citado, o Habeas Corpus Act, de 1679, lei que criou o habeas corpus, determinando que um indivíduo que estivesse preso poderia obter a liberdade através de um documento escrito que seria encaminhado ao lorde-chanceler ou ao juiz que lhe concederia a liberdade provisória, ficando o acusado, apenas, comprometido a apresentar-se em juízo quando solicitado. Prima pontuar que aludida norma foi considerada como axioma inspirador para maciça parte dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, como bem enfoca Comparato[19]. Enfim, diversos foram os documentos surgidos no velho continente que trouxeram o refulgir de novos dias, estabelecendo, aos poucos, os marcos de uma transição entre o autoritarismo e o absolutismo estatal para uma época de reconhecimento dos direitos humanos fundamentais[20]. As treze colônias inglesas, instaladas no recém-descoberto continente americano, em busca de liberdade religiosa, organizaram-se e desenvolveram-se social, econômica e politicamente. Neste cenário, foram elaborados diversos textos que objetivavam definir os direitos pertencentes aos colonos, dentre os quais é possível realçar a Declaração do Bom Povo da Virgínia, de 1776. O mencionado texto é farto em estabelecer direitos e liberdade, pois limitou o poder estatal, reafirmou o poderio do povo, como seu verdadeiro detentor[21], e trouxe certas particularidades como a liberdade de impressa[22], por exemplo. Como bem destaca Comparato[23], a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia afirmava que os seres humanos são livres e independentes, possuindo direitos inatos, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, a felicidade e a segurança, registrando o início do nascimento dos direitos humanos na história[24]. “Basicamente, a Declaração se preocupa com a estrutura de um governo democrático, com um sistema de limitação de poderes”[25], como bem anota José Afonso da Silva. Diferente dos textos ingleses, que, até aquele momento preocupavam-se, essencialmente, em limitar o poder do soberano, proteger os indivíduos e exaltar a superioridade do Parlamento, esse documento, trouxe avanço e progresso marcante, pois estabeleceu a viés a ser alcançada naquele futuro, qual seja, a democracia.  Em 1791, foi ratificada a Constituição dos Estados Unidos da América. Inicialmente, o documento não mencionava os direitos fundamentais, todavia, para que fosse aprovado, o texto necessitava da ratificação de, pelo menos, nove das treze colônias. Estas concordaram em abnegar de sua soberania, cedendo-a para formação da Federação, desde que constasse, no texto constitucional, a divisão e a limitação do poder e os direitos humanos fundamentais[26]. Assim, surgiram as primeiras dez emendas ao texto, acrescentando-se a ele os seguintes direitos fundamentais: igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política, princípio da legalidade, princípio da reserva legal e anterioridade em matéria penal, princípio da presunção da inocência, da liberdade religiosa, da livre manifestação do pensamento[27]. 3 Direitos Humanos de Primeira Dimensão: A Consolidação dos Direitos de Liberdade No século XVIII, é verificável a instalação de um momento de crise no continente europeu, porquanto a classe burguesa que emergia, com grande poderio econômico, não participava da vida pública, pois inexistia, por parte dos governantes, a observância dos direitos fundamentais, até então construídos. Afora isso, apesar do esfacelamento do modelo feudal, permanecia o privilégio ao clero e à nobreza, ao passo que a camada mais pobre da sociedade era esmagada, porquanto, por meio da tributação, eram obrigados a sustentar os privilégios das minorias que detinham o poder. Com efeito, a disparidade existente, aliado ao achatamento da nova classe que surgia, em especial no que concerne aos tributos cobrados, produzia uma robusta insatisfação na órbita política[28]. O mesmo ocorria com a população pobre, que, vinda das regiões rurais, passa a ser, nos centros urbanos, explorada em fábricas, morava em subúrbios sem higiene, era mal alimentada e, do pouco que lhe sobejava, tinha que tributar à Corte para que esta gastasse com seus supérfluos interesses. Essas duas subclasses uniram-se e fomentaram o sentimento de contenda contra os detentores do poder, protestos e aclamações públicas tomaram conta da França. Em meados de 1789, em meio a um cenário caótico de insatisfação por parte das classes sociais exploradas, notadamente para manterem os interesses dos detentores do poder, implode a Revolução Francesa, que culminou com a queda da Bastilha e a tomada do poder pelos revoltosos, os quais estabeleceram, pouco tempo depois, a Assembleia Nacional Constituinte. Esta suprimiu os direitos das minorias, as imunidades estatais e proclamou a Declaração dos Direitos dos Homens e Cidadão que, ao contrário da Declaração do Bom Povo da Virgínia, que tinha um enfoque regionalista, voltado, exclusivamente aos interesses de seu povo, foi tida com abstrata[29] e, por isso, universalista. Ressalta-se que a Declaração Francesa possuía três características: intelectualismo, mundialismo e individualismo. A primeira pressupunha que as garantias de direito dos homens e a entrega do poder nas mãos da população era obra e graça do intelecto humano; a segunda característica referia-se ao alcance dos direitos conquistados, pois, apenas, eles não salvaguardariam o povo francês, mas se estenderiam a todos os povos. Por derradeiro, a terceira característica referia-se ao seu caráter, iminentemente individual, não se preocupando com direitos de natureza coletiva, tais como as liberdades associativas ou de reunião. No bojo da declaração, emergidos nos seus dezessete artigos, estão proclamados os corolários e cânones da liberdade[30], da igualdade, da propriedade, da legalidade e as demais garantias individuais. Ao lado disso, é denotável que o diploma em comento consagrou os princípios fundantes do direito penal, dentre os quais sobreleva destacar princípio da legalidade[31], da reserva legal[32] e anterioridade em matéria penal, da presunção de inocência[33], tal como liberdade religiosa e livre manifestação de pensamento[34]. Os direitos de primeira dimensão compreendem os direitos de liberdade, tal como os direitos civis e políticos, estando acampados em sua rubrica os direitos à vida, liberdade, segurança, não discriminação racial, propriedade privada, privacidade e sigilo de comunicações, ao devido processo legal, ao asilo em decorrência de perseguições políticas, bem como as liberdades de culto, crença, consciência, opinião, expressão, associação e reunião pacíficas, locomoção, residência, participação política, diretamente ou por meio de eleições. “Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade”[35],  aspecto este que passa a ser característico da dimensão em comento. Com realce, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado, refletindo um ideário de afastamento daquele das relações individuais e sociais. 4 Direitos Humanos de Segunda Dimensão: Os Anseios Sociais como substrato de edificação dos Direitos de Igualdade Com o advento da Revolução Industrial, é verificável no continente europeu, precipuamente, a instalação de um cenário pautado na exploração do proletariado. O contingente de trabalhadores não estava restrito apenas a adultos, mas sim alcançava até mesmo crianças, os quais eram expostos a condições degradantes, em fábricas sem nenhuma, ou quase nenhuma, higiene, mal iluminadas e úmidas. Salienta-se que, além dessa conjuntura, os trabalhadores eram submetidos a cargas horárias extenuantes, compensadas, unicamente, por um salário miserável. O Estado Liberal absteve-se de se imiscuir na economia e, com o beneplácito de sua omissão, assistiu a classe burguesa explorar e “coisificar” a massa trabalhadora, reduzindo seres humanos a meros objetos sujeitos a lei da oferta e procura. O Capitalismo selvagem, que operava, nessa essa época, enriqueceu uns poucos, mas subjugou a maioria[36]. A massa de trabalhadores e desempregados vivia em situação de robusta penúria, ao passo que os burgueses ostentavam desmedida opulência. Na vereda rumo à conquista dos direitos fundamentais, econômicos e sociais, surgiram alguns textos de grande relevância, os quais combatiam a exploração desmedida propiciada pelo capitalismo. É possível citar, em um primeiro momento, como proeminente documento elaborado durante este período, a Declaração de Direitos da Constituição Francesa de 1848, que apresentou uma ampliação em termos de direitos humanos fundamentais. “Além dos direitos humanos tradicionais, em seu art. 13 previa, como direitos dos cidadãos garantidos pela Constituição, a liberdade do trabalho e da indústria, a assistência aos desempregados”[37]. Posteriormente, em 1917, a Constituição Mexicana[38], refletindo os ideários decorrentes da consolidação dos direitos de segunda dimensão, em seu texto consagrou direitos individuais com maciça tendência social, a exemplo da limitação da carga horária diária do trabalho e disposições acerca dos contratos de trabalho, além de estabelecer a obrigatoriedade da educação primária básica, bem como gratuidade da educação prestada pelo Ente Estatal. A Constituição Alemã de Weimar, datada de 1919, trouxe grandes avanços nos direitos socioeconômicos, pois previu a proteção do Estado ao trabalho, à liberdade de associação, melhores condições de trabalho e de vida e o sistema de seguridade social para a conservação da saúde, capacidade para o trabalho e para a proteção à maternidade.  Além dos direitos sociais expressamente insculpidos, a Constituição de Weimar apresentou robusta moldura no que concerne à defesa dos direitos dos trabalhadores, primacialmente “ao instituir que o Império procuraria obter uma regulamentação internacional da situação jurídica dos trabalhadores que assegurasse ao conjunto da classe operária da humanidade, um mínimo de direitos sociais”[39], tal como estabelecer que os operários e empregados seriam chamados a colaborar com os patrões, na regulamentação dos salários e das condições de trabalho, bem como no desenvolvimento das forças produtivas. No campo socialista, destaca-se a Constituição do Povo Trabalhador e Explorado[40], elaborada pela antiga União Soviética. Esse Diploma Legal possuía ideias revolucionárias e propagandistas, pois não enunciava, propriamente, direitos, mas princípios, tais como a abolição da propriedade privada, o confisco dos bancos, dentre outras.  A Carta do Trabalho, elaborada pelo Estado Fascista Italiano, em 1927, trouxe inúmeras inovações na relação laboral. Dentre as inovações introduzidas, é possível destacar a liberdade sindical, magistratura do trabalho, possibilidade de contratos coletivos de trabalho, maior proporcionalidade de retribuição financeira em relação ao trabalho, remuneração especial ao trabalho noturno, garantia do repouso semanal remunerado, previsão de férias após um ano de serviço ininterrupto, indenização em virtude de dispensa arbitrária ou sem justa causa, previsão de previdência, assistência, educação e instrução sociais[41]. Nota-se, assim, que, aos poucos, o Estado saiu da apatia e envolveu-se nas relações de natureza econômica, a fim de garantir a efetivação dos direitos fundamentais econômicos e sociais. Sendo assim, o Estado adota uma postura de Estado-social, ou seja, tem como fito primordial assegurar aos indivíduos que o integram as condições materiais tidas por seus defensores como imprescindíveis para que, desta feita, possam ter o pleno gozo dos direitos oriundos da primeira geração. E, portanto, desenvolvem uma tendência de exigir do Ente Estatal intervenções na órbita social, mediante critérios de justiça distributiva. Opondo-se diretamente a posição de Estado liberal, isto é, o ente estatal alheio à vida da sociedade e que, por consequência, não intervinha na sociedade. Incluem os direitos a segurança social, ao trabalho e proteção contra o desemprego, ao repouso e ao lazer, incluindo férias remuneradas, a um padrão de vida que assegure a saúde e o bem-estar individual e da família, à educação, à propriedade intelectual, bem como as liberdades de escolha profissional e de sindicalização. Bonavides, ao tratar do tema, destaca que os direitos de segunda dimensão “são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal”[42]. Os direitos alcançados pela rubrica em comento florescem umbilicalmente atrelados ao corolário da igualdade. Como se percebe, a marcha dos direitos humanos fundamentais rumo às sendas da História é paulatina e constante. Ademais, a doutrina dos direitos fundamentais apresenta uma ampla capacidade de incorporar desafios. “Sua primeira geração enfrentou problemas do arbítrio governamental, com as liberdades públicas, a segunda, o dos extremos desníveis sociais, com os direitos econômicos e sociais”[43], como bem evidencia Manoel Gonçalves Ferreira Filho. 5 Direitos Humanos de Terceira Dimensão: A valoração dos aspectos transindividuais dos Direitos de Solidariedade Conforme fora visto no tópico anterior, os direitos humanos originaram-se ao longo da História e permanecem em constante evolução, haja vista o surgimento de novos interesses e carências da sociedade. Por esta razão, alguns doutrinadores, dentre eles Bobbio[44], os consideram direitos históricos, sendo divididos, tradicionalmente, em três gerações ou dimensões. A nomeada terceira dimensão encontra como fundamento o ideal da fraternidade (solidariedade) e tem como exemplos o direito ao meio ambiente equilibrado, à saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos, a proteção e defesa do consumidor, além de outros direitos considerados como difusos. “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo”[45] ou mesmo de um Ente Estatal especificamente. Ainda nesta esteira, é possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Os direitos de terceira dimensão são considerados como difusos, porquanto não têm titular individual, sendo que o liame entre os seus vários titulares decorre de mera circunstância factual. Com o escopo de ilustrar, de maneira pertinente as ponderações vertidas, insta trazer à colação o robusto entendimento explicitado pelo Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 1.856/RJ, em especial quando destaca: “Cabe assinalar, Senhor Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível”[46]. Nesta feita, importa acrescentar que os direitos de terceira dimensão possuem caráter transindividual, o que os faz abranger a toda a coletividade, sem quaisquer restrições a grupos específicos. Neste sentido, pautaram-se Motta e Motta e Barchet, ao afirmarem, em suas ponderações, que “os direitos de terceira geração possuem natureza essencialmente transindividual, porquanto não possuem destinatários especificados, como os de primeira e segunda geração, abrangendo a coletividade como um todo”[47]. Desta feita, são direitos de titularidade difusa ou coletiva, alcançando destinatários indeterminados ou, ainda, de difícil determinação. Os direitos em comento estão vinculados a valores de fraternidade ou solidariedade, sendo traduzidos de um ideal intergeracional, que liga as gerações presentes às futuras, a partir da percepção de que a qualidade de vida destas depende sobremaneira do modo de vida daquelas. Dos ensinamentos dos célebres doutrinadores, percebe-se que o caráter difuso de tais direitos permite a abrangência às gerações futuras, razão pela qual, a valorização destes é de extrema relevância. “Têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”[48]. A respeito do assunto, Motta e Barchet[49] ensinam que os direitos de terceira dimensão surgiram como “soluções” à degradação das liberdades, à deterioração dos direitos fundamentais em virtude do uso prejudicial das modernas tecnologias e desigualdade socioeconômica vigente entre as diferentes nações. 6 Singelo Painel ao Reconhecimento da Bioética na condição de Direito Humano de Quarta Dimensão: Breves Ponderações à Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos Em uma primeira plana, é de amplo conhecimento que a sociedade atual tem, como algumas de suas principais características, o avanço tecnológico e científico, a difusão e o desenvolvimento  da  cibernética,  consequências  do  processo  de  globalização. Ocorre que tais perspectivas trouxeram situações inovadoras e que não correspondem aos fundamentos das gerações mencionadas anteriormente. Trata-se de um cenário dotado de maciça difusão de conhecimento e informações, bem como fluída alteração de paradigmas, notadamente os relacionados ao desenvolvimento científico e biológico. Em meio a esse contexto, para a regularização das situações decorrentes das transformações sociais, surgiram os Direitos de Quarta e Quinta Dimensão, os quais serão estudados doravante. Particularmente à Quarta Dimensão de Direitos, um dos seus principais idealizadores foi Bonavides, para o qual “são direitos da quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta para o futuro, em sua dimensão de máxima universalidade […]”[50]. Com o passar do tempo, conforme bem salientou Serraglio[51], as descobertas científicas proporcionaram, dentre muitos avanços, o aumento na expectativa de vida humana, vez que, ao homem, tornou-se possível alterar o mecanismos de nascimento e morte de seus pares. Sendo assim, a proteção à vida e ao patrimônio genético foi incluída na categoria dos direitos de quarta dimensão. Em consonância com Motta e Barchet[52], atualmente, tais direitos referem-se à manipulação genética, à biotecnologia e à bioengenharia, e envolvem, sobretudo, as discussões sobre a vida e morte, sempre pautadas nos preceitos éticos. É fato que o fenômeno globalizante foi responsável por conferir um robusto desencadeamento de difusão de informações e tecnologias, sendo responsável pelo surgimento de questões dotadas de proeminente complexidade, os quais oscilam desde os benefícios apresentados para a sociedade até a modificação do olhar analítico acerca de temas polêmicos, propiciando uma renovação nos valores e costumes adotados pela coletividade. Como bem destaca Lima Neto[53], o florescimento dos direitos humanos acampados pela quarta dimensão só foi possível em decorrência do sucedâneo de inovações tecnológicas que deram azo ao surgimento de problemas que, até então, não foram enfrentados pelo Direito, notadamente os relacionados ao campo da pesquisa com o genoma humano. Para tanto, carecido se fez a estruturação de limites e regulamentos que norteassem o desenvolvimento das pesquisas, tal como a utilização dos dados obtidas, com o escopo de preservar o patrimônio genético da espécie humana. Dentre os documentos legais que se dedicam à regulamentação das pesquisas científicas relacionadas à vida humana, cumpre-se mencionar, primeiramente, a Declaração dos Direitos do Homem e do Genoma Humano, criada pela Assembleia Geral da UNESCO em 1997. Conforme esclarece Motta e Barchet[54], é necessário consolidar os direitos de quarta geração, pois assim serão delineados os fundamentos jurídicos para as pesquisas científicas, no sentido de impor limites a estas e de garantir que o Direito não fique apartado dos avanços da Ciência. Vieira complementa, oportunamente, esse entendimento, ao afirmar, com clareza, que “a lei deve assegurar o princípio da primazia da pessoa aliando-se às exigências legítimas do progresso de conhecimento científico e da proteção da saúde pública”[55]. Neste sentido, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos considerou os rápidos progressos da ciência e da tecnologia, que cada vez mais influenciam a nossa concepção da vida e a própria vida, de que resulta uma forte procura de resposta universal para as suas implicações éticas. Igualmente, reconheceu que as questões éticas suscitadas pelos rápidos progressos da ciência e suas aplicações tecnológicas devem ser examinadas tendo o devido respeito pela dignidade da pessoa humana e o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Ao lado disso, estabeleceu que é necessário e oportuno que a comunidade internacional enunciasse princípios universais com base nos quais a humanidade possa responder aos dilemas e controvérsias, cada vez mais numerosos, que a ciência e a tecnologia suscitam para a humanidade e para o meio ambiente. Sobredito documento assinalou, ainda, que os seres humanos fazem parte integrante da biosfera e têm um papel importante a desempenhar protegendo-se uns aos outros e protegendo as outras formas de vida, em particular os animais. A Declaração trata das questões de ética suscitadas pela medicina, pelas ciências da vida e pelas tecnologias que lhes estão associadas, aplicadas aos seres humanos, tendo em conta as suas dimensões social, jurídica e ambiental. A Declaração é dirigida aos Estados. Ao lado disso, permite também, na medida apropriada e pertinente, orientar as decisões ou práticas de indivíduos, grupos, comunidades, instituições e empresas, públicas e privadas. A presente Declaração tem os seguintes objetivos: (a) proporcionar um enquadramento universal de princípios e procedimentos que orientem os Estados na formulação da sua legislação, das suas políticas ou de outros instrumentos em matéria de bioética; (b) orientar as ações de indivíduos, grupos, comunidades, instituições e empresas, públicas e privadas; (c) contribuir para o respeito pela dignidade humana e proteger os direitos humanos, garantindo o respeito pela vida dos seres humanos e as liberdades fundamentais, de modo compatível com o direito internacional relativo aos direitos humanos; (d) reconhecer a importância da liberdade de investigação científica e dos benefícios decorrentes dos progressos da ciência e da tecnologia, salientando ao mesmo tempo a necessidade de que essa investigação e os consequentes progressos se insiram no quadro dos princípios éticos enunciados na presente Declaração e respeitem a dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais; (e) fomentar um diálogo multidisciplinar e pluralista sobre as questões da bioética entre todas as partes interessadas e no seio da sociedade em geral; (f) promover um acesso equitativo aos progressos da medicina, da ciência e da tecnologia, bem como a mais ampla circulação possível e uma partilha rápida dos conhecimentos relativos a tais progressos e o acesso partilhado aos benefícios deles decorrentes, prestando uma atenção particular às necessidades dos países em desenvolvimento; (g) salvaguardar e defender os interesses das gerações presentes e futuras; (h) sublinhar a importância da biodiversidade. Pontua, ainda, a Declaração em exame que o profissionalismo, a honestidade, a integridade e a transparência na tomada de decisões, em particular a declaração de todo e qualquer conflito de interesses e uma adequada partilha dos conhecimentos, devem ser encorajados. Tudo deve ser feito para utilizar os melhores conhecimentos científicos e as melhores metodologias disponíveis para o tratamento e o exame periódico das questões de bioética. Deve ser levado a cabo um diálogo regular entre as pessoas e os profissionais envolvidos e também no seio da sociedade em geral. Devem promover-se oportunidades de um debate público pluralista e esclarecido, que permita a expressão de todas as opiniões pertinentes. Com vista a promover os princípios enunciados na Declaração e assegurar uma melhor compreensão das implicações éticas dos progressos científicos e tecnológicos, em particular entre os jovens, os Estados devem esforçar-se por fomentar a educação e a formação em matéria de bioética a todos os níveis, e estimular os programas de informação e de difusão dos conhecimentos relativos à bioética. Os Estados devem encorajar as organizações intergovernamentais internacionais e regionais, bem como as organizações não-governamentais internacionais, regionais e nacionais, a participar neste esforço.
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Biodireito e Desenvolvimento Sustentável
Este trabalho tem como tema a unidade entre a finalidade da ética e os princípios da bioética e do Direito Constitucional. Neste século as Constituições se consolidam passando a incorporar novas matérias fenômeno que permite a juridicização de vários temas. A bioética consiste uma resposta ética às questões posta pelo desenvolvimento da ciência. São objeto da bioética os problemas morais que discutem a proteção da vida. A partir dessas considerações é possível concluir que a técnica deve se submeter à ética. A bioética ao cuidar da vida humana permite o desenvolvimento de um novo campo do saber. O biodireito surge como disciplina que tem como fontes a bioética a biogenética a medicina e a ética. O biodireito como ramo do direito e a bioética como ramo da ética passam a operar transdisciplinarmente a partir de um elemento comum a capacidade normativa que lhes são inerentes. Neste contexto pode-se afirmar a natureza constitucional da bioética pela qual o biodireito eleva os princípios que lhes são comum ao plano constitucional numa concepção holista que tem no princípio da dignidade da pessoa humana seu termo inicial e final. O problema está delimitado na constatação de um fenômeno que pode ser definido como a juridicização da bioética. Tal fenômeno permitiu uma nova disciplina o biodireito constitucional.[1]
Biodireito
I – Introdução Inicio do século XXI, é neste tempo que se constata que o constitucionalismo; movimento que defende a ideia de o que governo de um Estado deve ser regido em razão da garantia dos direitos humanos; se estabelece consolidando valores éticos. Nesta esteira, o biodireito se afirma como disciplina, pois numa unidade congrega uma doutrina particular, uma legislação especifica e uma jurisprudência própria que cuida dos problemas pertinentes aos avanços da biotecnologia. Dessa forma a Constituição Federal de 1988 – CF/88 – atua como documento de legitimação, protegendo o ser humano não apenas em razão da sua condição de indivíduo, mas principalmente em face da sua transcendência, ou seja, da sua humanidade. Neste contexto, este trabalho apresenta o biodireito como um conhecimento, integrador dos desafios da ciência com as expectativas sociais estabelecidas na Constituição. Estas questões serão relacionadas à problemática do desenvolvimento sustentável, que pode ser compreendido como um direito fundamental, a ser efetivado mediante políticas e planejamento, constituindo um dever do Estado para com a qualidade de vida do cidadão. Isso pressupõe uma hermenêutica da Constituição, que pondera os valores do desenvolvimento, da liberdade e da igualdade. O conceito de desenvolvimento sustentável comporta traços éticos, que fundamentam uma crítica à forma como se desenvolveu o progresso técnico no século XX. Constata-se que o crescimento econômico e o desenvolvimento científico, não implicam necessariamente em desenvolvimento social. O tema é o biodireito, de onde se destaca o problema da relação entre a ética e o direito na regulação da liberdade cientifica e política. Nosso objetivo geral é estabelecer uma relação entre a bioética e o biodireito para especificamente tratar do princípio do desenvolvimento sustentável. O trabalho não apresenta as suas considerações finais baseando-se em resultados estatísticos, mas, valendo-se de análise bibliográfica, com a pretensão de relacionar conceitos num esquema teórico. Constata-se, assim, a intimidade entre a ética e o direito no fenômeno da judicialização. II – Breve dinâmica dos direitos humanos A expressão “dimensões do direito” tem servido como uma síntese evolutiva da história dos direitos humanos, que assim podem ser analisados e compreendidos em múltiplas dimensões. Portanto, a ideia de se trabalhar com dimensões, serve para caracterizar, com marcos paradigmáticos, a evolução dos Direitos Humanos. Embora a doutrina tenha desenvolvido outras dimensões, temos, inicialmente, a dimensão individual-liberal como a primeira dimensão, que destaca os direitos civis e políticos estabelecidos a partir das idéias liberais de liberdade. São as liberdades negativas ou formais, como direitos básicos do individuo em face da atuação do poder público, buscando controlar e limitar o governo, para que respeite as liberdades individuais da pessoa humana, assim, significando uma prestação passiva do Estado em relação ao indivíduo. A segunda é a dimensão social, que foca os direitos econômicos, sociais e culturais, direitos cujo principal conteúdo é a igualdade, que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas. Significa uma obrigação de atuação do poder público em favor do cidadão e não mais um não-fazer, trata-se de uma atuação com o objetivo de garantir melhores condições de vida à sociedade. A terceira dimensão é a dos direitos de solidariedade, no qual figuram, dentre outros, o direito ao desenvolvimento e ao meio ambiente, que estabelece a fraternidade como um dos principais princípios, materializando a titularidade coletiva, importante processo de desenvolvimento e reconhecimento dos Direitos Humanos como valores indisponíveis. Ao discutir a fundamentação do direito, Bobbio afirmou que o problema não seria mais o de saber os fundamentos do direito; a questão agora é o da sua proteção. Assim, não importa saber quantos são esses direitos; o que importa é saber como garanti-los. A importância do tema dos direitos ressalta em razão do seu envolvimento com a democracia (BOBBIO, 2004, p.25, 203). III – Um percurso conceitual III.I – Ética A etimologia grega aponta a ética como o domínio comum dos costumes numa dupla função, a de designar os princípios e as normas do permitido e do proibido, também se referindo à dimensão subjetiva do sujeito no respeito às regras (CANTO-SPERBER, p. 591, 2003). A ética estuda a conduta da existência humana, assim, se apresenta como um saber prático da prudência do agir humano, que se realiza com base em princípios e na busca de finalidades. A ética designa a tradição do hábito, que se impõe como sabedoria, designando o modo de viver humano. É o estudo do porquê de serem as condutas morais ou imorais, se concentrando no exame do correto e do impróprio. Um traço da ética clássica consiste a compreensão de que o exercício da técnica seria eticamente neutro, pois a ação técnica materializaria o enfrentamento de necessidades advindas da existência humana. Esse saber, como vocação, não valorava eticamente a atuação do indivíduo humano sobre os objetos. Por essas premissas, a ética era antropocêntrica se resumindo ao inter-relacionamento dos indivíduos humanos. Os problemas do bem e do mal se evidenciavam na ação, a ação boa era assim avaliada por critérios imediatos, as consequências posteriores não eram consideradas, senão justificadas pelo acaso do destino ou da providência. A ação correta era a que resolvia com sabedoria o problema da ocasião, assim se desenvolveu uma ética cuja atuação era o aqui e o agora. O compromisso seria com o tempo presente, com aqueles que possam suportar os efeitos das ações ou omissões que o indivíduo pratica. Não eram responsabilizáveis os efeitos involuntários de um ato bem executado. Esse paradigma defasou-se, assim, o coletivo impõe às considerações da ética uma nova dimensão de responsabilidade. Um exemplo, é a compreensão da vulnerabilidade da natureza em face da exacerbação da sua exploração, é em torno desse problema que se desenvolveu a ciência do meio ambiente. Agora, os problemas da natureza são da responsabilidade do humano, assim, o objeto da ética amplia-se (JONAS, 2006, p. 35-40). III.II – Bioética Compreende-se a bioética como a ética, cujo objeto é a proteção da vida humana, em face dos avanços tecnológicos da ciência. Um fenômeno que caracteriza o começo deste século é o da ‘constitucionalização’. Seus principais traços consistem, no aspecto formal, a judicialização dos problemas, pelo aspecto material, a força normativa dos princípios constitucionais. É por esse prisma que a bioética se relaciona com o princípio da dignidade humana. Assim, os direitos à liberdade, à vida e a um meio ambiente saudável, por estarem constitucionalizados, ganham uma especial proteção e garantia, permitindo que se questione juridicamente a liberdade de atuação da ciência em face dos direitos da pessoa humana. A Constituição vigente proclama em seu artigo 5°, inciso IX, a liberdade da atividade científica, entretanto tal permissão não é absoluta em razão do valor da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado democrático de direito, que constitui a República do Brasil, conforme estabelecido no artigo 1°, inciso III, do referido Diploma. Logo, nenhuma ação científica terá a liberdade protegida se colocar em perigo a dimensão da dignidade humana. Portanto, a atividade científica não pode desconsiderar os princípios da ética, nem os fundamentos constitucionais. Constata-se uma intermediação entre a ética e o direito na regulação do agir científico. A ética se ocupa daquilo que diz respeito à fundamentação moral, cuidando o direito do aspecto da legalidade. Esta unidade nutre uma ordem jurídica, que se baseia na dignidade humana para justificar os valores protegidos constitucionalmente. Ao se valer da ética, o direito não a torna secundaria, mas, ao contrário, a torna evidente na realidade. A bioética, para cuidar e influenciar os procedimentos que afetam a vida humana tem que observar as considerações expressadas pelo direito. Assim, a dignidade da vida humana é alçada a um enfoque metajurídico em razão de sua base antropológica e de sua justificação ética. A bioética, quando ultrapassa o universo axiológico e é posta no ordenamento jurídico, transmuda-se em biodireito. Um exemplo desse ultrapassar consiste no desenvolvimento da biotecnologia e a corespondente problematização com os direitos humanos. O direito e a ética enfrentam situações derivadas do desenvolvimento tecnológico e científico, os (bio) riscos, que podem decorrer (dos abusos) da investigação científica e das técnicas que tratam da vida e da saúde. Daí o surgimento de uma disciplina, o biodireito, que se envolve diretamente com a genética, a biotecnologia e a bioengenharia. A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, adotada por aclamação em 03 de outubro de 2005, pela Conferência Geral da UNESCO – artigo 3º – firma a importância de se respeitar o ser humano, na unidade de sua individualidade com a sua condição coletiva de membro de uma espécie, a humana, reconhecendo, portanto, o valor da sua dignidade. A citada Conferência consciente dos atos que possam pôr em perigo a dignidade humana, pelo uso impróprio da biologia e da medicina, resolve estabelecer, no âmbito das aplicações da biologia e da medicina, as premissas adequadas para garantir a dignidade do ser humano e os direitos e liberdades fundamentais da pessoa. Positiva-se no artigo segundo, o primado do ser humano, assim, “O interesse e o bem-estar do ser humano devem prevalecer sobre o interesse único da sociedade ou da ciência”. No Brasil, a Lei 11.105/05, que regulamenta os incisos II, IV e V, do §1°, do artigo 225 da Constituição Federal, estabelece como norma, em seu artigo 1°, que o descarte de organismos geneticamente modificados – OGM – e seus derivados devem observar o princípio da precaução para a proteção do meio ambiente, da vida e da saúde humana. É importante enfatizar que o conceito de ‘vida’ é concebido, em termos jurídicos, como direito que se fundamenta na unidade da individualidade com a alteridade, o que impõe o dever de respeito à vida do outro. Cuidando o Direito Constitucional do desenvolvimento, seja quando trata do homem, seja quando trata da sociedade, as questões da evolução científica não podiam ficar de fora. Assim, considerando a relação entre ética, bioética e direito, se observa que os princípios da bioética não podem contradizer os princípios éticos. Logo, fixado o objeto material da bioética, compreenderemos o conteúdo do biodireito, perspectiva que mais interessa ao jurista, visto que a Constituição, enquanto núcleo político de um ordenamento organiza o direito com base em valores antropológicos. Nesse sentido, Dantas (2008, p. 145), relata que “Esta constatação permite que se fale, atualmente, em Biodireito Constitucional ou, autoriza a existência de uma Bioconstituição.”. III.III – Biodireito Foi com o desenvolvimento da bioética que se chegou ao biodireito, isto é, da positivação reguladora da bioética, o que leva à conclusão de que o biodireito consiste a normatização da bioética. Assim, o biodireito pode ser compreendido como um sistema de regras jurídicas, constituindo-se, portanto, no direito que visa estabelecer a obrigatoriedade de observância das regras da bioética. O biodireito pode se desenvolver considerando o direito ambiental, em razão de ambos terem uma sólida base na bioética, chegando a compartilhar princípios. Um tema que aproxima ambas as matérias é o dos organismos geneticamente modificados, em razão das possíveis implicações nocivas a todo ecossistema e por poderem colocar em risco a saúde do ser humano. Essas duas disciplinas devem ser consideradas como correlatas, destacando-se que a principal característica do direito ambiental é a proteção do meio ambiente, estudando-o como uma unidade. O biodireito focaliza o ser humano como uma espécie portadora de valores próprios e dependente do meio ambiente. A bioética como palco, as novas tecnologias como texto, a genética, os alimentos transgênicos, o meio ambiente, a biodiversidade, o desenvolvimento sustentável, o embrião, a morte, a vida, o transplante de órgãos e os direitos humanos, como atores, compõem uma peça, cuja encenação transmite uma ideia, a de que não é razoável juridicamente efetivar qualquer pesquisa científica, até que se comprove a inexistência de consequências maléficas ao ser humano e/ou ao meio ambiente. Qualquer indivíduo possui direitos básicos que os outros devem respeitar, assim, entender os direitos humanos por uma perspectiva ética é admitir que quando se pode evitar, existe uma razão para se impedir a violação dos direitos. (SEN, 2011, p.390-408). O biodireito tem, em razão de sua íntima relação com a bioética, um campo de investigação amplo. Nesse sentido, a bioética desponta como um saber que cuida da vida e do meio ambiente, de um modo geral, e da vida humana, de maneira particular, ajudando na interpretação dos novos desafios advindos dos avanços das tecnologias. O biodireito como ramo do direito, e a bioética como ramo da ética, passam a operar numa unidade relacional de objetivos. Assim, plantas “engenheiradas”, a reação aos alimentos transgênicos, a gestação de fetos acéfalos, introduzem o direito em um cenário composto pela medicina e pelas ciências biológicas, num diálogo em que se busca um consenso em face de questões críticas da vida, com destaque para a saúde e o meio ambiente, num contexto em que o tom é o da dignidade da pessoa humana. O biodireito constitui um tema multidisciplinar, visto que, na prática das ciências as normas jurídicas são uma realidade, visto que regulam a atividade cientifica com fundamento na ética (DURAND, 2007, p. 83). Nesses termos é possível pensar o biodireito como um sistema, concebido num processo no qual a dignidade humana está vinculada a uma finalidade que conjuga as ideias de justiça e liberdade. Neste cenário, Dantas (2008, p.11) afirma que: “Não se pense que a questão é apenas jurídica, pois a partir do instante em que se reconhece a existência de valores constitucionais, estes se espraiam em todas as direções, tais como no Biodireito, na Bioética e na Deontologia Médica, valendo lembrar que a área abrangida pelo Biodireito alcança, inclusive, as questões ambientais.” O objeto do direito se constitui na unidade da complexidade social com a juridicidade, a transformação da vida social implica mudanças na interpretação normativa, visto que a realidade social não se aparta da realidade jurídica. Em sua atuação, o biodireito considera os aspectos ideológicos, políticos, sociais e éticos da coexistência. Os temas que se pretende que sejam da análise do biodireito revestem-se de valores morais, impondo um diálogo entre direito, ética, filosofia, antropologia, medicina, biologia e a engenharia genética. Portanto, o tema se desenvolve sob o pálio da teoria constitucional contemporânea. Isso quer dizer que a efetivação do direito deve ter como termo inicial a interpretação do sistema de princípios jurídicos, considerando que princípios são valores éticos com força normativa. Os princípios não se reportam a um fato especifico, assim, eles devem ser entendidos como indicadores a serem atribuídos na apreciação de determinados fatos. (GUERRA FILHO, 2000, p. 17).      Assim, afirma-se que a natureza holística da constitucionalização da bioética fez surgir o biodireito, com a finalidade de relacionar os princípios da bioética ao plano constitucional, numa concepção política-integrativa. IV – Nosso futuro comum Em 1983, ao retomar os debates acerca das questões ambientais, a Organização das Nações Unidas – ONU – cria a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que produz em 1987, um Relatório intitulado ‘Nosso Futuro Comum’. Esse documento propõe o desenvolvimento sustentável, que consiste uma categoria do desenvolvimento que se ocupa de equacionar a exploração do meio ambiente para as satisfações e necessidades da geração presente, sem que esta exploração comprometa o igual direito das gerações futuras. Foram realizadas reuniões públicas, possibilitando que diferentes grupos expressassem as suas razões nos debates acerca do desenvolvimento sustentável. O Relatório reafirma a necessidade de uma revisão da forma como a ideia de desenvolvimento é posta em prática, sem considerar a capacidade de suporte dos ecossistemas, assim, apontando para uma nova maneira de relacionamento entre o individuo humano e o meio ambiente. Ressalta-se, que o desenvolvimento sustentável tem na proteção ambiental um dos seus principais pilares. A Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – ECO-92 – consolidou o conceito de desenvolvimento sustentável como portador da ideia que concilia desenvolvimento econômico com a conservação do meio ambiente. O desenvolvimento sustentável passa a ser um objetivo norteador das políticas públicas. Entre as principais propostas se destacam as discussões para definição dos padrões sustentáveis de desenvolvimento que respeitem, dentre outros, os aspectos ambientais e éticos. Enquanto paradigma, o desenvolvimento sustentável é o meio para a sustentabilidade, cujo objetivo é o desenvolvimento social. Em razão das áreas do conhecimento cientifico envolvidas no tema (com destaque para a ética, o direito e a gestão das políticas públicas), a categoria ‘sustentável’ do desenvolvimento, caracteriza um objeto de estudo que compreende um sistema complexo. As gestões das políticas públicas, pelo paradigma da sustentabilidade, compatibilizam crescimento econômico com conservação ambiental, efetivando o princípio da solidariedade das gerações presentes com as gerações futuras. Desta maneira, materializam-se os direitos transcritos na Constituição. Portanto, a sustentabilidade impõe um conteúdo ético às instituições públicas (SILVA, SOUZA-LIMA, 2010, p. 44). O conceito de sustentabilidade, princípio constitucional, objetiva a responsabilidade do Estado na efetivação do desenvolvimento. É um dever ético de compreensão das liberdades, em correspondência com o valor expressado pelo principio da dignidade humana. Portanto, a atitude ética sustentável é aquela em cuja ação se considere o desenvolvimento como bem-estar atemporal, isto é, um bem para a geração presente e as futuras. Assim, a atuação do Estado Constitucional quanto à sustentabilidade do bem-estar, constitui uma ação ética (FREITAS, 2011, p. 57-60), pois a Constituição brasileira vigente estabelece já a partir do seu preâmbulo o desenvolvimento como um valor. Afirma o referido texto constitucional, categoricamente, que a Assembleia Nacional Constituinte, enquanto representante do povo brasileiro, fora reunida para instituir um Estado democrático, cujo destino seria o de assegurar o desenvolvimento como valor. Em seu título I – Dos Princípios Fundamentais; no art. 3º, inciso III, o mesmo Diploma Político, afirma que constitui objetivo fundamental da Republica Federativa do Brasil garantir o desenvolvimento nacional. O desenvolvimento sustentável pode ser compreendido como um direito fundamental, a ser efetivado mediante políticas e planejamento, constituindo dever do Estado para com a qualidade de vida do cidadão. Isso pressupõe uma hermenêutica da Constituição, que considera o desenvolvimento como liberdade que não despreza a igualdade como valor democrático inalienável (SEN, 2000, p. 18-19). V – Princípio do desenvolvimento sustentável É importante observar, quanto ao meio ambiente que, quando se ‘fala’ em princípios, deve-se ter em mente que estes não se apresentam de forma diversa dos de qualquer outro ramo do direito. É relevante e necessário conceituar o termo princípios, destacando-se que se trata daqueles que guardam os valores fundamentais da ordem jurídica. Isso é possível na medida em que eles não têm por objetivo regular situações específicas, mas lançar sua força sobre todo o mundo jurídico. Alcançam eles tal meta, na proporção em que perdem o caráter de precisão de conteúdo, isto é, conforme vão perdendo a densidade semântica, ascende a uma posição que lhes permite sobressair, pairando sobre uma área muito mais ampla. O que o princípio perde em carga normativa, ganha em força valorativa. Os princípios, portanto, determinam a regra que deverá ser aplicada pelo intérprete, demonstrando o caminho a ser seguido. Biodireito e Direito Ambiental compartilham os seus princípios, exemplo é o principio do desenvolvimento sustentável. O termo desenvolvimento, conforme já exposto, expressa o processo pelo qual se avalia uma determinada progressão. Essa progressão indica que a causa do desenvolvimento tem como traço essencial um movimento, que é comparável ao movimento que constatamos quando dizemos que o homem é o desenvolvimento do menino, ou seja, desenvolvimento é devir. Este conceito origina-se da observação de que as ações se concretizam num instante e as consequências destas ações, isto é, o que resulta delas, se realizam na prospecção do tempo. Assim, problematiza-se a exploração dos recursos naturais, cuja tutela constitucional valoriza esta categoria de recursos como bem de uso comum, para as gerações presentes e para as gerações futuras. A ONU compreende o desenvolvimento um como processo, portanto um movimento, que abrange aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos. Em ambos os aspectos, a finalidade é a da busca da felicidade (DIMOULIS, 2007, p. 112). As discussões enfatizam o paradigma da exploração do meio ambiente de forma ordenada, prospectando, as gerações futuras. Esse é o núcleo conceitual da categorização do desenvolvimento como sustentável. Desenvolvimento sustentável significa a atitude de respeito com as gerações futuras por se considerar a natureza como um sistema holístico (MOTTA, 2010, p. 165). O desenvolvimento deve estar pautado na interação harmoniosa da sociedade com a natureza, buscando prevenir o que é verificável nos fenômenos de degradação ambiental. A Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, documento elaborado durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92, adotou a noção de desenvolvimento como direito, entretanto, o seu exercício está condicionado, como garantia, às gerações futuras, e limitado pela proteção ambiental. Desse modo, o desenvolvimento sustentável se constitui como princípio que cuida, igualmente, tanto do direito do ser humano de satisfazer suas necessidades, desenvolver-se e realizar as suas potencialidades, quer individual, quer socialmente, como o dever de assegurar as mesmas expectativas às gerações futuras. Essa é a relação de reciprocidade entre o direito de desenvolver-se e o dever de conservar o meio ambiente que se entende como sustentável (CONSTANTINOV, 2008, p. 37). O conceito de desenvolvimento apresenta um traço ético, o qual questiona o progresso técnico e econômico que marcou o final do sec. XX. Esse conceito prova que o crescimento econômico e o desenvolvimento da ciência não implicam desenvolvimento social (SACHS, 2003, p. 63). Pelo paradigma da sustentabilidade, não se pode dissociar o tema do desenvolvimento do estudo da ética e do direito. A ética, dando importância ao bem-estar, cuida do problema de ‘como devemos viver’.  (SEN, 1999, p. 19). A efetivação do direito ao desenvolvimento impõe no usufruto dos recursos naturais necessários à sobrevivência, uma obrigação, a do planejamento da apropriação, criminalizando o consumo irresponsável. A ideia de sustentabilidade tem fundamento no reconhecimento de que os recursos naturais são esgotáveis, portanto é a partir de um reordenamento no modo de utilização dos recursos naturais e do trato ao meio ambiente que estaremos garantindo o bem-estar humano e a conservação do planeta. É uma nova razão que parte da compreensão de que o desenvolvimento deve ocorrer respeitando a capacidade de suporte dos ecossistemas. Assim, o desenvolvimento, para ser sustentável, deve estudar a capacidade de renovação dos recursos naturais, de forma que possam continuar a servir às gerações futuras. Logo, para que um comportamento social atenda ao princípio do desenvolvimento sustentável, é necessário que seja equilibrada a utilização dos recursos naturais com a reposição de recursos sucedâneos. (CONSTANTINOV, 2008, p. 39).   Compete ao Estado regular o desenvolvimento e a forma de utilização dos recursos naturais da atual geração, para evitar reflexos negativos na disponibilidade e qualidade desses recursos para as gerações futuras. Assim, compreende-se o meio ambiente como patrimônio interdimensional. Trata-se de uma noção de desenvolvimento que envolve a equitativa utilização dos recursos naturais, por impor parâmetros ao sistema produtivo que considerem as gerações futuras. O desenvolvimento é processo de expansão real das liberdades humanas. Esse pensamento contrasta com os paradigmas restritivos que relacionam o desenvolvimento com crescimento econômico e avanço tecnológico. Assim, o desenvolvimento para ser sustentável deve inibir a exploração egoísta dos recursos naturais, relacionando liberdade com desenvolvimento e qualidade de vida com crescimento econômico (SEN, 2000, p. 17-29). Para alcançar os objetivos da sustentabilidade, consideram-se novos princípios e valores. Essa mudança de concepção permite orientar o crescimento levando em consideração a dimensão ambiental, portanto, o crescimento deve considerar na sua evolução os custos ambientais, que serão impostos, como espólio, pela geração presente as gerações futuras. Assim, as satisfações das necessidades básicas estão vinculadas à solidariedade com as gerações futuras, com a preservação dos recursos naturais e do meio ambiente em geral (SACHS, 2003, p. 66). As políticas públicas consistem em instrumentos para a formalização do princípio do desenvolvimento sustentável, com o escopo de promover o desenvolvimento social e cultural, levando em conta, na sua política, a busca da conciliação entre o desenvolvimento econômico e a conservação do meio ambiente, projetando os efeitos de tal política para as gerações futuras (CONSTANTINOV, 2008, p. 40). Considerações finais Em razão do que foi exposto, pode-se compreender o direito como um sistema que opera com a ética, seja em sua dimensão cientifica, política ou prática. Quando o objeto de incidência é o desenvolvimento, o direito impõe, a partir dos valores constitucionalmente colocados como paradigmas políticos e administrativos, a forma da sustentabilidade.    O estudo toma como realidade a unidade entre os princípios da ética e a finalidade do direito-constitucional, na construção de um paradigma hermenêutico a se operar nas relações do biodireito com a bioética. Pode-se argumentar que a liberdade científica deve considerar os princípios políticos estabelecidos constitucionalmente. O trabalho não apresenta sua conclusão baseando-se em resultados estatísticos, mas, valendo-se de análise bibliográfica com a pretensão de relacionar conceitos num esquema teórico. Constata-se, assim, a intimidade entre ética e direito no fenômeno da judicialização da bioética em razão da força normativa da Constituição. Concebem-se neste estudo as pretensões em torno de um direito constitucionalmente humanizado e a sua importância nas transformações sociais. O biodireito é consequência da judicialização da bioética e da interpretação sistêmica dos direitos humanos. Buscou-se, então, afirmar a natureza integral e totalizante da constitucionalização da bioética. Assim, firma-se a compreensão de que o biodireito eleva os princípios da bioética ao plano constitucional, numa concepção política-integrativa e especifica do desenvolvimento, a de um processo contínuo que envolve a liberdade com comprometimento social. O biodireito se constitui como sistema normativo crítico, cuja finalidade consiste em um diálogo com a ciência. Concebe-se que além de descrever também prescreve. Orientando as práticas, serve de compreensão do processo de constitucionalização das políticas. As técnicas científicas apresentam questões que exigem a ponderação dos princípios, com base na imbricação dos conhecimentos da ciência e do sistema jurídico, na busca não mais da verdade exclusiva, mas estabelecendo critérios para soluções adequadas. É possível ampliar a função do biodireito para além dos dispositivos jurídicos, tomando-se como conhecimento problematizador da finalidade do desenvolvimento, em face da tensão dialética natureza/vida e liberdade/direito. O biodireito tem uma função incontestável na defesa do principal valor da humanidade, que é a sua dignidade. Exemplo é o fato da gripe suína, que envolve considerações éticas, políticas e jurídicas, com repercussões na esfera individual do cidadão ao afrontar a sua dignidade, na lisura das pesquisas cientificas e, por fim, na probidade de certas políticas públicas. O causador dessa gripe é o vírus Influenza A – H1N1 – cujo enfrentamento pelas autoridades públicas merece uma investigação, em razão do conflito estabelecido entre a Organização Mundial da Saúde (que classifica o evento como um escândalo médico) e as indústrias farmacêuticas. A contestação é quanto aos recursos empreendidos pelos Estados, que transferiram recursos públicos para as pesquisas e estabeleceram políticas públicas para o controle e combate de um mal que a posterior se soube ser menos letal que a gripe comum. Inobstante, recursos foram transferidos para particulares, quantidades enormes de vacinas foram compradas sem que depois fossem utilizadas, este é um caso, mas ainda existem outros a exemplo da gripe aviária. Esses eventos subvertem e corrompem a atuação do Estado no desenvolvimento de políticas públicas na área da saúde, atentando contra a ideia de sustentabilidade e contra o valor da dignidade humana. O biodireito envolve-se nesse debate articulando princípios éticos e jurídicos, na defesa do indivíduo humano e da ordem democrática, compreendidos como unidade que expressa também sua preocupação com as gerações futuras. Esses problemas permitem, em razão do ethos constitucional contemporâneo, que se busque no (bio)direito uma defesa da ética através da proteção jurídica, que se efetiva com fundamento nos princípios estabelecidos a partir dos direitos humanos e que determinam a priori a defesa e a valorização da vida humana.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-140/biodireito-e-desenvolvimento-sustentavel/
Direito biolaboral e estado ambientalista da felicidade: a questão das provas técnicas e aspectos médico-legais
Os problemas decorrentes das doenças e dos riscos ocupacionais no Direito do Trabalho necessitam de uma nova abordagem metodológica e filosófica. A prova técnica ou médico-legal, que é eminentemente científica, não pode mais se sujeitar à teoria da livre convicção da autoridade administrativa ou judicial. Nessa linha, a Jurisciência Biolaboral é persuasiva e preconiza a formação de um Estado Ambientalista preventivo e racional, que seja capaz de implantar e efetivar políticas, públicas e privadas, que evitem as patologias, os conflitos e a violência, para valorizar a correlação entre a vida, a felicidade e o trabalho.
Biodireito
INTRODUÇÃO: O notável avanço tecnológico e os humanismos das ciências, físicas e sociais, ainda não conseguiram eliminar as graves problemáticas relativas à incidência de doenças e dos riscos ocupacionais. Fato é que o Direito do Trabalho ainda vem sendo construído por uma sociedade marcada por antagonismos, conflitos e por enfermidades crônicas de seus atores. Nesta pesquisa, após um rápido estudo sobre casos tópicos de patologias psicossomáticas e lesões por esforço repetitivo, de possíveis causas laborais, o artigo valoriza a verdade da transdisciplinaridade científica e propõe a utilização dos tecnicismos médico-legais para criar um Direito Biolaboral que abrigue um Estado ambientalista, capaz de exercer um papel ético e justo na condução de políticas públicas sobre saúde, segurança e felicidade. Partindo de elementos descritivos, indutivos e dedutivos, a bibliografia consultada demonstra que o uso dos Biojurismos e de algumas soluções criativas podem concretizar uma utopia de relações trabalhistas e existenciais mais sustentáveis, para a melhoria da qualidade de vida de todos. 1. Definição atual de segurança e saúde ambiental no trabalho: Nos modelos de avaliação de segurança e de saúde laboral, as legislações especializadas e os sistemas tradicionais do Direito de Trabalho sempre preferiram enfatizar as questões normativas de valoração da realidade. Assim, tanto os elementos naturais, que compõem a biodiversidade do planeta, como os fatores microambientais humanos são interpretados segundo proposições e critérios das autoridades estatais, que nem sempre tomam as condições e as problemáticas de vida das pessoas e dos trabalhadores em um sentido plenamente científico (BRANCO, 2014). Neste contexto, mesmo após a industrialização e a globalização da economia capitalista, as preocupações do Direito Laboral não mudaram, referindo-se quase que exclusivamente a seus paradigmas físico-ambientais. Os aspectos que dizem respeito a um panorama biopsicológico permanecem relegados a um plano secundário. De se ver, então, que é por isso que as políticas de prevenção contra os impactos das doenças e dos prejuízos com os acidentes laborais e, ainda, a noção de responsabilidade bioexistencial não têm gozado de esquemas de proteção jurídica mais efetivos. Na verdade, as gestões ambientais e a aplicação de recursos que buscam higidez nas atividades laborais, falam de direitos, mas ainda não levam em conta a totalidade da correlação do trabalho com a felicidade pessoal. A ideia de dignidade laboral, em seu sentido material e imaterial, vem sendo tradicionalmente abordada segundo o conceito de saúde, sob a doutrina formalista dos direitos humanos que hoje em dia se tornou mais retórica do que tecnológica. Ao deixarem de ser, sistemática e combinadamente, interpretadas como elemento do desenvolvimento sustentável, as características psicofisiobiológicas dos indivíduos nem sempre integram uma compreensão político-jurídica sobre segurança e saúde do trabalho. Com efeito, a noção física do que é ecologicamente saudável ou correto, hoje, ainda é a prevalente. A Organização Mundial de saúde (OMS), por sua vez, supera esta temática ao inspirar a formação de uma Jurisciência Biolaboral, que, sem se afastar das questões físico-naturais, adiciona as ações relativas ao meio ambiente de trabalho e a saúde profissional do indivíduo a novas metodologias e a estudos transdisciplinares de outras ciências especializadas. 2. Da violência laboral, do assédio moral e de figuras afins: Em que pese as lutas legalistas ou jusfilosóficas, os ilícitos protuberam na prática laboral, diretiva e institucional; atingem empresas e governos; e, como em todos os setores da vida, os anti-humanismos geram um caos crítico, que dificulta a convivência harmônica das pessoas, quando não desencadeiam desdobramentos nocivos para as relações individuais e sociais. De fato, a cultura mercadológica materialista de aquisição de bens e poder, o consumismo exagerado, a ausência de altruísmos e a falta de bom senso e fraternidade, na vida corriqueira ou nas relações coletivas, ensejam o cometimento de amargos desvios e abusos laborais que, com maior frequência, arrebentam os mais fracos, em todos os sentidos, do físico ao psíquico. Os perversos efeitos das contrariedades, legais e humanas, atacam, então, não só a higidez jurídica e os cofres das organizações, como também, olimpicamente, danificam a saúde das vítimas, aleijando, silenciosa ou ostensivamente, os sistemas, os atores e o progresso do Direito Laboral. Sob pena de perda de empregos, postos, prestígio e de outros direitos subjetivos, nesse cenário, talvez um dos piores anti-humanismos encontrados nas janelas relacionais, sobretudo em ambientes de trabalho, é o assédio físico ou moral, que trazem funestas consequências orgânicas e malefícios severos à musculatura do psiquê humano. O psicoterror devasta o corpo, a alma, a produtividade e a própria essência das pessoas produtivas. Diversos motivos levam às práticas da violência laboral. Os bullyngs, os mobbings e figuras afins, mais que provocarem os indesejáveis fenômenos do absenteísmo e do turn-over (rotatividade laboral), além de acarretarem prejuízos humanos inenarráveis, enfraquecem a eficácia das Ciências Jurídicas.  Em uma tela de conflituosidades laborais de todas as espécies, segue-se o aumento extraordinário das doenças e de licenças ocupacionais, que repercutem em acidentes e em enfermidades que atravancam o Direito Econômico do Trabalho, culminando em tragédias individuais e onerando o contribuinte, na medida em que requer o intervencionismo extremo do Estado. Embora caiba ao Estado dispor sobre a regulamentação, fiscalização e controle dos serviços de saúde e de segurança laborais, ainda são escassas as políticas de gestão que abarcam o cuidado efetivo com o clima organizacional e, sobretudo, com o estado anímico – individual e coletivo – dos trabalhadores. Esta regra encontra exceção apenas nos países mais desenvolvidos onde já se percebeu, para as atuais e as futuras gerações, a importância do caráter ético-solidário da educação biotrabalhista e as vantagens nos investimentos em um bem-estar global, que envolve interesses difusos e metajurídicos. A ausência de interdisciplinaridade científica ainda descarrila para um judicialismo perverso das práticas e vivências sociais (BRANCO, 2014, passim). Como os processos de pacificação e de ordem social passam, primeiro e necessariamente, por postulados econômicos, notadamente nas nações mais pobres, os direitos sobre segurança e saúde ambiental laboral ressentem-se, portanto, de uma falta de explicitude de políticas públicas ou legislativas que indiquem as soluções para as múltiplos e complexos fatores que evitem a litigiosidade laboral e os seus danosos reflexos gerais. A infelicidade, a depressão e outras reações orgânicas, motivadas pela inaptidão e pela deterioração das condições relacionais de um ambiente de trabalho, são males que frustram os projetos de realização social e existencial.  A despeito de alguns avanços no sentido de que o local e os direitos laborais se tornassem mais saudáveis, como a criação de ouvidorias e de programas de fiscalização ambiental, ainda não existem nos países emergentes os chamados canais de dialogação permanentes entre empregados e patrões; e destes com consumidores e usuários de serviços, de sorte que o peso da pressão, as ameaças, os assédios, a violência e figuras afins continuam a gerar patologias psicossomáticas e a envenenar o Direito Laboral contemporâneo. Com a insistência destes retrocessos históricos e laborais, ficam em xeque, então, o emprego, as funções, a produtividade do trabalhador, os ganhos das corporações, a vida, a saúde, os planos e o destino de pessoas. Pela via de correções científicas, as esperadas dissensões originadas das disputas e dos enfoques laborais merecem, pois, ser redimensionadas por um Direito Bioaboral que recupere o prumo de um humanismo transdisciplinar. 3. Estudo de caso concreto na Polícia Federal brasileira: Na história da civilização, as relações de trabalho irracionais são fatores certos de causas para os acidentes laborais e para atos de violências que resultam em conflitos de graves prejuízos pessoais e sociais. Exemplo emblemático e recente dessa situação se extrai de pesquisa e da constatação de uma realidade dramática que assola a Polícia Federal brasileira, na qual mais de 30,33% dos seus integrantes apresentaram doenças ou distúrbios psicossomáticos relacionados a motivos ou insatisfações laborais, nada obstante as Portarias nºs 02/2010 e 1.261, ambas de 2010, do governo brasileiro, tocarem os direitos humanos e a saúde mental do policial. Os referidos documentos normativos, em sua aparência formal, parecem ser persuasivos para indicar um Estado Ambientalista preventivo e centrado em políticas voltadas à valorização simbólica do profissional que trabalha com segurança pública. Na vida real, porém, a ausência de providências governamentais efetivas e concretas, para a implementação de medidas visando a garantir o bem estar e a saúde dos policiais federais brasileiros, já foi responsável por um número assustador de suicídios até 2014. Em entrevista feita pela Federação Nacional dos Policiais Federais (FENAPEF) com 2.360 policiais, 86,53% deles afirmam que não estão bem no trabalho; 76,23% se dizem desmotivados; apenas 24,36% acreditam que as indicações obedecem quesitos de mérito ou competência; e 69,03% entendem que o ambiente de trabalho prejudica às respectivas saúdes, enquanto que 99,28% reclamam que os dirigentes da instituição "não atuam na defesa e na valorização de todos os cargos de forma isonômica" (apud INTERNET). Com efeito, a proporcionalidade das morbidades de depressão, angústia, estresse e outras enfermidades existentes no seio laboral daquele órgão não só deterioram a qualidade de vida do trabalhador, mas também revelam que há um desajuste claro entre a noção de justiça e de equilíbrio entre a gestão, a vida pessoal e profissional daquelas pessoas. Os alarmantes índices de doenças psíquicas anotam uma incrível taxa de suicídios.de 55 profissionais daquela corporação nestes últimos dez anos, deixando crasso que se trata de um ambiente de trabalho doente; portanto, contrário às regras mínimas de salubridade segundo a Organização Internacional do Trabalho. 4. Estudo de situações sobre sintomas osteomusculares laborais: As Lesões por Esforço Repetitivo (LER) e os Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT) tornaram-se um grave problema de saúde pública internacional na atualidade, tendo adquirido caráter epidêmico, com aumento crescente do número de casos, à medida que novas relações de trabalho se firmam e que as novas tecnologias consolidam novos processos de trabalho e de produção sociais (McDiarmid et al., 2000). Como expressões do desequilíbrio entre as exigências do trabalho e as possibilidades humanas, no que tange, à capacidade física e mental, assim, as LER/DORT estão relacionadas como uma das principais causas de morbidade laborais nos mais diversos países, consistindo em uma patologia de enorme impacto para os setores produtivos e de efeitos muito perversos para o indivíduo, uma vez que pode levar o profissional à incapacitação temporária ou permanente, atingindo até mesmo trabalhadores em início de carreira (Salim, 2003; Santana et al., 1998; Santos Filho, 2002). Os processos deste quadro, que comprometem as regiões anatômicas de trabalhadores, é o objeto de umas principais queixas de trabalhadores mundiais e no continente sul-americano. Uma pequena amostra dos fatores de risco e das causas das enfermidades sob comento para as atividades ocupacionais ou extraocupacionais identifica que as LER/DORT são ligadas ainda a componentes biológico-individuais, como idade, gênero, fatores genéticos, gravidez, estado mental, estresse e outras doenças sistêmicas. As LER/DORT trazem, portanto, consequências imediatas não só para as pessoas que desenvolvem a patologia, mas também para a empresa, tais como o absenteísmo, acidentes de trabalho, perdas de produtividade, afastamento das atividades, altas despesas médicas com tratamento, processo de indenização com danos e prejuízos para a imagem da empresa, interferindo enfim, de forma significativa, nos custos de produção e na sua qualidade. Os resultados comprovam a tendência internacional de aumento destas lesões que afetam principalmente os membros superiores e as articulações do corpo humano, podendo ocasionar um desgaste funcional severo que interfere na qualidade de vida do trabalhador (Mendes, 2004). No Brasil, entende-se LER/DORT como uma síndrome relacionada ao trabalho, caracterizada pela ocorrência de vários sintomas concomitantes ou não – tais como dor, parestesia, sensação de peso, fadiga; tendo aparecimento insidioso; acometendo os membros superiores e, com menor frequência, os inferiores (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2006). A sobrecarga pode ocorrer seja pela utilização excessiva de determinados grupos musculares em movimentos repetitivos, com ou sem exigência de esforço localizado, seja pela permanência de segmentos do corpo em determinadas posições por tempo prolongado, em razão da necessidade de concentração e atenção do trabalhador para realizar as suas atividades e da tensão imposta pela organização do trabalho (INSS, 2003).    Há registro de 45% dos afastamentos laborais na América latina tenham sido por LER/DORT, o que onera, de maneira expressiva, os cofres públicos e os gastos com o pagamento de benefícios previdenciários aos segurados, havendo ainda uma subnotificação destes tipos acidentários. Certo é que ainda existe uma grande a desinformação em relação aos riscos e aos aspectos epidemiológicos e jurídicos que envolvem esta enfermidade, o que, em curto e médio prazo, agravam a situação clínica da vítima; fato este que dificulta ainda mais a aplicação de medidas prevencionistas por parte dos órgãos trabalhistas oficiais. As estatísticas mundiais e nacionais, por força de diagnósticos e tratamentos destas morbidades, reclamam, pois e desde muito, a necessidade de um novo planejamento de programas de saúde no trabalho, a fim de que venha a ser reduzidos os elevados percentuais desta tão importante patologia.   Em uma abordagem multidisciplinar e intersetorial, a nomenclatura Lesões por Esforços Repetitivos (LER) começou a ser utilizada no final da década de 50, para designar um conjunto de patologias, síndromes e/ou sintomas músculo-esqueléticos que acometem particularmente os membros superiores, relacionando-se o seu surgimento ao processo de trabalho, primeiro, com a descrição da "occupational cervicobrachial disorder" em operadores de caixa registradora, perfuradores de cartão e datilógrafos japoneses (Browne; NOLAN; FAITHFULL, 1984; McDermott, 1986; Sommerich; MCGLOTHLIN; MARRAS, 1993; Assunção; Rocha, 1993; Assunção, 1995).  Na Austrália, tratou-se da "occupational overuse injury" em digitadores e trabalhadores de linha de montagem e, nos Estados Unidos, chamados de "cumulative trauma disorders" em trabalhadores expostos a trabalhos cumulativos com terminais de vídeo (McDermott, 1986; Kiesler; Finholt, 1988; Assunção; Rocha, 1993; Assunção, 1995; Ong, 1994).   Já na América Latina, a dimensão e os dados do problema são dramáticos, com alarmantes estatísticas (INSS, 1995; Pinheiro; MARTINS JÚNIOR; MARINHO, 1995; Santos Filho, 1995; Vorcaro, 1995). O trabalho repetitivo, sujeito a longas jornadas sem pausas ou com pausas insuficientes tanto em tempo quanto em quantidade (YASS; SPROUT; TAFE, 1996); a alta velocidade, pressão constante, intensificação e uniformização da forma de produção; ao uso de ferramentas vibratórias, tensão mecânica, extremos de temperatura; bem como ao uso de equipamentos e mobiliários que não respeitam as diferenças antropométricas dos trabalhadores e que os levam a posturas inadequadas (RIBEIRO, 1999), conduziu Ferguson a fazer, em 1971, um dos primeiros levantamentos sobre o tema em telegrafistas, estudando 93% dos trabalhadores do serviço público de telecomunicações da Austrália, onde encontrou taxas de prevalência de 14% para cãibra e de 5% para dores musculares nos membros superiores, com  uma associação altamente significativa (p<0,001) entre a presença de cãibras/dores musculares e de algum tipo de manifestação neurótica grave; sem, entretanto, referir a influência do trabalho como possível fator de sobrecarga psíquica.  Entre as embaladoras, as partes do corpo mais afetadas foram as mãos (53%), o pescoço (37%) e os ombros (9%), segundo entrevistas, exames clínicos e dados dos órgãos trabalhistas oficiais.    Outros achados dessa ordem foram obtidos em pesquisas semelhantes indicando a ocorrência significativa de tendinites, inclusive para a síndrome do túnel do carpo, bem como aumento de alterações eletromiográficas com prevalências de doenças nos membros superiores em geral, mãos, ombro, pescoço, e 15% de epicondilite (Vanderpool et al., 1993; Chiang et al., 1993; Franzblau et al., 1993; Westgaard et al. 1993; Bernard et al. 1994; Ohlsson et al., 1995; English et al. 1995). Na realidade, existe uma conexão muito forte entre fatores ergonômicos e as doenças músculo-esqueléticas dos membros superiores. Levando-se em conta a qualidade dos estudos, em termos de população, as pesquisas revelam que são lesões pluritissulares do aparelho locomotor, atribuídas aos esforços repetitivos do trabalho (LER), característico de um novo ciclo de desenvolvimento e crise do modo de produção capitalista (RIBEIRO, 2010). Esta patologia, praticamente, atinge hoje em dia todos os países do globo, sob diferentes denominações, como cumulative trauma disorders (CTD), repetitive strain injury (RSI), occupational overuse syndrome (OOS), occupational cervicobrachial disorders (OCD) e lésions attribuibles au travail répétitif (LATR), respectivamente nos Estados Unidos, Austrália, Alemanha e países escandinavos e Canadá (LUOPAJARVI, T. et al., 1979), mas sempre ligados a serviços laborais e movimentos fisiológicos exagerados. Os países que priorizam uma política de proteção aos trabalhadores com base no uso dos equipamentos de proteção individual (EPI), como os da América Latina, continuam desconsiderando, porém, a importância dos aspectos ergonômicos de trabalho, de modo que o esforço físico, a posição, a jornada e a intensidade de trabalho só tendem a se agravar os fatores psicossociais relacionados às atividades profissionais sem ginástica laboral.   A ausência de controle e de planejamento de uma política estatal que racionalize a prática do trabalho excessivo, propiciador da fadiga, do incômodo ou do estresse no ambiente de trabalho, ratificam a baixa expectativa de encontrar-se uma solução definitiva sobre este problema crônico que se converteu em um problema de saúde pública mundial e que vem afetando, inclusive, crianças e adolescentes, já sabidamente inseridas em ambientes virtuais e familiarizados com o uso cotidiano de aparelhos telemáticos que exigem movimentos repetitivos digitalizados. Assim, já se cria uma legião de futuros pacientes e consumidores de analgésicos, anti-inflamatórios ou relaxantes musculares, enquanto que a prática da ginástica laboral, ou de quaisquer exercícios afins, não é cobrada nem fiscalizada pelos atores governamentais e tampouco no meio laboral. Destarte, é certo que a LER/DORT constitui um fator de alto risco de ocorrência de lesão pessoal e ocupacional, já que o corpo humano fica exposto a condições nocivas à sua vida e à sua saúde, sem que, em contrapartida, haja uma intervenção estatal em um item vital à qualidade de vida, da saúde e do trabalho das pessoas nesta era cibernética e de sedentarismo físico. 5. A saúde médico-legal e a felicidade no Direito do Trabalho Não há dúvidas de que as tensões, os esforços exagerados as exigências e as conflituosidades laborais internas, externas e transversais, vulneram exponencialmente a saúde dos trabalhadores e de toda a sociedade. A ausência de políticas humanistas concretas em matéria de segurança e de saúde influenciam, negativamente, os projetos das pessoas, as aspirações profissionais e a otimização da cadeia produtiva de uma nação. As malfadadas experiências trabalhistas, em sua maioria, resultam da elevação dos padrões sociais e de políticas predatórias de acesso e manutenção do emprego, visto que o capitalismo e seus sistemas de inspeção, segurança, prevenção e proteção de saúde proclamados pelas doutrinas dos direitos humanos, até certo ponto, falharam em sua missão teleológica. Com efeito, é preciso remodelar as fórmulas do intervencionismo estatal para salvaguardar o regime das dignidades, públicas e privadas, das pessoas, com o fito de garantir relações de trabalho mais leves, equilibradas e estáveis, sem perder de vista as responsabilidades e deveres profissionais. Neste sentido, o Direito Laboral necessita avançar e reposicionar-se diante de sua crise prática e dogmática, devendo o trabalho e a base científíca serem retomados para a evolução e o aprimoramento individual e social. As ferramentas das ações antrópicas de afirmação de um paradigma de saúde existencial das pessoas e do trabalhador não podem, portanto, circunscreverem-se ao esteticismo repetitivo dos direitos fundamentais, já globalmente consagrados, mas que não contêm, em sua essência, normas científicas correspondentes, capazes de transformar o trabalho e a felicidade em um direito de cidadania, a serem tutelados, primordialmente, pelo Estado. O sistema capitalista em vigor, contudo, não se importa nem racionaliza a defesa do postulado técnico-legal da felicidade, simplesmente por ignorá-lo como utopia. As ciências especializadas, entretanto, podem fornecer os elementos necessários à integração sistêmica da felicidade no bojo do juspositivismo. A proposta do Direito Biolaboral seria, assim, criar condições propicias e ambiente saudáveis nos quais o homem e a sociedade, através do trabalho, sejam produtivos e concretizem o bem-estar de todos. A Medicina e outros ramos científicos hão, assim, de servir à vida, ao Direito e às pessoas. 6. A problemática da desconsideração humanista no Direito Em breves linhas, já foi exposto que a ideia garantista do Direito Laboral deve ter um cunho eminentemente cientificista, sem o qual o mesmo jamais se converterá em instrumento de justiça retributiva ou social. Neste diapasão, os estudos de viés ecológicos já deram diversas e valiosas contribuições para a construção de paradigmas sustentáveis dos meios ambientes de trabalho, do ponto de vista físico. As políticas de saúde mental e psicológica laboral, contudo, são focos antropológicos e biopsicológicos, inerentes à vida e à personalidade das pessoas ou de grupos profissionais, que ainda não receberam uma atenção mais profunda dos cientistas e dos pesquisadores, sobretudo na área do Direito do Trabalho. A história revela que os juristas do capitalismo têm preferido uma abordagem metodológica de verificação de saúde e de segurança dos locais de trabalho e dos processos de produção, sem cientificizar a dimensão geral das políticas laborais que envolvem particularidades únicas e totais das pessoas. Neste ponto, conquanto em todos os países a dignidade humana seja abraçada como um consectário dos direitos trabalhistas, apenas algumas nações europeias é que já se inclinam para reconhecer que o vetor da felicidade é a chave seletiva para as organizações e as soluções laborais. A visão técnico-científica da felicidade e sua transplantação para todos os quadrantes do Direito, no entanto, ainda engatinham, posto que até mesmo as tutelas de prevenção de acidentes e de mitigação de doenças ocupacionais não levam em conta a complexa gama das implicações psicofísicas e das relações bioexistenciais que cravam a vida dos indivíduos. Enquanto os modelos atuais de proteção ao trabalhador se privatizam e se flexibilizam, sob diversas nomenclaturas e formas, que buscam atender, prioritariamente, os padrões de excelência voltados para a produtividade, ainda são tímidos os conhecimentos técnicos e científicos que ponham em evidência e tutelem a saudável energia humana gerada pelo trabalho. Assim, ao lado do desempenho profissional, já se podia criar auditagens ambientais para aferir a satisfação existencial dos trabalhadores. O Direito Biolaboral une, pois, as já conhecidas proposições neohumanistas e contempla um biojurismo laboral, centrado no ideário de felicidade ambiental. 7. A crise técnico-operacional das provas e da perícia no Direito Laboral Em que pese o grande avanço das ciências, os direitos e obrigações nas temáticas laborais ainda são ordenados e decididos segundo às lógicas e às éticas das necessidades capitalistas das organizações dominantes. A par destas circunstâncias, a definição e os meios de resolução dos conflitos de origem laboral seguem critérios e esquemas legais muitas vezes subjetivistas, que não se escoram em dados operacionais técnico-científicos. Deste modo, questões ligadas à promoção de uma saúde plena, individual ou coletiva, ainda se sujeitam a decisões que desrespeitam fundamentos e dados científicos objetivos, seja na elaboração de políticas, públicas ou privadas de proteção, ou na concepção de normativos oficiais que venham a servir de escopo para as ações encetadas pelo Estado ou empresas. As tutelas das posturas laborais físicas ou biopsicológicas devem, por conseguinte, passar a compor não só a execução dos direitos sociais e trabalhistas, mas também integrar a agenda do Direito Administrativo e Judiciário, na medida em que, em muitos casos práticos, ainda se assiste a autoridades estatais e judiciais afastarem-se de diagnósticos, análises e resultados científicos para decidirem com esteio em pessoalismos ou generalidades, frustrando, pois, o uso da justiça real nestas controvérsias, Desta feita, nas hipóteses de problemas antropológicos, os empirismos jurídicos devem ceder lugar ao cientificismo, tanto quanto possível, notadamente no Direito Laboral, em que o desfavorecimento e a desigualdade, pelas mais variadas razões, constituem terreno fértil para a exploração de iniquidades e para a aplicação de injustiças, com repercussões patrimoniais e imateriais que interagem na cadeia produtiva e na vida das pessoas. É interessante que, neste panorama, os ordenamentos jurídicos da maioria dos países latino-americanos conferem primazia e uma supremacia quase que intangível à teoria da livre convicção das provas ou teoria de livre persuasão racional das provas, outorgando ao juiz a adoção de critérios próprios para destravar lides e processos trabalhistas, segundo seu entendimento fático-jurídico. Assim, de forma incompreensível, os assuntos, de denodo científico, ficam adstritos ao que se chama de razoabilidade jurídica e as decisões dos operadores do Direito, então, são apenas inflexões jurídicas. 8. As alternativas e soluções científicas para a perícia biolaboral O excesso de conotação jurídica na aplicação das soluções dos conflitos trabalhistas, na prática, degenera o sistema e corrompe o Direito Laboral, impondo uma situação de colapso mais grave à já escalada universal de violação de direitos funcionais de parte à parte dos trabalhadores. Isto quer dizer que as intrincadas matérias do Direito Laboral, que vão além da aferição dos riscos e das doenças profissionais, ao se basearem no livre poder de apreciação das provas – judicial ou administrativo – propiciam julgamentos parciais, incorretos e inadequações aos sistemas legais. Quando, verbi gratia, examinam-se direitos, obrigações ou jornadas de trabalho mediante a interpretação ou uso de métodos equivocados de leitura científica, de laudos técnicos ou de aparelhos tecnológicos, põe-se em dúvida a lisura, a moralidade, a eficácia e a justiça do próprio Direito Laboral. Outro exemplo sugestivo que vai de encontro contra os nobres propósitos do Direito do Trabalho na atualidade é o desprezo ou a desconsideração da existência de tratamentos anti-humanistas em ambientes carregadamente competitivos, exaustivos e antiéticos, em virtude da simples ausência de perícias ou de laudos técnicos capazes de detectar estes dados. É bom que se lembre que a prova na Medicina-legal e a confecção de perícias laborais são informadas pelo princípio da verdade e da primazia da realidade material, posto que lastreadas em conhecimentos técnico-científicos especializados, e, nesta toada, deveriam servir a uma justiça isenta e imparcial. Contanto, mesmo que não fossem absolutas, nada justifica que decisões ou juízos estatais se afastem de soluções científicas para criar um Direito Laboral subordinado a conveniências ou a consciências pessoais. Destarte, não se concebe que um caso trabalhista que, por instância, dependa de um conhecimento científico, seja decidido por livre opção de seu julgador, ainda que motivada, instaurando uma dúbia realidade jurídico-laboral. A questão da livre persuasão das provas pelo juiz, portanto, corporifica contrassensos, injustiças e é fonte geradora de desequilíbrio social, pelo que os aspectos técnico-científicos ou médico-legais não podem mais ser objeto de malabarismos jurídicos ou de um pernicioso bacharelismo cultural. 9. O perito e as políticas ambientalistas de saúde e da felicidade laboral DARWIN, SPENCER e ERNST HAECKEL são precursores de políticas positivistas de proteção aos ecossistemas, à biota e a vida dos humanos, tendo muitas nações institucionalizado os denominados direitos ecológicos, como o Brasil através de sua Constituição Federal e de vasta legislação esparsa. Sem embargo, os rótulos das políticas ambientalistas de saúde e de felicidade laboral ainda não foram erigidos à categoria dos direitos jusfundamentais. As Declarações de Estocolmo (1976), a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), conhecida também como ECO-92, Rio-92, Cúpula ou Cimeira da Terra, realizada no Rio de Janeiro, e outros importantes instrumentos normativos internacionais consagraram a proteção universal do meio ambiente físico.  A Convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), conforma a temática do meio de ambiente de trabalho, da saúde e da segurança dos que nele se envolvem; porém, às presentes e futuras gerações ainda não se asseguraram as garantias  jurídicas de humanismos universais que ordenem um dever de felicidade e tampouco de priorização das conclusões científicas em matéria de redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de juízos técnicos de saúde, higiene e segurança. O decisionismo de autoridades estatais, por conseguinte, precisa ceder ao juízo opinativo dos peritos, que, aliás, seria vinculante em determinados predicamentos que exijam conhecimento científico especializado. A justiça social e laboral hodierna comporta conceitos ambientais éticos e psicofisiológicos que não pode prescindir dos imperativos científicos dos Biojurismos. Assim, visões incompletas sobre o trabalho, os fatos e a vida do trabalhador não podem ser toleradas sem respeito a um processo de produção de provas técnico-científicas. As questões naturais ou sociológicas, como locais de trabalho indignos, sujos, doentios e/ou inseguros, assim como a saúde ambientalista laboral, exigem que o Direito não se desvie de sua veia científica antrópica, nem que o Estado se afaste de sua tarefa tuitiva e gestáltica de cuidar das condições e políticas existenciais das verdades biopsicológicas das relações inter-humanas, sendo a felicidade a maior joia das civilizações. 10. Das Ciências e da Medicina-Legal no Estado de Direito Biolaboral Há ainda hoje uma vergonhosa estatística de infortúnios e de acidentes de trabalho, com o Brasil figurando entre os primeiros deste ranking. Os inalienáveis direitos humanos à vida, à saúde e ao meio ambiente equilibrado já estão bem codificados. Entrementes, a integridade psicossomática dos trabalhadores, embora seja bem difuso e de interesse da coletividade universal, ainda não consta no epicentro axiológico do Direito Laboral, que ora se guia por um sistema mais repressivo que preventivo. Neste ponto, convém registrar a idêntica importância de preservar a integridade e a incolumidade biopsicológica dos trabalhadores. O direito à indenidade física e mental, a um meio ambiente equilibrado e sustentável, tendo na vida humana seu bem jurídico maior, não são apenas os únicos compromissos do Direito Biolaboral, que, assim, há de lançar meios técnicos ou concretizar políticas, administrativas e judiciais, que tenham referenciais científicos para a proteção do trabalho como direito e dever humanitários vitais. Em substituição aos velhos e formais paradigmas humanistas, a Jurisciência Biolaboral é racional, persuasiva e preconiza a formação de um Estado Ambientalista que seja capaz de implantar e efetivar políticas, públicas e privadas, que evitem as patologias, os conflitos, os acidentes e a violência laboral, com a simbiose entre a vida, a felicidade, a produção e o trabalho. Com a positivação das relações biotrabalhistas e um Estado que implante e massifique os princípios das políticas da felicidade biolaboral, através de novos sistemas de tutela, incluído medidas biodepagógicas de prevenção, com o ensino e educação de normas elementares de Direito de Trabalho e Ambiental, a criação de organismos multidisciplinares para orientação, prevenção e correção dos problemas relativos ao trabalho, seriam alternativas científicas para a evolução do processos individuais e sociais. Noutro passo, via núcleos de fiscalização, auditorias e perícias biolaborais, os entes governamentais e não-governamentais, o Poder Judiciário e os Institutos Técnicos e de Medicina Legal poderiam contribuir para a execução dos planos e programas voltados à probidade trabalhista e à felicidade ambiental, atuando para a mediação e a solução justa dos conflitos. Conclusões As classes dominantes da sociedade e dos governos, historicamente, fecundam leis, modelos e inúmeros institutos jurídicos que não lograram êxito em resolver a frondosa conflituosidade existente no seio do Direito do Trabalho. Com a interjuridicidade do Direito Ambiental, houve um certo avanço no combate às práticas anti-humanistas. Entretanto, os problemas tangentes às doenças e aos riscos ocupacionais recrudesceram. As Ciências Jurídicas, por outro lado, ainda enfrentam uma série de entraves metodológicos que nem sempre levam em conta a autoridade da prova técnica ou médico-legal. A teoria da livre convicção judicial não pode sobrepor-se às verdades científicas. Neste artigo, verificou-se que, apesar da mudança dos paradigmas atuais de segurança e de saúde ambiental no trabalho, o estudo de casos concretos sobre a incidência de algumas patologias psicossomáticas e por lesões por esforço repetitivo, de possível motivação laboral, deixa assente que é preciso repensar os conceitos de saúde médico-legal no Direito do Trabalho. Com efeito, a partir de conhecimento de dados alarmantes, sobretudo, da ocorrência de violência laboral, do assédio moral e de figuras afins, que degradam as condições do trabalho e degeneram o trabalhador, a pesquisa buscou valorizar os achados científicos e colacionar os tecnicismos médico-legais para apoiar a criação dos Biojurismos e de um Direito Biolaboral.  A problemática da desconsideração humanista no Direito capitalista e a crise operacional das provas no Direito Laboral exige, pois, soluções racionais para que cedam a um Biolaboralismo que, desta feita, além de adotar os científicismos, imponha também ao Estado o protagonismo de um ideário ambientalista de felicidade. A textura das políticas oficiais admitiria, então, não só a expansão das técnicas de mediação, conciliação e arbitragem laborais, como também abraçaria um novo sistema, fundado em serviços de bioeducação e de saúde associados a modelos de uma felicidade sustentável. O objetivo da Medicina-Legal e das Ciências especializadas, dentro do arranjo de um Estado de Direito Biolaboral, seria, portanto, concretizar o bem-estar individual e coletivo a partir de uma concepção antrópica e real de que o trabalho é o fio condutor para as realizações bioexistenciais das pessoas e para a perspectiva de progresso da vida das presentes e futuras gerações.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-140/direito-biolaboral-e-estado-ambientalista-da-felicidade-a-questao-das-provas-tecnicas-e-aspectos-medico-legais/
Breve abordagem do reconhecimento dos direitos humanos de quarta dimensão pelo supremo tribunal federal: a declaração universal de bioética e direitos humanos em exame
O presente está assentado em examinar a proeminência da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos como documento legitimador da quarta dimensão dos direitos humanos, tal como o seu reflexo na construção pretoriana do Supremo Tribunal Federal. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos. Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade. Os direitos de segunda dimensão são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou mesmo de um Ente Estatal especificamente. Nesta perspectiva evolucionista, há que se reconhecer, sobretudo a partir dos paradigmáticos entendimentos firmados pelo Supremo Tribunal Federal, que, no contexto nacional, a bioética foi elevada ao status de direito humano de quarta dimensão, inaugurando um novo debate, voltado para discussão de temas que reclamam a tutela jurídica e uma interpretação alargada da tradicional conformação das dimensões dos direitos humanos.
Biodireito
1 Comentários iniciais Em um primeiro momento, imperioso faz-se versar, de maneira maciça, acerca da evolução dos direitos humanos, os quais deram azo ao manancial de direitos e garantias fundamentais. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. “A evolução histórica dos direitos inerentes à pessoa humana também é lenta e gradual. Não são reconhecidos ou construídos todos de uma vez, mas sim conforme a própria experiência da vida humana em sociedade” (SIQUEIRA, PICCIRILLO, 2009, s.p.). Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos. Nesta perspectiva, ao se estruturar uma análise histórica sobre a construção dos direitos humanos, é possível fazer menção ao terceiro milênio antes de Cristo, no Egito e Mesopotâmia, nos quais eram difundidos instrumentos que objetivavam a proteção individual em relação ao Estado. “O Código de Hammurabi (1690 a.C.) talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relação aos governantes”, como bem afiança Alexandre de Moraes (2011, p. 06). Ainda nesta toada, nas polis gregas, notadamente na cidade-Estado de Atenas, é verificável, também, a edificação e o reconhecimento de direitos basilares ao cidadão, dentre os quais sobressai a liberdade e igualdade dos homens. Deste modo, é observável o surgimento, na Grécia, da concepção de um direito natural, superior ao direito positivo, “pela distinção entre lei particular sendo aquela que cada povo da a si mesmo e lei comum que consiste na possibilidade de distinguir entre o que é justo e o que é injusto pela própria natureza humana”, consoante evidenciam Siqueira e Piccirillo (2009, s.p.). Prima assinalar, doutra maneira, que os direitos reconhecidos não eram estendidos aos escravos e às mulheres, pois eram dotes destinados, exclusivamente, aos cidadãos homens, cuja acepção, na visão adotada, excluía aqueles. “É na Grécia antiga que surgem os primeiros resquícios do que passou a ser chamado Direito Natural, através da ideia de que os homens seriam possuidores de alguns direitos básicos à sua sobrevivência, estes direitos seriam invioláveis e fariam parte dos seres humanos a partir do momento que nascessem com vida” (MORAES, 2011, p. 06). O período medieval, por sua vez, foi caracterizado pela maciça descentralização política, isto é, a coexistência de múltiplos centros de poder, influenciados pelo cristianismo e pelo modelo estrutural do feudalismo, motivado pela dificuldade de práticas atividade comercial. Subsiste, neste período, o esfacelamento do poder político e econômico. A sociedade, no medievo, estava dividida em três estamentos, quais sejam: o clero, cuja função primordial estava assentada na oração e pregação; os nobres, a quem incumbiam à proteção dos territórios; e, os servos, com a obrigação de trabalhar para o sustento de todos. “Durante a Idade Média, apesar da organização feudal e da rígida separação de classes, com a consequente relação de subordinação entre o suserano e os vassalos, diversos documentos jurídicos reconheciam a existência dos direitos humanos” (MORAES, 2011, p. 06), tendo como traço característico a limitação do poder estatal. Neste período, é observável a difusão de documentos escritos reconhecendo direitos a determinados estamentos, mormente por meio de forais ou cartas de franquia, tendo seus textos limitados à região em que vigiam. Dentre estes documentos, é possível mencionar a Magna Charta Libertati (Carta Magna), outorgada, na Inglaterra, por João Sem Terra, em 15 de junho de 1215, decorrente das pressões exercidas pelos barões em razão do aumento de exações fiscais para financiar a estruturação de campanhas bélicas, como bem explicita Comparato (2003, p. 71-72). A Carta de João sem Terra acampou uma série de restrições ao poder do Estado, conferindo direitos e liberdades ao cidadão, como, por exemplo, restrições tributárias, proporcionalidade entre a pena e o delito, devido processo legal, acesso à Justiça, liberdade de locomoção e livre entrada e saída do país. Na Inglaterra, durante a Idade Moderna, outros documentos, com clara feição humanista, foram promulgados, dentre os quais é possível mencionar o Petition of Right, de 1628, que estabelecia limitações ao poder de instituir e cobrar tributos do Estado, tal como o julgamento pelos pares para a privação da liberdade e a proibição de detenções arbitrárias (FERREIRA FILHO, 2004, p. 12), reafirmando, deste modo, os princípios estruturadores do devido processo legal. Com efeito, o diploma em comento foi confeccionado pelo Parlamento Inglês e buscava que o monarca reconhecesse o sucedâneo de direitos e liberdades insculpidos na Carta de João Sem Terra, os quais não eram, até então, respeitados. Cuida evidenciar, ainda, que o texto de 1.215 só passou a ser observado com o fortalecimento e afirmação das instituições parlamentares e judiciais, cenário no qual o absolutismo desmedido passa a ceder diante das imposições democráticas que floresciam. Outro exemplo a ser citado, o Habeas Corpus Act, de 1679, lei que criou o habeas corpus, determinando que um indivíduo que estivesse preso poderia obter a liberdade através de um documento escrito que seria encaminhado ao lorde-chanceler ou ao juiz que lhe concederia a liberdade provisória, ficando o acusado, apenas, comprometido a apresentar-se em juízo quando solicitado. Prima pontuar que aludida norma foi considerada como axioma inspirador para maciça parte dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, como bem enfoca Comparato (2003, p. 89-90). Enfim, diversos foram os documentos surgidos no velho continente que trouxeram o refulgir de novos dias, estabelecendo, aos poucos, os marcos de uma transição entre o autoritarismo e o absolutismo estatal para uma época de reconhecimento dos direitos humanos fundamentais (MORAES, 2011, p. 08-09). As treze colônias inglesas, instaladas no recém-descoberto continente americano, em busca de liberdade religiosa, organizaram-se e desenvolveram-se social, econômica e politicamente. Neste cenário, foram elaborados diversos textos que objetivavam definir os direitos pertencentes aos colonos, dentre os quais é possível realçar a Declaração do Bom Povo da Virgínia, de 1776. O mencionado texto é farto em estabelecer direitos e liberdade, pois limitou o poder estatal, reafirmou o poderio do povo, como seu verdadeiro detentor, e trouxe certas particularidades como a liberdade de impressa, por exemplo. Como bem destaca Comparato (2003, p. 49), a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia afirmava que os seres humanos são livres e independentes, possuindo direitos inatos, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, a felicidade e a segurança, registrando o início do nascimento dos direitos humanos na história. “Basicamente, a Declaração se preocupa com a estrutura de um governo democrático, com um sistema de limitação de poderes”, como bem anota José Afonso da Silva (2004, p. 155). Diferente dos textos ingleses, que, até aquele momento preocupavam-se, essencialmente, em limitar o poder do soberano, proteger os indivíduos e exaltar a superioridade do Parlamento, esse documento, trouxe avanço e progresso marcante, pois estabeleceu a viés a ser alcançada naquele futuro, qual seja, a democracia.  Em 1791, foi ratificada a Constituição dos Estados Unidos da América. Inicialmente, o documento não mencionava os direitos fundamentais, todavia, para que fosse aprovado, o texto necessitava da ratificação de, pelo menos, nove das treze colônias. Estas concordaram em abnegar de sua soberania, cedendo-a para formação da Federação, desde que constasse, no texto constitucional, a divisão e a limitação do poder e os direitos humanos fundamentais (SILVA, 2004, p. 155). Assim, surgiram as primeiras dez emendas ao texto, acrescentando-se a ele os seguintes direitos fundamentais: igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política, princípio da legalidade, princípio da reserva legal e anterioridade em matéria penal, princípio da presunção da inocência, da liberdade religiosa, da livre manifestação do pensamento (MORAES, 2003, p. 28). 2 A primeira dimensão dos direitos humanos: a construção dos denominados “direitos de liberdade” No século XVIII, é verificável a instalação de um momento de crise no continente europeu, porquanto a classe burguesa que emergia, com grande poderio econômico, não participava da vida pública, pois inexistia, por parte dos governantes, a observância dos direitos fundamentais, até então construídos. Afora isso, apesar do esfacelamento do modelo feudal, permanecia o privilégio ao clero e à nobreza, ao passo que a camada mais pobre da sociedade era esmagada, porquanto, por meio da tributação, eram obrigados a sustentar os privilégios das minorias que detinham o poder. Com efeito, a disparidade existente, aliado ao achatamento da nova classe que surgia, em especial no que concerne aos tributos cobrados, produzia uma robusta insatisfação na órbita política (COTRIM, 2010, p. 146-150). O mesmo ocorria com a população pobre, que, vinda das regiões rurais, passa a ser, nos centros urbanos, explorada em fábricas, morava em subúrbios sem higiene, era mal alimentada e, do pouco que lhe sobejava, tinha que tributar à Corte para que esta gastasse com seus supérfluos interesses. Essas duas subclasses uniram-se e fomentaram o sentimento de contenda contra os detentores do poder, protestos e aclamações públicas tomaram conta da França. Em meados de 1789, em meio a um cenário caótico de insatisfação por parte das classes sociais exploradas, notadamente para manterem os interesses dos detentores do poder, implode a Revolução Francesa, que culminou com a queda da Bastilha e a tomada do poder pelos revoltosos, os quais estabeleceram, pouco tempo depois, a Assembleia Nacional Constituinte. Ao lado disso, cuida mencionar que esta suprimiu os direitos das minorias, as imunidades estatais e proclamou a Declaração dos Direitos dos Homens e Cidadão que, ao contrário da Declaração do Bom Povo da Virgínia, que tinha um enfoque regionalista, voltado, exclusivamente aos interesses de seu povo, foi tida com abstrata (SILVA, 2004, p. 157) e, por isso, universalista. Ressalta-se que a Declaração Francesa possuía três características: intelectualismo, mundialismo e individualismo. A primeira pressupunha que as garantias de direito dos homens e a entrega do poder nas mãos da população era obra e graça do intelecto humano; a segunda característica referia-se ao alcance dos direitos conquistados, pois, apenas, eles não salvaguardariam o povo francês, mas se estenderiam a todos os povos. Por derradeiro, a terceira característica referia-se ao seu caráter, iminentemente individual, não se preocupando com direitos de natureza coletiva, tais como as liberdades associativas ou de reunião. No bojo da declaração, emergidos nos seus dezessete artigos, estão proclamados os corolários e cânones da liberdade, da igualdade, da propriedade, da legalidade e as demais garantias individuais. Nesta esteira, ainda, é denotável que o diploma em comento consagrou os princípios fundantes do direito penal, dentre os quais sobreleva destacar princípio da legalidade, da reserva legal e anterioridade em matéria penal, da presunção de inocência, tal como liberdade religiosa e livre manifestação de pensamento. Os direitos de primeira dimensão compreendem os direitos de liberdade, tal como os direitos civis e políticos, estando acampados em sua rubrica os direitos à vida, liberdade, segurança, não discriminação racial, propriedade privada, privacidade e sigilo de comunicações, ao devido processo legal, ao asilo em decorrência de perseguições políticas, bem como as liberdades de culto, crença, consciência, opinião, expressão, associação e reunião pacíficas, locomoção, residência, participação política, diretamente ou por meio de eleições. “Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade” (BONAVIDES, 2007, p. 563), aspecto este que passa a ser característico da dimensão em comento. Com realce, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado, refletindo um ideário de afastamento daquele das relações individuais e sociais. 3 Direitos humanos de segunda dimensão: os anseios sociais como substrato de edificação dos direitos de igualdade Com o advento da Revolução Industrial, é verificável no continente europeu, precipuamente, a instalação de um cenário pautado na exploração do proletariado. O contingente de trabalhadores não estava restrito apenas a adultos, mas sim alcançava até mesmo crianças, os quais eram expostos a condições degradantes, em fábricas sem nenhuma, ou quase nenhuma, higiene, mal iluminadas e úmidas. Salienta-se que, além dessa conjuntura, os trabalhadores eram submetidos a cargas horárias extenuantes, compensadas, unicamente, por um salário miserável. O Estado Liberal absteve-se de se imiscuir na economia e, com o beneplácito de sua omissão, assistiu a classe burguesa explorar e “coisificar” a massa trabalhadora, reduzindo seres humanos a meros objetos sujeitos a lei da oferta e procura. O Capitalismo selvagem, que operava, nessa essa época, enriqueceu uns poucos, mas subjugou a maioria (COTRIM, 2010, p. 160). A massa de trabalhadores e desempregados vivia em situação de robusta penúria, ao passo que os burgueses ostentavam desmedida opulência. Na vereda rumo à conquista dos direitos fundamentais, econômicos e sociais, surgiram alguns textos de grande relevância, os quais combatiam a exploração desmedida propiciada pelo capitalismo. É possível citar, em um primeiro momento, como proeminente documento elaborado durante este período, a Declaração de Direitos da Constituição Francesa de 1848, que apresentou uma ampliação em termos de direitos humanos fundamentais. “Além dos direitos humanos tradicionais, em seu art. 13 previa, como direitos dos cidadãos garantidos pela Constituição, a liberdade do trabalho e da indústria, a assistência aos desempregados” (SANTOS, 2003, s.p.). Posteriormente, em 1917, a Constituição Mexicana, segundo Moraes (2011, p. 11), refletindo os ideários decorrentes da consolidação dos direitos de segunda dimensão, em seu texto consagrou direitos individuais com maciça tendência social, a exemplo da limitação da carga horária diária do trabalho e disposições acerca dos contratos de trabalho, além de estabelecer a obrigatoriedade da educação primária básica, bem como gratuidade da educação prestada pelo Ente Estatal. A Constituição Alemã de Weimar, datada de 1919, trouxe grandes avanços nos direitos socioeconômicos, pois previu a proteção do Estado ao trabalho, à liberdade de associação, melhores condições de trabalho e de vida e o sistema de seguridade social para a conservação da saúde, capacidade para o trabalho e para a proteção à maternidade.  Além dos direitos sociais expressamente insculpidos, a Constituição de Weimar apresentou robusta moldura no que concerne à defesa dos direitos dos trabalhadores, primacialmente “ao instituir que o Império procuraria obter uma regulamentação internacional da situação jurídica dos trabalhadores que assegurasse ao conjunto da classe operária da humanidade, um mínimo de direitos sociais” (SANTOS, 2003, s.p.), tal como estabelecer que os operários e empregados seriam chamados a colaborar com os patrões, na regulamentação dos salários e das condições de trabalho, bem como no desenvolvimento das forças produtivas. No campo socialista, destaca-se a Constituição do Povo Trabalhador e Explorado, elaborada pela antiga União Soviética. Esse Diploma Legal possuía ideias revolucionárias e propagandistas, pois não enunciava, propriamente, direitos, mas princípios, tais como a abolição da propriedade privada, o confisco dos bancos, dentre outras.  A Carta do Trabalho, elaborada pelo Estado Fascista Italiano, em 1927, trouxe inúmeras inovações na relação laboral. Dentre as inovações introduzidas, é possível destacar a liberdade sindical, magistratura do trabalho, possibilidade de contratos coletivos de trabalho, maior proporcionalidade de retribuição financeira em relação ao trabalho, remuneração especial ao trabalho noturno, garantia do repouso semanal remunerado, previsão de férias após um ano de serviço ininterrupto, indenização em virtude de dispensa arbitrária ou sem justa causa, previsão de previdência, assistência, educação e instrução sociais (SANTOS, 2003, s.p.). Nota-se, assim, que, aos poucos, o Estado saiu da apatia e envolveu-se nas relações de natureza econômica, a fim de garantir a efetivação dos direitos fundamentais econômicos e sociais. Sendo assim, o Estado adota uma postura de Estado-social, ou seja, tem como fito primordial assegurar aos indivíduos que o integram as condições materiais tidas por seus defensores como imprescindíveis para que, desta feita, possam ter o pleno gozo dos direitos oriundos da primeira geração. E, portanto, desenvolvem uma tendência de exigir do Ente Estatal intervenções na órbita social, mediante critérios de justiça distributiva. Opondo-se diretamente a posição de Estado liberal, isto é, o ente estatal alheio à vida da sociedade e que, por consequência, não intervinha na sociedade. Incluem os direitos a segurança social, ao trabalho e proteção contra o desemprego, ao repouso e ao lazer, incluindo férias remuneradas, a um padrão de vida que assegure a saúde e o bem-estar individual e da família, à educação, à propriedade intelectual, bem como as liberdades de escolha profissional e de sindicalização. Bonavides, ao tratar do tema, destaca que os direitos de segunda dimensão “são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal” (2007, p. 564). Os direitos alcançados pela rubrica em comento florescem umbilicalmente atrelados ao corolário da igualdade. Como se percebe, a marcha dos direitos humanos fundamentais rumo às sendas da História é paulatina e constante. Ademais, a doutrina dos direitos fundamentais apresenta uma ampla capacidade de incorporar desafios. “Sua primeira geração enfrentou problemas do arbítrio governamental, com as liberdades públicas, a segunda, o dos extremos desníveis sociais, com os direitos econômicos e sociais”, como bem evidencia Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2004, p. 47). 4 Direitos humanos de terceira dimensão: a valoração dos aspectos transindividuais dos direitos de solidariedade Conforme fora explanado até o momento, cuida reconhecer que os direitos humanos originaram-se ao longo da História e permanecem em constante evolução, haja vista o surgimento de novos interesses e carências da sociedade. Por esta razão, alguns doutrinadores, dentre eles Bobbio (1997), os consideram direitos históricos, sendo divididos, tradicionalmente, em três gerações ou dimensões. A nomeada terceira dimensão encontra como fundamento o ideal da fraternidade (solidariedade) e tem como exemplos o direito ao meio ambiente equilibrado, à saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos, a proteção e defesa do consumidor, além de outros direitos considerados como difusos. “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo” (BONAVIDES, 2007, p. 569) ou mesmo de um Ente Estatal especificamente. Ainda nesta esteira, é possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Os direitos de terceira dimensão são considerados como difusos, porquanto não têm titular individual, sendo que o liame entre os seus vários titulares decorre de mera circunstância factual. Com o escopo de ilustrar, de maneira pertinente as ponderações vertidas, insta trazer à colação o robusto entendimento explicitado pelo Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 1.856/RJ: “Cabe assinalar, Senhor Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível” (Supremo Tribunal Federal – Tribunal Pleno/ ADI nº. 1.856/RJ/ Relator: Ministro Celso de Mello/ Julgado em 26 mai. 2011). Nesta feita, importa acrescentar que os direitos de terceira dimensão possuem caráter transindividual, o que os faz abranger a toda a coletividade, sem quaisquer restrições a grupos específicos. Neste sentido, pautaram-se Motta e Motta e Barchet, ao afirmarem, em suas ponderações, que “os direitos de terceira geração possuem natureza essencialmente transindividual, porquanto não possuem destinatários especificados, como os de primeira e segunda geração, abrangendo a coletividade como um todo” (2007, p. 152). Desta feita, são direitos de titularidade difusa ou coletiva, alcançando destinatários indeterminados ou, ainda, de difícil determinação. Os direitos em comento estão vinculados a valores de fraternidade ou solidariedade, sendo traduzidos de um ideal intergeracional, que liga as gerações presentes às futuras, a partir da percepção de que a qualidade de vida destas depende sobremaneira do modo de vida daquelas. Dos ensinamentos dos célebres doutrinadores, percebe-se que o caráter difuso de tais direitos permite a abrangência às gerações futuras, razão pela qual, a valorização destes é de extrema relevância. “Têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta” (BONAVIDES, 2007, p. 569.). A respeito do assunto, Motta e Barchet (2007, p. 153) ensinam que os direitos de terceira dimensão surgiram como “soluções” à degradação das liberdades, à deterioração dos direitos fundamentais em virtude do uso prejudicial das modernas tecnologias e desigualdade socioeconômica vigente entre as diferentes nações. 5 Os direitos de quarta dimensão: as inovações biotecnológicas enquanto elementos de alargamento dos direitos humanos É de amplo conhecimento que a sociedade atual tem, como algumas de suas principais características, o avanço tecnológico e científico, a difusão e o desenvolvimento  da  cibernética,  consequências  do  processo  de  globalização. Ocorre que tais perspectivas trouxeram situações inovadoras e que não correspondem aos fundamentos das gerações mencionadas anteriormente. Trata-se de um cenário dotado de maciça difusão de conhecimento e informações, bem como fluída alteração de paradigmas, notadamente os relacionados ao desenvolvimento científico e biológico. Em meio a esse contexto, para a regularização das situações decorrentes das transformações sociais, surgiram os Direitos de Quarta e Quinta Dimensão, os quais serão estudados doravante. Particularmente à Quarta Dimensão de Direitos, um dos seus principais idealizadores foi Bonavides, para o qual “são direitos da quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta para o futuro, em sua dimensão de máxima universalidade” (2007, p. 571). Com o passar do tempo, conforme bem salientou Serraglio (2008, p. 04), as descobertas  científicas  proporcionaram,  dentre  muitos  avanços,  o  aumento da expectativa de vida humana, vez que, ao homem, tornou-se possível alterar os mecanismos de nascimento e morte de seus pares. Sendo assim, a proteção à vida e ao patrimônio genético foi incluída na categoria dos direitos de quarta dimensão. Em consonância com Motta e Barchet (2007, p. 153), atualmente, tais direitos referem-se à manipulação genética, à biotecnologia e à bioengenharia, e envolvem, sobretudo, as discussões sobre a vida e morte, sempre pautadas nos preceitos éticos. Ao lado do exposto, é fato que o fenômeno globalizante foi responsável por conferir um robusto desencadeamento de difusão de informações e tecnologias, sendo responsável pelo surgimento de questões dotadas de proeminente complexidade, os quais oscilam desde os benefícios apresentados para a sociedade até a modificação do olhar analítico acerca de temas polêmicos, propiciando uma renovação nos valores e costumes adotados pela coletividade. Como bem destaca Lima Neto (s.d., s.p.), o florescimento dos direitos humanos acampados pela quarta dimensão só foi possível em decorrência do sucedâneo de inovações tecnológicas que deram azo ao surgimento de problemas que, até então, não foram enfrentados pelo Direito, notadamente os relacionados ao campo da pesquisa com o genoma humano. Para tanto, carecido se fez a estruturação de limites e regulamentos que norteassem o desenvolvimento das pesquisas, tal como a utilização dos dados obtidas, com o escopo de preservar o patrimônio genético da espécie humana. Dentre os documentos legais que se dedicam à regulamentação das pesquisas científicas relacionadas à vida humana, cumpre-se mencionar, primeiramente, a Declaração dos Direitos do Homem e do Genoma Humano, criada pela  Assembleia  Geral  da  UNESCO  em  1997.  Conforme esclarece Motta e Barchet (2007, p. 153), é necessário consolidar os direitos de quarta geração, pois assim serão delineados os fundamentos jurídicos para as pesquisas científicas, no sentido de impor limites a estas e de garantir que o Direito não fique apartado dos avanços da Ciência. Vieira complementa esse entendimento, ao afirmar que: “a lei deve assegurar o princípio da primazia da pessoa aliando-se às exigências legítimas do progresso de conhecimento científico e da proteção da saúde pública” (1999, p. 18). 6 A declaração universal de bioética e direitos humanos em exame: o reconhecimento dos direitos humanos de quarta dimensão pelo supremo tribunal federal Os avanços das descobertas científicas, juntamente com o desenvolvimento tecnológico acelerado, contribuíram com a ampliação de uma conduta ética que integrasse os valores morais e humanos aos desafios sociais impostos pelos progressos científicos. Ao lado disso, partindo do pressuposto das manifestações bioéticas e da necessidade de sua regulação jurídica a fim de dar suporte aos debates trazidos pelas descobertas e inovações científicas, em 19 de outubro de 2005 foi aprovado por unanimidade pelos 191 países membros da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, tendo como diretrizes precursoras a Declaração Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos e a Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos. A DUBDH é uma ferramenta normativa internacional composta por 28 artigos e seus princípios podem ser divididos em princípios referentes à pessoa humana, princípios sociais e princípios ambientais. O princípio norteador do documento é o princípio da dignidade da pessoa humana, que abre caminhos para uma listagem de outros princípios correlacionados, como por exemplo: o princípio do benefício e dano, autonomia e responsabilidade individual, capacidade do consentimento, respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade individual, igualdade, justiça e equidade, respeito pela diversidade cultural e pelo pluralismo, solidariedade e cooperação, proteção das gerações futuras, entre outros. “Haja vista o conteúdo principiológico da Declaração pode-se afirmar que sua maior empresa foi ter estabelecido um marco de princípios e critérios dentro dos quais os Estados poderão legislar sobre temáticas bioéticas. Com efeito, a Declaração tem como objetivo nodal fixar princípios gerais de caráter ético em um texto “aberto”, o que se revela positivo porquanto possibilita sua interpretação e aplicação conjugada com normas nacionais e internacionais”. (OLIVEIRA, 2010) A Declaração engloba demandas éticas acendidas pela medicina, pelas ciências da vida e pelo desenvolvimento das tecnologias, agregando suas aplicações aos seres humanos. Objetiva a explanação das normas bioéticas conforme os direitos humanos, sendo os mesmos decisivos para consolidar o alargamento científico e tecnológico. Traz a Bioética como protetora desses direitos e contextualiza sua inserção política, já que possui como fundamento a cooperação internacional dos Estados participantes e seu comprometimento em exercer seus deveres propostos pela DUBDH no âmbito social.   É importante ressaltar que embora a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos releve questões que envolvam medicina e tecnologia, a Bioética vai além dos desafios da ética médica. Ela expande sua atuação para situar o campo social-político atual no contexto dos progressos científicos. “Os avanços alcançados pelo desenvolvimento científico e tecnológico nos últimos 30 anos, especialmente no campo da biotecnologia e da saúde humana, permitiram realizações antes inimagináveis. Doenças até então incuráveis hoje têm tratamento, organismos tidos como enigmáticos hoje têm seus genomas sequenciados, situações tidas como impossíveis, como a manipulação genética de organismos vivos e a clonagem, são hoje reproduzidas por metodologias de rotina em diversos pontos do Brasil e do mundo. Ao mesmo tempo em que a humanidade obtém conhecimento e poder para melhorar de modo substancial sua qualidade de vida, paradoxalmente adquire também conhecimento e poder para provocar danos em larga escala ou irreversíveis. Devastação de imensas áreas florestais (em função da agricultura extensiva ou da extração de madeira), liberação de gases que afetam a camada de ozônio (pelo uso de combustíveis fósseis não renováveis) e construção de armas de destruição em massa são exemplos que evidenciam a fragilidade moral da espécie humana. As grandes questões éticas colocadas em função do avanço científico e tecnológico não se referem às potencialidades do ser humano, mas a suas responsabilidades. As pesquisas podem seguir, teoricamente, em diversas direções, mas, na prática, nem todos os caminhos trazem benefícios para a humanidade ou os trazem de forma imediata, criando, porém, a possibilidade de haver consequências custosas em longo prazo. Dessa forma, o problema não está em rejeitar a utilização de novas tecnologias por não serem moralmente aceitas pela sociedade, mas, antes, no controle ético que deve ser exercido.” (CRUZ; OLIVEIRA; PORTILLO; 2010) Dessa forma, tal perspectiva tende a enxergar a Bioética como instrumento para solucionar problemas relacionados não só às ciências da vida, como também solucionar os conflitos apresentados pelas ciências sociais. Dentro das discussões levantadas, há um embate social sobre os direitos de 4ª geração – são direitos que englobam questões de inovações tecnológicas (alteração do patrimônio genético, haja vista o desenvolvimento científico e tecnológico) – sendo delegada à Bioética se posicionar sobre o tema, baseando-se nos princípios propostos pela DUBDH. O desenvolvimento da engenharia genética e a possibilidade de manipulação do genoma humano remetem-se ao princípio da responsabilidade e proteção das gerações futuras, proposto pela DUBDH. Embora tenha objetivo de beneficiar as gerações futuras, as intervenções ou manipulações do genoma podem possuir efeitos negativos, violando o direito à identidade genética do indivíduo e não preservando o patrimônio genético atual, pondo em risco o futuro das características genéticas dos seres humanos, pois pode contribuir para a disseminação da ideia de hegemonia racial. “O que parece temer-se realmente, mais do que a terapia gênica reprodutiva em si, é a possibilidade de alterações genéticas com vistas a uma ―melhoria genética não terapêutica, tanto do ser humano individual (o que poderia dar-se mesmo através da manipulação somática), como de seres humanos futuros e da espécie humana em seu conjunto. De fato, pode ser tênue a linha a separar a alteração genética para a cura de uma ―anormalidadeou ― defeito genético (enfermidade, má-formação) de uma ideia de ― melhoria ou aprimoramento, que poderia favorecer e estimular uma perigosa mentalidade eugênica e conduzir a práticas discriminatórias em razão das características genéticas dos seres humanos — além de desconsiderar, como referido, um direito do ser humano atual e futuro a ter preservado o que seria sua constituição genética natural”. (Möller, 2007) Nesse sentido, há o resgate sobre a individualidade do ser humano, em que a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos (1997), considerada a certidão de nascimento do direito genético e antecedente histórico da DUBDH, veicula o genoma humano a uma identidade genética, veda a utilização do genoma para fins financeiros, estabelece direitos e sanções para pessoas envolvidas no experimento e reafirma os princípios bioéticos. Assim, ao fixar seus princípios e garantir suporte aos avanços dos estudos científicos e sua relação com a sociedade, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos estabelece uma tutela universal baseada nos princípios bioéticos e jurídicos, criando uma responsabilidade para os Estados e os indivíduos, visando garantir a proteção do patrimônio genético atual para assegurar os direitos humanos fundamentais. A complexidade dos direitos ditos de quarta geração e a célere transformação da realidade social com o surgimento de demandas inéditas, logo atingiu o ordenamento jurídico brasileiro influenciando no surgimento de legislação relacionada ao tema, ainda que precária. Ante o iminente risco da disponibilidade de interesses difusos relacionados à biodiversidade e meio ambiente, bem como da proteção do ser humano em sua dignidade, a preservação do patrimônio genético passou a ser uma preocupação do Estado Brasileiro. A Carta Constitucional de 1988 trata sobre o patrimônio genético através do Artigo 225, § 1º, inciso II: “Preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e à manipulação de material genético” (BRASIL, 1988), bem como pelo artigo 225, §1º, inciso V: “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente” (BRASIL, 1988). O patrimônio genético foi definido pela Medida Provisória 2.186-16/2001, capítulo II, art. 7º, I, como toda informação de origem genética, contida em amostras do todo ou de parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, na forma de moléculas e substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos obtidos destes organismos vivos ou mortos, encontrados em condições in situ, inclusive domesticados, ou mantidos em coleções ex situ, desde que coletados em condições in situ no território nacional, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva. Destaca-se que esta definição não se aplica ao patrimônio genético humano. Os Organismos Geneticamente Modificados (OGM) e seus derivados, bem como a Engenharia Genética, por sua vez, estão regulados pela Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança). “Art. 1o  Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente.” (BRASIL, 2005) Malgrado os direitos decorrentes dos efeitos da manipulação genética em seres humanos não se encontrarem expressos na Constituição Federal, a garantia de preservação do patrimônio genético humano revela-se um direito fundamental, já que é o direito de todo ser humano não sofrer interferências artificiais contrárias à própria natureza humana.  A clonagem de seres humanos com a finalidade reprodutiva, a manipulação genética em célula germinal com o intuito de aperfeiçoamento da espécie humana (eugenia) e ainda, o diagnóstico genético pré-implantacional, a fim de selecionar embriões com as características desejadas configuram-se preocupantes desdobramentos da evolução genética. Nessa esteira, o Supremo Tribunal Federal brasileiro tem se manifestado em determinados casos relacionados ao tema, tal como na Ação Direta de Inconstitucionalidade que recebeu o número de 3510. Nela, foram questionados o artigo 5º e seus parágrafos da Lei de Biossegurança (11.105/2015) sob a alegação de violação do direito à vida e à dignidade humana, já que permite a utilização de células-tronco de embriões humanos para fins de pesquisa e terapia. Após a realização de inédita audiência pública para debater o tema, foi declarada a constitucionalidade do sobredito dispositivo legal, com votação iniciada pelo Ministro Carlos Ayres Britto (relator) que fundamentou sua decisão tomando por base o direito à saúde e a livre expressão da atividade científica. “Ementa: Constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei de Biosseguranca. Impugnação em bloco do art. 5º da Lei nº 11.105, de 24 de Março de 2005 (Lei de Biosseguranca). Pesquisas com células-tronco embrionárias. Inexistência de violação do direito à vida. Consitucionalidade do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas para fins terapêuticos. Descaracterização do aborto. normas constitucionais conformadoras do direito fundamental a uma vida digna, que passa pelo direito à saúde e ao planejamento familiar. Descabimento de utilização da técnica de interpretação conforme para aditar à Lei de Biosseguranca controles desnecessários que implicam restrições às pesquisas e terapias por ela visadas. improcedência total da ação. […] II – Legitimidade das pesquisas com células-tronco embrionárias para fins terapêuticos e o constitucionalismo fraternal. A pesquisa científica com células-tronco embrionárias, autorizada pela Lei nº 11.105/2005, objetiva o enfrentamento e cura de patologias e traumatismos que severamente limitam, atormentam, infelicitam, desesperam e não raras vezes degradam a vida de expressivo contingente populacional (ilustrativamente, atrofias espinhais progressivas, distrofias musculares, a esclerose múltipla e a lateral amiotrófica, as neuropatias e as doenças do neurônio motor). A escolha feita pela Lei de Biosseguranca não significou um desprezo ou desapreço pelo embrião "in vitro", porém u'a mais firme disposição para encurtar caminhos que possam levar à superação do infortúnio alheio. Isto no âmbito de um ordenamento constitucional que desde o seu preâmbulo qualifica "a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça" como valores supremos de uma sociedade mais que tudo "fraterna". O que já significa incorporar o advento do constitucionalismo fraternal às relações humanas, a traduzir verdadeira comunhão de vida ou vida social em clima de transbordante solidariedade em benefício da saúde e contra eventuais tramas do acaso e até dos golpes da própria natureza. Contexto de solidária, compassiva ou fraternal legalidade que, longe de traduzir desprezo ou desrespeito aos congelados embriões "in vitro", significa apreço e reverência a criaturas humanas que sofrem e se desesperam. Inexistência de ofensas ao direito à vida e da dignidade da pessoa humana, pois a pesquisa com células-tronco embrionárias (inviáveis biologicamente ou para os fins a que se destinam) significa a celebração solidária da vida e alento aos que se acham à margem do exercício concreto e inalienável dos direitos à felicidade e do viver com dignidade (Ministro Celso de Mello) […]” (Supremo Tribunal Federal – Tribunal do Pleno – ADI 3510 DF/ Relator: Min. Ayres Britto/ Julgado em 29.05.2008/ publicado em 28.05.2010). No que se relaciona ao meio ambiente, a biodiversidade e a proteção do patrimônio genético das espécies vegetais e animais no solo brasileiro, a Suprema Corte já se manifestou em alguns julgados concernentes ao artigo 225 da CF/88. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 3.540, ajuizada em 14.07.2005, o Procurador-Geral da República defendeu que a nova redação do artigo 4º do Código Florestal brasileiro dada pelo artigo 1° da MP 2.166-67 de 24/08/01 violava o art. 225, § 1º, inciso III, da Constituição Federal. Argumentou alegando que somente o Poder Legislativo poderia autorizar supressão em Área de Preservação. A ADI foi indeferida pelo Tribunal Superior sob o argumento de que a medida provisória apenas estabeleceu um maior controle sobre o patrimônio ambiental brasileiro a medida em que permitia maior controle pelo Estado das atividades desenvolvidas dentro dos espaços territoriais protegidos. “Ementa: Supressão de Vegetação em Área de Preservação Permanente e Autorização Administrativa – 1 O Tribunal, por maioria, negou referendo à decisão do Min. Nelson Jobim, Presidente, que deferira pedido de liminar formulado em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador-Geral da República contra o art. 1º da Medida Provisória 2.166-67/2001, na parte em que alterou o art. 4º, caput e §§ 1º a 7º da Lei 4.771/65 (Código Florestal), que dispõem sobre autorização do órgão ambiental para supressão de vegetação em área de preservação permanente – APP. Entendeu-se que a norma impugnada, ao invés de resultar qualquer efeito lesivo e predatório ao meio-ambiente, veio a conferir-lhe proteção, viabilizando o exercício, pelo Poder Público, do efetivo controle estatal sobre o procedimento de supressão de vegetação em APP. Inicialmente, comparou-se o texto do art. 4º resultante das modificações introduzidas pela MP impugnada com o da sua redação primitiva, elecando-se diversas conseqüências danosas advindas com a suspensão dos dispositivos impugnados, dentre as quais: a retirada da garantia de que a supressão de vegetação somente seria permitida em caso de utilidade pública ou de interesse social; o afastamento da possibilidade de o órgão ambiental autorizar a supressão de vegetação em APP, o que teria implicado a inversão do sistema constitucional de competências; o afastamento das medidas mitigadoras e compensatórias que deveriam ser adotadas pelo empreendedor antes da supressão da vegetação; o impedimento de acesso de pessoas e animais às APP para obtenção de água, sob pena das sanções prescritas na Lei 9.605/98. ADI 3540 MC/DF, rel. Min. Celso de Mello, 1º.9.2005. (ADI-3540)” (destaque nosso) É certo que inúmeros outros casos relacionados ainda serão objetos de deliberação pela Suprema Corte especialmente pela obscuridade e complexidade envolta ao tema, minimamente desbravado. A discussão sobre a chamada discriminação genética, bem como a problemática envolvendo a biopirataria, biotecnologia e patentes, certamente constituirão temas para apreciações futuras pelo Supremo Tribunal Federal como última instância, sobretudo, na defesa dos direitos fundamentais consagrados. 7 Conclusão Diante do painel apresentado, cuida reconhecer que o longo processo de edificação dos Direitos Humanos confunde-se com a própria história de evolução da sociedade, notadamente no que toca a contínua busca pela eliminação dos tratamentos díspares e no reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Nesta toada, a edificação das tradicionais dimensões dos direitos supramencionados reflete, com propriedade, as lutas de classes e a busca incessante pelo reconhecimento de direitos e garantias inerentes aos indivíduos, culminando no fortalecimento e remodelagem da acepção do vocábulo dignidade, passando a emoldurá-lo com contornos tipicamente jurídicos. Ao lado disso, é possível, ainda, explicitar que a concepção de uma quarta dimensão, contemporânea e atenta ao manancial de desdobramentos advindos da sociedade, sobretudo no pós-segunda guerra mundial e avanços da biotecnologia e engenharia genética, guarda plena relação com a busca maciça pela materialização da dignidade da pessoa humana, encontrando, primacialmente, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos um importante diploma reconhecedor. No cenário nacional, por seu turno, o reconhecimento de tal dimensão tende a ser ainda mais robusta, sobretudo em decorrência do status jurídico que reveste a dignidade da pessoa humana como superprincípio orientador do ordenamento nacional. Nesse caminho, em que pese a aparente ausência de menção, no Texto Constitucional, sobre aludida dimensão, há que se reconhecer sua materialização, ainda que implicitamente, em um sucedâneo de diplomas legais e no próprio posicionamento do Supremo Tribunal Federal, em um sucedâneo de paradigmáticos julgados, a exemplo dos abordados no curso do presente. Ora, o debate da temática na Suprema Corte Brasileira e a concreção do entendimento externado demonstra, com clareza ofuscante, a relevância da discussão, alargando, mais uma vez, o próprio conceito de dignidade da pessoa humana, com o escopo de assegurar-lhe contemporaneidade aos problemas e às peculiaridades inerentes à sociedade contemporânea e, por extensão, ao indivíduo do século XXI, singular e complexo, dotado de aspectos únicos e que reclamam uma visão multidimensional dos fenômenos em que está inserido.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-140/breve-abordagem-do-reconhecimento-dos-direitos-humanos-de-quarta-dimensao-pelo-supremo-tribunal-federal-a-declaracao-universal-de-bioetica-e-direitos-humanos-em-exame/
Considerações ético-jurídicas oriundas da relação médico-paciente em decorrência de submetimento a tratamento de efeito placebo
O tratamento de efeito placebo pode ser caracterizado como aquele em que há ingestão de medicamento ou outra forma de terapêutica sem nenhum efeito farmacológico cientificamente comprovado. Por esta razão, há necessidade de maior proximidade na relação médico-paciente, sendo o pilar de sustentação desta, a confiança mútua. Com isso, surgem indagações importantes no campo da Ética e do Direito sendo que, em muitos momentos, as mesmas, no que tange às respostas em especial, encontram-se na mesma linha diretiva com o objetivo precípuo de assegurar a aplicabilidade das normas do ordenamento jurídico em voga e defender os direitos do indivíduo e da própria coletividade como um todo. Assim, faz-se pertinente, a análise minuciosa das reflexões éticas e jurídicas oriundas desse tipo de tratamento, dando destaque ao dever do médico de informar e ao direito ao consentimento informado do paciente. Especialmente, quando há lesão a este.
Biodireito
Introdução O presente trabalho acadêmico possui o escopo, não exaustivo, de apresentar o que vem a ser um tratamento de efeito placebo, as divergências do mesmo com a homeopatia, os principais argumentos apontados pelos estudiosos para a aplicação ou não desse tipo de tratamento levando em consideração a especial relevância que a abordagem possui, tendo em vista a evolução das Ciências Médicas, especialmente no que tange à Bioética, e a crescente preocupação de cunho jurídico advinda da mesma. Neste aspecto, especificamente, emergem questões ético-jurídicas bastante pertinentes, como a análise de existência ou não de conduta que aponte para má-fé e/ou enganação por parte do médico para com o paciente. Em caso afirmativo, havendo conflito ético e jurídico na atuação médica frente ao que se espera da conduta do profissional contratado, ensejar-se-á, por via reflexa, a responsabilização, seja na seara civil, penal e administrativa a depender da situação fática em que se respalda a análise? Além da discussão acerca da natureza jurídica do contrato advindo da relação médico-paciente, seria uma contratação de meio ou de fim? Indubitavelmente, esta indagação é de profunda relevância para a problemática da responsabilização, bem como ao que diz respeito à fidúcia ofertada pelo paciente no momento da escolha do profissional médico e a decorrente frustração na obtenção dos resultados esperados. Como o Conselho Federal de Medicina, órgão conservador por excelência, se posiciona diante dos impasses que possam surgir da eleição de inscritos pela modalidade de tratamento placebo? Todas essas questões serão tratadas ao longo do presente artigo, visando com isso, ofertar complemento para pesquisas futuras nesse campo, bem como voltar a atenção dos estudiosos do Direito para a tendência, cada vez maior, da interdisciplinaridade das Ciências, que, quando não objetivamente se fundem, indiscutivelmente buscam auxílio umas nas outras em decorrência da dinâmica social, que nada mais é do que a força motriz do Direito. Sendo, por sua vez, regulador da atividade social, necessita estar atento para os novos caminhos trilhados pela própria sociedade, representando este, o próprio objeto de estudo da referida Ciência. Todavia, a evolução científica é bastante lenta, não acompanhando, na mesma velocidade, as mudanças sociais, sendo essa uma característica crucial, pois, o respeito às descobertas, bem como às teorias desenvolvidas necessitam de tempo para tornarem-se sólidas, e, com isso, ofertarem segurança às pessoas que porventura possam vir a se beneficiar delas. Daí a importância da contribuição de estudos como este. 1. Efeito placebo: definição e essenciais características Ressalta-se a importância de salientar os contornos delimitativos do tema ora exposto, uma vez que acaba por tornar-se condição de prosseguibilidade da leitura desse artigo. As características fundamentais do tratamento placebo, bem como as suas diferenciações com outras terapêuticas serão de suma relevância para a hermenêutica dos itens que se seguem. 1.1. Definição De maneira incipiente, convém delimitar o que seria definição de um fenômeno. Definir vem do latim – definitione – que significa delimitar, encontrar o sentido mais próximo diante da vastidão de conceitos existentes. Nos dizeres de Mauricio Godinho Delgado “(…) consiste na atividade intelectual de apreender e desvelar seus elementos componentes e o nexo lógico que os mantém integrados. Definição é, pois, a declaração da estrutura essencial de determinado fenômeno, com seus integrantes e o vínculo que os preserva unidos”[1]. A partir dessa noção inicial, é possível perceber que a definição do que vem a ser um tratamento de efeito placebo repousa na junção de seus elementos mais peculiares organizados de maneira estrutural e ligados por um nexo lógico de causa e efeito. Surge, a partir dessa premissa básica, a distinção com o tratamento homeopático. Partindo do conceito – que é uma noção mais ampla do que definição, pois engloba todas as possíveis realidades existentes em determinado fenômeno, adequando-as aos limites que o mesmo exige – de tratamento placebo e homeopático, retirados de ramo alienígena ao Direito, é perceptível a divergência. A aplicação de conceito estranho à Ciência do Direito se justifica quando se leva em consideração a especificidade do tema e a competência da Ciência Médica e Farmacológica para delimitar seus contornos. Assim, encontra-se como tratamento placebo a utilização de substâncias sem efeitos terapêuticos, ou seja, inertes às pessoas, sem que as mesmas tenham conhecimento dessa ineficácia. É, atualmente, um conceito amplo, albergando desde a ingestão por via oral de medicamentos, pílulas de farinha, injetáveis, como soro fisiológico, por exemplo, até outras formas de interferência, citando, a título ilustrativo, acupuntura e aplicação de cremes em determinadas áreas do corpo humano[2]. No que tange ao tratamento homeopático, pode ser conceituado como o tratamento de semelhantes por semelhantes, tendo em vista utilizar-se de um mesmo sintoma, que em uma pessoa sã causaria transtornos, em uma pessoa doente, tendo o poder de cura quando ministrado em doses ínfimas. Portanto, no tratamento homeopático, ao contrário do placebo, há o uso de drogas, a patogenia é tratada com o uso de medicamentos com efeitos comprovados cientificamente. Contudo, seus efeitos são semelhantes, seria o mesmo que tratar dor com a substância causadora da dor, mas diluída, em ínfimas porções. Faz-se necessário, para um real entendimento, delimitar o que se compreende por efeito. Este, visto como resultado final do que se busca, seja concreto ou abstrato. Logo, a noção de efeito, tanto no tratamento placebo quando no homeopático é de peculiar relevância, pois é o pilar de sustentação destes. O que justifica a existência desses tipos de tratamento é justamente a possibilidade de efeitos positivos nos procedimentos em que são aplicados. É, também, nesse aspecto que se confundem. Daí surgindo a necessidade de definição do que vem a ser cada um dos tratamentos. Logo, conclui-se que tanto no placebo quanto no homeopático o que se busca são resultados positivos e extintivos da eventual enfermidade. Com o exposto, partindo dos conceitos ora mencionados, e encontrando respaldo científico, apresentam-se as seguintes definições para tratamento placebo e tratamento com base na homeopatia, apenas solidificando os contornos específicos de cada espécie, bem como evidenciando as suas diferenciações: “A palavra Placebo é de origem latina, faz parte do verbo 'agradar', 'dar prazer à'. Refere-se à ação do medicamento que não é decorrente de sua atividade farmacológica, sua função é decorrente à confiança do médico / paciente ao medicamento. Ele é constituído de substância química inerte, podendo ser constituído de açúcar ou farinha. Placebo é qualquer tratamento que se prescreve dizendo ser um tratamento ou medicamento ativo, contudo, na realidade, não tem ação específica nos sintomas ou doenças do paciente, mas de alguma forma pode causar um efeito no mesmo, assim, o resultado esta ligado apenas à natureza psicológica. Esta resposta do placebo não está ligada simplesmente ao alívio de sintomas, trata-se efetivamente da cura do paciente decorrente às suas crenças e/ou expectativas psicológicas ao tratamento”[3]. Do conceito trazido, viabiliza-se a idéia de que a relação estabelecida entre o médico e o paciente é de suma valia ao tratamento placebo. Sendo bem definido no transcrito acima. “Por definição, o placebo é uma substância inerte, sem propriedades farmacológicas, que é administrada a uma pessoa ou grupo de pessoas, como se ela tivesse propriedade terapêutica. Esse nome se origina do verbo latino placere – agradar, fazer bem – e a droga em si foi utilizada exclusivamente para a administração oral. Hoje, são reconhecidas também como placebo algumas formas físicas de aplicação – como acupuntura, ultra-som ou aplicação local de drogas”[4]. Apenas comungando com o que fora explicitado e dando embasamento para a definição apontada a título de placebo, faz-se pertinente a citação supra. “Homeopatia, derivada das palavras gregas homoios, que quer dizer “semelhante”, e páthos, que se traduz por “sofrimento”, essencialmente, significa tratar o semelhante com o semelhante. Hipócrates, percebeu que havia 2 meios de tratar o paciente: através dos contrários (Alopatia) e através dos semelhantes (Homeopatia). Na forma dos “Contrários”, a medicação age contra os sintomas. Na dos “Semelhantes”, os medicamentos têm capacidade de produzir os mesmos sintomas apresentados pela pessoa que sofre – “A lei dos semelhantes”. Em ambos os casos ele acreditava que o médico estava apenas criando condições corretas para aumentar o poder de recuperação interno, Vis medicatrix naturae, que levava à cura”[5]. Do exposto conclui-se que ambos os tratamentos tem aplicação prática bastante difundida em todo o mundo. Inclusive havendo ramos da Medicina defensores dessa terapêutica considerada alternativa por ser mesmo agressiva ao paciente, tendo em vista a não ingestão de drogas pelo mesmo – no caso dos placebos – bem como a aplicação homeopática dos medicamentos com doses diluídas com efeitos químicos. Contudo, far-se-á uma análise mais precisa das questões ético-jurídicas que possam vir a surgir em decorrência da relação médico-paciente instaurada no plano fático. 1.2. Principais efeitos positivos e negativos do tratamento placebo Em todo o mundo busca-se comprovar a eficácia dos tratamentos placebo por meio dos efeitos obtidos em inúmeros experimentos científicos, como por exemplo, o feito por “Médicos, onde eliminaram verrugas com sucesso pintando-as com uma tinta colorida e inerte, e prometendo aos pacientes que as verrugas desapareceriam quando a cor se desgastasse. Em um estudo de asmáticos, pesquisadores descobriram que podiam produzir a dilatação das vias aéreas simplesmente dizendo às pessoas que elas estavam inalando um broncodilatador, mesmo quando não estavam. Pacientes sofrendo dores após a extração dos dentes sisos tiveram exatamente tanto alívio com uma falsa aplicação de ultrassom quanto com uma verdadeira, quando tanto o paciente quanto o terapeuta pensavam que a máquina estava ligada. Cinqüenta e dois por cento dos pacientes com colite tratados com placebos em 11 diferentes testes, relataram sentir-se melhor — e 50 por cento dos intestinos inflamados realmente pareciam melhores quando avaliados com um sigmoidoscópio”[6]. Esses estudos mostram que os efeitos positivos do tratamento placebo – em essência inócuo – podem ser efetivamente sentidos pelas pessoas. Alguns afirmam, como Irving Kirsch[7], que as vantagens de utilização desse tipo de terapia repousam, principalmente, na relação de proximidade criada entre o médico e o paciente, na especial atenção que aquele dedica a este, distanciando-se da padronizada e fria relação firmada num tratamento alopático. Isso se justifica pela necessidade de acompanhamento mais próximo dos avanços e resultados ofertados, da crença que devem nutrir as partes envolvidas de que essa espécie de via será suficiente para ver sanada a enfermidade. Há destaque à ilusão de cunho subjetivo que é criada. As pessoas, ao ingerirem medicamentos placebo, acabam por portarem-se de maneira diferente, positiva, criando uma ilusão de melhora, que, efetivamente, em muitos casos, converte-se para tanto. Em contrapartida, há quem afirme, como Stephen Barret[8], tratar-se apenas de remissão espontânea, ou seja, o corpo humano possui células de defesa, e com isso, a capacidade de curar-se espontaneamente. Desta maneira, a ingestão de placebo nada influiria na melhora, sendo o próprio organismo do indivíduo o responsável pela mesma como parte de seu curso natural. De maneira diametralmente oposta, podem ser verificados os efeitos Nocebo – nomenclatura utilizada para os efeitos nocivos do placebo – sendo apontadas questões como a falta de ética médica e lesão ao direito do paciente ao tratamento informado, ou seja, de ver-se conscientemente informado dos aspectos pormenorizados pelos quais será submetido. Desencadeando, inclusive, a possibilidade de charlatanismo, como comprovado em estudos científicos publicados no New York Times Magazine[9] de 1º de setembro de 2000, que pacientes podem se tornar dependentes de práticas não científicas que empregam terapia placebo. Como por exemplo, serem levados a acreditar que sofrem de determinada patogenia, como alergias ou micoses inexistentes, e que só poderão ser curados por essa modalidade de tratamento quando feito por um praticante específico. Isso acarreta a conclusão de que o alto grau de interferência no psicológico dos pacientes é determinante para o tratamento, e, como estes se tornam vulneráveis, em decorrência da confiança depositada e ausência de conhecimento técnico, acabam sendo alvo fácil dessas possíveis práticas, sendo tal dado, apresentado como faceta negativa da aplicabilidade do tratamento. Além disso, há estudos e relatos explicitados no Jornal referido, que comprovam a possibilidade de surgimento de efeitos colaterais em pessoas submetidas a tratamentos placebo. Bem como, a possibilidade de dependência das mesmas. Em suma, consideram-se efeitos positivos do tratamento placebo a eficácia apontada em inúmeros experimentos científicos, com menor agressividade ao organismo, tendo em vista a ingestão de medicamentos inertes. Também, a especial atenção e cuidado, intrínsecas da relação estabelecida, justificando a proximidade do médico com o paciente. Existem vários estudos em todo o mundo a fim de comprovar a eficácia dos placebos. Contudo, ainda não há uma pacificação quanto ao tema, sendo apontadas inúmeras linhas de pensamento para a justificação. Alguns afirmam ser o aspecto psicológico de relevância significativa para a obtenção de efeitos positivos. Para estes, a ilusão subjetiva que se cria na mente do paciente reflete de maneira predominante para uma melhora. Outros se direcionam para a linha da remissão espontânea. E, ainda, no sentido de que um tratamento que demande peculiar atenção, dedicação, cuidado e afeição ao paciente seja ensejador de efeitos benéficos, nada influindo a noção de tratamento de efeito placebo que ora apresentou-se. Em contrapartida, a fidúcia prevista no tratamento de efeito placebo é o principal elemento desencadeador do efeito nocebo, inclusive, podendo dar ensejo a práticas de charlatanismo. Outros efeitos negativos podem ser apontados como a possibilidade de surgimento de efeitos colaterais e dependência. Tudo isso associado à ilusão subjetiva criada no uso dos placebos, como demonstrado nas pesquisas científicas ora citadas. 2. Perspectivas históricas do placebo É muito antiga a utilização de tratamento placebo, praticamente repousa ao surgimento do homem. Pois, a crença da melhora com a ingestão de determinada substância, ou até mesmo por magia, é bastante remota. A idéia, a intenção subjetiva criada no âmago do ser humano já era apta, em algumas situações, a gerar tanto efeito benéfico como o maléfico. Desta maneira, seguindo a evolução das sociedades, as pessoas tinham menos acesso à informação e cultura, acabavam por se envolver em práticas baseadas na crença de maneira comum, cotidiana, o que é verificado, inclusive, atualmente na sociedade. Soma-se a isso o fato das Ciências ainda terem suas bases estruturadas em pesquisas arcaicas, sem o aparato tecnológico encontrado nos tempos atuais. Das informações encontradas por estudiosos, como Anne Harrington[10], Ted Kaptchuk[11] comprova-se o mencionado. A referência mais rudimentar que pode ser citada como exemplo é a questão dos rituais de magia, de feitiçaria, aplicados em todos os períodos históricos anteriores, sem exceção. Obter cura, especificamente, com a confiança depositada pelas pessoas é algo mais antigo do que se imagina, mas, que acompanha a evolução da sociedade vestindo novas roupagens. Adaptando-se à dinâmica social, caminhando ao passo que a tecnologia evolui. Foi assim que as práticas apontadas hoje como charlatanismo, e que não possuíam esse caráter outrora, serviram de influência para aplicação da sua essência no ramo das Ciências, ou seja, foi a partir dos esboços vistos em práticas anteriores que se chegou à pesquisa dos placebos de cunho científico, atingindo a seara médica e farmacológica mais especificamente, e, com isso, ofertando essencial contribuição na descoberta de novos tratamentos e drogas. De maneira sucinta, pode-se afirmar que a aplicação da prática placebo – a utilização de substâncias inócuas em tratamentos – caminha junto à própria evolução da sociedade, sendo a mente humana a sua principal fonte, uma vez que o aspecto psicológico é determinante para o encontro dos resultados desejados. Importante frisar que a dinâmica em que se encontram envoltos os placebos ganhou destaque e enfoque diferente dos tempos mais remotos. Pode ser apontada uma linha de desenvolvimento, de maneira incipiente e precária, a seguinte: Mesmo não sendo possível afirmar com propriedade a primeira prática placebo ocorrida no decurso da história, encontra-se como marco antigo o ano 90 a.C., no qual os chineses aplicavam a técnica da acupuntura. Esta, em decorrência do êxito obtido nas causas em que atuara difundiu-se pelo Ocidente. Ou seja, o efeito placebo de tal técnica foi responsável pelo seu sucesso e perpetuamento ao longo dos milênios. Em 1785 já se discutia acerca da comprovação científica desse efeito. Logo, estudiosos suscitaram a posição encontrada hoje, para explicar os efeitos do placebo, como remissão necessária. Nesse particular, Benjamim Franklin comprovou não haver nenhuma droga na solução dada a algumas pessoas doentes nos Estados Unidos, verificou não haver fluido com capacidade de cura cientificamente comprovada[12]. A tese de sustentação desses estudiosos repousou, justamente, na resposta necessária que o organismo humano dá às enfermidades. Isso influenciou no surgimento de uma especialidade conhecida como medicina humanizada, ou medicina terapêutica, no qual a atenção oferecida pelo médico para com o paciente, a relação de proximidade que se firma torna-se determinante para a cura. Na década de 90 foram verificados avanços importantes na pesquisa voltada aos placebos. Isso é perceptível quando se constata o número crescente de pesquisas científicas voltadas para essa área, tendo esse período contribuído de forma peculiar, por meio da comprovação de que há ligação entre os sistemas imunológico e neurológico humano, recebendo a nomenclatura de “neuroimunomodulação”. Partindo deste pressuposto, estudiosos das mais variadas áreas como, medicina, psicologia e farmácia, buscaram amparo para sustentar a tese da influência predominante da ilusão subjetiva que é criada no uso dos placebos como algo positivo, e, justificando a aplicação no desenvolvimento que estas Ciências ainda terão ao longo do tempo, conseqüentemente, desvendando mais segredos relacionados ao ser humano, neste aspecto, alvo das mais variadas experiências com o fim de alcançarem curas e descobertas ainda mais significativas. Portanto, o placebo seria utilizado como meio, ou seja, como técnica apta a provar, por meio de experimentos, que os medicamentos e tratamentos empregados nos seres humanos são seguros de serem aplicados. Com isso, houve uma desenfreada aplicação da técnica placebo, um surto de interesse no uso. As empresas farmacológicas comumente começaram a utilizar a técnica de duplo-cego para aferição de níveis de satisfação no uso das drogas que potencialmente poderiam ser comercializadas. Tal técnica consiste em um estudo científico feito em seres humanos com o objetivo de encontrar respostas acerca dos efeitos do que se está testando, no qual nem o objeto da pesquisa, o próprio indivíduo, nem o examinador sabe a quem está ministrando placebos ou drogas verdadeiras. A finalidade do duplo-cego é a imparcialidade da conduta do profissional examinador, visa impedir interferências na pesquisa. Em outra linha, existe o simples-cego, técnica também utilizada com placebos no qual somente os examinados, que serão o alvo do estudo, não sabem o que estão ingerindo. “(…) Em particular, estudos duplo cego controlados por placebo são fundamentais para sabermos se uma determinada terapia (ou droga) tem realmente efeito terapêutico ou não. Isso ocorre porque nosso corpo oferece uma resposta bioquímica mensurável à sugestão de tratamento, que é chamada de efeito placebo. O teste duplo-cego ganhou notoriedade graças ao célebre episódio da memória da água. Em 1988 um grupo de pesquisadores liderado pelo francês Jacques Benveniste submeteu à Nature um artigo em que era demonstrado que glóbulos brancos humanos apresentavam uma resposta bioquímica após expostos a água na qual foi diluido um anticorpo até o ponto em que nenhuma molécula do anticorpo restaria em solução. O efeito só ocorreria quando a solução era violentamente agitada”[13]. Esse uso exacerbado dos placebos em pesquisas científicas acabou por transferirem-se para o campo prático. Com isso, médicos iniciaram a aplicação de técnicas de tratamento placebo em cirurgias e em terapias conhecidas vulgarmente como alternativas, a exemplo da acupuntura. E isso ocasionou, no início deste novo milênio, a preocupação em deter essa evolução desenfreada, tendo em vista as repercussões éticas e jurídicas que possam surgir na atuação do profissional médico, essencialmente no que tange ao direito ao tratamento informado. 3. A relação médico-paciente num tratamento placebo A tendência que tem se verificado atualmente, no que tange à relação médico-paciente, nem sempre encontrou os contornos que ora são percebidos. Isso se deve pela própria evolução da Medicina. Outrora se concebia o médico como ser divino, superior, infalível e inatacável, ao passo que hoje a concepção predominante é a do médico como ser humano capacitado tecnicamente para exercer o mister louvável da Medicina. E como tal, dotado de falibilidade, devendo ser esta, alvo de análises minuciosas a fim de se encontrar os contornos exatos de uma possível responsabilização nos casos em que o profissional tenha atuado em desconformidade com o que se esperava e desde que sua conduta enquadre-se nos requisitos previstos em lei para tanto. Nos dias de hoje, a exigência volta-se a vinculação de especialistas determinadamente considerados. As pessoas buscam tratamento escolhendo específico profissional tomando como base a sua formação, a fama que o mesmo possui na comunidade, experiências e relatos de clientes anteriores, além de informações mais aprofundadas fornecidas pelo Conselho Estadual de Medicina ao qual são filiados, desde que solicitadas. Isso acaba por gerar expectativas nos pacientes, a fidúcia se torna elemento predominante, e, por conseqüência, em alguns casos, acabam surgindo desequilíbrios na relação que se horizontaliza quando os objetivos não são alcançados ou o são de maneira insatisfatória. O maior acesso à informação e a presença de garantias legais para os cidadãos tem servido de forte amparo para que os mesmos vejam assegurados e busquem os seus direitos enquanto pacientes. O Estado tem demonstrado atenção a esse tipo de tutela, em que é prevista uma especial proteção em decorrência da vulnerabilidade de uma das partes. Exemplos disso são as previsões na Constituição Federal Brasileira atual (CF/88), como no artigo 5º (quinto), caput, que veda a lesão ao princípio da isonomia tanto na sua acepção formal como material e no inciso XXXV (trinta e cinco), no qual preceitua o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, ou seja, afirma que será assegurada proteção aos direitos daquele que se achar lesado ou ameaçado de lesão; no Código Civil (CC/02 – Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002) quando assegura proteção especial ao menor; no Código de Defesa do Consumidor (CDC – Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990) em diversas passagens, como por exemplo, quanto à exigência de informação adequada e clara no que tange aos serviços. Além de normas infralegais, como o Novo Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1. 931 de 17 de setembro de 2009)[14], pareceres do Conselho Federal de Medicina (CFM) e dos Conselhos Estaduais. Essa vulnerabilidade decorrente da relação que se firma entre médico e paciente é conseqüência natural da conjugação de dois fatores imprescindíveis, a capacitação técnica do profissional médico, que detém o conhecimento específico para exercer a atividade, e, em situação oposta, o paciente, que procura o médico, justamente, por este ser dotado de tais atributos, ainda tendo como característica relevante, a fragilidade emocional por não ter a noção exata de sua moléstia, e as conseqüências que possa ocasionar à sua integridade física e mental. Contudo, convém ressaltar que o simples fato de estar explícita, nesse tipo de relação, a vulnerabilidade do paciente, não enseja, por si só, o desequilíbrio da mesma. Coaduna desse pensamento o médico Marcelo de Sousa Tavares “A relação entre médico e paciente é, a priori, assimétrica, pois o primeiro é detentor do conhecimento técnico necessário para buscar a solução para os problemas de saúde do segundo. O paciente é aquele que se encontra em situação de ameaça à sua integridade física e mental, pelo intercurso da doença, em decorrência da qual se reporta ao médico. No entanto, essa assimetria, instituída pela própria relação em si, não precisa significar, necessariamente, desequilíbrio na inter-relação entre médico e paciente, implicando, apenas, em considerar que o paciente procura alguém com mais conhecimento que ele próprio para resolver seus problemas de saúde (…)”[15]. Verifica-se que o mencionado autor frisa que essa assimetria prevista na relação em debate é incipiente, mostrando-se justificável tendo em vista a necessidade de existência desta para que a relação se perfaça. Somente os abusos que ocasionalmente possam vir a surgir que ensejariam plausivelmente uma intervenção. Assim, entende-se que uma relação médico-paciente equilibrada seria aquela em que se sopesam os direitos e deveres dos envolvidos e encontra-se a satisfação de ambos. Isso não implica em uma prescrição correta, ou uma cura efetiva sempre, mas sim, numa postura ética esperada, ou seja, na condução exata do procedimento, com atenção do médico, de maneira que escute o paciente e dê importância ao seu relato, que tenha complacência diante da necessidade deste se expressar e compreensão do contexto social de quem procura o auxílio, devendo o médico examiná-lo e prescrever conforme as expectativas e possibilidades[16]. O impasse ético tem sido combatido ferozmente nessas últimas décadas, dando destaque à necessária conduta responsável do praticante da Medicina, uma vez que o Brasil assegura e protege o direito à vida de forma ampla, tendo como basilar a dignidade da pessoa humana explicitada pelo mestre Immanuel Kant de maneira brilhante tomando como referência seus dois elementos formadores “(…) Pessoa humana – a filosofia Kantiana mostra que o homem, como se racional, existe como fim em si, e não simplesmente como meio, enquanto os seres desprovidos de razão têm um valor relativo e condicionado, o de meios, eis por que se lhes chamam “coisas”, ao contrário, os seres racionais são chamados de pessoas, porque sua natureza já os designa como fim em si, ou seja, como algo que não pode ser empregado simplesmente como meio e que, por conseguinte, limita na mesma proporção o nosso arbítrio, por ser um objeto de respeito (…) de onde Kant deduz o seguinte imperativo prático: “Age de tal sorte que consideres a Humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”. (…) Isso, em suma, quer dizer que só o ser humano, o ser racional, é pessoa. (…) Dignidade – voltemos, assim, a filosofia de Kant, segundo a qual no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Aquilo que tem um preço pode muito bem ser substituído por qualquer outra coisa equivalente. Daí a idéia de valor relativo, valor condicionado, porque existe simplesmente como meio o que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem e tem um preço de mercado; enquanto aquilo que não é um valor relativo, e é superior a qualquer preço, é um valor interno e não admite substituto equivalente, é uma dignidade, é o que tem uma dignidade. (…) a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida (…) o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade da pessoa humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais (…)”[17]. Percebe-se que a tutela ética é feita levando em consideração a dignidade da pessoa humana. E, nesse aspecto, o novo Código de Ética Médica, desenvolve relevante papel[18], uma vez que trata da matéria de forma minuciosa, elencando, inclusive, várias práticas vedadas ao médico[19]. Salienta-se que o que fora visto até então, no que diz respeito à relação médico-paciente, pode ser enquadrado de maneira perfeita para o relacionamento existente entre o médico e o paciente num tratamento de efeito placebo, uma vez ser este espécie desse gênero de relação.    Num tratamento placebo, como visto, há como elemento predominante a confiança. Este elemento desenvolve imprescindível papel na relação estabelecida, e é por isso que se torna extremamente pertinente a análise detalhada da boa-fé ou má-fé no caso concreto, tendo em vista o crescente número de ações judiciais visando à reparação de danos oriundos da mesma[20]. Na aplicação de placebos, a fidúcia tem destaque maior do que nas outras relações entre examinador e examinado, “(…) Relação fiduciária. Fiduciary derives from the Latin word for "confidence" or "trust". Fiduciária deriva da palavra latina para "confiança" ou "confiança". The bond of trust between the patient and the physician is vital to the diagnostic and therapeutic process. O vínculo de confiança entre o paciente e o médico é vital para o processo de diagnóstico e terapêutica. It forms the basis for the physician-patient relationship. Ele forma a base para a relação médico-paciente Physicians are obliged to refrain from divulging this confidential information to maintain the patients trust.(…)”[21]. O novo Código de Ética Médica deixa clara a preocupação de serem protegidos os direitos do paciente, em consonância com a atual Carta Magna, em especial ao direito ao tratamento informado ou consentimento informado, que é baseado em uma decisão compartilhada entre o médico e o paciente, o médico apresenta os valores e informações que serão relevantes ao paciente, e deste, espera-se que entenda a natureza da doença e da intervenção, incluindo os riscos e benefícios[22]. “Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte. Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal. Art. 37. Prescrever tratamento ou outros procedimentos sem exame direto do paciente, salvo em casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada de realizá-lo, devendo, nesse caso, fazê-lo imediatamente após cessar o impedimento.” (grifos nossos) É evidenciada, da leitura dos artigos supramencionados referentes às vedações ao médico no que tange à relação médico-paciente, que a preocupação ética se faz totalmente pertinente, pois, o paciente, ao participar da relação como um dos pólos, tem pleno direito de ver-se informado dos detalhes de seu tratamento. Sob esta ótica, o tratamento placebo é encarado, por muitos, como lesionador dessa garantia do paciente, inclusive assegurado no Código de Defesa do Consumidor, que prevê como direito básico, o acesso a informações claras a respeitos dos serviços ofertados no mercado. Também, prevendo como crime, no artigo 66 (sessenta e seis), “Artigo 66 CDC: Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços. Cominando pena de detenção de três meses a um ano e multa.” Num tratamento de efeito placebo, há maior vulnerabilidade do paciente tendo em vista ser da própria essência desse tipo de prática a falta de informação da ingestão de placebo pelo mesmo. Assim, no plano fático, muito maiores serão as chances de um indivíduo ter seus direitos lesionados em decorrência dessa conduta. Sendo isso plenamente auferido quando o sujeito vê-se sem obtenção de êxito algum no tratamento. Afirma-se que, apesar de buscarem equilíbrio nos comportamentos dos envolvidos – de um lado a omissão da informação acerca do tipo de tratamento e do procedimento utilizado como meio necessário para o desenvolvimento da técnica placebo. E de outro, o paciente que, de total boa-fé inicia uma relação com o médico, pólo detentor de maior força, uma vez que possui conhecimento técnico, esperando dele uma conduta ética, responsável e profissional, e, por conseguinte, concedendo um alto grau de confiabilidade a este e esperando, sinceramente, obter resultados positivos – di per si, já nascerá com fortes chances de ocasionarem dano à pessoa, uma vez que, quando contrapostos os interesses, geralmente, prevalecerá o do pólo mais fraco que, porventura venha a ser lesionado. Logo, a responsabilização far-se-á pertinente, seja com apoio ao judiciário e/ou no campo administrativo, com reflexos éticos e diretamente ligados ao Conselho Estadual de Medicina ao qual determinado profissional estará vinculado. Em suma, o que é percebido diante da relação firmada entre o médico e o paciente, e dando relevo ao tratamento placebo, é que os contornos éticos devem sempre ser respeitados, independentemente de que tipo de resultado se busca. Nunca se deve deixar de lado a figura do paciente, uma vez que este deve ser considerado como fim, e nunca como meio utilizado para o desenvolvimento da Ciência, pois, quando assim o é há lesão à dignidade do ser humano, tão protegida pelo ordenamento pátrio e global. O paciente espera do médico uma conduta ilibada, entregando ao mesmo, em contrapartida, parcela significante de confiança. Logo, tendo seus direitos assegurados pelo ordenamento jurídico pátrio[23], bem como por normas administrativas regedoras da conduta do profissional médico, previstas no Novo Código de Ética Médica (anexo 01), a busca por justiça é garantida. O que se verifica quando há desequilíbrio na relação entre médico e paciente é uma quebra do contrato que fora firmado entre as partes, coadunando, por sua vez, para a possibilidade de reparação pela via judicial, devendo, a partir da análise do caso concreto, delimitar em que searas e sob que aspectos. Ressalta-se que a eleição de uma via de responsabilização não exclui a possibilidade de incidência da outra. Somente os contornos da situação fática imposta que serão aptas a dar o encaixe perfeito. 4. Relação contratual entre o médico e o paciente. Reflexos na responsabilização Convém apresentar algumas das noções modernas que surgem para explicar o envolvimento entre o médico e o paciente. De acordo com Robert M. Veatch podem ser apontados quatro modelos para relação estabelecida entre as figuras mencionadas, quais sejam, a relação médico-paciente engenheiro, sacerdotal, colegial e contratual. “ENGENHEIRO- O médico atua como executor de ações propostas pelo paciente. É um modelo de tomada de decisão de baixo envolvimento, que se caracteriza mais pela atitude de acomodação do médico, distante das questões de valores, que pela dominação ou imposição do paciente. O paciente é um cliente que demanda uma prestação de serviços médicos. SACERDOTAL- O médico atua com paternalismo explicitado em relação ao paciente. Em nome da beneficência, a decisão tomada pelo médico não leva em conta os desejos, crenças, valores ou opiniões do paciente. O processo de tomada de decisão é de baixo envolvimento, baseando-se em uma relação de dominação por parte do médico e de submissão por parte do paciente. COLEGIAL- Médico e paciente interage como colegas, não se diferencia os papéis no contexto da relação. O processo de tomada de decisão é de alto envolvimento; o poder é compartilhado de forma igualitária. A maior restrição a este modelo é a perda da finalidade da relação médico-paciente, equiparando-a a uma simples relação entre indivíduos iguais. CONTRATUAL- Mútuos entendimentos de benefícios e responsabilidades são mantidos; o médico preserva a sua autoridade enquanto detentor de conhecimentos e habilidades específicas assume a responsabilidade pela tomada de decisões técnicas. O paciente participa desse processo exercendo seu poder de acordo com seus valores morais e pessoais. O processo ocorre em um clima de efetiva troca de informações e a tomada de decisão pode ser de médio ou alto envolvimento”[24]. (grifos nossos) Diante do exposto, e da observância da prática médica atual, é possível perceber a existência de todos esses modelos, ou seja, os mesmos interagem diante da dinâmica complexa que se firma entre os sujeitos contrapostos oriundos dessa relação. Contudo, indiscutivelmente, há predominância da prática contratual, mesmo que indiretamente, justificando, por conseguinte, ser esta a natureza jurídica da prestação de serviços médicos. Deste posicionamento majoritário comungam estudiosos de renome como Carlos Roberto Gonçalves afirmando que “não se pode negar a formação de um autêntico contrato entre o cliente e o médico, quando este o atende. Embora muito já se tenha discutido a esse respeito, hoje não pairam mais dúvidas a respeito da natureza contratual da responsabilidade médica”[25]. Silvio Rodrigues também entende não haver mais necessidade de discussão do enquadramento da natureza jurídica como negocial, concluindo que “a responsabilidade de tais profissionais é contratual, e hoje tal concepção parece estreme de dúvida”[26]. Na mesma linha de raciocínio Caio Mário da Silva Pereira, que diz: “Não obstante o Código Brasileiro inseri-la em dispositivo colocado entre os que dizem respeito à responsabilidade aquiliana, considera-se que se trata de responsabilidade contratual”[27]. Salienta-se, contudo, que a pacificação na doutrina brasileira acerca da natureza jurídica só ocorreu com o advento do Código de Defesa do Consumidor em 1990, assentando que a relação firmada entre o médico e o paciente é relação de consumo pautada na prestação de serviços[28]. Importantíssima essa conclusão, tendo em vistas as repercussões no campo da responsabilização em decorrência de desequilíbrios ocorridos no decorrer do contrato e da antiga discussão existente na doutrina, verificando-se, ainda hoje, posições minoritárias que defendem ser a natureza jurídica extracontratual ou aquiliana, tomando como base a posição do artigo 1.545 do Código Civil em vigor[29] que trata da obrigação de reparação de dano por médicos (e outros profissionais da área de saúde), localizado no Capítulo II (Da Liquidação das Obrigações Resultantes de Atos Ilícitos no Título VIII – Da Liquidação das Obrigações). Assim, a argumentação dada por essa minoria é a de que, se o legislador desejasse que a responsabilidade fosse considerada contratual estaria inserida no Título IV – Dos Contratos – ou no Título V – Das Várias Espécies de Contratos – no mesmo Código. Contudo, tal corrente não vinga por ser estruturada em fundamentações bastante precárias que não gozam de aceitação da melhor doutrina, como destacado por Sergio Cavalieri Filho que admite a possibilidade excepcional de enquadramento em responsabilização extracontratual em casos especiais, como por exemplo, quando o paciente não puder expressar sua vontade, ou a relação não se firmar com bases nesta. Essa conclusão torna-se pertinente quando se dedica atenção ao princípio fundamental das relações negociais, a autonomia da vontade. Bem como quando houver lesão aos requisitos[30] básicos previstos no Código Civil vigente para a existência e validade do negócio jurídico. “A responsabilidade médica é, de regra, contratual, em razão da forma como se constitui a relação paciente-médico. Normalmente, o paciente procura o médico, escolhe o profissional de sua confiança, constituindo com ele vínculo contratual. Resta, todavia, uma vasta área para a responsabilidade médica extracontratual, como, por exemplo, nos casos de atendimento de emergência, estando o paciente inconsciente, ou quando o médico se recusa a atender o paciente nesse estado emergencial; tratamento desnecessário, cirurgias sabidamente indevidas, experiências médicas arriscadas, etc. Há, ainda, casos, até, de ilícito penal perpetrado por médicos que realizam aborto fora dos casos permitidos em lei, desligam aparelhos para apressar a morte do paciente, receitam tóxicos ou substâncias entorpecentes indevidamente (…)”[31]. Assim, conclui-se com tranqüilidade que a regra que norteia as relações entre médicos e pacientes é fundada em um contrato, ou seja, nada mais representa do que relação de consumo, e, por conseguinte, podendo ser alvo dos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor. Porém, por expressa menção nesse texto legal – artigo 14 (quatorze), § 4º (parágrafo quarto) – a responsabilidade pessoal do profissional liberal será apurada mediante a verificação de culpa. Mas, seguindo a posição supra, há respaldo para afirmar que a responsabilidade do médico poderá ser, em casos excepcionais, aquiliana. Insta salientar que o contrato de prestação de serviços médicos preenche os requisitos de existência e validade estabelecidos no Código Civil de 2002, quais sejam: agente capaz, sendo considerado o paciente o contratante, capaz ou fazendo-se representar ou assistir por quem de direito nos casos previstos no mesmo código, e o médico como contratado, também capaz nos contornos civilistas; o objeto é lícito, possível e determinado uma vez que existem inúmeras disposições legais, como a Lei nº. 8.080/1990 que trata das condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências, diretamente afirmando a licitude de tal conduta, inclusive considerada como de peculiar importância para o desenvolvimento e manutenção da sociedade; e a forma, que não é defesa em lei, sendo, portanto, plenamente possível o firmamento de tal contrato que não necessita de formalidade, podendo ser produzido pela via escrita ou oral. O marco inicial dessa relação de consumo é delimitado pela primeira consulta. O contrato de prestação de serviços médicos possui quatro características predominantes, é sui generis, oneroso, bilateral e personalíssimo, como preconiza Débora Sotto, “(…) O contrato de prestação de serviços médicos é um contrato sui generis, oneroso, bilateral e personalíssimo. Sui generis, porque composto quase que exclusivamente por normas cogentes, consubstanciadas no Código de Ética Médica e na legislação civil e penal. Oneroso, porque os serviços médicos são remunerados, quer pelo próprio paciente, quer por terceiros. Bilateral, porque confere direitos e prescreve obrigações a ambas as partes contratantes; ainda que a maior parte das obrigações contratuais sejam impostas aos médicos, o paciente é obrigado à observância de ao menos dois deveres: fornecer ao médico as informações corretas sobre seus sintomas e seguir as recomendações quanto ao tratamento. Por fim, apesar da crescente despersonalização e massificação dos serviços médicos, contrato personalíssimo, porque se funda primordialmente numa relação de confiança entre as partes contratantes”[32]. Via de regra, a doutrina predominante entende ser um contrato de meio o firmado entre o médico e o paciente uma vez que aquele se compromete em atuar com diligência, empregando toda a técnica de que detém conhecimento, a fim de obter os resultados mais satisfatórios possíveis, uma vez que se trata de situação instável, levando-se em consideração que os seres humanos reagem de maneiras diferentes a um mesmo tratamento, não se pode assegurar um resultado. Logo, a conclusão que se verifica é ser um contrato de meio e não de fim ou resultado. Como observa Marco Fridollin Sommer Santos, “A não-obtenção do diagnóstico correto apenas demonstra que o resultado esperado não foi alcançado. Mas se o profissional, na busca do diagnóstico utilizou-se corretamente de todos os meios que o estado da técnica e as condições de trabalho lhe proporcionam, não há que se falar em culpa profissional. O objeto da obrigação, que é a prestação de serviços médicos, não se confunde com a sua finalidade. O fim é a obtenção de um resultado correto. A não-obtenção do resultado esperado não se confunde com a violação da obrigação”[33]. Em suma, o que se entende por obrigação de meio é o fato de que a contratação não se vincula a resultados finais específicos. Necessita sim, do emprego de toda a diligência possível para a busca dos melhores resultados, sem, contudo, vincular-se a eles. Na contratação de resultado o elo é firmado justamente no intuito de obtenção de resultado específico. A ausência deste implica em defeito no cumprimento do contrato, logo, ensejando reparação. “A obrigação de meio é aquela em que o profissional não se obriga a um objetivo específico e determinado. O que o contrato impõe ao devedor é apenas a realização de certa atividade, rumo a um fim, mas sem o compromisso de atingi-lo. O contratado se obriga a emprestar atenção, cuidado, diligência, lisura, dedicação e toda a técnica disponível sem garantir êxito. Nesta modalidade o objeto do contrato é a própria atividade do devedor, cabendo a este enveredar todos os esforços possíveis, bem como o uso diligente de todo seu conhecimento técnico para realizar o objeto do contrato, mas não estaria inserido aí assegurar um resultado que pode estar alheio ou além do alcance de seus esforços. Em se tratando de obrigação de meio, independente de ser a responsabilidade de origem delitual ou contratual, incumbe ao credor provar a culpa do devedor. Na obrigação de resultado há o compromisso do contratado com um resultado específico, que é o ápice da própria obrigação, sem o qual não haverá o cumprimento desta. O contratado compromete-se a atingir objetivo determinado, de forma que quando o fim almejado não é alcançado ou é alcançado de forma parcial, tem-se a inexecução da obrigação. Nas obrigações de resultado há a presunção de culpa, com inversão do ônus da prova, cabendo ao acusado provar a inverdade do que lhe é imputado (Inversão do ônus da Prova) (…)”[34]. Num tratamento em que há uso de placebo pode-se afirmar tratar-se de contratação de meio. Logo, deverá o profissional da Medicina empregar toda a diligência e conhecimentos técnicos para a obtenção dos melhores resultados possíveis. Assim, verifica-se com base no artigo 14 (quatorze), § 4º (parágrafo quarto) do Código de Defesa do Consumidor[35], e nas regras infirmadas no Atual Código de Ética Médica[36], que a responsabilidade civil do médico é subjetiva, ou seja, necessita da comprovação de que o mesmo atuou com culpa lato sensu, o que corresponde a dizer que atuou com dolo, negligência, imprudência ou imperícia, a depender do caso concreto. É ínsito ao tratamento de efeito placebo a não informação da aplicação deste ao paciente, com isso, o mesmo não tem consciência da ineficácia do que lhe é ministrado somente sendo perceptível quando os resultados esperados não são obtidos. Assim, o que se percebe é que alguns elementos recebem destaque especial quando se fala em tratamento placebo e responsabilização, como por exemplo, a má-fé, conceito contrário à boa-fé objetiva[37] que deve ser empregada nos contratos. A relação entre o médico e o paciente desenvolve-se pautada na confiança recíproca, e, por conseguinte, indispensável a boa-fé. A conclusão que se verifica nesse posicionamento é a de que a prestação de serviços médicos representa um contrato de meio com feições específicas, pois, a ênfase dada à má-fé e a lesão aos direitos do paciente recebe destaque especial, ensejando a responsabilização pelos danos decorrentes da conduta médica negligente, que somente podem ser auferidos diante da não obtenção dos resultados esperados cumulada ao emprego da má-fé. A má-fé é conceito de valoração subjetiva, verificada pela ausência do emprego de diligência necessária que o caso concreto necessita. Com isso, quando um paciente procura um médico, sendo ministrado àquele um placebo, e, a posteriori, percebe-se que não houve nenhuma melhora, só então recebendo a informação de que tipo de tratamento foi-lhe aplicado, haverá desequilíbrio na relação médico-paciente, pois, houve lesão ao direito de ser informado das miudezas da sua terapêutica, bem como do que diz respeito ao consentimento informado. Frisa-se que a conduta médica no qual há omissão quanto ao tratamento, bem como as possíveis reações colaterais representa dolo ou culpa na modalidade negligência. É imprescindível que o paciente, ou os familiares do mesmo a depende do caso, recebam todas as informações necessárias para que possam consentir. O direito ao consentimento informado é o pilar de toda a Bioética, bem como de todo ato médico. O Código de Defesa do Consumidor defende o direito à informação[38] por tratar-se de ação afirmativa que visa proteger indivíduos que se encontram em situação de desigualdade, por não terem, no caso específico da relação médico-paciente, conhecimentos técnicos. Assim, o referido diploma normativo, representa avanço na aplicação do Direito, uma vez que privilegia a aplicação do princípio constitucional da isonomia em sua acepção material. Como enuncia Sérgio Cavalieri Filho, “(…) Nenhum médico, por mais competente que seja, pode assumir a obrigação de curar o doente ou de salvá-lo, mormente quando em estado grave ou terminal. A ciência médica, apesar de todo o seu desenvolvimento, tem inúmeras limitações, que só os poderes divinos poderão suprir”[39]. Por conseguinte, verifica-se que a eleição da responsabilidade subjetiva do médico pauta-se no caráter personalíssimo do contrato firmado entre as partes, bem como na própria evolução das Ciências. Pois, muito embora tenham boas técnicas sendo aplicadas, reconhece-se que muito ainda pode ser explorado e, juntando a isso, as diferentes reações que o organismo humano pode ter em indivíduos diversos. 5. O direito do paciente ao consentimento informado e o dever do médico de informar. A ética médica frente ao tratamento placebo É sedimentada no campo do Biodireito a noção existente quanto ao consentimento informado, sendo considerado como o principal princípio deste novíssimo ramo do Direito. Surge como reflexo da liberdade do ser humano, assegurada como direito fundamental na atual Carta Política. Seria a liberdade de expressão, a liberdade de gerir a vontade guiada por informações claras, precisas e totalmente desvirtuada de dúvidas. Para tanto, conglobam-se dois princípios na formação do livre consentimento informado. O livre convencimento, sendo reflexo do direito à liberdade, como já mencionado, e o direito à informação, que, com o advento do Código de Defesa do Consumidor recebeu contornos especiais, uma vez que a ausência, ou má prestação de informações, configura negligência, e, por conseguinte, eivando de culpa a conduta do profissional médico. Logo, surgindo para o paciente à possibilidade de busca, diante da lesão a direito seu, ao judiciário e à seara administrativa, representada pelos Conselhos Estaduais de Medicina, para a devida responsabilização desse profissional que não atuou de acordo com a conduta esperada. “O Consentimento Informado consiste numa “decisão voluntária, realizada por uma pessoa autônoma e capaz, tomada após um processo informativo e deliberativo, visando à aceitação de um tratamento específico, sabendo da natureza dos mesmos, suas conseqüências e dos seus riscos”[40]. Diante do direito do paciente em consentir, há, de maneira proporcional, o dever de informar do médico. Existe uma relação de interdependência entre os dois preceitos. Para um existir há a necessidade do outro, em conseqüência, sendo um eivado de vício, o outro necessariamente também estará maculado. Contudo, para ensejar responsabilização, em regra de natureza civil, e administrativa, mas, a depender do caso concreto poderá também ser acessível a seara penal, a ordem de negligência que se estabelece é a seguinte: O médico, tendo o dever de informar ao paciente todas as miudezas do tratamento placebo que lhe será ministrado não o faz, por acreditar que tornará ineficaz o procedimento, uma vez que a não informação é peculiar deste, e, com isso, o paciente acaba por consentir pautado em informações sem clareza, não aptas a gerarem um consentimento livre e informado capaz de excluir a responsabilidade do médico por eventuais danos ocorridos no decorrer da terapêutica. É bastante delicada a relação criada entre o direito à informação do paciente e a técnica de tratamento placebo. Sempre, mesmo que de maneira ínfima, haverá lesão a esse direito. Salienta-se que mesmo nos casos onde o placebo atinge efeitos benéficos haverá essa lesão, pois, o que visa tal direito é diametralmente oposto ao que enuncia a técnica placebo. Por conseguinte, é possível afirmar que quando houver dano efetivo ao paciente decorrente da não informação, ou da informação imprecisa, que é considerada como não prestada, ou ainda excessivamente rebuscada ou puramente técnica, haverá possibilidade de reparação, mas, como a responsabilidade do médico é subjetiva, haverá a necessidade de comprovação da culpa do mesmo. Sendo, porém, possível, em caráter excepcional, a inversão do ônus da prova em favor do paciente, pois, este é protegido pelo Direito Consumerista[41]. Assim como leciona Sérgio Cavalieri Filho “Na verdade, o direito à informação está no elenco dos direitos básicos do consumidor: ‘informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, bem com sobre os riscos que apresentam’ (art. 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor). A informação tem por finalidade dotar o paciente de elementos objetivos de realidade que lhe permitam dar, ou não, o consentimento. É o chamado consentimento informado, considerado, hoje, pedra angular no relacionamento do médico com seu paciente. (…) Pois bem, embora médicos e hospitais, em princípio, não respondam pelos riscos inerentes da atividade que exercem, podem, eventualmente, responder se deixarem de informar aos pacientes as conseqüências possíveis do tratamento a que serão submetidos. Só o consentimento informado pode afastar a responsabilidade médica pelos riscos inerentes à sua atividade. O ônus da prova quanto ao cumprimento do dever de informar caberá sempre ao médico ou hospital”[42]. As acepções atuais da Bioética caminham no sentido de priorizar a autonomia da vontade do paciente, isso poderia levar a crer que o princípio do consentimento informado invalida o princípio da beneficência, mais conservador e reflexo dos contornos sócio-ideológicos de seu surgimento. A essência paternalista da beneficência, baseada no juramento de Hipócrates[43] (anexo 02), afirma que a conduta médica deve sempre ser voltada para encontrar o melhor resultado, mesmo que o desejo do paciente seja contrário a isto. Ou seja, a conduta médica correta é encarada como aquela em que os melhores benefícios serão atingidos, muito embora se tenha que desprezar a autonomia da vontade do paciente de dispor sobre o seu próprio corpo. Contudo, embora digno de respeito o juramento milenar dos médicos, que reflete a noção divina da Medicina, bem como a responsabilidade no exercício de tal profissão, não se pode afirmar que um princípio excluiria o outro quando da conduta médica, pois, existem exceções ao princípio da autonomia ou consentimento informado, como nos casos de urgência com iminente risco de vida. Nessas especiais situações, não haverá lesão por parte do médico por ser aplicado o privilégio terapêutico. Importante salientar que, via de regra, o consentimento informado prestado a partir das informações idôneas fornecidas pelo médico são aptas a liberá-lo de possíveis responsabilizações posteriores (uma vez que a responsabilidade, em regra, é subjetiva). A vertente Ética atual deixa um pouco de lado o conservadorismo de outrora e pauta-se pela autonomia do paciente. Seria, portanto o consentimento informado como reflexo do direito da personalidade de disposição sobre o próprio corpo, que deriva do direito nato à integridade física, da liberdade do indivíduo, e em última instância, da própria dignidade da pessoa humana. Encontra-se essa posição, no atual Código de Ética Médica, “É vedado ao médico: (…) Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto. Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo. Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte. Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.” Conclui-se que a posição do Conselho Federal de Medicina, ao editar o novo Código de Ética, não deixa dúvidas, mostrando-se atento às novas tendências da Bioética e do Biodireito. No que tange a aplicação de placebos o mesmo não foi omisso, porém, somente tratou do tema referindo-se às pesquisas científicas, permitindo o uso apenas quando não houver nenhum tratamento efetivo e eficaz para a doença pesquisada. Frisa-se, no que tange especificamente à aplicação pelo médico de tratamento placebo como técnica comum nos consultórios, que a omissão fundamenta-se na ausência de informação sobre os direitos do próprio paciente, e de lides e decisões judiciais com esse contexto. Desta maneira, afirma-se que a visibilidade dada ao tema será crescente à medida que forem difundidos os direitos do paciente diante da publicação do Novo Código de Ética Médica, e das condenações de profissionais médicos por meio do judiciário e na seara administrativa, decorrente de desequilíbrio contratual. Considerações Finais As conclusões ético-jurídicas que podem ser encontradas diante da relação estabelecida entre o médico e o paciente num tratamento de efeito placebo, tendo como elemento básico a confiança decorrente do caráter personalíssimo do contrato firmado, são interessantes. Pois, antes de qualquer análise específica ao que tange à responsabilização, é preciso perceber a peculiaridade da técnica placebo. Esta se funda na ingestão medicamentosa sem efeitos farmacológicos cientificamente comprovados, como por exemplo, pílulas de farinha. Estaria pautada na crença da potencialidade da mente humana, no poder que o indivíduo possui de regenerar-se. Assim, é fácil perceber a contrariedade desse tipo de tratamento com o princípio norteador de toda a conduta médica, o dever de informar do profissional e o consentimento informado do paciente. Diante disso, afirma-se haver lesão a esse direito. Contudo, a reparação na seara jurisdicional necessita de dano efetivo, além da comprovação de culpa do médico, tendo em vista a sua caracterização em sendo subjetiva derivada de uma obrigação de meio. Quando o médico ministra um placebo em seu paciente o dano só será percebido quando não se fizerem presentes os resultados esperados. Logo, a conclusão que se verifica é a de que não há o emprego da boa-fé nessa relação contratual, pois, esta traz consigo a necessidade de lealdade e transparência nas relações. Haverá um efeito em cascata no infringir dos institutos. Salutar a proteção ao consumidor/paciente no Código de Defesa do Consumidor (CDC), muito embora o novo Código de Ética Médica traga texto expresso negando a relação de consumo existente entre o médico e o paciente, (inapto a gerar revogação do conteúdo normativo consumerista, tendo em vista não ser o Novo Código de Ética Médica lei em sentido estrito, ou seja, elaborada de acordo com o processo legislativo estabelecido na Carta Magna atual), pois, a vertente da defesa aos vulneráveis vem sendo cada vez mais seguida pelos diplomas normativos brasileiros, visando com isso, igualar os indivíduos que, entre outros fatores, historicamente foram negligenciados. Por fim, salienta-se a contribuição dos placebos em pesquisas científicas propiciadoras do desenvolvimento de novos medicamentos. Atuam de maneira determinante na descoberta dos efeitos destes. Contudo, o que se busca no presente artigo é abordar o campo prático, relações concretas entre o médico e o paciente. Nestas, porém, os placebos são ensejadores de grande insegurança, podendo causar responsabilização judicial do profissional que os ministra devido à ocorrência de dano efetivo, mesmo não sendo encontrado nenhum julgado nesse sentido, e, sujeição a processo administrativo que poderá, eventualmente, observado o princípio da proporcionalidade, culminar na cassação do registro no Conselho Estadual de Medicina onde atua esse médico por violar preceitos éticos fundamentais que norteiam essa profissão.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-140/consideracoes-etico-juridicas-oriundas-da-relacao-medico-paciente-em-decorrencia-de-submetimento-a-tratamento-de-efeito-placebo/
Fertilização in vitro: a questão dos embriões excedentários e o direito pátrio
O presente trabalho tem por escopo abordar a questão da fertilização in vitro, especialmente quanto aos seus desdobramentos relativos aos embriões excedentários e à sua criopreservação, trazendo à baila os aspectos jurídicos relacionados ao assunto. Serão analisados no transcorrer da pesquisa a legislação pátria em vigor, bem como suas lacunas, considerações doutrinárias, orientações do conselho federal de medicina, além de dados estatísticos extraídos de órgãos oficiais. Objetivou-se ao final, após a análise dos subsídios coletados, fomentar uma reflexão mais aprofundada e conclusiva sobre os direitos concernentes ao embrião in vitro.
Biodireito
Introdução A fertilização in vitro é um tema que merece análise cuidadosa, critério, ética e prudência, não somente quanto aos procedimentos científicos adotados e à conduta médica, como também, e principalmente, quanto à legislação que deve nortear tais técnicas. Antes de tudo, convém ressaltar que o assunto em tela diz respeito a um direito inviolável, o direito à vida, preceituado no artigo 5.º da Constituição Federal. Assim, a Ciência deverá caminhar em consonância com o Direito, não podendo negligenciar as diretrizes éticas ditadas pelo Biodireito, assim como a legislação infraconstitucional não poderá desconsiderar os ditames da Lei Maior. Não resta dúvida de que o desenvolvimento científico emerge cada vez mais expressivo, descortinando técnicas que há uma década não se imaginava possível, clareando um horizonte de esperanças àqueles que desejam vivenciar a maternidade e a paternidade e não logram pela via natural, merecendo, portanto, tais pesquisas e avanços toda consideração. O problema surge quando interesses egoístas e financeiros pretendam sobrepujar a ética e o respeito à vida, cabendo ao Direito delinear as diretrizes e os limites da Ciência, a fim de que sonhos se transformem em realidade e não em pesadelos. O presente trabalho visa, de forma despretensiosa, aclarar os principais aspectos científicos e legais acerca da fertilização in vitro, sobretudo os concernentes aos embriões excedentários e à sua criopreservação, propiciando ao leitor uma visão mais abrangente do tema e, principalmente, um olhar crítico acerca do assunto. Iniciaremos o trabalho com as formas de reprodução assistida: 2. Desenvolvimento 2.1. Classificação das formas de Reprodução Assistida Com relação à utilização dos gametas, a reprodução assistida pode ser classificada resumidamente de duas formas: a) Reprodução assistida homóloga: Esta forma é a mais comum. São utilizados gametas do próprio casal. Assim, o material utilizado para a formação do embrião será o espermatozoide do homem e o óvulo da mulher. b) Reprodução assistida heteróloga: São utilizados gametas de terceiros. Poderá ser parcial, quando um dos gametas é doado por terceiro e o outro por um dos cônjuges, ou total, quando os dois gametas são doados por terceiros. Assim, a reprodução humana assistida consiste nos procedimentos para unir, de maneira artificial, os gametas masculino e feminino, originando, assim, um ser humano. A fertilização in vitro é um recurso alternativo tanto para disfunções masculinas, quanto para femininas. Entre os fatores masculinos, estão alterações importantes da qualidade ou do número de espermatozoides. Do lado feminino, diversas causas impossibilitam a fecundação natural, entre elas, a endometriose, obstrução das tubas uterinas e a diminuição da qualidade dos óvulos.[1] A inseminação artificial se processa pelo método GIFT (Gametha Intra Fallopian Transfer), tratando-se da inoculação do sêmen na mulher. Já a fertilização in vitro ou ectogênese concretiza-se pelo método ZIFT (Zibot Intra Fallopian Transfer). Aqui, o óvulo da mulher é retirado, e com o sêmen do marido ou de outro homem, é fecundado na proveta. Posteriormente, o embrião é introduzido no seu útero ou no de outra mulher. Será sobre esse método e suas consequências que nos deteremos. Surgem com a fertilização in vitro várias situações: “a) fecundação de um óvulo da esposa ou companheira com esperma do marido ou convivente, transferindo-se o embrião para o útero de outra mulher; b) fertilização in vitro com sêmen e óvulo de estranhos, por encomenda de um casal estéril, implantando-se o embrião no útero da mulher ou no de outra; c) fecundação, com sêmen do marido ou companheiro, de um óvulo não pertencente à sua mulher, mas implantado no seu útero; d) fertilização, com esperma de terceiro, de um óvulo não pertencente à esposa ou convivente, com imissão do embrião no útero dela; e) fecundação na proveta de óvulo da esposa ou companheira com material fertilizante do marido ou companheiro, colocando-se o embrião no útero da própria esposa (convivente); f) fertilização, com esperma de terceiro, de óvulo da esposa ou convivente, implantando em útero de outra mulher; g) fecundação in vitro de óvulo da esposa (companheira) com sêmen do marido (convivente), congelando-se o embrião para que, depois do falecimento daquela, seja inserido no útero de outra, ou para que, após a morte do marido (convivente), seja implantado no útero da mulher ou no de outra.” (DINIZ, 2010, p. 569). A fertilização in vitro (FIV), conforme explica Rubens Paiva, em linhas gerais, funciona da seguinte forma: “1) A mulher passa por uma estimulação ovariana, por meio de injeções de hormônio, por cerca de 8 a 11 dias; 2) Por meio de outras dosagens de medicamentos, os óvulos crescem e amadurecem; 3) É feita uma punção transvaginal guiada por ultrassom, com a paciente levemente sedada; 4) É feita a coleta do sêmen do homem; 5) No laboratório, os óvulos e os espermatozoides são avaliados quanto à qualidade e tratados; 6) Óvulos e espermatozoides são colocados em contato e incubados por 17 a 20 horas. A fecundação ocorre na incubadora. 7) Depois de fecundados, embriões ficam alguns dias no laboratório e então  são transferidos para o útero. Podem ser transferidos até quatro embriões de cada vez.” (Jornal da Tarde, 15-01-2009). O primeiro bebê de proveta foi Louise Brown, nascida no Royal Oldhan and District General Hospital de Lancashire, perto de Manchester, em 26 de julho de 1978. Lesley Brown era estéril por obstrução das trompas de Falópio, e um óvulo maduro seu foi extraído e, com o sêmen do marido John Brown, fecundado em laboratório e implantado no útero de Lesley. Anna Paula Caldeira foi a primeira criança gerada por este método no Brasil, nascida em 7 de outubro de 1984. 2.2 Direito Pátrio A legislação brasileira carece de normatização acerca da fertilização in vitro, bem como os seus respectivos desdobramentos. A Lei de Biossegurança – Lei 11.105/2005,[2] sancionada pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva, ao tratar da utilização de células-tronco embrionárias para pesquisa causou polêmicas, sendo a principal delas com relação ao artigo 5º, que libera as pesquisas com células-tronco embrionárias no país: “Art. 5.º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I – sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. § 1.º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. § 2.º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa. § 3.º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.” A questão foi levada ao Supremo Tribunal Federal em maio de 2005 pelo ex-procurador da República Cláudio Fonteles, que considera o artigo inconstitucional. Ele argumenta que o artigo 5.º da Constituição Federal garante o direito à inviolabilidade da vida humana, e que os embriões são seres vivos. Em 29 de maio de 2008, foi decidida no STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade[3] (ADI) 3526, proposta por Fonteles, que arguiu várias inconstitucionalidades na Lei de Biossegurança. O relator do processo foi o Ministro Carlos Ayres Brito que votou favorável às pesquisas com células-tronco embrionárias. Por 6 (seis) votos a 5 (cinco), os Ministros julgaram improcedente a ação, por considerarem que as pesquisas com células-tronco embrionárias não violam o direito à vida e a dignidade da pessoa humana, preceitos que embasaram a argumentação acerca da inconstitucionalidade. O grande problema que envolve a questão dos embriões é justamente a falta de legislação que assegure categoricamente os seus direitos. Com o intuito de tutelar esses direitos, em 2002, o Deputado Ricardo Fiúza encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 6.960,[4] propondo a alteração do artigo 2º da Lei de Introdução das Normas de Direito Brasileiro, que passaria a ter a seguinte redação:  “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do embrião e do nascituro”. Com isso, o embrião passaria a gozar dos mesmos direitos do nascituro. Entretanto, na Comissão de Constituição, Justiça e Redação, cujo relator foi o Deputado Vicente Arruda, a alteração foi rejeitada com o seguinte argumento: “a matéria deveria ser tratada em lei especial pelos aspectos técnicos e éticos que refogem o direito”. Nota-se o quão urgente é o estabelecimento de uma legislação especial para assegurar os direitos do embrião, notadamente, assegurando-lhe o direito à própria vida. 2.3. Considerações sobre os embriões excedentários, criopreservação e descarte. Como verificado, a técnica da fertilização in vitro consiste em produzir em laboratório um grande número de embriões a partir dos oócitos e espermatozoides doados. A  problemática é que somente alguns embriões serão implantados no útero materno e os demais serão congelados (criopreservação), para serem utilizados posteriormente, ou não. A Resolução 1.957/10[5] do Conselho Federal de Medicina5 estabelecia que os embriões congelados não poderiam ser destruídos ou descartados, devendo permanecer nesta condição por tempo indeterminado. Em 2013, a resolução 2.013 do mesmo Conselho,[6] revogou esta disposição, considerando que os embriões criopreservados com mais de 5 (cinco) anos poderão ser descartados, se esta for a vontade dos pacientes, e não apenas para pesquisas de células-tronco, conforme previsto na Lei de Biossegurança. Esta Resolução tem sido alvo de muitas críticas em razão dos embriões excedentários. A primeira questão é: Por que a resolução 1.957/10 proibia a destruição ou o descarte de embriões? E segundo: Por que admite-se o congelamento dos embriões excedentários nas duas resoluções? Pelo simples fato de se tratarem de vida. Com isso, surge a pergunta natural: a criopreservação e posterior descarte é um procedimento ético ou criminoso? Não estaria ferindo, de forma grotesca, os direitos constitucionalmente assegurados de inviolabilidade da vida e dignidade da pessoa humana? O art. 2.º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro[7] ao preceituar que: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”, deixa claro o dever de proteção do embrião. Ainda que a norma não contenha expressamente a palavra embrião, a concepção determina o momento da existência do ser humano e da tutela de seus direitos, que se dá a partir da fecundação do óvulo pelo espermatozoide, seja dentro ou fora do útero materno. Nesse sentido preceitua Maria Helena Diniz: “O embrião humano é um ser com individualidade genética, dotado de alma intelectiva e de instintos. Os cientistas descobriram que os genes responsáveis pelo crescimento embrionário, denominados “hox”, atuam, no ser humano, com grande velocidade nos primeiros dias da concepção, cumprindo a fantástica tarefa de estabelecer a estrutura do corpo: a cabeça, os membros e os órgãos. Assim sendo, o embrião, por ter carga genética, é um ser humano in fieri, merecendo proteção jurídica, desde a concepção, mesmo quando ainda não implantado no útero ou criopreservado. Por isso, deverá haver tutela jurídica desde a fecundação do óvulo em todas as suas fases (zigoto, mórula, blástula, pré-embrião, embrião e feto).” (DINIZ, 2010, p.595). Ensina Damásio de Jesus: “É incontestável que a retirada da vida humana (até mesmo pelo aborto) é crime contra a pessoa. A interrupção da vida de um embrião congelado, como qualquer outra forma de interrupção voluntária da vida, também seria um fato antijurídico. Há de se salientar, contudo, que: Não basta que o fato seja antijurídico. Exige-se que se amolde a uma norma penal incriminadora. Daí a questão da adequação típica, que consiste em a conduta subsumir-se no tipo penal.” (JESUS, 2002, p. 269). O grave problema de uma permissão jurídica para o congelamento também é ressaltado por Maria Hena Diniz:  “[…] pois se com o embrião já se tem vida humana, diante de seu valor absoluto, como congelá-lo? Como gerar vida e congelá-la? Quais as consequências físicas e psíquicas que adviriam desse congelamento? Se, em ratos congelados em estado embrionário, apresentaram-se alterações sensoriais e motoras, o que não poderia ocorrer com embriões humanos? Diante de tantos problemas, seria preciso a proibição de conservação de embriões, a longo prazo, em hibernação, bem como a vedação de bancos de embriões congelados, evitando sua criopreservação com fins mercantis ou experimentais, e, se impossível for tal proibição, evitar que seu armazenamento passe de 10 anos, devendo, em caso de morte de um dos cônjuges, o sobrevivente decidir sobre o seu destino, desde que não o destrua ou comercialize. […]” (DINIZ, 2010, p. 603). Atualmente, precede à fecundação in vitro, um tratamento hormonal da mulher visando uma superovulação, a fim de que vários óvulos sejam fertilizados na proveta. Do total liberado (média de 15 óvulos) e, posteriormente, fertilizados, serão implantados, no máximo, quatro embriões no útero. O que fazer, então, com os embriões excedentes? Lamentavelmente, inexiste proteção jurídica. O projeto de Lei n. 90/99,[8] atualmente arquivado, pretendia regulamentar as técnicas de reprodução humana, punindo o congelamento de embriões com prisão de 6 a 20 anos, possibilitando aos médicos a retirada de apenas 3 ou 4 óvulos da mulher. Desta forma, extinguiria o problema dos excedentes, ao reduzir o número de embriões a serem implantados no útero. Com isso, se por um lado, aumenta-se a possibilidade de o tratamento fracassar, por outro, respeita-se o direito inviolável à vida. Outro problema advindo da implantação de vários embriões no útero é o risco de redução embrionária, para se evitar gravidez múltipla, o que, para Maria Helena Diniz, seria uma prática abortiva: “Apesar de essa gestação poder, às vezes, provocar nascimentos prematuros e até mesmo riscos de alguma das crianças apresentar cegueira, problema respiratório, debilidade mental por falta de oxigenação cerebral, não se deveria aceitar tal redução. Se é possível que alguns dos embriões implantados sejam expelidos espontaneamente ou se desprendam da parede uterina naturalmente, para que reduzi-los? Hoje, há tendência em transferir apenas dois embriões, para que não haja gestação tripla ou de número superior, nem redução de embriões.” (DINIZ, 2010, p.607). A Resolução 2.013/13 do Conselho Federal de Medicina,[9] que trata das normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, estabelece que: “O número máximo de oócitos e embriões a serem transferidos para a receptora não pode ser superior a quatro, sendo: a) mulheres com até 35 anos: até 2 embriões; b) mulheres entre 36 e 39 anos: até 3 embriões; c) mulheres entre 40 e 50 anos: até 4 embriões; d) nas situações de doação de óvulos e embriões, considera-se a idade da doadora no momento da coleta dos óvulos. Quanto à criopreservação de embriões, preceitua: 1– As clínicas, centros ou serviços podem criopreservar espermatozoides, óvulos e embriões e tecidos gonádicos; 2 – O número total de embriões produzidos em laboratório será comunicado aos pacientes, para que decidam quantos embriões serão transferidos a fresco, devendo os excedentes, viáveis, serem criopreservados; 3 – No momento da criopreservação os pacientes devem expressar sua vontade, por  escrito, quanto ao destino que será dado aos embriões criopreservados, quer em caso de divórcio, doenças graves ou falecimento de um deles ou de ambos, e  quando desejam doá-los. 4 – Os embriões criopreservados com mais de 5(cinco) anos poderão ser descartados se esta for a vontade dos pacientes, e não apenas para pesquisas de células-tronco, conforme previsto na Lei de Biossegurança.” Com isso, além da polêmica questão do congelamento de embriões já validado pela Resolução 1.957/10, agrava-se a questão com a possibilidade de descarte dos embriões pela Resolução 2.013/13. Essa diretriz, sem respaldo legal, redefiniu o destino de milhares de embriões congelados. A lei de Biossegurança permitiu a utilização de embriões congelados para pesquisa há três anos ou mais, na data da publicação da Lei (28.03.2005), ou que, já congelados na data da publicação, depois de completarem três anos, contados a partir da data de congelamento. Segundo a Anvisa[10], 25.120 embriões haviam sido criopreservados até 28.03.2005. Com isso, a medida deu possibilidade de destino para outros 22.470 embriões que completariam os 36 meses de criopreservação até 28 de março de 2008. Daí para frente, a técnica de fertilização in vitro ganhou cada vez mais adeptos e formou um exército de embriões congelados nos Bancos de Células e Tecidos Germinativos (BCTG). Segundo o 5.º SisEmbrio[11], relatório publicado anualmente pela Anvisa, entre 2008 e 2011 foram criopreservados 60,9 mil embriões no país. Em 2012, 32.181 embriões. Em 2013, 38.062. Em 2014, 48.812 embriões foram congelados. Diante deste número alarmante, qual será o quadro daqui a cinco, dez, vinte anos? Será um embrionicídio generalizado a solução? Até quando o embrião continuará sendo tratado como coisa? “Urge salvaguardar a ‘vítima silenciosa’, o embrião descartado por ser menos viável, que fica esquecido no congelador, correndo o risco de ser simples material biológico a ser usado numa experiência.” (DINIZ, 2010, p. 603). 3. Conclusão Diante do exposto, não resta dúvida que se faz urgente a regulamentação do assunto em tela por lei especial, que assegure integramente ao embrião os postulados constitucionalmente assegurados de justiça, liberdade, igualdade de tratamento, dignidade da pessoa humana e, sobretudo, proteção à vida. As pesquisas e técnicas de fertilização in vitro têm o seu legítimo valor, porém o interesse do embrião está sendo completamente desconsiderado e vilipendiado, por meio de resoluções que desrespeitam a vida e desconsideram os direitos da pessoa humana, e também, por uma omissão criminosa dos legisladores em proteger ao menos o que reza o próprio Direito pátrio: a vida humana. Por todos os argumentos apresentados, entendemos que o embrião in vitro é sim pessoa, exatamente da mesma maneira que o é o embrião in vivo, fruto de fertilização convencional. A ele é devida a tutela em todos os aspectos: à vida, à proteção de sua integridade física e moral, à dignidade e, ainda, se lamentavelmente vier a ser congelado e esquecido, o direito de ser adotado, e jamais ser condenado à destruição!
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-139/fertilizacao-in-vitro-a-questao-dos-embrioes-excedentarios-e-o-direito-patrio/
A maternidade de substituição como solução e como problema
A legislação discriminatória ou omissa que rege a Maternidade de Substituição pode ser responsável por diversos atos médicos clandestinos e causadora de graves problemas sociais, assim como pode acarretar atrasos no avanço tecnológico, na cura de doenças e auxílio em pesquisas científicas. A infertilidade é uma doença que atinge cada vez um percentual maior de pessoas no mundo e embora a medicina tenha avançado e encontrado vários métodos de tratamento para os casos de impossibilidade de reprodução de forma natural, o atraso na normatização dos tratamentos e a falta de consenso entre as legislações existentes traz transtornos para as partes envolvidas, tendo algumas vezes que recorrer ao judiciário, para decidir casos que já poderiam ter sido normatizados pelo processo legislativo infraconstitucional. A justiça precisa adequar-se a realidade social e ser célere o suficiente para atender seus cidadãos de forma justa, igual e livre.
Biodireito
INTRODUÇÃO Este artigo versa sobre as técnicas de Procriação Medicamente Assistida[1]– PMA, dando ênfase ao método chamado de Maternidade de Substituição, uma vez que o avanço da ciência médica e tecnológica permitiu que pessoas com problemas de infertilidade pudessem recorrer a métodos artificias para alcançar o desejo e o direito de constituir uma família e gerar descendentes, podendo beneficiar-se do auxílio de terceiros como doadores de material genético ou cedendo o útero para gestação de um bebê. Buscou-se enfatizar a técnica de Maternidade de Substituição por tratar-se do método que possui a maior problemática nas áreas sociais, políticas, éticas, religiosas e jurídicas. Embora a PMA não possua uma legislação unitária nos países – principalmente ocidentais – existe um tácito aceite na sua utilização, mesmo nos locais que não formalizaram o seu uso. Porém, no caso da Maternidade de Substituição ou Barriga de Aluguel, como também é conhecida, existe grande resistência não só no âmbito religioso, como na comunidade jurídica que está longe de encontrar um consenso sobre o assunto. O artigo está dividido em capítulos, cada um vinculado a uma questão pertinente sobre o tema abordado. No início discorreu-se sobre a infertilidade[2], pois tal foi o problema que deu origem a necessidade de buscar formas alternativas de contorna-la, conforme demonstra a história da humanidade desde relatos anteriores a era cristã. Em seguida, apresenta-se as formas de tratamentos para a Reprodução Artificial, assim como as problemáticas decorrentes da prática da Maternidade de Substituição, buscando elencar um panorama geral sobre os benefícios e prejuízos que dela podem surgir. No capítulo 3 faz-se um comparativo sobre as legislações que tratam do assunto em alguns países e as diversas diferenças que ocorrem entre eles. Por último, o artigo faz uma avaliação da realidade legislativa portuguesa e recorre ao equilíbrio entre o direito de igualdade, ao respeito aos princípios basilares constantes na Declaração Universal dos Direitos Humanos e principalmente a proteção ao indivíduo para o exercício do direito constituir família que deve ser garantido pelo Estado, independentemente de sua opção sexual ou econômica, sem haver qualquer tipo de discriminação. O artigo intenciona acrescentar ao debate opiniões contrárias àquelas exclusivamente religiosas ou políticas, além de chamar a atenção para os grupos excluídos dos beneficiários dos tratamentos nas normas existentes. Em razão de não existir uma corrente doutrinária majoritária sobre querela aqui debatida e por tratar-se de um assunto demasiadamente complexo, não há pretensão de esgotar as questões que cercam a PMA ou a Maternidade de Substituição. A pesquisa desenvolvida para concepção do artigo, foi concebida através da metodologia nas esferas investigativa e do ordenamento jurídico, utilizando artigos, livros, monografias de diversos autores, assim como a experiência pessoal.   1. A INFERTILIDADE E ALGUMAS DE SUAS CONSEQUÊNCIAS NO DECORRER DA HISTÓRIA HUMANA Desde a antiguidade “nascer, crescer, se reproduzir e morrer” é a máxima que explica o ciclo natural da vida, dando ao homem a função de perpetuar sua espécie durante a sua existência e transferir aos seus descendentes a mesma obrigação. Na etapa reproduzir-se está explícito a importância da fertilidade, pois é através dela que se pode concluir com êxito a terceira fase da vida e então ficar apto para aguardar o fim da jornada. Tal afirmação pode parecer trágica ou até absurda para realidade que vivemos no ano de 2015, quando tanto se discute o valor da vida, a valorização do ser humano e todas as conquistas nos diversos aspectos sociais existentes, já que o homem apresenta diariamente inovações para melhorar a sua qualidade de vida. Porém, intenta-se demonstrar não de forma taxativa, mas a partir de uma abordagem científica que a incapacidade de reprodução causa grandes traumas e danos emocionais, algumas vezes irreversíveis. “A esterilidade tem sido considerada uma experiência de dilaceração biográfica, caracterizada pelo sofrimento e pelos conflitos pessoais vividos pelos homens e mulheres que atravessam esta situação (Bury, 1982). A falta da concretização do projeto parental leva à ruptura do afeto colocado nesse filho desejado (Hardy, 1998).”[3] Podemos ver ao longo da história da civilização humana que a fertilidade tornou-se sinônimo de grandeza e consequentemente a falta dela, uma espécie de castigo. Para o pai da psicanalise Sigmund Freud, nas raízes dessa ideia está presente o desejo da imortalidade e o aperfeiçoamento da espécie[4]. A mitologia grega, antes do cristianismo já pregava a importância e o valor da fecundidade para os seres humanos. No Livro de Ouro da Mitologia, Thomas Bulfinch conta que o homem fora criado pelos deuses com todos os dons necessários para garantir a sua preservação na terra. “Prometeu tomou um pouco dessa terra e, misturando-a com água, fez o homem à semelhança dos deuses. Deu-lhe o porte ereto, de maneira que, enquanto os outros animais têm o rosto voltado para baixo, olhando a terra, o homem levanta a cabeça para o céu e olha as estrelas. Prometeu era um dos titãs, uma raça gigantesca que habitou a Terra antes do homem. Ele e o seu irmão Epimeteu foram incumbidos de fazer o homem e assegurar-lhe, e aos outros animais, todas as faculdades necessárias à sua preservação.”[5] Ao fazer do homem a sua semelhança, os deuses depositavam sobre ele a responsabilidade de dar continuidade a sua espécie, sendo uma das principais características a fertilidade. Não só na grega, mas também nas mitologias romana, oriental Zoroastro, nórdica e hindu os descendentes dos deuses eram a dádiva de seus poderes. A exemplo disso, o hinduísmos passou a ser considerado mais que um mito, tornando-se uma religião com crescente adeptos e devotos no oriente. “Brahma é o criador do universo e a fonte de onde emanaram todas as divindades individuais […]. Brahma resolveu dar à terra habitantes que fossem emanações diretas de seu próprio corpo. Assim, de sua boca saiu o filho mais velho, Brâmane (o sacerdote), ao qual ele confiou os quatro Vedas. Do braço direito, saiu Xátria (o guerreiro), e do braço esquerdo a esposa do guerreiro. Suas coxas produziam os Vaissias, do sexo masculino e do sexo feminino e, finalmente, de seus pés surgiram os Sudras. Os quatro filhos de Brahma, tão significativamente vindos ao mundo, tornaram-se os pais do gênero humano.”[6] Na religião, os livros sagrados como a Bíblia do cristianismo, também, encontramos várias escritos onde fica claro a importância da fertilidade para a história do homem. As mulheres inférteis ou que não conseguiam engravidar eram vistas como amaldiçoadas, pois eram ocas e secas, delas não se podiam colher frutos. Gerar um filho era um presente de Deus e àquelas que não o recebiam, clamavam por um milagre. Em diversos momentos dos evangelhos, assim como nos salmos, encontram-se relatos de Jesus operando a cura: “Dá um lar a estéril, e dela faz uma feliz mãe de filhos. Aleluia!”.[7] Maria, mãe de Jesus, mesmo virgem foi a responsável a trazer para terra o filho de Deus que tiraria os pecados do mundo. Em face disso, sendo os povos ocidentais em sua grande maioria cristãos, as mulheres já crescem na expectativa de procriar-se e consolidar um família. Ao pesquisar a história da humanidade, Friedrich Engels, demonstra as várias fases e formas que foram passando as famílias e sua formação, sendo relatado nesse desenvolvimento histórico a possibilidade de repudia, desfazimento do casamento ou até a troca da mulher que fosse estéril[8]. A realidade contemporânea não é mais a mesma, porém a conquista que permite a mulher ser reconhecida e valorizada por outros aspectos – além dos domésticos – ainda é recente, o que faz-nos conviver com gerações que ainda possuem tal concepção. “A mulher tem direitos porque tem seu lugar no lar, sendo a encarregada de olhar para que não se extinga o fogo sagrado. É a mulher, sobretudo, que deve estar atenta a que este fogo se conserve puro, invoca‐o e oferece‐lhe sacrifícios. Tem pois também o seu sacerdócio. Onde a mulher não estiver, o culto doméstico acha‐se incompleto e insuficiente. Grande desgraça para os gregos é ter o “lar sem esposa”. Entre os romanos a presença da mulher é de tal modo indispensável ao sacrifício que o sacerdote, ficando viúvo, perde o seu sacerdócio.”[9]  A história, também demonstra o valor de um homem fecundo, que é capaz de ter muitos filhos e dar continuidade a sua estirpe, como pode ser visto nos principados europeus que mantem até os dias atuais fortunas e títulos de nobreza resguardados pelos herdeiros de ‘sangue azul’. “Também com Henrique IV da França (1553-1610) vê-se a importância da fertilidade, mesmo fora do casamento, e sua relação com a nobreza. Soberano francês nascido em Pau, no sul da França, conhecido como o fundador da dinastia de Bourbon, filho de Antonio de Bourbon, duque de Vendôme, e de Joana III de Albret, rainha de Navarra, o rei foi assassinado nas ruas de Paris por um fanático chamado François Ravaillac. Maria de Médicis, princesa da Toscana e sua segunda esposa (1600), encarregou-se da regência em função da menoridade do príncipe herdeiro e seu filho primogênito, o futuro Luís XIII. Apesar de não ter tido filhos com a primeira esposa, com a princesa Maria de Médicis, o rei teve seis crianças, e com a amante, Gabrielle d'Estrées, mais quatro.”[10] Buscando realizar o “milagre” a ciência caminha a passos largos, o que há poucas décadas era impossível, agora pode ser feito em clínicas e hospitais no mundo inteiro. A inteligência sem limites do homem disponibilizou às pessoas com problemas de infertilidade ou esterilidade a possibilidade de reproduzir-se, através de técnicas de Procriação Medicamente Assistida. A reprodução humana, na segunda metade do século XX, teve um grande avanço, podendo ser considerado o marco inicial de um período de grandes realizações. Na década de 70, com o bem sucedido procedimento de Fertilização in vitro nasceu Louise Brown, o primeiro bebê humano de proveta e junto nasceu a expectativa de várias famílias em concretizar o sonho de ser pai e/ou mãe. Ao observar a evolução da humanidade, vê-se na grande maioria da população a manutenção do desejo de cumprir as fases da vida e o anseio de realizar-se como homem/mulher através da herança genética deixada em seus descendentes. Logo, quando a realidade é contrária a essa aspiração, surgem problemas de todas as ordens. “O advento de uma concepção é uma questão que atravessa gerações, pois situa tanto uma relação com a história materna e paterna, quanto com todas as gerações que a precederam. Se o que estamos dizendo é que a maternidade e a paternidade são o resultado de um complexo tecido simbólico, cujas raízes remontam à “pré-história” do indivíduo e que sobre elas erigem-se desejos de matizes singulares, defrontar-se com uma impossibilidade de realização deste desejo, pode provocar efeitos devastadores sobre o psiquismo humano.”[11] A realidade do século XXI, com o avanço das ciências médicas reprodutivas, a tecnologia e os diversos métodos de tratamento para infertilidade, esterilidade ou impossibilidade de uma gravidez de forma natural, disponibiliza diversas possibilidades de realizar a parentabilidade aos cidadãos, porém, surgem também, modificações nos sistemas de filiação. Ocorre que os sistemas legislativos – de forma geral – não conseguem acompanhar tanto avanço. A psicóloga Débora Farinati[12] esclarece as mudanças que ocorrem a partir da cisão entre natureza e a cultura com o advento das Reproduções Artificiais através da visão da antropóloga Cláudia Fonseca: “Na literatura científica destacam-se três descobertas: 1) a pílula contraceptiva, que permitiu cópula sem concepção; 2) a fertilização in vitro, que permitiu a gravidez sem cópula e 3) a barriga de aluguel, que permitiu a maternidade sem gestação. Afirma-se que, uma vez desfeitas as antigas verdades da reprodução, pela tecnologia moderna, a “perda da inocência” é irreversível. Fonseca acrescenta uma quarta descoberta que marca de forma contundente a conceituação de família, as relações de gênero e parentesco: o teste de DNA para verificação dos laços de paternidade.”[13] Com tantas descobertas é chegado o momento em que se precisa emparelhar a religião, a justiça, a medicina e as normas legislativas ao tratar de Procriação Medicamente Assistida, mantendo-se a ética, todavia considerando os aspectos psicológicos e humanos daqueles que necessitam de tal remédio, conforme Daury Fabriz sintetiza “A ética deve ser observada em todos os setores da vida humana, visto que as partes sempre implicam o todo.”[14] 3. PROCRIAÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA E AS POLÊMICAS SOBRE A MATERINIDADE DE SUBSTITUIÇÃO A Procriação Medicamente Assistida é um tipo de tratamento médico, desenvolvido como forma subsidiária àqueles utilizados para pessoas com dificuldades ou impossibilidades de procriar-se de forma natural. O tratamento pode ser desenvolvido por alguns métodos artificiais, que serão utilizados a partir de prévia avaliação médica, por especialista no assunto e segundo as condições clínicas do paciente. “Entende-se por técnicas de Reprodução Humana Assistida, também denominada técnica de Reprodução Medicamente Assistida, o conjunto de procedimentos que visa obter uma gestação substituindo ou facilitando uma etapa deficiente no processo reprodutivo, através da união dos gametas masculino e feminino. Porém, dependendo do problema apresentado pelo casal haverá a indicação médica de uma ou outra técnica apropriada para o caso específico.”[15] Os tratamentos de reprodução humana podem ser utilizados para tratar mulheres e homens inférteis ou estéreis, casais com relações homossexuais e celibatários pela incapacidade procriativa e, ainda, aqueles casais que estão impossibilitados por outras doenças. A Organização Mundial de Saúde – OMS estima que a infertilidade atinge de 60 a 80 milhões de pessoas em todo o mundo. Em Portugal, a Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução calcula que 9% dos casais precisam de algum tipo de tratamento para conseguir engravidar[16]. Vários são os métodos que poderão ser utilizados de acordo com situação, adequando-se a realidade do paciente, podendo esses serem homólogos ou heterólogos. Os homólogos são aqueles onde todo o material genético é do próprio casal que está fazendo a RMA, e ainda, a gestação será feita pelo útero da mesma mulher. Mais complexo porém, são os casos de tratamentos que dependem de uma terceira pessoa como doadora de um dos elementos essenciais para a reprodução, como sêmen, óvulo ou útero. Nesses casos, as técnicas utilizadas serão heterólogas. A Reprodução Artificial é tão polêmica quanto as questões sobre aborto, eutanásia ou pena de morte, sendo ainda tratados como tabus para sociedade contemporânea. Passou-se trinta e seis anos desde o nascimento de Louise Brown e a PMA não alcançou um entendimento pacífico, mas as três décadas trouxeram algum respeito e a liberdade – em diversos países – de poder faze-la, seja de acordo com o permitido pela lei ou pelo que não é proibido por ela, nos casos de sua ausência. “O que o torna possível uma verdadeira família não é a maneira pela qual ela se constituiu, mas o amor, o respeito e a alegria pela vinda do outro. Em todas as doenças humanas, a incapacidade de reproduzir-se naturalmente é uma das que mais nos torturam. E, para curá-las, o homem criou a medicina reprodutiva. E esta, por sua vez, criou a reprodução assistida.”[17] Para melhor entendimento, segue abaixo um quadro com as hipóteses de tratamento de Procriação Medicamente Assistida existentes na atualidade[18]: Siglas: AID – Artificial Insemination by Donor (Inseminação por doador) AIH – Artificial Insemination by Husband (Inseminação por marido) FIVET – Fertilização in vitro GIFT – Gametha Intra Fallopian Transfer (Transferência intratubária de gametas) ZIFT-H – Zibot Intra Fallopian Transfer (Transferência intratubária de zigotos) Ressalta-se que na tabela acima não estão indicadas as hipóteses específicas de monoparentalidade, que diferenciam-se por não possuir uma relação de casal, sendo indispensável o auxílio de um doador ou doadora, que substituirá a figura de esposa/marido ou companheiro (a). Nesses casos, a criança terá apenas mãe ou pai, popularmente chamados de “produção independente”. Sem a intenção de aprofundar-se no assunto, mas apenas como referência para o tema principal do objeto desse trabalho, uma vez que o citado grupo de pacientes poderia ser tema de longas pesquisas, chama-se a atenção para o celibatários e homossexuais, pois não possuem qualquer deficiência reprodutiva, porém precisam recorrer as técnicas de PMA para alcançar o desejo de constituir família, situações que não constam nas estatísticas dos órgãos reguladores de reprodução humana, todavia precisam ser respeitados e dedicar-lhes os mesmos cuidados que aos inférteis ou estéreis. “As modernas técnicas da medicina romperam o liame – aparentemente indissociável – entre procriação e sexo, tornando viável a reprodução na ausência de qualquer ato sexual. E mais: avançaram de forma a permitir que uma situação, até então pensada para um par – invariavelmente de sexo diferente – pudesse ser pensada a um, ou por um casal do mesmo sexo. Em resumo: deixou de forçoso que para procriar, uma mulher tivesse que se unir – física ou emocionalmente – a um homem e vice­versa.”[19] Dentre os métodos disponíveis pela medicina para o tratamento de casos de infertilidade e esterilidade, a Maternidade de Substituição é a forma mais problemática e menos aceita pela sociedade, uma vez que é necessária a participação de uma terceira pessoa, a qual não possui qualquer deficiência reprodutiva, não transfere ao bebê gerado sua carga genética (existe exceções conforme será visto a seguir), e ainda, não terá sobre ele qualquer direito. “Sarai, mulher de Abrão, não lhe tinha dado filho; mas, possuindo uma escrava egípcia, chamada Agar, disse a Abrão: "Eis que o Senhor me fez estéril; rogo-te que tomes a minha escrava, para ver se, ao menos por ela, eu posso ter filhos." Abrão aceitou a proposta de Sarai”.[20] Conforme pode se observar no quadro apresentado, há no mínimo seis hipóteses em que a maternidade de substituição poderá ser utilizada, porém de todas as possibilidades é a última alternativa desejada pelos pais biológicos (ou que receberam a doação de material genético), pelos riscos e consequências que dela podem ocorrer. A maternidade de substituição pode ser parcial ou total, que diferenciam-se pela doação do óvulo, ou seja, no processo parcial a mãe substituta além de gestar a criança, também fornecerá o óvulo. Na substituição total, o sêmen e o óvulo serão de terceiros e a mãe substituta cederá somente o útero para a gestação.[21] Casais homossexuais masculinos e mulheres que possuem problemas ou doenças incapacitantes para gravidez buscam nessa técnica a real possibilidade de alcançar a reprodução, de construir sua família, de perpetuar sua espécie e dar continuidade a sua geração. Porém tal solução acarreta vários problemas no âmbito social, dentre esses o comércio que pode decorrer na utilização do útero. “Não se pode mais levar em conta apenas os aspectos genéticos, biológicos, gestacionais e afetivos, ou até mesmos legais, para a averiguação da parentalidade. Somos parte de algo muito maior, em que a doença da infertilidade fez com que a ciência viabilizasse a formação de vida fora do corpo, e mais, a gestação fora do útero materno, colaborando ainda a cessão de útero para que hipóteses de esterilidade do casal sejam suprimidas por meio de embrião doado por outrem e utilizando o útero emprestado de mulher estranha à relação, realizando‐se então o sonho da maternidade e da paternidade. Nesse mesmo sentido, devemos mencionar a possibilidade de utilização da técnica por pessoa que não detenha propriamente patologia que impossibilite a procriação. Ao aplicá‐la em casos em que o desejo de ser mãe ou pai é exercido por casais homossexuais, enfrenta‐se a inexistência de infertilidade ou de esterilidade, mas ela é utilizada em quem, no exercício de sua sexualidade, copula apenas com pessoas do mesmo sexo; não se pode exigir‐lhe que, para a obtenção de descendência, pratique sexo com quem o repulsa, em respeito à sua dignidade humana.” [22] Importante, ainda, analisar que a mãe substituta possa – ocasionalmente – não compartilhar com a criança carga genética, mas sofrerá todas as consequências de uma gravidez comum e os perigos que dela decorram. A mulher que se dispõe a enfrentar uma gravidez – e àqueles que dela beneficiar-se-ão – deve saber que seus corpo sofrerá várias alterações para acomodar aquela nova vida que em seu útero está sendo gerada, ficando desse modo muito mais vulnerável a doenças e infecções, extensivas ao feto, podendo ocorrer malformações fetais, anomalias ou até aborto.[23] Destaca-se, ainda, as consequências psicológicas que atingem a todos os envolvidos nesse processo, pais biológicos ou substitutos, além dos demais integrantes da família que compartilham as expectativas nestes casos. Para realizar um sonho, fazer valer o direito de constituir família, perpetuar seu nome, dentre outros motivos que fazem uma pessoa ou um casal buscar o auxílio de uma terceira pessoa para gestar a criança, algumas vezes até sem o apoio legislativo e judicial, acarreta consequências e incertezas de várias ordens. Contudo o papel da mãe substituta, embora em alguns países seja permitido como um contrato comércio, é de total entrega e altruísmo, todavia que enfrenta uma gravidez – que SEMPRE será imprecisa – em prol do amor, da compaixão e da caridade ao próximo, quando algumas vezes esse próximo nem ao menos é de sua família. “Na direção da ação humana encontram-se os princípios morais, mas os desejos altruístas nem sempre coincidem com estes pois refletem preferências que a moral não comtempla, surgindo na divisão entre desejos altruísta e princípios morais, o conceito de amor.”[24] As controvérsias são muitas, pois os métodos de Procriação Medicamente Assistida assim como podem ajudar na deficiência em reproduzir-se de forma natural, podem também causar várias dúvidas, como: O que deverá ser feito com os embriões criopreservados (congelados) que não foram utilizados no tratamento? Descarta-los não pode ser um tipo de aborto? É correto utilizar o material genético de um pessoa post mortem? Deve-se incentivar as técnicas de eugenia? Até que ponto essas técnicas serão prejudiciais? Além das inúmeras dúvidas, existe questões que decorrem da Maternidade de Substituição que também precisam ser legisladas e estudadas, pois trata-se de uma realidade contemporânea e urgente. A exemplo de como definir quem são os verdadeiros pais ou se a criança gerada por barriga de aluguel terá direito a herança no caso de morte dos pais “encomendantes” antes de seu nascimento. A imprensa internacional, já noticiou casos em que os pais que contrataram a mãe substituta se recusaram a ficar com o bebê em razão do mesmo de ter nascido com doenças físicas ou retardo mental. Não são raros, também, as vezes em que as Mães de aluguel não querem entregar o bebê. No meio de toda essa problemática, vale lembrar, que a criança nascida de forma diferente da considerada “natural”, precisa ser preparada para enfrentar uma sociedade que, ainda, não vê de forma “normal” alguns métodos de Reprodução Artificial, o que pode causar-lhe confusões e grandes traumas psicológicos. Uma recente publicação em revista eletrônica portuguesa, ilustra como há resistência e o preconceito sobre o assunto, quando toma como conceito de Maternidade de Substituição as excentricidades de famosos tidos como celebridades: “Realmente só pessoas que não são grandes seres humanos, como costuma dizer-se nessas colunas (o que será uma pessoa que não é um ser humano?), consegue não ficar rendida ao guarda-roupa das filhas de Sarah Jessica Parker, na verdade nascidas de uma anónima barriga de aluguer, à revelação de que Sofia Vergara encomendou um bebé a uma amiga porque a sua carreira não lhe permite ficar grávida – a invocação da atarefada vida social para não ficar gravida é fantástica quando proferida por alguém que se propõe ser mãe: ou não sabe o que a espera ou vai ser mãe por correspondência – ou ainda à novela em torno da chegada do novo filho de Elton John em cujo certificado de nascimento surge no lugar da mãe o homem com quem Elton John casou.”[25] É nesse conflito de emoções e razões que desenvolve-se o tratamento de Maternidade de Substituição, sendo proibido em alguns países, não legislados em outros, e até comercializado em uns. Ou seja, na falta de unidade dos sistemas jurídicos, reitera-se que a ética deve ser a norteadora das ações humanas também no que se refere a PMA. 4. A MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO E AS DIFERENTES VISÕES LEGISLATIVAS Assim como em outras áreas da vida de uma indivíduo, reproduzir-se a partir de métodos artificiais não depende exclusivamente da vontade do paciente, vários aspectos sociais precisam ser considerados e respeitados para evitar o desvio do objetivo científico e humano. Logo, o grande avanço tecnológico da medicina de reprodução, deve estar em concordância com as demais ciência que regem a vida humana. “As ciências e as técnicas, por outro lado, vêm demonstrando que seus resultados podem ser aproveitados por todos, implementados em benefício de toda a comunidade, e que a pesquisa científica, em busca de conhecer mais amplo, é algo que parte da própria essência humana. Resulta, de outro modo, a necessidade de se estabelecerem um desenvolvimento subjacente a um juízo crítico, a fim de se determinarem, racionalmente, quais reais necessidades, relevância e pertinência de determinada pesquisa científica, dos seus pressupostos, bem como os seus impactos no contexto sociopolítico. Isso sem mencionar outros aspectos, tais como os de corte epistemológicos e filosóficos aí envolvidos.”[26] Os dogmas religiosos, os costumes, a ética, a moral, os interesses sociais, a política e a economia são também norteadores, de forma geral e específica, do bom aproveitamento das ciências médicas e o resultado do que o seu uso trará a sociedade. Ou seja, quando as descobertas da ciência saem de um laboratório, não podem ser imediatamente usadas pelo indivíduo, sob risco de causar problemas as demais ciências que regem a sociedade. Surge, então, o conflito entre os interesses coletivos e os interesses individuais. O que pode acarretar a um cidadão estéril o seguinte questionamento, ‘por que preciso de uma lei que me autorize a fazer um tratamento de PMA, uma vez que as consequências do tratamento só cabem a mim e ao meu/minha parceiro(a)?’. Para esse questionamento, diversas poderão ser as respostas, mas antes de buscar quaisquer delas, é indispensável que se entenda, que tal procedimento intenta gerar um novo ser humano, logo a responsabilidade imediata é do Estado. “a dúvida que assombra o momento atual da evolução das técnicas de reprodução assistida é saber se esse desejo tem cunho de direito, ou é algo que lhe seja garantido por lei.”[27] A pluralidade do assunto é discutida em vários campos do Direito, considerando a sua importância, não podia ocorrer de forma diferente, logo, juristas dos ramos de constitucional, penal, civil, família, sucessão, previdenciário, internacional e outros têm se manifestado sobre o tema, evidenciando que acima de qualquer problemática discute-se a Vida Humana. Quando o problema é visto a partir dessa ótica ou é feita essa análise, percebe-se a importância da existência de uma norma legislativa sobre o assunto. Mas legislar sobre um assunto com tantos interesses e opiniões controversas não é a mais fácil das tarefas. Países como Estados Unidos, Inglaterra e Portugal já possuem lei regulamentadora de PMA, porém nenhuma conseguiu ser suficiente para atender os anseios de todos os cidadãos. No Brasil ao contrário de Portugal, a procriação medicamente assistida, ainda não foi legislada, logo não é ilícita a prática da Maternidade de Substituição. Todavia alguns doutrinadores, como o ilustre jurista Silvio de Salvo Venosa[28] entendem como imoral e nulo um contrato que nela resulte. A lacuna gerada pela ausência da Lei margeia diversas interpretações, conforme entendido pelo princípio da legalidade, levando o interprete a considerar o que é dito pelo brocardo nullum crimen nulla poena sine lege[29]. Os questionamentos apresentados, envolvem a Reprodução Artificial de uma forma geral, porém um de seus métodos tem sido particularmente visto de forma mais complexa e encontra mais dificuldade de aceitação do que os demais. Trata-se da Maternidade de Substituição ou, também conhecida como, barriga de aluguel. “Defender a liberdade de procriar é enfatizar que se existe direito à fecundidade, nem a lei civil, nem a religiosa o negam. A sociedade, assim como o Estado, tem a incumbência de amparar os casais que se chocam contra o obstáculo da esterilidade, para superar essa barreira. Ensina Maria Claúdia Crespo Brauner que, embora seja a adoção uma experiência enriquecedora, devendo ser incentivada dia a dia, ela não representa o caminho escolhido por todos que não podem gerar naturalmente, pelo que deve ser dado reconhecimento aos métodos ofertados pela ciência moderna para tratar da infertilidade e da esterilidade, dado que a esterilidade não é aceita facilmente, razão pela qual mulheres estéreis se socorrem dos métodos de reprodução medicamente assistida, dentre as quais ganha relevância a gestação de substituição.”[30] Conforme explicado anteriormente, a Maternidade de Substituição é um método de procriação medicamente assistida onde o gameta de um casal – casados ou não, que se conheçam ou não – desenvolve-se na barriga de uma terceira mulher, a qual não dará a criança quaisquer de suas características genéticas, servindo apenas como “hospedeira” daquele que fora produzido in vitro. Embora não transfira para o bebê seu DNA, a Mãe de Substituição carregará todos os riscos e consequências físicas de uma gravidez comum. A partir de então essa mãe tem ou não direitos sobre esse filho? Será válido um contrato de barriga de aluguel, uma vez que o objeto do contrato é um órgão humano? Ou para alguns, a vida de uma criança? A depender da parte do procedimento que se esteja a analisar, diferentes serão as opiniões. Tão diferentes são, ainda, as opiniões de quem não tem sobre a Procriação Medicamente Assistida qualquer necessidade, qual seja a grande maioria da sociedade e principalmente os legisladores. Nessa realidade, as Leis n.º 32/2006 de Portugal e n.º 14/2006 da Espanha proíbem a prática de Maternidade de Substituição. “(Portugal) Lei N.º 32/2006: Artigo 8º. Maternidade de substituição 1 — São nulos os negócios jurídicos, gratuitos ou onerosos, de maternidade de substituição. 2 — Entende-se por «maternidade de substituição» qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade. 3 — A mulher que suportar uma gravidez de substituição de outrem é havida, para todos os efeitos legais, como a mãe da criança que vier a nascer.” “(Espanha) Lei N.º 14/2006: Artículo 10. Gestación por sustitución. 1. Será nulo de pleno derecho el contrato por el que se convenga la gestación, con o sin precio, a cargo de una mujer que renuncia a la filiación materna a favor del contratante o de un tercero. 2. La filiación de los hijos nacidos por gestación de sustitución será determinada por el parto. 3. Queda a salvo la posible acción de reclamación de la paternidad respecto del padre biológico, conforme a las reglas generales.” Há Países, no entanto, que a Barriga de Aluguel é permitida como na Índia, Rússia, Ucrânia e Estados Unidos, esse último reconhecendo legalmente o contrato oneroso entre as partes. No Brasil a Maternidade de Substituição é permitida pela Resolução 2013/2013 do Conselho Federal de Medicina, porém trata-se de uma normativa sem força de lei, devendo ser utilizada como dispositivo de proteção ética aos profissionais da área médica, não sendo esse o remédio legislativo para as necessidades dos cidadãos. Na Argentina, país vizinho e fronteiriço do Brasil, já existe a segunda lei que trata do assunto, tendo a primeira entrado em vigor no ano de 2010, porém limitada a província de Buenos Aires. Com o intuito de adequar-se à realidade de seus cidadãos e viabilizar a demanda existente, em 2013 passou a viger em todo o território argentino a Lei N.º 26.862. Em recente pesquisa, cientistas da Fundação Mineira de Educação e Cultura, apresentaram um estudo comparativo sobre a regulamentação da Reprodução Humana na Argentina, Brasil, Chile e Uruguai e demonstraram o avanço sobre o assunto na Argentina. “Em 23 de julho de 2013 entro em vigor a Lei n◦26.862, atualmente vigente em todo o território argentino. Essa lei tem como objetivo garantir o acesso integral aos procedimentos e às técnicas médicas de RA. Os pontos principais são: • Acesso gratuito aos procedimentos médicos para todos os cidadãos, sejam eles casais heterossexuais ou homossexuais, ou ainda pessoas solteiras, que tenham ou não algum problema de saúde. O sistema de saúde pública cobrirá todo argentino e todo habitante que tenha residência definitiva. Não há menção de limites de idade. • Em situação de reprodução medicamente assistida que requeira gametas ou embriões doados, esses deverão ser oriundos dos bancos de gametas ou embriões devidamente inscritos no Registro Federal de Estabelecimentos de Saúde do Ministério da Saúde. A doação nunca poderá ter caráter lucrativo ou comercial. • Estão incluídos na cobertura prevista nesse artigo os serviços de preservação de gametas ou tecidos reprodutivos destinados àquelas pessoas, incluindo menores de 18 anos, que em caso de não poder concluir uma gestação por problemas de saúde ou tratamentos médicos, ou ainda intervenções cirúrgicas, possam evitar o comprometimento da capacidade de procriar. Comparada com a antiga lei da província de Buenos Aires, a nova lei de RHA da Argentina é um projeto avançado, porque não requer dos receptores comprovação de infertilidade ou estar em um relacionamento, não discrimina por sexo ou idade, inclui técnicas de alta complexidade e novos procedimentos e técnicas desenvolvidos mediante avanços técnico-científicos quando forem autorizados pelo Ministério da Saúde.”[31] A falta de uniformidade no tratamento do assunto, quando visto pelo Direito Comparado entre alguns Países, demonstra – ainda que superficialmente – as adversidades que aguardam o casal ou indivíduo infértil ou estéril, homossexual e/ou celibatário que pretende exercer o direito de constituir uma família, reproduzir sua espécie e desenvolver o direito de procriar. Após quase 70 anos da proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, ainda se faz necessário um indivíduo ter que sair de sua pátria e dirigir-se a uma outra para conseguir exercer o direito de ser igual. Não menos pior é, ainda, se fazer necessário praticar a barriga de aluguel de forma clandestina por ser homossexual.[32] Não são poucos os casos onde casais homossexuais masculinos recorrem ao método para ter realizado o desejo de ser pai, de ter filhos, de constituir uma família completa e se sentir pleno como homem. Ocorre que para realização desse sonho, o casal desembolsará em média $ 50.000,00 dólares indo até a Índia para ter acesso de forma livre e pacífica a clínicas ou centros de reprodução assistida. No País, tal procedimento já está mercantilizado e ficou famoso por atrair o “turismo reprodutivo”.[33] Tratando-se de valores, a Índia leva vantagem quando comparada aos Estados Unidos, pois o mesmo tratamento nos Estados Norte Americanos custa em média $ 200.000,00 dólares. Eis a realidade enfrentada por um casal para ser pais. Além do valor astronômico para realidade da maioria das pessoas, após o tratamento, quando bem sucedido, inicia-se a batalha para o reconhecimento da certidão de nascimento sem o nome da mãe que gestou o bebê e a nacionalização da criança. Como retornar ao seu País, junto com seu filho, se a certidão de nascimento não é aceita, uma vez que a reprodução ocorreu de uma forma proibida na legislação local? Essa realidade fez com que o Instituto dos Registos e do Notoriado – Português, fizesse um parecer para orientar as Conservatórias como proceder nos casos de registro e cidadania de crianças nascidas de maternidade de substituição. O Parecer P.º C.C. 96/2010 – SJC[34], assim concluiu: “8. Se no momento da declaração de nascimento atributiva da nacionalidade portuguesa, por o interessado ser filho de pai português, se suscitarem dúvidas ao serviço intermediário sobre a identidade ou veracidade das declarações prestadas, designadamente sobre a identidade da mãe e os elementos do parto, pode e deve o funcionário solicitar a presença de testemunhas, ao abrigo do art.º 45.º do Código do Registo Civil. 9. Se, no momento da declaração referida no número anterior, for declarado, ou resultar dos documentos apresentados, a existência de gravidez de substituição, deve ser solicitada a identificação da parturiente para ficar a constar como mãe no registo. Caso seja invocado o desconhecimento da sua identidade, e a mesma não resultar dos documentos apresentados, da declaração de nascimento ficará a constar apenas a filiação paterna.” Ao longo do mesmo parecer, que fora aprovado por seu conselho técnico em março de 2012, o Instituto dá o seguinte aconselhamento, emprestado por Luís Archer, no artigo “O progresso da genética e o espirito eugénico”: “É imperioso que as novas gerações não venham um dia a considerar-se vítimas do nosso tecnologismo. E nós, teremos de assumir a grave responsabilidade de decidir que tipo de humanidade e de sociedade queremos preparar para o próximo milénio.” 5. O DIREITO DE ESCOLHA E A REALIDADE DAS LEIS E JULGADOS EM PORTUGAL O século XX destacou-se por seus avanços tecnológicos, mas também é responsável pelo aumento das expectativas e necessidades humanas. O que há pouco tempo eram novidades revolucionárias, atualmente são meras lembranças de um tempo o qual não tem mais espaço na realidade do século XXI. A Maternidade de Substituição porém é uma realidade que ainda busca seu espaço. No ano de 2006 entrou em vigor em Portugal a Lei N.º 32 que trata e normatiza os tratamento de Procriação Medicamente Assistida, comparado aos demais países da Europa, foi um dos últimos a legislar sobre o assunto, embora relativamente tardio, a lei conta com vários aspectos positivos, principalmente pela criação do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, dando-lhe autonomia para se pronunciar sobre as questões éticas, sociais e legais da PMA. Ter um Conselho que trate especificamente sobre Reprodução Humana é um grande avanço, pois mesmo que de forma genérica, existe a preocupação e o cuidado ao tratar de um assunto tão complexo, dando-lhe celeridade e a garantia de que o casos apreciados serão tratados por pessoas com competência e conhecimento. “Artigo 30º. Conselho Nacional de Procriação medicamente Assistida 1 — É criado o Conselho Nacional de Procriação medicamente Assistida, adiante designado por CNPMA, ao qual compete, genericamente, pronunciar-se sobre as questões éticas, sociais e legais da PMA. 2 — São atribuições do CNPMA, designadamente: a) Actualizar a informação científica sobre a PMA e sobre as técnicas reguladas pela presente legislação; b) Estabelecer as condições em que devem ser autorizados os centros onde são ministradas as técnicas de PMA, bem como os centros onde sejam preservados gâmetas ou embriões; c) Acompanhar a actividade dos centros referidos na alínea anterior, fiscalizando o cumprimento da presente lei, em articulação com as entidades públicas competentes; d) Dar parecer sobre a autorização de novos centros, bem como sobre situações de suspensão ou revogação dessa autorização; e) Dar parecer sobre a constituição de bancos de células estaminais, bem como sobre o destino do material biológico resultante do encerramento destes; f) Estabelecer orientações relacionadas com a DGPI, no âmbito dos artigos 28º e 29º da presente lei; g) Apreciar, aprovando ou rejeitando, os projectos de investigação que envolvam embriões, nos termos do artigo 9º; h) Aprovar o documento através do qual os beneficiários das técnicas de PMA prestam o seu consentimento; i) Prestar as informações relacionadas com os dadores, nos termos e com os limites previstos no artigo 15º; j) Pronunciar-se sobre a implementação das técnicasde PMA no Serviço Nacional de Saúde; l) Reunir as informações a que se refere o n.º 2 do artigo 13º, efectuando o seu tratamento científico e avaliando os resultados médico-sanitários e psicossociológicos da prática da PMA; m) Definir o modelo dos relatórios anuais de actividade dos centros de PMA; n) Receber e avaliar os relatórios previstos na alínea anterior; o) Contribuir para a divulgação das técnicas disponíveis e para o debate acerca das suas aplicabilidades; p) Centralizar toda a informação relevante acerca da aplicação das técnicas de PMA, nomeadamente registo de dadores, beneficiários e crianças nascidas; q) Deliberar caso a caso sobre a utilização das técnicas de PMA para selecção de grupo HLA compatível para efeitos de tratamento de doença grave. 3 — O CNPMA apresenta à Assembleia da República e aos Ministérios da Saúde e da Ciência e Tecnologia um relatório anual sobre as suas actividades e sobre as actividades dos serviços públicos e privados, descrevendo o estado da utilização das técnicas de PMA, formulando as recomendações que entender pertinentes, nomeadamente sobre as alterações legislativas necessárias para adequar a prática da PMA à evolução científica, tecnológica, cultural e social.”[35] A referida Lei, orienta ainda sobre a fertilização post mortem, paternidade, comercialização de material genético, os beneficiários do tratamento, dentre outros demasiadamente importantes para a causa. Considerando que o direito de constituir família[36] é uma garantia prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos[37] e nas Constituições de países signatários, inclusive a de Portugal que específica o direito em seu artigo n.º 36, dando a todos plena condição de igualdade. Com base nas legislações apresentadas e os direitos por elas garantidos, fica evidente o direito do indivíduo em buscar alternativas dentre os meios possíveis de tratamento, quando por motivos alheios a sua vontade, se encontre impossibilitado de reproduzir-se de forma natural. Graças ao avanço científico tais tratamentos já são realidade e estão disponíveis. Ocorre que a legislação portuguesa impôs limites para a utilização das técnicas de RMA, ferindo profundamente, além de sua Carta Magna, os princípios da igualdade, legalidade e não discriminação. Logo, o direito de escolha não atinge seus cidadãos de forma homogênea. Destaca-se na Lei n.º 32/2006, três situações que merecem ser revistas e adequadas não só aos parâmetros legais, mas a realidade contemporânea de toda a sociedade, são: a proibição do uso de técnicas de Reprodução Medicamente Assistida por pessoas solteiras e por pessoas casadas com outras do mesmo sexo, além de não permitir a técnica de Maternidade de Substituição em nenhuma hipótese, sendo a pratica, quando onerosa, punível com prisão. “Artigo 6º. Beneficiários 1 — Só as pessoas casadas que não se encontrem separadas judicialmente de pessoas e bens ou separadas de facto ou as que, sendo de sexo diferente, vivam em condições análogas às dos cônjuges há pelo menos dois anos podem recorrer a técnicas de PMA. 2 — […] Artigo 39º. Maternidade de substituição 1 — Quem concretizar contratos de maternidade de substituição a título oneroso é punido com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias. 2 — Quem promover, por qualquer meio, designadamente através de convite directo ou por interposta pessoa, ou de anúncio público, a maternidade de substituição a título oneroso é punido com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias.” Em razão de vários entendimentos de violações de direitos constitucionais, o Tribunal Constitucional reuniu-se para julgar algumas das questões, resultando no Acórdão n.º 101/2009. Porém, as situações citadas anteriormente não foram modificadas, restando ainda lacunas a serem preenchidas, conforme demonstra o trecho extraído do relatório do indicado Acórdão: “A Lei n.º 32/2006 também apresenta vários problemas de inconstitucionalidade material e de violação da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (Convenção de Oviedo) e da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), que, por via do artigo 8.º da Constituição, fazem parte do ordenamento jurídico português.”[38] No que se refere a proibição da técnica de Maternidade de Substituição, o relator do Acórdão, declarou: “O preceito proíbe claramente a celebração de negócios jurídicos de maternidade de substituição, independentemente de serem onerosos ou gratuitos, qualificando-os como nulos (n.º 1). E o n.º 3 do mesmo artigo esclarece, em conformidade com o regime da nulidade, que «a mulher que suportar uma gravidez de substituição de outrem é havida, para todos os efeitos legais, como a mãe da criança que vier a nascer». Esse regime não revela permissividade do legislador face à maternidade de substituição gratuita, pois nega a esta prática quaisquer efeitos jurídicos, permitindo que a esses casos se aplique a regra de estabelecimento da filiação constante do artigo 1796.º, n.º 1, do Código Civil, segundo a qual, relativamente à mãe, a filiação resulta do facto do nascimento.”[39]  As tentativas de mudança na Lei, porém persistem, há ainda três projetos de lei no congresso português aguardando votação, no ano de 2012 dois deles já alcançaram aprovação na reunião plenária n.º 62, foram o 131/XII e o 138/XII. Em minucioso estudo sobre Maternidade de Substituição, a médica Dra. Joana Gago, apresentou de forma bastante didática uma tabela comparativa entre as propostas de mudanças na lei, as quais versam exatamente sobre as três situações apontadas anteriormente, conforme segue abaixo[40]: Sem adentrar as demais situações apontadas como discriminatórias nesse capítulo, reitera-se que ao manter a proibição da pratica de Maternidade de Substituição, os grupos excluídos como beneficiários pela Lei são duplamente prejudicados, pois as pessoas que convivem em relação homossexual, principalmente quando são do sexo masculino, só podem recorrer a “barriga de aluguel” para procriar, uma vez que é contra a sua identidade e liberdade manter relações sexuais com mulheres. Aspectos psicológicos causados pela infertilidade/esterilidade, homossexualismo ou celibato precisam ser considerados, tanto quanto os aspectos práticos e comerciais na propositura das normas legislativas que tratam da PMA, sob pena de cometer-se injustiça discriminatória e, ainda, estimular práticas ilegais. REFLEXÃO FINAL A realidade moderna nos induz a acreditar que tudo é possível, uma vez que a tecnologia e a ciência são movidas pelas imaginação do homem, a ponto de muitas vezes confundir-se a realidade do presente com a perspectiva de futuro. Quando tal evolução é utilizada em benefício do desenvolvimento humano, como a cura de doenças ou a diminuição das diferenças sociais, devemos estimulá-las. Porém, nem sempre a modernidade tem boas intenções. Para evitar o desvirtuamento da evolução tecnológica, a sociedade precisa que o Estado atue como fiscal dessas práticas e qualifique-as conforme as suas necessidades e suas utilidades. Ocorre que para exercer essa função, se faz necessário o uso de ferramentas legislativas apropriadas, sempre com base no princípio da dignidade da pessoa humana. Quando se trata de Procriação Medicamente Assistida a ciência e as leis não conseguem caminhar no mesmo ritmo. Esse descompasso tem sido o principal causador das problemáticas existentes sobre o assunto. De forma alegórica, pode-se dizer que existe a “fome” e a “comida”, porém ainda não existe o caminho para que um chegue até o outro. “Não há como negar, nem voltar atrás, a tecnologia hoje existente incorpora‐se à nossa realidade, e de nada adianta tentarmos legislar para os nossos antepassados. Certo é que, utilizando‐se do bom senso, o homem será capaz de trazer cada vez mais melhorias à sociedade, podendo fazer uso, para esta finalidade, de regramentos os mais diversos. A Reprodução Humana Assistida é palco de inúmeras inovações tecnológicas, em que se somam conhecimentos científicos a fim de obter uma melhor qualidade de vida dos indivíduos. Nosso ordenamento jurídico simplesmente retrata os anseios sociais e, na retaguarda da evolução biotecnológica, busca soluções para os problemas já existentes e aqueles que possivelmente, em um futuro próximo, possam surgir.”[41] Sem alimentar uma imagem pessimista, muito já se alcançou quando analisa-se a evolução histórica dos problemas com a infertilidade, mas ainda de forma seletiva e excludente. Primoroso seria a realidade em que as leis que tratam de Reprodução Humana fossem feitas visando atender as necessidades reais dos pacientes e da comunidade científica, excluindo os princípios políticos e religiosos que muitas vezes acabam por sobressair-se aos princípios éticos. A Maternidade de Substituição muito mais que uma técnica de PMA é uma oportunidade que o indivíduo possui de manter viva a sua história, o seu nome, a sua família. As pessoas que recorrem a Reprodução Artificial são diversas e com necessidades que vão além das limitadas por um grupo específico da sociedade que é infértil ou estéril. O conceito de família mudou e é em nome desse instituto que se deve legislar. Não se pode fechar os olhos ou ignorar que existe famílias de casais homossexuais, de pessoas que não querem constituir uma relação de casal e até optam pelo celibatário, porém desejam ser pais. Essas pessoas também precisam ser assistidas pelo Estado, precisam recorrer as técnicas de PMA para exercer seu direito de constituir família. Nesse aspecto, a jurista Portuguesa Vera Lucia Raposo defende: “O óbice à maternidade de substituição constitui um tratamento discriminatório, comparando­se a situação de um homem com a situação o de uma mulher solteira que deseje ser mãe, uma vez que esta pode recorrer a um doador, sem a necessidade de intervenção médica. Em se tratando de um – ou dois homens – há a necessidade inafastável de uma mulher que leve a gravidez a termo. […] A proibição da maternidade de substituição acaba por redundar num tratamento diferenciado dos homens que pretendem ser pais solteiros e os casais homossexuais masculinos face às mulheres que desejam ser mães solteiras e aos casais homossexuais femininos"[42] A ausência de lei é tão segregadora quanto uma lei discriminatória. Nos casos que tratam de vida humana, não podemos servir-nos da máxima de que o silêncio da lei é permissivo. Não se pode concordar com a realidade de que no seu País não se pode fazer “barriga de aluguel”, mas em troca de uma pequena fortuna é possível fazer no País vizinho. Ou ser negligenciado pela lei em razão de pessoas que buscam o bebê “modelo de revista”. A eugenia precisa sim ser combatida, quando esta possua preceitos racista e vaidosos. “Há que proibir a busca do ser humano perfeito, ideal, para que a pessoa não seja coisificada, objectivada, para atender aos padrões da moda de determinada época da história da humanidade, prejudicando, assim, o desenvolvimento das gerações futuras, de modo espontâneo.”[43] Em razão de todos os argumentos apresentados, onde se constata desequilíbrio de poderes e de direitos, é que se reitera o uso da soberania do Estado pautado na Ética e na igualdade de direitos e oportunidades, pois a sintonia desses três elementos resulta na justiça, e é essa a justiça preconizada como princípio fundamental da Constituição da República Portuguesa.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-149/a-maternidade-de-substituicao-como-solucao-e-como-problema/
Engenharia genética frente ao princípio da dignidade da pessoa humana e suas implicações ético-jurídicas
A engenharia genética é um campo novo e, por isso, pode apresentar pontos positivos e negativos para espécie humana. Seus intensos avanços impõem reflexões acerca de determinadas descobertas científicas cuja utilização de experiências com seres humanos se demonstre contrária à dignidade do homem. A ciência deve ter como paradigma a respeito aos direitos da personalidade com vista à proteção da dignidade humana, à vida, a integridade física e moral de ser humano, ainda que em potencial, bem como a responsabilidade civil do ofensor. Conforme disposto no § 1º do art. 1º da Constituição da República de 1988, a dignidade do homem é inviolável. A Lei Fundamental reclama a ponderação do avanço científico para fins de eugenia e todo tipo de técnicas que tenham finalidade experimental colocando em risco a vida do homem em razão dessa dignidade humana. A engenharia genética traz em seu bojo algumas questões polêmicas, merecedoras de uma reflexão minuciosa e atenta por parte dos juristas e aplicadores do direito para se verificar em que medida está sendo atingida a dignidade humana e em que medida os responsáveis responderão pelos danos causados. Nesse objetivo, indaga-se até que ponto o abuso ou uso eticamente inaceitável de uma pesquisa ou manipulação genética poderia eliminar o seu uso se considerado o benefício para os demais membros de uma sociedade e seu estrito regulamento para o bem comum. Não obstante, far-se-á uma análise acerca da vulnerabilidade dos seres humanos em face das pesquisas, experiências e manipulações genéticas e um alerta sobre os limites ético-jurídicos deste conhecimento, evitando que a sociedade seja induzida a aceitação da eugenia. Assim, o presente trabalho se propõe a abordar algumas discussões acerca da engenharia genética e suas perspectivas genéticas, éticas e jurídicas, frente à aplicação do princípio da dignidade humana, uma vez que as pesquisas e manipulações genéticas tendem a modificação do patrimônio hereditário do ser humano desencadeando a discriminação genética.[1]
Biodireito
1 Nascimento da genética No ano de 1900 ocorreu a explosão do conhecimento genético com a redescoberta do trabalho fundamental de Gregor Mendel após uma série de estudos e experiências nas áreas da citologia, embriologia, microbiologia que serviu de embasamento para as descobertas científicas. Em 1953 com os esclarecimentos da estrutura do DNA por James D. Watson e Francis H. C. Crick iniciou-se a era moderna da genética, mas somente no ano de 1961 é que o código genético foi decifrado. Finalmente em 1995 foram descritos os primeiros sequenciamentos completos de determinados organismos. Em 2001 foi anunciado o sequenciamento do genoma humano. O desencadeamento da investigação genética e seu ritmo acelerado faz surgir a genômica, ou seja, o estudo da estrutura e funcionamento do material genético total (genoma) de um organismo. Derivada da raiz grega “gen”, a palavra genética foi empregada para designar o estudo da hereditariedade e da variação dos seres vivos. Como um ramo da biologia, a genética iniciou os estudos das semelhanças e diferenças entre indivíduos de uma mesma linhagem durante várias gerações. A genética tem avançado muito e com muita rapidez nos últimos anos, apresentando grandes descobertas e repercussões para a vida humana.  A manipulação genética é um campo vasto, entre tantos que se abrem, podendo resultar em um bem ou um mal para a humanidade, daí ser extremamente importante que os milagres da ciência sejam canalizados para o bem estar do homem. Segundo CLEMENTE (2004)[2], embora aparentemente a genética possa intervir na vida humana apenas positivamente, deve-se atentar para uma possível repercussão negativa. O progresso descomedido e rápido da engenharia genética impõe aos juristas enormes desafios para compatibilizar as conquistas cientificas com a preservação dos direitos da personalidade e da dignidade do ser humano. O direito não pode ficar alheio às inovações cientificas, devendo regulamentar os fatos sócias que delas emanam. Diante dos milagres oferecidos pela manipulação genética, deverá a humanidade percorrer novos caminhos para colocar todo avanço científico a serviço do homem preservando a sua dignidade. As técnicas da engenharia genética e suas implicações éticas e legais despertaram grande interesse e curiosidade na sociedade, suscitando o debate acerca de juízos de valores e a reformulação de conceitos já pacificados. A UNESCO emitiu a Declaração Universal do Genoma Humano com a intenção de proteger os direitos humanos de possíveis violações, vinculadas com certas técnicas de investigação genética. As doenças caracterizadas como tendo componente genético trazem consigo inúmeros dilemas éticos, por isso, as investigações na área da engenharia genética devem orientar-se no sentido de aliviar o sofrimento do indivíduo e melhorar a saúde de toda humanidade. Os avanços científicos devem se preocupara com a responsabilidade e os limites para o tratamento de doenças a partir de técnicas de engenharia genética. A grande notícia da finalização da primeira versão de todo o genoma humano foi cumprimentado pela mídia com diversas especulações. Problemas legais, sociais e éticos surgiram em função do lançamento do programa do genoma humano como as questões que envolvem a privacidade e confidencialidade, discriminação baseada na quebra do sigilo genético, testes pessoais que indiquem suscetibilidade a doenças que irão ocorrer no futuro, para as quais não há cura, e por fim questões acerca da terapia gênica limitada ao tecido somático ou estendida ao tecido germinativo. Ás esperança de cura somam-se a possibilidade de cerceamento de liberdade e o aumento da opressão racial e étnica.  Surgem, então, novos debates em que a sociedade traz à baila á discussão de novos conceitos como eugenia positiva e eugenia negativa. Segundo GOMES e SORDI (2001)[3], no primeiro caso, a dignidade da pessoa humana assumiria um caráter axiológico indelével. De outra parte, a eugenia negativa refere-se a situações nas quais não se tenta mitigar o defeito genético, mas – e exclusivamente – evitar sua reprodução. Poder-se-ia apontar como exemplo dessa prática o homicídio ou infanticídio de recém-nascidos portadores de defeitos genéticos ou disformes, aborto eugênico, controle de natalidade, impedimento de uniões procriativas de indivíduos com alto risco genético, etc. Na lição de FÉO (2005)[4], enquanto a eugenia negativa visa eliminar características indesejáveis impedindo sua transmissão, a positiva visa promover características desejáveis, estimulando sua transmissão – esta nos traz o risco de "buscar uma purificação da espécie" como aconteceu nos campos nazistas na Alemanha de Hitler. Nesse compasso, a era genômica foi marcada pela transição e a incerteza. De um lado questionava-se a possibilidade da eugenia, discriminação, clonagem total ou parcial de seres humanos, etc., e, por outro lado, a cura de doenças de origem genética com a descoberta do genoma humano que possibilitaria a realização de tratamentos mais detalhado da fisiologia de cada pessoa, uma vez que o código genético de cada pessoa determina, em muitos casos, sua reação a um medicamento. 2 Engenharia genética e o princípio da dignidade humana O art. 1º, III, da Constituição da República de 1988 dispõe acerca da dignidade da pessoa humana, assentando-a como fundameno primordial da atividade do Estado, o que significa que o ser humano é o centro de toda atividade pública no Estado Democrático de Direito.  Nos últimos tempos, alguns juristas, doutrinadores e cientistas, pautados na Constituição de 1988, fizeram nascer um caloroso debate em torno da engenharia genética e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, em especial, vedando e condenando toda prática que lhe for contrário. Na lição de CLEMENTE (2004)[5], a engenharia genética é a tecnologia utilizada para modificar o material genético de células ou organismos com objetivo de fazê-lo capaz de produzir novas substâncias ou realizar funções. Ainda segundo a autora, a engenharia genética é um dos setores da biotecnologia que mais avança nos últimos tempos. Têm-se dessa forma, dois conceitos, um lato sensu: conjunto de formas de manipulação e de alteração genética de um organismo vivo (técnicas de reprodução assistida, manipulação de embriões), e outro stricto sensu: a engenharia genética baseada no conhecimento da estrutura físico-química do material hereditário (DNA) e do seu funcionamento. O conjunto de normas jurídicas aplicadas à engenharia genética cujo objetivo incide sobre a proteção à vida funda-se no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Assim, toda discussão ético-jurídica sobre a viabilidade das pesquisas e manipulações genéticas, bem como a elaboração de novas leis acerca do tema devem se pautar na dignidade humana e na proteção à vida. DINIZ (2006)[6], explica que, para o controle das atividades voltadas á engenharia genética, além dos Comitês de Bioética, imprescindível é a criação não só de instituições que supervisionem o emprego de tais técnicas, concedendo ou suspendendo licença para sua implantação conforme o risco apresentado, pois não podem vulnerar bens valiosos para a comunidade, mas também de normas destinadas à proteção jurídica de gametas e embriões humanos, penalizando-se os desvios não desejáveis, bem como sua comercialização, e ao reconhecimento do direito de todo ser humano de ter um patrimônio genético não manipulado artificialmente, preservando sua vida privada e dignidade (Constituição da República, arts. 1º, III, e 5º, caput). Somente assim, poder-se-a proteger o ser humano dos perigos potenciais da manipulação genética e da experimentação, ou seja, de técnicas de engenharia genética que caiam sobre o DNA humano, compreendendo tanto a análise molecular do genôma quanto a utilização de genes humanos e a manipulação de células humanas, de substâncias embrionárias ou de seres humanos. Segundo SARLET (2008)[7], tem-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. Leciona ANDORNO (2009)[8], no plano jurídico, poder-se-ia dizer que a dignidade constitui o "direito inderrogável por excelência" mesmo quando stricto sensu não seja ele mesmo um direito, senão a fonte de todos os direitos. A dignidade é ao contrário uma realidade pré-jurídica que precede e dá fundamento ao ordemaneto jurídico em todo seu conjunto. Apesar da dificuldade para definir a dignidade humana, pode-se dizer que, este termo, se faz referência ao valor único e incondicional que tem a existência de todo ser humano, independentemente de qualquer "qualidade acessória" que pudesse corresponder por razões de idade, estado de saúde física ou mental, origem étnica, sexo, condição social ou econômica ou religião. É sua condição humana como tal o que gera um dever de respeito para com o indivíduo, sem que seja exigível nenhum outro requisito adicional. A liberdade encontra no respeito à dignidade humana o critério determinante de sua legitimidade. Ainda o mesmo autor (2009)[9], porém, a dignidade humana também pode ser entendida, não em relação aos indivíduos atualmente existentes, senão também em relação à humanidade como tal, incluindo as gerações futuras. Este significado tem ganhado força nos últimos anos em razão de certos desenvolvimentos tecnológicos que geram sérios riscos para a existência da identidade da humanidade (por exemplo, clonagem reprodutiva e engenharia genética humana). O raciocínio que serve de base a esta noção extensiva de dignidade é o seguinte: se cada ser humano possui um valor intrínseco, pode sustentar-se que o gênero a qual pertencem (a humanidade) também possui um valor inerente. Este conceito amplo de dignidade exige, por um lado, a preservação de um meio ambiente sustentável para aqueles que nos sucederem (tarefa que incumbe à ética do meio ambiente) e, por outro lado, a proteção da integridade e identidade do gênero humano (tarefa da bioética). Neste sentido, ressaltam-se as duas únicas normas da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos de 1997 que qualificam práticas concretas como "contrárias à dignidade humana" empregam a noção de dignidade humana neste sentido amplo. Trata-se do artigo 11, que condena a clonagem de seres humanos com fins de reprodução, e do artigo 24, que desaprova as intervenções na linha germinal humana. O discurso da liberdade de pesquisa e o progresso da ciência acabam por instituir na sociedade o desejo de uma espécie perfeita e a busca por seres humanos selecionados, por isso, faz-se necessário impor limites à engenharia genética, frear os avanços que violam a dignidade humana quando tais avanços se apresentarem como verdadeiras práticas de eugenia. O que se repele é o abuso das pesquisas e manipulações genéticas, onde se demonstra claramente a sobreposição dos interesses econômicos, discriminatórios, gerando verdadeiras práticas de atividade eugênica. Daí a importancia de se criar limites ético-jurídicos que podem ser criados, estruturados dentro do fundamento da dignidade humana, para as práticas de pesquisas e manipulação genética de modo que possam proteger o ser humano dos abusos e ao mesmo tempo promover a saúde e o bem estar da sociedade. O avanço do desenvolvimento científico através de pesquisas e manipulação genética reclama da sociedade uma rediscussão de natureza axiológica, de modo que devemos estar conscientes das consequências que podem advir desta nova revolução tecnológica ao buscar o ser humano perfeito, coisificando-o. A sociedade deve estar atenta a esta nova realidade, buscando a efetivação e o aprimoramento de um instrumental ético-jurídico estruturado dentro do fundamento da dignidade humana, para frear as práticas abusivas na manipulação genética quando demonstrada à sobreposição dos interesses econômicos e discriminatórios, verdadeiras práticas de atividade eugênica. O direito não poderia ficar alheio a tantas inovações científicas, a busca desenfreada pelo conhecimento científico equiparando o ser humano a um objeto sob o discurso de atender aos interesses da sociedade, ou a busca da cura de várias doenças, diciplinando os fatos sociais advindos com o progresso na manipulação génetica sem se posicionar acerca da responsabilidade civil do ofensor pelos danos causados as pessoas.  Devem ser propostos limites ético-jurídicos para que o poder do conhecimento científico seja exercido de forma controlada considerando um sistema de regras e valores que permitam aproximar as ciências da vida ao direito e a ética. Desse modo, os avanços na área biomédica poderão abrir imensas oportunidades de aplicação na saúde humana se forem desenvolvidos sistemas que estabeleçam regras, procedimentos e padrões assegurando um comportamento ético, equidade, justiça e o respeito à dignidade humana. O direito e a ciencia devem se entrelaçar para uma análise crítica, dentro de um enfoque biológico, considerando nosso ordenamento jurídico, compatibilizando toda e qualquer conquista científica com a preservação dos direitos da personalidade e toda a dimensão da dignidade humana. Embora a engenharia genética aparentemente venha interferir na vida do homem de forma positiva, não há como negar uma repercussão negativa. O grande problema está nos padrões utilizados nas pesquisas que nem sempre são éticos e morais. A liberdade de pesquisa não pode ser considerada como uma regra plena, irrestrita e total. O ponto de equilíbrio deve ser buscado no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, valor estruturante do Estado Democrático de Direito. Esclarece DINIZ (2006)[10], que, se faz necessária uma “biologização” ou “medicalização” da lei, pois não há como desvincular as “ciências da vida” do direito. Assim, a bioética e o biodireito caminham pari passu na difícil tarefa de separar o joio do trigo, na colheita dos frutos plantados pela engenharia genética, pela embriologia e pela biologia molecular, e de determinar, com prudência objetiva, até onde as “ciências da vida” poderão avançar sem que haja agressões à dignidade da pessoa humana, pois é preciso evitar que o mundo deságue numa crescente e temível “confusão diabólica”, em que os problemas da humanidade sejam “solucionados” pelo progresso tecnológico. Cabe expor, nesse passo, que a engenharia genética e toda e qualquer experiência cientifica não está dispensada de observar as regras e aos preceitos de justiça solidariedade e promoção do bem de todos na sociedade. Deve-se prevalecer, portanto, a proteção dos direitos humanos e a cooperação entre os povos para que não haja submissão a tratamento desumano e degradante e acolhendo como princípio fundamental e absoluto a dignidade da pessoa humana. De acordo com GOMES e SORDI (2001)[11], ideias eugênicas projetam a sombra de dúvida, chegando ao limite de se criar pedigree para seres humanos. Conceitos como de eugenia positiva e eugenia negativa passam a ocupar o espaço dos debates à respeito do tema. Explica ainda, as autora (2001)[12], nesse compasso, salienta-se que tanto o Projeto Genoma como outros importantes empreendimentos exigirão uma discussão séria para evitar que os princípios bioéticos definidos pelos países ricos se sobreponham aos demais países, que vivem realidades diferentes, que terão de ser respeitadas, caso contrário, os países mais pobres seriam apenas territórios de experiências, sem acesso aos benefícios dos novos projetos científicos. Para COAN (2001)[13], assim, a pessoa- digna e íntegra pela sua própria existência única e ao mesmo tempo partícipe do mundo- deve ser respeitada e preservada em seu destino de continuar vivendo – com saúde – nas suas manifestações mais altas e sacras, como medida de todas as coisas, da Medicina e do Direito substancialmente. Cabe lembrar ainda que, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana consagrado no art. 1º da Constituição de 1988 aplicado juntamente com o Principio da Inviolabilidade do Direito à Vida disposto no art. 5º da referida Constituição, prevê a proteção jurídica da dignidade pessoa humana em face dos progressos nas pesquisas genéticas. O direito à vida está garantido pela norma constitucional em cláusula pétrea (art. 5º), que é intangível por força do art. 60 § 4º da Constituição da República de 1988.  O direito à vida deve ser respeitado ante a prescrição constitucional de sua inviolabilidade absoluta. Seria inadmissível qualquer comando legal no sentido de legalizar a prática indiscriminada de pesquisas e manipulação genética. É preciso repudiar o conhecimento cientifico que estimule praticas de eugenia e discrimine os portadores de um patrimônio genético diferente ao de uma classe desejada pela ditadura cientifica para produção de seres humanos selecionados e perfeitos. Por certo que deve ser analisado o caso concreto, para que a engenharia genética, como ciência da vida, caminhe junto ao principio da dignidade humanidade.  Na lição de GOMES E SORDI (2001)[14], os cientistas chamam o genoma de retrato de quem somos nos colocando em relação direta com o resto da natureza. É a evolução exposta, de forma que todos possam ver, onde não há maiores diferenças entre a espécie humana e o resto d natureza. Nessa medida dir-se-ia que o DNA é a imagem cientifica do ser humano. No Brasil com o advento da Constituição da República de 1988 o patrimônio genético passou a ter tratamento jurídico, objetivando, assim, a garantia e conservação da espécie humana em toda sua dignidade. Por fim, verifica-se que a engenharia genética apresenta aspectos tão otimistas quanto pessimistas se não for utilizada para o bem da humanidade, devendo, portanto, ter como fundamento último a proteção da dignidade da pessoa humana. 3 Genômica e medicina A descoberta e o desenvolvimento do Projeto Genoma Humano (PGH) representou uma grande mudança para a realização de pesquisas e possibilitou o conhecimento mais detalhado na fisiologia de cada pessoa para o seu tratamento através de determinados procedimentos e medicamentos. Ensina PENA (2004)[15], no dia 14 de abril de 2003, foi enunciado o fim oficial do projeto genoma humano (Sanger Institute, 2003). Mais de 99% dos 2,9 bilhões de pares de base que constituem a porção eucromática do genoma humano estão sequenciados com uma exatidão superior a 99,9%. Há, ainda, mais ou menos 300 milhões de pares de base da heterocromatina, principalmente pericentromérica, que não serão sequenciados, pois não contêm informação genética. A data, abril de 2003, foi escolhida para coincidir com o 50º aniversário da publicação, na revista Nature, do modelo da estrutura do DNA por James Watson e Francis Crick, que ocorreu em 25 de abril de 1953. Ainda o mesmo autor (2004)[16], do ponto de vista médico a importância do término do projeto genoma humano só pode ser comparada à publicação do primeiro tratado cientifico completo de anatomia humana, De Humanis Corporis Fabrica, por Andreas Vesalius em 1543. Este livro apresentou o alicerce sobre o qual foi construído todo o edifício da medicina ocidental. O conhecimento anatômico propiciou o florescimento lento e gradual da fisiologia, da patologia e da farmacologia humanas nos séculos subsequentes à publicação do livro de Vesalius. Nesse sentido, a publicação do tratado De Humanis Corporis Fabrica constituiu o ponto de partida para a construção da medicina moderna. Da mesma maneira, temos agora o conhecimento anatômico completo do genoma humano. Nas próximas décadas, florescerão a fisiologia genômica, a patologia genômica e a farmacologia genômica. O conhecimento da anatomia do genoma humano representa, assim, apenas o ponto de partida de construção da medicina genômica. Paralelamente ao progresso no sequenciamento do genoma humano, houve a detonação de novos conhecimentos em genética médica molecular. Todavia, a busca incansável pela cura de determinadas doenças e o discurso em prol da felicidade através da perfeição humana somaram-se a graves problemas éticos. Segundo GOMES e SORDI (2001)[17], vivemos em uma época de transição e incerteza. A possibilidade da eugenia, discriminação, clonagem total ou parcial dos seres humanos e, por outro lado, a cura de doenças de origem genética, patentes de genes humanos são questionamentos que vieram à baila com a revolução introduzida pelas técnicas de engenharia genética, culminando com o Projeto Genoma Humano (Hugo – Human Genome Organization). Concepções aparentemente inalteráveis, como a essência do próprio ser humano, estremecem nas bases. É importante enfatizar que a genética médica molecular, que se limitava a diagnosticar as doenças mendelianas em nível do DNA, sofreu profunda transformação com os conhecimentos derivados das chamadas ciências “ômicas”, transformando-se na medicina genômica. Na lição de PENA (2004)[18], agora que terminou o sequenciamento genômico do homem e dos principais organismos, estamos prestes a sofrer uma drástica mudança e dar um salto qualitativo na capacidade de criar e utilizar o conhecimento “ômico” na práxis da medicina genômica. Estas novas tecnologias têm permitido não só a aquisição de novos dados, mas também, através das novas ferramentas bioinformáticas, permitindo a prospecção dos bancos de dados para pista de novas estratégias diagnósticas e terapêuticas. Através dos bancos de dados, rapidamente completaremos o catálogo das doenças mendelianas. Todos os genes humanos, quando mutados, são potencialmente genes causadores de doenças, e assim, vamos caracterizar novas entidades mórbidas e novas vias patogenéticas a partir do conhecimento da estrutura e função de todos os genes. A ênfase aqui não é mais apenas na estrutura gênica (genômica estrutural), mas também na sua função e regulação (genômica funcional). Em tempo, uma nova fisiologia molecular permitirá o florescimento da fisiopatologia molecular. Munidos deste conhecimento, poderemos, então, enfrentar o desafio das doenças multifatoriais como componente genético poligênico, que constituem a grande maioria da carga mórbida humana, como no câncer e doenças cardiovasculares, nutricionais, infecciosas e degenerativas. A medicina preditiva, baseada no diagnóstico das predisposições, passará a ser rotina. Paralelamente, novos dilemas bioéticos emergirão, pois infelizmente a nossa capacidade de prevenir ou tratar doenças estará sempre atrasada com relação ao nosso poder de diagnosticá-las. Segundo MOREIRA-FILHO (2004)[19], a genômica pode ser definida como o estudo experimental das funções e interações de todos os genes do genoma, bem como da interação dos genes com fatores ambientais, e não apenas dos genes e seus efeitos isoladamente. A abordagem genômica é, portanto, aplicável ao estudo das doenças complexas e multifatoriais, causadas pela interação de fatores genéticos, ambientais e comportamentais. Estas são as doenças de maior prevalência de alto impacto em termos de mortalidade e ou morbidade, como o câncer, as doenças cardiovasculares e cerebrovasculares bem como as doenças neurológicas e neurodegenerativas. Para a identificação e avaliação da magnitude dos diferentes fatores de risco nas doenças complexas – essencial ao desenvolvimento de estratégias efetivas de diagnóstico, prevenção e tratamento – é preciso articular a genômica com estudos clínicos e epidemiológicos. Essa condição nem sempre tem sido adequadamente observada na moderna pesquisa biomédica. Não se pode olvidar que o diagnóstico de doenças genéticas usando teste genômico alcançou avanços espetaculares, como por exemplo, as técnicas de clonagem posicional que permitiu a descoberta de um número significativo de genes, a identificação de genes envolvidos em doenças comuns, tais como o câncer e doenças cardiovasculares. Estas novas tecnologias têm permitido a prospecção de bancos de dados para pistas de novas estratégias diagnósticas e terapêuticas. Temos uma linha limítrofe entre os aspectos positivos e negativos da era genômica. Independentemente do progresso científico, temos que o genoma humano deve ser totalmente protegido eis que representa a identidade do ser humano. O genoma humano está inserido dentro dos direitos da personalidade. Para GOMES e SORDI (2001)[20], p. 172) seu fundamento último é a proteção da dignidade da pessoa humana, entendida como ser uno e indivisível. Assim, engloba a ausência de manipulação de genes (ressalvadas as hipóteses de terapias genéticas posto que não s enquadra no conceito strictu sensu de manipulação e, desde que circunscrita ao indivíduo submetido ao tratamento) e o respeito ao meio ambiente natural em que esse vai se expressar. De posse do genoma passou-se a entender de forma mais detalhada os mecanismos de instalação e progressão de doenças, bem como as variações genômicas de cada pessoa, por isso, é imperativo de justiça que a genômica seja pautada nos princípios de direito á vida, dignidade da pessoa humana, liberdade e igualdade. A preocupação com a prevenção das enfermidades e o crescente conhecimento da população sobre a influência da engenharia genética na saúde e na doença tem se tornado cada vez mais relevante. Leciona GIUGLIANI (2004)[21], que, as informações obtidas, ao longo das últimas décadas sobre o genoma humano, e que culminaram com a conclusão de seu sequenciamento, contribuíram para intensificar a procura de informações sobre o diagnóstico precoce e prevenção das doenças geneticamente determinadas. Nesse contexto, o aconselhamento genético tem enorme tarefa de integrar o conhecimento cientifico à vida daqueles que procuram informações sobre determinada condição genética, ajudando-os a compreender esse conhecimento e traduzi-lo da melhor maneira possível em seu benefício. Segundo ASHTON-PROLLA (2004)[22], uma das maiores promessas da medicina genômica é a prevenção de doenças genéticas ou de suas consequências através do diagnóstico precoce (muitas vezes, pré-sintomático/preditivo) dos indivíduos em risco. Em algumas áreas da genética clínica, como, por exemplo, o diagnóstico de preposição hereditária ao câncer e erros inatos do metabolismo, a utilização das informações genômicas para o diagnóstico precoce, diagnóstico preditivo e prevenção da doença e/ou suas consequências já é uma realidade. Porém, essa nem sempre é uma atividade inócua, e provavelmente ainda é cedo para medir os riscos relacionados ao impacto psicológico das informações geradas. Na atualidade, a disponibilidade de serviços de medicina genética é uma questão significante da genética humana. À medida que a tecnologia genética avança e mais pessoas têm acesso a informações os serviços médicos aumentam, bem como os debates acerca dos limites admissíveis de interferência no corpo humano. No ano de 1995 foi criada a Lei 8.974 que estabeleceu normas para o uso das técnicas de Engenharia Genética. De acordo com a referida Lei são vedadas e consideradas criminosas, as atividades relacionadas a Organismos Geneticamente Modificados, tais como: manipulação genética utilizando células germinativas humanas, produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos para serem utilizados como material biológico disponível. A Resolução nº 1931/2009 do Conselho Federal de Medicina (Constituição da República) (2009), que aprovou o Código de Ética Medica, dispõe em seu § 2º do art. 15 que o médico não deve realizar a procriação medicamente assistida com nenhum dos seguintes objetivos: criar seres humanos geneticamente modificados, criar embriões para investigação, criar embriões com finalidade de escolha de sexo, eugenia, ou para originar híbridos ou quimeras. Ainda é vedado ao médico, conforme disposto art. 99 do mesmo Código, participar de qualquer tipo de experiência envolvendo seres humanos com fins bélicos, políticos, étnicos, eugênicos ou outros que atentem contra a dignidade humana. No campo das ciências da vida, os casos considerados como má prática da medicina são os que retratam a participação na realização de experiências em seres humanos com fins meramente racistas ou eugênicos, bélicos ou políticos. Nesse contexto verifica-se o uso da medicina contra o ser humano e não a favor dele. Assim, deve-se delimitar as fronteiras entre a genômica e a medicina, uma vez que jamais poderão ser violados os direitos já consagrados dos seres humanos, a dignidade e a vida. A má prática da medicina surge quando desvia de sua finalidade primordial, proteger e salvar a vida humana. Por fim, deixamos aqui um alerta para que toda a sociedade jamais se esqueça de que o chefe do programa eugênico que culminou com o massacre de seis milhões de judeus no ano de 1945 foi um médico, Dr. Josef Mengele. Devemos conscientizar que a genômica e a medicina devem se entrelaçar com a ética em prol dos direitos da espécie humana. 4 Manipulação genética e o “admirável mundo novo” Desde os primórdios, registraram-se casos de diversos povos que eliminavam os de sua espécie por considerá-los doente, deficientes, diferentes, inferiores e indignos. Propostas em busca da perfeição genética foram difundidas ao longo dos tempos como, por exemplo, o combate as doenças venéreas e a prostituição, etc. Com a manipulação genética e o desenvolvimento do diagnóstico genético levantaram-se inúmeras discussões e problemas com base em pressupostos eugênicos.   Conforme preleciona DINIZ (2006)[23], a manipulação genética é uma técnica de engenharia genética que desenvolve experiências para alterar o patrimônio genético, transferir parcelas do patrimônio hereditário de um organismo vivo a outro ou operar novas combinações de genes para lograr, na reprodução assistida, a concepção de uma pessoa com caracteres diferentes ou superar alguma enfermidade congênita. É um conjunto de atividades que permite atuar sobre a informação contida no material hereditário ou manipular o genoma humano no todo ou em parte, isoladamente, ou como parte de compartimentos artificiais ou naturais (p. ex., transferência nuclear), excluindo-se os processos citados nos art. 4º I a IV, e 6º, II, III, e IV, da Lei 8.974 de 1995 (Instrução Normativa nº 8/97 da CTNBio, art. 1º), tais como: mutagênese, formação e utilização de células somáticas de hibridoma animal, fusão celular, autoclonagem de organismos não patogênicos que se processe de maneira natural, manipulação de moléculas ADN/ARN recombinantes etc. Já a Eugenia é uma ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento da espécie humana. A Eugenia pretende reduzir a frequência de genes que apresentem determinadas anomalias e aumentar a de genes favoráveis nas gerações futuras. Segundo CONTI (2001)[24], certos políticos e cientistas propuseram e executaram medidas prepotentes e discriminatórias sob o nome de Eugenia, de modo que essa palavra tornou-se hedionda para muita gente. No entanto, ela refere-se, apenas, a medidas que tendem a melhorar o patrimônio genético da humanidade, o que é uma tarefa benéfica e admirável, quando feita com total respeito aos direitos humanos e com base em conhecimentos científicos seguros. Ainda explica a mesma autora (2001)[25] que, Hitler e seus asseclas usaram o prestigio da palavra Eugenia, mudando-lhe o sentido, para justificar seus crimes, e, historicamente, esse tema não produz boas lembranças. A vinculação do termo eugênico com interesses políticos e ódio racista desfigurou o significado da palavra. No passado fingindo-se fazer Eugenia, praticaram-se muitos atos criminosos, o que provocou uma repulsa social acerca da palavra. Diante das atrocidades cometidas e interesses políticos escusos, o objetivo da Eugenia tornou-se indigno, desumano e sem ética. Na atualidade, os testes genéticos já fazem parte da cultura social fragilizando o consenso acerca da dignidade humana que independe de uma espécie pura ou perfeita. A engenharia genética, bem como todo conhecimento cientifico se apresentam para a sociedade como uma fórmula mágica e fascinante para se obter a cura de diversas doenças e alcançar a tão sonhada felicidade.  As ciências da vida transformam-se em verdades absolutas e inquestionáveis. Entretanto, por mais benéfico que seja o conhecimento genético, uma vez que se pode obter a cura de diversas doenças, bem como evitá-las, importante registrar que o uso indiscriminado do teste genético em contato com o mundo cultural pode ocasionar práticas terríveis de discriminação e procedimentos eugênicos em intensidade pior que a apresentada pelo nazismo. De acordo com CONTI (2001)[26], p. 64) existem cada vez mais propostas de testes genéticos obrigatórios. Na história da humanidade a discriminação genética sempre esteve presente. Pessoas com doenças ou enfermidades são isoladas e até mesmo já chegaram a ser eliminadas. O que temos de novidade é que, hoje, tornou-se possível estabelecer a presença de uma doença antes mesmo que ela se manifeste. Assim, pacientes portadores de um determinado gene poderão ser discriminados pelo mercado de trabalho. Ainda Na lição da autora, não é possível permitir que na sociedade futura surja um novo sistema de classe, no qual os seres humanos serão diferenciados pelos seus genes, pois caminharíamos para uma genetocracia. Em anos próximos, marcadores genéticos para características humanas como altura, peso ou mesmo coordenação motora, tendência musical e habilidade intelectual, poderão estar disponíveis no mercado. Estaria a humanidade caminhando para o “admirável mundo novo” escrito por Aldous Leonard Huxley no ano de 1932, onde as pessoas são pré-condicionadas biologicamente e condicionadas psicologicamente a viverem dentro de uma sociedade organizada sem ética e valores morais onde o processo de reprodução segue padrões eugênicos? Apesar da obra de Aldous Huxley ser uma ficção científica, ela nos leva a refletir sobre as implicações éticas e morais da engenharia genética, como o Projeto Genôma Humano, a clonagem , terapia gênica etc. O que foi registrado há mais de 80 anos como uma ficção científica vem caminhando passos largos para a realidade, uma vez que as técnicas da engenharia genética já são capazes de orientar a procriação de filhos perfeitos. Sería ético os pais escolherem o sexo e as caracteristicas de seus filhos como a cor dos olhos ou o nível de inteligência? Seria admirável um mundo onde a discriminação é baseada no código genético? Segundo leciona Henrique Leveovitz citado por CONTI, (2001)[27], assim, o processo de decisão reprodutiva mudará de direção. Este conhecimento pode levar a um processo de eugênese através do aborto seletivo. Na Índia, milhares de aborto já são realizados somente com base no sexo do feto. Nos EUA, um alarmante estudo revelou que dez por cento das mulheres entrevistadas não hesitaram em abortar uma criança propensa à obesidade. Parece que seria apenas um pequeno passo, para muitos, o uso da análise genética do feto para justificar o aborto por um sem número de “insuficiências” genéticas reais ou pré-concebidas. No próximo século, as informações reveladas pelo Projeto Genoma permitirão aos médicos selecionar os fetos, produzindo em laboratório um extraordinário número de características físicas e comportamentais. Pela primeira vez na história, os pais decidirão que tipo de criança nascerá. A seleção genética de fetos para características não ligadas, livres de enfermidades geneticamente conhecidas iniciará uma nova era para a eugênese. É inconcebível que o indivíduo tenha violados todos os seus direitos, devido ao seu perfil genético, o princípio da dignidade da pessoa humana vigora entre a espécie humana independentemente de suas características genéticas. Oportuna a reflexão de DINIZ (2006)[28]: “Nesse contexto, a manipulação genética envolve riscos e uma série afronta à dignidade humana (Constituição da República, art. 1º, III), que podem levar a humanidade a percorrer um caminho sem retorno, por trazer a possibilidade de: a) obtenção, por meio da clonagem, da partenogênese ou da fissão gemelar de uma pessoa geneticamente idêntica a outra; b) produção de quimeras, pela fusão de embriões, ou, ainda, de seres híbridos mediante utilização de material genético de espécies diferentes, ou seja, de homens e de outros animais, formando, por exemplo, centauros, e minotauros, tornando as ficções da mitologia grega uma realidade, pois já se conseguiu camundongos com orelhas humanas; c) seleção de caracteres de um indivíduo por nascer, definindo-lhe o sexo, a cor dos olhos, a contextura física etc.; d) criação de bancos de óvulos, sêmens, embriões ou conglomerados de tecidos vivos destinados servir como eventuais bancos de órgãos, geneticamente idênticos ao patrimônio celular do doador do esquema cromossômico a clonar; e) produção de substancia embrionária para fins de experimentação; f) transferência de substancia embrionária animal ao útero da mulher e vice-versa para efetuar experiências; g) implantação de embrião manipulado geneticamente no útero de uma mulher, sem qualquer objetivo terapêutico; h) criação de seres transgênicos, ou seja, de animais cujo DNA contenha genes humanos, para que possam produzir hormônios ou proteínas humanas a serem utilizadas como remédio para certas moléstias; i) introdução de informação genética animal para tornar a pessoa mais resistente aos rigores climáticos; j) produção e armazenamento de armas bacteriológicas etc.” Por certo que a busca de um gene mais favorável só tem cabimento quando não interferir nos direitos humanos, entre os quais estão as decisões acerca da reprodução, por isso, a terapia gênica e o aconselhamento genético devem ater-se apenas na transferência de genes de um organismo para outro para curar ou diminuir doenças. Mas é preciso ter prudência, evitando-se qualquer intervenção sobre o óvulo fecundado, uma vez que provocaria alteração em sua identidade e a eliminação total da daquele ser humano em potencial distanciando-se totalmente de qualquer proposta de terapia. Tal prática nada mais é do que eugenia visando tão somente o melhoramento genético da espécie humana. Ensina DINIZ (2006)[29], a terapia normal em embriões, que se dá em razão de diagnóstico pré-natal, de caráter genético ou não, é louvável por visar a sua cura por meios terapêuticos habituais, como dietas, medicamentos etc. Por exemplo, a síndrome adrenogenital, provocada por deficiência de uma substância denominada 21-hidroxilase, poderá ser tratada se aplicar, periodicamente, cortisona ao feto de sexo feminino, evitando-se masculinização de sua genitália externa. Se uma gestante apresentar transtorno na taxa de fenilcetonúria bastará que faça uma dieta adequada durante a gestação e depois do parto da criança, para impedir que esta venha a ter algum defeito congênito no coração ou debilidade mental. O tratamento neonatal poderá sanar uma anomalia detectada no diagnóstico, sendo levado a efeito sempre que existir a esperança de que a criança nasça sadia e tenha mais benefícios com essa terapia do que com a instaurada após o parto. Ainda de acordo com Diniz, fácil é perceber que os pesquisadores e geneticistas só têm direito á liberdade cientifica se esta destinar-se a fins terapêuticos que não coloquem em risco a sobrevivência da espécie humana, levando em consideração a dignidade da pessoa humana e preservando sua integridade física e psíquica e a vida, que é um bem jurídico fundamental, por ser o suporte biológico do indivíduo e da humanidade, não podendo ser “aprendizes de feiticeiros”, nem muito menos, “brincar de Deus”, pretendendo, instigados por interesses econômicos, ter o poder de controle sobre a vida humana, dando origem a uma poluição biológica, que é mais fatal do que a química. A terapia gênica somente deve ser admitida em moléstias graves e fatais que não tenham alternativa de tratamento, desde que possa fornecer alguma garantia para superar ou diminuir os efeitos da enfermidade, não influa sobre o código genético e não se dirija à seleção da espécie, visando melhorar a dotação genética da humanidade. É, portanto, a intangibilidade do patrimônio genético da humanidade que assegura a sobrevivência da espécie. É inconcebível que a manipulação genética seja utilizada para seleção de caracteres de um indivíduo por nascer, definindo-lhe o sexo, a cor dos olhos, a contextura física, etc. É de se notar que, no Brasil o Conselho Federal de Medicina se opõe a seleção do sexo, assim como de outras características. Permitir tais escolhas é o mesmo que consentir a seleção da espécie humana, ou seja, legalização da eugenia. Infelizmente os ditadores científicos e suas promessas futuristas manipulam o pensamento das pessoas. O anseio pela perfeição e pela felicidade num mundo sem doença e sem sofrimento faz com que as pessoas se curvem a ditadura científica sem questionar os métodos. Parafraseando Aldous Huxley, também nos dias atuais percebe-se o aprimoramento dos métodos de terror com métodos de aceitação.   HUXLEY (1962)[30], fez um discurso sobre a ditadura científica do futuro retratada em seu livro "Admirável Mundo Novo", onde esclareceu que sua obra não foi baseada em ficção e sim sobre o que a elite planejava implantar à época. Cabe colacionar o referido discurso: “E aqui gostaria de comparar rapidamente a parábola de “Admirável Mundo Novo”, com outra parábola que foi adiantada no livro de George Orwell (1984). Estou inclinado a pensar que a ditadura científica do futuro, eu acho que será a ditadura cientifica em muitas partes do mundo será provavelmente mais próxima do padrão de “Admirável Mundo Novo”, do que o padrão de 1984. Será mais próxima não devido a tendências humanitárias dos ditadores científicos, mas simplesmente porque o padrão de “Admirável Mundo Novo” será provavelmente mais eficiente do que o outro (padrão). Mas se você conseguir que as pessoas concordem com o estado das coisas nas quais elas vivem, o estado de servidão, o estado de ser, bem, isso parece para mim que a natureza da revolução final que estamos enfrentando agora é precisamente esse – que estamos em um processo de desenvolvimento – de uma série de técnicas que farão com que a oligarquia controladora, que sempre existiu e possivelmente sempre existirá levem as pessoas a amar sua servidão. Pode-se fazer as pessoas gostarem do estado das coisas que de outra forma elas não concordariam, e esses métodos, eu acho, são um refinamento real sobre outros métodos de terror porque combinam métodos de terror com métodos de aceitação. Bem, então, existem vários outros métodos que podem ser usados, há, por exemplo, o método farmacológico, esse é uma daquelas – coisas sobre as quais eu falei em “Admirável Mundo Novo”, e o resultado – seria que, você pode imaginar a euforia que faria as pessoas muito felizes, mesmo nas circunstancias mais abomináveis, quero dizer, essas coisas são possíveis.” Estaria à perfeição genética muito próxima da realidade humana ou vice-versa? Estaria à humanidade se aproximando do “admirável mundo novo” ou vice-versa? O grande impulso da engenharia genética trouxe em seu bojo uma série de problemas éticos e jurídicos relacionados com a vida, que vêm se avantajando em complexidade à medida que as tecnologias e a manipulação genética vêm se aprimorando, despertando um clamor social em busca do acesso aos novos exames, testes e técnicas que prometem a cura, o bem e a perfeição. Até que ponto pode-se consentir o aborto por questões genéticas, tendo em vista que o princípio da dignidade da pessoa humana independentemente das características genéticas do homem? Segundo DINIZ (2006)[31], a suspeita ou detecção de uma doença hereditária traz como consequência a questão do aconselhamento genético a ser dado pelo médico a um casal sobre os riscos que poderão advir se vier a ter um filho, para que possa tomar a decisão de tê-lo ou não, ou aos pais, para auxiliá-los no diagnóstico, terapia ou prognóstico da enfermidade genética do feto. Para tanto, deverá prestar com clareza todas as informações e assessorar, sem, contudo, induzir, procurando o otimismo, e mostrando, de modo humano, as probabilidades de terem um filho sadio, pois na transmissão de enfermidades hereditárias intervêm, além da genética, outros fatores, que impossibilitam um prognóstico de valor absoluto. Assim sendo, mesmo depois do nascimento de um filho que apresenta distúrbios, a chance do casal de ter outro normal será de 90 a 98%. Constitui dever do médico, ainda, expor as possíveis terapias para melhorar a vida da criança com problemas congênitos sem nunca sugerir o aborto. Será que se deveria admitir o aborto eugênico quando o feto apresentasse anomalia congênita, grave e incurável? Qual o limite para saber se uma deficiência física ou psíquica do feto justificaria, pela sua gravidade, a interrupção da gestação? Será que o portador de uma deficiência física ou mental não mereceria viver? Seria possível valorar qualitativamente a vida de um deficiente? Poder-se-ia recusar-lhe um tratamento pré-natal, proceder a interrupção da gravidez ou admitir a eutanásia logo depois do parto? Poder-se-ia exigir a esterilização dos deficientes físicos ou mentais? Não seria isso um crime eugênico contra a humanidade? Não seria esse eugenismo ou racismo genético uma volta, em surdina, do nazismo, acalentando-se o sonho de um “admirável mundo novo” povoado por seres humanos perfeitos? Deveríamos nos perguntar com bastante eloquência qual o papel do direito nesse contexto, considerando que a sociedade está cada vez mais dependente desta ciência e de toda sua tecnologia. É preciso esclarecer que a manipulação genética revestida de objetivos eugênicos e que coloca em risco a dignidade humana provocando danos irreversíveis as gerações futuras têm que ser totalmente coibida pelo ordenamento jurídico.  Imprescindível a efetividade das normas para tutelar a inviolabilidade da herança genética. O patrimônio genético poderá estar comprometido se a manipulação genética não for utilização de forma ética, consciente, correta e legal. Por isso deve-se fiscalizar a aplicação das novas técnicas da engenharia genética, seus resultados e produtos, bem conhecer os termos de sua tutela jurídica e utilizar dos mecanismos legais de proteção para coibir qualquer prática discriminatória e atentatória á dignidade humana. Imitando a ficção, já dispomos de testes genéticos capazes de prever certas doenças. Tais testes devem ser exclusivos para a busca da cura de doenças, não podendo as pessoas deles se utilizarem para escolher as caracteristicas de seus filhos tampouco para buscar a procriação de filhos perfeitos, afinal não são os genes que determinarão o destino da humanidade. Frente a estas questões, é de extrema importancia que a humanidade seja totalmente protegida pelos princípios éticos, de modo que a manipulação genética seja utilizada apenas para melhorar a qualidade de vida do homem. A obra de Huxley nos faz refletir: para onde caminhará a nossa civilização, tendo em vista que a ficção e a realidade já se comunicam? 5 Utilização de embriões na pesquisa genética O embrião é o produto da concepção, assim chamado durante os três primeiros meses, a partir dos quais se denomina feto. De acordo com CONTI (2001)[32], desde a concepção existe uma autentica pessoa porque a fecundação determina a personalidade. O embrião, ser em formação, é merecedor de toda proteção jurídica. O direito pátrio agasalha essa proteção, com norma positivada na Constituição, no seu artigo 5º. É o mais fundamental de todos os direitos. Considerando que a vida inicia-se no ato da concepção, ou seja, da fecundação do óvulo pelo espermatozoide, dentro ou fora do útero, e que a vida humana é um bem indisponível, como admitir determinadas experiências genéticas com o embrião? Após a fecundação, embora haja inúmeras transformações até o nascimento do novo ser, cumpre enfatizar que não haverá qualquer alteração em seu código genético, que é singular, tornando a vida humana irrepetível. Comenta CONTI (2001)[33], que, algumas vozes se levantam, alertando consciências sobre o fato inegável de que o embrião humano é homem, desde o seu inicio, como disse Tertuliano no século III: “já é homem aquele que o será”. Os avanços científicos caminham passos largos à frente do Direito, que retarda a sua adequação à consequência daqueles. Essa distância entre ciência e Direito origina um espaço jurídico em branco que remete o jurista a refletir e propor requisitos para possibilitar os procedimentos e pesquisas científicas através de embriões. Assim, será preciso estabelecer comitês que avaliem os procedimentos de pesquisa, a coerência do método científico proposto e estabelecer critérios de proporcionalidade entre meios e fins. Estes comitês deverão ser formados por pessoas idôneas e com capacidade para buscar fórmulas de consenso real, e não meras justaposições de posições diversas. Independente das exaustivas discussões de muitos autores acerca do inicio da vida ou do estágio inicial do embrião, usar ou gerar embriões para determinadas pesquisas traz problemas éticos e jurídicos. O embrião tem abrigado constitucionalmente os seus direitos e por isso tem personalidade jurídica formal. Segundo DINIZ (2006)[34], o embrião, ou o nascituro, tem resguardados, normativamente, desde a concepção, os seus direitos, porque a partir dela passa a ter existência e vida orgânica e biológica própria, independente da de sua mãe. Se as normas o protegem é porque tem personalidade jurídica. Na vida intrauterina, ou mesmo in vitro, tem personalidade jurídica, tem personalidade jurídica formal, relativamente aos direitos da personalidade, consagrados constitucionalmente, adquirindo personalidade jurídica material apenas se nascer com vida, ocasião em que será titular dos direitos patrimoniais e das obrigações, que se encontravam em estado potencial, e do direito às indenizações por dano moral e patrimonial por ele sofrido. Receberá tal indenização a partir do nascimento até completar a idade de 21 anos (TACSP, 10ª Câm., Ap. c/ Ver. 489.775-0/7. Mogi Guaçu, j. 20-10-1997). Por isso será preciso, portanto, delimitar as fronteiras da responsabilidade civil por dano moral ao nascituro, tanto na fertilização natural como assistida. Segundo ASCENSÃO (2010)[35], eticamente, um embrião é uma pessoa. Desde o momento da concepção traz consigo, totalmente demarcados em seus genes e cromossomos, as caracterizações de individualidade que o tornam um ser humano único e irrepetível. Do ponto de vista da ética, o embrião é um ser humano em potencial, desde o momento da fecundação, portador de dignidade e merecedor de todo o respeito. Do ponto de vista ético e legal devem ser questionados procedimentos que envolvam a doação de gametas, seleção de sexo, útero de substituição, seleção de embriões e clonagem, coibindo a instauração de verdadeiras práticas eugênicas. Na lição de PETRACCO (2004)[36], o destino dos embriões excedentes da fertilização in vitro. A fertilização in vitro e a transferência de embriões (FIVeTE), por razões técnicas, pode produzir um número de embriões maior do qual será transferido, uma vez que para evitar o risco da gravidez múltipla transferem-se normalmente 3 a 4 embriões. Desta forma cria-se o problema dos embriões excedentes os quais poderiam ser congelados, destruídos, doados ou destinados à pesquisa. Este tema leva à discussão do status moral do embrião. Do ponto de vista da ética, o embrião é um ser humano em potencial, desde o momento da fecundação. Tem dignidade e merece respeito. Portanto, sua destruição é indefensável e a manipulação a que pode ser submetido deve ser limitada, sendo aceitáveis somente procedimentos que sejam benéficos (terapêuticos), o que é difícil determinar neste momento. A doação deve ser considerada como adoção pré-natal. O uso em pesquisa contraria as normas e diretrizes em seres humanos, desde o Código de Nuremberg, que propõe o impedimento de experimentos cujo desfecho possível seja a morte. O congelamento destes embriões, com finalidade de transferência em outros ciclos e com isto aumentar a chance de gravidez, ou com a finalidade de obter uma segunda gestação, também é passível de objeções. Porém, torna-se eticamente aceitável quando passa a ser a maneira destes embriões chegarem à vida. Esses embriões sejam ou não pessoas humanas atuais ou potenciais, vivem somente graças à ciência e à técnica. E a intenção é que vivam, ainda que se saiba que suas possibilidades certamente são limitadas. Ainda leciona o autor (2004)[37], a seleção de sexo na reprodução assistida pode ser feita através da separação de espermatozoides masculinos (Y) ou femininos (X) ou pela identificação genética dos embriões através da biópsia de células embrionárias. Na primeira situação, exige o questionamento quanto à escolha do sexo e na segunda, associa-se à problemática dos embriões indesejados. A sexagem é justificada quando utilizada para evitar transtornos genéticos ligados ao sexo. Pode ser aceita em outra circunstância que não para evitar doenças genéticas/hereditárias? Do ponto de vista bioético, não há justificativa, pois estaríamos frente a um meio de discriminação sexual contra qualquer um dos sexos. No Brasil a Constituição da República se opõe a seleção do sexo, assim como de outras características. Explica PETRACCO (2004)[38], o medo de que este embrião seja usado como um meio e não como um fim em si mesmo, o risco de redução da diversidade dos indivíduos com consequente despersonalização são, entre outros, objeções éticas que justificam o parecer do Conselho da Europa no sentido de proibir a clonagem com o fim reprodutivo. Diante de tamanha evolução cientifica surge a necessidade de se reconhecer dignidade da pessoa a partir das novas concepções acerca do embrião. O respeito à dignidade inerente à pessoa deve ser reformulada a partir de novas concepções relacionadas com o status do embrião. Segundo SANTOS (1998)[39], a necessidade do respeito à dignidade inerente á pessoa deve ser reformulada a partir de novas concepções relacionadas com o status do embrião. Em princípio, desde que a pessoa exista há um reconhecimento legal. A determinação do status do embrião está ligada à definição do que é vida e quando se dá o início da vida.  Quando se dá o início da vida, como vimos, não é unânime, tendo em conta a falta de unicidade de critérios, alguns grupos emitiram suas próprias definições. Assim o Comitê do Royal College of Obstetrician and Gynecologist (RCOG Comitee – Londres) afirma que: "a questão moral em si não é quando começa a vida, mas em que ponto do desenvolvimento do embrião devemos atribuir-lhe a proteção devida ao ser humano". O Ethics Advisory Board Federal dos Estados Unidos respondeu à pergunta: "Depois de muitas discussões e análises a respeito da informação científica e ao status do embrião, este grupo acorda que o embrião humano merece profundo respeito, mas este respeito não se acompanha necessariamente dos plenos direitos legais e morais atribuídos à pessoa". Em abril de 1981, o Congresso dos Estados Unidos, após consultar um grande número de especialistas decidiu que, "segundo a evidência científica atual, o ser humano existe desde o momento da concepção". Leciona MELO (2005)[40], a redução embrionária consiste em um aborto seletivo proposto quando, após a transferência dos embriões (três, quatro ou mais), ocorre à implantação "inadvertida" de todos eles. Essa atitude denomina-se iatrogenia intencional ou lato sensu. Trata-se de qualquer dano causado a alguém por um ato médico, quer seja este ato terapêutico ou cirúrgico; entretanto o dano ocorre de uma falha no atuar médico, a realização do ato médico culposa. Há, ainda, os que defendem este tipo de atuação como má prática médica, como atuar doloso do profissional, haja vista que o mesmo conhece os riscos de realizar o procedimento, transferir mais de dois embriões para a paciente, mas assume o risco de uma gestação múltipla em nome do resultado positivo. Caracteriza dolo eventual porque o médico conhece e assume os riscos (tem consciência da lesividade do ato) e mesmo assim decide agir (assume as consequências de produção do resultado). Nesta interpretação a atuação do médico sairia da seara da iatrogenia e adentraria na conduta criminosa dolosa, uma vez que não existe a figura do aborto culposo. A redução embrionária é um aborto tanto para a conceituação médica quanto para a jurídica. Ocorre a subsunção dos tipos de aborto previstos no Código Penal Brasileiro ao procedimento de redução embrionária, pois o bem jurídico tutelado pela lei é a preservação da vida humana. O posicionamento em defesa da licitude da redução embrionária, uma vez que a mesma não interrompe a gravidez, logo não se caracterizaria o crime de aborto mostra-se inaceitável juridicamente. Haja vista, ser fruto de uma interpretação equivocada e desastrada dos tipos penais e toda filosofia do direito penal brasileiro. Pois, para os defensores desta tese jurídica, a lei estaria protegendo o estágio gestacional em detrimento da vida humana. Um absurdo, uma deturpação da lei, pois se assim o fosse, o bem jurídico tutelado (objeto jurídico) pelo crime de aborto seria a gravidez e não a vida humana. A promessa de cura a todas as enfermidades a que sofre a espécie humana através da manipulação genética é importante e significativa aos olhos da sociedade, todavia deve-se ater para o fato de que dentre os direitos de ordem física, o direito à vida ocupa posição de preferência, como bem maior na esfera natural e jurídica onde todos os demais estão condicionados. Para BITTAR (2006)[41], esse direito estende-se a qualquer ente trazido a lume pela espécie humana, independentemente do modo de nascimento, da condição do ser, de seu estado físico ou de seu estado psíquico. Basta que se trate de forma humana, concebida ou nascida natural ou artificialmente (in vitro, ou por inseminação artificial), não importando, portanto: fecundação artificial por qualquer processo; eventuais anomalias físicas ou psíquicas de qualquer grau; estados anormais: coma, letargia ou de vida vegetativa; manutenção do estado vital com o auxílio de processos mecânicos, ou outros (daí por que questões como a da morte aparente e a da ressurreição posterior devem ser resolvidas, à luz do direito, sob a égide da extinção, ou não, da chama vital, remanescendo a personalidade enquanto presente e, portanto, intacto o direito correspondente).   Segundo BITTAR (2006)[42], a realização de combinações genéticas artificiais – que com plantas vêm sendo realizadas (engenharia genética) – encontra óbice na órbita jurídica quanto a seres humanos, na medida em que interfere nos desígnios do próprio destino, não nos parece aconselhável à estimulação, pela afetação da espécie e com consequências ora imprevisíveis. Considerado o princípio da dignidade da pessoa humana, pode-se dizer que a pessoa é o bem supremo da ordem jurídica, o seu fundamento e seu fim. Sendo possível concluir que a ciência deve existe em função da vida humana, independentemente do estágio em que se encontre. Alguns autores defendem com muita mestria o reconhecimento do regime aberto dos direitos da personalidade, uma vez que se fundamenta no princípio da dignidade da pessoa humana, objetivando sua caracterização como direito incondicional. Segundo BELTRÃO (2005)[43], além dos tipos previstos na Constituição da República e no Código Civil de 2002, são direitos da personalidade os que verdadeiramente forem emanados da personalidade humana. Desde os primórdios atribuía-se ao ser humano a origem e a finalidade da lei e do direito, revelando que já naqueles longínquos tempos se concebia ser o próprio ente humano o destinatário primeiro e final da ordem jurídica.  Segundo SZANIAWSKI (2005)[44], é de se observar que já havia em Roma a tutela da personalidade humana através da actio iniurariam, que assumia a feição de uma verdadeira cláusula geral protetora da personalidade do ser humano. Todavia, esta proteção não apresentava, nem poderia oferecer uma tutela da pessoa na mesma intensidade e no mesmo aspecto que hoje, principalmente devido à diferente organização social daquele povo, distante e desprendido da visão individualista que possuímos de nossa pessoa, à completa ausência de desenvolvimento de pesquisas médicas e biológicas que possuímos na atualidade e a inexistência de tecnologia e aparelhos que viessem a atacar e a violar as diversas manifestações da personalidade humana. Ensina SZANIAWSKI (2005)[45], que foi tendência do final do século XX, e torna-se realidade no século XXI, a afirmação do direito geral de personalidade, mediante a inserção na Constituição e em normas infraconstitucionais, da cláusula geral de tutela da personalidade humana, uma vez que a estreita visão privatística dos direitos de personalidade, que não estejam vinculados à categoria ampla de direitos do homem, se mostra insuficiente para a tutela da personalidade. A ordem jurídica deve ser entendida como um todo, onde, dentro de uma hierarquia de valores, tenha um local primacial a noção de que o homem é pessoa dotada de inalienável e inviolável dignidade. Somente a leitura da norma civil à luz da constituição e de seus princípios superiores é que revelará, à noção de direito da personalidade, e sua verdadeira dimensão. Ainda o referido autor (2005)[46], leciona que, embora afirmem alguns que a personalidade do ser humano se inicia a partir de seu nascimento com vida, esta não é a opinião predominante, uma vez que parte considerável da doutrina brasileira considera o nascituro portador de personalidade e sujeito de direitos. E não seria somente o nascituro, como expressamente diz o dispositivo, mas, também, o concepturo seria digno de proteção em todos os seus aspectos, sendo possuidor, desde o momento da concepção, de personalidade. Para DINIZ (2006)[47], a vida humana é amparada juridicamente desde o momento da fecundação natural ou artificial do óvulo pelo espermatozóide (art. 2ª Lei nº 11.105/2005, arts. 6º, III, in fine, 24, 25, 27, IV, e CP, arts. 124 a 128). O direito à vida integra-se à pessoa até o seu óbito, abrangendo o direito de nascer, o de continuar vivo e o de subsistência, mediante trabalho honesto (Constituição da República, art. 7º) ou prestação de alimentos (Constituição da República, arts. 5º, LXVII, e 229), pouco importando que seja idosa (Constituição da República, art. 230), nascituro, criança, adolescente (Constituição da República, art. 227), portadora de anomalias físicas e psíquicas (Constituição da República, arts. 203, IV, 227, § 1º, II), que esteja em coma ou que haja manutenção do estado vital por meio de processo mecânico.  Assim, deve-se considerar a vida em todos os aspectos para que as pesquisas com embriões humanos não tome por objeto valores discriminatórios e eugênicos. O debate acerca da tecnologia genética deve caminhar pari passu com o princípio da dignidade humana. Dever-se-á ter o mais absoluto respeito pela vida e integridade física e mental dos embriões pré-implantatórios ou dos nascituros, sendo suscetível de indenização por dano moral qualquer lesão que venham a sofrer, como deformações, traumatismos, infecções, intoxicações etc., em caso de manipulação genética, experiências cientificas de toda sorte, criação de aberrações genéticas, Comercialização de embriões excedentes (Lei n. 11.105 de 2005 art. 5º, § 3º) para fins experimentais, cosmetológicos, ou para a fabricação de armas biológicas de extermínio, etc. O reconhecimento do direito à vida desde a concepção como um direito fundamental faz com que se proíba a violação dos direitos do embrião ou nascituro, e, ante as disposições constitucionais, os juristas, cientistas, legisladores e dirigentes das nações tem o dever de proteger a inviolabilidade da vida humana, dos interesses políticos, socioeconômicos, ideológicos, ou particulares. O direito à vida que é garantido deve ser apreendido como o direito a qualquer vida humana. Oportuna a reflexão de ROCHA (2008)[48], nesse contexto, a permissão para se utilizar embriões humanos para fins de pesquisa científica, permitindo-se deles derivar células-tronco embrionárias, atendam eles ou não o critério, arbitrário, de 14 dias, sejam ou não provenientes da técnica de fertilização in vitro, estejam ou não congelados há mais de três ou de cinco anos, resultem ou não da técnica da clonagem terapêutica, abre espaço para que experiências de toda ordem sejam colocadas em prática, inclusive, experimentos científicos de cunho eugenético. Ainda a mesma autora (2008)[49], muito embora esses relatos apresentem contornos de questões já superadas após a publicação de inúmeros diplomas legais e éticos, tais como o Código de Nuremberg em 1947, a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, a Declaração de Helsinki em 1964, o Relatório Belmont em 1978, entre outras disposições jurídicas, elaboradas com a finalidade de estabelecer princípios que orientem a prática da experiência científica envolvendo seres humanos, garantindo-se o direito à vida, à integridade física e psíquica, dos envolvidos, e o respeito â dignidade da pessoa humana, o espectro do eugenismo voltou a rondar a sociedade contemporânea com a incipiente capacidade demonstrada pelos cientistas em manipular genes humanos. Segundo Stella Maris Martinez citada por ROCHA (2008)[50], temerosa frente ao incomensurável avanço alcançado, nos últimos cinquenta anos, pelas ciências biomédicas, observa: a magnitude desses avanços demonstra a possibilidade real de levar a cabo programas de eugenia ativa, nos quais, mediante a manipulação genética, se defina o sexo, a cor dos olhos, ou a contextura física dos indivíduos por nascer. E mais ainda: não é descartado imaginar a seleção hipotética de um indivíduo perfeito – segundo os cânones culturais vigentes em determinado momento histórico – e a subsequente produção, mediante clonação, de seres humanos em série, idênticos ao modelo; ou, ao contrário, supor a criação de seres de baixíssimo nível intelectual, mas dotados de extraordinária força física, aos quais se destine a realização das tarefas mais rudes. À luz do princípio da dignidade da pessoa humana deve-se conferir ao embrião humano uma tutela desvinculada de qualquer interesse particular para a sua coisificação. 6 A busca da perfeição humana e genética A engenharia genética, na lição de Suzuki e Knudtson, consiste no emprego de técnicas científicas dirigidas á modificação da constituição genética de células e organismos, mediante manipulação de genes. Com o desenvolvimento do diagnóstico genético, surgiram inúmeras e intermináveis discussões com base em pressupostos eugênicos. Eugenia na definição do dicionário jurídico (2005)[51] é a ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento da espécie humana. São muitos os autores que têm chamado à atenção para as consequências que podem ter o movimento de eugenia sobre o ser humano. A cada dia busca-se mais e mais a perfeição da espécie. Com as promessas da genética, será cada vez mais difícil aceitar os não-perfeitos, podendo, criar na sociedade um consentimento interno e externo através de apoio a políticas que admitam práticas geneticas objetivando uma espécie pura. A enorme faceta da ciência que visa atingir a criação de um ser humano perfeito realizando, para tanto, pesquisas e manipulação genética que interferem na ordem natural da vida, fazem surgir uma forte reação da ética e do direito, onde o respeito à dignidade da vida humana deve se sobrepor a todos os outros valores, ainda que científicos. A aplicação dos direitos da personalidade reclama um significado especial à dignidade humana frente às novas técnicas de pesquisa e experiências gênicas, devendo valer para todos os homens desde o primeiro instante de sua vida com a fecundação e alcançar este momento. Os direitos da personalidade servem de vetor nas pesquisas e manipulação genética com a finalidade de promover e defender o seu próprio fundamento, qual seja: a dignidade da pessoa humana. Verifica-se deste modo, um círculo, onde a dignidade constitui fundamento e fim da engenharia genética. É relevante a desconstrução de promessas científicas discriminatórias, que buscam práticas eugênicas em prol de um ser humano totalmente perfeito, pois diante de tanto conhecimento científico e avanço da engenharia genética, deve-se ter como paradigma os princípios da vida e da dignidade humana. Não obstante o conhecimento científico revelar-se um traço caracterísitico do comportamento humano cumpre indagarmos se o avanço da ciência justificaria o uso inceitável de pesquisas que violam a dignidade humana, ou melhor, dizer, se a utilização de práticas de eugenia se justificaria para a busca por uma espécie humana perfeita.   Assim, a discussão também perpassa pela necessidade do cumprimento e respeito aos princípios éticos básicos que devem nortear a conduta da pesquisa biomédica e comportamental que envolve seres humanos, bem como o cumprimento dos direitos fundamentais já existentes na Constituição da República de 1988. Segundo LEITE (2008)[52], desse modo, percebe-se que a Constituição tem a capacidade de absorver todos os valores que norteiam à bioética, de modo que as situações trazidas por esta nova realidade possam ter não apenas uma justificação moral, mas também uma justificação jurídica, como mecanismo legitimador da proteção à dignidade da pessoa humana. A dignidade da pessoa humana constitui não só o fundamento do nosso ordenamento jurídico, mas também, o início e o fim para as pesquisas e manipulações genéticas. Um ponto que tem que ser destacado é que, toda interpretação que seja dada a qualquer norma do sistema jurídico brasileiro, e como tal à liberdade de pesquisa, haverá de ser informada pelo princípio fundamental da dignidade humana, que no texto constitucional vigente aparece como fundamento do Estado Democrático de Direito e, portanto, vetor da interpretação constitucional. Embora cientistas e pesquisadores acreditem que com a pesquisa e manipulação genética poderão aumentar as possibilidades de eliminar as doenças de origem genética que atingem um número importante de pessoas em todo o mundo, sabe-se que os avanços científicos além de influenciar na saúde humana, também criam um grande risco para a humanidade pela possibilidade de condicionar o homem à escravidão de seus desejos, buscando o controle sobre a vida, procurando criar um ser humano perfeito, o que levaria a uma coisificação da espécie. Segundo DINIZ (2006)[53], com a rapidez das revoluções operadas pelas ciências biomédicas e com o surgir das difíceis questões ético-jurídicas por elas suscitadas, o direito não poderia deixar de reagir, diante dos riscos a que a espécie humana está sujeita, impondo limites à liberdade de pesquisa, consagrada pelo art. 5º, LX, da Constituição Federal de 1988. Ainda, a mesma autora (2006)[54], leciona que a Constituição da República de 1988, em seu art. 5º, IX, proclama a liberdade da atividade cientifica como um dos direitos fundamentais, mas isso não significa que ela seja absoluta e não contenha qualquer limitação, pois há outros valores e bens jurídicos reconhecidos constitucionalmente, como a vida, a integridade física e psíquica, a privacidade etc., que poderiam ser gravemente afetados pelo mau uso da liberdade de pesquisa científica. Havendo conflito entre a livre expressão da atividade científica e outro direito fundamental da pessoa humana, a solução ou o ponto de equilíbrio deverá ser o respeito à dignidade humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, previsto no art. 1º, III, da Constituição Federal. Nenhuma liberdade de investigação cientifica poderá ser aceita se colocar em perigo a pessoa humana e sua dignidade. A liberdade científica sofrerá as restrições que forem imprescindíveis para a preservação do ser humano na sua dignidade. A verdade é que, coloca-se em discussão a ideia da dignidade humana, segundo valores socialmente impostos. É introduzido na sociedade um desejo pela busca insaturável de cura e vitalidade por meio da exploração genética justificando-se não mais pelo bem comum e sim pela autonomia da vontade. Segundo CONTI (2001)[55], existem cada vez mais propostas de testes genéticos obrigatórios. Na história da humanidade a discriminação genética sempre esteve presente. Pessoas com doenças ou enfermidades são isoladas e até mesmo já chegaram a ser eliminadas. O que temos de novidade é que, hoje, tornou-se possível estabelecer a presença de uma doença antes mesmo que ela se manifeste. Ainda a mesma autora (2001)[56], leciona que, não é possível permitir que a sociedade futura surja um novo sistema de classe, no qual os seres humanos serão diferenciados pelos seus genes, pois caminharemos para uma genetocracia. Em anos próximos, marcadores genéticos para características humanas com altura, peso, ou mesmo coordenação motora, tendência musical e habilidade intelectual, poderão estar disponíveis no mercado. A sociedade vem sendo alimentada com propostas de mudanças na decisão reprodutiva sem se ater que todo esse conhecimento poderá caminhar para um processo de eugênese através do aborto seletivo. Notícias revelam que na Índia milhares de abortos são realizados com base no sexo do feto. Nos Estados Unidos 10% das mulheres entrevistadas não hesitaram em abortar crianças propensas à obesidade. Parece-nos ser apenas um pequeno passo para o uso da análise genética do feto para justificar a interrupção de uma gestação por qualquer tipo de insuficiência genética, ou melhor, dizer, os pais decidirão que tipo de criança nascerá. A imposição de limites às pesquisas genéticas é o caminho para controlar a busca desenfreada do ser humano perfeito, reconhecendo-se que o respeito ao ser humano em todas as suas fases só é alcançado se estiver atento à dignidade humana, pois, o direito à vida, por ser essencial ao ser humano, condiciona os demais direitos da personalidade. Discriminação genética tem sido associada à eugênia, dando às características desejáveis no ser humano maiores chances de prevalecer. A seleção de filhos perfeitos é uma questão ética na génetica a ser discutida por muitos e muitos anos. A proteção ao patrimonio genético e o direito à vida exige que seja esclarecido para a sociedade não apenas o que a engenharia genetica pode fazer, mas também, o que ela não pode fazer. Os cientistas, geneticistas, médicos precisam saber e entender como a sociedade assume e utiliza o conhecimento que é disponibilizado, cumprindo com suas responsabilidades científicas na produção e na divugação das consequencias se, utilizados os novos conhecimentos com abusos. O progresso científico feito à margem do ordenamento jurídico podem apresnetar graves problemas para a humanidade. O Direito não pode estar à margem em relação à problemática da engenharia genética e aguardar omisso, por longo tempo, que as questões dela decorrente assumam proporções que estimule uma aceitação social da eugenia. As pesquisas a respeito da engenharia genética demandam imediata intervenção do Direito para uma tomada de posições sobre questões de alta indagação, tais como os limites da liberdade de pesquisa dos operadores da manipulação genética, caso contrário poderemos nos encontrar diante de horrores como atribuir as más condições de vida de uma parcela da sociedade aos seus genes do que efetivamente tomar uma atitude para mudar suas condições de vida, originando assim, um “paradoxo social eugênico”. Deve-se atentar a tudo relacionado a engenharia genética, pois a tentativa de se alcançar a perfeição ou a juventude eterna, em nome da ciência e da tecnologia pode ocasionar o fim da espécie humna.  Segundo FILHO (2001)[57], a ideia de uma perfeição genética e da eliminação, por meios genéticos, da preciosa variedade da humanidade é socilamente repulsiva e apresenta um grande risco para a espécie humana, que tem sobrevivido, e evoluído, como reultado das inúmeras diferenças genéticas individuais. A história está repleta de pessoas que alcançaram grande êxito apesar de apresentarem alterações importantes, ao conseguir superá-las. Assim, o poeta Milton padeceu de cegueira, Goya e Beethoven de surdez, Mahler morreu devido a um problema congênito de visão. A situação descrita pela autora apenas vem reforçar nosso entendimento de qualquer tentativa de se criar o ser humano perfeito não pode ter proteção jurídica ou ética, sendo totalmente contra as leis do homem, bem como as de Deus. 7 Genética, bioética e biodireito DINIZ (2006)[58]: “Com o reconhecimento do respeito à dignidade humana, a bioética e o biodireito passam a ter um sentido humanista, estabelecendo um vínculo com a justiça. Os direitos humanos, decorrentes da condição humana e das necessidades fundamentais de toda pessoa humana, referem-se à preservação da integridade e da dignidade dos seres humanos e à plena realização de sua personalidade. A bioética e o biodireito andam necessariamente juntos com os direitos humanos, não podendo, por isso, obstinar-se em não ver as tentativas da biologia molecular ou da biotecnociência de manterem injustiças contra a pessoa humana sob a máscara modernizante de que buscam o progresso cientifico em prol da humanidade. Se em algum lugar houver qualquer ato que não assegure a dignidade humana, ele deverá ser repudiado por contrariar as exigências ético-jurídicas dos direitos humanos. Assim, sendo, intervenções científicas sobre a pessoa humana que possam atingir sua vida e a integridade físico-mental deverão subordinar-se a preceitos éticos e não poderão contrariar os direitos humanos. As práticas das “ciências da vida”, que podem trazer enormes benefícios à humanidade, contêm riscos potenciais muito perigosos e imprevisíveis, e, por tal razão, os profissionais da saúde devem estar atentos para que não transponham os limites éticos impostos pelo respeito à pessoa humana e à sua vida, integridade e dignidade”. O avanço da engenharia genética reclama da sociedade uma rediscussão de natureza axiológica, de modo que devemos estar cientes do bem ou do mal que pode advir desta revolução tecnológica. Concluímos um século e ingressamos em outro discutindo temas, a exemplo da clonagem de embriões humanos, mapeamento do genoma humano, transplante e comercialização de órgãos, entre outros de igual relevo. Segundo DINIZ (2006)[59], esse entrecruzamento da ética com as ciências da vida e com o progresso da biotecnologia provocou uma radical mudança nas formas tradicionais de agir dos profissionais da saúde, dando outra imagem à ética médica e, consequentemente, originando um novo ramo do saber, qual seja, a bioética. Leciona CONTI (2001)[60], a investigação científica e a pratica da medicina constituem objeto da bioética que estuda e determina os princípios que devem regular a conduta humana, frente à moral, impondo respeito à vida e à dignidade do homem. LEITE explica que (2008)[61], a preocupação com a vida humana e com a conduta daqueles que lidam, direta ou indiretamente, com referido valor faz surgir um novo ramo do saber conhecido por Bioética. Esta expressão foi utilizada pela primeira vez pelo oncologista norte-americano, Van Rensselaer Potter, em artigo intitulado Bioethics, the science of survival, publicado em 1970. No ano seguinte, o Prof. Potter publica a clássica obra que o consagra: Bioethics: bridge to the future. Aqui, o pesquisador apresenta a Bioética como uma ética interdisciplinar, preocupada com a relação e preservação dos seres humanos com o ecossistema e a própria vida do planeta, de modo que o progresso tecnocientífico não deve prescindir dos valores culturais e éticos da sociedade sob pena de pôr em risco sua sobrevivência.  De acordo com o mesmo autor (2008)[62], a idéia de fundamentalidade da dignidade da pessoa humana não exclui a outra de que de que este valor constitui também o fim da Bioética quanto da Constituição. Ora, todo o sistema bioético e constitucional são construídos assentados neste valor. Teríamos aqui um substrato material. Portanto, ele serve de vetor, de norte para a elaboração de um modelo bioético adequado de uma constituição legítima. E estas duas realidades citadas são constituídas com a finalidade de promover e defender o seu próprio fundamento, qual seja: a dignidade da pessoa humana. Verifica-se deste modo, um círculo, onde a dignidade constitui fundamento e fim da Bioética e da Constituição. Esclarece DINIZ (2006)[63], que, a rapidez das revoluções operadas pelas ciências biomédicas e com o surgir das difíceis questões ético-jurídicas por elas suscitadas, o direito não poderia deixar de reagir, diante dos riscos a que a espécie humana está sujeita, impondo limites à liberdade de pesquisa, consagrada pelo art. 5º, LX, da Constituição da República de 1988. Bioética é um ramo do conhecimento que se preocupa basicamente com as implicações ético-morais decorrentes das descobertas tecnológicas nas áreas da medicina e biologia. Todavia tais regras são desprovidas de coerção, apresentam-se na forma de conselhos morais para a utilização das pesquisas científicas. Com o passar do tempo, a bioética vem gerando reflexões sobre inúmeras questões. Os estudiosos percebem que a ciência como forma de natureza inovativa não pode levar em conta somente seu avanço, mas também, deve buscar proteção aos direitos e garantias fundamentais do ser humano, para alcançar o equilíbrio entre os riscos e benefícios. A bioética, como toda ciência, apresenta também seus princípios norteadores: o princípio da autonomia (autodeterminação), o da beneficência (o maior bem do paciente) e o da justiça (a distribuição equânime de benefícios e obrigações na sociedade). Na lição de DINIZ (2006)[64], no final da década de 70 e inicio dos anos 80, a bioética pautou-se em quatro princípios básicos enaltecedores da pessoa humana, tendo dois deles caráter deontológico (não maleficência e justiça) e os demais, teleológico (beneficência e autonomia). Esses princípios, que iluminam a nova caminhada da humanidade, estão consignados no Belmont Report, publicado, em 1978, pela National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research (Comissão Nacional para Proteção dos Seres Humanos em Pesquisa Biomédica e Comportamental), que foi constituída pelo governo norte-americano com o objetivo de levar a cabo um estudo completo que identificasse os princípios éticos básicos que deveriam nortear a experimentação de seres humanos nas ciências do comportamento e na biomedicina. Tais princípios são racionalizações abstratas de valores que decorrem da interpretação da natureza humana e das necessidades individuais. Ensina OLIVEIRA (2005)[65], o princípio da autonomia, na visão de Bellino, "estabelece o respeito pela liberdade do outro e das decisões do paciente e legitima a obrigatoriedade do consentimento livre e informado, para evitar que o enfermo se torne um objeto". Quanto ao princípio da beneficência, PETTERLE (2007)[66], leciona que deriva do latim bonum facere, fazer o bem (ao paciente); é o critério mais antigo da ética médica e tem raízes o paradigma hipocrático da medicina "as máximas deste critério são: "fazer o bem", "não causar dano", "cuidar da saúde" e "favorecer a qualidade de vida". Explica OLIVEIRA (2005)[67], por sua vez, o princípio de justiça "requer uma repartição equânime dos benefícios e do ônus, para evitar discriminações e injustiças nas políticas e intervenções sanitárias", ensina Bellino. É grande a relação do Direito Civil com a Bioética, pois, o Direito Civil trata do cidadão, do indivíduo e dos grupos sociais. Com o avanço da Engenharia Genética, por exemplo, no caso de novas técnicas de reprodução artificial, clonagem, terapia, projeto genoma humano, testes genéticos, enfim muitas questões têm surgido na área do Direito de Família. A sociedade deve estar sempre atenta a esta nova realidade, buscando sempre a efetivação e o aprimoramento de um instrumental político-jurídico que permita adequada proteção a uma série de direitos tidos como fundamentais, que dimanam de um paradigma valorativo denominado dignidade da pessoa humana. Desse modo, percebe-se que a o ordenamento jurídico brasileiro tem a capacidade de absorver todos os valores que norteiam à bioética, de modo que as situações trazidas por esta nova realidade possam ter não apenas uma justificação moral, mas também uma justificação jurídica, como mecanismo legitimador da proteção à dignidade da pessoa humana, devendo, prata tanto, criar mecanismos eficientes de modo a responsabilizar o ofensor pelos danos causados a dignidade humana pelo abuso e o uso desenfreado da engenharia genética. A busca de um equilíbrio adequado entre a liberdade de pesquisa e o princípio da dignidade da pessoa humana constitui um dos desafios mais complexos da bioética. Segundo DINIZ (2006)[68], a realidade demonstra que os avanços científicos do mundo contemporâneo têm enorme repercussão social, trazendo problemas de difícil solução, por envolverem muita polêmica, o que desafia a argúcia dos juristas e requer a elaboração de normas que tragam respostas e abram caminhos satisfatórios, atendendo às novas necessidades, ora surgidas, e defendendo a pessoa humana da terrível ameaça da reificação. A autora (2006)[69] ainda explica que: “Com isso, como o direito não pode não pode furtar-se aos desafios levantados pela biomedicina, surge uma nova disciplina, o biodireito, estudo jurídico que, tomado por fontes imediatas a bioética e a biogenética, teria a vida por objeto principal, salientando que a verdade científica não poderá sobrepor-se à ética e ao direito, assim como o progresso científico não poderá acobertar crimes contra a dignidade humana, nem traçar, sem limites jurídicos, os destinos da humanidade. Por isso, como diz Regina Lúcia Fiuza Sauwen, a esfera do biodireito compreende o caminho sobre o tênue limite entre o respeito às liberdades individuais e a coibição de abusos contra o indivíduo ou contra a espécie humana. Isso é assim porque não se poderia admitir que o Estado, representado pelo Executivo, Legislativo e Judiciário, ficasse inerte diante: do poder da ciência sobre o genótipo do cidadão, do mercado genético, do desrespeito, do abuso das experiências científicas com seres humanos, do mau uso de seres humanos pela biotecnologia, da possibilidade de um manejo incorreto do Projeto Genoma Humano, dos danos advindos da alta tecnologia na terapêutica, da possibilidade de patenteamento do ser humano e das discriminações causadas pela diagnose genética e pela AIDS na área securitária e trabalhista.” Daury César Fabriz citado por ROCHA (2008)[70], estabelece um conceito acerca do Biodireito, um novo ramo do direito que vem despontando, refere-se aos fatos e eventos que surgem a partir das pesquisas das ciências da vida; que nascem a partir do “aumento de poder do homem sobre o próprio homem – que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens – ou criar novas ameaças á liberdade do indivíduo, ou permitir novos remédios para suas indigências. Caracteriza-se o Biodireito como o “ramo do direito que trata da teoria, da legislação e da jurisprudência relativas às normas reguladoras da conduta humana, em face dos avanços da biologia, da biotecnologia e da medicina”. O Biodireito concede tratamento ao homem não só como ser individual, mas acima de tudo como espécie a ser preservada. Segundo ROCHA (2008)[71], o campo de atuação do Biodireito é demarcado, destarte, por uma tênue linha que divide o espaço reservado às recomendações éticas daquele destinado aos mandamentos jurídicos, que distingue aquilo que é posto daquilo que é imposto no que concerne ao respeito á vida, à sua proteção e a sua conservação. Assim, de acordo com a mesma autora (2008)[72], se ao Direito é reservada a tarefa de tornar possível a vida em sociedade, lembrando a lição de Goffredo Telles Junior, segundo a qual “viver é conviver”, ao Biodireito cumpre a missão de guardar a vida humana, no sentido de proteger, de tutelar, de assegurá-la, tanto com relação ao ser humano individualmente considerado quanto com relação ao gênero humano, tanto com relação às presentes quanto às futuras gerações, em qualquer etapa de seu desenvolvimento, da concepção à morte, onde quer que se encontre, garantindo não só a vida, mas, sobretudo, vida digna, vida com dignidade. Leciona DINIZ (2006)[73], os bioeticistas devem ter como paradigma o respeito à dignidade da pessoa humana, que é o fundamento do Estado Democrático de Direito (Constituição da República, art. 1º, III) e o cerne de todo o ordenamento jurídico. Deveras, a pessoa humana e sua dignidade constituem fundamento e fim da sociedade e do Estado, sendo o valor que prevalecerá sobre qualquer tipo de avanço científico e tecnológico. Consequentemente, não poderão bioética e biodireito admitir conduta que venha a reduzir a pessoa humana à condição de coisa, retirando dela sua dignidade e o direito a uma vida digna. Somente com o respeito à dignidade humana, a bioética e o biodireito estabelecem um vínculo com a justiça. Por certo que os direitos inerentes ao homem, decorrente de sua condição humana devem ser respeitados e protegidos. A bioética e o biodireito caminham juntos com os direitos humanos, não podendo, por isso, omitirem-se diante de praticas científicas abusivas que visam o progresso da engenharia genética em prejuízo do ser humano.  Assim, o ponto de equilíbrio para as práticas da engenharia genética deve ser buscado na Bioética e no Biodireito. A imposição de limites às pesquisas genéticas é o caminho para controlar a busca desenfreada do ser humano perfeito, reconhecendo-se que o respeito ao ser humano em todas as suas fases só é alcançado se estiver atento à dignidade humana, pois, o direito à vida, por ser essencial ao ser humano, condiciona os demais direitos da personalidade. 8 Proteção ao patrimônio genético e direito à vida Os textes genéticos estão virando rotina, são fluentes as dicussões acerca da aplicação nos casos atuais de pesquisa de embrião para consumo, importação de célula-tronco,    diagnóstico prévio para implante e outros. De que se trata no diagnóstico prévio para implante? Segundo BÕCKENFÕRDE (2008)[74], ele é realizado no âmbito de uma fecundação extracorporal procedida artificialmente. Cuida-se de uma medida diagnóstica, “em que se retira uma ou várias células de um embrião produzido in vitro, depois das primeiras partições das células-embrionárias, para se investigar nas células extraídas a existência de defeitos ou predisposições genéticas”. Esta medida é altamente utilizada para selecionar aqueles embriões que possam acarretar uma doença grave por razões genéticas, e não mais serem usados para transferir à mulher. Não há uma possibilidade de cura pela constatação de tais defeitos, de acordo com o estado atual do conhecimento e da técnica medicinal. Portanto, o objetivo do diagnóstico prévio para implante não é a eliminação de sementes ou células defeituosas, mas sim de embriões defeituosos, ou seja, da essência vital humana no estado mais prematuro de sua existência. O diagnóstico possibilita, tão logo sejam identificados os embriões defeituosos, que os deixemos atrofiar e morrer, em vez de permitir o seu desenvolvimento para, posteriormente, retirá-los da mulher. Segundo DINIZ (2006)[75], o Projeto Genoma Humana (PGH) superstar da big science, constitui um dos mais importantes empreendimentos científicos dos séculos XX e XXI e um dos mais facinantes estudos que poderia ter sido feito nesta nova era científica, em virtude de seu potencial para alterar com profundidade, as bases da biologia, por ser uma revolucionária tecnologia de sequenciamento genético baseada em marcadores de ADN, que permitem a localização fácil e rápida dos genes. Com isso o genoma humano, que é propriedade inalienável da pessoa e patrimonio comum da humanidade (art. 1º da Declaração universal sobre o Genoma e Direitos Humanos) passará a ser base de toda pesquisa genética humana dos próximos anos. Esse projeto, ao descobir e catalogar o código genético da espécie humana, efetuando um mapeamento completo do genoma humano, possibilitará a cura de graves enfermidades, explorando as diferenças entre uma célula maligna e uma normal para obter diagnósticos de terapias melhores. Segundo MATTE (2004)[76], uma porção correspondente a 5% do orçamento do Projeto Genoma Humano foi alocada para o estudo das questões éticas, legais e sociais (Ethical, Legal and Social Issues, ELSI). Boa parte desses recursos foi utilizada para análise das questões que envolvem o risco de discriminação genética, especialmente no que se refere à popularização dos testes genéticos. Alguns autores ressaltam que a análise genética não é infalível e seus dados podem ser mal interpretados em virtude de uma tendência ideológica da qual os pesquisadores participam mais ou menos inconscientemente, com o risco de substituir a observação centrada no estado de saúde atual de uma pessoa por um diagnóstico fundamentado exclusivamente na análise de seus genes. Leciona ainda MATTE (2004)[77], que, a Declaração do Genoma Humano e de sua Proteção em Relação à Dignidade Humana e aos Direitos Humanos da UNESCO reafirma que o genoma humano é o componetne fundamental da herança comum da humanidade e precisa ser protegido para salvaguardar a integridade da espécie humana, como um valor em si, e a dignidade e os direitos de cada um dos seus membros. Também adverte que a personalidade de um indivíduo não pode ser reduzida apenas às suas características genéticas e que todos os indivíduos têm direito ao respeito pela sua dignidade a despeito dessas características. O direito à vida e acima de tudo o respeito a vidasão os fundamentos de todos os demais direitos humanos e constitui pré-reuqisito ao exercício de todos os demais direitos. Para DINIZ (2006)[78], o direito à vida, por ser essencial ao ser humano, condiciona os demais direitos da personalidade. A Constituição da República de 1988, em seu art. 5º, caput, assegura a inviolabilidade do direito à vida, ou seja, a integralidade existencial, consequentemente, a vida é um bem jurídico tutelado como direito fundamental básico desde a concepção, momento específico, comprovado cientificamente, da formação da pessoa. Esclarece a mesma autora (2006)[79] quem se assim é, a vida humana deve ser protegida contra tudo e contra todos, pois é objeto de direito personalíssimo. O respeito a ela e aos demais bens ou direitos correlatos decorrem de um dever absoluto erga omnes, por sua própria natureza, ao qual a ninguém é lícito desobedecer. Ainda que não houvesse tutela constitucional ao direito á vida, que, por ser decorrente de norma de direito natural, é deduzida da natureza do ser humano, legitimaria aquela imposição erga omnes, porque o direito natural é o fundamento do dever-ser, ou melhor, do direito positivo, uma vez que se baseia num consenso, cuja expressão máxima é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, fruto concebido pela consciência coletiva da humanidade civilizada. Para os cientistas, o genoma esboça o retrato de quem somos, ou seja, o DNA é considerado a imagem cientifica do ser humano. O patrimônio genético como sendo a origem da própria vida passou a ser tratamento jurídico no Brasil com o advento da Constituição de 1988. Segundo DINIZ (2006)[80] a vida tem prioridade sobre todas as coisas, uma vez que a dinâmica do mundo nela se contém e sem ela nada terá sentido. Consequentemente, o direito à vida prevalecerá sobre qualquer outro, seja ele o de liberdade religiosa, de integridade física ou mental etc. Havendo conflito entre dois direitos, incidirá o princípio do primado do mais relevante. Assim, por exemplo, se se precisar mutilar alguém para salvar sua vida, ofendendo sua integridade física, mesmo que não haja seu consenso, não haverá ilícito, nem responsabilidade penal médica. Ao se deparar com os avanços da engenharia genética o home deve refletir de forma ética sobre os objetivos a serem alcançados e as possíveis consequências, pois por mais benéfico que seja não deve ser alcançado através da degradação do ser humano. Assim, toda e qualquer regulamentação acerca das pesquisas e manipulação do genoma devem se pautar nos princípios da de direito à vida, dignidade da pessoa, liberdade e igualdade. Muito bem pontuou DINIZ (2006)[81], a ninguém é lícito, muito menos a sociedade ou o Estado, julgar o valor intrínseco de uma vida humana por suas deficiências. Nem mesmo a eutanásia pré-natal por consenso dos pais deveria ser admitida, porque se ninguém tem direito de controle sobre sua própria vida, como poderia tê-lo em relação à vida alheia? Ainda a mesma autora (2006)[82], somos a favor da legalização da vida e não da morte, uma vez que a norma constitucional garante a todos a inviolabilidade do direito à vida, que deverá ser respeitado. Admitir legalmente, nos tempos atuais, que se coloque uma etiqueta num ser humano, decidindo se deve ou não nascer, que se exija perfeição física e mental para viver, que se garanta a gestante o direito de optar entre a vida ou a morte de seu filho ou que se permita que seres humanos inocentes e indefesos sofram a pena capital, sem um processo legal, seria um retrocesso. Equivaleria a aceitar uma nova e falsa moral, que dá à vida um valor relativo, permitindo apenas a sobrevivência de seres humanos que satisfaçam determinados padrões estéticos, físicos ou intelectuais e atendam aos interesses egoísticos de seus pais. Como acatar isso se a Constituição Federal proclama, com todas as letras, o valor absoluto da vida humana? É de se notar que, a expansão da genética, conhecimento do DNA, os avanços através do projeto genoma permitiu a obtenção de informações determinantes para a cura de doenças. Todavia, cumpre ressaltar que a família, a sociedade e o direito devem intervir quando houver possibilidade de dano à ração humana, haja vista ser a vida o bem maior a se preservar. 9 Experiência científica em seres humanos Para realizar qualquer pesquisa cientifica utilizando para tanto, seres humanos é imprescindível à anuência do pesquisado. A pesquisa individual ou coletiva envolvendo seres humanos com fins terapêuticos ou prevenção de moléstias será conduzida pelos princípios básicos da bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça. DINIZ, (2006)[83]: “Grande é a preocupação mundial com tais pesquisas em decorrência do enorme risco que acarretam para os participantes e das questões ético-jurídicas levantadas pela aplicação de testes em larga escala de vacinas e medicamentos e por experiências biomédicas envolvendo grupos populacionais vulneráveis, visto serem o único meio de acesso a tratamento novos que possam prevenir ou eliminar determinadas moléstias e incapacidades. O primeiro Código Internacional de Ética para pesquisas com seres humanos foi o de Nuremberg, publicado em 1947, em resposta às atrocidades e experimentações iníquas praticadas por médicos nazistas comandados por Josef Mengele nos campos de concentração, durante a segunda guerra mundial, principalmente em Auschwitz, onde foram sacrificadas inúmeras vidas, inoculando-se propositalmente sífilis, gonococos por via venosa, tifo, células cancerosas e vírus de toda sorte nos prisioneiros, com o objetivo de curiosidade científica, efetuando-se esterilizações e experiências genéticas com o escopo de obter uma espécie superior, provocando-se queimaduras de 1º e 2º grau com compostos de fósforo, ministrando-se doses de substâncias tóxicas para averiguar experimentalmente os seus efeitos, deixando-se de tratar pacientes sifilíticos ou mulheres com lesões pré-cancerosas do colo do útero para analisar a evolução da moléstia etc” Segundo LEITE (2008)[84], nos Estados Unidos da América, berço da bioética principialista, alguns caso específicos despertaram a opinião pública, o que suscitou uma reação do Governo ante os seguintes acontecimentos: (a) em 1963, no Hospital Israelita de doenças crônicas de Nova York, foram injetadas células cancerosas vivas em pacientes idosos; (b) entre 1950e 1970, no Hospital de Willowbrook, Nova York, injetaram hepatite viral em crianças portadoras de Síndrome de Down; (c) desde os anos 40, no Estado do Alabama, no caso Estudo Tuskegee, 400 negros sifilíticos foram deixados sem tratamento para pesquisar o curso natural da doença, embora a penicilina já tivesse sido descoberta. Ainda o referido autor (2008)[85], leciona que, a medida adotada pelo Governo norte-americano, via Congresso Nacional, foi a instituição de uma Comissão Nacional para a Proteção dos Seres Humanos da Pesquisa Biomédica e Comportamental, cuja finalidade seria identificar os princípios éticos básicos que deveriam nortear a conduta da pesquisa biomédica e comportamental que envolve seres humanos. O resultado deste trabalho foi a elaboração do Relatório Belmont (Belmont Report), publicado em 1978, que identificou três princípios éticos básicos, a saber: (a) respeito pelas pessoas, (b) beneficência; (c) justiça. Desde então, desenvolve-se toda uma doutrina bioética baseada em princípios. É preciso esclarecer que muitos países realizaram experimentos desumanos com seres humanos. Durante a guerra no Japão os prisioneiros chineses foram infectados com a bactéria da peste bubônica e cólera. Desde 1944 o Pentágono tem feito pesquisas com material radioativo em seres humanos portadores de deficiência mental. Na Austrália no ano de 1947 a 1970 crianças pobres e filhos de mães solteiras foram submetidos a testes de vacina de coqueluche, gripe, herpes etc. No Iraque os prisioneiros foram utilizados em testes de armas químicas e bacteriológicas. Na África do Sul desenvolveu-se microorganismos manipulados em laboratórios para esterilizar a população negra apontando como arma guerra o arsenal genético. No Brasil muitas mulheres foram vítimas de grande sofrimento mediante injeção subcutânea a aplicação do anticoncepcional Norplant R e Norplant II. Com o advento do Código de Nuremberg no ano de 1947, foram estabelecidos os procedimentos éticos e padrões de conduta a serem observados em experiência científica com seres humanos. Dois anos depois foi publicado pela Associação Médica Mundial o Código Internacional de Ética Médica com a norma de que qualquer ato que possa enfraquecer a resistência do ser humano só poderá ser admitido em seu próprio benefício. No Brasil, com a aprovação das Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas em Seres humanos, através da Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 196, foram estabelecidos padrões de conduta para proteger a saúde, a dignidade, a liberdade, a vida e os direitos das pessoas submetidas às experiências cientificas. O princípio da moralidade médica consiste em jamais executar no ser humano qualquer experiência que possa causar mal. Segundo DINIZ (2006)[86], a Constituição da República de 1988, em seu art. 5º, IX, proclama a liberdade da atividade cientifica como um dos direitos fundamentais, mas isso não significa que ela seja absoluta e não contenha qualquer limitação, pois há outros valores e bens jurídicos reconhecidos constitucionalmente, como a vida, a integridade física e psíquica, a privacidade etc., que poderiam ser gravemente afetados pelo mau uso da liberdade de pesquisa científica. Havendo conflito entre a livre expressão da atividade científica e outro direito fundamental da pessoa humana, a solução ou o ponto de equilíbrio deverá ser o respeito à dignidade humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, previsto no art. 1º, III, da Constituição Federal. Nenhuma liberdade de investigação cientifica poderá ser aceita se colocar em perigo a pessoa humana e sua dignidade. A liberdade científica sofrerá as restrições que forem imprescindíveis para a preservação do ser humano na sua dignidade. LEITE (2008)[87]: “De acordo com a Encyclopedia of Bioethics, a bioética “pode ser definida como o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo a visão, as decisões, a conduta, e as políticas – das ciências da vida e do cuidado da saúde, empregando uma variedade de metodologias éticas em um contexto interdisciplinar. Trata-se, portanto, de uma ética prática, diretamente ligada a situações concretas, cujo esforço interdisciplinar busca conferir proteção à pessoa humana em face de todo o progresso científico. O desenvolvimento tecnológico deve estar a serviço do ser humano, propiciando-lhe uma vida saudável e digna. A ciência não pode colocar em risco a vida dos seres, pois possui um caráter instrumental e não finalístico. Por tais razões, em qualquer situação em que a vida seja objeto de discussão, a bioética certamente se fará presente, pois aquela é a sua área de atuação.” Assim, considerando o risco que a experiência cientifica representa para o ser humano, faz-se extremamente necessário o consentimento livre e por escrito do pesquisado. Devem ser informados todos os detalhes do procedimento utilizado na pesquisa, bem como seus riscos ou benefícios, para que assim, o indivíduo possa se manifestar, inclusive quanto a sua recusa. Temos que a dignidade da pessoa humana é o fundamento e o fim da bioética e da Constituição da República de 1988, não podendo, por isso, comparar o ser humano a um rato de laboratório. 10 A responsabilidade nas pesquisas genéticas Tem sido publicado no mundo, grande número de diretrizes envolvendo aspectos éticos da genética médica. Algumas sociedades, como a Sociedade Americana de Genética Humana, o Colégio Americano de Genética Médica, e a Federação Internacional da Genética Humana publicam diversos comunicados a respeito de questões referentes a testes genéticos, testes preditivos, privacidade, armazenamento de DNA ets. A Declaração da UNESCO é considerada a principal diretriz internacional sobre o assunto, sendo comparada, inculusive, à Declaração Universal dos Direitos do Homem. Leciona MATTE (2004)[88], que a principal legislação brasileira sobre o assunto é a Lei 8.974 de 05 de janeiro de 1995. Normas para o uso das técnicas de engenharia genética e liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados. Várias diretrizes específicas foram elaboradas pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, e publicadas sob a forma de instruções normativas. A principal diretriz que regulamenta a pesquisa com seres humanos no país, as Normas de Pesquisa Envolvendo Seres humanos (Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde), considera a genética humana uma área temática especial, sujeita à avaliação e ao acompanhamento pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/MS). Explica DINIZ (2008)[89], que na engenharia genética estão inculídas as noções de manipulação genetica, reprodução assistida, diagnose genética, terapia gênica e clonagem, pois tende a modificação do patrimônio hereditário do ser humano. Isso é assim, porque a engenharia gnética compreende a totalidade das técnicas dirigidas a alterar ou modificar a carga hereditária com o escopo de superar moléstias geneticas (terapia genética) ou de produzir modificações com finalidade experimental para obter a concepção de um indivíduo com caracteres inexistentes na espécie (manipulação genética). Segundo CONTI (2001)[90], o dano à pessoa, também chamado por alguns autores de dano subjetivo, abrange um amplo espectro de lesões ao ser humano considerado em si mesmo. E esse dano à pessoa é também denominado de dano à integridade psicossomática. Todo dano à pessoa tem como consequência imediata a afetação, em grau mior ou menor da saúde do sujeito que sofreu o dano.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                Leciona Yussef Said Cahali citado por CONTI (2001)[91], o dano biológico representa o aspecto estático do dano à pessoa, enquanto o dano à saúde erige-se na vertente dinâmica do mesmo: assim como existe uma incindível relação entre o soma (o organismo considerado como expressaão material, em oposição às funções psíquicas) e a psique, evidencia-se também uma necessária vinculação entre a lesão infligida e a integridade psicossomática considerada em si mesma, e sua repercussão no estado de saúde do sujeito. Algumas doutrinas falam do dano ao projeto de vida, que é um dano espacial, um dano profundo que compromete o ser do homem, afetando a liberdade da pessoa e frustrando o seu projeto de vida. Esse dano transtorna a existência da pessoa, impedindo de cumprir parcialmente ou plenamente seu projeto de vida. Queremos crer que, na verdade, o ser humano, apesar de todos os determinismos que pesam sobre ele, é o construtor de sua própria vida, sendo que a perda do sentido da vida provoca um vazio existencial. O dano biológico é considerado uma lesão ao direito à personalidade, direito á integridade física. Como todo direito da personalidade, qualquer dano que a pessoa venha sofrer terá consequencias materiais e morais. Segundo CONTI (2001)[92], o dano biológico não fica impune e, no campo da responsabilidade civil, a sua reparação tem que ser a mais integral, pois se não podem as coisas voltar ao status quo ante, tenha a vítima do dano pelo menos algumas satisfação ou compensação e, assim, ser minorado o seu sofrimento. Em resumidos passos, cabe ainda citar que o Código Civil de 2002 cuida da responsabilidade dos médicos, farmacêuticos e enfermeiros no art. 1.545. Támbém de importante relevância o disposto no art. 1.538 do mesmo diploma legal. A responsabilidade deverá ser apurada pelo Poder Judiciário que analisará a conduta do profissional frente ao conjunto probatório para apurarr se houve ou não abusos, excessos ou falaha humana. Por certo que, trata-se de questões de alta indagação ciêntifica não podendo, portanto, o judiciário se pronunciar sobre qual o tratamento mais indicado e sim ater-se a verificação da responsabilidade e a condenação ao dano. Segundo SANTOS (2001)[93], a vida humana como todo proceso biológico, constiui um fenômeno em contínua evolução. Evolução esta que sofre importantes saltos qualitativos, que permite diferente valoração jurídica. As condutas de manipulação genética podem e devem ser objeto, nos casos mais graves, de tutela penal. Assim, tem-se que qualquer comportamento ou pesquisa científica que consista em realizar alterações no genótipo ou na evolução natural do processo biológico em que consite a vida humana, sem finalidades meramente terapeuticas, como por exemplo, a busca da cura para doençãs, será considerada atentatória à dignidade da pessoa humana e passível de indenizacão. 11 Conclusão A explosão do conhecimento genético deve assentar-se na ideia fundamental da dignidade da espécie humana, segundo valores socialmente impostos, por isso a elaboração de um modelo bioético adequado será aquele que atenda aos princípios da constituição legítima para promover e defender seu próprio fundamento, qual seja: proteção a dignidade da pessoa humana. Essa dignidade faz com que seja imperativo não reduzir os indivíduos às suas características genéticas, todavia respeitar, acima de tudo, sua singularidade e diversidade. Apenas os benéficos decorrentes do avanço da engenharia genética deverão ser colocados à disposição de todos, mas com a devida atenção para não violar a dignidade e os direitos humanos de cada indivíduo. Introduzir na sociedade um desejo insaciável pela cura e juventude por meio da manipulação genética, justificando-se não mais pelo bem comum e sim pela autonomia da vontade, coloca em risco a espécie humana, por isso, a modificação genética que tiver por finalidade a concepção de um indivíduo com caracteres inexistentes na espécie ou a busca pela espécie perfeita, dita superior por muitos, deve ser coibida. Havendo conflito entre a livre expressão da atividade científica e outro direito fundamental da pessoa humana, a solução ou o ponto de equilíbrio deverá ser o respeito à dignidade humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, previsto no art. 1º, III, da Constituição da República de 1988. Nenhuma liberdade de investigação científica poderá ser aceita se colocar em perigo a pessoa humana e sua dignidade. Toda discussão ético-jurídica sobre a viabilidade das pesquisas científicas envolvendo todo o campo da engenharia genética, bem como a elaboração de novas leis acerca do tema, devem se pautar no princípio da dignidade da pessoa humana e na proteção à vida e, para tanto, normas mais rígidas devem ser estabelecidas acerca da responsabilidade civil por todos os danos causados aos seres humanos. A bioética e o biodireito enfrentam um dilema muitas vezes mascarado pela ditadura científica, a proteção da dignidade da pessoa humana e as implicações éticas e juridicas que envolvem o campo da manipulação genética. A liberdade de pesquisa não pode ser absoluta, ao critério de cada pesquisador e tampouco ser ilimitada. Há valores éticos e científicos, normas e procedimentos jurídicos, reconhecidos constitucionalmente, que não podem ser ignorados ou solopados por práticas eugênicas. A vida, a integridade física e moral, a privacidade, de todos nós, não podem ser afetados pelo mau uso da liberdade de pesquisa. O ponto de equilíbrio entre a ciência, a ética, e o direito está na dignidade da pessoa humana e, por isso, é de vital importância criar mecanismos para dar efetividade às normas prevista no ordenamento jurídico vigente, principalmente no campo da responsabilidade civil, devendo responder imediatamente todo aquele que causar danos ou efeitos negativos ao ser humano, considerando que, não há risco zero na ciência. Finalmente, é imprescindível uma reflexão profundamente ética sobre a engenharia genética e todo seu conteúdo.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-135/engenharia-genetica-frente-ao-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana-e-suas-implicacoes-etico-juridicas/
Desenvolvimento e sustentabilidade: desafio ao princípio da equidade geracional no Brasil
Na segunda metade do século XX, o Brasil passa a participar de importantes encontros políticos sobre os aglomerados humanos e suas diversas formas de ocupar e usar os recursos naturais (ordenamento territorial urbano e rural) . Ações políticas essas com reflexo à expansão do neocapitalismo e suas alterações econômicas globais a fim de despertar a sociedade para os inúmeros problemas ambientais e execução de políticas normativas em âmbito nacional, regional e local. O país aderiu ao denominado “crescimento econômico a qualquer custo”, pondo em cheque o entendimento de progresso da nação quanto à visão de futuro. No entanto, em 1988, o Brasil aprova a atual Constituição Federal com a exigência de proteção e preservação do meio ambiente. A partir da consulta a leis e fontes diversas, o artigo elucida algumas concepções de desenvolvimento, crescimento econômico e meio ambiente à luz do Princípio da Equidade Geracional. Destacam-se as principais situações envolvendo indicadores de desenvolvimento nacional brasileiro sob um viés teórico-reflexivo, além de discutir a política pública ambiental com foco na estratégia da sustentabilidade. O escrito utiliza-se do método dissertativo-bibliográfico. Desse modo, procura-se entender a locução do “desenvolvimento sustentável” como vinculada a quatro dimensões: ambiental, social, econômica e política.
Biodireito
Introdução. Após críticas dos cientistas ao modelo vigente do “crescimento econômico a qualquer custo” do país e os estudos do Clube de Roma[1], o Brasil, em 1972, reúne-se com 113 países para a produção da Declaração da ONU sobre o Ambiente Humano e a formulação de leis e princípios jurídicos de preservação e conservação dos recursos naturais para as presentes e futuras gerações humanas. Na década seguinte, em 1988, nasce a Constituição Federal da República Federativa do Brasil consagrando, sobretudo em seus artigos 170, VI, e 225, a obrigação tanto dos entes particulares quanto do Poder Público à defesa, à proteção e à garantia da efetividade do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, considerando o meio ambiente como responsabilidade de todas as pessoas (jurídicas ou físicas, incluindo suas atividades econômicas) e elemento chave para o desenvolvimento sustentável do país. Por outro lado, é insatisfatória a leitura de dispositivos de lei, ainda mais quanto à temática ambiental (de visão necessariamente holística), pois não é esclarecedor de pontos conceituais de desenvolvimento, crescimento econômico, política pública ambiental, sustentabilidade e meio ambiente: assuntos de interesse jurídico, que juntos constroem o entendimento do Princípio da Equidade Geracional. Esse princípio jurídico impõe igualdade na distribuição de benefícios e custos entre gerações quanto à preservação ambiental. Uma questão que, apesar da vasta e vanguardista legislação ambiental brasileira, ainda esbarra-se na “má vontade política” para sua aplicação. Na medição de forças entre setores econômicos tradicionais e urgentes medidas protetoras do meio ambiente, o desafio político torna-se cada vez maior aos governos vindouros. Diante desse contexto, o Brasil é um país em pleno desenvolvimento? É sabido que suas reservas naturais são exploradas extensivamente desde a Era Colonial para atender a “números” por uma balança comercial favorável que representa, comumente, a “riqueza nacional” em indicadores positivos qual o Produto Nacional Bruto (PNB). Entretanto, indicadores quantitativos realmente medem o desenvolvimento de uma nação ou apenas medem um mero avanço econômico de um limitado setor produtivo? A resposta a todas aquelas questões parece quedar-se simplesmente negativa, mas constitui-se um complexo em melhor análise. Pois há que abordar-se o desafio ambiental que está no centro das contradições do Brasil pós-colonial, conforme salienta Carlos Porto-Gonçalves (2006, p.62). O “mercado emergente” não se limita a princípios numéricos ou materiais, tendo em vista que o Brasil precisa adequar sua exploração econômica às estratégias da adequada gestão de seus recursos naturais, além de conceber meios para promover o bem-estar social, sem permitir o esfacelamento dos recursos naturais em prol de uma economia “rusticamente agrícola” (agropecuária extensiva, economia historicamente dominante no país), a fim de que o consumo dos recursos naturais finitos pelas presentes gerações humanas não obstaculize o direito de uso àquelas futuras. Doutra feita, muitas concepções teóricas “ambientalistas” tentam conciliar a encruzilhada do neocapitalismo global ao longo do século XX, ainda quando se esbarram nas intricadas aspirações humanas atuais por sustentabilidade: crescimento econômico, desenvolvimento e preservação ambiental a um só tempo. Então, é possível crescer economicamente sem destruir os finitos recursos naturais? Economia e meio ambiente, um exclui o outro? Desenvolvimento é sinônimo de progresso? Sustentabilidade é possível? Em que medida deve-se entender o que é desenvolvimento sustentável?  Para melhor compreender essa “desordem global”, o artigo traz as principais discussões que problematizam as temáticas: desenvolvimento, crescimento econômico, meio ambiente e sustentabilidade, a partir de quatro capítulos: 1. “Desenvolvimento: reflexões teóricas”; 2. “Crescimento econômico sob novas políticas públicas”; 3. “Números em prol do ‘desenvolvimento’”; 4.“Otimismos sobre a sustentabilidade”. No primeiro capítulo são relatadas algumas concepções sobre o desenvolvimento e como algumas indagações podem ser respondidas. Depois, no segundo e terceiro capítulos, discutem-se questões sobre expansão econômica e liberdade humana, e alguns índices medidores do desenvolvimento. Por derradeiro, no quarto capítulo, são traçadas as ideias ou formulações do que seria a estratégia política da sustentabilidade. Portanto, discutir principais aspectos do desenvolvimento e da sustentabilidade no Brasil à luz do Princípio da Equidade Geracional é o alvo deste artigo. Longe de querer exaurir o tema, o trabalho procura despertar o leitor para a questão da dificuldade em se estabelecer uma conexão entre Desenvolvimento e Sustentabilidade, que numa análise aprofundada, tais institutos se distinguem, porém não se excluem. Diante daquelas duas premissas, é feita uma junção entre os dois termos, ou seja, uma relação entre o que seria a condensada locução “desenvolvimento sustentável”. 1.Desenvolvimento: reflexões teóricas. Em breve apanhado histórico pelo longo, curto e inquietante século XX, tem-se que, nos anos de 1950, a Revolução Industrial desponta em tecnologias de superação dos limites físico-espaciais, a revelar, em poucas décadas seguintes, uma corrida aeroespacial, bélica e consumerista (produtivismo fabril intenso), com reflexos que dominam o cenário político internacional. “A globalização, mundialização e planetarização são palavras-chave desse momento histórico” (PORTO–GONÇAVES, 2012, p. 13-15). Teorias científicas e invenções tecnológicas se unem por uma excitante vida em consumismo de bens e produtos industrializados; mais obedientes, porém, aos interesses de seus protagonistas capitalistas do que às reais necessidades materiais humanas. No mundo posterior à Segunda Grande Guerra, tanto nos países industrializados quanto nas nações emergentes economicamente havia um tripé político-econômico fundado em abundancia de recursos naturais (e energéticos), aumento da produtividade do trabalho e presença do bem-estar do país, algo reproduzido fielmente no Brasil (BUARQUE, 2002, p.15). A expansão do capitalismo encontrou guarida na idealização da escala global do “mundo sem fronteiras”, todavia as consequentes armas bélicas atômicas, poluição e destruição do ambiente natural relembraram a visão do cosmonauta Yuri Gagarin: a Terra tem limites, é uma esfera pequena, azul e finita solta no espaço sideral. Até por volta dos anos de 1960, não havia necessidade de fazer distinção entre desenvolvimento e crescimento econômico, porquanto as poucas nações desenvolvidas eram as que haviam criado o conceito de desenvolvimento como expansão industrial e reserva de capitais. Essa identificação entre os dois institutos era satisfatória para se verificar que as nações ricas seriam as “desenvolvidas”, e as pobres, as “subdesenvolvidas”, simplesmente. Poucos anos depois, a partir do intenso acúmulo de capitais nos países em fase de industrialização, constatou-se que crescimento econômico e desenvolvimento não eram sinônimos (VEIGA, 2005). Países que tiveram grande crescimento de sua economia (Brasil) não proporcionaram, simultaneamente, acesso das populações mais carentes a itens básicos como saúde, educação, moradia, etc. Em 1972, o modelo de desenvolvimento via crescimento econômico fordista é posto em cheque na Primeira Conferência Mundial sobre o homem e o meio ambiente, em Estocolmo, Suécia, inaugurando ideias e acordos entre países sob o olhar do tão debatido, ainda hoje, mecanismo do desenvolvimento sustentável. Esse período notabiliza-se pelo “movimento ecológico que desenvolveu-se na esfera pública a partir dos anos 1970, tendo como referência a criação de partidos políticos, os partidos verdes (…)” (VINCENT, 1995, apud BARBIERI, VASCONCELOS, ANDREASSI et al., 2010, p. 147). No Brasil, lutas sociais tomaram a pauta pública, a exemplo da manifestação dos seringueiros e castanheiros na Região Amazônica, com liderança de Chico Mendes, em anseios pelo causa socioambiental (ibid., 2010). Em 1990, no Brasil, podem-se destacar dois momentos públicos que marcaram a preocupação de um equilíbrio sócio-ecológico: (i) o conjunto de medidas governamentais assinado mediante a conferência global da ONU, ECO-92, em 1992, no Rio de Janeiro, RJ; (ii) a ratificação da atual Constituição Federal, quando dispôs como princípio ambiental constitucional: a Equidade Geracional. Tal princípio exige a preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações humanas (art. 225, CF/88), e de ordem econômica, a defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação (art. 170, VI, CF/88). Consolidando, ainda que formalmente, a criação de políticas normativas (leis ordinárias, decretos, portarias, etc.) como mecanismo de proteção e preservação ambiental, e desenvolvimento socioeconômico, tendo em vista a implementação de politicas públicas adequadas à estratégia da sustentabilidade. O Direito Ambiental Constitucional traz uma nova dimensão temporal às questões ambientais, exigindo-se o seu art. 225, mais que remediação de danos ecológicos pretéritos, mas também o reconhecimento de programas e ações políticas capazes de proteger futuros beneficiários dos recursos naturais. Isto é, uma nova ordem jurídico-política em garantir direitos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado às presentes e futuras gerações humanas, estas vítimas potenciais das violações ecológicas praticadas no agora. Contudo, ainda era necessário “quantificar” os resultados dessas políticas gerais. Foi preciso criar índices novos para examinar o desenvolvimento. “A renda per capita (PIB) não mais respondia às complexidades que construíam o pensamento do desenvolvimento” (VEIGA, 2005, p. 45). Então, a ONU passou a divulgar o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), em 1990, na tentativa de ampliar os indicadores de desenvolvimento. Uma controvérsia que não terminou até os presentes anos. Quanto às políticas públicas ambientais, “é possível perceber as incongruências, limites e potencialidades de sua implementação em diversas escalas e em diferentes realidades” (OLIVEIRA, 2012, p. 479). Ocorre que, em via oposta às formulações formais-jurídicas, a problemática da disparidade social e a ausência de ações ou projetos políticos eficientes na preservação do meio ambiente natural permaneceram uma constante no Brasil. A revelar a crescente irracionalidade no uso dos recursos naturais e a presença de distúrbios humanos nos centros urbanos (violência social, drogadição, doenças, corrupção, resíduos sólidos, poluição de rios e córregos). De modo que, preservar os ecossistemas, assegurar meios de qualidade de vida social, crescimento econômico e políticas normativas exequíveis tornaram-se o grande desafio na promoção do desenvolvimento do país.  Igualmente, o termo “desenvolvimento” está envolto em processos de inferiorização, ou pior, destruição de culturas, etnias, animais, vegetais, a um só tempo que o fenômeno da globalização tende à padronização planetária de culturas europeia e estadunidense, “sem que indaguemos acerca dos diferentes modos de sermos iguais” (PORTO-GONÇALVES, 2006, p.64). O “desenvolvimento” aparece, em realidade, como uma esfinge enigmática e voraz, quando, ao se procurar suas respostas, estar-se-á diante de dúvidas, ilusões e realidades distintas. Para tanto, é interessante examinar criticamente tal temática em três formas básicas de respostas à indagação: “o que é desenvolvimento?”. A primeira resposta trata o desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico. Isso, simplesmente, por tais termos serem medidos através do PIB – Produto Interno Bruto (per capita). A segunda resposta concebe o desenvolvimento como mito, ilusão. Um mero argumento persuasivo empregado como “razão” para todo o tipo de exploração econômica em reforço às disparidades sociais. Por derradeiro, a terceira resposta é mais complexa: é o “caminho do meio”. Logo, deve-se buscar demonstrar que o desenvolvimento não deve ser reduzido ao simples crescimento econômico, muito menos ser tratado como uma ilusão (VEIGA, 2005, p. 15). Aplicando-se a ideia do desenvolvimento ao Princípio da Equidade Geracional, Juarez Freiras (2012, p.55) questiona: “o que condiciona o desenvolvimento de maneira a ensejar o bem-estar das gerações presentes sem prejudicar a produção do bem-estar das gerações futuras?”      Exige-se à referida questão uma reflexão que transcenda o próprio subjetivo humano para com o uso, e abuso, dos recursos naturais finitos. Igualmente, busca-se atender aos vários critérios de sustentabilidade para atingir o fim do desenvolvimento sustentável; cuidando-se, ao mesmo tempo, do meio ambiente, sem afrontar o social, o econômico, o ético e o jurídico-político (ibidem, p.57). 2.Crescimento econômico sob novas políticas públicas. Até os anos de 1990, tornou-se quase que um senso comum conceber o crescimento econômico a partir da política do neocapitalismo global, caracterizado pelo forte progresso industrial e tecnológico como sinônimo de desenvolvimento. Uma região, um país dito “desenvolvido” deveria ter inúmeras indústrias propulsoras de economia nos grandes centros urbanos, com ênfase em números positivos de produção em massa de bens e serviços. No entanto, é um grande equívoco obter a concepção de desenvolvimento como algo tão-somente quantitativo do mundo, consoante nota do diplomata peruano Oswaldo de Rivero (apud, VEIGA, 2005). Para ele, é preciso ter uma visão qualitativa, e não-linear, do progresso social. Ignorar os processos histórico-culturais, as sociedades, os impactos ambientais é um grande erro. Do mesmo modo, o ambientalismo mostra que as atividades antrópicas são limitadas pelos recursos naturais, porque as altas tecnologias esbarram-se na utopia da “dominação ilimitada” da natureza (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 64-65). Há a utopia quando economistas confundem crescimento econômico com desenvolvimento de uma modernidade capitalista, que não existe nos países pobres, tal quando se faz a aplicação irrestrita do PIB per capta, o comportamento das exportações, a evolução do mercado acionário: um paradoxo do desenvolvimento local e descentralização econômica, social e política. Isto é, muitos experts ou economistas confundem “os movimentos localizados e endógenos de mudança e desenvolvimento” (BUARQUE, 2002, p. 95).  Daí, podem-se classificar três grupos de nações: um núcleo orgânico formado pelos países ricos; outro, grande periferia formada por países pobres; por fim, uma semiperiferia constituída por nações “emergentes”. A questão central é que alguns grupos de países seriam incólumes, ou seja, muito improvável que pertencessem à categoria de “subdesenvolvidos”. Ou, por outro lado, seria difícil que países de “Terceiro Mundo” quebrassem as amarras do mercado neocapitalista e ascendessem de categoria (VEIGA, 2005, p.28). Para os economistas tradicionais, só seriam países “desenvolvidos” aqueles que conseguissem, através de exploração econômica predatória, acumular petróleo e alimentos: dois recursos cada vez mais importantes diante da explosão do crescimento urbano. Porém, tal constatação não observa outras diretrizes importantes como alfabetização, expectativa de vida, mortalidade infantil, distribuição de renda, moradia, etc. Não se perceberia o mais importante na percepção atual do desenvolvimento: a “Sen-sacional[2]” análise da “liberdade no combate às absurdas privações, destruições e opressões existentes em um mundo de marcado por um grau de opulência que teria sido difícil até mesmo imaginar um ou dois séculos atrás” (ibid., p. 33). Uma noção de mudança fundamental para a sistemática do desenvolvimento é a trazida pelo cientista indiano Amartya Sen: “o desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de agente” (SEN, 2010, p. 17). Algo que vai ao encontro dos relatórios anuais da PNUD, pelo que deveria ser entendido como desenvolvimento: “O desenvolvimento tem a ver, primeiro e acima de tudo, com a possibilidade de as pessoas viverem o tipo de vida que escolheram, e com a provisão dos instrumentos e das oportunidades para fazerem as suas escolhas. E, ultimamente, o Relatório do Desenvolvimento Humano tem insistido que essa é uma ideia tão política quanto econômica. Vai desde a proteção dos direitos humanos até o aprofundamento da democracia (VEIGA, 2005, p. 81).” Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1998, identificou o desenvolvimento como um comprometimento de ampliação das liberdades individuais. O crescimento econômico é um meio importante para tal fim, mas não é o único. O fomento da educação, dos direitos civis, da saúde, de todos os instrumentos que possibilitem a expansão da liberdade, deve ser buscado. Principalmente, o desenvolvimento promove o “crescimento” do ser humano sobre todas as suas formas. Nesse intuito, destaca-se a necessidade da eliminação de tudo o que vem a ser um obstáculo à expansão da liberdade, pois o que tem de ser combatido são “as fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência de Estados repressivos.” (VEIGA, 2005, p.34). Amartya Sen (2010, p.18-20) distingue dois tipos de êxito na redução rápida das disparidades sociais: um é o crescimento econômico amplo, rápido e que abranja todas as classes sociais; outro é o custeio de programas sociais de manutenção social dos serviços de saúde, educação, etc. Uma economia dos custos relativos, na qual “uma economia pobre pode ter menos dinheiro para despender em serviços de saúde e educação, mas também precisa gastar menos dinheiro para fornecer os mesmo serviços, que em países ricos custariam muito mais” (VEIGA, 2005, p. 40). Ocorre que muitas políticas de crescimento econômico (CEPAL, BNDES, Planos de Metas do governo JK, 1960), notadamente de produção voltada para o mercado exterior, adotaram a ideia de “crescimento a qualquer custo”, incluindo, sob impactos ambientais, explorações indevidas de matéria e energia: “uma divergência racional entre eficiência econômica e a eficiência ecológica” (REGO; NASCIMENTO, 2011; MANZINI; VEZZOLI, 2002, apud LOPES, CASAGRANDE, SILVA, 2014, p. 140). Por fim, dentre essas ideias apresentadas, o desenvolvimento local é o destacável na promoção da mudança social no território, concebendo o desenvolvimento endógeno “como um processo de crescimento econômico implicando em uma contínua ampliação da capacidade de agregação de valor sobre a produção bem como da capacidade de absorção da região, cujo desdobramento é a retenção do excedente econômico gerado na economia local ou a atração de excedentes provenientes de outras regiões” (AMARAL, apud BUARQUE, 2002). 3.Números em prol do “desenvolvimento”. O problema ainda era a medição do desenvolvimento e, logo, suas comparações futuras por meio de um indicador sintético que representasse a amplitude do termo. Viu-se a necessidade de tratar desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico, apenas a comparar a renda per capita (PIB) ano a ano. Eis que o problema seria muito simples, porém estéreo. Depois, descobriu-se que desenvolvimento não se traduz, simplesmente, pela forma econômica. Várias perspectivas devem ser verificadas, não se permitindo uma análise tão simplória. Pois, novos e básicos elementos do desenvolvimento precisariam ser abordados, tais como: longevidade, escolaridade, acesso a bens mínimos para uma vida digna e possibilidade de participação cidadã na vida da comunidade (VEIGA, apud PÁDUA, 2009). Nisso, destacaram-se alguns indicadores sintéticos do desenvolvimento. O primeiro foi a renda per capita (PIB) anual; uma simples divisão da “riqueza” produzida pelo contingente populacional. Hoje, pode ser considerado um índice superado pela sua fragilidade e generalização do termo desenvolvimento. Do mesmo modo, buscando aperfeiçoar o PIB, ou incluir outros exteriores, surge o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Trata-se de uma média aritmética de outros três índices que examinam a renda, a longevidade e a escolaridade da população. No entanto, o problema é que este índice pode não apresentar a informação fundamental se uma comunidade é ou não é desenvolvida. Tanto que, para José Eli da Veiga (2005) é possível existir um primeiro município muito rico e que apresenta péssimas condições de vida e escolaridade, apresentando um IDH maior que um segundo pobre, que possui melhores indicadores de longevidade e escolaridade. O IDH, então, pode apresentar estas distorções aritméticas em divergência com a realidade social nua. Na trajetória por um melhor índice medidor do desenvolvimento, surgem os índices de quarta geração, a citar dois que merecem atenção: o DNA-Brasil e o IDS (Índice de Desenvolvimento Social). O DNA-Brasil não é propriamente um índice, mas um projeto do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP/Unicamp) de mobilização nacional em torno de desenvolvimento social e econômico. É uma compilação de 24 indicadores referente a sete dimensões, quais sejam: bem-estar econômico, competitividade econômica, condições socioambientais, educação, saúde, proteção social básica e coesão social. Aliados a estes dados, estariam os ângulos de uma estrela (dados espanhóis). Uma comparação com a Espanha, um país que apresenta grande disponibilidade de informações, que atingiu um alto nível de desenvolvimento em pequeno tempo.  Então, quanto mais próximos dos índices espanhóis, mais próximo à figura geométrica da estrela: algo não facilmente aplicável ao Brasil. Enquanto o IDS é um índice que se caracteriza por analisar cinco componentes de igual valor de mensuração: saúde, educação, trabalho, rendimento e habitação. A conter mudanças de gerações entre os índices que procuram quantificar o desenvolvimento. São anexados índices referentes à desigualdade, à habitação, à proteção ambiental, etc. Apesar disso, como observado por Amartya Sen (2010), nenhum índice sintetizará com perfeição o termo desenvolvimento. Portanto, a basilar função dos índices deve ser a orientação para uma pesquisa mais pormenorizada da realidade empírica de um estudo, considerando que “os vários índices sintéticos apresentados poderão ser muito úteis se servirem apenas de isca para cada uma das dimensões do desenvolvimento seja examinada sem paralelo, de forma que as principais discrepâncias sejam enfatizadas.” (VEIGA, 2005, p. 105). 4.Otimismos sobre a sustentabilidade. No Brasil, a introdução do conceito de sustentabilidade deu-se primeiro com o estabelecimento das diretrizes básicas para o zoneamento industrial nas áreas críticas de poluição, em 1980, a partir da Lei 6.803. A preocupação com o desenvolvimento sustentável surge logo no artigo 1º: “nas áreas críticas de poluição (…), as zonas destinadas à instalação de indústrias serão definidas em esquema de zoneamento urbano, aprovado por lei, que compatibilize as atividades industriais com a proteção ambiental”. Nesse período, a consciência ecológica tinha uma tímida força legislativa, mas que não era compatível com tecnologias e novas ciências, quanto mais com o crescimento econômico predatório ou extensivo que se fazia regra no Brasil. Sem embargo de ser, o final do século XX, marcado por significativas reflexões teóricas sobre crescimento e desenvolvimento integral (sociedade e meio ambiente natural) nas agendas políticas “ambientais”. Quanto à aplicação prática do Princípio da Equidade Geracional, pode-se dizer que o Brasil está carente de valorizar sistemas interativos entre ciência e tecnologia em curto prazo através de investimentos públicos decisivos; do contrário, pois, estar-se-á ou na utopia ou na realidade desastrosa do esgotamento dos recursos naturais (VEIGA, apud PÁDUAS, 2009). A noção de “sustentabilidade” surge em questão através de três teses. As duas primeiras são extremas (uma antítese da ciência). A terceira, procura um “meio termo” conciliador. Para respondê-las, é preciso uma análise crítica, separada em três formas básicas à indagação: “o que é sustentabilidade?”. A primeira resposta não vê nenhum dilema entre conservação ambiental e crescimento econômico frente à concepção do que venha a ser sustentável. Isso porque depois de certo crescimento de renda per capita (PIB) a poluição tende a abrandar. Já os seguidores da segunda resposta descrevem o oposto da primeira tese, ou seja, que não é possível haver harmonia entre tal crescimento econômico tradicional e a conservação da natureza, mesmo em longo prazo. Por fim, a terceira tese propõe uma visão não tão otimista sobre a evolução do crescimento tecnológico sob o viés da economia, mas não descarta as formas de conservação ambiental através de alternativas tecnológicas. Aos que creem no crescimento das riquezas econômicas como permissão para o aperfeiçoamento tecnológico e, por sua vez, da proteção ambiental, tais como Gene Grossman e Alan Krueger (apud VEIGA, 2005), a ideia é uma renda per capita de mais ou menos oito mil dólares o crescimento econômico. Só então, depois de alcançado tal patamar financeiro, o crescimento econômico não iria mais destruir o meio ambiente, senão ajudar a preservá-lo. Ao revés daquela ideia, numa corrente pessimista, o economista Nicholas Georgescu-Roegen (1976) lançou o alerta de que a economia não poderia ser demonstrada por um processo mecânico e que estaria limitada a leis da termodinâmica. Isto é, a segunda lei da termodinâmica sucumbiria um dia à produtividade econômica, uma vez que os recursos naturais são finitos. Sua explicação sobre a Lei da Entropia merece ser reproduzia: “No limite, trata-se de algo relativamente simples: todas as formas de energia são gradualmente transformadas em calor, sendo que o calor acaba se tornando algo tão difuso que o homem não pode mais utilizá-lo. Para ser utilizável, a energia precisa ser repartida de forma desigual. Energia completamente dissipada não é mais utilizável. A ilustração clássica evoca a grande quantidade de calor dissipada na água dos mares que nenhum navio pode utilizar. (ibid., p. 39).” Afirma Georgescu-Roegen que para manter seu próprio equilíbrio, a humanidade retira dos recursos naturais os elementos de baixa entropia (crescimento predatório), e se assim continuar, em um dado momento do futuro, haverá decréscimo produtivo. Ele conclui que a espécie humana não apresenta compromisso com as gerações vindouras (Princípio da Equidade Geracional), pois está determinada a ter uma vida excitante e curta, para, ao final, deixar o Planeta às amebas. Em compensação, o autor sugere que o crescimento econômico atual deve parar.  Ademais, pensar que se pode fazer uma tecnologia “milagrosa”, que represente a salvação ecológica, é ignorar o caráter da evolução e da história humana, cujo imbróglio é permanente. Algo longe de ser sanado por um processo físico-químico previsível e controlável, a exemplo de ferver água ou lançar um foguete. O pessimismo roegeneano rejeita a expressão “desenvolvimento sustentável”, onde tal termo deriva de um casamento forçado entre crescimento econômico e preservação ambiental, nos anos de 1960, nos Estados Unidos – país a defender a tese de que a economia certamente será absorvida pela ecologia: algo irreal de acontecer na visão dele, pois crescimento é encurtamento de expectativa de vida da espécie humana. De outro modo, em divergência ao fatalismo exposto por Georgescu-Roegen, está o economista Robert Solow (apud VEIGA, 2005), um colaborador da teoria do crescimento econômico. Ele indica que o processo produtivo é composto de três noções básicas: trabalho humano, capital produzido e recursos naturais. Sustenta a tese de que a natureza jamais constituirá sério obstáculo à expansão econômica, pois sempre haverá novos meios tecnológicos a restaurar os ecossistemas. Na pior das hipóteses, o que pode advir no futuro são problemas temporários devidos à ausência de algum recurso natural. A expansão será sempre proporcionada pelas invenções. Depois, o crescimento não é limitado pela finitude dos recursos naturais devido à infinidade de inovações. Para Solow, a sustentabilidade é simples capacidade de produção e reprodução, mesmo que somente justificado no trabalho humano e capital produzido. “É uma visão na qual a ideia de desenvolvimento sustentável acaba sendo absorvida e reduzida a crescimento econômico” (ibid., p. 123). Esse economista neoclássico propõe, então, uma “precificação” dos recursos naturais e uma negociação de bens naturais dentro de um sistema de mercado, pois o valor econômico do recurso (“valor da existência” de troca e gozo) deveria entrar no valor total de um novo elemento denominado “custo-benefício” em variação ao bem-estar humano. Contudo, os adeptos da economia ambiental convencional padecem de cegueira quanto ao valor econômico da diversidade biológica, eis que é a velha tendência de “precificação” de um bem natural que leva ao distanciamento entre crescimento econômico e preservação da natureza. Ademais, “o fortíssimo otimismo tecnológico [de Robert Solow] o leva a pregar pela fraqueza da sustentabilidade” (VEIGA, 2005, p.123). “A noção usual de sistema econômico consolidou-se justamente pelo crescente distanciamento da natureza. Por isso, toda tentativa de incorporar variáveis ambientais nas contabilidades esbarra em obstáculos conceituais e práticos que acabam tornando os resultados muito suspeitos (ibid., p. 129).” O uso de técnicas de valoração entre economistas ecólogos de vários temas leva a crítica de Georgescu-Roegen à tese de Solow. Daí merece trazer a ideia de sustentabilidade do Ilustre seguidor de Georgescu-Roegen, o economista Herman Daly (apud VEIGA, 2005). O ideal da sustentabilidade teria oportunidade de obter êxito se a economia modificasse o lamentável horizonte onde os recursos naturais podem ainda ser substituídos por capital (economia convencional). É necessária uma economia estável, mas não inerte. Um crescimento econômico quantitativo, mas não qualitativo. Por isso existe um antagonismo entre economistas convencionais e ecólogos a respeito da sustentabilidade. Daly, de forma pacificadora em um “meio termo”, busca superar o crescimento econômico através de uma ideia formulada por economistas clássicos, a exemplo de John Stuart Mill. É lamentável o ideal predatório vigente na visão de progresso, “enquanto as riquezas forem consideradas como poder, e o tornar-se o mais rico possível for um objetivo universal de ambição, o caminho para chegar a isso seja aberto a todos, sem favorecimento ou parcialidade” (ibid., p.131). Mill propõe que a sociedade estará segura com uma melhor distribuição de renda atingida adequadamente através da prudência, sobriedade dos indivíduos e sistema de legislação que favoreça igualdade de rendas. Sem abrir mão da utilização dos recursos naturais, a exemplo sugestivo do uso de tecnologias avançadas em parceria com a gestão compartilhada entre os vários atores sociais da pesca marinha de lagosta, no litoral nordestino brasileiro (VEIGA, apud PÁDUA, 2009).   Por sua vez, vários autores afirmam que a sustentabilidade somente seria possível em comunidades mais desenvolvidas, cujo nível econômico desse suporte às despesas com preservação ou reparação de recursos ambientais. Simplesmente. À noção de sustentabilidade estaria inserida a definição de renda (per capta), qual o montante máximo que a sociedade pode consumir no ano atual e ainda ser capaz de consumir no ano posterior. Desenvolvimento sustentável, pois, não significaria desenvolvimento sem crescimento econômico (ibid., 2009). A estratégia ambiental, aqui, iniciar-se-ia melhor nos países do “norte”, e no futuro caminharia para os países mais pobres na medida da sua elevação econômica. No entanto, essa visão é pouco “eficiente” quando se discutem organizações inovadoras sustentáveis, isto é, “não é a que introduz novidades de qualquer tipo, mas novidades que atendam as múltiplas dimensões da sustentabilidade em bases sistemáticas e colham resultados positivos para ela, para a sociedade e o meio ambiente” (BARBIERI, 2007, apud BARBIERI, VASCONCELOS, ANDREASSI, et al., 2010, p. 150). De modo que uma acepção de sustentabilidade pelo viés tão-somente econômico seria fraca demais, ou ainda pior, alimentaria a miopia frequente na compreensão da complexa (e inesgotável) noção de sustentabilidade ambiental. 5.Conclusão. Existem percepções óbvias que não devem ser desprezadas quando se rediscutem temas como desenvolvimento, crescimento econômico, sustentabilidade e meio ambiente. São temas distinguíveis, mas que são caminhos para a explicação do desenvolvimento sustentável de um país. O desenvolvimento sustentável deve ser concebido, porquanto, como “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades” (Nosso Futuro Comum, 1991, p.46, apud, MILARÉ, 2011, p.77). Ainda mais quando se vive em sociedades industriais, quando “o crescimento econômico é algo sempre desejado e perseguido por empresários e políticos, o que explicaria a grande adesão que eles deram ao movimento da sustentabilidade” (BARBIERI, VASCONCELOS, ANDREASSI, et al., 2010, p.148). É óbvio que a má ou insustentável utilização dos recursos naturais para a satisfação das necessidades humanas imediatas comprometerá a possibilidade de vida, ao menos humana; pois, ao que tudo indica, o ser humano está determinado a uma vida curta e excitante, deixando o futuro do planeta para as amebas. Por outro lado, apesar desse contexto historicamente caótico, a partir da segunda década do século XXI, novas políticas normativas ambientais no Brasil se consolidam progressivamente com a execução de programas, ações e atividades desenvolvidas pelo Estado, direta ou indiretamente. A participação de entes privados que visam assegurar determinado direito de cidadania e meio ambiente, através de um selo verde e seus “isos”, são medidas ecologicamente corretas em seus espaços produtivos, ainda que sob a forma de “marketing ecológico”. Por fim, a questão central está em como realizar políticas públicas de elevação econômica e social sem destruir o equilíbrio do meio ambiente natural. Muito embora sejam inúmeras as teorias que abordam o desenvolvimento como uma esfinge enigmática. Igualmente, a sustentabilidade é vista, por vezes, como utópica diante do consumismo industrial vigente, quando certos “padrões de vida” são festejados em nome dos “países do norte”, ao passo que abrir mão do conforto material ou preservar o meio ambiente seria o mesmo que o “atraso econômico do sul”. Em verdade, o pessimismo ambiental passa a tomar o lugar do realismo, quando o Princípio da Equidade Geracional não mais encontra sustento para as futuras gerações humanas, ou mesmo direitos quanto ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Tal princípio ainda carece de aplicações e espaço maior nas agendas públicas, estas, por vezes, sob políticas ambientais superficiais e formais.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-134/desenvolvimento-e-sustentabilidade-desafio-ao-principio-da-equidade-geracional-no-brasil/
Diretivas Antecipadas de vontade no ordenamento jurídico Brasileiro
O presente artigo visa investigar e entender as funções de alguns princípios e normas Constitucionais e infraconstitucionais que possam viabilizar a instituição no Brasil, das diretivas antecipadas de vontade. Para tanto, recorreu-se à necessária leitura de doutrinas que abordem este ramo do direito, bem como as Resoluções emitidas pelo Conselho Federal de Medicina sobre o tema. O estudo envolve a contextualização hermenêutica necessária para avaliar e realizar as ponderações pertinentes aos desajustes entre o horizonte normativo da Constituição de 1988 e a conduta dos Poderes legislativo e judiciário, que timidamente iniciam a desmistificação sobre o assunto.
Biodireito
Introdução Ao longo dos anos a medicina evoluiu substancialmente, sobretudo no tratamento e cura das diversas enfermidades que nos acometem. A tecnologia atual, não só elevou as possibilidades de cura dos pacientes, como também aumentou a busca médica pela cura a qualquer custo, mesmo que o insucesso do tratamento seja comprovado cientificamente. A vida humana tem sido prolongada para além daquilo que é adequado, contudo, a morte permanece irremediável e por muitas vezes mais dolorosa do que deveria ser.  Sentir dores descomunais e não ter mais forças para suportá-las, faz com que o indivíduo reflita sobre o que preconiza a atual Constituição Brasileira onde, em hipótese alguma, o ser humano estará obrigado a passar por tratamentos que cominem no desrespeito à sua dignidade. Apesar de a vida ser um direito fundamental, como todo direito ele não é absoluto, por isso é inconcebível que uma pessoa seja obrigada a submeter-se a tratamentos médicos degradantes visando apenas prolongar dolorosamente a sua existência. Nesse contexto, discute-se hodiernamente a autonomia do paciente e a preservação de sua dignidade no fim da vida, o que pode ocorrer por intermédio das diretivas antecipadas de vontade. Desse modo, o presente trabalho visa analisar a efetividade das diretivas antecipadas de vontade em nosso ordenamento jurídico e como podem contribuir para a chamada “morte digna”. Para cumprir essa aspiração, o trabalho foi disposto e desenvolvido com as conseguintes especificações: em primeiro lugar, buscou-se analisar a eficácia da autonomia privada do individuo nas diretivas antecipadas e no gerenciamento de seus tratamentos médicos. A seguir, com a proposta de distinção entre dignidade da pessoa humana e direito a vida, buscou-se estabelecer qual garantia Constitucional deve prevalecer quando ocorrer situações conflitivas, sob a luz da técnica de ponderação de interesses utilizada por alguns autores pátrios. Em continuidade, trabalhou-se o significado do termo “diretivas antecipadas de vontade”, fazendo algumas distinções com expressões correlatas; seu contexto histórico além de uma breve análise do direito comparado. Por fim, apontou-se as resoluções do Conselho federal de medicina sobre o tema e debateu-se as perspectivas legislativas das diretivas no Brasil. Em linhas gerais, com base nas premissas apresentadas neste escrito, é este o contexto que prepara o campo para o estabelecimento da norma que, enfim, dê a passagem livre para serem efetivadas, em território pátrio, as diretivas antecipadas de vontade fundadas em um Estado Democrático de Direito em respeito ao ser humano para que tenha vida digna e alcance consequentemente à morte com dignidade. 1. Princípios constitucionais aplicáveis em situações de terminalidade de vida versus direito à vida 1.1 O princípio da autonomia privada O conceito de autonomia, por ser historicamente atrelado ao ser humano, evoluiu junto com a sociedade compartilhando com ela seus infortúnios e sucessos. Na esfera jurídica, a autonomia do indivíduo é consagrada por meio de princípios.  Inicialmente temos o princípio da autonomia da vontade, que com o passar do tempo foi sucedido pelo princípio da autonomia privada, sendo que este tem conteúdo diverso daquele.  Segundo Luciana Dadalto (2009, p.17), o princípio da autonomia da vontade é corolário do Estado liberal, onde este intervinha minimamente nas relações privadas. Essa situação culminou no surgimento da justiça formal, circunstância em que o Estado era inerte diante de possíveis injustiças sociais desde que os atos que as causaram estivessem de acordo com a legislação vigente no momento dos fatos. Aqui, a vontade do indivíduo se sobrepunha à do Estado devido a sua auto-suficiência.  Assim, esclarece Maíla Mello Campolina Pontes e Maria de Fátima Freire de Sá “A expressão autonomia da vontade tem sua memória ligada ao liberalismo. Com a propriedade privada afigurava-se como princípio que regia a concepção de um sistema de direitos negativos perante o Estado e a outros cidadãos, possibilitando, dessa maneira, a cada indivíduo a realização de seus interesses e inclinações individuais sem a intervenção estatal. […] assim, vigia uma noção de autonomia ilimitada. (MELLO, SÁ; 2009 p.43)” Dadalto (2009, p17), prossegue afirmando que após a Primeira Guerra Mundial, com o aumento do processo de industrialização, a autonomia privada começou a superar a autonomia da vontade, pois neste momento o Estado estava preocupado em garantir a justiça material para todos e para isso, a intervenção nas relações privadas foi um mal necessário. Esse fenômeno recebeu o nome de dirigismo contratual. Nesse sentido Mello e Sá ressaltam”[…] a visão da autonomia precisou ser novamente trabalhada e com isso, uma nova concepção que primava pela proteção dos interesses coletivos foi sendo delineada. Foram estabelecidos limites à livre atuação dos indivíduos e da sociedade como um todo por meio da ideia de função social. ((MELLO, SÁ; 2009 p.44)” Destarte, Dadalto (2009.p.37) completa dizendo que a autonomia privada do indivíduo deve ser entendida como a possibilidade, o poder de perseguir seus interesses individuais sem que isso implique em choque com a autonomia pública, conservando assim, a coexistência de todos os projetos de vida dos cidadãos. Desse modo, apesar da intervenção estatal, o princípio da autonomia privada se relaciona com a ideia de liberdade e por consectário lógico, com a autodeterminação do indivíduo. Nesse viés, no que tange aos pacientes em estado terminal de vida, este princípio caminha juntamente com o princípio da bioética do respeito à pessoa, uma vez que este trata da capacidade do paciente de decidir sobre o tratamento ou experimento a que será submetido. Consequentemente temos que: “O princípio da autonomia requer que o médico respeite a vontade do paciente ou do seu representante, assim como os seus valores morais e crenças. Reconhece o domínio do paciente sobre a própria vida e o respeito à sua intimidade. Limita, portanto, a intromissão dos outros indivíduos no mundo da pessoa que esteja em tratamento (NAVES; REZENDE, 2007 p.97/98)” Ao lado do supracitado princípio bioético do respeito à pessoa, temos o direito à informação, assegurado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) em seu artigo 5°, inciso XIV, como direito fundamental. Nesse sentido, a verdade é essencial na relação médico paciente de forma a permitir o exercício pleno e inequívoco da autonomia deste. Por sua vez, Sá (2001, p.64) destaca o direito à informação, unido ao surgimento do então chamado consentimento informado, elemento que resulta de um processo de colaboração entre médico e paciente visando satisfazer os valores e desejos deste. Assim, o Novo código de ética médica, Resolução 1931/2009, em diversos momentos, dispõe acerca do consentimento informado do paciente, sendo vedado ao médico “Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo. Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte. Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2009)” Recentemente, parte da doutrina tem usado a expressão “consentimento livre” ao invés de “consentimento informado”, sob o argumento de que aquela é mais ampla do que esta, já que visa anuência do paciente despida de qualquer ingerência por parte de terceiros e associada à informação de qualidade. Nesse sentido “[…] o ato de consentir tem que ser qualificado, ou seja, livre de qualquer ingerência externa capaz de viciar a decisão do paciente. […] Os defensores desse consentimento qualificado entendem que sua validade não se atém à liberdade de escolha frente à informação e exigem que essa informação seja um esclarecimento pleno sobre todas as implicações inerentes ao tratamento. (MATOS, 2007, p. 201).” Desse modo, diante da livre e inequívoca manifestação de vontade do paciente, precedida de informações claras, objetivas e sem quaisquer condicionantes externos, teremos assegurado o respeito às vontades do indivíduo sobre a administração de seu tratamento médico e sobre o seu direito de morrer dignamente. Portanto, as diretivas antecipadas de vontade constituem o documento apto a concretizar validamente a autodeterminação do indivíduo, já que seu objetivo maior é preservar os interesses daqueles que por motivos clínicos não conseguem expressar os seus desejos acerca dos cuidados médicos que se dispõe ou não a receber. 1.2O princípio da Dignidade da pessoa humana Dentre os princípios fundamentais que são caracterizados como base axiológica para todo o ordenamento jurídico, temos a Dignidade da pessoa humana, que está localizado entre os pilares do Estado Democrático de Direito, no artigo 1º, inciso III, da CRFB/88 que desse modo dispõe: “Art.1° A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:a soberania;a cidadania;a dignidade da pessoa humana;os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa[…].(BRASIL,1988)” Rodrigo da Cunha Pereira (2012, p. 116/117) explica que a expressão “dignidade da pessoa humana” surgiu no ano de 1785 na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de Immanuel Kant. Nela, Kant afirma que o homem jamais deve ser transformado num instrumento para a ação de outrem, isso porque é dotado de consciência moral possuindo um valor que o torna sem preço, que o põe acima da condição de coisa. Kant assevera ainda, que o valor intrínseco que faz do homem um ser superior às coisas é a dignidade, assim, as coisas teriam um preço e o homem dignidade. De acordo com Alexandre de Moraes, a dignidade da pessoa humana pode ser considerada como “[…] um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que trás consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo o estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (MORAES, 2007, p.60)”. Dignidade da pessoa humana é, portanto, um macroprincípio sobre o qual irradiam outros princípios e valores essenciais ao Estado democrático de direito, como a autonomia privada, cidadania e igualdade. Portanto, não é exagero dizer que se trata do respaldo necessário para o exercício dos demais direitos, visto que é inerente a todo e qualquer ser humano devendo, por esse motivo, ser permanentemente protegido. Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, ressaltam a concepção de que a dignidade humana é o mais precioso valor do ordenamento jurídico brasileiro ao afirmarem “[…] o mais precioso valor da ordem jurídica brasileira, erigido como fundamental pela Constituição de 1988 é a dignidade humana, vinculando o conteúdo das regras acerca da personalidade jurídica. Assim, como consectário, impõe reconhecer do ser humano o centro de todo o sistema jurídico, no sentido de que as normas são feitas para a pessoa e para a sua realização existencial, devendo garantir um mínimo de direitos fundamentais que sejam vocacionados para lhe proporcionar vida com dignidade. (FARIAS, ROSENVALD,2011, p.136)”. Por ser um valor intrínseco ao ser humano e precioso para nossa ordem jurídica, a dignidade deve ser respeitada não só pelo Estado, mas por todos, de acordo com as peculiaridades/subjetividade de cada pessoa. Nesse sentido, não só a dignidade da vida, mas também a da morte, ganha contornos particulares que deve alcançar o respeito da sociedade, assim “Há a evidente violação à dignidade da pessoa no momento em que se inicia tratamento sabidamente ineficaz face à inevitabilidade da morte e irreversibilidade do processo que a ela conduz. Há certamente postergação da morte com sofrimento e indignidade, mas não haverá prolongamento da vida. A sua vontade – elemento estritamente subjetivo – é ignorada. E finalmente, ao prolongamento artificial de seu processo de morrer, ocorre alienação em relação à sociedade e à sua própria vida, pois nem pode exercer as relações sociais com dignidade, e nem pode “viver” naturalmente, ou seja, terminar de viver naturalmente. (DAYRELL, 2010 p. 23)”. Conclui-se, portanto, que a dignidade é principio e fim do direito hodierno que deve prevalecer inclusive, nas situações de terminalidade de vida, por isso, diante da ausência legislativa brasileira acerca das diretivas antecipadas de vontade, o principio da dignidade da pessoa humana é alicerce legítimo para assegurar sua validade em nosso país. 1.3Direito à vida versus a autonomia do paciente no processo da morte digna Encontra guarida no artigo 5°, caput da CRFB/88 o direito à vida como sendo a base para o exercício de todos os outros direitos fundamentais, e por esse motivo, possui como características intrínsecas a inviolabilidade e inalienabilidade. Diante da consagração constitucional do direito à vida e também dos princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia privada, como agir diante do conflito existente entre o direito à vida e a busca da efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana no momento da morte? Como considerar legítima em território pátrio as diretivas antecipadas de vontade se de certo modo elas confrontam com o direito à vida? Como garantir ao paciente terminal uma morte digna? O ilustre doutrinador Paulo Nader, faz considerações acerca de possíveis conflitos entre princípios e normas constitucionais, onde segundo ele, deve-se sempre tentar assegurar a primazia da dignidade da pessoa humana aplicando-se a chamada técnica de ponderação de interesses utilizada por alguns autores da área “A fim de assegurar a efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana, alguns autores sustentam a chamada técnica de ponderação de interesses, aplicável diante de conflito entre princípios garantidos pela Lei Maior.Tendo em vista a Constituição Federal de 1988 dispõe amplamente sobre os interesses da pessoa, da sociedade e do Estado, é possível que, diante de fatos concretos, o aplicador constate antinomia entre os próprios princípios constitucionais. Neste caso, de acordo, com a técnica de ponderação de interesses, preconiza-se a adoção do critério que mais satisfaça à dignidade da pessoa humana. (NADER,2010,p 63)”. Continuando a linha de raciocínio, a Constituição de 1988, em seu artigo 5° inciso III, garante que ninguém será submetido a tratamento degradante ou desumano. Em complemento, a norma prevista no artigo 15 do Código Civil de 2002 dispõe que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”, em razão também do princípio da liberdade ao próprio corpo. Desse modo, podemos aliar estes dispositivos legais à técnica de ponderação, que legitima a supremacia do princípio da dignidade da pessoa humana sobre os demais princípios e direitos, e à autonomia privada do paciente terminal, como forma de afastar a lesão ao direito à vida diante da adoção das diretivas antecipadas de vontade.  Em síntese, Sá esclarece brilhantemente este dilema ao afirmar que “A obstinação em prolongar o mais possível o funcionamento do organismo de pacientes terminais, não deve mais encontrar guarida no Estado de direito, simplesmente, porque o preço dessa obstinação é uma gama indivisível de sofrimentos gratuitos, seja para o enfermo, seja para os familiares deste. O ser humano tem outras dimensões que não somente a biológica, de forma que aceitar o critério da qualidade de vida significa estar a serviço não só da vida, mas também da pessoa. O prolongamento da vida somente pode ser justificado se oferecer às pessoas algum beneficio, ainda assim, se esse beneficio não ferir a dignidade do viver e do morrer. (SÁ, 2001, p.59)”. Assim, por mais preciosa que a vida seja, ela só tem sentido e valor dentro do conceito de dignidade humana, que como já debatido, é de cunho altamente subjetivo. Não faz sentido transformar o direito à vida em dever. A tutela do Estado no que diz respeito ao Direito à vida, deve entender que uma vida ao passo de não mais conseguir ser digna e fugir dos parâmetros de mínimo de qualidade, não deve mais ser mantida forçosamente, o Estado teria a obrigação de assegurar ao enfermo o Direito de morrer dignamente. 2. Distinções acerca do conceito de diretivas antecipadas de vontade e temas correlatos            As diretivas antecipadas de vontade surgiram no final da década de 1960 como respostas à excessiva e contraproducente intervenção médica nos casos de terminalidade de vida. De acordo com o artigo 1° da Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) n.1995/2012, tem-se por Diretivas antecipadas de vontade “Art. 1º (…) conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2012)”. Completando tal definição, Dadalto (2009, p.59) determina que em linhas gerais as diretivas antecipadas de vontade podem ser consideradas como um documento escrito por pessoa capaz cujo objetivo é dispor sobre tratamentos médicos aos quais porventura venham a submeter-se, desse modo as diretivas antecipadas são gênero que tem como espécies, o mandato duradouro e o testamento vital. Por testamento vital, segundo Dadalto (2009, p. 53) entende-se o documento que se restringe a tão somente declarar os desejos do paciente que se encontra em terminalidade de vida, onde este disporá sobre os tratamentos que deve ou não receber, podendo abrir mão daqueles que considerar extraordinários. Já o mandato duradouro é o documento pelo qual há a nomeação de uma pessoa responsável por tomar decisões em nome do paciente quando este não puder fazê-lo. Assim, as diretivas antecipadas de vontade, basicamente são o documento resultante da união entre o testamento vital e o mandato duradouro, isso porque não visa tão somente à declaração de vontade do individuo sobre seus tratamentos médicos, como também a sua efetividade através de um procurador que garanta o seu cumprimento. Através das diretivas, o indivíduo poderá recusar o recebimento dos chamados tratamentos extraordinários. Maria Elisa Villas Bôas assim define e distingue os tratamentos extraordinários dos ordinários “[…] as medidas ordinárias de manutenção da vida são aquelas habitualmente disponíveis, pouco dispendiosas e menos agressivas, aceitas comumente como cuidados básicos devidos ao doente grave ou terminal, como os são todos os enfermos. Entre elas se situa, por exemplo, para a maioria, a nutrição e a hidratação artificialmente providas àquele que já não pode alimentar-se por via oral. As medidas extraordinárias, por essa classificação, abrangem cuidados específicos, restritos a alguns casos, custosos, limitados, arriscados e, por tudo isso, de uso mais criterioso. (BÔAS, 2005, p. 47)”. Por paciente em estado terminal de vida, entende-se aquele que está acometido por doença incurável e irreversível, independentemente de receber ou não tratamento médico, onde a morte é fato que se dará de forma imediata ou em curto espaço de tempo. A sociedade espanhola de cuidados paliativos (SECPAL) traça como elementos caracterizadores dessa situação a presença de doença avançada, progressiva e incurável, aliada a falta de possibilidade razoável de resposta a tratamentos específicos, com inúmeros problemas ou sintomas intensos que causem grande impacto emocional no paciente, família e equipe médica e que o prognostico de vida seja inferior a seis meses.[1] Também relacionados às diretivas antecipadas, estão os conceitos de eutanásia, ortotanásia, distanásia, mistanásia e suicídio assistido, que para melhor compreensão do tema, devem ser aclarados. Vejamos: Eutanásia, etimologicamente, significa “boa morte”, já que vem do grego eu (boa) thanatos (morte). Para Sá (2001, p. 66/67) é a morte produzida através da ação ou omissão do médico, que emprega, ou omite, meio eficiente para produzir a morte em paciente incurável e em estado de grave sofrimento, diferente do curso natural, abreviando-lhe a vida.   Por este conceito, percebe-se que a eutanásia possui duas facetas, uma ativa e outra passiva. Como o próprio nome sugere, a eutanásia ativa é aquela onde um terceiro pratica uma ação intencionalmente, que culmina na morte de outrem, já na passiva, a morte do individuo decorre da omissão, também intencional, por parte de um terceiro. A eutanásia ativa não é tolerada por nosso ordenamento jurídico, sendo considerada como homicídio pelo Código Penal Brasileiro “Art. 121- matar alguém: Pena- reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos. § 1°- se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vitima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. (BRASIL 1941).” Ressalte-se, que os conceitos de eutanásia passiva e ortotanásia não se confundem assim, Dadalto assevera “É imperioso, portanto, salientar que, a despeito do entendido por alguns doutrinadores, a eutanásia passiva não é sinônimo de ortotanásia, pois enquanto na primeira se abstém de realizar os tratamentos ordinários mais conhecidos pela Medicina como cuidados paliativos, na segunda se abstém de realizar tratamentos extraordinários (fúteis), suspendendo os esforços terapêuticos, conceitos que serão melhor tratados posteriormente.(DADALTO,2009,p.35)”. Na contramão da ortotanásia, temos a distanásia, também conhecida como obstinação terapêutica, situação em que o objetivo é prolongar ao máximo a quantidade de vida humana, tendo a morte como maior inimigo. Aqui, não importa o sofrimento do paciente ou de seus familiares, contanto que a vida humana seja preservada. Mistanásia, por sua vez, consubstancia-se na morte fora de hora, miserável. Sá e Diogo Luna Moreira consideram-na como eutanásia social, e citam Martin para ressaltar seu caráter perverso “Nada tem de boa, suave ou indolor dentro da categoria de mistanásia pode-se focalizar três situações: primeiro, a grande massa de doentes e deficientes que, por motivos políticos, sociais e econômicos, não chegam a ser pacientes, pois não conseguem ingressar efetivamente no sistema de atendimento médico; segundo, os doentes que conseguem ser pacientes, para, em seguida, se tornar vitimas de erro médico e, terceiro, os pacientes que acabam sendo vitimas de má- prática por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos. A mistanásia é uma categoria que nos permite levar a sério o fenômeno da maldade humana. (MARTIN, apud MOREIRA, SÁ, 2012, p.91)”. Por fim, temos o suicídio assistido. Este resulta da própria ação do paciente que, com ajuda de terceiros, provoca a sua morte. Enquanto na eutanásia a morte é provocada por terceiros, na mistanásia a morte é provocada pelo próprio paciente, não derivando diretamente da ação de um terceiro, e sim da ação do próprio paciente, que agindo sob orientação ou auxilio de outrem, tira sua vida. Feitas tais considerações, é importante destacar que há relação entre os conceitos de diretivas antecipadas e de ortotanásia com o consentimento livre do paciente. O consentimento livre é um misto entre o princípio da bioética do respeito à pessoa unido com o direito constitucional à informação, que resulta no dever do médico de informar ao paciente sobre todos os aspectos de seu tratamento médico. Portanto, pode-se dizer que o consentimento livre nada mais é do que a aceitação racional de um tratamento pelo paciente, mediante informações suficientes e de fácil compreensão sendo que este deve encontrar-se livre para decidir de acordo com seus próprios valores, além de possuir capacidade plena para decidir sobre a questão. Tendo em vista os conceitos acima abordados, pode-se ter uma percepção exata sobre o panorama das diretivas. Elas não visam acelerar a morte do indivíduo, muito ao contrário, sua premissa principal é garantir uma morte natural, indolor e digna a todos que formularem o referido documento, para isso, necessário se faz a conjugação do testamento vital com o mandado duradouro levando em consideração o consentimento livre do paciente. Só assim será assegurado ao indivíduo a realização de suas vontades no processo da morte diante de seu poder de autodeterminação. 3. Diretivas antecipadas de vontade no direito comparado Como dito acima, o surgimento das chamadas diretivas antecipadas de vontade se relaciona com a tentativa de inibir os chamados tratamentos extraordinários e abusos médicos na obstinação em curar seus pacientes a qualquer custo, assim, esclarece Dadalto (2009, p.64), no ano de 1967, nos Estados Unidos da America (EUA), a Sociedade Americana para a Eutanásia, propôs a adoção do testamento vital como um documento pelo qual o paciente poderia dispor sobre a interrupção de tratamentos médicos considerados excessivos. Já em 1969, o advogado Louis Kutner, apresentou um modelo de uma declaração prévia de vontade do paciente terminal visando solucionar o impasse entre pacientes, médicos e familiares. O primeiro diploma legal a reconhecer o testamento vital, nasceu no ano de 1976, no Estado da Califórnia que aprovou o Natural Death Act, fazendo com que, vários países regulamentassem o referido documento. Em 1991, finalmente, é aprovada nos EUA a primeira lei federal, chamada de Patient Self-Determination Act (PSDA), que reconhece o direito à autodeterminação do paciente, servindo de diretriz para a elaboração de outras Leis pelos Estados Federados. Já no continente europeu, a Espanha é pioneira nesse assunto, legislando efetivamente sobre o tema há mais de 10 anos, apesar de que desde 1986 reconhece a autonomia do paciente, que pode determinar como o seu tratamento médico será administrado. Vale ressaltar que, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, onde o testamento vital nasceu, a Espanha prefere chamar o referido documento de instruções prévias, pois considera a expressão ‘vontades antecipadas’, – que fora importada do direito norte americano – dissociada do mundo da bioética e do direito sanitário. Destacam-se na Espanha algumas normas jurídicas de extrema importância no mundo da bioética neste país. Primeiro temos a Ley General de sanidad- 14/1986, que dispõe sobre os direitos dos pacientes e o reconhecimento do seu consentimento informado; depois temos a Convenção de Oviedo de 1997 que reconheceu a autonomia do paciente e o seu direito em recusar tratamento médico; a Ley 41/2002 que regulamenta as instruções prévias a nível nacional e, por fim o Real Decreto 124/07, que cria o Registro Nacional de Instrucciones Previas e o correspondente arquivo automatizado de dados. Sobre as instruções previas espanholas, Dadalto salienta que “Em linhas gerais, as instruções prévias na Espanha devem conter orientações à equipe médica sobre o desejo de que não se prolongue artificialmente a vida, a não utilização dos chamados tratamentos extraordinários, a suspensão do esforço terapêutico e a utilização de medicamentos para diminuir a dor, entre outras. A Lei 41/02, possibilita que no documento de instruções prévias o outorgante nomeie um representante para que, quando aquele estiver impossibilitado de manifestar sua vontade, este terceiro possa fazê-lo em nome do subscritor do documento. Ou seja, a lei espanhola apresenta uma verdadeira diretiva antecipada, com a possibilidade de conter, em um único documento, o testamento vital e o mandato duradouro. (DADALTO, 2013, p108)”. Ainda no continente europeu, Portugal discute sobre o tema desde 2006, com o projeto de lei de autoria da Associação Portuguesa de Bioética, mas somente em julho de 2012 obteve a promulgação da Lei n° 25/2012, que regulamenta as diretivas antecipadas de vontade, contudo, críticas são feitas a ela “Esta lei contém clara confusão terminológica, vez que iguala o testamento vital às diretivas antecipadas de vontade e trata o mandato duradouro, lá chamado de procurador para cuidados em saúde, como outro instituto jurídico – mas prevê a criação de um registro nacional, o que significa grande avanço na operacionalização deste instituto. (DADALTO, 2013 p108)”. Na América do sul, temos a Argentina, cuja primeira legislação sobre diretivas antecipadas foi a Lei 4.263, da província de Rio Negro, promulgada em 19 de dezembro de 2007. Em 2009, foi promulgada a lei federal 26.529 20, sobre os direitos do paciente, que no artigo 11 reconhece o direito de o paciente dispor sobre suas vontades por meio de diretivas antecipadas.. 4. As diretivas antecipadas de vontade e seus reflexos no ordenamento jurídico brasileiro 4.1. A Resolução n. 1.805 de 2006 do CFM No dia 28 de novembro de 2006, o Conselho Federal de medicina brasileiro editou a Resolução n. 1.805 que autoriza o médico a suspender ou limitar tratamentos extraordinários que prolonguem a vida do paciente quando este se encontra em fase terminal de vida, posto que acometido por enfermidade grave e incurável. Na exposição de motivos da Resolução n. 1.805 de 2006, o CFM ressalta a importância da atuação conjunta da sociedade com a classe médica para garantia da dignidade humana no processo da morte ao afirmar que “[…] torna-se importante que a sociedade tome conhecimento de que certas decisões terapêuticas poderão apenas prolongar o sofrimento do ser humano até o momento de sua morte, sendo imprescindível que médicos, enfermos e familiares, que possuem diferentes interpretações e percepções morais de uma mesma situação, venham a debater sobre a terminalidade humana e sobre o processo do morrer. Torna-se vital que o médico reconheça a importância da necessidade da mudança do enfoque terapêutico diante de um enfermo portador de doença em fase terminal, para o qual a Organização Mundial da Saúde preconiza que sejam adotados os cuidados paliativos, ou seja, uma abordagem voltada para a qualidade de vida tanto dos pacientes quanto de seus familiares frente a problemas associados a doenças que põem em risco a vida. A atuação busca a prevenção e o alívio do sofrimento, através do reconhecimento precoce, de uma avaliação precisa e criteriosa e do tratamento da dor e de outros sintomas, sejam de natureza física, psicossocial ou espiritual. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2006)”. Apesar de possuir apenas três artigos, esta Resolução representa um enorme avanço no Brasil no que diz respeito à preservação da autonomia e dignidade do paciente terminal, isso porque ao permitir a suspensão ou limitação de tratamentos extraordinários, ela conduz á uma discussão mais aprofundada sobre a licitude e adoção da ortotanásia. “Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. § 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação. § 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário. § 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica. Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando- lhe o direito da alta hospitalar. Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2006)”. Importante notar que muito embora seja autorizada a suspensão dos tratamentos médicos, ao doente, de acordo com o artigo 2° da Resolução, é assegurada a continuidade dos cuidados que alivie o seu sofrimento, visando evidentemente, a soberania da dignidade humana base não só da ortotanásia, como também das diretivas antecipadas. 4.2. Ação civil pública n° 2007.34.00.014.809-3  Muito embora não vincule a comunidade jurídica, a resolução n.1.805 de 2006 foi questionada pelo Ministério Público Federal, que no dia 9 de maio de 2008 promoveu ação civil pública com pedido de antecipação de tutela, autos de processo n. 2007.34.00014809-3, contra o Conselho Federal de Medicina, pleiteando basicamente o reconhecimento da nulidade da referida Resolução sob o argumento de que o CFM não poderia estabelecer como conduta ética uma conduta que é tipificada como crime, ressaltando que o direito à vida é indisponível e só poderia ser restringido por lei em sentido estrito e não por uma Resolução da classe Médica. A ação em questão tramitou perante a 14ª Vara Federal do Distrito Federal e em sede de apreciação da antecipação de tutela requerida pelo Ministério Público, o Juiz Federal Roberto Luis Luchi Demo, reconheceu que “[…] a ortotanásia não antecipa o momento da morte, mas permite tão somente a morte em seu tempo natural e sem utilização de recursos extraordinários postos à disposição pelo atual estado da tecnologia, os quais apenas adiam a morte com sofrimento e angústia para o doente e sua família. (AÇÃO CIVIL PÚBLICA nº 2007.34.00.014809-3, 2007)”. Contudo, apesar de perfilhar o entendimento de que a ortotanásia permite tão somente a morte natural do individuo sem ter o condão de antecipá-la, o Douto Magistrado, concedeu a antecipação de tutela requerida, suspendendo os efeitos da Resolução do CFM. Citado, o Conselho Federal de Medicina contestou a ação asseverando que a ortotanásia, objeto da Resolução, esta ligada à morte como evento certo, iminente e inevitável ao qual deve ser aliada a tratamentos paliativos representando uma morte digna, confortável e menos dolorosa ao paciente como decorrência do princípio da dignidade humana, consubstanciando um direito fundamental de aplicação imediata. Durante o trâmite da ação, mais precisamente no ano de 2007, o então Procurador Wellington Oliveira foi sucedido por Luciana Loureiro Oliveira, que assumiu o processo em questão causando grande reviravolta no caso. Luciana, com base no artigo 127, caput, e § 1° da CRFB/88, que atribui à procuradoria independência à consciência jurídica, ponderou que no presente caso havia nítida confusão entre ortotanásia e eutanásia o que prejudicava e muito a decisão do magistrado. Desse modo, em suas alegações finais, a Procuradora da República pugnou pela improcedência do pedido feito por seu antecessor nos seguintes termos “1) o CFM tem competência para editar a Resolução nº 1805/2006, que não versa sobre direito penal e, sim, sobre ética médica e consequências disciplinares; 2) a ortotanásia não constitui crime de homicídio, interpretado o Código Penal à luz da Constituição Federal; 3) a edição da Resolução nº 1805/2006 não determinou modificação significativa no dia-a-dia dos médicos que lidam com pacientes terminais, não gerando, portanto, os efeitos danosos propugnados pela inicial; 4) a Resolução nº 1805/2006 deve, ao contrário, incentivar os médicos a descrever exatamente os procedimentos que adotam e os que deixam de adotar, em relação a pacientes terminais, permitindo maior transparência e possibilitando maior controle da atividade médica; 5) os pedidos formulados pelo Ministério Público Federal não devem ser acolhidos, porque não se revelarão úteis as providências pretendidas, em face da argumentação desenvolvida.( (DISTRITO FEDERAL, 2010)”. A solução do litígio veio no dia 1º de dezembro de 2010, o Ilustre Magistrado que outrora suspendeu a Resolução n.1.805/06, rejeitou os pedidos formulados pelo Ministério Público revogando a antecipação de tutela anteriormente concedida e julgando improcedentes os pedidos da exordial. 4.3. Resolução do CFM n° 1.931/2009 – o atual código de ética médica No dia 13 de abril de 2010, entrou em vigor no Brasil, após vinte anos de vigência da edição anterior, o “novo” Código de Ética Médica, por meio da Resolução do CFM nº 1.931/2009.  Tal resolução consagra em diversos momentos a importância dos tratamentos paliativos do paciente terminal associado ao abandono da obstinação médica em curar o enfermo a qualquer custo. Destaca-se os seguintes dispositivos do código de ética médica de 2009: “Capítulo I PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS […] XXII – Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos, diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.  […] Capítulo V RELAÇÃO COM PACIENTES E FAMILIARES É vedado ao médico: […] Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA 2009)”. Assim, a resolução deixa claro que não existe obrigação médica em prolongar indefinidamente a vida do paciente terminal, sendo preferível a utilização da medicina paliativa, isso claro, sob o consentimento do doente ou de seu representante legal. Ao médico cabe, portanto, informar ilimitadamente o enfermo e familiares sobre as possibilidades clínicas de tratamento, restando a estes a escolha do que melhor lhes convier. Entende-se, assim, que a Resolução CFM N° 1.931/2009 valorizou sobremaneira os princípios constitucionais da autonomia privada e dignidade da pessoa humana sem deixar de tutelar os direitos e deveres dos médicos de modo a dar maior amparo normativo, ainda que não seja através de nosso poder legislativo, às Diretivas Antecipadas de Vontade no Brasil. 4.4. Resolução n° 1.995 de 2012 do CFM Em virtude das discussões constantes sobre o tratamento médico do enfermo em estado terminal de vida, e visando garantir não só a sua vontade, mas também a não responsabilização dos profissionais de saúde, no dia 31 de agosto de 2012 foi publicada no Diário oficial da União a Resolução do CFM n.1995/2012, que estabelece as diretivas antecipadas de vontade no Brasil, resolvendo nos seguintes termos “Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.  § 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico.  § 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.  § 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares. § 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente.  § 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente.  Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2012)”. A Resolução n. 1.995 de 2012 inovou em território brasileiro ao consagrar a prevalência da autonomia da vontade do paciente e a dignidade da pessoa humana no processo de morte através das Diretivas Antecipadas. Com ela, os tratamentos médicos extraordinários e a obstinação da família (muitas vezes insana) em curar o seu ente querido, foram rechaçados visando somente o bem estar e os desejos do enfermo, consolidando novos paradigmas médicos. Apesar de não esgotar o tema, esta Resolução reflete, sem dúvida alguma, a necessidade de uma norma jurídica sobre as Diretivas Antecipadas, nesse sentido é inegável que as discussões derivadas acerca de sua publicação contribuem e muito não só para impulsionar o nosso Poder Legislativo como também para proporcionar o debate social sobre o assunto. 4.5. Ação civil pública n° 103.86.2013.401-3500 Assim como ocorreu com a Resolução n. 1.805/06, a Resolução do CFM n. 1995 de 2012 também foi questionada através de Ação Civil Pública com pedido de antecipação de tutela (autos n. 103986.2013.4.01.3500) promovida pelo Ministério Público Federal em face do Conselho Federal de Medicina, que está em trâmite na Justiça Federal Seção Judiciária do Estado de Goiás, Primeira Vara. Para o Ministério Público, a Resolução n. 1995/2012 incidiu em inconstitucionalidade e ilegalidade, pois extrapolou os poderes conferidos ao CFM pela Lei 3.268/57 ao permitir o alijamento da família de decisões que lhe são de direito; a violação da disciplina ética da medicina e o estabelecimento de instrumento inidôneo para o registro de diretivas antecipadas de vontade dos pacientes sem fornecer qualquer segurança jurídica à sociedade. Por sua vez, o CFM em sede de contestação, arguiu em síntese, que a Resolução serve à concretização da autodeterminação individual e que ela guarda pertinência com a Resolução n° 1.805/2006, cuja validade foi reconhecida, por decisão judicial já transitada em julgado, nos autos da ação civil publica n° 2007.34.00.014809-3, desse modo não há que se falar em sua inconstitucionalidade devendo ser mantida em vigor. No dia 14 de março de 2013, o Juiz federal Jesus Crisóstomo de Almeira, denegou o pedido liminar sustentando que “(…) em análise sumária, entendo que o Conselho Federal de Medicina não extrapolou os poderes normativos outorgados pela Lei n°3.268/57, tendo a Resolução CFM n° 1995/2012 apenas regulamentado a conduta médica ética perante a situação fática de o paciente externar a sua vontade quanto aos cuidados e tratamentos médicos que deseja receber ou não na hipótese de encontrar em estado terminal e irremediável.Igualmente, em exame inicial, entendo que a Resolução é constitucional e se coaduna com o principio da dignidade humana uma vez que assegura ao paciente em estado terminal o recebimento de cuidados paliativos, sem o submeter, contra sua vontade, a tratamentos que prolonguem o seu sofrimento e não ais tragam qualquer beneficio.No mais, a manifestação de vontade do paciente é livre, em consonância com o disposto no art. 107 do Código Civil, que somente exige forma especial quando a lei expressamente estabelecer. É de se observar que a Resolução apenas determina ao médico o registro do prontuário da manifestação de vontade que lhe for diretamente comunicada pelo paciente, não tendo determinado a forma de comunicação.Da mesma forma, para a validade das diretivas Antecipadas de Vontade do paciente devem ser observados os requisitos previstos no art. 104 do Código Civil, não sendo necessário que a Resolução reitere a previsão legal. (GOIÁS, MPF. Ação Civil Pública 1039-86.2013.01.3500)”. Indubitável é que a supracitada decisão é um marco no direito pátrio no que tange as diretivas, pois é a primeira vez que nosso Poder judiciário reconhece a autodeterminação do paciente em estado terminal de vida, o que reforça a validade e ressalta a importância das Diretivas Antecipadas de vontade como instrumento garantidor da dignidade humana no processo de morte. A referida Ação Civil Pública ainda está em trâmite aguardando no momento o julgamento do Recurso de Agravo de Instrumento interposto pelo Ministério Público Federal, contra a decisão que indeferiu a concessão liminar, a expectativa é de que a decisão impugnada seja mantida com o conseqüente reconhecimento judicial da constitucionalidade da Resolução. 5. As perspectivas legislativas das diretivas antecipadas de vontade no brasil Apesar da recente discussão acerca das diretivas antecipadas no Brasil envolvendo a classe médica e jurídica, o referido documento ainda não foi objeto de lei específica no país. Assim, seria possível sua adoção mesmo diante de tal ausência normativa, ou a autodeterminação do paciente não encontra respaldo no direito pátrio? Sob o ponto de vista não só constitucional como também infraconstitucional, é possível encontrar a solução para esse impasse. No âmbito Constitucional, o consagrado princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) aliado aos princípios da Autonomia privada (implícito no art. 5º); legalidade (art. 5°, II) e à proibição de tratamento desumano (art. 5º, III), por si só autorizam a validade das diretivas antecipadas no Brasil, já que este documento visa o respeito da autodeterminação do individuo quanto a sua submissão ou não a determinados tratamentos médicos. Por outro lado, no âmbito infraconstitucional, temos o art. 15 do Código Civil Brasileiro de 2002 (CCB/02), onde ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica, mais uma vez consagrando a tão aclamada autodeterminação do paciente. Além disso, às resoluções n° 1.805/06, 1.931/09 e 1.995/12 do CFM, constituem fundamento suficiente para a adoção das diretivas no Brasil, desde que seu conteúdo não viole determinação legal, haja vista a supremacia do Estado democrático de direito. Assim por se tratar de negócio jurídico[2], as diretivas devem obedecer aos requisitos do art. 104 do CCB/02, quais sejam: agente capaz; objeto lícito forma prescrita ou não defesa em lei. O problema reside no fato de que os limites de tais requisitos esculpidos no artigo 104 do CCB/02 ainda ficariam a mercê da legislação que regulamentaria a diretivas antecipadas de vontade, contudo Dadalto destaca brilhantemente e de forma objetiva as premissas essenciais para a constituição de uma Lei sobre Diretivas antecipadas de vontade no Brasil, e o que este documento deverá abarcar. Vejamos “1. A declaração prévia de vontade do paciente terminal deverá ser feita por uma pessoa com discernimento; 2. Este documento deverá ser registrado no Cartório de Notas que será responsável por encaminhar a declaração ao Registro Nacional de Declarações de Vontade dos Pacientes Terminais – registro este que deverá ser criado pelo Ministério da Saúde; 3. A declaração prévia de vontade do paciente terminal deverá estar contida no prontuário médico do paciente, e cabe ao médico deste proceder a esta inclusão; 4. A declaração prévia de vontade do paciente terminal vincula médicos e demais profissionais de saúde, bem como os parentes do declarante; 5. Disposições acerca da interrupção dos cuidados paliativos não serão válidas; 6. Apenas disposições acerca da interrupção de tratamentos fúteis serão válidas; 7. A declaração prévia de vontade do paciente terminal é revogável a qualquer tempo e não possui prazo de validade; 8. O médico tem direito à objeção de consciência médica; 9. Disposições acerca de doação de órgãos não deverão constar no documento; 10. É facultado ao declarante nomear um representante para que expresse a vontade em nome do declarante quando este não puder fazê-lo; 11. Declaração prévia de vontade do paciente terminal não é instrumento para  prática de eutanásia, e sim, garantidor da ortotanásia(DADALTO, 2009,p.113)”. Portanto, a inexistência de norma específica acerca das diretivas antecipadas de vontade no Brasil, não inviabiliza a adoção das mesmas em território pátrio, sobretudo porque através de uma interpretação conjunta das normas constitucionais e infraconstitucionais temos a base necessária para a defesa de sua validade e eficácia. As diretivas no Brasil devem ser estipuladas de forma clara e objetiva de modo a facilitar sua aplicabilidade, contudo, com ainda não foram regulamentadas no pais, as diretivas tem forma livre, desde que não contrarie disposição legal. Conclusão O trabalho desenvolvido encerra-se, sem jamais pretender-se concluído. Todas as idéias, argumentações e fundamentações teóricas não têm a finalidade de resolver definitivamente o complexo problema referente à autodeterminação do paciente, que anseia por seu pleno desenvolvimento, sob o esteio do Estado democrático de Direito e na devida proteção dos direitos humanos fundamentais do homem. Ficou claro que, todo o ser humano na condição de paciente deve ser respeitado no que concerne a sua decisão perante a escolha de um tratamento médico, baseando-se nos princípios da dignidade da pessoa humana e autonomia privada. A possibilidade de escolha, portanto, não deve ser ferida com imposição de um tratamento não aprovado pelo paciente, já que este tem o direito de ser informado e consentir ou não se irá se submeter a tal procedimento médico. A vida, nosso maior direito, deve ser encarada com parcimônia diante dos desejos do indivíduo e do sofrimento que as mais diversas enfermidades lhe causam, ou seja, a vida deve ser encarada como um direito e, não como um dever. A necessidade de norma regulamentadora é latente para evitar controvérsias acerca das especificidades formais e materiais das Diretivas antecipadas e possibilitar sua eficácia, desse modo, espera-se, que num futuro muito breve o Brasil tenha a autodeterminação do paciente acautelada por uma norma que institua as diretivas antecipadas de vontade em nosso país, de forma a permitir, como dito anteriormente, não só a dignidade da vida, mas também a dignidade no processo de morrer, de acordo com as convicções de cada individuo. Assim destaca-se as palavras de Adriano Marteleto Godinho: “Se a vida, por um lado, não é um bem jurídico disponível, não cabe, por outro lado, impor às pessoas um dever de viver a todo custo, o que significa, assim, que morrer dignamente nada mais é do que uma decorrência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, resta concluir que o testamento vital (ou DAVs) não somente devem encontrar espaço no ordenamento jurídico brasileiro, como reconhecer sua validade por meio de lei o que consagra o direito à autodeterminação da pessoa quanto aos meios de tratamento medico a que pretenda ou não submeter”(GODINHO, 2010) A expectativa é que a presente construção desperte a preocupação de outros pesquisadores, com o ser humano não só na condição de paciente, como também na condição de um paciente que possui sentimentos e que é detentor da tão aclamada dignidade; para que suas decisões sejam respeitadas, baseando-se nos princípios fundamentais da autonomia privada e dignidade da pessoa humana.
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Homicídio nos confins da vida: entre o dever de cuidar e o suposto direito de matar
Trata o presente trabalho da questão da morte dada ou propiciada ao doente avançado ou terminal sob os pontos de vista ético (bioético) e jurídico, mais especificamente jurídico – penal. Parte-se de um conceito de “pessoa humana” para, mediante o estabelecimento de um referencial antropológico – filosófico, estudar a questão da discussão que hoje se trava entre a solução da oferta de uma morte digna ou de um processo de morrer com cuidados que respeitem a dignidade humana, inclusive na fase final da vida.
Biodireito
1-Introdução Todo o ordenamento jurídico brasileiro, vindo da Constituição Federal e passando pela legislação ordinária protege de maneira muito especial e atenta a vida humana e isso se repete de modo geral no Direito Comparado.  Entretanto, a gênese desse fenômeno jurídico somente pode ser bem compreendida mediante um aprofundamento sobre a base antropológica que norteia toda essa preocupação conformadora de normas jurídicas protetivas. Um conceito do que seja um ser – humano digno de tutela em sua vida, do que seja uma “pessoa humana” é a chave para a compreensão da razão de ser de toda a rede jurídica tutelar de que se está falando, bem como para a devida interpretação e aplicação das normas que regulam a matéria.  Por isso, neste trabalho partir-se-á de um estudo do conceito de “pessoa humana” para, a partir daí, poder, com segurança, analisar o conteúdo e aplicabilidade das normas jurídicas que tutelam a vida humana, especialmente aquela que se encontra em seu limite final. Nesse caminho árduo serão abordados problemas cruciais como a eutanásia, o suicídio assistido, os cuidados paliativos, enfim, todos os procedimentos que envolvem o tratamento dado com pretensões de legitimidade para pessoas que estão em fase terminal de doenças ou complicações da saúde graves.    A abordagem do tema, como não poderia deixar de ser, é interdisciplinar, de modo que serão postos em questão problemas não somente jurídicos, mas também antropológicos, morais e éticos (mais especificamente bioéticos). Será perceptível que as concepções antropológicas, morais e bioéticas envolvidas podem e realmente norteiam de forma muito importante não somente a formulação, a aplicação, as propostas de reformulação e a interpretação das normas jurídicas.  Ao final, serão as principais ideias expostas ao longo do texto retomadas, apresentando-se uma síntese conclusiva.   2-O conceito de “pessoa humana”  Há um costume ou condicionamento bastante arraigado de interpretar o vocábulo “pessoa” como dotado sempre de uma qualificação ocultada apenas para evitar redundância, ou seja, dizer “pessoa” equivaleria sempre a dizer “pessoa humana”. Conforme esclarece Durant, “a palavra pessoa é empregada, então, para criticar a igualdade, o valor e a dignidade de cada ser humano por oposição ao mundo dos animais e das coisas”.[1] Nesse passo “pessoa” e “ser humano” são encarados necessariamente como sinônimos, operando uma drástica distinção entre “sujeitos” e “coisas”, sendo que somente poderiam ascender à categoria de sujeitos os humanos; outros seres vivos não – humanos jamais poderiam escapar do estatuto que lhes é reservado: aquele que os torna meras coisas ou objetos. Assim apresentam-se as definições clássicas de pessoa, tais como a de Boécio: “substância individual de natureza racional”. O homem é considerado pessoa por ser capaz de refletir sobre si e de se autodeterminar: “capta o sentido das coisas e dá às suas expressões, com razão, liberdade e consciência”.[2] Mas esse traço distintivo tão simplista e arbitrário não é isento de críticas. A definição do que seja uma “pessoa” não é algo tão simples, de modo que a polêmica sobre a questão tem povoado as discussões filosóficas ao longo dos séculos. O tema é tão profundo que ensejaria o desenvolvimento de um trabalho específico que fugiria aos objetivos desta exposição e, certamente, extrapolaria inclusive os limites do conhecimento deste autor. Pretende-se por ora tão somente abordar o tema em linhas gerais, de maneira a possibilitar alguma reflexão em especial quanto à discussão acerca das linhas limítrofes traçadas entre o homem e os demais seres vivos para sua inclusão ou exclusão do conceito de pessoa. Ainda assim a empreitada é desafiadora, pois como aduzem Prigogine e Stengers, a “tragédia do espírito moderno” consiste no fato de que o homem “desvendou o enigma do Universo, mas apenas para substituí-lo por um outro: o enigma de si próprio”. [3] Em um opúsculo bastante esclarecedor Mondin arrola os principais critérios apontados como cruciais para a definição de da chamada “pessoa humana”.[4] O ponto de partida para uma definição de pessoa é apontado por muitos como a posse de uma cultura, ou seja, “o conjunto de todas as atividades e de todos os produtos que são frutos da iniciativa e da genialidade humana”. Por isso, a primeira definição de homem e, por conseguinte, de pessoa, seria aquela que o toma como “um ser cultural (e não natural)”.[5] Trata-se da emergência humana perante a natureza, tornando o homem por excelência o chamado “ser antinatura”. Mondin repisa essa temática, qualificando-a de adequada “porque o homem não é como as plantas e os animais, um puro produto das leis da natureza, e não é nem o resultado de uma prodigiosa autotese, isto é, fez-se sozinho, mas é fruto de uma sapiente colaboração entre natureza e cultura”. [6] E segue destacando o fato de que “diversamente dos outros seres vivos, cujo ser é inteiramente produzido, pré – fabricado pela natureza, o homem é em grande medida o artífice de si mesmo. Enquanto as plantas e os animais sofrem, no ambiente natural em que se encontram, o homem é capaz de cultivá-lo e de transformá-lo profundamente, adequando-o às próprias necessidades”.[7] Em suma, o homem não se adapta ao ambiente, mas adapta o ambiente às suas necessidades. Note-se que então essa seria a primeira característica a apartar os demais seres vivos não – humanos do estatuto de “pessoas”.  Sem essa qualidade de emergência, de autonomia ante aos determinismos naturais o ser não superaria o mero “status” de “coisa”. No seguimento outro atributo é apontado, inclusive como pré – condição do primeiro. Esse atributo é a “liberdade”. É ela que, segundo Sartre “permite ao homem tornar-se o artífice de si mesmo”.[8] Na verdade a liberdade insere-se totalmente na qualidade de emergência anteriormente tratada. Ela se traduz e mostra sua face de maneira plena quando se constata a capacidade humana de superação dos mecanismos de determinação natural da conduta. Por isso só o homem pode ser bom ou mau, pode fazer mal a si mesmo, inclusive tirar a própria vida em total confronto com o instinto de autoconservação. Essa capacidade de escolha de caminhos, de acesso a normas de conduta gerais e abstratas que podem ser obedecidas ou transgredidas, seria outra característica exclusiva humana a reservar-lhe a qualificação de pessoa. Mas tudo isso forma um amálgama indissolúvel com a qualificação do homem como ser cultural. A espiritualidade exsurge também como elemento importante na definição do homem e em sua constituição como pessoa. Para Mondin, a espiritualidade, embora menos evidente que sua materialidade, necessitando ser demonstrada e argumentada, nem por isso torna-se um fenômeno secundário. Ela é implícita nas definições anteriormente abordadas do homem como ser cultural e livre. São exemplos ou manifestações dessa espiritualidade imanente ao homem e que constituem elementos de sua configuração como pessoa, “a autoconsciência, a reflexão, a contemplação, o colóquio, a adoração, a autotranscendência etc.”. Tudo isso são condições que o espírito proporciona para a existência da liberdade, pois que só o espírito “é essencialmente livre”. O homem se sobreleva aos limites do espaço – tempo, ao ambiente, aos determinismos naturais e instintivos porque “leva consigo um elemento de imaterialidade e de espiritualidade, porque possui uma dimensão interior de natureza espiritual: a alma, a mente e o espírito”. Essa concepção que dá especial relevo à espiritualidade humana como elemento diferenciador dos demais seres vivos nos é legada sob o aspecto religioso pelo cristianismo e sob o enfoque metafísico pela filosofia oriental e platônica.[9] Também o existencialismo heideggeriano não deixou passar “in albis” o assunto ora tratado. Segundo Derrida, a afirmação de Heidegger de que o animal não tem mundo traz como conseqüência sua não espiritualidade.[10] Isso porque o mundo é essencialmente espiritual; seu “ser” somente pode ser acessado pelo espírito que perscruta e não pela mera relação material. A negação da espiritualidade atrelada à vedação do acesso a um mundo animal parece entrar em franca contradição com as famosas três teses de Heidegger: 1 – “A pedra é sem mundo”. 2 – “O animal é pobre de mundo”. 3 – “O homem é formador de mundo”. Ora, se o animal é “pobre” e o homem é “rico” em mundo, sendo este espírito, então a conclusão mais coerente seria “menos espírito para o animal, mais espírito para o homem”, o que não implicaria numa “privação” de espírito para o animal, senão numa certa “restrição” deste. Mas, para Derrida, na verdade, “essa pobreza não é uma indigência, com pouco de mundo”, tendo induvidosamente “o sentido de uma privação, de uma falta”.[11] Essa “pobreza” do animal implicaria não em uma diferença de grau, mas sim de natureza da relação do animal e do homem com o “ser”. “O animal não tem uma relação menor, um acesso mais limitado a um ente, tem uma relação ‘diversa’” (grifo no original).[12] Entretanto, o não ter mundo e, conseqüentemente, espírito do animal não corresponde ao mesmo “sem – mundo” da pedra, da matéria inanimada enfim. No caso do animal há “privação” porque ele pode ou poderia ter um mundo, ao passo que a pedra não tem mundo na forma de uma “simples ausência”: [13] “O animal pode ter um mundo, posto que ele acede ao ente, mas é privado de mundo porque não acede ao ente como tal e no seu ser”. Ele não questiona, não nomeia nem classifica, permanece agrilhoado à mera relação material com os seres, embora, diferentemente da matéria inanimada, mantenha certa relação com o ser. No exemplo de Heidegger, “a abelha operária (…) conhece a flor, sua cor e seu perfume, mas ela não conhece o estame da flor como estame, não conhece suas raízes, o número de estames etc.”. Também o lagarto é outro exemplo de que Heidegger se vale, descrevendo sua permanência sobre a rocha ao sol e destacando que ele igualmente “não se reporta à rocha e ao sol como tais, como aquilo a respeito do que se pode colocar questões, justamente e dar resposta”. No entanto, o animal chega a ter uma relação com a pedra e o sol, enquanto a pedra não tem nenhuma relação com eles”.[14] Mas a relação do animal com as coisas, devido à falta da espiritualidade, o distancia sobremaneira da mesma relação entre o homem e as mesmas coisas, e, conseqüentemente distancia de forma abissal a animalidade da humanidade. Nas palavras de Michel Haar, citadas por Derrida: “O salto do animal que vive ao homem que diz é tão grande, senão maior, que o da pedra sem vida ao ser vivo”.[15] A tradição oriental não deixa de perceber essa gradação da espiritualidade nos seres, resumindo-a poeticamente em versos: “O espírito dorme na pedra, Sonha na flor, Acorda no animal E sabe que está acordado no ser humano”[16] A ascensão à condição de pessoa nesse contexto pressupõe então a presença da espiritualidade como característica indeclinável. E quando Heidegger aponta para a “pobreza e a privação” dos animais em espírito, isso implica em certa “hierarquização e avaliação”, na qual, sem dúvida, os animais são relegados a um segundo plano.[17] Quando essa espiritualidade atribuída ao homem é enfocada sob um prisma teológico, passa-se a uma outra definição de pessoa que também tende a reservar somente aos seres humanos essa qualificação. Só o homem é o ser feito “à imagem e semelhança de Deus”, o único “Teomorfo”. [18] Agora a espiritualidade é aquilo que possibilita ao homem e só ao homem ascender ao divino. Deus passa a ser o paradigma que deve ser perseguido pelo homem que pode buscar a perfeição. Todo o esforço humano deve consistir então em aproximar-se o máximo possível de Deus e essa aproximação só é viável por meio da exaltação do espírito que é aquilo que enseja a supremacia do humano perante o restante da criação. Mondin descreve essa concepção com bastante propriedade: “O modelo, sobre o qual o homem deve decalcar o desenho da sua própria personalidade, não pode encontrá-lo nas criaturas inferiores: nem nas plantas, nem nos animais, nem nos astros. Nem mesmo no melhor dos outros homens, porque por mais que possa ser bom, inteligente, sábio, forte, santo, os homens são sempre dotados de uma humanidade imperfeita. De resto, a humanidade primitiva não pode avaliar-se pela exemplaridade de nenhum outro ser humano. O único modelo adequado à aspiração de infinitude do homem, encontra-se inscrito na própria espiritualidade. Não pode ser outro que um modelo infinito: infinito como espírito, infinito como inteligência, infinito como vontade, como liberdade, como bondade, como amor. O único modelo adequado que o homem deve assumir, para levar à plenitude da própria pessoa é, (…), Deus mesmo. Por este motivo, para a realização plena de si mesmo, que é ontologicamente teoforme, o homem deve fazer-se um imitador de Deus”.[19] Nada mais que isso é o que propõe o Frei Tomás de Kempis  em sua obra sugestivamente intitulada “Imitação de Cristo”. Na forma de um diálogo entre uma “Alma fiel” e Jesus Cristo, faz brotar da boca do segundo a seguinte orientação: “Filho, se desejas de verdade ser feliz, Eu devo ser teu fim último e supremo. Essa intenção purificará teu coração, tantas vezes apegado desregradamente a si mesmo e às criaturas. Porque se em alguma coisa te buscas a ti mesmo, logo desfaleces e afrouxas. Refere, pois, tudo a Mim, principalmente porque Eu sou quem te dá tudo”.[20] Eis aí outra característica tomada como imprescindível para possibilitar a qualificação de um ser como “pessoa”, a transcendência possível em direção ao divino, o encontro de si mesmo na glória de Deus, cuja “imagem e semelhança” é atributo exclusivo humano. Michelangelo (1475 – 1564), pintor, escultor, arquiteto e poeta italiano brindou a posteridade com uma obra prima que bem pode ser tomada como um dos grandes símbolos dessa concepção. Trata-se do afresco pintado na Capela Sistina denominado “A criação de Adão”, no qual o homem estende seu braço e seu dedo indicador toca aquele que representa o Deus Criador. Reproduzir a cena, trocando o homem por um macaco, por exemplo, consistiria em uma transgressão de enormes proporções a toda uma tradicional visão religiosa e filosófica. Pode haver outros critérios além dos já mencionados para a definição de pessoa, mas estes são os mais aventados, de maneira que as argumentações geralmente giram em torno dessas questões. Apenas exemplificando, em 1972, Joseph Fletcher arrolou quinze critérios ou características de pessoa: “inteligência mínima, consciência de si, domínio de si mesmo, sentimento do tempo, noção de futuro, percepção do passado, aptidão para se comunicar com os outros, interesse pelos outros, comunicação, domínio de sua existência, curiosidade, desenvolvimento e variabilidade, equilíbrio entre a razão e os sentimentos, a idiossincrasia e a função neocortical”. Posteriormente, em 1974, avaliando as críticas que seus critérios ensejaram reduziu-os a quatro: “a consciência de si, a capacidade de interação, felicidade e a função neocortical”.[21] Como conseqüência de todo o exposto, só o homem poderia ser tomado como pessoa (“persona”), pois que pessoa significa o que é mais perfeito em toda a natureza, o que consiste na natureza racional (São Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, 23, 2).[22] E isso torna o humano um “valor absoluto, não um valor instrumental”, pertencendo “à ordem do ‘frui’ e não àquela do ‘uti’. Na linguagem de Santo Agostinho, o homem (pessoa) existe “para usar e não para ser utilizado”.[23] Também de forma semelhante manifesta-se Kant, qualificando todo ser racional como um fim em si mesmo e jamais como um simples meio para quaisquer objetivos.[24] O conjunto dessas concepções necessariamente exclui os animais de qualquer possibilidade de acesso ao estatuto de “pessoas” e suas correlatas prerrogativas. No entanto, há quem advogue uma definição menos restritiva de pessoa. Peter Singer indica uma série de aproximações entre animais e humanos que, a seu ver, poderiam justificar a atribuição da qualidade de pessoas também aos primeiros. Parte de uma definição psicológica de pessoa, proposta por John Locke: “Um ser pensante inteligente, dotado de razão e de reflexão, e capaz de cogitar de si como si mesmo, uma mesma coisa pensante, em diferentes tempos e lugares”.[25] É bastante conhecido o quanto as ciências (zoologia, etologia, psicologia, genética, anatomia comparada etc.) foram capazes de demonstrar que as características supra elencadas e outras mais não são exclusividade humanas, embora apresentem certas peculiaridades distintivas. Na tentativa de distinção entre os homens e os animais, os primeiros já foram identificados e individualizados por diversas características tomadas como exclusivas. O homem já foi descrito como animal político, animal social, animal que ri, animal que fabrica utensílios, animal religioso, animal que cozinha, animal que dialoga, animal que é proprietário, animal racional, animal livre etc.[26] Não obstante, tais definições, muito mais do que distinguir o homem dos animais, visavam “propor algum ideal de comportamento humano” [27] e efetivamente não operavam nenhuma distinção relevante do ponto de vista moral a alijar os seres não – humanos do estatuto de “pessoas”, de “sujeitos” aos quais se deve uma obrigação moral, mesmo porque, nem sempre podem ser tomados de forma geral e imparcial, como características verdadeiramente exclusivas dos humanos. Em seus comentários à obra de Coetzee, Bárbara Smuts deixa clara sua impressão de que nossa classificação de pessoa tem uma base arbitrária, não se referindo ao fato concreto de que um ser possa ou não ser encarado como pessoa, mas sim à nossa disposição em assim encará-lo de acordo com a forma mais ou menos preconceituosa pela qual o vemos. O conceito de pessoa estaria, na verdade, ligado à possibilidade de uma relação social entre dois sujeitos que se afetam mutuamente e, especialmente, no reconhecimento dessa “relação pessoal”. Se os humanos não reconhecem os animais dessa forma, mas lhes atribuem o mero “status” de “coisas”, isso não quer dizer que eles são apenas “coisas”, mas que nós lhes atribuímos essa condição de forma preconceituosa e arbitrária, desconsiderando nossa possível “relação pessoal”. Nas palavras da autora, “quando um ser humano se relaciona com um indivíduo não – humano como objeto anônimo, mais do que como um ser com sua própria subjetividade, é o humano, e não o outro animal que renuncia à pessoalidade”.[28] Portanto, o que limita nossas relações com os animais é “a visão estreita com que pensamos quem são eles e que tipos de relações podemos ter com eles”.[29] Tratar-se-ia, assim, de uma manifestação do chamado “especismo”, pois a qualidade de pessoa não deveria permanecer atrelada ao mero pertencimento à espécie “Homo Sapiens”. Deveria estar sim ligada a certos requisitos comuns a todos os seres sensíveis. Singer assim responde sobre o tema em entrevista a Bob Abernethy: “A simples condição de fazer parte da espécie (“Homo Sapiens”) não basta. As qualidades que considero importantes são, em primeiro lugar, a capacidade de vivenciar a experiência de alguma coisa – isto é, a capacidade de sentir dor, ou de ter algum tipo de sentimento. Isto é realmente fundamental; e, no entanto, é algo que temos em comum com uma quantidade imensa de animais não – humanos”.[30] É justamente a reformulação de um paradigma que concentra no homem e apenas nele toda a preocupação moral, que pode operar uma inovadora abordagem do tema dos Direitos dos Animais e, numa etapa seguinte, da própria relação da humanidade com a natureza. Entretanto, há que ponderar o perigo ínsito na identificação do homem com a animalidade pura e simples, bem como, especialmente, o alijar de determinados seres humanos da condição de pessoas devido à falta de certos requisitos. Nada há de negativo em buscar uma elevação do “status” dos animais e de sua consideração e tratamento como seres sensientes. Não obstante, a aproximação exagerada ou até mesmo a identificação do humano com o animal perverte a vertente antropológica e pode levar a efeitos contrários aos que os defensores dos animais pretendem. Ao invés de vermos os animais sendo tratados à semelhança dos humanos em suas relações morais, podemos passar a ver, como já ocorreu na história várias vezes, seres humanos sendo degradados ao tratamento dado a animais ou ainda abaixo disso. É inegável que o homem é dotado de corporeidade e que tem pontos comuns com a animalidade, mas o salto dado na hominização, especialmente sob o aspecto espiritual não pode ser olvidado. Tratando do otimismo exagerado e midiático em que se envolve o mundo atual em relação às pesquisas genéticas, alerta, com acerto cirúrgico Guillebaud: “Os defensores do otimismo cientificista irritam-se quando convocamos essa memória para denunciar os possíveis desvios da genética. Para eles, essa incansável convocação de Hitler é exasperante. Eles veem nela um modo cômodo de encorajar todas as prudências ‘obscurantistas’ ou as reações ‘tecnofóbicas’ (os dois termos estão na moda). Estão errados. A referência intuitiva a esse passado não é irracional. É realmente a intransponível exceção nazista e a Shoah que fizeram nascer, em contrapartida, nossa preocupação obsessiva com o humano do homem. A cronologia histórica é testemunha disso. É depois da abertura dos campos e das valas comuns que o trágico foi convidado, para todo o sempre, para essa questão. Depois da Shoah, rompemos com aquilo que podia haver de cortês, de indiferente, de quase divertido, nos séculos XVII ou XVIII, nas reflexões sobre a animalidade ou humanidade da criatura (Plutarco, La Mettrie, Descartes e outros mais…). O sistema concentrador nazista fabricou desta vez, no sentido estrito do termo, uma subumanidade. Para o bem. Para a verdade. O homem inteiro, por meio do judeu ou do cigano, foi reduzido forçosamente à animalidade ou condenado ao estatuto de objeto ou de coisa. Os corpos supliciados, seus dentes, sua pele, seus cabelos, se tornaram matéria – prima… Em 1945 – 1946, subitamente, ‘o Ocidente descobriu (então) com horror que podíamos destruir uma verdade mais preciosa que a própria vida: a humanidade do ser humano”. [31] Por seu turno, Henry chama a atenção para a barbárie da “naturalização” do homem pela ciência moderna, tornando-o indistinguível das coisas. [32] A lição histórica não pode ser esquecida e exatamente por isso, quando se trata de vida e morte de seres humanos, estejam eles em que condição estejam, o substrato primeiro de qualquer discussão tem de ser um referencial teórico antropológico que não permita o olvidar da humanidade do homem e impeça, em qualquer situação, sua reificação. 3-A (i)legitimidade e (i)legalidade da morte dada aos moribundos: confluência entre antropologia, ética e direito Partindo de um referencial teórico antropológico, ético e filosófico que tem como marco o conceito de pessoa humana como unidade corporal e espiritual e, portanto, sujeita a uma dignidade especial, surge o problema de como lidar com a questão daqueles que estão no final de suas jornadas vitais. Uma primeira questão conceitual a ser enfrentada diz respeito à distinção entre “doença avançada” e “doença terminal”. Nem sempre é bem delineada a definição dessas expressões frequentemente utilizadas nas discussões acerca do tratamento das pessoas acometidas de doenças letais graves em fase crítica. Segundo Floriani, é no campo da oncologia que se tem avançado mais para esse estudo. Assim sendo, “doença avançada” tem sido definida como “aquela que não tem possibilidades de tratamento curativo, com expectativa de vida relativamente curta, ainda que esse tempo possa ter uma grande variabilidade, às vezes de anos”. Doutra banda, o conceito de “doença terminal” apresenta maiores dificuldades de delimitação, principalmente no caso de enfermidades que costumam apresentar eventuais fases de recuperação, ainda quando o paciente já apresenta um quadro degenerativo de saúde bastante avançado. A verdade é que a configuração da terminalidade em doenças que não apresentam um curso linear de desenvolvimento é bastante difícil. Ainda que com essas observações, é possível referir em um sentido amplo que a terminalidade é “a fase final de uma doença avançada, que levará o paciente à morte em horas, dias ou semanas, e que se caracteriza por uma deterioração irreversível das funções orgânicas”. [33] Enfim, pode-se afirmar que a terminalidade se caracteriza como a fase final e definitiva de uma doença avançada. Seja diante de uma doença em fase avançada ou terminal, o problema que se coloca é aquele da conduta diante do ser humano nessas condições de forma a respeitar sua dignidade. Respeitar essa dignidade seria dar morte ao doente ao menos na fase terminal? Com ou sem o seu consentimento? Seria propiciar ao doente tirar a própria vida? Seria cuidar desse paciente, ensejando-lhe um bom processo de morte com dignidade e minimizando os sofrimentos físicos, psíquicos e espirituais? Qual o caminho a ser tomado, segundo as orientações éticas e jurídicas, construídas sobre o alicerce antropológico do conceito de pessoa humana? Frise-se ainda que o fenômeno de envelhecimento da população e o aumento da longevidade apresentam enorme relevância para a problemática ora abordada, pois cada vez mais haverá a necessidade do enfrentamento do dilema criado pela existência de uma parcela populacional dependente de cuidados no fim da vida, os quais passam a configurar uma questão de saúde pública de ordem mundial. [34] Em “As Intermitências da Morte”, Saramago dramatiza, com maestria que lhe é peculiar, as dificuldades passadas por uma sociedade em que a morte deixa de fazer seu trabalho de renovação, com o surgimento de uma população imortal, porém, incapacitada e debilitada pela velhice. [35] Neste ponto releva salientar que na atualidade vêm surgindo na seara filosófica sugestões de uma “ética negativa” ou “ética do não – ser” em contraposição à ética clássica que se assenta na perseverança do “ser”. Nesse diapasão, Cabrera afirma que “nenhum filósofo enfrentou a possibilidade de uma moralidade do não ser, ou seja, as consequências éticas decorrentes de uma rejeição radical do ser”. [36] Quanto a isso, “a Ética tradicional foi construída como se a vida fosse algo compulsivo, jamais enfrentou a possibilidade de tratar-se de uma escolha”. [37] Efetivamente, uma das maiores, senão a maior questão filosófica posta ao homem é o saber se a vida merece ser vivida. Camus chega a afirmar que “só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio”. [38] Uma “ética negativa ou do não – ser” apresenta um problema filosófico de grande seriedade, qual seja, se houver realmente a possibilidade de uma “moralidade do não ser”, então, em certas situações viver pode ser considerado como “a máxima imoralidade”. [39] Essa proposta de uma “ética negativa” tem sua valia enquanto instância crítica e de abertura de novos horizontes para o pensamento. Mas, também pode ser uma árvore de frutos venenosos que pode descambar para um “niilismo” absoluto e uma total desvalorização da vida humana. Conforme destaca Cabrera, “crescer é gradativamente adentrar-se na morte, vivê-la cada vez mais, até, finalmente, morrê-la”. [40] Essa é uma verdade iniludível, cuja aceitação não deve levar à prostração ou desespero, mas à aceitação da morte como um processo ou parte da vida, como a finitude inexorável que inclusive valoriza a própria vida. Nesse passo, uma “ética negativa” pode ser produtiva para afastar a absoluta e rígida rejeição da morte que muitas vezes conduz à submissão de pessoas a tratamentos fúteis que somente prolongam o processo de morte, acrescendo sofrimento e não vida, o que certamente viola a dignidade humana. Não obstante, durante a leitura da obra de Cabrera, por exemplo, os mais desavisados podem ser levados a interpretá-la como uma espécie de apologia ao suicídio e mais ainda como uma devastadora ideologia que abarca o nada como fim da moralidade. Pode parecer que a questão não esteja em levantar hipóteses em que o ser não seja melhor que o não – ser, mas em afirmar que o não – ser é sempre melhor. Essa interpretação faz com que a crítica ínsita ao pensamento de uma “ética negativa” se volte contra si mesma num mimetismo da ética tradicional que impõe o ser como invariavelmente melhor que o não – ser. Daí para uma cultura do suicídio e da própria destruição do mundo, para a qual já somos dotados de poderes, o passo é mínimo. E se é possível retirar alguma lição ou entendimento da observação da natureza, não é em direção ao nada que se caminha. Luc Ferry, embora reconhecendo a inexistência de uma vontade dirigida a fins na natureza e muito menos uma suposta “bondade natural”, aduz, com fulcro na doutrina de Hans Jonas, a existência de uma tendência ou uma linha coerente a guiar os processos naturais. Sem poder abrir mão da linguagem metafórica para explicar-se, resume essa tendência na expressão de Jonas que afirma que “a vida diz sim à vida”. O que muitas vezes se interpreta como “vontade” da natureza, seria constatável mais propriamente como uma inclinação, uma propensão, não necessariamente dirigida por um desejo, pela conservação e propagação da vida, um “perseverar no ser”.[41] Note-se que não há necessidade de apelar para uma vida após a morte, para argumentos de índole religiosa, mas apenas para o fato de que o “ser” é presente e o “nada” apenas subjaz a ele sem experiência autônoma. Nas palavras de Sartre: “O nada, não sustentado pelo ser, dissipa-se enquanto nada, e recaímos no ser. O nada não pode nadificar-se a não ser sobre um fundo de ser: se um nada pode existir, não é antes ou depois do ser, nem de modo geral, fora do ser, mas no bojo do ser, em seu coração, como um verme”. [42] Assim a proposta de uma “ética negativa ou do não – ser” torna-se vazia e perigosa se absolutizada. No entanto, pode ser útil e profícua enquanto instância dialética com a ética tradicional focada no ser, impondo-lhe alguns limites e questionamentos que poderiam muitas vezes passar despercebidos. E Cabrera demonstra claramente essa intenção dialética quando faz a crítica da aplicação universal, sistemática e invariável de qualquer norma moral. Em certas situações práticas, a aplicação cega de uma norma moral, seja ela qual for, pode tornar-se fonte de imoralidade. Por isso é preciso contar com aquilo que o autor denomina como “astúcia da indeterminação”, a qual possibilita a noção de que um princípio moral que não permite exceções e que se aplica igualmente e invariavelmente “sempre, a todo mundo, em todo lugar, em todo tempo, e sempre da mesma maneira” é uma das coisas mais assustadoras que podem existir e inclusive à qual se dá o nome de “máquina moral infernal”. [43] E não se trata aqui de uma defesa do chamado “Relativismo Moral”, mas da aplicação proporcional e razoável das normas e princípios que regem a moralidade. Como afirma Hare, já que “não temos acesso direto ao que um Deus bom poderia querer”, somente nos resta “o recurso a nossa própria razão imperfeita”, que “é o melhor meio de que dispomos”. [44] Não parece razoável que o ato de matar ou de possibilitar os meios para o suicídio de um doente terminal ou avançado possa ser tomado como paradigma ou regra na solução de uma situação – limite onde convergem as questões da dignidade humana e da vida. A presença do “outro” diante de mim impõe uma relação ética na qual não é permitida a apropriação da vida ou mais propriamente a aniquilação do outro. [45] O dever moral que dessa relação emerge é o dever de “cuidado”. O cuidar deve ser o paradigma, jamais o matar ou o ensejar a autodestruição. Aliás, como ironicamente bem lembra Saramago, “a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem”. [46] Certamente a humanidade não precisa acrescer mais essa barbárie à sua longa lista de violências e extermínios. No contexto acima é que surgem movimentos e pensamentos fulcrados nos “cuidados paliativos” e no modelo de atendimento “Hospice”. Situa Floriani as bases do “moderno Movimento Hospice” com a fundação na Inglaterra, em 1967, do St. Christopher’s Hospice, propondo grandes transformações quanto aos cuidados ofertados aos pacientes e seu entorno. Esse movimento está intrinsecamente ligado aos denominados “cuidados paliativos”, os quais “implicam um conjunto de ações interdisciplinares visando oferecer uma ‘boa morte’ e aumentar a qualidade de vida dos pacientes acometidos por doenças em estágio avançado. Além disso, há uma preocupação com os familiares do paciente e com o cuidador, expressa mediante a oferta de cuidados estendidos ao processo de luto, havendo também ênfase no atendimento em clínica – dia e em programas de internação domiciliar”. [47] O movimento Hospice e os cuidados paliativos procuram situar-se como uma mediania virtuosa entre a chamada “eutanásia” ou o “suicídio assistido” e o excesso, futilidade, encarniçamento ou obstinação terapêutica. Nem dar a morte a alguém, nem privar esse alguém de seu caminho natural em direção à finitude humana. Mas, amparar o moribundo em seu caminho para a morte, conforme bem retrata a expressão grega “Kalós Thanatós”, traduzível como a “jornada da boa morte”. [48] Não se acelera nem se adia a morte [49], aproximando-se mais de uma conduta de “ortotanásia”, a qual não se confunde nem mesmo com a chamada “eutanásia passiva”. A palavra “ortotanásia” advém do grego “orthós” (normal, correta) e “thánatos” (morte), designando, portanto, a “morte natural ou correta. Assim sendo, “a ortotanásia consiste na ‘morte a seu tempo’, sem abreviação do período vital (eutanásia) nem prolongamentos irracionais do processo de morrer (distanásia). É a ‘morte correta’, mediante a abstenção, supressão ou limitação de todo tratamento fútil, extraordinário ou desproporcional, ante a iminência da morte do paciente, morte esta que não se busca (pois o que se pretende aqui é humanizar o processo de morrer, sem prolongá-lo abusivamente), nem se provoca (já que resultará da própria enfermidade da qual o sujeito padece)”. [50] A intenção é a busca da chamada “boa morte”, definida desde 1997, pelo “Institute of Medicine como: “aquela que é livre de uma sobrecarga evitável e de sofrimento para o paciente, as famílias e os cuidadores; uma morte que ocorra, em geral, de acordo com os desejos dos pacientes e das famílias; e razoavelmente consistente com as normas clínicas, culturais e éticas”. [51] Afora esse equilíbrio virtuoso diante do doente avançado e/ou terminal o sistema jurídico – penal brasileiro, movendo-se num referencial teórico antropológico de defesa da vida e da dignidade humanas, conforme proposto neste trabalho, criminaliza a execução eutanásica dos moribundos, ainda que a seu pedido, eis que a vida é considerada como bem jurídico indisponível. [52] Ocorre nesses casos o crime de homicídio (artigo 121, CP) que pode ser considerado privilegiado devido à presença de um sentimento de piedade na consecução da morte, o qual pode configurar o chamado “relevante valor moral” (artigo 121, § 1º., CP). A consequência do reconhecimento do privilégio é a redução da pena do “caput”, que é de reclusão, de 6 a 20 anos, de um sexto a um terço. Se por acaso o agente não mata o doente, mas lhe propicia os meios para que ele mesmo dê cabo da própria vida (suicídio assistido), ainda que a seu pedido, pode configurar-se, acaso o doente sofra lesões graves ou efetivamente morra o crime de Induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (artigo 122, CP). Nesse caso não há previsão de privilégio, mas pode configurar-se, também pelo “relevante valor moral” propiciado pelo sentimento de piedade em relação ao enfermo, a atenuante genérica do artigo 65, III, “a”, CP. Nas atenuantes não é prevista uma redução fixa ou um intervalo de redução de pena na lei. Entretanto, é costume que a redução não ultrapasse um sexto. [53] De outro lado, a ortotanásia que se compõe dos chamados cuidados paliativos quando as opções terapêuticas se revelam meras obstinações injustificadas, não configura qualquer infração penal ou moral. Trata-se da conduta jurídica e eticamente correta a ser adotada, seja pela família ou pelo profissional de medicina. Mesmo a omissão de tratamento, tirante os cuidados paliativos, é irrelevante, pois se trata de situação em que a terapêutica é retirada e não se faz nada porque nada mais há a fazer, a não ser amparar humanamente o paciente em sua jornada final. Ora, a omissão na seara criminal somente adquire relevância “quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”, o que não ocorre quando se trata de ortotanásia e da opção correta pela adoção dos cuidados meramente paliativos. [54] Também não pode ser considerada moralmente reprovável e muito menos criminalmente persequível a chamada “eutanásia indireta”, informada pela “doutrina do duplo efeito”, quando um tratamento analgésico acaba abreviando concomitantemente o ciclo vital do doente. Não há nexo causal relevante para com a morte e a conduta do profissional e/ou cuidador que ministra o tratamento é em prol da saúde e do bem estar integral do paciente.[55] Finalmente, a não manutenção de funções vegetativas de um corpo com morte encefálica, através de técnicas e aparatos da medicina contemporânea também constitui um irrelevante moral e jurídico. Trata-se apenas da remoção de um cadáver, pois que se considera como morte a chamada morte encefálica, inclusive por força de lei (artigo 3º., da Lei de Transplantes – Lei 9.434/97), o que torna a conduta em termos de homicídio verdadeiro crime impossível (inteligência do artigo 17, CP). [56] Já sob o ponto de vista moral, trata-se de uma questão absolutamente adiafórica, ou seja, nem boa nem má, neutra. Vale salientar que há projetos de alteração do Código Penal para a previsão da Eutanásia como uma forma especial de homicídio com penas mínima e máxima bem menores que as previstas para o “caput” do artigo 121, CP. Assim também há projetos para que a prática da ortotanásia seja explicitamente enfrentada no ordenamento penal, indicando sua impunibilidade. Já o Código de Ética Médica (Resolução CFM 1931/09), no inciso XXII, dos seus “Princípios Fundamentais do Exercício da Medicina”, se adianta a regulamentar a ortotanásia, permitindo-a “nas situações clínicas irreversíveis e terminais”, quando “o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”. [57] Não somente sob o aspecto ético e deontológico, mas especialmente sob o ângulo criminal não se costuma dar a devida atenção a algo que ocorre cotidianamente na prática médica sob a influência de interesses financeiros espúrios e abjetos. Normalmente se foca na falta de cuidados adequados e não no exagero terapêutico, visando lucros indevidos. Floriani [58] é um dos poucos autores que lembra essa importante faceta. O estudioso se refere a indicações indevidas de internação e tratamento de pacientes em unidades hospitalares de alta tecnologia e elevados custos. Também chama a atenção para a realização de procedimentos diagnósticos e/ou terapêuticos de “indicação duvidosa”, visando tão somente auferir lucros, obviamente no âmbito da medicina privada. Há internações indevidas, prolongamentos de internações e tratamentos desnecessários, realização de exames inúteis de alto custo em doentes terminais etc., tudo visando ganho financeiro e atuando sobre o corpo do paciente como se este fosse nada mais que uma fonte de lucros. Essa situação é ainda pior do que a chamada obstinação terapêutica, a qual, mesmo equivocada, pode ser considerada uma posição filosófica e ética do profissional que se apega desesperadamente na luta contra a morte. Não, nesses casos não se trata de posição filosófica, de qualquer crença, ainda que ilusória, mas de pura e simples perversidade. E se trata de uma iniquidade tamanha que pode ainda ser fomentadora de desinteresse de médicos e entidades hospitalares da rede privada para a implantação de programas dentro da filosofia Hospice e cuidados paliativos, já que estes procedimentos tendem a reduzir e não aumentar os custos hospitalares. O Código de Ética Médica repudia a mercantilização do exercício da medicina, desde seus Princípios Fundamentais (inciso IX), de modo que sob o prisma deontológico – administrativo a conduta acima aventada é absolutamente inadmissível. [59]. E criminalmente, como ficaria a situação? Nesses casos, a submissão do paciente a procedimentos diagnósticos e terapêuticos e internações desnecessárias com dolo por parte do profissional de medicina pode configurar diversas infrações penais, tais como Constrangimento Ilegal (artigo 146, CP), Lesão Corporal (leve, grave ou gravíssima, conforme o caso – artigo 129 e §§ 1º. e 2º.), Estelionato (artigo 171, CP) e eventual Associação Criminosa (artigo 288, CP) quando a atuação é institucionalizada ou perpetrada por grupo criminoso formado por 3 ou mais pessoas. Em todos os casos os crimes seriam agravados nos termos do artigo 61, II, “a” (motivo torpe); “d” (meio insidioso e cruel); “g” (violação de dever inerente à profissão); “h” (vítima enferma e/ou eventualmente criança, mulher grávida ou idoso) e ainda eventualmente, “b” (para assegurar a vantagem de outro crime, quando a lesão e/ou constrangimento estiverem conexos ao estelionato). Frise-se que ainda que a conduta seja institucionalizada por entidade médica e/ou hospitalar, não será viável a responsabilização criminal da pessoa jurídica, a qual somente é prevista em nosso ordenamento no que tange aos crimes ambientais (inteligência do artigo 225,§ 3º., CF c/c artigo 3º., da Lei 9.605/98). 4-Conclusão   Não há exagero em afirmar que os dilemas e questões que surgem no final da vida foram fundamentais para o advento da bioética e de outras matérias ligadas à humanização da medicina. Entende-se que o ordenamento jurídico brasileiro, ao não recepcionar a prática da eutanásia e do suicídio assistido, conforme ocorre em alguns modelos de Direito Comparado, está imprimindo um critério interpretativo coerente com a conformação de nosso Estado Constitucional.   Conforme leciona Cambi, “havendo mais de um modo de interpretar a Constituição, deve-se optar por aquele que melhor concretize o valor dignidade da pessoa humana. Assim, se uma regra jurídica puder ser interpretada de mais de uma forma, deve-se escolher aquela que esteja em maior conformidade com a dignidade humana, excluindo, por outro lado, exegeses que contrariem ou não acolham integralmente tal valor jurídico. A dignidade humana é a premissa antropológica do Estado Constitucional e o conceito chave de Direito Constitucional. Não pode haver Estado e, muito menos, Estado de Direito Constitucional sem se fazer referência à pessoa humana, porque a pessoa é um fim em si mesmo, não um meio para se conseguir um fim, devendo o Estado estar a seu serviço, não o inverso”. [60] Entretanto, as expressões “dignidade humana” ou “pessoa humana” podem ter seus significados moldados de diversas formas, lembrando a advertência de Miles de que existe um provérbio que diz que “até o Demônio pode citar as Escrituras”. [61] Por isso é importante manter sempre um referencial teórico de pessoa humana e, consequentemente, de sua dignidade especial, tendo em vista seu conteúdo corporal, psíquico e espiritual e jamais permitindo sua redução a meio ou a coisa. É no seio desse referencial antropológico que à pessoa humana moribunda não se pode estender a morte, mas sim a mão na jornada da finitude em uma conduta de cuidados “eficientes e amorosos”, conforme destaca Floriani, fazendo referência a Cicely Saunders. [62] Recentemente, no Congresso Direito e Fraternidade 2013, realizado na cidade de São Paulo-SP, debateu-se sobre o tema do “Princípio da Fraternidade no Direito” como “instrumento de transformação social”. No texto – base do encontro há manifestação destacável de Carlos Augusto Alcântara Machado, dando ênfase ao teor do Preâmbulo da Constituição Federal de 1988, onde “o constituinte originário adjetivou o vocábulo sociedade, qualificando-o como fraterna. Não se contentou o legislador-mor em fornecer as bases de uma sociedade politicamente organizada e juridicamente institucionalizada. Foi mais além: comprometeu-se com a edificação de uma sociedade fraterna”. [63]  Mas, a verdade é que desde que os ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade” ganharam, especialmente a partir da Revolução Francesa de 1789, grande relevância no cenário jurídico e social, se tem demonstrado muita preocupação com a liberdade e a igualdade e muito, muito pouco se tem realmente focado na questão da fraternidade. Certamente, este é um tema a ser repensado no mundo jurídico, mediante a busca de não somente fazer menção à fraternidade em textos legais, mas reforçá-la enquanto categoria jurídica efetiva. Comunga-se da conclusão sobre a urgência de que a disciplina de cuidados paliativos passe a fazer parte obrigatória das grades curriculares das graduações dos profissionais de saúde. [64] Assim também é imprescindível que as redes hospitalares públicas e particulares passem a investir em estrutura e formação de cuidados paliativos baseados no modelo Hospice, a fim de proporcionar uma vivência digna da própria morte às pessoas. Este tema do fim da vida humana e sua dignidade é um daqueles onde o Princípio da Fraternidade pode ensejar grandes transformações sociais.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-132/homicidio-nos-confins-da-vida-entre-o-dever-de-cuidar-e-o-suposto-direito-de-matar/
Humanização do cuidado: o desvelar da relação médico-paciente
Pretende-se, na presente pesquisa, analisar a partir das reflexões da bioética a humanização do cuidado, particularmente por meio das práticas profissionais realizadas pelos profissionais da medicina. Assim, se faz necessário compreender a humanização por meio de dois vieses, primeiramente, como prática profissional e, posteriormente, por meio de políticas de saúde. Nesse sentido, evidencia-se a importância da bioética, a partir da análise dos seus princípios estruturantes, no enfrentamento da relação médico-paciente, uma vez que se deve compreender que é direito do paciente receber um atendimento médico humanizado e é dever do médico prestá-lo. Para tanto, com o intuito de embasar o presente estudo, realizou-se um estudo documental no campo da legislação, doutrina, bem como em artigos científicos. Por fim, evidencia-se que para que se possa efetivamente alcançar a humanização do cuidado há que se recuperar, principalmente, o desejo de cuidar dos profissionais da área da saúde, pois a partir da boa relação entre o profissional e o paciente o cuidar perpassa a dicotomia saúde-doença e passa a ser fundamentado no respeito e na valorização da pessoa humana, reconhecendo, assim, o sujeito-paciente como um indivíduo na sua singularidade, compreendendo-o, portanto, como um sujeito capaz de exercer seu direito à saúde e, consequentemente, o seu direito à cidadania. [1]
Biodireito
INTRODUÇÃO A sociedade, por meio do crescente tecnológico e da globalização, vem sofrendo profundas transformações, e, nesse cenário, a concepção de saúde, também, foi alterada, contudo, as práticas de saúde de maneira humaniza, ainda, precisam ser (re)pensadas para que o direito à saúde do sujeito-paciente possa ser efetivado. Nesse caminhar, se faz necessário compreender a saúde através de uma visão ampliada, assim, a concepção de saúde perpassa a dicotomia saúde-doença e passa a abarcar questões pertinentes as necessidades sociais e ambientais, alterando, com isso, a concepção de saúde da definição restritiva para uma concepção ampliativa em que a proteção da pessoa humana passa a ser o maior compromisso do Estado. Demonstra-se, então, primordial no contexto societário hodierno, em que valores éticos e sentimentos como solidariedade e cooperação mútua mostram-se obsoletos, a abordagem do processo saúde-doença de forma humanizada. Dessa forma, o presente artigo tem como fito a análise de um tema permeado de silogismos: a humanização do cuidado por meio do respeito do profissional da área médica do princípio da autonomia do paciente.  Nesse sentido, Caprara e Franco (1999), ao enfatizarem a relevância da superação do modelo biomédico na formação dos profissionais da medicina, evidenciam, também, a importância da análise do presente estudo, pois, segundo as autoras, no modelo atual o médico exerce as práticas de assistência de saúde como um simples técnico, desprezando, com isso, a importância na arte de curar do contato humanizado. Para tanto, em um primeiro momento, será realizado um breve estudo dos profissionais da ciência médica, especificadamente da sua formação, bem como serão elencadas as principais políticas de saúde de humanização. Já em um segundo momento, analisar-se-á os princípios da bioética que circundam a relação médico-paciente e, finalmente, demonstrar-se-á a necessidade da humanização do cuidado na relação médico-paciente. Para elaboração do presente artigo realizou-se uma pesquisa bibliográfica baseada em estudo documental no campo da legislação, doutrina, bem como em artigos científicos. Essa pesquisa teve, portanto, como objetivo denotar, por meio do respeito do princípio da autonomia do paciente pelos profissionais da ciência médica, de que forma a humanização do cuidado é promovida, bem como evidenciar, em última análise, que as práticas humanizadas do cuidado precisam ser visualizadas como uma forma de prover a dignidade da pessoa humana. 1-HUMANIZAÇÃO DO CUIDADO Em um primeiro momento, antes de passar à análise e ponderações acerca da temática do presente artigo, humanização do cuidado por meio da análise da relação médico-paciente, demonstra-se primordial trazer um breve estudo dos profissionais da área médica, particularmente da sua formação, assim como analisar as principais políticas de saúde de humanização. Assim, será evidenciado, nesse primeiro momento, que a humanização do cuidado “pressupõe um cuidado solidário, que alia a competência técnica-científica e humana, em meio à vulnerabilidade[2] do outro.” (PESSINI, 2004 p.11). 1.1.PROFISSIONAIS DA ÁREA MÉDICA Cabe elucidar que tecer comentários acerca da humanização do cuidado requer, primeiramente, visualizar o conceito de saúde de forma ampliada e, em virtude disso, compreender que a atuação dos profissionais da área de saúde precisam entender suas práticas profissionais através de um olhar interdisciplinar.   Contudo, no presente artigo, será analisada a atuação dos profissionais de saúde da área médica por entender ser este o viés apropriado à análise proposta, todavia, certamente, a atuação dos demais profissionais da área da saúde de forma a respeitar e valorizar a pessoa humana, também, demonstra-se de extrema importância frente às questões inerentes à promoção da humanização do cuidado. De acordo com Pessini e Bertachini (2003), para que as atuações em saúde direcionadas ao sujeito-paciente possam ser compreendidas como humanizadoras, há que compreendê-lo por meio das suas singularidades e peculiaridades, dessa maneira, deve-se entender a essência do ser a qual se está direcionando as práticas de assistência de saúde. Nesse sentido, para que se alcance um cuidado de humanizado, o profissional da saúde precisa, nas palavras dos autores, “essencialmente, compartilhar com seu paciente experiências e vivências que resultem na ampliação do foco de suas ações exercer na prática o re-situar das questões pessoais num quadro ético, em que o cuidar se vincula à compreensão da pessoa em sua peculiaridade” (PESSINI, BERTACHINI, 2004 p.3). Entretanto, para que os profissionais da área médica possam compreender que as práticas e atuações inerentes ao cuidado devem ser realizadas de forma humanizada é necessário refletir, particularmente acerca da formação médica, já que enquanto restrita ao atual modelo biomédico, “encontra-se impossibilitada de considerar a experiência do sofrimento como integrante da sua relação profissional” (GOULART, 2010, p.4).  Com efeito, evidencia-se, principalmente, a importância da (re)leitura do modelo de formação dos profissionais das ciências médicas no contexto da relação médico-paciente, pois é através do respeito ao paciente, como será abordado posteriormente, pelo profissional da medicina, que as atuações e práticas inerentes ao cuidado poderão ser realizadas de forma a respeitar e valorizar a pessoa humana. A vivência da relação médico-paciente de forma em que o profissional da área médica ultrapasse as amarras da impessoalidade estabelecida com o paciente e que seja estruturada na confiança e colaboração contribui de forma fundamental para o resultado da superação da vulnerabilidade em que o sujeito-paciente se encontra. Para tanto, demonstra-se necessário que se busque uma posição ativa e crítica na compreensão de uma nova prática médica. Tal reflexão precisa ser proposta de forma ampliada nos bancos da academia, pois segundo preceituam Caprara e Franco “a formação médica é intensamente orientada para aspectos que se referem à anatomia, à fisiologia, à patologia, à clínica, desconsiderando a história da pessoa doente, o apoio moral e psicológico. Face a essa realidade, o primeiro ponto a ser colocado para  reflexão é relativo ao comportamento profissional do médico que deve incorporar cuidados ao sofrimento do paciente, possivelmente divergente do modelo clínico. Isto não significa que os profissionais de saúde tenham que se transformar em psicólogos ou psicanalistas, mas que, além do suporte técnico-diagnóstico, se faz necessário uma sensibilidade para conhecer a realidade do paciente, ouvir suas queixas e encontrar, junto com o paciente, estratégias que facilitem sua adaptação ao estilo de vida exigido pela doença”. (CAPRARA; FRANCO, 1999, p. 650).   Muito embora o saber científico dos profissionais da área médica seja fundamental no processo de doença-cura, compreende-se que a formação desses profissionais não pode ser embasada estritamente na construção do conhecimento tecnicista, sendo assim, torna-se fundamental ultrapassar conceitos pré-estabelecidos por meio da estruturação da formação eminentemente técnico desses profissionais. A formação de uma prática de cuidado que seja estruturada na compreensão do paciente como um indivíduo que deve ter a sua dignidade respeitada demonstra-se como uma forma de superar o modelo biomédico em que a atual formação médica está estruturada. A relação cordial e de forma humanizada estabelecida entre o médico e o paciente possibilita, portanto, o direcionamento de uma visão holística pelo profissional do ser humano e, dessa forma, ser compreendida como fundamental aliada na (re)construção do respeito a dignidade do paciente pelos profissionais da medicina. 1.2. POLÍTICAS DE SAÚDE Muito embora a visão de saúde tenha sido alterada da dicotomia saúde-doença após Segunda Guerra Mundial, ainda, nos dias de hoje, a concepção de saúde humanizada, em que a prestação do cuidado é direcionado ao ser humano de forma a compreender e a respeitar a pessoa humana na sua singularidade, precisa ser (re)discutida, pois diversas práticas e assistências de saúde demonstram-se descontextualizadas e, consequentemente,  improfícuas em meio ao crescente avanço tecnológico na área da saúde, bem como da própria concepção de saúde. Nesse caminhar, as políticas públicas direcionadas a resguardar a efetivação do direito à saúde de forma universal e integral a todos vão ao encontro da nova contextualização mundial de saúde, que busca salvaguardar a garantia da dignidade da pessoa humana e do compromisso constitucional pátrio que elenca como um dos Direitos Fundamentais do sujeito a proteção da pessoa humana por meio de um novo conceito de saúde e de respeito à vida, dessa forma, no Brasil institucionalizou-se, a partir da Constituição Federal de 1988, o direito à saúde como direito de todos e dever do Estado (BRAUNER, FURLAN, 2013).  Assim, no cenário societário brasileiro a garantia do direito à saúde é resguardada com o manto dos Direitos Fundamentais e se estrutura nos princípios da equidade, da integralidade e da universalidade (BRAUNER, 2012). Nesse caminhar, de acordo com Calvalcanti e Zucco (2006), há que se ponderar que, nos dias atuais, a concepção de saúde deve ultrapassar as barreiras reducionistas para estruturar seu conceito na definição ampliada de saúde. Por sua vez, a noção vivenciada, atualmente, de saúde, conforme os autores, está estruturada através do significado do indivíduo em sua singularidade e subjetividade. Nessa esteira interpretativa, o indivíduo precisa ser compreendido “na organização da sua vida cotidiana e faz se necessário reconhecer que a concepção de existência de saúde, nos dias de hoje, envolve um conjunto mais amplo das necessidades humanas, como a sexualidade, a identidade, o meio ambiente, entre outras dimensões” (CALVALCANTI, ZUCCO, p. 70-71, 2006). Nesse contexto, através do entendimento de que a humanização é compreendida como uma nova proposta de atenção à saúde direcionada ao ser humano assegurada a todos de forma igualitária, o Estado, a partir de políticas públicas de saúde, vem propondo medidas voltadas a promoção da humanização das práticas e dos serviços de saúde para resguardar o acesso à informação acerca da saúde, assim como preservar a autonomia do sujeito-paciente (GOULART, 2010). Dentre os programas direcionados a humanização do cuidado destacam-se a Política Nacional de Humanização dos Serviços de Saúde (2003) e o Programa de Humanização do Pré-natal e Nascimento (2000). Referidos programas têm como premissas o atendido do sujeito-paciente de forma humana e solidária e, sobretudo, primam pela efetividade os princípios estruturantes que resguardam o direito à saúde. Com efeito, as políticas públicas de saúde com enfoque na promoção da humanização do cuidado vêm sendo implementadas, contudo, ainda, conceitos como integralidade e universalidade precisam ser efetivados para que o cuidado possa ser compreendido como humanizado e, com isso, o sujeito-paciente possa efetivamente exercer seu direito à saúde na sua plenitude, pois há que se compreender, em última análise, que não pode o Estado se recusar de cumprir com sua obrigação de assegurar o direito à saúde a todos. 2 – DIREITOS DOS PACIENTES Feitas as considerações acerca dos profissionais da área médica, bem como das políticas de saúde faz-se imprescindível analisar os princípios da bioética que circundam a relação médico-paciente e a humanização desse cuidado. Assim, irá se demonstrar que, conforme acima ponderado se demonstra imprescindível ultrapassar as barreiras da formação médica tecnicistas para que, assim, se possa (re)pensar o  cuidado e compreendê-lo de forma humanizada. 2.1– OS PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA COMO NORTEADORES DOS DIREITOS DOS PACIENTES A relação médico-paciente vem sofrendo alterações na atualidade, estando em profunda crise, em razão da falta de humanização. Tal é decorrente, principalmente da mudança de pensamento e atitude da sociedade. Com efeito, antigamente a relação médico-paciente era regrada pela amizade e confiança entre os envolvidos, sendo que cada núcleo familiar elegia um médico “de família” e nele depositava o seu respeito, buscando a cura para doenças familiares. (FREIRE DE SÁ; NAVES, 2009). Nessa época, paciente e médico partilhavam da mesma opinião, qual seja, quem sabia o que era melhor para o doente era o médico, pois ele era dotado do saber científico. Isso se explica até pelo próprio juramento principiológico das ciências médicas, o juramento de Hipócrates, bastante utilizado e que, em determinado trecho diz: “(…) Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém.(…)”. Constata-se, portanto, que o dever do médico para com o paciente estava baseado em promover o bem do doente, buscando a cura da melhor maneira possível, não tendo o paciente espaço para influenciar na tomada de decisão, muito menos apor qualquer objeção. (LIGIERA, 2005).   Contudo, a evolução da sociedade de consumo, o mundo globalizado e a tecnologia geraram mudanças no comportamento da humanidade, e consequentemente, na relação médico-paciente. A existência de novas tecnologias, a especialização incessante do profissional para tornar-se cada vez mais qualificado, bem como a necessidade dos pacientes em recorrer a planos de saúde, a fim de reduzir os custos, acarretaram a falta de pessoalidade na relação médico-paciente. Assim, o novo paradigma da medicina e a falta de cuidados com os pacientes desperta a necessidade de análise pela bioética, que estuda uma operacionalização mais humana dessa relação. Surgem assim, os direitos dos pacientes, que passam a ganhar relevo. Para análise dos direitos dos pacientes é necessário abordar o tema a partir de uma análise bioética principiólogica, de maneira que permita extrair as premissas fundamentais para a relação dos pacientes com seus médicos. Nessa esteira, a bioética empresta essa contribuição com o tema, uma vez estuda os princípios que circundam esse vínculo, apresentado sua aplicação e flexibilização, quando necessária. A bioética apresenta quatro grandes pilares nessa relação, que consistem no princípio da autonomia, princípio da beneficência, princípio da não maleficência e princípio da justiça. (BEUCHAMP e CHILDRESS, 2002). Tais princípios são decorrentes do próprio desenvolvimento da bioética e do resultado do trabalho de Beuchamp e Childress, como assevera Wilson Ligiera: “A bioética, outrossim, não é impositiva. Não visa estabelecer normas ou regras de conduta. Ainda assim, não escapou à tendência humana de normatização. Diante da preocupação pública com o controle social da pesquisa científica em seres humanos (especialmente considerando a ocorrência de alguns escândalos envolvendo grande desrespeito para com pacientes negros, crianças e idosos), foi criada pelo Congresso norte-americano, em 1974, a National Commission for Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research, com a finalidade de realizar estudos destinados a identificar os princípios éticos básicos da biomedicina. Quatro anos depois, a referida comissão concluiu um relatório final conhecido como Belmont Report. Este relatório serviu de base para a criação de três princípios éticos básicos, que acabaram sendo sistematizados num livro de Tom L. Beauchamp e James F. Childress, de 1979, intitulado Principles of Biomedical Ethics. Os três princípios estabelecidos no relatório Belmont foram os seguintes: 1) respeito pelas pessoas (posteriormente traduzido como “autonomia”); 2) beneficência (prática ou virtude de fazer o bem, de beneficiar o próximo); e 3) justiça (caráter ou qualidade do que está em conformidade com o que é justo ou equânime). Beuchamp e Childress, todavia, retrabalharam os três princípios em quatro, distinguindo beneficência e não-maleficência”. (LIGIERA, 2005, p. 412 e 413).      Em linhas gerais, o princípio da beneficência objetiva fazer ou promover o bem, isto é, o médico deve buscar a cura da doença, promovendo o bem do paciente, de acordo com sua capacidade profissional e seu discernimento e subjetividade. Já o princípio da maleficência, umbilicalmente ligado à beneficência, conceitua-se como não fazer o mal, não causar dano ao paciente de maneira intencional. No que respeita aos princípios da autonomia e da justiça, respectivamente caracterizam-se por ser o amplo direito de escolha do paciente, com liberdade para expressar sua vontade e por garantir a distribuição justa e equânime no tocante ao direito à saúde, verificando-se a primazia de atendimento. (BEUCHAMP e CHILDRESS, 2002). Em decorrência do estabelecimento desses princípios e da mudança na sociedade, surgiram os direitos dos pacientes, ganhando relevo quando da publicação da obra de Christian Gauderer em 1987, intitulada Direitos dos Pacientes – um manual de sobrevivência. Tal obra está em consonância com o ideal que se aspira hoje. A relação médico-paciente deve ser permeada pela vontade do paciente, considerando que há entre os sujeitos da relação direitos e deveres. Saliente-se que o doente tem o direito constitucional à saúde e à informação, sendo que o médico possui o dever de cura. E nessa esteira, a cura da doença deve vir de forma humanizada, permeando toda a relação existente, a fim de que transmita confiança e segurança ao paciente. Dessa forma, os princípios da bioética devem nortear a relação médico-paciente, primando por sua aplicação e assegurando-se que o paciente tenha plena autonomia da sua condição e possa exercer a sua vontade perante a sua saúde, ponderando-se que a beneficência deve ser usada, sem paternalismo, para fazer o bem. E o bem, não apenas do ponto de vista médico de cura, mas também o bem visto pelo doente, o qual é o vulnerável na situação. (LIGIERA, 2005). 2.2– A NECESSIDADE DA HUMANIZAÇÃO DO CUIDADO NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE As dificuldades da relação médico-paciente são evidentes, tanto que, como exposto anteriormente, os princípios da bioética tentam harmonizar e minimizar seus danos. Comprovadamente, as ciências médicas não são direcionadas para a humanização, nem mesmo possuem um currículo adequado para a promoção dessa relação, conforme abordado acima. É preciso atentar-se ao dispositivo constitucional que preconiza a gestão compartilhada de saúde e promover o aperfeiçoamento do sistema operacional de gestão, a fim de buscar outra composição para relação médico-paciente. Note-se o que preconiza o artigo 198 da Constituição Federal: “Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III – participação da comunidade (…).” Nessa esteira, para a humanização do cuidado na relação médico-paciente necessário se faz uma atenção à formação médica curricular, de maneira que se permita reformular o currículo, inserindo disciplinas humanitárias, quebrando o paradigma saúde-doença, voltando-se para a educação dos sujeitos que promovem a cura. No mesmo sentido, é preciso conscientizar os pacientes dos seus direitos, para que exerçam a sua autonomia, com consciência dos seus direitos, pois com a informação correta, o direito de escolha se torna realmente uma liberalidade do paciente, que atua com conhecimento de causa. Com efeito, a humanização do cuidado na relação médico-paciente deve atender a três premissas chave: “Humanizar a atenção à saúde, com toda a intensidade de sua inscrição no debate (boi) ético, passa, então, a significar:  (1) a valorização da dimensão subjetiva e social, em todas as práticas de atenção e de gestão no SUS, fortalecendo o compromisso com os direitos do cidadão, destacando-se o respeito às questões de gênero, etnia e orientação sexual, entre outras;  (2) a garantia de acesso dos usuários às informações sobre saúde, inclusive sobre os profissionais que cuidam de sua saúde, respeitando o direito ao acompanhamento de pessoas de sua rede social (de livre escolha); (3) a possibilidade de estabelecer vínculos solidários e de participação coletiva, por meio da gestão participativa, com os trabalhadores e os usuários, garantindo educação permanente aos trabalhadores do SUS de seu município.” (GOMES; REGO; SIQUEIRA-BATISTA, 2008, p. 486). Assim, o rompimento com o sistema atual, caracterizado, em síntese, pela informação do médico para o paciente faz-se fundamental.  Com a assunção de uma nova perspectiva de troca e interação entre os sujeitos, em que médico e paciente tenham uma relação aberta, o doente será conscientizado de seus direitos para exercer o direito de escolha de maneira fundamentada. E dessa maneira, o médico poderá exercer a melhor técnica de acordo com escolha efetuada pelo paciente. Destaca-se, assim, que o princípio da beneficência deverá permear a relação para o bem, mas o bem, de acordo com ambas as opiniões, do médico profissional e do paciente vulnerável. Nesse sentido, extraem-se as palavras de Caprara e Franco: “Entretanto, neste modelo informativo, o médico funciona como simples técnico, fornecedor de informações corretas para o paciente. A superação dos modelos paternalista e informativo significa a necessidade de assumir um processo de comunicação que implique na passagem de um modelo de comunicação unidirecional a um bidirecional, que vai além do direito à informação. Esse terceiro modelo, intitulado comunicacional, exige mudança de atitude do médico, no intuito de estabelecer uma relação empática e participativa que ofereça ao paciente a possibilidade de decidir na escolha do tratamento”. (CAPRARA; FRANCO, 1999, p. 651). Finalmente, verifica-se que a humanização do cuidado será efetivada quando a harmonização da relação médico-paciente partir da aspiração médica em proporcionar uma qualidade de vida e saúde dignas ao paciente. O respeito ao ser humano, doente, pauta-se na garantia de considerá-lo um sujeito de direitos, oportunizando que faça uso de sua autonomia, de maneira consciente, em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana, que perfaz elemento inerente de sua cidadania. CONCLUSÃO A sociedade globalizada e o avanço da tecnologia acarretaram reflexos também na área da saúde, importando na falta de humanização no atendimento dos pacientes. Com isso, nasceu uma corrente humanista em busca da concretização dos direitos sociais, elevando a saúde como um direito de todos e dever do Estado, visando um atendimento digno ao paciente, e ainda, um sistema de saúde igualitário, solidário e abrangente. A reflexão proposta no presente trabalho partiu da necessidade de promover a humanização do cuidado na relação médico-paciente, rompendo com o sistema de saúde-doença e passando a adotar um sistema estruturante baseado na premissa da dignidade da pessoa humana. Para tanto, abordou-se a questão da formação curricular médica e delineou-se a existência de políticas públicas de saúde. Com efeito, constatou-se a necessidade primordial da inserção de disciplinas humanitárias no currículo médico universitário, a fim de que seja promovida e estimulada a prática da humanização do atendimento. Do mesmo modo, é dever do Poder Público, com a participação da sociedade, incentivar e proporcionar políticas públicas que visem à humanização do cuidado, tornando-a efetiva de maneira paulatina. Nesse contexto, a relação médico-paciente, orientada pelos princípios da bioética, ganha destaque, rompendo com o paradigma saúde-doença e passando a englobar a autonomia do ser humano, permitindo que o ser vulnerável enfrente os momentos de sofrimento da melhor maneira para si. Assim, exercerá um direito de escolha fundamentado e consciente, possibilitando um cuidado digno de sua saúde. Igualmente, vislumbra-se que a humanização do cuidado se propõe a aprimorar a relação médico-paciente. Essa humanização deverá ser compreensiva e acolher o paciente em todos os aspectos, tanto físico, como psicológico. Nesse aspecto, a solidariedade passa a ser à base do atendimento médico, que comportará técnica e humanismo, compartilhando angústias e sentimentos através do diálogo entre o paciente vulnerável e o médico profissional. Dessa forma, a busca pelo respeito e efetivação da dignidade da pessoa humana, princípio constitucional consagrado, bem como do direito à saúde, passam evidentemente, pela humanização do cuidado na relação médico-paciente, o qual deve ser implementado de maneira democrática e participativa, com a participação da sociedade e do Estado. Somente assim, o ser humano será compreendido em sua essência e sua individualidade, transformando o atendimento à saúde em algo mais do que conhecimento científico: solidariedade.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-130/humanizacao-do-cuidado-o-desvelar-da-relacao-medico-paciente/
Da monoparentalidade programada imposta pelas “produções independentes” – uma análise sob a perspectiva do biodireito
As técnicas de reprodução humana medicamente assistida dissociaram a manutenção de relações sexuais da procriação, entretanto, para que haja fecundação e concepção, ainda é necessária a tradicional fusão entre espermatozóide e óvulo. Nesse contexto, pessoas sozinhas recorrem às clínicas que realizam tais procedimentos para que consigam ter um filho a partir da utilização de gametas de doadores, uma vez que não possuem cônjuge, companheiro e não pretendem manter relações sexuais com um estranho para poderem conceber o filho que desejam. Considerando que não existe lei no Brasil que trate especificamente do tema, apenas uma Resolução do Conselho Federal de Medicina, o presente trabalho tem como objetivo analisar a possibilidade da realização das “produções independentes” sob a ótica deste documento, bem como analisar juridicamente a monoparentalidade programada imposta à criança a ser gerada. Diante do conflito entre dignidades de pessoas diferentes, a saber, da criança a ser gerada e de seu pai ou mãe sozinhos, recorreu-se à ponderação dos direitos envolvidos neste cenário para, ao final, apresentar-se um posicionamento jurídico em relação à referida prática.
Biodireito
Sumário: Introdução. 1 O caminho percorrido pelas famílias e sua função social na atualidade. 2 Do direito ao livre planejamento familiar. 3 Da regulamentação da reprodução humana assistida pelo Conselho Federal de Medicina e Princípios Bioéticos. 4 Análise da “produção independente” sob a perspectiva do Biodireito. 4.1 Os direitos dos pretensos mãe ou pai. 4.2 Os direitos da criança a ser gerada 4.3 O conflito entre os direitos dos pretensos mãe ou pai e da criança a ser gerada. Consideração Finais. Referências. INTRODUÇão Tradicionalmente, a procriação sempre esteve atrelada à manutenção de relações sexuais. Entretanto, atualmente, através dos avanços da Medicina, aquela tornou-se possível mesmo sem a ocorrência destas, através da utilização das técnicas de reprodução humana medicamente assistida. Embora estejam sendo cada vez mais divulgadas e praticadas, referidas técnicas não possuem nenhuma regulamentação legal, embora sua realização produza, inevitavelmente, efeitos no âmbito jurídico. A única normativa acerca do tema é a Resolução no 2.013/2.013 do Conselho Federal de Medicina, que apresenta regras deontológicas (relativas à ética profissional) dirigidas aos médicos, centros e clínicas que realizam reprodução assistida. Considerando que na reprodução assistida o trabalho dos geneticistas substitui a relação sexual, é perfeitamente possível, em tese, que uma mulher sozinha consiga engravidar através do sêmen de um doador. Tal prática tem sido realizada e é popularmente denominada “produção independente”. Ademais, poderia um homem sozinho lançar mão da técnica de gestação de substituição para ter um filho só seu. Pretende-se, no presente trabalho, analisar as “produções independentes” sob o ponto de vista jurídico, mais precisamente através da perspectiva da dignidade da pessoa humana, seja da mulher ou do homem que recorre a este procedimento, exercendo sua autonomia, seja da criança que dele será gerada e, portanto, privada da biparentalidade de forma planejada. Embora as famílias monoparentais sejam reconhecidas para fins de proteção do Estado, seria a monoparentalidade programada estimulada pelo legislador constituinte? Para responder a tal questionamento, este trabalho desenvolveu-se através de uma pesquisa qualitativa, essencialmente bibliográfica e documental, construída dialeticamente a partir do diálogo entre Constituição Federal, Direito de Família, princípios Bioéticos, Resolução no 2.013/2.013 do Conselho Federal de Medicina e doutrina acerca do tema. O trabalho foi dividido em três fases: Primeiramente, foi feita uma apresentação da evolução pela qual passou a família no Brasil até os dias atuais, definindo-se o contexto em que o tema proposto será discutido. Posteriormente, foram elucidados alguns aspectos da Resolução  no 2.013/2.013 do Conselho Federal de Medicina, a qual impõe restrições éticas à prática da reprodução assistida. Por fim, passou-se à analise jurídica das “produções independentes”. Demonstrando que tal prática enseja o conflito entre os direitos da mulher que pretende ter um filho sozinha e os direitos deste à biparentalidade e à paternidade/maternidade responsável, utilizou-se a técnica da ponderação de interesses para chegar-se à um posicionamento que parece ser o mais acertado do ponto de vista do melhor interesse da criança, à qual o Estado deve proteção integral. 1 O CAMINHO PERCORRIDO PELAS FAMÍLIAS E sua função social NA ATUALIDADE Nem sempre as famílias se apresentaram da forma plural e democrática como na atualidade, sendo necessário destacar as principais mudanças que as atingiram com o objetivo de, através da demonstração da evolução de determinados aspectos, elucidar sua função social nos dias de hoje para, a partir daí, analisar criticamente as “produções independentes”, formadoras de familias monoparentais, ou seja, constituídas por um dos genitores e sua prole. Na Antigüidade, o casamento era a única forma legítima de união entre duas pessoas e tinha como objetivo a geração de descendentes. Isto porque, naquele tempo, conforme descrito por COULANGES (2002, p. 13-64), o que unia os membros da família antiga era algo mais poderoso que o nascimento, o sentimento ou a força física: um poder que se encontrava na religião do lar e no culto dos antepassados. Imaginava-se que, após a morte, uma pessoa continuava vivendo debaixo da terra, depois de enterrada. Assim, seus descendentes deveriam fazer oferendas para saciar-lhes a fome e, em troca, os ascendentes, considerados divindades, lhes garantiam prosperidade e proteção. O vivo não podia passar sem o morto, nem este sem aquele.  No entanto, os mortos eram considerados deuses apenas enquanto seus descendentes os contemplassem com seu culto.  Daí derivou a regra de deverem todas as famílias perpetuar-se para todo o sempre. Ressalte-se que o culto doméstico somente passava de varão para varão, sendo de extrema preocupação para uma família a existência de um descendente do sexo masculino que pudesse levar as oferendas ao túmulo de seus ascendentes. O casamento era um contrato apenas para perpetuar a família e garantir a manutenção do culto. Relatando um momento social posterior, LISBOA (2006, p. 33-34) destaca que “Tanto os gregos como os romanos tiveram, basicamente, duas concepções acerca da família e do casamento: a do dever cívico e a da formação da prole. Inicialmente, a união entre o homem e a mulher era vista como um dever cívico, para os fins de procriação e de desenvolvimento das novas pessoas geradas, que serviriam aos exércitos de seus respectivos países, anos depois, durante a juventude. Diante desse objetivo, a prole masculina era muito mais esperada que a feminina, tendo-se a perspectiva do fortalecimento dos exércitos, de novas conquistas e da segurança da nação, com a preponderância dos nascimentos de crianças do sexo masculino. Com o decorrer do tempo, tal conceituação foi sendo paulatinamente substituída pelos ideais de continuidade da entidade familiar, concebendo-se a família e o casamento para os fins de perpetuação da espécie, com o nascimento dos filhos. Restringia-se a idéia de relação sexual no casamento, assim, para os fins imediatos de procriação.” Além de tais funções – o dever cívico e a perpetuação da espécie – a família constituía verdadeira unidade de produção agrícola e artesanal, sob o comando do patriarca. Quanto mais numerosa a família, mais renda seria capaz de gerar, de modo que era interessante ter muitos filhos. Neste período, o homem era considerado o chefe da família, sendo os filhos e a mulher compeltamente submissos a ele, que detinha o direito de vida e de morte daqueles. Segundo afirma DIAS (2006, p. 28), “A família tinha uma formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes, formando unidade de produção, com amplo incentivo à procriação. Sendo entidade patrimonializada, seus membros eram força de trabalho. O crescimento da família ensejava melhores consições de sobrevivência a todos. O núcleo familiar dispunha de perfil hierárquico e patriarcal.” Com a Revolução Industrial, as máquinas tiraram o emprego de muitas pessoas que precisaram largar a economia familiar e passaram a trabalhar nas fábricas. A partir daí, “uma lenta repersonalização das relações familiares estava por vir, destacando-se a saída da mulher de sua casa para o exercício da jornada de trabalho e a quebra do ciclo de continuidade da atividade paterna pelos filhos” (DIAS, 2006, p. 34). Nas palavras de MONTEIRO (2004, p. 10) “Movimentos sociais, a industrialização, duas Grandes Guerras quebraram aquela estabilidade e passou a ser inevitável a intervenção estatal na economia e nas relações privadas, com a chamada socialização do Direito Civil, que perdeu o caráter individualista e passou a voltar-se à proteção do indivíduo integrado na sociedade. As atenções voltaram-se para a pessoa em si mesma, à tutela de sua personalidade, de sua dignidade como ser humano”. A saída da mulher e dos filhos do âmbito exclusivamente familiar e o fato de terem começado a contribuir para o sustento da família, fez com que as relações familiares se modificassem e os mesmos começassem a ter mais importância neste contexto. Tal processo é resumido por LISBOA (2006, p. 36) da seguinte forma: “Como os contratos de adesão acarretaram uma série de situações iníquas em desfavor do prestador de serviços contratado pelo fabricante comitente, a massa de trabalhadores passou a se organizar, assim como a sociedade civil em geral (insatisfeita com as ineficazes medidas de proteção tomadas pelo poder público), exigindo finalmente uma participação positiva ou ativa no processo político. Surgiram, assim, os elementos embrionários do sindicalismo e do associativismo modernos, bem como dos partidos políticos. Tais acontecimentos contribuíram decisivamente para que a mulher e o jovem pudessem vir a reivindicar por seus direitos.” Com o passar do tempo, gradativamente, as esposas e filhos foram tendo seus direitos respeitados. Importante ressaltar que, na década de 60, a difusão da pílula anticoncepcional deu mais independência à mulher, pois, ao desatrelar a prática de relações sexuais da reprodução, aquela também começou a experimentar o sexo por prazer, um comportamento que, até então, era, praticamente, de exclusividade masculina. O ponto alto que marcou definitivamente essa conquista de direitos foi a Constituição Federal de 1988. Além de ter deixado expresso que a família é a base da sociedade (art. 226, caput), merecendo especial proteção do Estado, reconheceu a existência jurídica das famílias monoparentais  e as constituídas a partir da manutenção de união estável (art. 226, §§ 3o.  e 4o.). Garantiu direitos iguais ao homem e à mulher (conseqüentemente no que diz respeito a chefia da família, conforme determina o art. 226, § 5º) e a igualdade de direitos entre os filhos, seja qual for a sua origem, matrimonial ou não (art. 226, § 6º). Aquela antiga relação de soberania do marido em relação à mulher e aos filhos, transformou-se em uma relação de coordenação, onde todos estão em pé de igualdade (art. 226, § 8º). Ademais, a Carta Magna estabeleceu a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro (art. 1o. III), devendo a proteção e promoção da mesma constituir uma lente para que todo o ordenamento jurídico seja enxergado e interpretado nesse sentido. Desta forma, consolidou-se o movimento de repersonalização e despatrimonialização do Direito Civil, que significam, resumidamente, o fato de que a valorização da dignidade humana, atrelada ao princípio da solidariedade, afastou o caráter patrimonialista nas relações interpessoais bem como o individualismo excessivo, prejudicial às relações sociais. Nesse cenário, cada membro da família em si considerado foi valorizado individualmente e a família ganhou uma função social, conforme será demonstrado a seguir. Segundo anteriormente mencionado, a família foi considerada pelo legislador constituinte base da sociedade, merecedora de especial proteção do Estado. Isso porque a família é responsável pelo desenvolvimento da personalidade de seus membros, sendo que, teoricamente, indivíduos desenvolvidos e formados de forma sadia dariam origem, conseqüentemente, a cidadãos ideais, o que contribuiria para a ordem e harmonia sociais. Assim, a família da atualidade tem como função social a promoção e proteção da dignidade de seus membros. As relações familiares, portanto, precisam se desenvolver da forma mais harmônica possível, uma vez que disso depende o desenvolvimento da personalidade sadia de seus integrantes. Nesse sentido, DIAS (2006, p. 43) destaca que “A família-instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado”. Conforme explica PERLINGIERI (apud ASSUMPÇÃO, 204, p. 41), “O tema da funcionalização como fenômeno, em geral, dos institutos jurídicos está intimamente ligado aos valores fundamentais do ordenamento, portanto, em primeiro lugar, ao valor dos valores, a tutela, precisamente, da pessoa humana”. A dignidade da pessoa humana, elevada pela Constituição Federal a fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro, engloba outros valores essenciais, tais como a vida digna, a saúde, a liberdade, a igualdade, a autonomia, dentre vários outros que promovem o desenvolvimento pleno da personalidade de uma pessoa. Por não ser tarefa fácil sua conceituação, oportuna a transcrição do conceito formulado por MORAES (2002, p. 128-129), “A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e traz consigo a pretensão por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.” A dignidade da pessoa humana, segundo clássica definição de SARLET (apud MARTINS, 2005, p. 119) é “Qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.” Complementando esta definição, MORAES (2003, p. 85) explica que a ideia de dignidade desdobra-se em quarto postulados: “i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele, ii) merecedores do mesmo respeito à digninade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relaçÃo ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado.” Referida autora defende, ainda, que decorrem de tais formulações “os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral – psicofísica –, da liberdade e da solidariedade” (MORAES, 2003, p. 85). E acrescenta que “Esta decomposição serve, ainda, a demonstrar que, embora possa haver conflitos entre duas ou mais situações jurídicas subjetivas, cada uma delas amparada por um desses princípios, e, portanto, conflito entre princípios de igual importância hierárquica, o fiel da balança, a medida da ponderação, o objetivo a ser alcançado, já está determinado, a priori, em favor do princípio, hoje absoluto, da dignidade da pessoa humana. (…) A dignidade, assim como ocorre com a justiça, vem à tona no caso concreto, se bem feita aquela ponderação” (MORAES, 2003, p. 85). A dignidade da pessoa humana deve ser respeitada tanto pelo Estado em relação aos seus cidadãos, como por estes, em suas relações particulares. Desta forma, deve ser buscada, logicamente, no âmbito das relações familiares, concretizando a função social da família. Seguindo os valores e princípios constitucionais, o Código Civil de 2002 entrou em vigor ratificando diversas disposições constitucionais sobre a família, disposições estas que podem ser resumidas em um único valor: a solidariedade familiar. Conforme explica MADALENO (2008, p. 64) Madaleno, “A solidariedade é princípio e oxigênio de todas as relações familiares e afetivas, porque esses vínculos só podem se sustentar e se desenvolver em ambiente recíproco de compreensão e cooperação, ajudando-se mutuamente sempre que se fizer necessário”. Desta forma, a solidariedade engloba tanto o dever de assistência moral quanto material. No tocante aos filhos menores, importante salientar que a constituição Federal assegura sua proteção integral4, devendo seu interesse prevalecer em todas as situações, uma vez que considerados pessoas humanas em desenvolvimento. Tendo em mente a função social da família e o direito de todos os seus membros à felicidade, está demarcado o contexto no qual o presente estudo se desenvolverá. 2 do direito ao livre planejamento familiar Além das inovações trazidas pela Constituição Federal de 1988 já mencionadas no capítulo anterior, a mesma determinou que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas, desde que respeitado o princípio da paternidade/maternidade responsável e da proteção integral dos interesses da criança (art. 226, § 7º e art. 227). Tendo em vista esta disposição constitucional, o direito à reprodução tem sido proclamado, por parte da doutrina, um direito fundamental, bem como o direito à reprodução assistida, este em razão do que o estigma da não-descendência representa na esfera íntima de uma pessoa. A lista dos chamados direitos fundamentais tem crescido na proporção da conscientização da valorização da dignidade da pessoa humana, flexibilização esta possibilitada pela Constituição Federal5. Entretanto, para que se possa considerar um direito como sendo fundamental, ainda que não expressamente previsto constitucionalmente como tal, deve-se observar se o mesmo é tão importante quanto os que receberam tal previsão e se é coerente com relação aos mesmos, sendo que a afirmação da fundamentalidade deve “ancorar-se nas necessidades vitais do homem e não em meros desejos não essenciais”  (NABAIS apud KRELL, 2006, p. 100). Partindo-se desse pressuposto, faz-se necessário destacar que existe uma grande diferença entre o direito à reprodução via conjunção carnal e o direito à reprodução assistida6. Procurar-se-á responder à indagação sobre se o direito à esta é fundamental ou se só haveria um direito subjetivo individual à mesma – condicionado à verificação de problemas de fertilidade ou para evitar a transmissão de doenças à criança que será gerada –, uma vez que desta conclusão depende a análise jurídica da situação conhecida como “produção independente”. O direito à reprodução via conjunção carnal, que não é um direito de exercício individual – tanto que a própria Constituição Federal, parâmetro para a interpretação de todo o ordenamento jurídico, limitou o livre exercício do planejamento familiar ao casal –, é um direito fundamental, ainda que, na teoria, encontre limites na paternidade responsável e na dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, SILVA (2003, p. 243) ressalta que “O direito de ter filhos é natural e inerente a todos os seres humanos, porém, ele encontra limites não só nas leis da Natureza, mas também nas leis que regem a sociedade civil. Estas têm como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana e por isso, qualquer ato que atente contra tal princípio deve ser retaliado. A medicina prima por buscar a satisfação e o bem-estar do ser humano, porém deve encontrar limites sempre que o desejo de um indivíduo implicar na invasão dos direitos do outro.” Assim, o motivo de se considerar o direito à reprodução como fundamental consiste no fato de que a perpetuação da espécie é considerada desdobramento natural dos seres vivos e, portanto, um direito inafastável do ser humano, intimamente ligado à sua personalidade. Regulamentando o planejamento familiar constitucionalmente assegurado a todo casal, a Lei nº 9.263/1996, dispõe que: “Art. 1o. O planejamento familiar é direito de todo cidadão, observado o disposto nesta lei. Art. 2o, caput. Para os fins dessa Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal. Art.3o, caput. O planejamento familiar é parte integrante do conjunto de Ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde. Art. 4o, caput. O planejamento familiar orienta-se por ações preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade.” (sem grifos no original) Desta forma, o planejamento familiar, para os fins da Lei nº 9.263/1996, não se traduz na vontade de planejar ter ou não prole, mas nas ações de regulação da fecundidade, fazendo parte de uma política de atenção à saúde pública. Os que defendem a fundamentalidade do direito à reprodução assistida baseiam-se, principalmente, no fato de que a “Lei de Planejamento Familiar” garantiu este direito a todo cidadão. Entretanto, para uma compreensão acertada do que vem a ser “planejamento familiar”, é imprescindível uma leitura crítica e conjunta do dispositivo constitucional que a ele se refere (art. 226, §7º) e da lei específica que o regulamenta (Lei nº 9.263/1996). No âmbito constitucional, o livre planejamento familiar está descrito como forma de garantia ao direito à liberdade, mais precisamente quanto à autonomia reprodutiva, não podendo nenhum órgão, público ou privado, impor a esterilização forçada ou mesmo determinar o número máximo de filhos que uma pessoa terá, como ocorre na China (política do filho único). Já no âmbito da lei ordinária que dispõe sobre o planejamento familiar, este é considerado uma preocupação com a saúde reprodutiva da população e com a conseqüente disponibilização de políticas públicas voltadas para esta área. DIAS (2006, p. 298) destaca que este planejamento familiar de origem governamental “é dotado de natureza promocional, não coercitiva, orientado por ações preventivas e educativas e por garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade”. “Não há grandes divergências (…) no sentido de que o right to procreate tem um conteúdo negativo, isto é, que atribui ao indivíduo uma defesa contra qualquer privação ou limitação, por parte do Estado, da liberdade de escolha quanto a procriar ou não” (BARBOZA, 2004, p. 228), de modo que a liberdade de elaboração do planejamento familiar tanto não é absoluta que o aborto provocado, utilizado como forma de colocar fim a uma gestação indesejada, é considerado crime no Brasil7. Dessa forma, é direito de todo cidadão receber orientações e meios para evitar uma gravidez – através, por exemplo, da disponibilização gratuita de pílulas anticoncepcionais, preservativos, cirurgias de ligadura de trompas ou vasectomia pelo Sistema Único de Saúde –, bem como para remediar uma situação patológica de infertilidade, esterilidade ou baixa fertilidade8 – através do acesso às técnicas de reprodução humana assistida. Assim, pode-se concluir que, no Brasil, o direito à reprodução assistida está a serviço do direito fundamental à saúde9, não podendo ser utilizado como argumento para suprir a falta de um parceiro. Justamente em razão de sua finalidade terapêutica, o uso de métodos de reprodução assistida está contido no contexto da saúde e “deve representar a última alternativa para a pessoa que pretende procriar, e não simplesmente um modo alternativo de reproduzir” (MEIRELLES, 2002, p. 395).  Ainda que o direito à reprodução assistida seja considerado fundamental, alicerçado no direito à liberdade e não no direito à saúde, importante destacar que nenhum direito, ainda que fundamental, é ilimitado ou absoluto, encontrando limites na dignidade dos que serão afetados pelo exercício do mesmo. Finalmente, DINIZ (2010, p. 142-143) alega que os direitos reprodutivos não são absolutos, “pois os direitos da prole e o bem comum impõem seus limites. Por isso não se pode falar de uma liberdade procriadora exercida de qualquer maneira, mas de uma liberdade responsável”. 3 DA REGULAMENTAÇÃO DA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA PELO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA E PRiNCÍPIOS BIOÉTICOS Conforme exposto anteriormente, o único documento normativo brasileiro que fixa os requisitos éticos para a realização das técnicas de reprodução humana assistida é a Resolução no 2.013/2.013  do Conselho Federal de Medicina. A mesma, em sua parte introdutória, considera a importância da infertilidade humana como um problema de saúde, com implicações médicas e psicológicas, sendo legítimo o anseio de superá-la através das técnicas de reprodução assistida. Ademais, faz menção ao fato de que o Supremo Tribunal Federal reconheceu as uniões homoafetivas como entidades familiares e, por isso, as técnicas de reprodução assistida devem estar à serviço deste tipo de família. Por fim, expressa-se de forma a insinuar que tais técnicas poderão ser utilizadas para solucionar “problemas de reprodução humana”. Embora o Conselho Federal de Medicina não tenha sido explícito no sentido de elucidar quais seriam esses problemas, da leitura da Resolução conclui-se que não seriam problemas de saúde reprodutiva, especificamente. Atualmente, a ética médica (que não se confunde com a ética jurídica) permite o recurso às reprodução assistida nos seguintes casos, todos explicitados no documento sob comento: 1) Para remediar problemas de saúde reprodutiva; 2) Para evitar transmissão de doenças à prole, situação em que, excepcionalmente, permite-se a seleção do sexo do bebê; 3) Para que casais homoafetivos consigam ter filhos; 4) Para que pessoas solteiras consigam ter filhos; 5) Para garantir a compatibilidade genética do filho a nascer com outro filho já nascido e doente, com o objetivo de  transplante de células-tronco e doção de órgãos; e, por último; e 6) Para possibilitar que pessoas vivas possam ter filhos de cônjuge ou companheiro(a) já falecido, caso o de cujus tenha se manifestado favoravelmente, de forma expressa (reprodução assistida post mortem) e desde que haja embriões contendo carga genética do mesmo ou na hipótese de seus gametas estarem crioconservados em clínicas reprodutivas. Note-se, portanto, que é muito amplo o espectro daqueles que podem se beneficiar das técnicas de reprodução assistida as quais, conforme estabelece a Resolução 2.013/2.013, possuem o papel de auxiliar na resolução dos problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação10. Da forma como a temática foi abordada pela vigente Resolução do Conselho Federal de Medicina é muito tentador concluir que a reprodução assistida consistiria em um meio alternativo de procriação e não um recurso excepcional colocado à disposição daqueles que possuírem problemas reprodutivos. É tentador, mas seria ético? É possível através dos avanços da Medicina, mas seria desejável sob  ponto de vista do Direito? Se, por um lado, a referida resolução foge totalmente às regras da natureza, artificializando o processo reprodutivo, por outro, paradoxalmente, tenta imitar a natureza ao determinar que as mulheres que pretenderem gerar seus filhos poderão ter, no máximo, 50 anos, idade a partir da qual, via de regra, as mulheres já estariam na menopausa, impossibilitadas, portanto, de engravidarem naturalmente. Outra polêmica ensejada pela normativa em questão foi o fato de ter previsto que, nos casos de pessoas sozinhas ou pares homoafetivos, o médico poderá recusar a aplicação das técnicas referidas, sendo sua objeção de consciência respeitada, o que dá margem a comportamentos que acabam por fomentar o preconceito em torno das famílias homoafetivas. Ou essas pessoas podem ser pacientes da reprodução assistida ou não podem. Se houve esta ressalva expressa relativa às famílias homoafetivas e às pessoas sozinhas que querem ter filhos é porque não houve consenso acerca da tratativa de tais casos. Frise-se que, ainda que “produções independentes” desejadas por mulheres sejam facilmente resolvidas pelos médicos, o mesmo não ocorre se o paciente for um homem querendo ser um pai solteiro, uma vez que teria que fazer uso da gestação por substituição. Contudo, conforme estabelece a Resolução, tal situação poderá ser cogitada desde que exista um problema medico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética ou em caso de união homoafetiva. Em outras palavras, a Resolução não prevê o recurso à gestação por substituição ao homem sozinho que deseja ter um filho. Qual teria sido o critério a possibilitar “produções independentes” às mulheres e não aos homens? Mesmo diante de tantas polêmicas, a Resolução caminhou bem ao prever a necessidade de manifestação do consentimento informado de todos os que participarem da realização das técnicas de reprodução assistida, inclusive dos doadores de gametas. De qualquer forma, importante ressaltar que a Resolução ora comentada não possui força de lei, devendo a reprodução assistida ser objeto de análise jurídica e bioética. Considerando que este capítulo aborda a Resolução no 2.013/2.013 do Conselho Federal de Medicina, a qual estabelece normas éticas para a realização da reprodução assistida,  oportuna a análise da mesma sob o enfoque bioético, para, no capítulo seguinte, referida análise ser feita no âmbito do Biodireito, mesclando os princípios bioéticos aos fundamentos do ordenamento jurídico pátrio. Primeiramente, portanto, é importante esclarecer o que vem a ser Bioética. Segundo DINIZ (2010, p. 9), “O termo foi empregado pela primeira vez pelo oncologista e biólogo norte-americano Van Rensselder Potter, da universidade de Wisconsin, em Madison, em sua obra Bioethics: bridge to future, publicada em 1971, num sentido ecológico, considerando-a “ciência da sobrevivência”. Para esse autor, a bioética seria então uma nova disciplina que recorreria às ciências biológicas para melhorar a qualidade de vida do ser humano, permitindo a participação do homem na evolução biológica e preservando a harmonia universal.” Conforme explica a mesma autora, esse sentido é totalmente diverso do empregado na atualidade, qual seja, o de ética das ciências da vida. Assim, a mesma entende que “A bioética seria, em sentido amplo, uma resposta da ética às novas situações oriundas da ciência no âmbito da saúde, ocupando-se não só dos problemas éticos, provocados pelas tecnociências biométicas e alusivos ao início e fim da vida humana, às pesquisas em seres humanos, às formas de eutanásia, à distanásia, às técnicas de engenharia genética, às terapias gênicas, aos métodos de reprodução assistida, à eugenia, à eleição do sexo do futuro descendente a ser concebido, à clonagem de seres humanos à maternidade substitutiva, à escolha do tempo para nascer ou morrer, à mudança de sexo em caso de transexualidade, à esterilização compulsória de deficientes físicos ou mentais, à utilização da tecnologia do DNA recombinante, às práticas laboratoriais de manipulação de agentes patogênicos etc., como também dos decorrentes da degradação do meio ambiente, da destruição do equilíbrio ecológico e do uso de armas químicas” (DINIZ, 2010, p.12). A autora ressalta que a bioética precisa de um “paradigma de referência antropológico-moral: o valor supremo da pessoa humana, de sua vida, dignidade e liberdade ou autonomia, dentro da linguagem dos direitos humanos e em busca de uma qualidade de vida digna (…)” (DINIZ, 2010, p. 15). Nesse contexto, a bioética se caracteriza pelo estudo deontológico, ou seja, dos deveres morais, do agir humano perante os conflitos trazidos pela biomedicina. Tais valores derivam de quatro princípios basilares, quais sejam, da beneficência, da autonomia, da justiça e da não-maleficência, sendo que os três primeiros foram elaborados em 1978 e constam do Relatório Belmont (Belmont Report), apresentado pela “Comissão Norte Americana para a Proteção da Pessoa Humana na Pesquisa Biomédica e Comportamental”. Já o princípio da não-maleficência foi acrescentado um ano depois. A seguir, serão abordados os princípios que norteiam a Bioética, os quais são fundamentais para a discussão do tema ora proposto. Quanto ao Princípio da Autonomia, DINIZ (2010, p. 14), explica que o mesmo “Reconhece o domínio do paciente sobre a própria vida (corpo e mente) e o respeito à sua intimidade, restringindo, com isso, a intromissão alheia no mundo daquele que está sendo submetido a um tratamento. Considera o paciente capaz de autogovernar-se, ou seja, de fazer suas opções e agir sob a orientação dessas deliberações tomadas, devendo, por tal razão, ser tratado com autonomia. Aquele que tiver sua vontade reduzida deverá ser protegido. Autonomia seria a capacidade de atuar com conhecimento de causa e sem qualquer coação ou influência externa. Desse principio decorrem a exigência do consentimento livre e informado e a maneira de como tomar decisões de substituição quando uma pessoa for incompetente ou incapaz, ou seja, não tiver autonomia suficiente para realizar a ação de que se trate, por estar preso ou ter alguma deficiência mental”. Com relação ao princípio da beneficência pode-se dizer que o mesmo tem sua origem no juramento de Hipócrates e prega o objetivo de que seja feito o bem  do paciente. Segundo DINIZ (2010, p. 15), “Requer o atendimento por parte do médico ou do geneticista aos mais importantes interesses das pessoas envolvidas nas práticas biomédicas ou médicas, para atingir seu bem-estar, evitando, na medida do possível, quaisquer danos. Baseia-se na tradição hipocrática de que o profissional de saúde, em particular o médico, só pode usar o tratamento para o bem do enfermo, segundo sua capacidade e juízo, e nunca para fazer o mal ou praticar injustiça. No que concerne a moléstias, devera ele criar na práxis médica o hábito de duas: auxiliar ou socorrer, sem prejudicar ou causar mal ou dano ao paciente”. Em outras palavras, PESSINI e BARCHIFONTAINE (1997, p. 58) “No principio da beneficiência, o Relatório Belmont rechaça claramente a ideia clássica de beneficiência como caridade e diz que a considera, de uma forma mais radical, uma obrigação. Neste sentido são formuladas duas regras como expressões complementares dos atos de beneficiência: a) não causar dano e b) maximizar os benefícios e minimizar os possíveis riscos”. Como verdadeiro desdobramento do Princípio da Beneficência, o Princípio da Não-maleficência, determina que o profissional da área médica deve fazer o bem, sem, contudo, acarretar dano intencional ao paciente. Para PETRY (2005) “Há duas formulações para o princípio da não-maleficência, uma positiva e outra negativa. No principialismo, assim como muitas vezes ocorre na ética, a forma negativa é predominante, pois o dever de não causar dano parece ter maior peso moral do que um imperativo de beneficência: deve-se primeiro prevenir um dano para, depois, promover um bem”. Com relação ao Princípio da Justiça, GUERRA (2005, p. 10) explica que “É o princípio que garante a relação equânime, justa e universal dos benefícios dos serviceos de saúde, significando, logo, eqüidade no tratamento, obrigando instituições de saúde e Governo, naquilo que concerne à organização e recursos à saúde. Segundo ele, deve haver uma distribuição justa e eqüitativa dos recursos técnicos e financeiros da atividade científica e dos serviços de saúde; mas ao que se deve somar uma necessária retidão na difusão de benesses e riscos, dentro das práticas científicas, sob justificativa de que “os iguais deverão ser tratados igualmente”. Importante destacar que os princípios acima transcritos não devem ser utilizados de forma mecânica, mas levando em consideração as peculiaridades do caso concreto. Isso porque os mesmos não se excluem, são complementares, e devem ser objeto de ponderação na busca da melhor solução para os dilemas bioéticos. 4 ANÁLISE DA “PRODUÇÃO INDEPENdENTE” SOB A PERSPECTIVA DO BIODIREITO Conforme abordado no primeiro capítulo, a família e, conseqüentemente, o Direito de Família, passaram por muitas transformações ao longo dos tempos. Paralelamente a isto, ocorreu a evolução alucinante da ciência, que colocou à disposição da sociedade várias técnicas de reprodução humana assistida, interferindo diretamente no instituto da filiação. Tal fato trouxe esperança para as pessoas que não podiam procriar em virtude de problemas de cunho reprodutivo. Além disso, tais técnicas trouxeram a possibilidade de que pessoas sozinhas realizem seu sonho de maternidade ou paternidade, sem precisar de um parceiro para concretizá-lo. Tal opção tem sido cada vez mais divulgada na atualidade, já que as mulheres, muito preocupadas com sua colocação no mercado de trabalho e aperfeiçoamento profissional, acabam deixando em segundo plano sua vida pessoal, inclusive a busca de um parceiro ideal para, juntos, construírem uma família. Entretanto, estaria esta opção pela “produção independente” amparada pelo Direito brasileiro? Na tentativa de chegar-se a uma resposta para esta indagação, serão abordados adiante os direitos da pretensa mãe ou pai e os da criança a ser gerada. Após, será feita a ponderação desses direitos. 4.1 OS DIREITOS DOS PRETENSOS MÃE OU PAI Os que defendem a “produção independente”, além de alegarem que a mesma é expressão da autonomia da vontade da mulher ou do homem que deseja ter um filho mesmo sem terem um parceiro, ressaltam que a família monoparental, formada por um dos genitores e sua prole, está prevista na Constituição Federal. Alegam, também, que a adoção pode ser deferida a uma pessoa sozinha, de modo que, quando efetivada, gerará uma família monoparental. Neste sentido, DIAS (2006, p. 199-200) defende que “De modo bastante freqüente, mulheres sozinhas que desejam engravidar fazem uso da inseminação artificial. A família monoparental proveniente de inseminação em mulheres solteiras, pelo fato de a criança já nascer sem pai, tem gerado opiniões controversas. É no mínimo preconceituosa a postura doutrinária que sustenta que a mulher solteira não deve fazer uso de método reprodutivo assexual, por se prestar a interesses egoísticos. Com não lhe é vedado o direito adotar, nada a impede de gerar o filho no próprio ventre. O reconhecimento da igualdade não admite negar a uma mulher o uso de técnicas de procriação assistida somente pelo fato de ser solteira. O planejamento familiar é direito constitucionalmente assegurado e não comporta limitações. (…) está comprovado que o filho não tem seu desenvolvimento prejudicado por ter sido gerado por inseminação artificial. O interesse da criança deve ser preponderante, mas isso não implicaria concluir que não possa a vir integrar família monoparental, desde que o genitor isolado forneça todas as condições necessárias para que o filho se desenvolva com dignidade e afeto”.   Considerando o primeiro argumento – o de que homem e mulheres sozinhos possuem autonomia reprodutiva – não se pode esquecer que nenhum direito é absoluto, devendo ser relativizado quando ferir direitos de terceiros. O próprio direito à reprodução pelo método natural tradicional vem sendo considerado como não absoluto. BRANCO (2006, p. 134-136) defende que pode existir situações em que “(…) a decisão de conceber um filho encontra, sob o ponto de vista jurídico, alguma espécie de limite a partir do qual o exercício desse direito pode ser considerado abusivo e, como tal, tornar-se causa eficaz para a produção do dano moral, suficiente para determinar a responsabilização dos pais. (…) Logo, não se pode aceitar em nosso sistema que o direito à procriação seja considerado como de natureza absoluta, como defendem alguns, ainda que busquem fundamento para tal assertiva no direito à intimidade ou ao próprio corpo (art. 5º, X, da CF). O limite para o exercício daquele direito está na assunção da responsabilidade pelo futuro do produto do ato reprodutivo, pois não se pode deixar de reconhecer o seu caráter transcendente, do qual resulta a formação de uma nova vida, de um indivíduo, cuja existência se destaca dos responsáveis por sua concepção.” Quanto ao planejamento familiar, ao contrário do que afirma a autora acima citada, a Constituição Federal determina expressamente que o mesmo é de livre decisão do casal, observados o princípios da paternidade/maternidade responsáveis e a proteção da dignidade da criança  a ser gerada. Quanto à comparação da “produção independente” feita por mulher solteira à família monoparental adotiva, é fundamental destacar que nas ações de adoção o pretenso adotante passa por uma rigorosa análise, inclusive psicossocial, para que consiga seu objetivo, sendo preservado o melhor interesse da criança, o que não acontece nas “produções independentes”. Ademais, pode-se verificar que a Constituição Federal, ao determinar que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, não estimula a existência de famílias monoparentais, mas as protege e confere direitos. Se assim não fosse, não poderiam desfrutar da impenhorabilidade do bem de família, por exemplo. Assim, o legislador constituinte buscou proteger a família monoparental assim formada em função de separação, divórcio ou de morte de um dos ascendentes. Por fim, outro argumento é utilizado por aqueles que desejam uma “produção independente”: a Constituição Federal determina não ser ninguém obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude de lei, sendo certo que não há lei que vede expressamente tal conduta. 4.2 OS DIREITOS DA CRIANÇA A SER GERADA A criança, por ser uma pessoa humana em desenvolvimento, tem proteção integral por parte do Estado. Seu melhor interesse sempre deverá ser buscado, daí a importância do princípio da paternidade/maternidade responsáveis. Assim, considerando que a função social da família é a proteção e a promoção da dignidade de seus membros, não há como negar que a criança é o membro da família que merece mais atenção. Seja qual for a forma de constituição de uma família, à criança é devida assistência moral, material e intelectual. Os princípios do melhor interesse da criança e o de sua proteção integral podem ser observados na Constituição Federal, no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). Um reflexo dessa necessária proteção especial da criança fez com que o pátrio poder – atual poder familiar – fosse considerado mais um pátrio dever, revolucionando o conceito daquele. Para BARBOZA (1999, P. 140) pode-se “afirmar não ser mais possível qualquer leitura relativa à filiação, maternidade, paternidade, senão com as lentes da doutrina da proteção integral, tendo como objetivo único o de atender ao melhor interesse da criança”. A doutrina da proteção integral não só reafirmou o princípio do melhor interesse da criança como critério hermenêutico, ou seja, como critério para interpretação de uma norma, como também lhe conferiu natureza constitucional. Quando se cogita a realização de uma “produção independente” seja por uma mulher ou homem, sozinhos, é notório que esta retira da criança seu direito à biparentalidade. Há imposição programada da monoparentalidade. Sob o ponto de vista jurídico, tal conduta poderia ser considerada abuso de direito: o pretenso pai ou mãe extrapola a seara de seus direitos e atinge os direitos do futuro filho. Segundo determina o art. 187 do Código Civil, o abuso de direito é considerado tipo de ato ilícito para fins de reparação civil, bastando a demonstração entre a conduta danosa praticada pelo ofensor e o dano experimentado pela vítima. Segundo ALVES (2006, p. 487), “O abuso de direito nas relações familiares, além de consistir um vício do direito, um direito desviado das cláusulas gerais de conduta, se constitui, sobretudo, em indicativo de ilicitude revestida de maior gravidade, por atentar contra a dignidade constitucional da família, onde de conseqüência o controle e a reprimenda judicial deverão refletir e formular soluções mais adequadas, com novos métodos de avaliação, inclusive profiláticas e preventivas.” 4.3 O CONFLITO ENTRE OS DIREITOS DOS PRETENSOS MÃE OU PAI E DA CRIANÇA A SER GERADA Conforme demonstram os sub-capítulos anteriores, no caso das “produções independentes” os direitos dos pretensos pai ou mãe conflitam com os da criança a ser gerada. Há  conflito entre dignidades de pessoas distintas. Explicando este tipo de confronto, NUNES (2002, p. 49-50) ressalta que, embora a dignidade nasça com a pessoa, sendo inerente à sua essência, há que se ter em mente que nenhum indivíduo é isolado: ele nasce, cresce e vive no meio social. Nesse contexto sua dignidade ganha – ou, pelo menos, tem o direito de ganhar – um acréscimo de dignidade. Ele nasce com integridade física e psíquica, mas chega um momento de seu desenvolvimento que seu pensamento tem de ser respeitado, suas ações e seu comportamento – isto é, sua liberdade – sua imagem, sua intimidade, sua consciência – religiosa, científica, espiritual – etc., sendo certo afirmar que todos esses aspectos compõem sua dignidade. Precisa-se, portanto, incorporar no conceito de dignidade uma qualidade social como limite à possibilidade de garantia. Ou seja, a dignidade só é garantia ilimitada se não ferir outra. Assim, quando a dignidade de uma pessoa entra em confronto com a de outra, faz-se necessária a ponderação dos direitos conflitantes, cada um representando um subprincípio componente do princípio maior da dignidade da pessoa humana. A atividade de ponderação entre princípios é marcada pela busca da proporcionalidade e da razoabilidade. Segundo afirma FARIAS, é preciso realçar os matizes da técnica de ponderação de interesses como importante critério de afirmação dos valores constitucionais e da própria efetividade da norma maior. É que a norma constitucional (normas-regra e normas-princípio) reclama efetividade, e “a técnica de ponderação de interesses (ou proporcionalidade) apresenta-se como mecanismo para materializar a legalidade constitucional” (2006, p. 141). ALEXY (apud ROTHENBURG, 2003, p. 33) ensina que quando houver conflito entre princípios, um deles “(…) tem que ceder ante o outro. Porém isto não significa declarar inválido o princípio afastado nem que no princípio afastado tenha que se introduzir uma cláusula de exceção. O que sucede, mais exatamente, é que, sob certas circunstâncias, um dos princípios precede o outro. Sob outras circunstâncias, a questão da precedência pode ser solucionada de maneira inversa. É isto o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm diferente peso e que prevalece o princípio com maior peso. Os conflitos de regras resolvem-se na dimensão da validade; a colisão de princípios – como só podem entrar em colisão princípios válidos – tem lugar para além da dimensão da validade, na dimensão do peso.” Assim, colocando na balança, de um lado, a autonomia reprodutiva da mulher ou do homem sozinhos e, de outro, o direito do filho de não ser privado propositalmente da biparentalidade, parece que este tende a prevalecer, levando-se em conta a argumentação feita nos subcapítulos anteriores. É importante ressaltar que o direito de procriar não é de exercício individual, pois tanto a mulher quanto o homem precisam de gametas do sexo oposto, fornecidos por doador(a), quando pretende ter  uma “produção independente”. Diferentemente, o direito de ter um filho pode ser exercido individualmente, através da concessão judicial da adoção. Nota-se que, neste caso, há uma equipe multidisciplinar para garantir que a adoção resguarda o melhor interesse da criança, com vistas à efetivação da exigência da paternidade/maternidade responsável, o que não ocorre nas clínicas de realização as técnicas de reprodução assistida. Trazendo à baila os princípios bioéticos já explicitados no Capítulo 3, pode-se chegar à conclusão de que na “produção independente”, como não há análise sobre a verificação do melhor interesse da criança, pode ser que o mesmo seja negligenciado, o que deve ser repelido em virtude da garantia constitucional de proteção integral à criança. Assim, pode ser que haja um benefício aos pretensos pai ou mãe, mas uma desvantagem para a criança. Desta forma, o princípio da Não-maleficência (ao filho) deve se sobrepor ao da Beneficência (aos que querem ter um filho). Quanto ao princípio bioético da Autonomia, apenas o homem ou a mulher que desejam a “produção independente” poderiam usufruir do mesmo, uma vez que ao futuro filho, por não existir, ainda, não é dada a chance de se manifestar sobre se prefere ter apenas um genitor ou não. Assim, a imposição programada da monoparentalidade, expressão da autonomia individual,  deve ser limitada por restringir direitos do filho. Por fim, evocando-se o princípio bioético da Justiça, o qual diz que os benefícios da Medicina devem ser distribuídos de forma equânime, considerando as peculiaridades de cada um na busca da efetivação de uma igualdade material, conclui-se que a Resolução no 2.013/2.013 do Conselho Federal de Medicina viola tal prescrição por não tratar de forma equânime homem e mulher que desejam recorrer à “produção independente”, já que garante esta possibilidade somente à mulher sozinha que pretende ter um filho. Não se defende que homem e mulher possam recorrer às “produções independentes”, mas, caso este venha a ser o posicionamento do Direito pátrio sobre a temática – o que não se espera – tal opção teria que ser garantida a ambos. CONSIDERAÇÕES FINAIS “Pai e mãe – ouro de mina”.Djavan No contexto das técnicas de reprodução humana assistida, as chamadas “produções independentes”, realizadas por pessoas sozinhas que desejam exercer a paternidade/maternidade, caracterizam-se por impor à criança a ser gerada uma monoparentalidade programada. Diante de todo o exposto no desenvolvimento deste trabalho, percebeu-se que daí deriva um conflito entre direitos dos pretensos pai ou mãe e os da criança a ser gerada. Conforme restou demonstrado, o direito de procriar encontra limites na dignidade da criança que será gerada, bem como na garantia de proteção de seu melhor interesse. Desta forma, concluiu-se serem as “produções independentes” ilegítimas sob  as perspectivas jurídica e bioética e, portanto, sob o prisma do Biodireito. Embora não tenha sido abordado neste estudo, importante dizer, também, a título de informação, que a conclusão aqui chegada vai ao encontro do Projeto de Lei 90/99 e seus substitutivos que só permitem a utilização das técnicas de reprodução assistida para tratamentos de problemas de saúde reprodutiva, bem como para prevenção e tratamento de doenças genéticas ou hereditárias. Sendo assim, a “produção independente” não deveria ser realizada, por afastar-se dos objetivos que legitimam o recurso àquelas técnicas.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-129/da-monoparentalidade-programada-imposta-pelas-producoes-independentes-uma-analise-sob-a-perspectiva-do-biodireito/
Interdisciplinariedade e biodireito: união de conhecimentos em prol da humanização das ciências
A medicina é uma das ciências mais antigas e acompanha a humanidade desde os seus primórdios. Mesmo antes de regras positivadas relacionadas com a proteção do ser humano diante dos procedimentos médicos, já existiam algumas medidas que deveriam ser tomadas pelos profissionais, a fim de evitar danos para os pacientes, como a proibição do aborto. Entretanto, desde, o século XX, da nossa Era, é possível encontrarmos algumas leis, inclusive de cunho internacional que tratam do tema, principalmente após a II Guerra Mundial e o cometimento, não apenas pela Alemanha de explorações da integridade física de milhões de seres humanos. Atualmente, as leis brasileiras, bem como resoluções do Conselho Federal de Medicina norteiam a atuação dos profissionais da área da saúde, principalmente os médicos, a fim de que não haja excessos. No presente trabalho se analisará o papel do profissional da saúde diante da falta de recursos que muitos hospitais e postos de saúde enfrentam.
Biodireito
Introdução Com bioética se cria normas para que o médico, os demais profissionais da saúde e o paciente possam ter uma relação saudável, pois desde épocas remotas, já existiam deveres nessa relação. Hipócrates, que viveu na Era Clássica grega, considerado, até os dias de hoje o pai da medicina, elaborou um juramento, que norteia a atuação do médico. Entretanto, diversas foram as violações e excessos cometidos por profissionais da saúde, contra seus próprios pacientes ao longo da história humana, muitas vezes com a justificativa de se fazer ciência. A bioética, assim, visa proteger a vida e a relação do médico com seu paciente, entretanto, um grande problema se faz quando o estabelecimento de saúde não possui as condições mínimas para oferecer a concretização do direito à saúde aos pacientes, como devem os médicos agir e quais as suas responsabilidades diante do caos do Sistema Único de Saúde? O presente trabalho visa traçar uma linha acerca da questão da saúde e do respeito aos princípios da bioética, que deveriam nortear a prestação de serviços relacionados à saúde. 1 O Direito como uma ciência Uma vez que estamos tratando de um tema interdisciplinar, é essencial que seja realizado uma pequena revisão acerca da ciência do Direito, suas principais fontes e princípios, a fim de que não fiquem dúvidas acerca da importância das normas jurídicas para a evolução da sociedade. O Direito, assim como a Medicina, são ciências bastante antigas, pois acompanham o ser humano desde a sua origem, pois o ser humano precisava se livrar dos males de seu corpo e recorria, inicialmente aos feiticeiros, sacerdotes e outras figuras existentes na época e, era essencial o controle social, a fim de que as pessoas não se autodestruíssem, primeiro através de normas de conduta, que, ao serem desrespeitadas, geravam severas punições dos deuses e outros seres sobrenaturais. O ser humano, desde suas primeiras aparições no planeta, teve o intuito de estar junto de outros seres da mesma espécie, pois em grupos é possível armazenar alimentos, caçar, se proteger dos perigos, procriar etc. Betioli (2013, p. 39), “Onde quer que se observe o homem, seja qual for a época e por mais rude e selvagem que possa ser na sua origem, ele sempre é encontrado em estado de convivência com outros. De fato, desde o seu primeiro aparecimento sobre a Terra, surge em grupos sociais, inicialmente pequenos (família, clã, tribo) e depois maiores (aldeia, cidade, Estado).” As regras e a cura dos males do corpo e da alma foram essenciais para a evolução do ser humano em seu ambiente social. Assim, a Medicina visa os cuidados para com o corpo e a mente dos seres humanos, enquanto que o Direito traz as regras sociais, e possibilita a convivência “pacífica”. Para que haja sociedade, é essencial que haja multiplicidade de indivíduos, interação e previsão de comportamento (BETIOLI, 2013, p. 45). É possível afirmar que a sociedade e o Direito existem e coexistem, posto o fator de dependência que um possui do outro, uma vez que: “Não pode haver sociedade sem direito (Ubi societas, ubi jus). Isso porque nenhuma sociedade poderia subsistir sem um mínimo de ordem, de direção. A vida em comum, sem uma delimitação precisa da esfera de atuação de cada indivíduo, de modo que a liberdade de um vá até onde começa o direito do outro, é inteiramente inconcebível”. (BETIOLI, 2013, p. 47) Qualquer pessoa, independentemente de seu grau de instrução aprende, logo em seus primeiros anos de vida que existem regras e a violação dessas regras acarreta em uma penalização, inicialmente imposta pelos pais, posteriormente, pelo Estado. Embora a Lei da Palmada (Lei 13.010/14) proíba castigos físicos às crianças e adolescentes, os pais devem educar, socializar e orientar seus filhos da melhor forma possível, posto que a interação social é uma essencialidade. Assim, temos que o Direito nasceu com a sociedade e para a sociedade, ou seja, estão intimamente ligados, não sendo possível imaginar a existência de um sem o outro. Nos dizeres de Reale (2002, p. 01), acerca da necessidade das regras para propiciar a vivência em sociedade, temos: “Ora, aos olhos do homem comum o Direito é lei e ordem, isto é, um conjunto de regras obrigatórias que garante a convivência social graças ao estabelecimento de limites à ação de cada um de seus membros. Assim sendo, quem age de conformidade com essas regras comporta-se direito; quem não o faz, age torto.” É através da interação social que foi possível viver, procriar e evoluir e fator essencial para a manutenção da espécie no planeta. Todas as relações sociais podem ser atos jurídicos, ou seja, o direito cerca o ser humano como a biosfera. O Direito é uma ciência única, entretanto, para facilitar o seu estudo, é dividido em ramificações, sendo que as principais são Direito privado, composto por Direito Civil e Direito Empresarial e Direito Público, que abrange Direito Penal, Administrativo, Tributário, Processual, Agrário, entre outros. O Biodireito possui característica difusa e coletiva e pode ser classificado como pertencente à ramificação do direito público. Com o Biodireito é possível impor limites, ou seja, regras, para o avanço científico, posto que a vida humana, os animais e as plantas, assim como todo o meio que nos cerca, deve ser preservado, pois um meio ambiente equilibrado e saudável é um direito fundamental, constitucionalmente garantido. Vimos nessa segunda Unidade que o direito é uma ciência e que seu objeto de estudo é a sociedade, ou melhor, atender aos anseios e necessidades sociais. São diversas as ramificações do Direito, ressaltando que as principais são Direito Público (Constitucional, Processual, Penal, Tributário, Biodireito e outros) e Direito Privado (Civil e Empresarial). Analisamos também a necessidade de haver limites para que o desenvolvimento tecnológico não venha a colocar em risco o planeta e a existência da vida em sua biosfera. Assim, estudar o Direito e suas principais divisões é extremamente importante, não apenas para os profissionais do Direito, mas para toda a sociedade, uma vez que as leis possuem o principal objetivo que é atender a sociedade, regular a convivência e possibilitar o aprimoramento e evolução, sem que haja violação da dignidade humana. 2 O Biodireito O Biodireito, como visto nas Unidades anteriores, é uma ramificação do Direito Público e visa a preservação da vida como um todo. O objetivo principal do Biodireito é garantir que as pesquisas científicas, em diversas áreas, não venham a ocasionar problemas, como contaminações, disseminação de vírus mortais, extinção de espécies, perda do patrimônio genético de espécies, entre outros. É tema abordado pelo Biodireito, também, aborto, eutanásia, células-tronco, transplante de órgãos, doação de sangue, reprodução assistida, entre tantos outros temas. Através do Biodireito deveremos buscar um ponto de equilíbrio, que não venha simplesmente impedir a evolução científica da humanidade, mas que não seja tão permissiva o suficiente a ponto de colocar em risco a existência da própria humanidade, bem como dos demais seres vivos. Segundo os ensinamentos de Silva (2003, p. 31), o Biodireito é: “inspirado pela nova concepção de positivismo, ou seja, pelo constitucionalismo dos direitos humanos, pode-se dizer que o biodireito é a compreensão do fenômeno jurídico enquanto conhecimento prático visceralmente empenhado na promoção da vida humana”. Já Morgato (2011, p. 29) aduz que o biodireito é um novo ramo do Direito, que contém alguns dos valores adotados pela bioética e os direitos fundamentais relacionados à proteção da vida, da dignidade, da liberdade, entre outros. “Assim, representa a passagem do discurso bioético para o jurídico, que é responsável por adequar as experiências biotecnológicas com respeito ao ser humano”. O Biodireito, assim, veio da necessidade de regulamentar e limitar o desenvolvimento científico, a fim de preservar a vida em todas as suas formas. Diz Ivan de Oliveira Silva (2008, p. 75), não se deve confundir o biodireito com a bioética, já que ela, em sentido estreito, visa a refletir sobre o comportamento dos profissionais da saúde com seus pacientes, enquanto que o primeiro a regular as práticas advindas de pesquisas e novas descobertas relacionando a vida em todas as suas facetas. Para Maluf (2010, p. 16), “O biodireito pode ser definido como o novo ramo do estudo jurídico, resultado do encontro entre bioética e o direito. É ramo do Direito Público que se associa à bioética, estudando as relações jurídicas entre o direito e os avanços tecnológicos conectados à medicina e à biotecnologia; peculiaridades relacionadas ao corpo, à dignidade da pessoa humana.” O biodireito possui algumas ramificações que são: biodireito humano e biodireito ecológico. No primeiro caso, o objetivo é regulamentar situações de ordem bioética envolvendo o ser humano, especialmente no que tange à manipulação de seu corpo, de partes deste ou de sua vida, já o biodireito ecológico visa considerar o subsistema normativo que regulamenta a manipulação de outros seres, com exceção do ser humano (BORGES, 2012, p. 150-151). A proteção da vida pelo direito, conforme apontou Dworkin em seu livro “Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais”, começam a partir do momento em que o embrião possui condições para se desenvolver e vai aumentando de acordo com a evolução desse ser, que posteriormente, ao nascer com vida, irá adquirir personalidade jurídica. É importante ressaltar que o Biodireito protege não apenas a vida humana, mas todas as formas de vida do planeta, já que, para que haja equilíbrio, são essenciais todos os elementos da fauna, flora e meio ambiente, sendo que, o ser humano é apenas mais uma espécie que vive no planeta. 2.1 Bioética e seus princípios norteadores A bioética é uma ramificação da ética, que visa propiciar uma boa relação entre o profissional da saúde e seu paciente, bem como do ser humano para com as outras espécies do planeta. Para Loureiro (2009, p. 03), a bioética “é um ramo da ética que estuda como as descobertas científicas devem ser utilizadas com o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana”. Dall’Agnol (2005, p. 07), por sua vez, aduz que: “se for levada em conta a origem da palavra, “bio-ética”, ela significa, simplesmente, a ética da vida”. Finalmente, Diniz (2010, p. 12), “a bioética consistiria ainda no estudo da moralidade da conduta humana na área das ciências da vida, procurando averiguar o que seria lícito ou científica e tecnicamente possível”. A bioética começou a ser pensada há muito tempo, pois Hipócrates, que viveu na Grécia Antiga, já defendia a importância de se buscar o bem do paciente, entretanto, seus princípios basilares datam do pós-guerra, com a consagração do Código de Nuremberg. Segundo Loureiro (2009, p. 06), “Com efeito, o julgamento de Nuremberg em 1945, finda a Segunda Guerra Mundial, revelou ao mundo os abusos realizados em nome da ciência e da tecnologia contra a humanidade nos campos de concentração de prisioneiros. A promulgação do Código de Nuremberg em 1947 é o marco da bioética e da consagração de seus princípios”. Complementa Morgato (2011, p. 47), a respeito das atrocidades cometidas contra a humanidade nos campos de concentração nazistas que: “logo após os julgamentos dos crimes praticados sob o regime nazista e o vazio ético que dominava a pesquisa científica após a Segunda Guerra Mundial, a Humanidade instituiu, visando proteger direitos, princípios universais, como a liberdade e a dignidade, bem como o bem-estar da pessoa humana, uma vez ter esta pleno direito sobre seu corpo e sua mente, as primeiras normas reguladoras da pesquisa com seres humanos”. É importante ressaltar que atrocidades contra os seres humanos não aconteceram apenas nos campos nazistas, mas também em muitas outras localidades. Nos Estados Unidos, por exemplo, eram comuns experiências científicas sendo realizadas com pessoas negras, crianças portadoras de doenças como a Síndrome de Down, entre outros, sendo que as intervenções não eram informadas aos pacientes e, em muitos casos, as pessoas eram infectadas com vírus ou bactérias a fim de que fosse estudada a evolução natural da doença e os medicamentos, mesmo que disponíveis, não eram disponibilizados. Milhares morreram sendo cobaias, outros tantos adquiriram doenças, perderam funções vitais e pereceram em prol de uma ciência macabra. Era essencial que houvesse limites, pois muitas pessoas estavam sendo violadas e, na maioria dos casos, nem sequer imaginava que estava sendo objeto de uma experiência científica. Algumas regras vieram com o Código de Nuremberg e os princípios da bioética, e, principalmente no final do século XX, outras várias leis que visam proteger o ser humano e sua integridade física contra experiências científicas desavisadas ou fora dos padrões aceitos nacional e internacionalmente. Entretanto, como o próprio nome diz, trata-se de princípios da bioética, o que, na maioria dos casos não são aplicados de forma coercitiva, necessitando, assim, de normas jurídicas que realmente limitem a atuação profissional, bem como o dever de reparação de danos oriundos de dolo ou culpa, conforme o Código Civil. Todas as pesquisas realizadas com seres humanos hoje (mesmo que seja apenas questionários), devem ter aprovação do Conselho de Ética da entidade da qual o profissional faça parte. Para que a atuação dos profissionais da saúde fosse regulada de alguma forma, já que o Direito ainda está engatinhando nessa área, existem princípios, que norteiam a bioética, quais sejam: – Autonomia Por tal princípio temos que o indivíduo possui vontade própria, mesmo após ser acometido por enfermidades, assim, pode escolher quais tratamentos irá se submeter. Esse princípio se define como autos (eu, próprio) e nomos (regra, governo ou lei), assim, tal preceito foi inicialmente utilizado para designar autogestão das cidades-estados, por tal princípio, quando elencado no rol dos princípios da bioética significa o poder de criar leis para si mesmo (PEREIRA, 2012, p. 104). Para Barboza (2012, p. 59), “Considera-se autônomo o indivíduo que tem capacidade para: compreender as informações relevantes sobre sua situação; compreender as possíveis consequências de cada uma de suas decisões; comunicar de forma clara e reiterada a sua decisão.” É direito de todo paciente, que possua capacidade para tanto, que conheça seu real estado de saúde e possa escolher se submeterá ou não aos tratamentos, bem como as possíveis consequências de sua escolha. Autonomia quer dizer autoimposição de leis, entretanto, quando se analisa diante da bioética, tal preceito significará capacidade para deliberar. Tal princípio foi formulado por Immanuel Kant, tendo em vista que entendia “(…) que os seres racionais possuem valores em si mesmos e que respeitá-los significa tratá-los como fins e não como meios; uma pessoa não pode ser manipulada ao bel-prazer dos outros” (DALL’AGNOL, 2012, p.16). A dignidade humana deve ser respeitada em toda a atuação de quaisquer profissionais e o médico e os demais que atuam na área da saúde devem agir de forma a amenizar o sofrimento, conforme a vontade do paciente. É importante frisar que, mesmo que o paciente peça para que o profissional da saúde realize a eutanásia (ajudar um paciente com doenças incuráveis a morrer, por piedade), é proibida no país, podendo, entretanto, o profissional realizar a ortotanásia, que consiste na morte em seu tempo natural, sem a utilização de máquinas ou intervenções médicas que possam prolongar o sofrimento (confira mais detalhes sobre a eutanásia e outras formas de morte misericordiosa em módulo específico). – Beneficência Através de tal princípio se almeja impor ao profissional da saúde que jamais cause mal desnecessário e evitável ao seu paciente, que via de regra já está sofrendo. Tal princípio visa ao atendimento por parte do profissional da saúde de forma que traga o menor dano possível ao indivíduo, sendo um dos costumes mais antigos da atuação médica. Assim, “o princípio da beneficência encontra a sua substância na máxima de que todo e qualquer tratamento médico deverá ser realizado para o bem dos doentes, conforme os instrumentos à disposição do profissional da saúde” (SILVA, 2008, p. 70). Através da beneficência visa-se propiciar o bem-estar do paciente, que, quando a doença estiver impossibilitando a manutenção e a prevalência da vida, deve receber tratamentos paliativos, ou seja, para amenizar o sofrimento. – Justiça É extremamente importante que exista imparcialidade no que cabe ao tratamento e cuidado, garantindo que todas as pessoas tenham acesso as mais inovadoras tecnologias que visem diminuir o seu sofrimento. Nos dizeres de Morgato, (2011, p. 67), “o princípio da justiça, no contexto da bioética, aponta para a obrigação de garantir uma distribuição dos bens e dos serviços de saúde de forma justa, equânime”. O dever de ser justo não cabe apenas aos profissionais do direito como também a toda a sociedade. – Não-maleficência Uma vez que o profissional da saúde não puder fazer o bem ao seu paciente, não deve prejudica-lo. Nos dizeres de Loureiro (2009, p. 13), “o médico deve comprometer-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos ao paciente”. Tendo suas origens no Juramento de Hipócrates, é um desdobramento do princípio da beneficência, tendo em vista a obrigação do profissional na saúde de não causar dano intencional ao paciente. Ressalte-se que o médico não poderá obrigar o paciente a se submeter a algum tratamento de saúde, mesmo que haja certeza da cura, uma vez que deve respeitar o livre arbítrio, salvo em casos de risco para a saúde pública (PEREIRA, 2012, p. 109-111). Qualquer profissional, assim como o médico, deve atuar de forma a não trazer ainda mais males para os indivíduos. Estes são os princípios da Bioética que norteiam a atuação dos profissionais da saúde, sendo extremamente importante que haja o respeito a tais princípios, a fim de que a dignidade humana possa ser preservada até os últimos instantes da personalidade civil. A bioética também pode representar a relação que o ser humano tem com o meio que o cerca, pois possui o dever de proteção e zelo para com a própria espécie e as demais que vivem no planeta, bem como todo o meio que o cerca. Conclusões O Biodireito está, como se viu, intimamente ligado com a vida e a sua preservação, assim temas desde aborto e eutanásia, como a produção de alimentos, cosméticos e outros tantos bens são regidos por normas do Biodireito. Se trata de uma área autônoma, entretanto, possui uma relação muito íntima com outras ciências, como a medicina, a biotecnologia, a engenharia genética, a filosofia, a sociologia e tantas outras, assim, é uma área multidisciplinar e altamente promissora. É extremamente relevante que os novos operadores do direito possam conhecer, estudar e atuar nas novas áreas, se valendo, para tanto, da interdisciplinariedade.
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Bioética versus biodireito: breves considerações dos institutos perante a ética, moral e normas jurídicas
O presente artigo possui a finalidade de mostrar as principais semelhanças e diferenças entre a bioética e o biodireito. Será apresentada breves considerações sobre a aplicabilidade dos institutos com a ética, moral e o ordenamento jurídico brasileiro.
Biodireito
Introdução As primeira indagações da bioética surgiram com casos polêmicos na biomedicina. Existia preocupação dos familiares no comportamento do profissional em relação ao paciente com doença terminal. A bioética passou a ser utilizada como pontos de referência para os aspectos que derivam da vida. Analisa-se a relação do trabalho profissional com o paciente e a atitude correta de lidar com a vida alheia. No que tange à vida humana, o biodireito irá se referir justamente na parte jurídica da aplicação da bioética, ou da biomedicina ou da biotecnologia na vida de alguém. A ética tem o conceito exposto na sociedade sobre os fatos considerados bons ou ruins. A moral é caracterizada pela personalidade do indivíduo em que mostrará suas formas de pensar e de agir. Por fim, o Direito qualifica-se pelas regras previamente estabelecidas pelo Estado. 1. Bioética 1.1. Origem A bioética advém da palavra bioethos. A palavra bio significa vida e ethos é a ética no modo de ser. [1] Em meados dos anos 60, nos Estados Unidos, começou-se a discutir a bioética através de casos clássicos da biomedicina. [2] Naquela época, era discutido como se resolveria a situação das pessoas que possuíam alguma doença, e que por conta deste fato, não se encontravam capacitadas suficientemente para expressar suas vontades e seus consensos. Os casos derivavam de abusos que poderiam ocorrer durante o tempo do tratamento. Havia preocupação dos familiares, pois o foco principal do profissional não era a cura da enfermidade. Os portadores de síndrome de down, diálise, estado iminente de morte ou estado comatoso eram os pacientes que mais sofriam com a falta de ética dos profissionais atuantes. [3] O médico Scribner fez com que um rim humano pudesse voltar a funcionar através de um aparelho inventado por ele. Com este fato, surgiram as primeiras discussões sobre a ética do médico com o paciente. Através da atitude do médico, foi decidido que seria aplicado o tratamento para aqueles com menor expectativa de vida. [4] Henry Beecher, professor de anestesia de Harvard, em 1966, publicou um artigo dizendo que boa parte da relação com o médico e paciente estavam contrários com os ditames da ética. [5] No dia 3 de dezembro de 1967, o cirurgião Christian Barnard realizou a primeira cirurgia de transplante de coração retirado de outro paciente que teve morte encefálica. [6] Em 1970, a Carta do Direito do Enfermo estabeleceu que deverá ser aplicado o senso ético pelos profissionais para todas as pessoas que não tivessem a capacidade de responder por si só. [7] Ressalta-se que o verdadeiro surgimento da bioética foi vista pela primeira vez nos Estados Unidos, no ano de 1971, pelo médico oncologista Van Rensselder Potter. Em artigo de própria publicação, por nome de Bioethics: bridge to the future, abordava como seria a evolução da ciência perfeita se todos aplicassem as normas da ética dentro da profissão. Suas pesquisas foram observadas com os pacientes portadores do câncer. [8] [9] No mesmo ano, Andre Hellegers, na Universidade de Georgetown, funda o Projeto Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human Reproduction and Bioethics, com o objetivo de preservar os valores humanos perante aos tratamentos médicos. [10] Perante vários estudos e criações de projetos, o conceito da bioética passou a ser analisado com o sentido amplo. Com a sociedade e a biomedicina evoluindo a cada dia, o profissional deve manter a ética com situações oriundas ao envolver a saúde ou direito a vida de alguém. São exemplos a eutanásia, distanásia, técnicas de engenharia genética, terapias gênicas, métodos de reprodução humana assistida, eugenia, escolha do tempo para nascer ou morrer, transexualidade, esterilização compulsória de deficientes físicos ou mentais, tecnologia do DNA, práticas laboratoriais de manipulação de agentes patogênicos e entre outros.[11] A bioética passou a ser utilizada como pontos de referência para os aspectos que derivam da vida. Analisa-se a relação do trabalho profissional com o paciente e a atitude correta de lidar com a vida alheia.[12] Além da proteção da vida humana, a bioética pode ser dividida em macrobioética e microbioética. A primeira resulta de questões ecológicas com a finalidade de assegurar a vida. Já a segunda trata da relação existente entre o médico e o paciente, envolvendo as instituições de saúde pública ou privada.[13][14] 1.2. Princípios basilares O ser humano não pode ser considerado como simples objeto de pesquisa, pois requer que as práticas biomédicas aborde sempre o bem-estar da pessoa e evite que lhe traga danos.[15][16]  “[…] Até recentemente, a beneficência gozou de primazia dentre os princípios da conduta médica e, hoje, encontra-se limitada por quatro fatores principais: a necessidade de se definir o que é bem do paciente; a não aceitação do paternalismo contido na beneficência; o surgimento do critério de autonomia e as novas dimensões da justiça na área da saúde.” [17] Pelo fato da bioética caracterizar o direito à vida, seu estudo é regido de vários princípios. Estes nos ajudam a entender que muitas vezes não devemos ter atitudes por vontade própria, pois a vida do ser humano possui toda e qualquer prioridade perante aos iminentes riscos que possam acontecer. [18] O princípio da justiça faz com que a conduta humana seja analisada pelo âmbito das relações sociais, visando à igualdade perante a lei. [19] É indispensável que a jurisdição seja provocada para que a justiça tenha êxito. [20] “O Poder Judiciário desempenha papel capital para reter os Poderes Legislativo e Executivo nas fronteiras dispostas constitucionalmente às suas ações. Como meio de limitação do próprio Poder Judiciário, entretanto, recusa-se que ele possa agir por iniciativa própria. A jurisdição depende de provocação externa para ser exercida. A prerrogativa de movimentar o Judiciário mostra -se, desse modo, crucial; daí a importância da ação dos entes e pessoas que oficiam perante os juízos e que, por isso, exercem funções essenciais à Justiça.” [21] Já o princípio da isonomia, como regra do artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, estabelece que todos são iguais perante a lei. A exceção da isonomia surge em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de cada desigualdade. [22] [23] [24] No texto da Constituição de 1988, esse princípio é enunciado como referência ao possuir no texto legal que todos são iguais perante a lei. [25]  “Afigura-se, pois, dispensável ressaltar a importância do princípio da isonomia no âmbito das relações estatais. Como a ninguém é dado recusar a integração a determinada ordem estatal – até porque se trata de um dos objetivos fundamentais de toda ordem jurídica, faz-se mister reconhecer o direito de participação igualitária como correlato necessário da inevitável submissão a esse poder de império. E o direito de participação igualitária na vida da comunidade estatal e na formação da vontade do Estado (…)” [26] No que tange à autonomia, este princípio caracteriza-se pelos indivíduos que expõem suas autonomias perante determinadas situações. Exemplo: Quem segue os ensinamentos da religião Testemunha de Jeová possui a crença ou valor moral de não permitir que o médico faça transfusão de sangue sem o consentimento do paciente ou da família. [27] Quanto ao princípio da beneficência, o ato de fazer o bem (origem da expressão bonum facere) visa o bem-estar e a boa conduta, analisando os direitos e as necessidades de todos perante a sociedade. [28] [29] 2. Biodireito 2.1. Derivação do instituto na norma jurídica O biodireito é uma das áreas pertencentes ao Direito Público e relaciona-se com os ditames da bioética, da biomedicina e da biotecnologia. Localiza-se dentro do Direito como um todo, englobando os ensinamentos descritos em áreas específicas como o Direito Civil, Penal, Ambiental e o Constitucional. [30] [31] 2.2. Princípios basilares Assim como a bioética, o biodireito também é regido de princípios que devem ser observados. No que tange à vida humana, o biodireito irá se referir justamente na parte jurídica da aplicação da bioética, ou da biomedicina ou da biotecnologia na vida de alguém. Vale ressaltar que a Constituição Federal de 1988 enfoca como prioridade o direito à vida e, por isso, tais princípios não podem ser descartados. [32] [33] O princípio dos preceitos fundamentais do homem encontra-se no artigo 5º da Constituição de 1988. A inviolabilidade do direito à vida trata-se de um dos vários direitos e garantias fundamentais do ser humano, tanto individual quanto coletivo. Desta forma, nem a bioética e nem o biodireito poderão utilizar de métodos que possam ofender ou violar à vida de alguém. [34] [35] [36] [37] “Os direitos fundamentais são os direitos considerados indispensáveis à manutenção da dignidade da pessoa humana, necessários para assegurar a todos uma existência digna, livre e igual. Os direitos fundamentais são, antes de tudo, limitações impostas pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado Federal, sendo um desdobramento do Estado Democrático de Direito (art. 1.º, parágrafo único).” [38] O princípio da dignidade da pessoa humana é protegida pela Constituição Federal. Por este princípio são incluídos direitos de extrema fundamentabilidade, como respeito à vida, à liberdade, à integridade física e íntima de todos. O amparo da dignidade da pessoa humana pela Constituição faz com que se torne o principal suporte da existência dos direitos fundamentais, caracterizando o Estado Democrático de Direito. O Ministro Gilmar Mendes também defende que todas as pessoas possuem um valor moral e espiritual, o que influencia no basilar da dignidade humana. [39]  “Não obstante a inevitável subjetividade envolvida nas tentativas de discernir a nota de fundamentalidade em um direito, e embora haja direitos formalmente incluídos na classe dos direitos fundamentais que não apresentam ligação direta e imediata com o princípio da dignidade humana, é esse princípio que inspira os típicos direitos fundamentais, atendendo à exigência do respeito à vida, à liberdade, à integridade física e íntima de cada ser humano, ao postulado da igualdade em dignidade de todos os homens e à segurança. É o princípio da dignidade humana que demanda fórmulas de limitação do poder, prevenindo o arbítrio e a injustiça. Nessa medida, há de se convir em que ‘os direitos fundamentais, ao menos de forma geral, podem ser considerados concretizações das exigências do princípio da dignidade da pessoa humana’.” [40] O princípio da informação prévia permite que todos os consumidores recebam informações claras e precisas, pois trata-se de um direito fundamental do cidadão. [41] Já o princípio do consentimento livre e esclarecido advém da decisão voluntária em que a pessoa, por capacidade plena, aceita passar pelos trâmites daquele tratamento específico, sabendo inclusive dos riscos que venha a sofrer. [42] [43] O princípio da legalidade define que o Estado está submetido às regras da lei, nos termos do artigo 5º da Constituição de 1988. A legalidade é caracterizada pela democracia, pois envolvem as garantias e seguranças dos cidadãos. [44] [45] “Este princípio é específico do Estado de Direito, é justamente aquele que o qualifica e que lhe dá a identidade própria. Por isso mesmo é o princípio basilar do regime-administrativo […]. O princípio da legalidade contrapõe-se, portanto, e visceralmente, a quaisquer tendências de exacerbação personalista dos governantes. Opõe-se a todas as formas de poder autoritário, desde o absolutista, contra o qual irrompeu, até as manifestações caudilhescas ou messiânicas típicas dos países subdesenvolvidos. O princípio da legalidade é o antídoto natural do poder monocrático ou oligárquico, pois tem como raiz a ideia de soberania popular, de exaltação da cidadania. Nesta última se consagra a radical subversão do anterior esquema de poder assentado na relação soberano-súdito (submisso).” [46] A publicidade encontra-se amparada pela cláusula pétrea e diz que todos possuem o direito a informação. Entretanto, o princípio do sigilo permite que algumas informações sejam preservadas. São exemplos deste princípio os processos que tramitam em segredo de justiça e o sigilo ao trabalho. Nestes casos, o sigilo pode ser preservado sem o risco de ofender o direito de qualquer cidadão. [47] Já o princípio da privacidade trata-se da limitação dada à informação, sendo que pode ser preservado no anonimato ou no próprio sigilo. [48] “O sigilo das comunicações é não só um corolário da garantia da livre expressão de pensamento; exprime também aspecto tradicional do direito à privacidade e à intimidade. A quebra da confidencialidade da comunicação significa frustrar o direito do emissor de escolher o destinatário do conteúdo da sua comunicação. A Constituição protege esse direito fundamental, no artigo 5º, inciso XII, afirmando ‘inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.” [49] 3. As semelhanças e diferenças entre a bioética e o biodireito A bioética é o estudo das relações humanas envolvendo as ramificações da biomedicina e abordando os aspectos éticos, morais e jurídicos. Possui o objetivo de preservar a saúde, a integridade física e moral e a vida de todos. [50] O biodireito é a ramificação bastante recente da ciência jurídica. Possui o objetivo de observar o ser humano perante à lei e a correta aplicação sobre os direitos da vida. O biodireito envolve o aspecto jurídico criado pela lei e representado pelo Estado. [51] O biodireito também visa regular o desenvolvimento das biotecnologias a partir de preceitos da própria bioética, buscando preservar a vida e a dignidade humana. [52] A semelhança principal entre as duas é a abordagem do direito à vida. Enquanto a bioética utiliza-se da própria ética para que a biomedicina e a biotecnologia sejam aplicadas de forma correta na vida das pessoas, o biodireito irá regular se esta aplicação encontra-se coerente e aceitável pelo ordenamento jurídico. [53] O biodireito não permite que a biomedicina ou a biotecnologia sejam usadas de formas descontroladas ou indisciplinadas, pois o direito à vida além de ser um bem inviolável, ainda é protegido pela lei brasileira. O biodireito irá colocar limites até aonde o médico poderá utilizar essa espécie de tratamento com o paciente. [54] 4. A ética, moral e Direito Para a compreensão dos estudos da bioética e do biodireito é muito importante saber a diferença entre estes tópicos. Muitas vezes é repassado para a sociedade que a ética, a moral e o Direito estão sempre lado a lado e são considerados sinônimos. Isto é um grande equívoco, pois uma pessoa pode ter moral e não ser ético. Pode ocorrer também da pessoa ser ética e moralista, mas não adequar-se as normas do Direito. Para entender melhor esse estudo, devemos saber, primeiramente, a diferença entre eles. [55] [56] “A vida em sociedade exige a observância de outras normas, além das jurídicas. As pessoas devem pautar a sua conduta pela ética, de conteúdo mais abrangente do que o direito, porque ela compreende as normas jurídicas e as normas morais. Para desenvolver a espiritualidade e cultuar as santidades, as pessoas devem obedecer aos princípios religiosos. Para gozar de boa saúde, devem seguir os preceitos higiênicos. Para bem se relacionar e desfrutar de prestígio social, devem observar as regras de etiqueta e urbanidade etc.” [57] A ética tem o conceito exposto na sociedade sobre os fatos considerados bons ou ruins.  É através da ética que pode ser concluída a conduta do ser humano, pois mesmo não havendo regras para caracterizá-las, será através dela que surgirão as diferenças para justificarem a moral e o Direito. [58] A moral é caracterizada pela personalidade do indivíduo em que mostrará suas formas de pensar e de agir. [59] O Direito qualifica-se pelas regras previamente estabelecidas pelo Estado. Dentro do Direito existem as leis, com o objetivo de delimitar o comportamento da sociedade para que haja o bom convívio e o bem estar. [60] [61] A moral e o Direito são semelhantes no que tangem às regras de comportamento. Quanto à diferença entre eles, caracteriza-se basicamente pela aplicação da sanção e pelo campo de atuação. [62] Na primeira hipótese, a sanção é imposta pelo Estado para inibir atos que contrariam as normas jurídicas. Quanto à moral, a sanção é imposta pelo próprio indivíduo que analisa seu comportamento e o pune de forma tão severa ao ponto de trazer o arrependimento. Já na segunda hipótese, o campo de atuação para a moral torna-se mais amplo, pois o homem é capaz de analisar sua própria conduta sem a coerção imposta pela lei. [63] Nas singelas palavras do jurista brasileiro Carlos Roberto Gonçalves “nem tudo que é moral é jurídico, pois a justiça é apenas uma parte do objeto da moral” (GONÇALVES, p. 18). Compreende-se que o Direito atua perante à máquina estatal ensejando medidas repressivas. Na moral, prevalece o aperfeiçoamento individual de cada cidadão em não infringir as normas que compõem a sociedade. [64] Ressalta-se que a eficácia horizontal dos direitos fundamentais é amparada pelo Direito. Porém, nas sábias palavras do doutrinador Flávio Tartuce, nem sempre a força normativa e coercitiva dos princípios prevalecerão sobre o poder estatal e a índole do cidadão. [65] “Fala-se em eficácia horizontal dos direitos fundamentais, para sublinhar o fato de que tais direitos não regulam apenas as relações verticais de poder que se estabelecem entre Estado e cidadão, mas incidem também sobre relações mantidas entre pessoas e entidades não estatais, que se encontram em posição de igualdade formal”. [66] É possível que a atuação jurídica seja composta dos elementos Direito e moral. A título de exemplo, no artigo 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e nos artigos 557, 1.638 e 1.735, inciso V, todos do Código Civil de 2002, a sanção é aplicada de forma eficaz e severa para que a moral e a norma sejam devidamente respeitadas. [67] [68] [69] Conclusão Conclui-se que o atual ordenamento jurídico brasileiro precisa ter relação direta com a bioética e o biodireito. O termo bioética significa ética no modo de ser. Traduz-se que a ética e a moral devem ser aplicadas em conjuto com as normas jurídicas. É pensamento equivocado de que o ordenamento jurídico é composto apenas de leis. A preocupação dos familiares no comportamento do profissional em relação ao paciente com doença terminal envolve o conjunto de ética, moral e emprego da lei no comportamento do profissional. A bioética passou a ser utilizada como pontos de referência para os aspectos que derivam da vida. Analisa-se a relação do trabalho profissional com o paciente e a atitude correta de lidar com a vida alheia. No que tange à vida humana, o biodireito irá se referir justamente na parte jurídica da aplicação da bioética, ou da biomedicina ou da biotecnologia na vida de alguém. A ética tem o conceito exposto na sociedade sobre os fatos considerados bons ou ruins. A moral é caracterizada pela personalidade do indivíduo em que mostrará suas formas de pensar e de agir. Por fim, o Direito qualifica-se pelas regras previamente estabelecidas pelo Estado. As primeira indagações surgiram com casos polêmicos na biomedicina. Contudo, a ética e a moral não deve ser analisada somente nos casos de proteção à vida.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-128/bioetica-versus-biodireito-breves-consideracoes-dos-institutos-perante-a-etica-moral-e-normas-juridicas/
Implicações jurídicas do aborto anencefálico
O presente artigo tem por escopo, analisar as implicações no âmbito jurídico do aborto anencefálico. Para tanto, foi realizada a leitura de processos que tinham por objeto o mesmo que o deste artigo, além de obras jurídicas e biológicas, cadernos publicados pelo Ministério da Saúde e de notícias veiculadas pela imprensa. Foi possível constatar, a existência de uma grande carga valorativa no contexto de diagnóstico de anencefalia.
Biodireito
Introdução A anencefalia consiste em um defeito congênito (do latim “congenitus”, “gerado com”), o qual atinge acerca de 1 em cada 1000 bebês. A palavra anencefalia significa “sem cérebro”. Não é uma definição ideal, pois o que falta é o cérebro com seus hemisférios e o cerebelo, isto é, uma criança com anencefalia nasce sem o couro cabeludo, calota craniana, meninges, mas, contudo o tronco cerebral é geralmente preservado (Müller 1991) [1]. No campo jurídico, esse defeito congênito apenas produz implicações quando a gestante decide interromper voluntariamente a gestação. A partir daqui, se apresentam várias questões relacionadas a direitos da mulher, direitos do nascituro, momento no qual a vida se inicia ética médica, entre outros. Esta implicação também afeta a moral defendida por instituições sociais, como a Igreja Católica, que se faz representar pela CNBB. Pela análise qualitativa do tema, não se objetiva a defesa de qualquer um dos lados, e sim compreender as posições e justificativas produzidas por eles em relação à anencefalia e aborto. Anencefalia: implicações no aspecto biológico e no aspecto jurídico Em termos biológicos, a anencefalia pertence à família de defeitos de fechadura do tubo neural (DFTN). Essa má-formação congênita ocorre entre o 20º e o 28º dia de gestação (Sadler 1998)[2], em decorrência de uma combinação de fatores genéticos e ambientais. Em um desenvolvimento normal, as células da placa neural, as quais constituem o sistema nervoso do embrião, dobram sobre si mesmas a fim de criarem o chamado tubo neural, que então se torna uma estrutura que servirá de suporte para a formação da coluna vertebral e dentro dela a medula espinhal. Depois de várias transformações, o pólo superior do tubo neural finalmente torna-se o cérebro. Um meio de se visualizar mais claramente esse processo é compará-lo com uma moeda cujas bordas unem-se ao centro. No caso de um DFTN, o tubo neural não se fecha completamente. A anencefalia ocorre quando o final da extremidade superior do tubo neural deixa de se fechar. O tecido cerebral restante é protegido somente por uma fina membrana. Com isso, o feto pode ser cego, surdo e não ter reflexos, sendo comparado a um vegetal, assim como pode engolir, comer, chorar, ouvir, sentir vibrações (sons altos), reagir a toques e mesmo à luz: tudo isso depende do quanto o tubo neural, que leva a formação do cérebro e da medula espinhal, responsáveis pelo controle de todas funções conscientes, como controle motor voluntário, e muitas das funções inconscientes do corpo, tais como o batimento cardíaco, fora afetado pela má-formação. Muitas crianças com anencefalia morrem intra-útero ou durante o parto. A expectativa de vida para aquelas que sobrevivem é de apenas poucas horas ou dias, ou raramente poucos meses (Jaquier 2006)[3]. Usando um exame de ultra-som de alta resolução, pode-se detectar a anencefalia na 10ª semana. Quando em condições pouco ideais, a anencefalia só pode ser detectada ou excluída por um exame de ultra-som após a 16ª semana de gravidez. Os níveis de Alfa-Fetoproteína, uma proteína que é liberada através da urina do feto no líquido amniótico, podem ser medidos por exame do soro materno (exame de sangue). Se os níveis são altos, há o risco que a criança possa sofrer de um DFTN. Há testes posteriores que devem ser feitos (exame de ultra-som ou amniocentese, isto é, punção do útero para retirada de amostra de líquido amniótico) entre a 15ª e a 20ª semana para determinar se há realmente um problema desse tipo. A saúde da grávida não é afetada pela anencefalia. Em cerca de um quarto dos casos, é produzido líquido amniótico em demasia (Jaquier 2006)[4], devido a incapacidade do feto de engolir o líquido, o que vem a causar certo desconforto a mulher. Com isso a gravidez pode ser levada adiante normalmente, pois o risco é o mesmo de uma gravidez de um bebê saudável, cabendo aos genitores, por desejo próprio, determinarem a interrupção da gravidez. É a partir deste momento, no qual ocorre a interrupção gestacional, que a anencefalia gera implicações no campo jurídico, pois o aborto é tipificado em muitos ordenamentos jurídicos, inclusive o brasileiro (art. 124 ao art. 128, Código Penal), como um crime contra a vida. Sua definição consiste na morte do nascituro no útero materno ou fora deste, pelas manobras abortivas ou pelo estágio de sua evolução. Excepcionam-se apenas quando gravidez é resultado de um estupro ou quando há risco de morte da mãe. Em legislações penais ao longo do Globo, constata-se que há variações quando o assunto é o aborto. Na Europa, a lei varia tanto em relação à descriminalização, como nas semanas de gestação em que a mulher pode realizar a interrupção voluntária da gravidez (IVG). Cinco países europeus ainda criminalizam o aborto: Portugal, Polônia, Irlanda, Malta e Chipre. Na Alemanha, o aborto é permitido até as 12 semanas, porém a grávida deve ir a uma consulta de aconselhamento num centro oficial, na qual recebe esclarecimento médicos e sociais sobre as possibilidades e apoio para ter um filho, e ainda sobre os riscos da IVG. Contudo, as mulheres não têm de justificar a sua decisão, caso optem por fazer um aborto. As despesas têm de ser pagas pelas mulheres, mas somente se estas tiverem rendimentos mensais superiores a cerca de 900 euros. Na Bélgica, a gravidez pode ser interrompida até as 12 semanas e a mulher tem apenas de pagar uma taxa moderadora de 3,08 euros, já que os custos são pagos pelo serviço de saúde belga, desde que seja praticado em um hospital ou em um centro de planejamento familiar certificado para tal fim. A lei que liberalizou a IVG na Bélgica foi aprovada em 1990. Nas consultas em centros oficiais, a mulher-grávida é vista por um médico, que a informa dos riscos e faz um exame ginecológico, seguindo-se um período de reflexão de seis dias. Se o aborto for pedido até as sete semanas, é possível optar por uma intervenção química, com o recurso à pílula abortiva, na presença do médico. A legislação venezuelana sobre a IVG permite a realização do aborto apenas na hipótese da gravidez apresentar perigo de vida para a mulher. Nos EUA, o direito ao aborto durante as primeiras 12 semanas é um direito constitucional reconhecido há 34 anos. O Canadá, país onde a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) foi descriminalizada em 1988, realiza a IVG livre e a financia pelo Estado. Há dados que apresentam uma diminuição das taxas de realização de aborto no país. No entanto, as questões acerca do aborto não se resumem somente a tipificação em um conjunto de normas penais. No âmbito jurídico internacional, os tratados internacionais de Direitos Humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1945) e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948), dos quais a República Federativa do Brasil é signatária, tocam no cerne da dignidade da pessoa humana e de outros princípios supracitados. Estes princípios foram em grande parte responsáveis pela positivação e efetivação dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro, valendo ressaltar a Emenda Constitucional nº45, que alterou os dispositivos dos artigos 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, acrescentou os artigos 103-A, 103B, 111-A e 130-A, e deu outras providências, e o preâmbulo da Constituição Federal[5]. Em relação ao direito à vida, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), aprovado pela XXI sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, menciona: "O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei, ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida"[6]. Mais à frente, notar-se-á que com a redação desse instrumento o artigo 5º, caput da Carta Magna foi amplamente influenciado pelo Pacto. Analisando, enfim, ordenamento jurídico brasileiro, pode-se elencar os seguintes princípios constitucionais que se relacionam com as implicações do aborto de feto anencéfalo: a dignidade da pessoa humana e o direito à vida (explícitos), o da lesividade e o da proporcionalidade (implícitos). O princípio da dignidade da pessoa humana está previsto no art. 1º, III, da CF, sendo um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Dele decorre o respeito à integridade física e psíquica das pessoas, e também o princípio da liberdade, previsto ao longo dos incisos no art. 5º, da Constituição Federal. Sua concepção vem evoluindo desde a Grécia Antiga, e atualmente, através do reconhecimento mundial, a concepção advinda de Hannah Arendt foi positivada em muitas constituições, compreendendo-a em um conjunto de direitos inerentes ao homem que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado, ou seja, um fundamento para que o Estado se mantenha democrático, e não se transforme em totalitário, pois neste tipo de estado, a condição humana é subtraída. Assim, para evitar a formação deste tipo de estado e a “coisificação” do homem, cria-se o vínculo da dignidade da pessoa humana ao pleno exercício da liberdade e da palavra, a fim de que se possibilite o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas. Apesar de se ter uma concepção reconhecida mundialmente, difícil é a sua conceituação devido à magnitude da incerteza de seu conteúdo e sua extensão. Só pela análise dos termos “pessoa” e “humana” que a compõe já figuram a fluidez de sua significação. Seu conteúdo, segundo Ingo Wolfgang Sarlet, consiste em "um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos"[7]. Logo, não cabe definir um conceito de dignidade da pessoa humana, e sim o seu permanente desenvolvimento, isto é, que passe do nível de crença para o nível da positivação, e desta para o nível da efetivação. A grande polêmica quanto a este princípio se encontra no momento no qual se questiona acerca do surgimento do titular do mesmo. Pressupõe-se que a racionalidade, a consciência de si mesmo, a capacidade de agir segundo fins determinados e atribuir valores são características definidoras do que é ser humano. Assim, compreende-se que a titularidade surge com o nascimento e desaparece com a morte, porque o feto e o cadáver não são capazes de racionalizar e de autoconscientizar ou autodeterminar. Porém, cabe aqui ressaltar, que ambos possuem uma dita dignidade relativa em homenagem ao que se pode ser e ao que se foi um dia, mas esta dignidade não pode se colocar acima da obrigação de proteção da dignidade da já pessoa humana pelo Estado. O art. 5º, caput da Carta Magna Brasileira assegura a todos os brasileiros, natos ou naturalizados, e estrangeiros à inviolabilidade de sua vida. Doutrinariamente, o direito à vida é tido como inato. Assim, quem nasce com vida, tem direito a ela.[8] Este mesmo direito se finda com a morte de quem a possui, pois, como já foi dito, é um direito inerente a pessoa. A partir disso, Não se quer dizer aqui que o feto deva ser considerado como coisa, apenas que ele é uma potencialidade de vida humana, tendo o Estado grande interesse que ele venha a nascer e possuir vida humana, se tornando titular do direito à vida e da dignidade da pessoa humana. O ponto crucial em relação a este direito é a definição do momento em que se inicia a vida. Há concepções lingüística, biológica, e jurídica. Compreende-se linguisticamente o termo vida como “o espaço de tempo que decorre entre o nascimento e a morte” (Dicionário Aurélio) Nas ciências da saúde, há o entendimento de que a vida é uma característica de organismos que exibem todos ou a maioria das seguintes características: homeostasia (Capacidade de regulação do meio interno para manter um estado constante; por exemplo, sudorese para regulação da temperatura); organização (Ser composto de uma ou mais células, sendo estas as unidades básicas da vida); metabolismo próprio (Transformação de energia ao converter substancias e energia em componentes celulares (anabolismo), e transformação de matéria orgânica em substâncias inorgânicas e energia (catabolismo); crescimento (Manutenção de uma taxa de anabolismo maior que a de catabolismo, levando ao crescimento); hereditariedade (Características são herdadas pelos progenitores a partir de ácidos nucléicos); resposta a estímulos (Capacidade de responder a estímulos, o que normalmente se dá de modo motor, por exemplo movimentos para esquivas de estímulos aversivos); reprodução (A capacidade de produzir novos organismos em algum momento de seu ciclo vital); individualidade (O ser deve de algum modo ser distinguível de seu(s) progenitor(s). A partir disso, definem-se diferentes momentos do desenvolvimento embrionário no qual o indivíduo pode ser qualificado como uma vida humana: fertilização (A fusão dos gametas para a formação de um zigoto); implantação (O início da gravidez, ocorrendo por volta de uma semana após a fertilização); segmentação (O momento onde não é mais possível a formação de gêmeos); neuromaturação (Quando o sistema nervoso central do feto está neurobiologicamente maduro); No momento em que estruturas corticais referentes a dor são amadurecidas, e o feto pode experienciar dor; percepção neonatal (O momento em que pode-se verificar cognição no feto); viabilidade fetal (Quando o parto pode ser terminado sem que o feto perca a vida); nascimento. Portanto, percebe-se que não há uma definição absoluta de vida, pois esta não é uma substância pura, e sim um processo. Já quanto ao intervalo definido como início da vida, as correntes mais consideradas no meio científico são a fertilização, a neuromaturação e a viabilidade fetal. Já no âmbito jurídico, ressalta-se a importância da definição do que é vida e do momento em que ela se inicia, para que o instituto do Direito possa tutelá-la, garantindo os direitos de seu titular e gerando obrigações ao Estado perante o sujeito de direito. O Código Civil, em seu art. 2º, apresenta a personalidade civil da pessoa como um direito que começa com o nascimento com vida e inerente à pessoa e à sua dignidade, ou seja, é irrenunciável e intransmissível. Ela abrange cinco direitos: vida/integridade física, honra, imagem, nome e intimidade. No entanto, a Lei resguarda, desde a concepção, os direitos do nascituro, isto é, antes do nascimento, o feto já possui seus interesses preservados, mesmo não possuindo personalidade jurídica propriamente dita, e sim humanidade. Com a análise dos direitos da personalidade, conclui-se que muitos conceitos ainda devem ser definidos a fim de que haja uma homogeneidade doutrinária em relação ao momento no qual a vida humana se inicia, e com isso, definir a partir de quando os direitos do nascituro devem ser protegidos, visto que a Lei 8.974/91 (Lei de Biossegurança) e as resoluções do CFM (Conselho Federal de Medicina) não definem com precisão o que é nascituro. Quanto aos princípios implícitos, o princípio da lesividade orienta a aplicação do Direito Penal, e consiste no fato do Estado apenas ter interesse de aplicar o seu jus puniendi quando houver efetiva ofensa a um bem jurídico relevante para o âmbito penal. O princípio da proporcionalidade tem por função limitar o poder soberano que venha a restringir os direitos fundamentais. É dividido em três sub-princípios: o da adequação, que obriga os meios enunciados pela norma a serem compatíveis com o fim pretendido pela mesma; o da necessidade, que exige que a restrição seja indispensável para que o direito em si seja preservado; e o da proporcionalidade em sentido estrito, que tem a ver com um sistema de valoração no qual um direito fundamental passa a ser considerado mais que outro, que acaba sendo restringido. Há ainda outros muitos princípios que podem ser invocados para o debate que envolve o tema, como o princípio da igualdade (art. 5, I, e 226, §3º) e do planejamento familiar (art. 226, §7º), o que deixa a discussão ainda mais complexa e levou à interposição da ADPF 54-MC/DF, que será vista posteriormente. Aborto O delito de aborto O aborto representa grave problema de saúde pública em países em desenvolvimento, inclusive no Brasil, com sua discussão que envolve conjunto de aspectos legais, morais, religiosos, sociais e culturais. Do ponto de vista jurídico, conforme explica Luiz Regis Prado[9] “o aborto consiste, portanto, na morte dada ao nascituro intra uterum ou pela provocação de sua expulsão”.  Para que haja delito, é obviamente necessária a gravidez em curso. Torna-se também indispensável prova de que o ser em gestação se encontrava vivo quando ocorreu a intervenção abortiva e que sua morte foi decorrente desta interrupção. O aborto é acolhido na legislação brasileira no artigo 128 do Código Penal: “Art. 128. Não se pune aborto praticado por médico: I. Se não há outro modo de salvar a vida da gestante  II. Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante, ou, quando incapaz, de seu representante legal.” O inciso I trata do aborto necessário. Neste caso há um conflito entre a vida da gestante e do feto e o aborto é realizado com o único propósito de salvar a vida da gestante. Entende-se que configura estado de necessidade, excludente da ilicitude da conduta, já que não há outro modo de salvar a vida da gestante. Para que seja realizado este aborto, o consentimento da mesma é dispensável, uma vez que este é entendido como incompatível com o estado de necessidade. Já o inciso II trata do aborto sentimental, ético ou humanitário, praticado no caso de gravidez que resulta de estupro, “significa o reconhecimento claro do direito da mulher a uma maternidade consciente”.[10] Para tal não há necessidade de decisão judicial afirmando a ocorrência do estupro. Como ensina o jurista Roberto Delmanto, “a lei não exige autorização judicial para a prática do aborto sentimental” e “não é necessário que exista processo contra o autor do crime sexual, nem muito menos que haja sentença condenatória”.[11] O ordenamento jurídico brasileiro é bem claro ao excluir a possibilidade do aborto eugênico (ou eugenésico, como preferem alguns). Ao serem analisadas as regras e os princípios do direito brasileiro, surge a seguinte pergunta: a prática do aborto eugênico deve ser permitida? A indicação eugênica não é acolhida pela legislação penal brasileira, contudo a jurisprudência moderna tem admitido a interrupção da gravidez neste caso. Cabe, entretanto, entender o que é o aborto eugênico. Aborto eugênico Aborto eugênico, nas lições de Alberto Silva Franco em sua obra Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, ocorre “quando há sério perigo para o filho, seja em virtude de predisposição hereditária, seja por doenças da mãe, durante a gravidez, seja ainda por efeitos de drogas por ela tomadas, durante esse período, tudo podendo acarretar para aqueles enfermidades psíquicas, corporais, deformidades etc”[12]. Dentre as moléstias que podem atingir o filho que está sendo gerado pela gestante temos a agenesia renal (ausência de rins), síndrome de Patau (graves problemas renais, gástricos e cerebrais que inviabilizam vida extra-uterina) e a anencefalia (acrania) que consiste na ausência da calota craniana com exposição de tecido encefálico disemórfico, justamente a situação que propomos analisar. Mesmo com os atuais avanços da medicina moderna, a anencefalia trata-se, ainda, de patologia sem cura, logo, um feto portador desta doença não possui nenhuma expectativa de vida fora do útero materno. Note-se que o aborto eugênico não é agasalhado pelo Código Penal vigente. A legislação penal caminha a passos lentos e o referido Código data de 1940, época em que não havia disponível a tecnologia para diagnosticar graves e irreversíveis anomalias fetais. Fundamentos da possibilidade do aborto eugênico Uma interpretação extensiva do art. 128, inciso I do Código Penal, demonstra a possibilidade de interrupção da gravidez no caso de anencefalia. Primeiramente há o risco de vida que corre a gestante ao carregar em seu ventre feto que possui esta determinada patologia. A anencefalia é mortal em 100% dos casos. Desta forma, caso sobrevenha a morte do feto ainda no útero, sem que seja notada pela gestante, há o grande risco de ocorrer infecção generalizada (septicemia), levando a gestante a um possível falecimento, o que configura grave e concreto perigo para sua vida. Se a vida da mesma corre sérios riscos em razão dos motivos acima apresentados, poderá a gestante interromper a gravidez de acordo com as condições estabelecidas no art. 128, inciso I do Código Penal. A partir disto, ela estará protegida pela excludente da ilicitude. É o que se depreende através de uma interpretação extensiva e gramatical do dispositivo legal supracitado. Outro argumento também utilizado é uma interpretação evolutiva ou progressiva da lei penal. Segundo esta, o magistrado deve estar atento às modificações sociais, jurídicas e científicas, de modo a adaptar a lei às necessidades e concepções do presente. Entende-se que o Direito não deve ser considerado uma “ciência pura”, pois cabe ao órgão julgador analisar os fatores históricos, políticos e sociológicos do caso concreto. Diz Damásio de Jesus: “O Juiz não pode viver alheio às transformações sociais, científicas e jurídicas. A lei vive e se desenvolve em ambiente que muda e evolui e, uma vez que não queiramos reformá-la freqüentemente, é mister adaptar a norma, com sua própria vontade o permite, às novas necessidades da época”.[13] Em 1940, ante o atraso da medicina, não havia a possibilidade da discussão do diagnóstico do feto anencéfalo. Com o avanço das pesquisas médicas, hoje podem ser atestadas as enfermidades, nos quais os laudos dão certeza da impossibilidade de vida do ser que está sendo gerado. Cabe ao magistrado acompanhar a evolução da ciência médica, levando em consideração que em 1940, quando da edição do Código Penal, não havia possibilidade de constatação de determinadas anomalias. Mesmo com as evidências em favor do direito de escolha da mulher, todas as tentativas de mudar a legislação (projetos de lei e até uma liminar) até hoje foram em vão. Atualmente, se uma mulher quiser interromper a gravidez de um feto anencefálico, ela precisa recorrer à justiça, e esta decisão pode ser favorável ou não, dependendo da interpretação do juiz. Atualmente, segundo a doutrina moderna, em decorrência do Princípio da Lesividade(capacidade da conduta do agente ofender ao bem jurídico penalmente tutelado), a tipicidade penal deve ser vista sob dois aspectos: o formal e o conglobante. A tipicidade formal é verificada quando a conduta do agente se amolda aos elementos descritos abstratamente no tipo penal; já a tipicidade conglobante, conforme lição de Rogério Greco[14], é verificada quando “a conduta praticada pelo agente é considerada antinormativa, isto é, contrária à norma penal, e não imposta ou fomentada por ela, bem como ofensiva a bens de relevo para o Direito Penal (tipicidade material)”. Esta tipicidade material é constatada quando a conduta do agente efetivamente atinge o bem jurídico penalmente tutelado. A gestante que carrega em seu ventre um filho que, segundo entendimento científico, possui anencefalia e está em condição incompatível com a vida em 100% dos casos, condenado ao óbito intra-útero ou no período neonatal precoce, quando interrompe a gravidez, não estará praticando uma conduta tipicamente material capaz de ofender ao interesse protegido pela Lei Penal. O óbito só não ocorre antes, visto que a criança ainda está ligada à mãe pelo cordão umbilical, embora possa se dar ainda no interior do útero materno. Se a objetividade jurídica do delito aborto é a preservação da vida humana e na hipótese de anencefalia não se pode falar em vida humana, seja ainda no ventre materno (o feto é apenas uma atividade fisiológica celular), seja após a saída do mesmo do útero materno, não se tem como falar em tipicidade. Assim, pode-se dizer que a interrupção da gravidez no caso de anencefalia é fato que enseja atipicidade material, vertente da atipicidade conglobante. Não se pode falar na continuação da vida do feto, não sendo a conduta de quem interrompe a gravidez capaz de ofender a objetividade jurídica do crime e, obviamente, não se tem como fazer alusão a uma infração penal, o que autoriza a suspensão da gestação. Entendimento da Jurisprudência Em 1989, foi concedido no Brasil o primeiro alvará judicial em Ariquemes, Rondônia, para interrupção legal de gravidez em uma gestante portadora de um feto anencéfalo. O que se procurava na época era aliar, de algum modo, o trabalho em medicina fetal ao devido respeito que as leis merecem. Havia uma perspectiva de evitar colocar-se o trabalho em medicina fetal a termo com a clandestinidade. Alguns tribunais vêm adotando entendimento favorável ao aborto anencéfalo. É o caso do processo número 1503605-19.2010.8.13.0024 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no qual os requerentes recorreram à Justiça, pois se recusaram à solução clandestina do abortamento nas diversas clínicas e consultórios clandestinos que funcionam na cidade, pretendendo agir de forma correta. Requereram a expedição de alvará judicial para antecipação de parto de feto anencéfalo. O juiz em primeiro grau indeferiu o pedido, fundamentando que não havia perigo iminente de morte da mãe. O acórdão publicado em 29 de junho de 2010 deu provimento ao recurso, confirmando a antecipação da tutela recursal, para autorizar a interrupção da gravidez. No voto do desembargador Alberto Henrique, ele afasta a tipicidade do ato, visto que a condição do feto anencéfalo iguala-se à daquele indivíduo que teve sua morte cerebral constatada, mas só continua vivo uma vez que se encontra ligado a aparelhos. A partir disto, há uma analogia interessante: aquele que tem decretada a morte cerebral encontra-se em uma UTI que garante a sua sobrevivência. Já o feto anencéfalo está unicamente ligado ao útero materno, está aparentemente vivo. Na verdade ele está ligado à mãe e por isso se desenvolve. Esta é a sua UTI. Uma vez que sejam desligados os aparelhos da UTI, não há mais vida. A antecipação do parto seria medida que se impõe neste caso frente a uma gestação fadada ao fracasso. Por mais que nos autos não estivesse presente laudo médico que atestasse risco de vida à gestante, entendeu o desembargador que o aspecto psicológico da mesma deve ser levado em consideração, pois todas as suas expectativas já foram frustradas e a gravidez seria para ela, um sacrifício. Conforme já dito antes pelo Ministro Joaquim Barbosa (STF, HC 84.025-6), "não se pode impor à gestante o insuportável fardo de, ao longo de meses, prosseguir na gravidez fadada ao insucesso". Do mesmo recurso supracitado, merece ser transcrita a seguinte passagem, proferida pelo desembargador Luiz Carlos Gomes da Mata: “Evidencio em tal situação, que antevejo atipicidade na prática da antecipação terapêutica do parto, por ausência de lesividade. Como a morte do feto logo após o parto já está prognosticada, não dispondo a Medicina de meios para salvá-lo, toda preocupação deve ser voltada ao casal, que de forma corajosa, destemida e exemplar bate às portas do Poder Judiciário em busca de uma solução jurídica, para pacificar a questão.” Nota-se que é entendimento da jurisprudência dar provimento ao apelo das inúmeras gestantes na situação da requerente que antes foi mencionada. Apesar disto, ainda existem casos em que o Poder Judiciário nega este direito. É a opinião defendida, inclusive, por doutrinadores como José Henrique Pierangeli[15], que defende que inexiste vida humana a ser protegida pela norma penal e “as intervenções efetuadas no sentido de fazer processo de gestação, não visam à morte do feto, mas sim pôr fim ao sofrimento da mãe gestante, evitando o agravamento de sua saúde psíquica”, destaca ainda que “na interrupção do processo gestacional em caso de anencefalia, não há que se falar em aborto, tratando-se de caso de pura atipia”. Isto leva-nos a pensar que já seria hora de uma inserção no Código Penal de norma que autorizasse o aborto eugênico, desde que a situação seja devidamente comprovada através de exames clínicos e laudos médicos. Neste prisma, temos a Arguição de Descumprimento a Preceito Fundamental 54. ADPF 54 Impetrada no STF em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), a ADPF nº 54 visa corrigir omissão da lei, de modo a dar à mulher o direito de escolher entre interromper ou não a gravidez quando houver o diagnóstico da anencefalia.  Requer a declaração de inconstitucionalidade de qualquer interpretação que atribua aos tipos previstos no Código Penal um impedimento à antecipação terapêutica do parto nos casos de gravidez de feto anencéfalo. Isto de modo a reconhecer o direito subjetivo da gestante de se submeter a tal procedimento sem que haja pedido de prévia autorização do Estado. Argumenta que há a possibilidade de os profissionais da saúde vir a sofrer os dissabores decorrentes do enquadramento no Código Penal. É articulados na ADPF, o envolvimento de preceitos fundamentais concernentes aos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da liberdade e autonomia da vontade bem como os relacionados com a saúde. Neste caso, o que é pedido ao STF é a declaração de que esta conduta que antecipa o parto quando a sobrevivência do feto não é viável, desde que haja comprovação através de laudos médicos emitidos por profissionais de saúde habilitados, não está proibida pelo ordenamento jurídico. Em síntese, é sustentada a atipicidade penal da conduta, uma vez que inexiste lesão a qualquer bem jurídico. Houve audiências públicas em setembro de 2008, na qual se inscreveram instituições e especialistas: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB; Igreja Universal; Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família; Católicas pelo Direito de Decidir; Associação Médico-Espírita do Brasil – AME; CONSELHO FEDERAL DE DIREITOS DA MULHER, dentre inúmeros outros. Foram quatro dias de audiência pública onde os convidados proferiram seus discursos em defesa dos interesses que defendem. Os representantes das classes religiosas mostraram opiniões contrárias: a Igreja Católica (representada, sobretudo pela CNBB), mantêm firme a defesa da proposta de manutenção da criminalização de tal prática; já a classe de evangélicos, (representados pela Igreja Universal do Reino de Deus) deixou claro entender que o desejo da mulher deve ser respeitado em razão do livre arbítrio que seria concedido pela graça divina. No entendo, a classe médica, opinou quase que de forma unânime pela descriminalização, e afirmaram como causa de justificação que há a comprovação de ser inviável a vida sem cérebro. Deve ser considerado ainda, assunto de extrema importância: a permissão legal para a interrupção de gravidez em anomalias fetais significa poder utilizar o seguro de saúde, ter atendimento médico e psicológico adequados e poder utilizar a rede pública ou privada de hospitais de acordo com a condição de cada paciente. Ou seja, enseja um maior estudo e aprimoramento dos fatores relacionados à saúde pública. Aborto de anencéfalos como questão de saúde pública Apesar de o aborto ser considerado crime no Brasil, sua prática é comum na sociedade, sendo realizado por gestantes com base em justificativas diversas: pouca idade, atual ou futura vida profissional, falta de apoio do parceiro ou da família, ausência de condição financeira favorável, entre outras. A retirada do feto é feita de muitas maneiras, desde ingestão de substâncias abortivas, a procedimentos cirúrgicos precários ou em clínicas clandestinas de luxo. Devido a esses fatos, o aborto, além de ser considerado crime, também tido como matéria de saúde pública. Sobre a anencefalia, pode-se chegar à conclusão de que “Saúde Pública”, neste caso, não se restringe à uma concepção de saúde física do feto ou da mãe; porém, também de saúde mental de ambos. O direito à saúde é igualmente previsto no atual texto constitucional brasileiro, presente em seu artigo 6º, caput. Com a finalidade de analisar de forma mais profunda o caso, desconsiderar – se – ão, por ora, argumentos legais, éticos e religiosos, a fim de deixar em evidência, a saúde do feto, da mãe e de sua família. A interrupção da gestação de feto anencéfalo por meio de aborto é considerada crime no Brasil. Não está prevista como uma das hipóteses de permissão do aborto presentes nos incisos I e II do artigo 128 do Código Penal. Portanto, a gestante que desejar abortar o filho, após descobrir que se trata de bebê anencéfalo, praticará o crime previsto no artigo 124 do Código Penal. Assim, essa interrupção será realizada tendo como base o mesmo procedimento do aborto de feto que não é dotado desta má formação. A diferença entre um procedimento e outro, dependerá da condição financeira da gestante e do apoio que esta teve de sua família para chegar a essa decisão. Vê-se, assim, que se a gestante de feto anencéfalo não tiver o dinheiro necessário para realizar o procedimento em uma clínica particular de luxo, o fará de maneira precária. Poderá ingerir substâncias abortivas como medicamentos clandestinos, venenos ou chás com ervas que resultam no aborto e, após isso, fazer a curetagem para retirar o feto morto; ou a gestante insere ferramentas de origens perfurantes ou cortantes em si, a fim de causar a morte do feto ainda dentro do útero, igualmente sendo necessária, após isso, a realização da curetagem. Como descrito acima, a prática do aborto dessa forma precária pode causar inúmeras conseqüências malignas à saúde física da gestante que, em seu momento de desespero, não conseguiu achar outra saída viável. A mulher pode perder a capacidade de gerar outro filho (incapacidade do útero), infertilidade, infecções graves (devido à maneira que foi realizado o aborto), futura gravidez de risco para essa mãe, entre outras. Além da integridade física da gestante, há também os danos físicos causados ao feto, que sofre com dores intensas, já que acaba por ter uma morte extremamente violenta, seja por esquartejamento ou por envenenamento. Além das conseqüências físicas, também devem ser consideradas as conseqüências psicológicas, que ficam presentes por tempo indeterminado na gestante, bem como, em sua família. A priori, é necessário analisar o fato de que a gestante realizou um processo cognitivo muitas vezes desgastante para chegar à uma conclusão; levou em conta seus próprios princípios morais a fim de chegar à melhor decisão. Devem ser analisadas, nesse caso, três hipóteses: 1. A mulher decidiu prosseguir com a gestação – apesar de seu sofrimento – tendo como base seus princípios morais, e não porque o aborto de anencéfalos é considerado crime; 2. Decidiu prosseguir com a gestação – apesar de seu sofrimento – já que a conduta de aborto, nesse caso, é tipificada como crime no Código Penal. 3. Decidiu interromper a gestação a fim de evitar sofrimento próprio e de seus familiares durante e após a mesma, já que o falecimento do bebê é tido como certo em curto período de tempo após seu nascimento – apesar de a conduta ser criminosa no Brasil. Todas as hipóteses descritas acima, fatalmente acarretarão alguma espécie de sofrimento para a gestante e para sua família. É senso comum que nenhuma mulher que deseja ser mãe lida bem com o fato de seu filho não possuir grande expectativa de vida, já que, porventura, é portador de uma má formação do encéfalo. Há notícias de queda da auto-estima dessa mulher, de frustração devido ao seu instinto materno, de depressão, insônia e outros distúrbios que concernem ao seu sistema nervoso; há também conseqüências psicológicas nas pessoas que a cercam, sua família, devido à grande frustração da mulher, compartilhada pelos mesmos. Assim, o que deve ser discutido com base nos princípios legais que norteiam nosso ordenamento jurídico – de um lado, o direito à vida e, em contrapartida, o princípio da dignidade da pessoa humana – é qual medida que causará o menor dano à sociedade em cada caso concreto, bem como, à gestante, à sua família e ao feto em questão. Dessa forma, o ordenamento jurídico brasileiro conquistará, sem dúvida, a legitimidade por parte de seus subordinados no que tange à essa questão. Anencefalia e Ética Médica A ética é o conjunto de valores que dá as diretrizes de uma vida social harmônica, visando sempre o bem comum. Já a bioética é o ramo da ética direcionada às questões da vida humana, que responde às situações trazidas pelas inovações tecnológicas, principalmente no campo da saúde.          O conflito ético que envolve a questão da anencefalia está baseado no embate entre o respeito à vida do feto anencefálico e o respeito aos direitos fundamentais da mulher, tais como a dignidade, a saúde e a liberdade.          Em se tratando dos direitos da mulher, é comprovada a maior incidência de riscos à saúde da gestante no caso de uma gravidez de feto anencéfalo, e, além de danos à sua integridade física, especialistas afirmam que a possibilidade de danos à saúde mental também é grande, de acordo com trecho extraído de estudo da psicóloga Gláucia Rosana Guerra Benute, da Divisão de Psicologia e da Clínica Obstétrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo: “O convívio social pode tornar-se uma realidade dolorosa para a gestante, pois a sociedade não está preparada para acolher a mulher nesse período tão delicado de sua vida. Compartilhar os problemas, as dificuldades vividas e o sofrimento são posturas difíceis para a gestante e, em geral, não aceitas socialmente. A mulher pode sentir-se em dúvida quanto a expor os reais problemas ou mantê-los em segredo. Muitas vezes, ela opta por isolar-se e fugir do contato social. Tais experiências, quando intensas, podem favorecer o aparecimento da depressão.” Diante deste quadro, a recomendação médica é de que seja interrompida a gravidez, através do procedimento da antecipação terapêutica do parto. Porém, os profissionais da saúde encontram uma barreira no exercício de sua profissão, tendo em vista que eles não podem agir livremente no que concerne ao procedimento, pois, de acordo com a lei brasileira, isso só é possível se a gestante obtiver uma autorização judicial. Sendo assim, os médicos e enfermeiros que estejam dando assistência a essa gestante podem ter seus atos considerados criminosos se, por força das circunstâncias, vierem a agir da forma que pensam ser mais benéfica para sua paciente. Com relação à atuação médica, a bioética estabelece quatro princípios que devem ser seguidos. São elas a não-maleficência, a justiça, a beneficência e a autonomia: A não-maleficência estabelece que a ação do médico deve sempre propiciar o menor prejuízo ao paciente, não prejudicando e nem provocando danos ou agravos à sua saúde; O princípio da justiça determina a imparcialidade como norteadora dos atos médicos, impedindo que aspectos sócio-culturais interfiram na relação médico-paciente; A beneficência estabelece a busca do bem maior na prática médica, determinando que suas ações incorporem a benevolência, maximizando os efeitos benéficos; E, por último, a autonomia que determina que as pessoas têm o direito de decidir com relação ao seu próprio corpo e vida, o que significa que todas as decisões médicas necessitam do aval do paciente; o médico torna-se, então, obrigado a dar todas as informações acerca de diagnósticos e possíveis tratamentos ao paciente. No ano de 1994, o Comitê para assuntos éticos da Reprodução Humana e Saúde da Mulher da FIGO (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia) estabeleceu um marco de referência ética para os tocoginecologistas, cujas resoluções foram: 1.    As mulheres tendem a ser vulneráveis por circunstâncias sociais, culturais e econômicas. As relações médico- paciente no passado, e os cuidados com as mesmas foram com frequência dominados pelo paternalismo de seus conselheiros; 2.    O princípio da autonomia enfatiza o importante papel que a mulher deve adotar na tomada de decisões com respeito aos cuidados de sua saúde. Os médicos deverão observar a vulnerabilidade feminina, solicitando expressamente sua escolha e respeitando suas opiniões; 3.    Quando seja solicitada decisão relativa a cuidados médicos , as mulheres deverão receber informação completa sobre os procedimentos alternativos disponíveis, incluindo os riscos e benefícios; 4.    Quando um médico não seja capaz ou não deseje praticar um ato por razões extra-médicas ou contrário aos ditames de sua consciência, deverá fazer todo o possível para oferecer uma adequada referência; 5.    Devido a natureza intimamente pessoal dos cuidados obstétricos e ginecológicos, surge a especial necessidade de proteger a confidenciabilidade da paciente; 6.    Além de oferecer os serviços médicos, os profissionais têm a responsabilidade de considerar o bem estar da mulher e sua satisfação psicológica, juntamente com seus cuidados ginecológicos e obstétricos; 7.    Ao se oferecer os cuidados de saúde à mulher, o princípio da justiça requer que todas sejam tratadas com igual consideração independentemente de sua situação sócio-econômica.  Tais determinações enfatizam a importância de considerar a mulher como agente de sua vontade, independentemente da situação de vulnerabilidade em que normalmente se encontra, estando o médico na posição de solicitar e respeitar sua escolha. Há também a preocupação com seu bem estar durante o tratamento, cabendo ao médico proporcionar isso a todo tempo, bem como a garantia de que as informações trocadas entre eles serão confidenciais. Outro aspecto interessante é a orientação para os casos em que o médico não se sente apto a realizar determinado ato por este ser contrário à sua ideologia ou qualquer tipo de crença que não tenha sua razão em fato médico. É estabelecido que caso isso ocorra é papel do médico dar referência de outro profissional. Tal orientação ressalta o fato de que, em caso de conflito ideológico médico-paciente, os interesses preponderantes são os da mulher. A posição da Igreja Católica em relação ao aborto Na sociedade contemporânea, relativamente nas questões ligadas à sexualidade e à ciência, a igreja católica revela-se conservadora. No Brasil, o órgão responsável pela manutenção dessa posição, tendo como alicerce os princípios e dogmas cristãos, é a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Trata-se de uma organização permanente que reúne os Bispos católicos do Brasil que, de acordo com o disposto no código de Direito Canônico, ´´ exercem conjuntamente certas funções pastorais em favor dos fiéis do seu território, a fim de promover o maior bem que a Igreja proporciona aos homens, principalmente em formas e modalidades de apostolado devidamente adaptadas às circunstâncias de tempo e lugar, de acordo com o direito"1 (Código de Direito Canônico. 447). Sob essa óptica de, defensora e promotora do bem estar do ser humano a CNBB, posiciona-se contrariamente à legalização da interrupção da gravidez em casos de anencefalia, tomando por base o conceito teológico de proteção ao embrião desde o momento  da concepção. Entende-se que, para a igreja, a fecundação do óvulo pelo espermatozóide inicia uma nova vida que, num processo contínuo e coordenado desenvolve uma nova individualidade humana, um novo ser humano. Nessa perspectiva, a igreja tem como entendimento que não há um momento em que se possa estabelecer o início da pessoa humana; ou já se é desde o início ou nunca será. Não existe um “mais pessoa” ou um “menos pessoa”, nem durante a gravidez nem durante a vida toda. Portanto, cada embrião humano deve ser respeitado como se  respeitam  todas as pessoas. Essa posição veio a ser reforçada com novos argumentos, logo após a proposição da ADPF 54, citada anteriormente. A respeito desta argüição, a CNBB voltou a reafirmar a sua posição, com base no argumento do pleno respeito à dignidade e à vida do ser humano, não importando o estágio de seu desenvolvimento ou a condição em que ele se encontra. Na acepção do organismo, o princípio fundamenta todos os demais direitos da pessoa, logo, configura-se como a base e a condição para a convivência social, digna, justa e solitária. A CNBB entende que a ADPF 54 nada mais é que um apelo à cultura da morte, configurando-se num menosprezo pela vida humana (CNBB, Pronunciamentos 2004-2006, pag 65). Entende que, na condição de representante dos valores cristãos, que fazem parte da formação cultural da sociedade e sendo o Brasil um país laico que respeita esses valores, a decisão geraria uma controvérsia jurídica à luz da doutrina cristã radicada no amor, na misericórdia e na preservação da vida. A posição contrária da CNBB em relação ao aborto anencéfalo tem cunho em  um único preceito: o direito de nascer. A entidade entende que o ser humano, independentemente de sua forma ou estágio, é pessoa humana e, no estágio em que estiver, não pode ser “coisificada” ou desqualificada. Entende-se que, independente da situação encontrada, todo ser humano (inclusive o feto anencéfalo), merece especial atenção e é dotado de uma essencial dignidade. Contudo, a entidade não se omite e m relação ao sofrimento da mãe. Conforme nota divulgada pela entidade, cujo pronunciador foi Dom Dimas Lara Barbosa, “esse sofrimento da gestante e da família sensibiliza todos, pois na acepção da entidade ninguém é indiferente a dor e a angústia”, porém entendem que “esse sofrimento não justifica nem autoriza o sacrifício da vida que se carrega no ventre, pois não será a antecipação da morte que livrará a mãe ou o feto de seus sofrimentos.”[16] Em suma, segundo o entendimento da CNBB, a coisificação do feto anencéfalo como algo sub-humano, ou que lhe atribua qualificações similares, faz lembrar o regime nazi-fascista ou daqueles que desprezam a pessoa humana.  Assim sendo, a CNBB, entende que "nenhuma legislação jamais poderá tornar lícito um ato que é intrinsecamente ilícito" e que, diante da ética "que proíbe a eliminação de um ser humano inocente", não se pode aceitar exceções. "Os fetos anencefálicos não são descartáveis".[17] Considerações Finais As patologias diante das quais seria permitida a interrupção da gravidez não devem ser catalogadas quando inseridas no ordenamento jurídico. Torna-se evidente que uma listagem dessa natureza é inviável. É preciso que o legislador tenha em mente que a vida é dinâmica e que, igualmente aos usos e costumes, a ciência e a tecnologia estão em constante evolução. O Direito não pode permanecer alheio ao desenvolvimento característico do pensamento social. Há uma evolução histórica do pensamento, da cultura, da moral e da ética na sociedade. A sociedade moderna é caracterizada por este grande fluxo de modificações e cabe ao Direito positivo evoluir de acordo com as necessidades sociais. “A lei não deve ser investigada somente em relação à época em que nasceu o preceito, mas sim tendo em conta o momento de sua aplicação”.[18] Por conseguinte, cabe então ao direito determinar certos conceitos, como o de nascituro, visto que as leis mais recentes (Lei de Biossegurança e as resoluções do CFM) acerca do tema não suprem esta demanda. Há a necessidade de sanar as dúvidas que pairam quando o assunto tratado é aborto e anomalias fetais. Esta abertura dada pela subjetividade da Lei acabar por atrair concepções morais, como a proferida pela CNBB, o que não cabe em um Estado Democrático de Direito desvinculado de uma religião em específico, e que abarca uma diversidade de opiniões oriundas de diferentes seguimentos sociais. Ter filhos não é, em momento algum, imposição do Estado ou da Igreja. Trata-se de questão de afeto, cumplicidade e responsabilidade de homens e mulheres. Não se trata de uma questão que deve ser imposta a quem quer que seja. Deve-se entender a situação de determinados casais que podem, no momento de maior dor, se beneficiar com a possibilidade de interromperem uma gravidez com uma determinada patologia grave. A sociedade atual enfrenta um problema que só pode ser resolvido com a utilização do bom senso.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-128/implicacoes-juridicas-do-aborto-anencefalico/
Adoção de embriões: proposta de solução a não instrumentalização de embriões viáveis excedentes na reprodução assistida
Neste artigo abordou-se o problema atual das clínicas de reprodução humana assistida: o destino dos embriões viáveis excedentes. Seu objetivo foi propor que o meio mais adequado seria a adoção destes embriões. O estudo procurou, por meio de pesquisas bibliográficas com ênfase no Direito Civil, na Bioética e no Biodireito, contextualizar a reprodução humana assistida. Após, abordou-se a falta de regulamentação jurídica da reprodução assistida, a qual até o momento existe somente no campo biomédico, com a resolução n. 2.013/2013 do CFM. Em seguida, mostrou-se a crítica existente acerca do destino dos embriões viáveis excedentes, propondo-se a adoção como forma de proteger a tutela da vida embrionária. Por fim, concluiu-se que ainda que se discuta se o embrião in vitro possui dignidade e personalidade jurídica, fato é que existe uma vida e integridade física a serem tuteladas, as quais são direitos fundamentais assegurados na Constituição brasileira de 1988.
Biodireito
1 INTRODUÇÃO No último século ocorreu um rápido avanço na medicina, principalmente no que tange ao desenvolvimento das novas técnicas de reprodução humana. As técnicas de reprodução humana assistida são os métodos aplicados para solucionar problemas de infertilidade com o fito de gerar um ser humano por meio da união de gametas masculinos e femininos de forma artificial. Em suma, seria a possibilidade de homens e mulheres terem um filho de forma não natural, ou seja, não concebido por meio da relação sexual em que outras terapêuticas tenham se revelado ineficazes ou consideradas inapropriadas. Segundo Gustavo Pereira Leite Ribeiro: “A reprodução assistida é o conjunto de técnicas que favorecem a fecundação humana, a partir da manipulação de gametas e embriões, objetivando principalmente combater a infertilidade e propiciando o nascimento de uma nova vida humana.” (RIBEIRO, 2002, p.286). Assim, a reprodução humana assistida ou RA consiste no emprego de técnicas médicas para que casais, homens ou mulheres, com problemas de infertilidade tenham a possibilidade de ter filhos. E uma destas possibilidades de procriação ocorre com a fertilização in vitro, técnica em que os gametas masculinos e femininos são unidos fora do corpo humano, originando o embrião. Ocorre que nesta técnica são criados vários embriões, no intuito de garantir o êxito do procedimento, tendo como resultado a gestação. 2 REGULAMENTAÇÃO DA RA: A RESOLUÇÃO N. 2.013/2013 DO CFM Apesar da RA ter mais de um século no Brasil, ainda não existe lei que a regulamente, ficando a cargo do Conselho Federal de Medicina seu regramento, considerando a importância da infertilidade humana como um problema de saúde e da necessidade de harmonizar o uso dessas técnicas com os princípios bioéticos. Segundo Débora Ciocci e Edson Borges Junior: “Assim, não havendo vedação legal específica, nem especificação de crime, são válidas todas as técnicas disponíveis para a resolução de problemas de infertilidade humana, aliás, meio legítimo de satisfazer o direito de todo ser humano de se reproduzir e se perpetuar, com suporte moral e sentimento de igualdade”. (OLIVEIRA; BORGES JUNIOR, 2000, p.17). Neste liame, passou a entrar em vigor a partir de 09 de maio de 2013, a Resolução n. 2.013/2013, atual dispositivo normativo médico que dispõe acerca das técnicas de RA, revogando a anterior Resolução n. 1.957/2010. Conforme o item 6 do Capítulo I da nova resolução: “6 – O número máximo de oócitos e embriões a serem transferidos para a receptora não pode ser superior a quatro. Quanto ao número de embriões a serem transferidos faz-se as seguintes recomendações: a) mulheres com até 35 anos: até 2 embriões; b) mulheres entre 36 e 39 anos: até 3 embriões; c) mulheres entre 40 e 50 anos: até 4 embriões; d) nas situações de doação de óvulos e embriões, considera-se a idade da doadora no momento da coleta dos óvulos.” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2013). Segundo Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald (2009), os embriões laboratoriais (embriões in vitro) são aqueles remanescentes de fertilização na proveta (embriões excedentários) ou que foram preparados para serem implantados em uma mulher, mas ainda não o foram (embriões pré-implantatórios). 3 DESTINO DOS EMBRIÕES VIÁVEIS EXCEDENTES: A ADOÇÃO COMO POSSÍVEL SOLUÇÃO Uma vez que somente alguns embriões serão implantados no útero, qual o destino a ser dado aos outros embriões? Neste sentido, aponta Jussara Meirelles: “Se somente alguns dos embriões disponíveis são transplantados, seja porque os outros não se desenvolveram suficientemente, seja porque não tenham sido transplantados apenas para evitar gravidez múltipla, a esses demais, denominados excedentes, é preciso que se dê algum destino (LEITE, 1995, p.161). O destino dos embriões “excedentes” constitui séria questão que assume contornos éticos, sociais, jurídicos […]”. (MEIRELLES, 2000, p.21-22). A Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3510/DF, proposta em 16 de maio de 2005, tratou do pedido de declaração de inconstitucionalidade do artigo 5º e §§ da Lei 11.105, de 24 de março de 2005[1], mais conhecida como a Lei de Biossegurança. Ao final, em 24 de abril de 2007, o STF, por maioria, julgou improcedente. O referido artigo e seus parágrafos autorizam a utilização de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia, obtidas de embriões humanos por fertilização in vitro, e não utilizados neste procedimento. Em linhas gerais, para que não ficassem armazenados por tempo indeterminado, sem destinação alguma, com esta lei, os embriões excedentes inviáveis[2] ou viáveis[3] congelados há três anos ou mais poderiam ter este fim, isto é, tornaram-se instrumentos, objetos de experiências biomédicas. Tem-se por temerária a decisão do STF, por apontar a instrumentalização da vida embrionária. O direito à vida e a sua proteção sempre foi objeto de preocupações da ciência contemporânea, considerando a roupagem do direito à vida como direito humano e de direito fundamental, resultando, daí, um bem jurídico tutelado constitucionalmente com implicações no conceito de pessoa humana, especialmente para o estabelecimento do início da mesma e sua proteção jurídica. Referido tema, envolve debates religiosos, éticos, biomédicos, além de jurídicos. Devido a sua polêmica, procura-se buscar estudos que possam trazer elucidações nas diversas áreas por trazer discussões a partir de posicionamentos e debates que comportam a proteção da vida embrionária no Estado Democrático de Direito. Apesar de o Código Civil de 2002 ter adotado a teoria natalista, considerando para início da personalidade o nascimento com vida, o embrião humano criado em laboratório possui especificidades que não o enquadra como nascituro. Referido código e mesmo o ordenamento jurídico brasileiro não buscou trazer até o momento os regramentos legais ao embrião in vitro, dada a sua especial peculiaridade. Neste sentido, ainda que o art. 5º da Lei de Biossegurança tenha sido declarado constitucional, sendo pessoa ou não, possuindo personalidade jurídica ou não, a adoção parece ser o destino mais correto para os embriões excedentários viáveis, a partir de uma análise constitucional civil. Ainda que possa ser discutida a dignidade de um embrião in vitro não implantado, existe uma vida em início de desenvolvimento, a qual, a priori, merece tutela pelo ordenamento jurídico brasileiro, visto ser um direito fundamental conferido pela Constituição de 1988.      Um ser fruto de um projeto familiar egoístico, em que somente um será escolhido em razão de outro, não deve ser tipificado como coisa e instrumento de fins terapêuticos ou de estudos.      Na falta de legislação específica que trate da adoção de embriões, por analogia, seria possível aplicar os regramentos do Estatuto da Criança e do Adolescente, que dispõe em seu art. 7º que a criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. Assim, propõe-se medida mais coerente com os princípios constitucionais e biojurídicos em garantir a integridade física destes embriões e à vida[4], não podendo embriões excedentes viáveis ter o mesmo destino que os inviávies, para o uso de pesquisa[5] e terapia com células-tronco e mesmo descarte, como já regulado pela Lei de Biossegurança, declarada constitucional pelo STF: “[…] o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana. O embrião referido na Lei de Biossegurança ("in vitro" apenas) não é uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova, porquanto lhe faltam possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem factibilidade como projeto de vida autônoma e irrepetível. O Direito infraconstitucional protege por modo variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos da vida humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum. O embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere a Constituição”. (BRASIL, 2010). Ao contrário, aponta Silma Mendes Berti que: “Admitir ser o embrião uma potencialidade de pessoa é aceitar que, entre o que é hoje e o homem e que ele será, no futuro, há uma distância a ser percorrida. O ser concebido deve ser visto, isto sim, como uma pessoa humana in fieri, ou pessoa humana com um potencial. Assim ele próprio sinalizará o reconhecimento de sua dignidade e a proteção de sua pessoa. O direito do embrião deve harmonizar-se com outros direitos, talvez menos fundamentais que a dignidade. Além do mais, é preciso ressaltar a impropriedade do postulado, para pensar que o caráter contínuo do desenvolvimento do fenômeno vital torna improvável o corte da vida, desde a concepção à morte, em categorias submetidas, cada uma delas, a um direito diferente […]”. (BERTI, 2008, P.90-91). É neste sentido que se deve reconhecer a necessidade da proteção jurídica aos embriões viáveis excedentes, no sentido de propor o destino adequado que lhes assegure o direito à vida e à integridade física. Jussara Meirelles defende que: “Sob esse aspecto de se destinar a terceiros os embriões que ultrapassaram a quantidade necessária à implantação, outra solução apontada é a adoção dos mesmos. Ao tempo que afasta o caráter de coisa daquele que seria objeto de negócio translativo gratuito, a possibilidade de adotar embriões aproxima-se das pessoas nascidas, outorgando àqueles tal qual a essas a proteção que deriva do procedimento adotivo”. (MEIRELLES, 2000, p.199). Desta forma, elege-se a adoção como meio para a possível solução ao não uso de embriões viáveis excedentes em pesquisas e terapias com células-tronco, deixando de serem meros objetos para garantir-lhes a proteção da vida e integridade física. Nestes termos, afirma Maria de Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves: “Isso não significa dizer, contudo, que o embrião é coisa. Embora, historicamente, o ordenamento civil tenha trabalhado com a dicotomia pessoa/coisa, isto é, considera os seres corpóreos ou como integrantes da categoria de pessoas em sentido jurídico, ou parte da categoria de bens, não podemos localizar os embriões nesta última categoria, pelo menos não dentro da categoria de bens formulada sobre os moldes dos códigos oitocentistas.” (SÁ; NAVES, 2011, p.127).      Todavia, entende o Conselho Federal de Medicina que a doação seria a forma de dispor dos embriões excedentes viáveis nos ditames do capítulo IV da Resolução n. 2.013 de 2013. Não se pactua com o CFM, pois a ideia de doação seria o mesmo que instrumentalizar os embriões em objeto de um contrato, violando sua dignidade e o respeito à vida já ali existente.      É o que entende Jussara Meirelles, para quem: “Ao se admitir ao embrião a natureza de ser humano, impõe-se reconhecer a necessidade de sua proteção jurídica, assegurando-lhe o direito à vida e o respeito à sua dignidade. Não se trata de fixar normas especiais sobre cada hipótese a ser solucionada (até porque o distanciamento com a realidade tão velozmente alterada pela evolução científica seria inevitável), mas de adequar as normas existentes no sentido de respeitar a dignidade e a vida dos seres embrionários em todos os desdobramentos fáticos oriundos do emprego das técnicas biocientíficas”. (MEIRELLES, 2000, p.177). 4 CONCLUSÃO Portanto, entende-se a adoção como meio para a possível solução ao destino de embriões viáveis excedentes oriundos de técnicas de reprodução assistida, de forma a garantir-lhes a proteção da vida e integridade física.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-128/adocao-de-embrioes-proposta-de-solucao-a-nao-instrumentalizacao-de-embrioes-viaveis-excedentes-na-reproducao-assistida/
Biodireito e bioética: a atuação do médico e os demais profissionais da saúde diante do caos do SUS
A saúde tem se destacado atualmente como um dos temas mais importantes para a preservação da espécie humana. Com novos vírus, bactérias e fungos se espalhando todos os dias pelo mundo e atingindo cada vez mais rápido contingentes diversos, não distinguindo entre ricos e pobres. Não é recente a luta do homem contra os males que assolam seu cotidiano. A globalização trás consigo inúmeros avanços quanto à proteção ao direito a saúde, visto que é tratada como direito fundamental em inúmeros Tratados Internacionais e Cartas Constitucionais espalhadas pelo planeta, no Brasil a Constituição Federal de 1988 é um exemplo. Com os novos avanços científicos e as regras de biodireito e bioética, porém, devem ser respeitados. Entretanto, problemas relacionados às falhas no Sistema Único de Saúde – SUS, que em muitas situações dificulta a atuação dos profissionais da saúde. É pensando nos acontecimentos recentes que o presente trabalho encontra suas bases, visando, acima de tudo o estudo da atual situação da saúde no país, assim como o respeito à dignidade humana.
Biodireito
Introdução A bioética traz a responsabilidade de haver respeito e tratamento digno ao paciente, que possui autonomia sobre o próprio corpo. A prática de atos que visassem trazer a cura para os males é antiga, datada desde a origem dos tempos. A saúde já foi tema de atuação de curandeiros, feiticeiros, religiosos, monarcas, entre outros, e hoje é dever daqueles que estudaram para tanto, ressaltando que, embora os anos de estudo sejam muitos, garantir a cura é algo ainda fora das possibilidades humanas, sendo possível apenas orientar o tratamento. Quando se está analisando a conduta do médico, temos que, em virtude da vida estar sempre em prevalência, havendo risco de vida, mesmo sem autorização do paciente, o profissional deve agir e tomar todas as medidas suficientes a fim de tentar amenizar o problema, conforme prevê o Código Penal, art. 146 § 3º, I. Certo é que, salvo caso de cirurgias estéticas, o profissional da saúde possui responsabilidade para com seu paciente apenas quanto a obrigação de meio, ou seja, é impossível prever e apontar certezas com relação a intervenção, tratamento, entre outros. A atuação dos profissionais da saúde, para que seja satisfatória, é essencial que exista estrutura, caso contrário, não adianta boa vontade, formação condizente e pacientes necessitados de atendimento, que ao voltarem para casa sem auxílio acabam por ter seus direitos fundamentais violados, dentre os quais, o direito à saúde, 1 O direito à saúde ao longo dos séculos O homem vem em luta desde os primórdios de sua existência em prol de melhorias para a sua saúde e consequentemente aumentar sua qualidade de vida. A globalização trouxe consigo as facilidades da vida contemporânea, entretanto a diminuição das distâncias também trouxe ameaças biológicas. Estado e cidadãos devem atuar conjuntamente a fim de obter melhorias na execução de políticas púbicas, principalmente quando se visa garantir uma melhor qualidade de vida a toda a população. Garantir a dignidade da pessoa humana é um dos mais buscados objetivos da República Federativa do Brasil e, embora a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios tenham obrigação pela efetividade do que esta expressa em lei, nem sempre podem ser responsabilizados, antes do judiciário intervir em uma suposta “omissão” do poder público devem ser analisados diversos elementos que serão estudados no presente trabalho, tendo em vista que a separação e a harmonia entre os três poderes deve vigorar. Mas então como se deve agir com o surgimento de uma nova doença, com a ineficácia de políticas públicas preventivas ou com a falta de recursos? Conforme Clotet (2014, p. 01): “O inquestionável progresso das ciências biológicas e biomédicas que altera os processos da medicina tradicional e que apresenta novidades insuspeitas. Quem acreditaria vinte anos atrás, que um ser humano pudesse ser concebido fora do corpo de uma mulher? Ou que duas senhoras reclamassem o direito à maternidade sobre o mesmo nené, por terem participado, uma e outra, da fecundação e gestação do mesmo? Ou que um ser humano pudesse ser mantido em um estado vegetativo irreversível por vários anos? Ou que um casal gerasse um filho com a finalidade precípua de ser doador de tecido medular para filha afetada de leucemia?” As doenças nascem e acompanham a humanidade, conforme Raeffray (2005, p. 23), “(…) as doenças emanavam do sobrenatural, porque fatalmente levavam à morte. Por esta razão, o único tratamento disponível era a magia, cujos rituais específicos espantavam os demônios.” Com as doenças aparecendo e contaminando milhares e, muitas vezes aniquilando vidas, como epidemias como a gripe espanhola e a peste bubônica, foi necessário que a ciência evoluísse e se aprimorasse, buscando meios de cura. Entretanto, da mesma forma que é possível diagnosticar doenças e indicar tratamentos, os profissionais da saúde já foram os principais atores diante de verdadeiras atrocidades. Um exemplo de atrocidade se valendo da justificativa de se estar fazendo ciência para violar sem autorização ou qualquer cuidado, o corpo humano foi na II Guerra Mundial, onde médicos nazistas realizaram diversas experiências com seres humanos tidos como inferiores nos campos de concentração. De acordo com Morgato (2011, p. 47), “logo após os julgamentos dos crimes praticados sob o regime nazista e o vazio ético que dominava a pesquisa científica após a Segunda Guerra Mundial, a Humanidade instituiu, visando proteger direitos, princípios universais, como a liberdade e a dignidade, bem como o bem-estar da pessoa humana, uma vez ter esta pleno direito sobre seu corpo e sua mente, as primeiras normas reguladoras da pesquisa com seres humanos”. Mas o que é de fato bioética? De acordo com Dall’Agnol (2005, p. 07), “se for levada em conta a origem da palavra, “bio-ética”, ela significa, simplesmente, a ética da vida”. Através da bioética é possível afirmar que a ciência visa encontrar o equilíbrio na proteção da vida, em todas as suas formas, seja humana, animal ou vegetal, como requisito básico para a prevalência da existência das espécies. Nos dizeres de Kant (2011, p. 58-59), “os seres cuja existência não assenta em nossa vontade, mas na natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, um valor meramente relativo, como meios, e por isso denominam-se coisas, ao passo que os seres racionais denominam-se pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, ou seja, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, portanto, nessa medida, limita todo o arbítrio (e é um objeto de respeito).” Ética e responsabilidade são essenciais quando o assunto envolve seres vivos, humanos ou não humanos. Jonas (2011, p. 77) aduz que: “A probabilidade de que experimentos desconhecidos tenham um resultado feliz ou infeliz, é, em geral, semelhante àquela em que se pode atingir ou errar o alvo: o acerto é apenas uma entre inúmeras alternativas, que na maior parte dos casos não passam, aliás, de tentativas fracassadas; embora, em questões menores, possamos nos permitir apostar muito, tendo em vista uma chance extremamente pequena de sucesso, em questões maiores arriscamos bem menos”. Assim, é essencial que haja responsabilidade, para com todas as formas de vida e, por que não, para com os elementos da natureza, posto que o biodieito e a bioética possuem a missão de garantir que a ciência vai de fato contribuir para o progresso da humanidade e não acabar com a vida no planeta. Uma alteração em um organismo mal sucedida pode gerar vírus, bactérias e outros seres destruidores, e ser responsável por extinguir uma ou todas as espécies conhecidas e desconhecidas que vivem no globo. 2.A proteção da vida A vida é requisito essencial para a efetivação de direitos, muito embora a dignidade humana possa ir muito além da existência humana, posto que o cadáver também tenha dignidade, uma vez que, sua memória deve ser preservada. A Constituição Federal aponta, em seu artigo 5º, caput, que a vida é um direito fundamental, garantido aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, e para tanto, aponta um rol imenso de direitos fundamentais, que visam a proteção da vida e a efetivação da dignidade humana. Acerca da dignidade humana, temos, conforme Bitencourt Neto (2010, p. 66), “Pode-se hoje dizer que a dignidade da pessoa humana, ideia-força do mundo contemporâneo, é uma qualidade inata de cada ser humano, cuja obrigação de respeito se pode qualificar como uma das mais relevantes conquistas históricas, independentemente de instituição formal pelo Direito, que reconhece pelo equivalente princípio fundamental.” A dignidade humana, embora idealizada desde tempos bastante remotos, apenas no século XX começou a ser de fato princípio e/ou norma internacional e nacional, na forma de dispositivo constitucional. Acerca dos direitos fundamentais, Sarlet (2011, p. 45) diz: “Desde o seu reconhecimento nas primeiras Constituições, os direitos fundamentais passaram por diversas transformações, tanto no que diz com seu conteúdo, quanto no que concerne à sua titularidade, eficácia e efetivação.” A vida humana é elemento inerente aos seres humanos, animais e vegetais, “As indagações sobre o vocábulo vida apontam para a sua derivação do grego bios ou da origem latina vita. Ao que parece a locução foi disseminada na Antiguidade pelos povos da Europa Ocidental, usando-se para identificar aquilo que possuía movimento” (ALARCÓN, 2004, p. 23). Para Loureiro (2009, p. 85), a vida é o primeiro de todos os direitos naturais do ser humano, e se vincula ao direito de nascer e de permanecer vivo, sendo a vida fonte primária de todos os outros direitos. A vida somente estará de fato protegida se houver dignidade, assim, Häberle (2009, p. 101), “A dignidade humana constitui a “base” do Estado constitucional como tipo, expressando as suas premissas antropológico-culturais. Os Poderes Constituintes, “de mãos dadas” com a jurisprudência e a ciência, e mediante uma atuação também criativa, desenvolveram e construíram estes fundamentos. Acompanhar e seguir as fases do crescimento cultural e, com isso, também as dimensões da dignidade humana em permanente processo de evolução, é tarefa de todos: do Poder Constituinte até o cidadão, resultando no direito do cidadão à democracia”. Cabe a todos os profissionais, sociedade de forma geral e ao ente estatal a proteção da vida em todas as suas formas. Segundo Sarlet (2008, p. 28), “(…) há quem aponte para o fato de que a dignidade da pessoa não deve ser considerada exclusivamente como algo inerente à natureza humana (no sentido de uma qualidade inata pura e simplesmente), isto na medida em que a dignidade possui também um sentido cultural, sendo fruto do trabalho de diversas gerações e da humanidade em seu todo, razão pela qual as dimensões natural e cultural da dignidade da pessoa se complementam e integram mutuamente, guardando, além disso, relação direta com o que se poderá designar de dimensão prestacional (ou positiva) da dignidade.” Estado que não protege a vida e efetiva a dignidade humana perde sua razão de existir. 3. A atuação do profissional A medicina, como o direito, estão intimamente ligados à vida humana, e como tal devem se adequar, evoluir e se modificar, a fim de atender da melhor forma possível os anseios sociais. De acordo com Raeffray (2005, p. 26), médicos já foram vistos como filósofos, curandeiros, entre outros, assim, “os médicos gregos eram, na verdade, filósofos naturais, os quais procuravam entender as relações entre o homem e a natureza que os circundava, desenvolvendo, portanto, concepções e explicações naturalistas para as doenças.” Os profissionais da saúde devem respeitar e informar o paciente acerca de seu estado de saúde, bem como quais os procedimentos que serão utilizados e, caso o paciente se recuse a receber o todo ou parte da intervenção, deve ter sua vontade respeitada pela família e o profissional. Segundo Clotet (2014, p. 02), “A socialização do atendimento médico. O reconhecimento e o exercício do direito de todo cidadão a ser atendido na sua saúde, seja na emergência de hospitais de pronto-socorro, hospitais conveniados, públicos ou particulares, multiplica e generaliza o relacionamento entre pacientes e profissionais da saúde, exigindo o reconhecimento dos direitos e deveres de ambas as partes. O conflito tornou-se comum nesses centros. A imagem do médico que conhecia seu paciente e cuidava dele anos a fio, já não é mais comum. Novos padrões de conduta presidem as relações e decisões na medicina contemporânea. De outro lado, o aprimoramento das diversas formas da medicina não pode ficar restrito ao ambiente individual. Atinge também a comunidade, implicando, portanto, numa resposta comunitária e, em conseqüência, política, quer em nível nacional ou internacional. Essa democratização da medicina deve concretizar-se na hora da fixação do percentual a ser destinado à saúde nos orçamentos municipais, estaduais ou federais.” Afirma Dobrowolski, (2002, p. 134): “O Direito deve ser capaz de estabilizar as relações sociais e permitir a manutenção do próprio vínculo social, através da constância e previsibilidade de sua manifestação, correspondendo, desta forma, às expectativas dos indivíduos em relação à proteção jurídica. Esta, no entanto, não se reduz à regularidade do fenômeno jurídico, pois também se refere ao conteúdo do Direito e sua capacidade de se ajustar às situações concretas particulares”. É imprescindível que todo profissional médico atue em conformidade com o Código de Ética Médica, seja no atendimento para com o paciente ou mesmo na realização de pesquisas científicas. De acordo com o CRMRJ (2006, p. 27), “A Resolução nº 196/96 estabelece que todo o projeto de pesquisa que envolva direta ou indiretamente seres humanos deve ter seus aspectos éticos apreciados por um Comitê de Ética em Pesquisa e que toda instituição onde essas pesquisas são realizadas deve constituir um Comitê, seja um hospital, uma instituição de ensino e pesquisa etc”. Essa obrigatoriedade é essencial para que seja garantido que não haverá violação da dignidade humana no decorrer da pesquisa, que, embora seja essencial para a descoberta de novos medicamentos, não pode ser justificativa para excessos. Importante ressaltar ainda que, de acordo com a Resolução 1789/06, do Conselho Federal de Medicina, “Art. 1º Os Conselhos de Medicina poderão, por decisão mínima de 11 (onze) votos favoráveis nos Conselhos Regionais, de 15 (quinze) no Conselho Federal e com parecer fundamentado do conselheiro sindicante, interditar cautelarmente o exercício profissional de médico cuja ação ou omissão, decorrentes de sua profissão, esteja notoriamente prejudicando gravemente a população, ou na iminência de fazê-lo.” Assim sendo, em caso de prejuízo para o paciente, o médico pode, inclusive, ser impedido de exercer a sua função, posto que a vida deve ser preservada, bem como a dignidade humana do paciente. Para que tal procedimento ocorra, é imprescindível que haja prova inequívoca de que a atuação do profissional causou dano, e possa ocorrer prejuízo irreparável ou de difícil reparação, caso haja a continuidade do exercício profissional. Com relação a reabilitação do profissional, aponta a Resolução 2.023/13 que: “Art. 61. Decorridos 8 (oito) anos após o cumprimento da pena e sem que tenha sofrido qualquer outra penalidade ético-disciplinar, poderá o médico requerer sua reabilitação ao Conselho Regional de Medicina onde está inscrito, com a retirada dos apontamentos referentes a condenações anteriores. Parágrafo único. Exclui-se da concessão do benefício do caput deste artigo o médico punido com a pena de cassação do exercício profissional.” Todo profissional é regido por normas legais, bem como as Resoluções dos Conselhos Federal e Regionais de Medicina, a fim de evitar violações e abusos no atendimento para com o paciente. A exemplo, temos a Resolução do Conselho Federal de Medicina 1931/09, que traz o  Código de Ética Médica. De acordo com o Código de Ética Médica, é vedado ao médico: causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência, delegar a outros profissionais atos ou atribuições exclusivos da profissão médica, deixar de assumir responsabilidade sobre procedimento médico que indicou ou do qual participou, ainda que solicitado ou consentido pelo paciente ou por seu representante legal, ser omisso em casos de urgência e emergência, que possam vir a causar danos ao paciente, entre outros. Os profissionais devem seguir suas vocações de forma a garantir segurança para a população e não levar medo e descrédito. Assim, aponta Jonas (2011, p. 84) que: “(…) logo, arriscar aquilo que é meu significa sempre arriscar também algo que pertence a outro e sobre o qual, a rigor, não tenho nenhum direito”.  Enfim, caso o profissional venha a causar algum dano ao paciente, desde que haja imprudência, imperícia ou negligência, deverá responder pelo dano, salvo em caso de relação celetista com empresas, como no caso de hospitais, posto que a responsabilidade objetiva destes últimos prevalece sobre a responsabilidade do profissional. Conclusão É essencial que a atuação dos profissionais da área da saúde, não apenas humana atuem de forma responsável, de forma a garantir que todos os meios disponíveis de tratamento serão utilizados. Entretanto, é salutar destacar que não cabe apenas aos médicos a responsabilidade para com a efetivação do direito à saúde, posto que estarão os profissionais impedidos de agir se não contarem com meios suficientes que possam garantir uma prestação de serviços de qualidade. Os médicos, desde tempos remotos, possuem a responsabilidade de promover a cura, entretanto, é importante que fique bem claro que são incapazes de realizarem milagres, embora a medicina já conte com inimagináveis avanços, o que se tem disponível na atualidade são tratamentos diversos, com chances altas de cura. Doenças como o câncer ainda desafiam a medicina e levam milhares à óbito todos os anos, entretanto, outras doenças como tuberculose, hanseníase e outras tantas possuem tratamentos com chances muito grandes de restabelecimento do organismo. O direito e a medicina são ciências muito antigas, datam desde a origem dos tempos e seus estudos possibilitaram a evolução e o aprimoramento social. Com os constantes avanços, porém, foi necessário que o direito estivesse cada dia mais próximo do atuar médico, a fim de evitar violações de direitos de pacientes, ou mesmo tentar impedir atuações irresponsáveis, capazes de extinguir a raça humana e todas as outras formas de vida que existem no planeta. O biodireito é uma ramificação do direito que, juntamente com outras ciências, dentre elas a medicina, busca encontrar soluções para contrabalancear problemas oriundos dos conflitos entre a necessidade de evolução científica e a atuação e intervenção humana, que deve acontecer sem que haja violação de direitos fundamentais. Para que uma atuação médica ocorra, é imprescindível que haja o respeito aos ditames legais, bem como às normas nacionais e internacionais de Conselhos de Medicina, sob pena de o profissional sofrer sérias punições. Com as manipulações genéticas, hoje é possível tornar real as cenas mais inusitadas dos filmes, entretanto, ainda não se sabe ao certo quais as consequências a médio e longo prazo disso. Enfim, hoje é latente a necessidade de se ter responsabilidade não apenas com o presente, mas sim com o futuro, a fim de que possa de fato existir.
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Analise da ADI 3510/DF de 2008 – Células Tronco
O presente trabalho tem como finalidade a analise da ADI 3510, que levou a um novo entendimento  da utilização das células troncos embrionárias na Ação Direta de Inconstitucionalidade, teve como Relator Ministro Ayres Brito.
Biodireito
Introdução O presente trabalho foi apresentado a UBA – Universidade de Buenos Aires – Faculdade de Direito sobre orientação do Ilustre Doutor Renato Rabbi-Baldi Cabanillas, professor de TEORÍA DEL DERECHO, teve como finalidade a analise da ADI 3510, Ação Direta de Inconstitucionalidade teve como Relator Ministro Ayres Brito, o qual em seu voto prolatou a Ementa: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DE BIOSSEGURANÇA. IMPUGNAÇÃO EM BLOCO DO ART. 5º DA LEI Nº 11.105, DE 24 DE MARÇO DE 2005 (LEI DE BIOSSEGURANÇA). PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO DIREITO À VIDA. CONSITUCIONALIDADE DO USO DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS EM PESQUISAS CIENTÍFICAS PARA FINS TERAPÊUTICOS. DESCARACTERIZAÇÃO DO ABORTO. NORMAS CONSTITUCIONAIS CONFORMADORAS DO DIREITO FUNDAMENTAL A UMA VIDA DIGNA, QUE PASSA PELO DIREITO À SAÚDE E AO PLANEJAMENTO FAMILIAR. DESCABIMENTO DE UTILIZAÇÃO DA TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA ADITAR À LEI DE BIOSSEGURANÇA CONTROLES DESNECESSÁRIOS QUE IMPLICAM RESTRIÇÕES ÀS PESQUISAS E TERAPIAS POR ELA VISADAS. IMPROCEDÊNCIA TOTAL DA AÇÃO. I – O CONHECIMENTO CIENTÍFICO, A CONCEITUAÇÃO JURÍDICA DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS E SEUS REFLEXOS NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DA LEI DE BIOSSEGURANÇA”. Abriu-se recentemente uma discussão sobre a lei de biossegurança que permite a pesquisa científica com células-tronco embrionárias. Alguns defendem a inconstitucionalidade do art. 5º desta lei porque consideram que o embrião tem vida, enquanto parte das comunidades científica e jurídica garantem que os embriões no estágio que serão utilizados ainda não podem ser vistos como seres vivos. A Igreja Católica tem usado todo seu poder para impedir o avanço das pesquisas, argumentando que ao considerar este artigo constitucional estar-se-á desrespeitando a vida humana e abrindo uma brecha para a legalização do aborto. Nesse cenário tem sido polêmica a discussão em volta da biossegurança, da engenharia genética e do uso de suas técnicas sendo que o primeiro texto legal a regular esses termos no Brasil foi a Lei 8.974, de 1995, revogada através da Lei 11.105, de 2005, esta no intuito de normatizar melhor o assunto. A Lei 11.105/05 mal tinha entrado em vigor, quando o Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles, ainda em 2005, propôs junto ao STF a ADI 3510/600, conhecida como sendo a “ADI das Células-Tronco”, alegando assim a inconstitucionalidade do art. 5° argumentando que os dispositivos dessa lei afrontariam os preceitos constitucionais no tocante ao direito à vida e dignidade humana. A repercutida decisão do Supremo Tribunal foi somente proferida em 29 de maio de 2008, quando os ministros concluíram pela constitucionalidade do art. 5° e seus parágrafos onde esperava-se que, como produto dessa decisão da Corte, pudesse ser apresentado um parâmetro sólido que favorecesse dirimir as controvérsias que circundam a matéria. Enfim, seria possível ter as devidas respostas para as perguntas que já há tempos permeavam verdadeiramente a problemática dos embriões. Contudo, a partir da apreciação dos votos dos 11 Ministros, analisou-se que muitos pontos não foram realmente tratados de maneira pacífica, o que mostra que ainda existe abertura para debates. ADI 3510/600 deixa a entender que a ciência tem evoluído e é capaz de curar o que antes se dizia incurável. Assim como surgem novas doenças devido à evolução da humanidade, ao desmatamento e as constantes mutações da natureza, da mesma forma deve-se poder empreender soluções mais eficazes com o aprendizado acumulado, e que não eram possíveis em épocas anteriores. Com o grande desenvolvimento tecnológico e as mais variadas descobertas envolvendo o ser humano, passou a ser uma necessidade a instituição de mecanismos que deem proteção àqueles que possam ser atingidos pelas pesquisas, impedindo as atrocidades cometidas no passado em nome da ciência. Para aqueles que elaboraram, e também, para os que aprovaram a lei de biossegurança, ela é uma forma de se realizar estas pesquisas, mas com limites que impeçam a ciência de avançar sobre qualquer pretexto. 1. A ação direta de inconstitucionalidade nº. 3.510/05 Em março de 2005 foi aprovada a Lei 11.105/05, conhecida como Lei de Biossegurança, que inicialmente, trataria de atividades envolvendo organismos geneticamente modificados e seus derivados. No entanto, ao longo da tramitação do projeto na Câmara, este recebeu artigos relativos à clonagem humana e à obtenção de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapêuticos. A inclusão destes artigos gerou muita discussão em alguns setores da sociedade, tendo como resultado a proibição da clonagem humana, mas permitindo as pesquisas com células-tronco (OLIVEIRA, 2007). Em maio do mesmo ano, o Procurador Geral da República propôs uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 3.510), justamente contra o artigo que tratava da aprovação das pesquisas com células-tronco embrionárias para fins terapêuticos. Partindo da premissa de que o embrião é um ser humano, pois no seu entendimento, a vida começa na fecundação, o autor da ação alegou que o art. 5º da referida lei afrontava os princípios constitucionais de inviolabilidade do direito a vida e da dignidade da pessoa humana. Na ação direta de inconstitucionalidade, o Procurador Geral da República “faz referência positiva à pesquisa com células-tronco adultas”, além de citar vários doutrinadores e cientistas que tem a sua concepção a respeito do início da vida, demonstrando assim as fortes divergências que cercam o assunto (OLIVEIRA, 2007). Para uma melhor visualização do problema, destaca-se que a lei de biossegurança permite a realização de pesquisas com células-tronco embrionárias, exigindo, no entanto, que: a) os embriões tenham resultado de tratamentos de fertilização in vitro (art. 5º, caput); b) os embriões sejam inviáveis (art. 5º, I) ou que não tenham sido implantados no respectivo procedimento de fertilização, estando congelados há mais de três anos (art. 5º, II); c) os genitores dêem seu consentimento (art. 5º, § 1º); d) a pesquisa seja aprovada pelo comitê de ética da instituição (art. 5º, § 2º) (BARROSO, 2008). Barroso (2008) menciona ainda que a lei proíbe a comercialização de embriões, células ou tecidos, a clonagem humana e a engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano. Importante destacar que a lei também proíbe a produção de embriões apenas para pesquisa, só podem ser utilizados os resultantes das fertilizações in vitro, que seriam descartados pelas clínicas de fertilização. Após um longo debate, que envolveu o meio jurídico e científico, a ação direita de inconstitucionalidade nº. 3510 foi julgada improcedente pelo Supremo Tribunal Federal (STF), porém a discussão está longe de chegar a um consenso. O relator, Ministro Carlos Ayres Britto, em seu voto, considerou vida humana possuidora de capacidade civil, e, portanto, sujeito de direito, aquela que ocorre entre o nascimento com vida e a morte cerebral. E mais: “[…] que a escolha feita pela Lei de Biossegurança não significou um desprezo ou desapreço pelo embrião in vitro, menos ainda um frio assassinato, porém uma mais firme disposição para encurtar caminhos que possam levar à superação do infortúnio alheio.” O voto do relator foi acompanhado pela maioria dos ministros, no entanto, cinco deles tentaram dar a determinados artigos da lei uma interpretação conforme, são eles o Ministro Menezes de Direito, Ministro Ricardo Lewandowski, Ministro Eros Grau, Ministro César Peluso e Ministro Gilmar Mendes, contudo restaram vencidos (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2008). Para melhor compreensão dos elementos que envolvem a pesquisa com células-tronco embrionárias e a polêmica que se criou ao seu redor, faz-se necessário a obtenção de conceitos pertinentes ao ramo da biologia, sobretudo no que diz respeito à reprodução humana e à biotecnologia. 2 Utilização de células-tronco Células-tronco são células primárias que tem a capacidade de transformar-se em vários tipos de células especializadas. Estão presentes no organismo humano desde a fase embrionária até a sua morte, e são responsáveis, além da formação do embrião, pela renovação e manutenção de todas as células deste organismo (ROCHA, 2008). Oliveira (2007) ao conceituá-las, aborda duas características atribuídas a estas células: a) auto-conservação ilimitada, podendo reproduzir-se durante muito tempo sem diferenciar-se; b) capacidade de produzir outras células-tronco de transição, com limitado poder de proliferação, das quais derivam uma variedade de linhas de células bastante diferenciadas, quais sejam as células musculares, hemáticas, nervosas, dentre outras. As pesquisas com essas células datam da década de 60, mas apenas na década de 70 começaram a tomar corpo. Elas podem ser extraídas do cordão umbilical, do organismo adulto ou do embrião (ROCHA, 2008). De acordo com a autora, as células encontradas no cordão umbilical e também na placenta estão sendo largamente utilizadas, principalmente em crianças portadoras da doença de Gunther, as síndromes de Hunter, de Hurler e a leucemia linfócita aguda (ROCHA, 2008). As células-tronco adultas são células especializadas, usadas inicialmente para substituir células mortas ou enfermas dos órgãos de onde se originam. Atualmente, as pesquisas têm avançado no sentido da utilização destas mesmas células na recuperação de outros órgãos, que não os originais, como por exemplo, as encontradas no sangue, na medula óssea, no cérebro, nos vasos sangüíneo, músculos, intestinos, fígado, pâncreas, sistema nervoso e pele (ROCHA, 2008). As células-tronco embrionárias, por sua vez, estão presentes nos embriões, e tem a capacidade de se transformar em qualquer órgão do corpo humano. Quanto à capacidade de produzir outras células, as células-tronco podem ser totipotentes, pluripotentes, multipotentes e unipotentes (ROCHA, 2008). As células-tronco totipotentes são aquelas que podem produzir todas as células embrionárias e extra-embrionárias, ou seja, são capazes de desenvolver um organismo completo (ROCHA, 2008). A manipulação destas células tornou-se possível graças às técnicas de reprodução assistida, mas especificamente da fertilização in vitro, que consiste “na retirada de óvulo da mulher, na sua fecundação em proveta, com sêmen do marido ou de outro homem, e na introdução do embrião no útero da mulher ou no de outra.” (ROCHA, 2008, p. 46) Os embriões excedentes desta técnica de reprodução, obedecidos os critérios estipulados pela lei de biossegurança, sãos os utilizados nas pesquisas com fins terapêuticos. Para a obtenção das células-tronco necessárias a esta pesquisa, é preciso que se instaure o seguinte procedimento: primeiro, há o desenvolvimento do embrião até o estágio do blastocisto, quatro dias após a concepção, para então retirar as células da cavidade interna, o embrioblasto; a seguir são realizadas culturas dessas células, sobre uma camada de nutrientes e finalmente são feitas “repetidas culturas das colônias de células até a formação de linhas de células capazes de se multiplicar indefinidamente.” (OLIVEIRA, 2007, p. 78) As pesquisas com as células-tronco embrionárias têm por objetivo encontrar a cura de doenças como “as atrofias espinhais progressivas, as distrofias musculares, as ataxias, a esclerose lateral amiotrófica, a esclerose múltipla, as neuropatias e as doenças de neurônio motor, a diabetes, o mal de Parkinson”, entre outras (BARROSO, 2008, p. 7). 3. Constitucionalidade formal Uma lei é formalmente constitucional quando obedece os procedimentos prescritos na Constituição para sua elaboração, e, posterior sanção. O conjunto de atos previstos na Constituição para a criação de leis denomina-se processo legislativo, composto por cinco fases: iniciativa legislativa, emendas, votação, sanção e veto, e por fim, promulgação e publicação (SILVA, 2006). A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece em seu art. 64 que “os projetos de lei de iniciativa do Presidente da República terão início na Câmara dos Deputados.” A lei de biossegurança é uma lei ordinária, resultado de um projeto de lei de iniciativa do Presidente da República que foi encaminhado a Câmara dos Deputados em 03.10.03. Inicialmente elaborada para regulamentar organismos geneticamente modificados e seus derivados, recebeu durante sua tramitação na Câmara mais de trezentas sugestões de emendas, no entanto, a “proposta do Ministro da Coordenação Política, Aldo Rebelo, permitindo a pesquisa de células-tronco embrionárias, foi engavetada.” (OLIVEIRA, 2007, p. 79) A Câmara dos Deputados aprovou o texto de lei em que constava a proibição do uso de células-tronco embrionárias para pesquisa terapêutica, contudo, ao chegar no Senado, “muitos senadores mostraram-se favoráveis a derrubar esta proibição”, sendo apresentada emenda para liberação da pesquisa pelo senador Tasso Jereissati […] (OLIVEIRA, 2007, p. 80). No mês de outubro de 2004, o projeto de lei voltou a Câmara, após aprovação no Senado, contudo o texto aprovado permitia apenas a utilização “para pesquisa de embriões congelados a mais de três anos em clínicas de fertilização”, a utilização terapêutica estava vedada. […] (OLIVEIRA, 2007, p. 80). Quando a matéria seria votada novamente na Câmara, em março de 2005, “o Ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos, acompanhado do médico Dráuzio Varela e da geneticista Mayana Zats”, com o auxílio de organizações não governamentais que também tinham interesse nestas pesquisas, encontraram-se com o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, no intuito de esclarecê-lo quanto aos benefícios da liberação da pesquisa com células-tronco com fins terapêuticos. Finalmente, em 24 de março de 2005 a lei foi sancionada e publicada em 28.03.05 (OLIVEIRA, 2007). A suprema corte atua como intérprete da razão pública, impondo o respeito aos consensos mínimos consubstanciados na Constituição, mas respeitando a deliberação política majoritária legítima. Pois bem: no caso específico, a manifestação do Congresso foi inequívoca, mediante votação expressiva na Câmara dos deputados (85% dos parlamentares presentes votaram favoravelmente) e no Senado Federal (53 votos favoráveis contra). A lei em questão recebeu corretamente o status residual de ordinária, por seu conteúdo não estar mencionado na Constituição como de atribuição de qualquer norma específica, como lei complementar ou emenda constitucional, por exemplo. Quanto à legitimidade de iniciativa do projeto de lei, de acordo com o art. 61 caput do texto constitucional o Presidente da Republica está apto para tal função. O projeto de lei passou em diversas comissões, sendo realizadas, inclusive, “sessões conjuntas da Comissão de Assuntos Econômicos, da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, e da Comissão de Assuntos Sociais”. Nestas comissões foram ouvidos vários especialistas a fim de dar subsídios para a elaboração dos pareceres. A referida lei foi votada nas duas casas, com amplo debate no plenário, por maioria simples, conforme previsto no art. 47 da CRFB/88, disposição esta também residual, visto não ser previsto quorum especial (maioria absoluta) para lei ordinária. Portanto, da análise dos dados apresentados, verifica-se que a Lei nº. 11.105/2005 é formalmente constitucional, uma vez que não apresenta qualquer vício de procedimento entre a iniciativa do projeto de lei e sua sanção. 4. Constitucionalidade material Verificada a constitucionalidade formal da Lei de Biossegurança, passar-se-á a análise da sua constitucionalidade material, mais especificamente, a constitucionalidade material do art. 5º e §§ desta, atacado pela ADI 3510. Ao falar sobre o princípio fundamental da constitucionalidade dos atos normativos, Canotilho (2003, p. 890) assevera: “Os actos normativos só estarão conformes com a constituição quando não violem o sistema formal, constitucionalmente estabelecido, da produção desses actos, e quando não contrariem, positiva ou negativamente, os parâmetros materiais plasmados nas regras ou princípios constitucionais.” A tese do Procurador Geral da República aduz que a vida se inicia com a fecundação (penetração do espermatozóide no óvulo) e que, portanto, a utilização de embriões congelados para pesquisa com fins terapêuticos, e consequente destruição destes embriões, violaria dois pilares do ordenamento jurídico brasileiro, o direito à vida e a dignidade da pessoa humana. O primeiro ponto a ser ponderado, em oposição aos argumentos apresentados na ação, é sobre quando se inicia a vida. O direito brasileiro estabelece que o fim da vida ocorre com a morte cerebral, por conseguinte, adotando-se a mesma linha de pensamento, o início da vida se daria com pelo menos algum rudimento de atividade cerebral, que acontece após 14º dia depois da fecundação. Os embriões, contudo, são congelados “no estágio do zigoto unicelular, (ii) clivados (2 a 8 células) ou (iii) em blastocisto (a partir do 5º dia do desenvolvimento in vitro) e nunca depois do 14º dia”, portanto sem qualquer atividade cerebral (BARROSO, 2008). Uma análise do código civil demonstra que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres”, sendo pessoa aquele que nasce com vida, assegurando todavia o direito do nascituro, que para muitos civilistas é aquele que tem o nascimento como “fato certo” e deve “estar em desenvolvimento no útero da mãe”, como já demonstrado (BARROSO, 2008). Logo, se o embrião congelado não é pessoa, pois não nasce e também não é nascituro, visto que não foi implantado no útero materno, inconcebível dar-lhe os mesmos direitos assegurados ao homem. A esse respeito reflete Vieira (2007, p. 24): “Reconhecer que o embrião tem vida significa que estejamos dispostos a equipará-lo moral e juridicamente a uma pessoa. Seria como comparar uma semente de jacarandá encontrada no chão da floresta com uma árvore centenária que protegemos com nossa legislação ambiental. A dor de ver uma semente sendo comida por um passarinho não é equiparável àquela de ver uma árvore derrubada por um raio […]” Vale lembrar que aqui não se fala de embriões com expectativa de vida, mas de embriões inviáveis que serão descartados pelas clínicas de fertilização, nem tão pouco, que embriões não devam ser protegidos pelo Estado, o que se defende é que esta proteção não deve ser a mesma dada ao ser humano (VIEIRA, 2007). No dizer de Barroso (2008, p. 9-10), existem inúmeras concepções a respeito do início da vida, baseadas em vários critérios, sem que haja um consenso, ocorrendo o que “a filosofia moderna denomina de desacordo moral razoável” e salienta: “Em situações como essa, o papel do Estado deve ser o de assegurar o exercício da autonomia privada, de respeitar a valoração ética de cada um, sem a imposição externa de condutas imperativas. Foi exatamente isso que o fez a Lei nº. 11.105/2005 ao exigir, em qualquer caso de pesquisa com células-tronco, “o consentimento dos genitores” […] o Congresso Nacional assegurou o direito de cada um decidir, de acordo com seus valores pessoais.” Observa-se que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 não traz em nenhum de seus artigos o momento em que a vida se inicia, pois o constituinte foi silente em relação a este aspecto. Neste diapasão, a Ministra Ellen Gracie, em seu voto sobre a inconstitucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança, diz não ser tarefa do Supremo Tribunal Federal “estabelecer conceitos que já não estejam explícita ou implicitamente plasmados na Constituição Federal”, e ainda que: A introdução no ordenamento jurídico pátrio de qualquer dos vários marcos propostos pela Ciência deverá ser um exclusivo exercício de opção legislativa, passível, obviamente, de controle quanto a sua conformidade com a Carta de 1988(voto da Min. Ellen Gracie na Adi 3510, 2008). O segundo aspecto a ser analisado diz respeito à violação ou não da dignidade da pessoa humana. Pois bem, se as ponderações sobre o direito à vida levaram ao estabelecimento da premissa de que o embrião não é pessoa, consequentemente não há que se falar em dignidade da pessoa humana. Todavia, em relação a este princípio do ordenamento pátrio, cabem algumas considerações. O embrião congelado possui a potencialidade de se tornar um ser humano, portanto, mesmo que não comparado à pessoa, deve receber um tratamento diferenciado, é o que defende Barroso, citando Barbosa (2008, p. 16): “[…] se é certo que o concebido não é ‘coisa’, atribuir ao embrião pré-implantatório natureza de pessoa ou personalidade seria uma demasia, visto que poderá permanecer indefinidamente como uma potencialidade. (…) No momento, parece que o mais razoável, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, seja conferir ao embrião humano uma ‘tutela particular’, desvinculada dos conceitos existentes, mas que impeça, de modo eficaz, sua instrumentalização, dando-lhe, enfim, proteção jurídica condizente, se não com a condição de indivíduo pertencente à espécie humana, com o respeito devido a um ser que não pode ser coisificado.” Esse tratamento diferenciado é levado em conta na Lei de Biossegurança, que proíbe a produção de embriões exclusivamente para pesquisa. São utilizados para retirada das células-tronco apenas aqueles oriundos do processo de reprodução in vitro, e que por algum fator, alheio à pesquisa, tornaram-se inviáveis à reprodução. Em outras palavras, seu potencial de se transformar em um ser humano não é negligenciado em nome da pesquisa científica (BARROSO, 2008). Ainda em relação ao tema da dignidade da pessoa humana, Vieira (2007, p. 24) lembra o respeito que se deve ter em relação à dignidade das pessoas que podem ser beneficiadas por esta pesquisa: “O terceiro aspecto preocupante do argumento levado a cabo pelo ex- Procurador-Geral da República é a sua omissão em relação à dignidade e à própria vida de milhões de pessoas humanas que sofrem doenças graves e letais, como Parkinson, diabetes, doenças coronárias ou lesões de medula, que poderiam ser beneficiadas com o progresso nas pesquisas com célulastronco.” Ao elevar o embrião inviável à condição de ser humano, o sofrimento de milhares de seres humanos reais está sendo relegado à mais absoluta irrelevância. E essa não parece ser uma escolha moralmente adequada por quem luta em favor da vida. Um estudo um pouco mais abrangente da Lei de Biossegurança em relação à Constituição deixa transparecer outros princípios relacionados a presente discussão, e que confirmariam a constitucionalidade material do dispositivo legal, como por exemplo, o princípio da liberdade e o princípio da paternidade responsável. O direito constitucional à liberdade, para seu entendimento, requer a elucidação de alguns conceitos. Liberdade pressupõe agir de forma correta, dentro dos limites éticos estabelecidos por determinada sociedade. Logo, liberdade impõe obrigações, ou seja, esses limites éticos não permitem, por exemplo, que para que se exerça a liberdade possa invadir a seara de outra pessoa do grupo social. E ainda, de acordo com José Afonso da Silva (2005, p. 232), “Liberdade opõe-se a autoritarismo, a deformação da autoridade; não, porém, a autoridade legítima”. Então, tendo em mente que o ordenamento jurídico permite que as famílias se utilizem das técnicas de fertilização assistida, seria lícito que este mesmo ordenamento podasse a liberdade destas famílias de dizerem qual o destino do material genético proveniente destes procedimentos? Ao responder-se afirmativamente a esta pergunta, estar-se-ia indo de encontro não somente ao princípio da liberdade, mas também ao da paternidade responsável, que está diretamente atrelado à ideia de planejamento familiar. (voto do Ministro Ayres de Britto na ADI 3510, 2008) Isto posto, entende-se que o art. 5º e seus parágrafos, da Lei nº. 11.105/2005, conhecida como Lei de Biossegurança é materialmente constitucional, por não estar em conflito com nenhum dispositivo da Constituição. Pelo contrário, a regulação legal das pesquisas biomédicas e biotecnológicas, traz consigo segurança jurídica, em um terreno onde a linha entre o ético e o não ético é tênue. Aliás, nas palavras de Barroso (2008, p. 14), “até o advento da Lei nº. 11.105/2005, não havia qualquer disciplina jurídica para esta entidade: embrião produzido em laboratório, mediante processo de reprodução assistida”. Em um Estado laico, não se pode permitir que a interpretação constitucional seja pautada por crenças estranhas ao seu conteúdo. Não há qualquer previsão constitucional que entenda o embrião como pessoa sujeito de direitos e protegido pelo Estado da mesma forma que as pessoas nascidas com vida, ou mesmo ao nascituro. Portanto, o art. 5º da Lei de Biossegurança, ao invés de ferir o direito à vida e a dignidade da pessoa humana, na verdade contribui para que estes direitos sejam garantidos a um maior número de pessoas, na medida em que, o resultado das pesquisas por ele permitidas, pode modificar completamente a qualidade de vida de uma parcela de brasileiros que hoje sofrem com diversas síndromes ou com doenças degenerativas.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-128/analise-da-adi-3510-df-de-2008-celulas-tronco/
Bioética e biodireito: desafios de uma nova vida
O tema que esta pesquisa se propõe a estudar é sobre o papel que o Biodireito pode desempenhar no processo de normatização da conduta humana, relacionada com a tutela dos direitos fundamentais, particularmente quanto à inviolabilidade do direito à vida, a dignidade da pessoa humana frente às inovações proporcionadas pela biotecnologia. Como também, a importância da hermenêutica constitucional na resolução de seus conflitos internos e as questões éticas concernentes a pesquisas com seres humanos, visto que esse tema no Brasil, ainda é muito recente.
Biodireito
Abstract: The theme this research aims to study is the role that the Biolaw can play in the regulation process of human conduct, related to the protection of fundamental rights, particularly regarding the inviolability of the right to life, human dignity in the face of innovations offered by biotechnology. As well as the importance of constitutional hermeneutics in resolving their internal conflicts and ethical issues concerning human research, since this issue in Brazil, is still very recent. Keywords: Biolaw, Bioethics, Human Being, Biotechnology. Sumário: Considerações Iniciais; Biodireito e seu papel educador e interventor nos estudos em biociências; Pesquisas com Seres Humanos; Considerações Finais; Referência Bibliográficas CONSIDERAÇÕES INICIAIS Em uma época em que muito se discute sobre a evolução da ciência e da tecnologia tem-se nesse estudo o objetivo de adequar a ciência jurídica a essas revoluções biotecnológicas que proporcionam uma grande revolução nas questões que envolvem o dia-a-dia do ser humano. Para que esse não se torne um frequente objeto de pesquisa de forma deliberada é necessário protege-lo, desde o momento de sua concepção com a fecundação do espermatozoide, até o fim de sua vida, como também, o seu corpo na condição de cadáver. A relevância desta pesquisa está na modificação interpretativa da realidade fática, no que diz respeito à aplicação da biotecnologia à vida humana, revalorizando a. Para isso, é necessária uma investigação jurídica que possa dar apoio à compreensão dos perigos ocasionados pelo desenvolvimento desordenado das biociências, em que, torna-se indispensável à normatização da conduta humana frente a essas tendências do mundo moderno. Este Estudo terá como base a pesquisa bibliográfica, no qual utilizará como referencial teórico uma interface entre as inovações propostas pela biotecnologia e o Biodireito, adentrando em aspectos que visão a preservação dos direitos fundamentais, através de uma interpretação constitucional. Biomedicina é a ciência que conduz estudos e pesquisas no campo de interface entre biologia e medicina, voltada para a pesquisa das doenças humanas, seus fatores ambientais e ecoepidemiológicos, com intuito de encontrar sua causa, mecanismo, prevenção, diagnóstico e tratamento. A fundamentação das normas, atinentes à pesquisa com seres humanos, insere-se no grande problema contemporâneo de fundamentação ética no pensamento pós metafísico. Biodireito e seu papel educador e interventor nos estudos em biociências Com o novo rumo tomado pelas discussões, baseadas na evolução do Biodireito, houve a necessidade de se buscar bases interpretativas que fornecessem subsídios jurídicos à resolução de conflitos entre as normas biojurídicas. Sendo assim, torna-se necessário fazer uma breve explanação sobre esse tema, visto que envolve inúmeros aspectos relacionados à vida humana, na qual cada um apresenta um construto teórico próprio, mas que mantém em comum o mesmo objetivo: a busca pela qualidade de vida.  Com base nos direitos fundamentais sobre a vida, não se pode permitir que os avanços proporcionados pela Biomedicina ultrapassem os limites propostos pelos Princípios Constitucionais que são: da Dignidade da Pessoa Humana e da Inviolabilidade do Direito à Vida[1].       Como princípios norteadores do Estado Democrático Brasileiro, esses são garantidos pela Constituição Federal de 1988, que servem como fundamentos para a legitimação das manipulações sobre a vida humana. A interpretação correta destes princípios pode resultar no estancamento das divergências, conflitos e entre outras problemáticas que possam surgir na sociedade, como também, uma possibilidade de legislação para o Biodireito. Seguindo o próprio amadurecimento do Biodireito surgiu a teoria da “Bioconstituição” ou “Biodireito Constitucional”. Nessa esfera, José Alfredo de Oliveira Baracho apresenta uma explicação plausível sobre a nova teoria constitucional: “O conjunto de normas (princípios e regras) formal ou materialmente constitucionais, que tem como objeto as ações ou omissões do Estado ou de entidade privada, com base na tutela da vida, na identidade e integridade das pessoas, na saúde do ser humano atual e futuro, tendo em vista também as relações com a Biomedicina”[2]. Assim, essa nova concepção do constitucionalismo, que busca uma adaptação com o mundo científico contemporâneo apresenta como objetivo, estruturar o sistema constitucional com as novas técnicas biocientíficas de modo a preservar os direitos fundamentais[3], os direitos humanos, a cidadania, a dignidade humana e a vida do ser humano. Desse modo, a Bioconstituição serve para auxiliar na interpretação do regramento constitucional nacional, viabilizando a solução de problemas enfrentados, principalmente, pela Bioética e pelo Biodireito.  No centro dos estudos e fundamentos jurídicos encontra-se o ser humano, sendo esse a finalidade para todo o Direito. Em parte, sobrepõe-se o interesse coletivo em detrimento ao individual, mas, nesse caso o homem não deixa de ser o objeto principal do Direito, mas sim, está se buscando atingir o bem comum para a sociedade. Nesse sentido, as normas nacionais pertinentes a esse tema se fundamentam em Resoluções internacionais que emanaram declarações e diretrizes para procedimentos envolvendo a manipulação da espécie humana em um cenário de pesquisa, são referência: o Código de Nuremberg (1947), a Declaração de Direitos dos Homens (1948), a Declaração de Helsique (1964 e suas versões posteriores de 1975, 1983 e 1989), seguindo pala própria Constituição federal Brasileira de 1988, entre outras. Uma dessas diretrizes a se chamar atenção é a obrigatoriedade imposta de existir um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que atua como um mecanismo que busca legitimar a ética da pesquisa, pois trata-se de um documento que será entregue ao sujeito da pesquisa, no qual ali lhe será apontado todas as informações pertinentes a pesquisa que será desenvolvida, como os ricos, as vantagens, o objetivo, a forma que será feita, se vai haver coletas de material genético, o tempo de duração, os possíveis efeitos colaterais, a assistência médica destinada aos sujeitos. Assim, o Sujeito objeto de uma pesquisa, ao tomar ciência dos termos daquela pesquisa ira exercer sua autonomia privada e decidir se aceita ou não participara daquela pesquisa, pois através do seu ato de autonomia de vontade ele firmara um negócio jurídico com o pesquisador. Ressaltando que para as pesquisas que envolvem crianças e /ou sujeitos incapazes, os primeiros além de terem que ser representados por seus responsáveis deve se observar os preceitos da Lei 8069/1990, que trata do Estatuto da Criança e Adolescente. Nesse sentido o ser humano deve antes de tudo ser tratado com dignidade, sendo respeitado os seus direitos fundamentais, principalmente aquele que protege e/ou tutela a vida humana. Nesse sentido, a doutrina aponta como um princípio constitucional pertinente a garantia dessa tutela o da Dignidade da pessoa humana A dignidade humana é um valor supremo que contempla todos os direitos fundamentais do homem. A pessoa por ser humano já detém o seu direito de ser considerado digno. Nesses ditames, Ingo Wolfgang Sarlet, a define como: “A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todos e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”[4] O autor passa o fundamento de que o princípio da dignidade humana age como um suporte institucional no Direito, devendo ser reconhecido através de sua base, valor e conteúdo. Assim, esse princípio está contido no ordenamento jurídico como uma espécie de norma, que serve para orientar quando há necessidade de aplicação do Direito a um caso fático. Nesse sentido, o ser humano como pessoa deverá ser tratado com dignidade, e que jamais poderá sofrer qualquer tipo de sub-julgamento de valor, tanto pelo Estado quanto pela comunidade no qual está inserido. O direito, sem sombra de dúvida, deve aceitar as inovações científicas desde que essas, não coloquem em risco à natureza e a dignidade do homem, não admitindo o uso de qualquer conduta que venha a reduzir o ser humano em caráter de coisa. Como mostra Maria Helena Diniz: “Urge a imposição de limites à moderna medicina, reconhecendo-se que a respeito ao ser humano em todas as suas fases evolutivas (antes do nascer, no nascimento, no viver, no sofrer e no morrer) só é alcançado se se estiver atento à dignidade humana.”[5] Nessa esfera a Bioética tem o dever de nortear valores éticos a cerca da fase inicial e do final da vida, das técnicas de reprodução humana, da seleção de sexo, da engenharia genética, da reprodução assistida, etc., considerando a dignidade humana como fator ético que, a prática da biomedicina está condicionada e obrigada a respeitar. As investigações biomédicas que não asseguram a dignidade humana, sobre a máscara do progresso científico, devem ser repudiadas por desobedecerem aos preceitos ético-jurídicos dos Direitos Fundamentais e Humanos. Como se pode constatar, a manipulação das ciências em relação à vida exige total atenção, visto que traz à humanidade benefícios incontestáveis, mas, em contrapartida, poderá apresentar riscos potencialmente perigosos e imprescindíveis. Nessas condições, os profissionais que tratam da saúde deverão cumprir rigorosamente os fundamentos éticos que são regidos pelo exercício de seus trabalhos, observando os limites impostos pelo respeito à vida, a integridade, e a dignidade  da pessoa humana.   Já no que toca ao direito a vida propriamente dita, que  está assegurado na Constituição Federal de 1988, no art. 5º, caput que diz: ”Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, […].” Como se pode perceber a vida é um bem jurídico, tutelado como direito fundamental básico, sendo considerado pela constituição um direito indisponível. Tendo efeito erga omnes, por sua própria natureza, não sendo conferido a ninguém o direito de assim desobedecê-lo. Com o advento da Lei nº. 11.105/2005, arte. 6º, 24, 25, 27, IV em conformidade com o art. 2º do Código Civil Brasileiro e, arts. 124 a 128 do Código Penal Brasileiro, a vida humana está amparada juridicamente deste o momento da fecundação natural ou artificial do óvulo pelo espermatozoide. Conforme mostra Maria Helena Diniz: “O direito à vida integra-se à pessoa até o seu óbito, abrangendo o direito de nascer, o de continuar vivo e o de subsistência, mediante trabalho honesto (CF, art. 7º) ou prestação de alimentos (CF. arts. 5º, LXVII, e 209), pouco importando que seja idosa (CF. art. 230), nascituro, criança, adolescente (CF. art. 227), portadora de anomalia física ou psíquica (CF, arts. 203, IV, 227, § 1º, II), que esteja em coma ou que haja manutenção do estado vital por meio de processo mecânico.”[6] Assim, constata-se que o ser humano é dotado de seu direito à vida desde o embrião, findando este, apenas com sua morte[7]. Cumpre ressaltar que cada ser humano é constituído pelo seu próprio direito que se manifesta através da vida, nessa concepção individual, na qual começa quanto se processa a fecundação do óvulo pelo espermatozoide. Nesse estágio atual da embriologia é possível constatar o momento que o embrião se torna viável fora do útero materno. Sérgio Ferraz[8] afirma: “Uma coisa é indiscutível: desde o zigoto, o que se tem é vida, diferente do espermatozoide e do óvulo; vida diferente do pai e da mãe, mas vida humana, se pai e mãe são humanos. Pré-embrionária no início, embrionária, após, mas vida humana. Em suma, desde a concepção há vida humana nascente, a ser tutelada”. Em vista do exposto, o direito reconhece como pessoa, “todo o indivíduo nascido com vida”.  E é com base nos dados científicos acerca do início da vida que o Pacto de São José da Costa Rica[9] afirma que a vida deve ser protegida desde a concepção. Cabe ressaltar que embora não dissesse expressamente isso seria óbvio, pois, a lei deve expressar a verdade das coisas, e se vale da ciência para formular seus preceitos. Ademais, reconhecendo que a vida começa na concepção. Ainda nesse sentido, o Princípio do Primado Direito à Vida, assegura que a vida tem prioridade sobre qualquer coisa, prevalecendo assim, sobre todos os outros princípios ou normas do ordenamento jurídico. Nesse sentido, é pertinente dizer que quando houver qualquer tipo de conflito entre os dois direitos, deve ser preservado o primado direito mais importante. Essa perspectiva expressa bem como o Direito, a partir de suas concepções fundamentais, atua decisivamente nas questões que são consideradas relevantes em cada etapa do desenvolvimento da vida do ser humano. Cabe salientar que o ser humano não pode dispor de sua própria vida, pois ele não vive para si, mas sim, para cumprir uma função na sociedade, sendo então, ineficaz qualquer manifestação de vontade que possa por em risco esse direito. Ademais, qualquer projeto de lei que vise interromper ou excluir esse direito será tido como inconstitucional, não sendo se quer suscetível de emenda, nos termos do art. 60, § 4º da Constituição Federal. Assim, o Direito à Vida constitui a fonte principal para todos os direitos percebidos pelo ser humano. Desde o direito de estar vivo e permanecer vivo, consistindo na prerrogativa que este venha a ser interrompido apenas pela morte espontânea e inevitável. Portanto, pode-se dizer que o direito à vida, está intimamente ligado ao conceito de dignidade, que deve igualmente ser reconhecida, respeitada e protegida. A adequada interpretação Bioconstitucional dos princípios e normas que regem tanto a Constituição Federal, quanto a Bioética e o Biodireito, vedam a prática da Biomedicina que coloque em risco à vida digna do ser humano. Isto é, qualquer ato que leve o indivíduo a morte, ou que coloque em risco sua integridade física, não importando se houve desconhecimento da técnica aplicada, como também dos meios de sua aplicação. Desse modo, a partir dessa interpretação o ser humano não será tratado como coisa, não estará a mercê de situações que buscam lucros financeiros, através de atos degradantes e desumanos. Assim, qualquer experiência, pesquisa ou investigação que vem de encontro a tal disposição deverão ser interrompidas e consequentemente extintas. Pesquisas com Seres Humanos As novas tecnologias ligadas à prática da Biomedicina provocam inquietações na sociedade, colocando em xeque alguns fatores éticos, desencadeando assim, uma série de problemas. Tais inquietações surgem com a possibilidade da ocorrência de abusos na manipulação de estudos científicos, cujo ser humano seja o objeto de pesquisa. Uma investigação científica nessa área tem início com as hipóteses desenvolvidas sobre uma determinada situação. Seguindo então para a fase laboratorial, na qual as fontes de experimento dos estudos são os animais. Entretanto, para que os resultados possam ser declarados como úteis há a necessidade de ocorrer à realização de pesquisas em seres humanos. Fato este último, que mesmo com todas as precauções necessária causa riscos, imprevisíveis aos participantes. Nesse sentido Brauner (2002) enfatiza que as pesquisas realizadas nos campos de concentração da Alemanha foram responsáveis pela morte de milhares de pessoas, que foram submetidas a diversas experiência, sem que fosse tomado o mínimo de cuidado com suas vidas. Foi então que segundo a autora, “que se conheceu a capacidade do homem de cometer atrocidades, utilizando o ser humano como cobaia de laboratório. A maior dúvida quanto a esse tema gira em torno da pergunta: Os benefícios do conhecimento humano e o possível prolongamento da vida compensam a exposição do homem a esse risco? Léo Pessini, diz que antes de se entrar no estudo dessa problemática deve-se compreender a concepção de “pesquisa”. O autor faz o seguinte comentário: “O termo Pesquisa se refere a um tipo de atividade estruturada para desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizável. Esse conhecimento consiste em teorias, princípios ou relações, ou acúmulo de informações em que se baseiam que podem ser corroborados por métodos científicos de observação e inferência aceitos.”[10] A pesquisa em seres humanos nesta ótica, pode se utilizar de observação ou investigação física, química ou psicológica, em que os registros poderão servir como base à Biomedicina. Podendo esta, ser estendida para o ambiente social ao  está inserido o indivíduo da pesquisa. É importante salientar que as pesquisas com seres humanos devem ser realizadas de acordo com os princípios da bioética, observando em particular o respeito pelas pessoas[11], a beneficência e a Justiça. Diante disso, vale ressaltar a importância do acompanhamento de profissionais altamente capacitados para esse fim, de modo a não colocar em risco a vida humana.  Todos esses procedimentos deverão ser administrados por um protocolo de intenções  e  avaliados por um ou mais comitês adequadamente constituídos. Como exemplo, pode-se citar as vacinas, que antes de serem disponibilizadas para uso devem ser testadas. Entende-se, assim, que as pesquisas, que usam o homem como instrumento, devem obedecer aos limites da ética, levando em conta as consequências sociais.  Como já citado um documento importante nesse gerenciamento das pesquisas com humanos foi o Código de Noremberger, que segundo Brauner (202) foi o marco  inicial na luta pela proibição de experiência abusivas com seres humanos, estabelecendo ainda que o ser humano não pode ser considerado um simples objeto para a ciência. No Brasil, o primeiro documento sobre as normas de pesquisa com humanos foi a Resolução nº 1 de Saúde em 1988, daí em diante surgiram outros documentos que tutelavam o mesmo tema, sempre apontando que ao sujeito objeto de pesquisa deve ser informado os objetivos, método, os benefícios e os possíveis efeitos colaterais que poderão surgir para aquele que vierem a participar da pesquisa. Outro documento marco, foi a Resolução Nacional de Saúde nº 196 de 1996, que programou a criação de comitês de ética que deveriam ser instalados em instituições de pesquisas que fará a análise de pedidos de liberação de pesquisas com humanos diante de uma comissão de ética. Assim, a figura da Bioética na pesquisa busca o equilíbrio entre o avanço da ciência e os possíveis danos e transgressões dos dogmas essenciais à ética. A atualização dessa Resolução, a nº 466/2012 também veio a disciplinar as questões de ordem ética suscitadas pelo progresso e pelo avanço da ciência e da tecnologia, enraizados em todas as áreas do conhecimento humano, apontando que todo o progresso e seu avanço devem sempre respeitar a dignidade, a liberdade e a autonomia do ser humano. Além de disciplinar questões que envolvem a pesquisa em reprodução humana, que envolvem seres humanos, protocolos da pesquisa, relatórios, a garantia de que o material e os dados obtidos na pesquisa sejam utilizados, exclusivamente para a finalidade prevista no seu protocolo, ou conforme o consentimento do participante. Outra questão importante que conforme essa resolução todos os participantes ao final do estudo, por parte do patrocinador, acesso gratuito e por tempo indeterminado, aos melhores métodos, profiláticos, diagnósticos e terapêuticos que se demonstraram eficazes. Ademais a resolução faz referencia aos requisitos a serem analisados pelos comitês de ética, para que uma pesquisa seja autorizada a ser realizada, no que toca as investigações científicas com seres humanos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com os resultados desses trabalhos, percebe se que ainda há muito espaço para discussões e estudos dos problemas que envolvem a normatização da conduta humana frente a inovações da biotecnologia, uma vez que, há poucos estudos sobre esse tema.  Assim, pretendeu-se aqui fazer uma breve abordagem dessas novas propostas teóricas e ao mesmo tempo buscar respostas para algumas questões que ainda permanecem abertas e mostrar que as investigações cientificas a partir do século XXI merecem uma melhor atenção por parte das ciências jurídicas. Nesse ínterim, a Bioética e o Biodireito, surgem como aporte para disciplinar as relações de exploração que se dão em nome da ciência. Portanto, faz-se necessário normatizar essas relações de pesquisas científicas que visão macular a razão sob a justificativa do progresso científico. A edição de leis, no entanto, não são o suficiente para disciplinar essas questões, é necessário que haja também uma conscientização por parte dos pesquisadores e da sociedade em geral na defesa e no respeito à dignidade da pessoa humana e o direito à vida.
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A bioética latino-americana: história e distinções ante a diversidade cultural e a religiosidade
A presente pesquisa aborda a temática da bioética latino-americana numa perspectiva histórica. Pretende-se evidenciar a importância dos elementos diversidade cultural e religiosidade na trajetória e construção dessa nova área do conhecimento na América Latina. Para tanto, utiliza-se o método histórico e comparativo, por meio da pesquisa bibliográfica e documental, com a leitura e fichamento crítico dos textos, ao buscar traçar paralelos entre a evolução da bioética estadunidense e o desenvolvimento desse saber nos países latino-americanos.
Biodireito
INTRODUÇÃO O século XXI marcado pelo fenômeno da globalização, com o desenvolvimento das tecnologias vive um paradoxo. De um lado os avanços e novidades a partir da tecnociência a revolucionar os mais diversos setores relacionados à vida, e de outro as consequências advindas do uso da própria tecnologia quando gera malefícios a humanidade. Diante disso, aparece a Bioética, enquanto área específica do conhecimento a nos instigar à reflexão e a postura ética. A bioética na América Latina desenvolve-se num “ethos muito original”, em sua peculiaridade mais flexível e ampla ante as realidades políticas e sociais do continente. Logo, a bioética inicialmente vai apresentar-se com características a partir do humanismo médico norte-americano, ao que se soma o caráter inclusivo de novos temas e problemas e a presença de movimento social, o que se configura com os diversos grupos sociais, profissionais e minorias na realidade latino-americana[1]. No sentido de compreensão acerca das perspectivas atuais dos estudos da bioética no continente latino-americano, que o presente trabalho procura evidenciar alguns elementos consideráveis da história e formação desse campo de estudo na região, com destaque para a questão da diversidade cultural e da religiosidade nesse processo, apontando também para algumas distinções da bioética na América Latina em relação à desenvolvida pelos pioneiros na América do Norte e na Europa. 1 O SURGIMENTO DA BIOÉTICA O nascimento do termo e o conceito de bioética na literatura remetem à publicação de Van Rensselaer Potter, de Bioethics: Bridge to the Future no ano de 1970, onde a caracteriza como a ciência da sobrevivência[2], bem como a fundação do Instituto Kennedy de Ética na Universidade de Georgtown, no ano de 1971 por André Hellegers, com ajuda do Sargento Shriver e da família Kennedy[3], com os novos estudos na área de reprodução humana[4]. No entanto, novas pesquisas apontam para Fritz Jahr, um pastor protestante, filósofo e educador na Alemanha, que em 1927 na publicação do artigo Bio-Ethics: A Review of the Ethical Relationships of Humans to Animals and Plants, ou seja, Bio-ética: uma revisão do relacionamento ético dos humanos com os animais e plantas, no periódico científico alemão Kosmos[5]. No referido artigo, Jahr propõe um “imperativo biético”, onde defende o respeito a todo o ser vivo essencialmente como um fim em si mesmo e o consequente tratamento deste, como tal[6]. A origem da bioética[7] norte-americana possui estreita relação com os dilemas éticos criados em função dos grandes avanços e desenvolvimento da medicina. Aparecem nesse contexto, temas relacionados à pesquisa em seres humanos, o uso humano da tecnologia, dúvidas sobre a morte e o morrer (eis que surge o conceito de morte encefálica) e transplantes, entre outros. Porém, das questões originais da bioética houve um alargamento nesse campo de estudo, com a inclusão de temas sociais, como saúde pública, alocação de recursos em saúde, saúde da mulher, questão populacional e ecologia, desenvolvimento sustentável, são exemplos[8]. Nesse sentido, importa referir que a contribuição de Potter[9] acompanha o desenvolvimento dos estudos da bioética, além do momento inicial. Em 1970, caracteriza a Biética como ciência da sobrevivência, qualificando-a nessa fase, como Ponte, “no sentido de estabelecer uma interface entre as ciências e as humanidades que garantiria a possibilidade do futuro”. Depois, ao final da década de 1980, enfatizando a característica interdisciplinar e abrangente da Bioética, identifica-a como global, no sentido de enfatizar a importância acerca das discussões e reflexões da medicina e da saúde, mas de forma a ampliar o estudo aos novos desafios ambientais. E ainda, em 1998, redefine a Bioética como uma Biética profunda, ou seja, “a nova ciência ética, que combina humildade, responsabilidade e uma competência interdisciplinar, intercultural, que potencializa o senso de humanidade” [10]. Assim, a partir de tais ideias desenvolveu-se a bioética na América Latina, onde autores como James Drane, Pedro Laín Entralgo, Diego Garcia, Alfonso Lhano, José A. Mainetti e Fernando Lolas, entre outros passaram a enfrentar tais discussões em relação a uma realidade bem diversa, marcada pela desigualdade social, o que “deve ter criado algum tipo de conflito moral e seguramente foi muito claro para os que lideravam a reflexão latino-americana naquela época que uma bioética latino americana não poderia ser um simples reflexo da bioética feita nos Estados Unidos”[11]. É o que passamos a verificar a seguir. 2 A BIOÉTICA NA AMÉRICA LATINA Pode-se dizer que os estudos acerca da Bioética na América Latina datam da década de 1970, com José Alberto Mainetti, na Argentina. Embora, apenas em 1994 por ocasião do Segundo Congresso Mundial da International Association of Bioethics (IAB), em Buenos Aires, que a Bioética cria raízes definitivas na região, esclarece Volnei Garrafa[12]. É importante salientar que a partir desse momento, de maneira mais articulada surgem os grupos de pesquisa, disciplinas nas Universidades sobre o tema, eventos científicos, revistas acadêmicas especializadas, entre outras iniciativas. Dessa forma, o surgimento da Bioética na América Latina, em sua fase inicial, apresenta a tensão, entre a perspectiva de uma bioética norte-americana centrada na autonomia e nos direitos individuais do paciente em detrimento de uma atitude mais paternalista, advinda da visão católico-romana na prática médica, presente na América Latina. Mas, “a busca de um ‘humanismo médico’ […] alimentou a reflexão da prática social da medicina” (2007, p. 330), influenciando os trabalhos pioneiros nos Estados Unidos de Tristan Engelhardt Jr. e Edmund Pelegrino. E o que veio a influenciar a bioética latino-americana, destacando-se três traços característicos da bioética latino-americana nascente: o caráter teórico vinculado às humanidades, o caráter inclusivo à participação de grupo de temas e problemas e por fim, o caráter de movimento social[13]. Nos demais países, como no caso da Bolívia aparecem questões como a respeito da heterogeneidade do que seria uma bioética nacional ou latino-americana. No Chile, com o Programa Regional de Bioética criado a partir de 1994 com a Organização Pan-Americana da Saúde, organiza-se e prevê várias atividades e publicações. Aliás, no Chile as instituições católicas logo se interessaram pela bioética, bem como aliá-la às normas católicas, visto ser um país fortemente católico. Nesse cenário, destaca-se que “cada uma das nações latino-americanas é muito subdividida social e culturalmente pelos recursos econômicos, apesar de apreciáveis esforços humanitários” (LEPARGNEUR, 2007, p. 351)[14]. Numa linha de desenvolvimento da bioética nos países no continente podemos considerar: Argentina por ocasião do II Congresso Mundial de Bioética em 1994, Colômbia, Peru, México e o Brasil, ocasião em que hospedou o 1º Congresso latino-americano de bioética em 1998 e o II Congresso Mundial de bioética em 2002 no Distrito Federal. Além disso, o Chile a partir da Organização Pan Americana de Saúde juntamente com a atuação da principal Universidade do país[15]. Então, na reflexão acerca da bioética América Latina num primeiro momento, como no caso da Colômbia, emerge a discussão para além dos direitos dos pacientes, entrelaçada com a questão de autonomia e beneficência. Por sua vez, outras questões sobre justiça sanitária demonstraram-se prejudicadas ante a ênfase excessiva no principialismo, numa discussão deslocada do contexto das realidades do mundo em desenvolvimento e das relações internacionais[16]. Em síntese, a bioética latino-americana demonstrou-se desde as primeiras reflexões, inclinada às questões globais, mas que no desafiante contexto latino enseja ir além da invocação dos ideais morais, sendo necessário atentar ao contexto ético-político e ao significado das temáticas problematizadas para proposições que superem o “ethos liberal norte-americano”[17].  2.1 O CONTEXTO LATINO-AMERICANO: DIVERSIDADE CULTURAL E RELIGIOSIDADE A tradição médica humanista e as condições sociais de países periféricos marcam o desenvolvimento da bioética na América Latina, distinguindo-a da norte-americana. Dessa forma, a realidade da América Latina “exige uma perspectiva de ética social com preocupação com o bem comum, justiça e equidade antes que em direitos individuais e virtudes pessoais”, onde a necessidade diante da pobreza é de “equidade na alocação de recursos e distribuição de serviços de saúde”[18]. A diversidade cultural e a religiosidade são elementos presentes na América Latina e que a distinguem. A história dos povos latino-americanos desde a colonização marcou-se pelos valores católicos cristãos, diferenciando-se do pluralismo característico da cultura norte-americana.  De acordo com Edmundo Pellegrino, “três questões nervurais que a bioética terá que enfrentar no futuro”: resolver a diversidade de opiniões sobre o que é a bioética e seu campo de abrangência; relacionar os vários modelos de bioética, sendo possível falar em bioéticas diante da pluralidade de visões bioéticas; o lugar da religião e da bioética teológica em debates e temas públicos (como aborto, por exemplo)[19]. 3 ENTRE PARALELOS E PERSPECTIVAS IMPORTANTES DA BIOÉTICA LATINO-AMERICANA Na origem e formação dos estudos acerca da bioética norte-americana afirmou-se que a tecnologia médica desencadeou o desenvolvimento da bioética clínica. De igual maneira, isso ocorre também na formação da bioética na América Latina. De acordo com Pessini, na fase inicial dos estudos nos Estados Unidos, as perguntas repetiam-se em torno do uso humano de determinada nova tecnologia, como o uso ou a retiradas de aparelhos em pacientes críticos, a aceitação ou não do consentimento informado do paciente[20]. Em situação adversa, as questões na América Latina não vão estar no uso da tecnologia médica, mas sim quanto aos destinatários desse acesso. Pois, em determinados países da região, a existência de tecnologias e centros de cuidado médico avançados resulta na evidência de questões relacionadas à discriminação e injustiça da assistência médica, no tocante ao acesso a ela. Assim, “um forte saber social qualifica a bioética latino-americana”, com destaque para conceitos culturais fortes, como “justiça, equidade e solidariedade [que] deverão ocupar na bioética latino-americana, um lugar similar ao princípio da autonomia nos EUA” [21]. Assim, a América Latina desde a colonização convive com a pobreza e a exclusão no âmbito social, o que implica em pensar: “Uma bioética pensada a nível “macro” (sociedade) precisa ser proposta como alternativa à tradição anglo-americana de uma bioética elaborada a nível “micro” (solução de casos clínicos). A bioética sumarizada num “bios” de alta tecnologia e num “ethos” individualista (privacidade, autonomia, consentimento informado) precisa ser complementada na América Latina por um “bios” humanista e um “ethos” comunitário (solidariedade, equidade, o outro)”[22].  Numa avaliação geral, a América Latina teve dificuldade em receber os princípios[23] da prática bioética dos Estados Unidos da América, que são: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça, pois que são princípios de caráter mais individualista e analítico do que costuma ser o comunitarismo latino-americano[24]. Assim, há necessidade de desenvolver-se “uma mística, ou melhor, horizonte de sentido para a bioética”, indo além do principialismo norte-americano. Exatamente porque, “as dimensões morais da experiência humana não podem ser capturadas numa única abordagem”, tornando-se imprescindível o diálogo e a tolerância ante as diversidades[25]. CONCLUSÃO Para pensar a bioética na América Latina faz-se importante retomar os precursores do movimento, bem como o desenvolvimento da bioética no continente. Nessa perspectiva crítica valorizar o consolidado pelos estudos, com um olhar atento ao importar tal disciplina e os princípios desta para a realidade e peculiaridades, dada a diversidade cultural dos povos latino-americanos. Nessa abordagem ressalta-se e evidencia-se o aspecto humano, da necessidade de uma mística de sentido para bioética. E na linha de raciocínio a partir das referências teóricas utilizadas, salienta-se a importância da bioética como a área do conhecimento que necessita dialogar com os cientistas, juristas, antropólogos, teólogos e com a sociedade civil (como um todo, incluindo os grupos minoritários/excluídos) para encontrar respostas às questões tão conflitantes, onde a ética, a solidariedade, a justiça e a tolerância possam ser conceitos a ser entendidos de forma a defender o bem comum e a vida digna para todos. Tal intento, na América Latina parece possível dada à diversidade cultural e os paradigmas contemporâneos que direcionam ao diálogo intercultural em substituição e que superam as visões anglo-americanas e eurocêntricas da cultura ocidental.
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Proteção jurídica da identidade sexual do transexual
Este trabalho tem como escopo o estudo de um dos pontos polêmicos atinentes à proteção jurídica da identidade sexual, qual seja, a possibilidade de retificação no nome do transexual, independentemente da realização da cirurgia de adequação ao sexo. Desta forma, apresentar-se-ão conceitos e posicionamentos existentes acerca do tema proposto e focar-se-á na questão dos transexuais operados e não operados. Enfim, como a lei é omissa, buscar-se-á na jurisprudência e na doutrina soluções cabíveis.
Biodireito
1. INTRODUÇÃO Inúmeras e diversas são as discussões acerca da proteção jurídica da identidade sexual. Nesse tema se inserem assuntos variados e pitorescos, presentes em incansáveis debates e que, cada vez mais, aguçam o interesse dos pesquisadores e estudiosos do Direito que vislumbram soluções para as questões controvertidas propostos. Tais, assuntos, apenas a título Inúmeras e diversas são as discussões acerca da proteção jurídica da identidade sexual. Nesse tema se inserem assuntos variados e pitorescos, presentes em incansáveis debates e que, cada vez mais, aguçam o interesse dos pesquisadores e estudiosos do Direito que vislumbram soluções para as questões controvertidas propostos. Tais, assuntos, apenas a títuloInúmeras e diversas são as discussões acerca da proteção jurídica da identidade sexual. Nesse tema se inserem assuntos variados e pitorescos, presentes em incansáveis debates e que, cada vez mais, aguçam o interesse dos pesquisadores e estudiosos do Direito que vislumbram soluções para as questões controvertidas propostas. Tais assuntos, apenas a título exemplificativo, têm como exemplo a possibilidade dos transexuais realizarem a cirurgia de adequação de sexo, o direito desses indivíduos de retificarem o prenome após terem realizado o mencionado ato cirúrgico, os meios para que sejam incluídos na sociedade ou para que não sofram o preconceito; todas essas situações estão cercadas por uma característica comum e marcante: a polêmica de interpretações. Também não difere a questão proposta neste trabalho, uma vez que seu foco central está na legalidade da retificação do nome e do sexo do transexual no registro civil, sem a necessidade de realizar a cirurgia de transgenitalização. Trata-se de assunto comentado pela doutrina e jurisprudência com vasta divergência de opiniões, apesar de algumas tendências, já assentadas como se irá demonstrar ao longo deste trabalho. Delimitado apenas este ponto, ainda assim, tornar-se-á necessária a explanação de alguns elementos relevantes concernentes ao problema enfrentado pelo presente trabalho. Deste modo, o conceito de transexual, as formas de identificação sexual, a diferença entre os transexuais e os demais tipos sexuais, a possibilidade de realização da cirurgia de transgenitalização a ser feita pelo SUS e itens diversos serão citados previamente antes de adentrar no tema propriamente dito. Destarte, incongruente seria se a Ciência do Direito fosse estática, de modo que não pudesse englobar as mudanças incessantes da sociedade. Há de se entender que, as normas fluem em consonância com os valores e fatos da sociedade que são, por suas características próprias, dinâmicos. A omissão da lei no que diz respeito aos vários aspectos ínsitos à questão da possibilidade de alteração do nome do transexual sem a necessidade de realizar a cirurgia deixa uma larga margem aos nossos julgadores para que utilizem o livre convencimento que lhes é outorgado do modo que lhes bem convierem. A falta de dispositivos legais, como se vê, aos magistrados restam apenas as demais fontes do Direito como um todo, bem como a experiência cotidiana adquirida nos tribunais, para que seja dada solução aos conflitos jurídicos como os controvertidos da proteção jurídica da identidade sexual. Considerando que os direitos à liberdade, à dignidade, à saúde, à cidadania, à personalidade, à identidade pessoal e sexual são princípios constitucionais que devem ser respeitados, pode-se dizer que o cerne do princípio da igualdade reluz na proibição do tratamento discriminatório. Ou seja, são vedados os atos que visem restringir, prejudicar ou até findar o exercício de direitos e liberdades fundamentais, em razão de etnia, raça, sexo, cor, idade, origem e religião. O transexual, alvo deste trabalho é um indivíduo que possui extrema insatisfação com a própria identidade, representada pelo nome e do sexo. O descompasso entre o que se é de fato e o que vem representando através do nome e sexo em seus documentos de identificação, impede a pessoa de viver com dignidade e corrobora para um sentimento de total inadaptação. É por isso que nessa perspectiva jurídica, o que se tem que evitar é, com a finalidade de superar a disforia sexual, afirmar que só é feminino e só é masculino quem atender a determinadas, fixas, rígidas e excludentes combinações de características, impostas pelas convicções sociais de maior parte da sociedade ou pela pretensão de um saber médico objetivo e neutro. Mas o que prevê o ordenamento jurídico brasileiro quando o assunto é a suavização dos sofrimentos enfrentados por esses indivíduos, iguais como quaisquer outros que, também, possuem o direito aos princípios fundamentais elencados pela Carta Magna? Existem meios para retificação do nome dos transexuais sem a necessidade de realizar a cirurgia de adequação de sexo? Caso negado, estariam os juristas cometendo infração as normas contidas em nossa Constituição? As normas contidas na Lei de Registros Públicos esclarecem algo sobre tais indagações? Estaria o médico cometendo lesão corporal ao realizar a cirurgia em questão? Inúmeras são as perguntas a responder para que seja firmada uma conclusão. O presente trabalho pretende, enfim, apresentar respostas às perguntas formuladas alhures; participar aos interessados o posicionamento que têm tomado nossos juristas e comunicar as soluções que têm tomado os nossos magistrados. 2. NOÇÕES RELACIONADAS AO TEMA EM DEBATE Eis a chave do tema abordado para nos familiarizarmos com o assunto abordado neste trabalho. Algumas questões devem sem esclarecidas, permitindo aos leitores maior entendimento sobre o que venha a ser discutido, começando, pelas formas de identificação sexual que nos permite chegar ao conceito do transexual, devendo este ser diferenciado dos demais tipos sexuais e por fim, abordando o direito destes de ter a cirurgia de transgenitalização oferecida pelo SUS de acordo com princípios fundamentais. 2.1 Formas de identificação sexual Diante do reconhecimento de somente dois sexos na sociedade em que vivemos e no Direito o qual exercemos, só há chance do indivíduo se enquadrar em um deles, feminino ou masculino, até mesmo, para exercer seus direitos. Estes podem ser exercidos através do Direito de Família, Direito Previdenciário e outros ramos que compõem nosso ordenamento jurídico brasileiro. Ressalta-se a existência de várias formas de identificação sexual, das quais analisaremos as mais importantes delas. A primeira, denominada sexo gonádico ou gonodal, tem como enfoque as glândulas sexuais destinadas à produção de hormônios: ovários, determinando o sexo feminino e os testículos, determinando o sexo masculino. O sexo cromossômico, como o próprio nome sugere, é aquele formado pela junção dos cromossomos sexuais contidos nos gametas femininos com aqueles existentes nos gametas masculinos. Portanto, identificamos um indivíduo do sexo masculino quando reunidos os cromossomos XY, sendo o primeiro, pertencente ao óvulo e o segundo pertencente ao espermatozóide; com o encontro dos cromossomos XX tem-se a formação de um indivíduo do sexo feminino, sendo um X contido ao óvulo e o outro, ao espermatozóide. Vejamos: “Na atual fase do conhecimento científico, a identificação do sexo do ser humano é irreversível e ocorre no momento da concepção, dependendo do número dos cromossomos em cada célula. Sabe-se que todo ser humano recebe um cromossomo X, da mãe. Quem herde um cromossomo X do pai, é mulher (XX), quem herde um Y, é homem (XY)”. (TJRS, Apelação Cível nº70022504849, Rel. RuiPortanova, julgamento 06/04/2009, página 10). Já o sexo morfológico resulta da aparência ou forma de um indivíduo de acordo com seu aspecto genital. O pênis, os testículos e os escrotos constituem os caracteres primários da sexualidade masculina, enquanto os da feminina são os ovários, a vagina, o útero e as trompas. Tem-se, também, o sexo legal, definido através das relações do indivíduo na sociedade, ou seja, na sua vida civil. Determina-se o sexo legal pela certidão de nascimento da pessoa, realizada no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais. Tal identificação sexual tem como denominação, também, sexo civil ou sexo jurídico. Afirma-se, também, que os hormônios são relevantes para identificação do indivíduo como homem ou mulher. Vejamos: “Coincidem também componentes de ordem hormonal para caracterização do sexo, predominando o estrogênio (hormônio feminino) ou a testosterona (hormônio masculino).” (TJRS, Apelação Cível nº70022504849, Rel. RuiPortanova, julgamento 06/04/2009, página 10/11). Por fim, tem-se o sexo psíquico. Este se refere ao feed back psicológico do indivíduo frente a determinados estímulos. Resulta da combinação fisiológica, genética e psicológica decorrente da atmosfera sociocultural na qual o indivíduo se insere. Salienta-se, portanto, que o sexo psíquico ou psicossocial é aquele, o qual, a pessoa realmente acredita pertencer diante dos fatores mencionados acima. Segundo Maria Helena Diniz, o transexual possui um distúrbio psíquico de identidade sexual. Diante disso, o correto seria submetê-lo à tratamento psicológico, através de psicanálise, psicoterapia para acarretar a mudança de sua mente, adequando-a aos seus atributos físicos. Porém, de nada adianta tais técnicas em vista de que a doença psíquica do transexual é genética, ou seja, causada por defeito cromossômico ou fatores hormonais, e por isso, incurável. (DINIZ, 2006, p. 289-290) Considerar-se-á a mais relevante das demais formas de identificação sexual para o tema abordado, pois, notar-se-á que se o sexo psíquico do transexual, sozinho, se diverge das demais formas de identificação sexual. Salienta-se que este realmente acredita, decorrente de seu sexo psíquico, pertencer ao sexo morfológico, legal, cromossômico e gonodal, oposto. Ressalta-se que, o ambiente psicossocial em que o indivíduo se insere é extremamente importante para manter ou estimular as diferenças hormonais descobertas na fase pré-natal das crianças do sexo feminino ou masculino, mesmo diante da diminuição desses hormônios após o nascimento. Como ensina Tereza Vieira: “O sexo não é mais considerado tão somente como um dado fisiológico (e, portanto, geneticamente determinado) e, por isso, imutável, a partir de contribuição das áreas de conhecimento da psicologia, da biologia, da antropologia, entre outros”. (VIEIRA, 1,999, p. 117) Acerca dessa identificação, Stefano Rodotà esclarece que demanda-se muito tempo para a estruturação definitiva e a definição dos caracteres sexuais do indivíduo, na realidade, faz-se necessário um tempo maior do que o exigido para afirmar o sexo de recém nascido nos registros civis. Ademais, afirma o dever de não se confiar na clareza e obviedade do sexo genético. Nota-se que o sexo descrito nos registros público é uma questão meramente ligada ao papel social cominado a um elemento biológico que se presume ser imutável. No entanto, tal presunção não pode ser considerada, atualmente, com a mesma certeza do passado. http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2164/Transexualismo-e-o-direito-a-redesignacao-do-estado-sexual. Acesso em 22 de fevereiro de 2012). Em concordância, assim se manifesta o Ministério Público do Rio Grande do Sul: “Afora a herança genética, em função da obrigação jurídica de declarar o sexo no assento de nascimento, providência que em geral ocorre nos primeiros dias de vida do ser humano, tem-se como parâmetros os seus órgãos sexuais externos. Apesar dessa verificação de ordem natural no momento do nascimento, constata-se que algumas pessoas sofrem de profunda, persistente e autêntica insatisfação psíquica em razão de seu sexo anatômico, assumindo um sexo psicológico oposto, Há uma clara contradição entre o sexo genético e genital, e o sexo cerebral ou social. É o que caracteriza o transexual”. (TJRS, Apelação Cível nº70022504849, Rel. RuiPortanova, julgamento 06/04/2009, página 11). Pelo exposto, seria coerente negar ao transexual o direito à busca de equilibrar seu corpo com sua mente? Seria correto negar a este à sua identidade sexual e uma vida feliz? O correto seria tentar tirá-los da vida dupla e angustiante em que vivem optando por sua sexualidade psicológica para amenizar os transtornos e recuperar a sua saúde mental. Assim, também, entende a autora Maria Helena Diniz (DINIZ, 2006, p. 290) 2.2 Noções de Transexualidade Como já exposto acima, transexual é aquele que rejeita sua identidade genética e a autonomia de seu gênero, identificando-se, psicologicamente, com o gênero oposto, em outras palavras, é aquele que possui corpo de um sexo e mas se sente pertencer a sexo diverso a este, que é biológico. A cisão entre a identidade física, sexual e psíquica do transexual ocasiona problemas jurídico-existenciais, dos quais, vários ainda são assuntos polêmicos abordados pelo nosso ordenamento jurídico, como, por exemplo, a retificação do nome do transexual, independente da cirurgia, problema a ser tratado pelo presente trabalho. Quanto à definição do transexual, assim se manifesta Maria Helena Diniz: “O transexual apresenta uma anomalia surgida no desenvolvimento da estrutura nervosa central, por ocasião de seu estado embrionário, que, contudo, não altera suas atividades intelectuais e profissionais, visto que em testes aplicados apurou-se que possui, em regra, um quociente intelectual (QI) entre 106 e 118, isto é, um pouco superior à média.” (DINIZ, 2006, p. 285). Em seqüência a autora afirma:  “Como, em regra, tem QI superior à média, seu desemprego não está relacionado a sua capacidade ou incapacidade intelectual, mas á inadequação do registro civil à sua aparência”. (DINIZ, 2006, p. 286). A autora defende a idéia que a transexualidade refere-se à condição sexual da pessoa que rejeita a sua identidade genética e sua anatomia, identificando-se, assim, com o gênero do sexo oposto. Assim, o transexualismo é considerado uma patologia ou doença, segundo múltiplos autores e algumas entidades médicas, como veremos a seguir. Para a medicina, o transexualismo é considerado uma “síndrome de disforia de gênero”. Esta se caracteriza por determinar e englobar um estado emocional de constante depressão e ansiedade do indivíduo. Segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID –10 – F.64.0), o transexual caracteriza-se por: “Um desejo de viver e ser aceito como um membro do sexo oposto, usualmente acompanhado por uma sensação de desconforto ou impropriedade de seu próprio sexo anatômico e um desejo de se submeter a tratamento hormonal e cirurgia para seu corpo tão congruente quanto possível com o seu sexo preferido.” Outrossim, o Conselho Federal de Medicina , na resolução 1.482/97, considera o transexual como: “portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à auto mutilação ou auto-extermínio.” Portanto, ver-se-á a necessidade de ressaltar que muitas vezes a dor e sofrimento são tão grandes, que os transexuais sentem-se presos a um corpo que não condiz com a sua realidade e seu estado emocional. Para alguns doutrinadores, transexuais são pessoas que sofrem de neurodiscordância de gênero, ou seja, a hipótese cerebral dos mesmos (parte do cérebro que responde aos estímulos sexuais) possui estrias mais estreitas diferentes dos homens comuns, sendo idênticas a de uma mulher biológica, resultando no denominado hermafroditismo hipofásico. Conclui-se, então, que transexual não é aquele simplesmente possui desejo de trocar de sexo. Tal idéia faz-se ultrapassada e constitui um patamar discriminatório, quando na realidade, a procura desses indivíduos é apenas apela adaptação física afim de exercerem suas vidas sociais, espíritas, sexuais e emocionais, o que, infelizmente, não se é alcançado pela maioria deles, e se alcançadas vagarosamente e com extrema dificuldade. Pelo exposto, ver-se-á a necessidade de aplicar princípios e normas jurídicas para a suavização dos sentimentos maléficos a saúde psíquica dos transexuais, inclusive como forma de respaldar os direitos humanos existentes no ordenamento jurídico brasileiro, outrossim, para erradicar o preconceito existente quanto à transexualidade e que, ironicamente, é algo vedado na Constituição da República de 1988 em seu artigo 5º, caput: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.” Mais adiante analisaremos com mais discricionariedade tal direito fundamental garantido pos nossa Carta Magna de 1988. Por fim, a demonstração de que as características físicas e psíquicas do transexual, não estão em conformidade com as características que o seu nome representa coletiva e individualmente são suficientes para determinar a retificação de seu registro civil. 2.3 Diferença entre o transexual e os demais tipos sexuais Apesar do presente trabalho ter como objeto apenas o indivíduo transexual é importante diferenciar estes, dos demais “tipos sexuais”: homossexuais, travestis, bissexuais e intersexuais. O homossexual sente-se adequado quanto à determinação de seu sexo, veste-se e tem corpo adequado a ele. Não admite ser confundido com o sexo oposto, porém, sua atração afetiva e erótica dar-se-á por pessoas do mesmo sexo que os seu. Ademais, não repudia o seu sexo anatômico, na verdade, utiliza-o como fonte de prazer, fazendo o divergir do transexual. Outrossim, o Ministério Público se manifestou: “… a expressão homossexualismo é utilizada para designar o interesse e a atração sexual por indivíduos do mesmo sexo. Não constituiria uma patologia, mas um estilo de comportamento”. (TJRS, Apelação Cível nº70022504849, Rel. RuiPortanova, julgamento 06/04/2009, página 10). Já o travesti tem satisfação em utilizar roupas do sexo oposto, por defesa ou fetiche. Não repudiam seus genitais externos, reconhecendo, assim, seu sexo biológico, totalmente diferente do transexual, que possui extremo desejo de reversão sexual mediante cirurgia de transgenitalização. Confira-se: “… o indivíduo manifesta prazer de cunho sexual em vestir-se com as roupas do sexo oposto ao seu, não tendo necessariamente atração sexual pelo sexo diverso.” – (TJRS, Apelação Cível nº70022504849, Rel. RuiPortanova, julgamento 06/04/2009, página 9/10). O bissexual varia na atração sexual ora por mulheres, ora por homens, enquanto para o transexual é inadmissível obter relações sexuais com pessoas de sexo biológico divergente ao seu. Em suma, é a oscilação entre o heterossexual e o homossexual, sem que isso leve à renúncia de uma das suas identidades. Diferente de todos os tipo sexuais descritos acima, o intersexual, mais conhecido por hermafrodita, é aquele que possui características dos dois sexos, femininos e masculinos. Por isso, devem se submeter à cirurgia para adequação do sexo fenotípico, genético e gonodal, após estudo detalhado da identidade e do sexo desenvolvido. Almejam, tão somente,a definição do sexo ao qual pertence, são necessariamente desejando o feminino ou o masculino Em contrapartida, o transexual possui apenas características físicas de um só sexo e requerem o reconhecimento de seu sexo psíquico. Diante do exposto, conclui-se que o transexual não se confunde com esses “tipos sexuais” citados acima. Trata-se de uma situação diferenciada, merecendo, portanto, tratamento diferenciado, consagração da especialidade, de acordo com o princípio constitucional da isonomia: “a lei deve tratar de maneira desigual os desiguais”. 2.4 Cirurgia: da proibição à autorização para ser feita pelo SUS O Sistema Único de Saúde oferece cirurgias de trasgenitalização aos transexuais a partir da portaria 457, de 19 de agosto do Ministério da Saúde. Essa conquista teve início com o ajuizamento da ação civil pública, pelo Ministério Público Federal contra a União, para que, aos transexuais, fossem garantidas todas as medidas relevantes que possibilitassem a realização dos procedimentos médicos necessários para a realização da cirurgia de mudança de sexo, pelo SUS, bem como os demais procedimentos complementares sobre caracteres sexuais secundários e gônadas. Ademais, o Ministério Público requereu a edição de ato normativo para a previsão dos procedimentos cirúrgicos para a realização da cirurgia de transgenitalização, na Tabela de Procedimentos Remunerados pelo SUS, denominada Tabela SIH-SUS. Confira-se: “DIREITO CONSTITUCIONAL. TRANSEXUALISMO. INCLUSÃO NA TABELA SIHSUS DE PROCEDIMENTOS MÉDICOS DE TRANSGENITALIZAÇÃO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE E PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO POR MOTIVO DE SEXO. DISCRIMINAÇÃO POR MOTIVO DE GÊNERO. DIREITOS FUNDAMENTAIS DE LIBERDADE, LIVRE DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE, PRIVACIDADE E RESPEITO À DIGNIDADE HUMANA. DIREITO À SAÚDE. FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO.” (TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO APELAÇÃO CÍVEL Nº 2001.71.00.026279-9/RS, RELATOR : Juiz Federal ROGER RAUPP RIOS,APELANTE : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, APELADO : UNIÃO FEDERAL, ADVOGADO : Luis Antonio Alcoba de Freitas) Os direitos fundamentais de igualdade, da proibição de discriminação por motivo de sexo, do livre desenvolvimento da personalidade, da liberdade, do direito à saúde, da privacidade e do direito à dignidade humana foram o embasamento da decisão do relator Doutor Roger Raupp Rios. Portanto, configuraria discriminação a exclusão da cirurgia de mudança de sexo e dos procedimentos complementares da lista de procedimentos médicos custeados pelo SUS, uma vez que tal procedimento já é oferecido a todas as pessoas que dele precisam, devendo ser feito a todos de forma igualitária, não podendo ser recusado aos transexuais que desejam realizar a cirurgia de neofaloplastia e de neocolpovulvoplastia. Ademais, a cirurgia não é ilícita no âmbito criminal, diante do caráter terapêutico e não mutilador. Assim se manifestou o relator: “o direito à saúde é direito fundamental, dotado de eficácia e aplicabilidade imediatas, apto a produzir direitos e deveres nas relações dos poderes públicos entre si e diante dos cidadãos, superada a noção de norma meramente programática, sob pena de esvaziamento do caráter normativo da Constituição.” (TRF da 4ª região – Apelação Cível nº 2001.71.00.026279-9/RS, Rel. Roger Raupp Rios) O Sistema Único de Saúde tem como princípio o atendimento integral, conforme disposto no artigo 198,II, da Constituição Federal. Diante do exposto, todos os cidadãos têm direito ao acesso aos serviços de saúde e aos procedimentos previstos no sistema médico. Ressalta-se a criação do SUS como forma de aplicar o direito fundamental mencionado, consoante com o dever do estado de promovê-la. Conforme já exposto, a transexualidade é considerada uma doença internacionalmente reconhecida pela Organização Mundial da Saúde. Dassa forma, o Estado não pode negar aos doentes-transexuais o acesso ao procedimento médico existente ofertado pelos hospitais. Salienta-se a cirurgia de adequação sexual como o único tratamento médico aceito pela comunidade científica internacional. A inclusão dos procedimentos relativos à transexualidade em questão, dentre os previstos da Tabela SIH-SUS é uma correção judicial em vista da discriminação que lesa os direitos fundamentais dos transexuais, uma vez que eles já estão contemplados pelo sistema público de saúde. Aduz-se que os transexuais não assim os são por ato de vontade e sim, por motivo de moléstia, por serem portadores de desvio psicológico permanente de identidade sexual, ou seja, nenhum cidadão gostaria de ter tal doença. O transexualismo não decorre da invocação do direito de dispor do próprio corpo, como uma variante do direito à liberdade sexual, decorre, na esfera jurídica, do direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Ademais, o artigo 13, do Código Civil traz disposições que se torna lícita a realização da cirurgia em questão, uma vez que defende o ato de disposição do próprio corpo, quando importar a diminuição permanente da integridade física ou contestar os bons costumes. Ou seja, sabe-se que o transexual sofre de doença genética incurável e impedir que o mesmo faça a cirurgia de adequação ao sexo, seria o mesmo que infringir a norma contida neste artigo, uma vez que violaria a integridade física do indivíduo em questão. Tal assunto será abordado com mais profundidade no capítulo a seguir. Por fim, destaca-se que a cirurgia de transgenitalização é, somente, uma cirurgia de adequação sexual, a fim de reajustar o sexo biológico do transexual ao psicológico, visando à redução do sofrimento desses indivíduos. 3. PRINCÍPIOS REGENTES DA MATÉRIA Em decorrência da falta de previsão legal sobre o tema, podemos nos amparar em diversos princípios previstos na Constituição Federal de 1988 para ratificar a possibilidade de o indivíduo transexual retificar o seu registro civil. Ademais, a percepção inflexível de que só é masculino ou só é do sexo feminino aquele que atender determinadas características, rígidas, fixas, impostas pelas convicções da maior parte da sociedade ou pelo saber médico objetivo, não faz reduzir a disforia sexual. Ressalta-se, que tais percepções geram violações de direitos fundamentais e é o mesmo que negar a dinâmica e a evolução da sociedade. 3.1 Da dignidade da pessoa humana A dignidade da pessoa humana constitui fundamento da República Federativa do Brasil na conformidade do artigo 1º, inciso III, da Constituição federal de 1988 e é um dos princípios mais importantes de nosso ordenamento jurídico. Confira-se: “Art, 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: … III – a dignidade da pessoa humana;”. (Constituição Federal de 1988) O direito ora explicitado, bem como o direito ao nome são consagrados como direitos fundamentais na Magna Carta, diferencia o indivíduo na sua vida em sociedade, protegendo o seu nome, a sua nacionalidade, a sua filiação, o momento do seu nascimento e o seu sexo. Em simples palavras, é o direito de a pessoa ser ela mesma. Nesse sentido se manifesta Paulo Otero: “É a marca distintiva da pessoa, que a individualiza, permitindo a construção da sua personalidade. É a sua maneira de ser, como se realiza na comunidade, com seus atributos e defeitos, com suas características e aspirações, com sua bagagem cultural.” (TJRS, Apelação Cível nº70022504849, Rel. RuiPortanova, julgamento 06/04/2009, página 17.) Ver-se-á jurisprudência acerca desse assunto: “A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido,um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem à pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venha a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.” (TJRS, Apelação Cível nº70022504849, Rel. RuiPortanova, julgamento 06/04/2009, página 17) No entanto, por diversas vezes o transexual é submetido a situações de ridículo. Estas acontecem, por exemplo, no comércio, na procura de emprego pelos transexuais ou até a ida em hotéis, em suma, em locais públicos, a margem da sociedade, gerando lesão ao seu bem maior que é a sua dignidade. Nota-se extrema dificuldade desses indivíduos na aquisição de empregos. Está presente, portanto, a exclusão social na vida dessas pessoas. Adentrando mais ao tema, a insatisfação com a própria identidade, representada pelo nome, a diferença do que se é realmente e o que vem a representar através do nome, impede essas pessoas a viverem com dignidade, gerando um sentimento de completa inadaptação. É um princípio que postula o valor da pessoa humana e afirma o respeito incondicional a sua dignidade, ou seja, deve-se respeitar o outro independentemente dos contextos integrantes e das situações sociais em que a pessoa concretamente se insira. O transexual não deve se olvidar dos seus direitos fundamentais, o valor absoluto não é a comunidade ou a classe, mas sim, o homem pessoal, embora socialmente na classe e na comunidade. 3.1.1 Dos direitos da personalidade Para Jorge Miranda: “os direitos de personalidade são posições jurídicas fundamentais do homem que ele tem pelo simples fato de nascer e viver; são aspectos imediatos da existência de integração do homem; são condições essenciais ao seu ser e devir; revelam o conteúdo necessário da personalidade; são emanações da personalidade humana em si; são direitos de exigir de outrem o respeito da própria personalidade; tem por objeto, não algo de exterior ao sujeito, mas modos de ser físicos e morais da pessoa ou de bens da personalidade física, moral e jurídica ou manifestações parcelares da personalidade humana.”( Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional-Tema IV- Direitos Fundamentais, 3ª edução, Coimbra Editora, p. 58/59) Nota-se que na proteção da personalidade, a lei tutela os indivíduos contra qualquer ameaça de ofensa á sua personalidade física ou moral e até mesmo a ofensa ilícita, propriamente dita. Os direitos, aqui, explicitados são direitos naturais. Visa à proteção das funções da pessoa, do seu jeito de ser, de sua estrutura. O direito da personalidade está intimamente ligado aos transexuais, uma vez que através dele se pode refletir sobre redesignação do nome desses indivíduos. Ressalta-se a importância da retificação do nome, visto que manter a identidade é motivo de chacotas, preconceitos, constrangimentos e até exclusão social, como já exposto acima, que além de tudo contribuem de forma extremamente relevante para a plena dignidade da pessoa humana. Por fim, se com o término na segunda guerra mundial passou-se a tutelar de forma mais intensa o direito da personalidade, diante da Declaração Universal dos Direitos do Homem e Liberdades Fundamentais de 1950, se o direito da personalidade é referente a invulnerabilidade, conservação, dignidade e reconhecimento da livre atuação da personalidade, gerando o dever, no direito, de abstenção para todos os indivíduos da coletividade, não se deveria admitir o direito a retificação do nome do transexual? Fato é que não haveria justificativas na ética e na moral em relação ao desentendimento à súplica do indivíduo que busca viver e conviver em sociedade de forma digna sem se expor a situações humilhantes e constrangedoras quando solicitado os documentos de identificação do transexual. 3.1.2 Da identidade pessoal e sexual Identidade pessoal é o mesmo que ser único, representado por suas próprias características, individualidades e ações, fazendo constituir a realidade do indivíduo, não podendo ser degradada, uma vez que a verdade não pode ser descartada. Porém, ser único não é o ser somente para si, e sim para as demais pessoas, portanto, a identidade pessoal é representada pela imagem social. Pode-se dizer, que consiste no modo pelo qual as pessoas enxergam a si mesmas, estando intimamente ligada à própria imagem. É de extrema relevância, uma vez que afeta a maneira como as pessoas se sentem e de como se comportam em situações desafiadoras. Salienta-se, que a identidade pessoal é a maneira do indivíduo se enxergar exatamente conforme as demais pessoas o enxerga quando está em estreita harmonia com os outros e com o mundo a sua volta. Em contrapartida pode ser extremamente diferente quando o indivíduo não está em harmonia com as demais pessoas, provocando, dessa forma, um sentimento de grande confronto para ele se tornar apreciado pelas pessoas pelo que realmente é. Vale ressaltar, que é direito da pessoa não ser confundida com outrem, o que faz-se limitar a identidade pessoal ao direito ao nome. Se tal assunto se refere a uma integral representação da personalidade individual, deve-se considerar, portanto, que a identidade da pessoa é dinâmica, uma vez que, sofre modificações de acordo com os vários comportamentos assumidos. O que é digno de tutela jurídica, não é a aparente identidade, e sim a projeção externa da personalidade sempre quando refletida a realidade dos valores e ações daquela pessoa em específico. Ademais, sabe-se que o nome é um dos dados da identificação da pessoa, devendo este ser retificado de acordo com a identidade pessoal de cada indivíduo, sendo do transexual, no caso em tela, assim como o sexo que deve ser adequado à este como forma de preservar e conquistar a identidade pessoal e sexual. A identidade sexual representa um aspecto extremamente relevante na identidade pessoal, na medida em que a sexualidade está presente em todas as manifestações da personalidade da pessoa. “Sexualidade vista primordialmente como um fenômeno humano que se enraíza no corpo e não uma vida objetivamente biológica à qual se sobrepões uma superestrutura consciente e ética. Identidade sexual e pessoal em estreita ligação com uma pluralidade de direitos da pessoa, como os referentes ao livre desenvolvimento da personalidade, à saúde, à integridade psíquica e ao bem-estar.” (TJRS, Apelação Cível nº70022504849, Rel. RuiPortanova, julgamento 06/04/2009, página 16). É de fundamental importância relembrar, que para o transexual, o seu sexo anatômico não coincide com sua identidade, visto que sua verdade, individualidade aponta para o sexo psíquico. O entendimento é majoritário acerca de deferimento da cirurgia de transgenitalização aos transexuais como forma de adequação do sexo morfológico com o psíquico, porém, escassas são as decisões que admitem a alteração do nome desse indivíduo independentemente da realização cirúrgica. Vejamos: “RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO – TRANSEXUAL – CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO JÁ REALIZADA – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – MUDANÇA DE NOME – NECESSIDADE PARA EVITAR SITUAÇÕES VEXATÓRIAS – INEXISTÊNCIA DE INTERESSE GENÉRICO DE UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA À INTEGRAÇÃO DO TRANSEXUAL. – A força normativa da constituição deve ser vista como veículo para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, que inclui o direito à mínima interferência estatal nas questões íntimas e que estão estritamente vinculadas e conectadas aos direitos da personalidade.- Na presente ação de retificação não se pode desprezar o fato de que o autor, transexual, já realizou cirurgia de transgenitalização para mudança de sexo e que a retificação de seu nome evitar-lhe-á constrangimentos e situações vexatórias. – Não se deve negar ao portador de disforia do gênero, em evidente afronta ao texto da lei fundamental, o seu direito à adequação do sexo morfológico e psicológico e a conseqüente redesignação do estado sexual e do prenome no assento de seu nascimento. V.V.” (TJMG, Processo nº 1.0024.05.778220-3/001(1), Relator Edivaldo Georgo dos Santos, Data do julgamento 06/03/2009) No entanto, não é somente a aparência física que constitui a identidade do transexual, o nome, também, é uma forma de projeção social da verdade do transexual. Portanto, dever-se-á ser retificado como forma de adequar ao seu sexo psíquico, fazendo valer, então, a tutela da identidade pessoal e sexual. 3.2 Da cidadania Os constitucionalistas entendem por cidadão, somente o indivíduo titular dos direitos políticos de votar e ser votado. Porém, a cidadania, prevista no artigo 1º, inciso II, da Constituição Federal de 1988, possui um sentido muito mais amplo. Cidadão é o sujeito de direitos e obrigações, ou seja, pessoa participante do Estado. Portando, ver-se-á a necessidade de deferimento da retificação do nome do indivíduo transexual, uma vez que seu nome não corresponde à maneira como aparece em suas relações com o mundo exterior. Admitir o contrário é o mesmo que dificultar ou até mesmo impedir o exercício das atividades habituais do ser humano, negando-lhe o seu direito à cidadania. Ressalta-se, que, muitos indivíduos transexuais chegam ao ponto de suicídio por tamanha insatisfação, como já visto, por motivo de doença. Abrandar os sintomas da doença significa facilitar o exercício da cidadania, uma vez que se sentindo à vontade frente á sociedade, poderão cumprir com seus direitos e obrigações com maior tranqüilidade. Como por exemplo, o transexual com seu registro civil adequado ao seu sexo psíquico terá maior facilidade em cumprir o seu direito e dever de votar, e, indo até mesmo mais distante, terá mais chance de ser votado, em vista que retificando seu nome, terá menor índice de preconceito da sociedade. 3.3 Da autonomia corporal Assim dispõe o artigo 13, Código Civil: “Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.” Diante desse artigo podemos afirmar a legalidade da realização da cirurgia de transgenitalização nos transexuais, visto que sobre os transexuais pode-se afirmar que: “Possuem “um desejo de viver e ser aceito como um membro do sexo oposto, usualmente acompanhado por uma sensação de desconforto ou impropriedade de seu próprio sexo anatômico e um desejo de se submeter a tratamento hormonal e cirurgia para seu corpo tão congruente quanto possível com o seu sexo preferido.” (CID –10 – F.64.0) O transexual é “portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à auto-mutilação ou auto-extermínio.” (Conselho Federal de Medicina, na resolução 1.482/97) Vê-se, claramente, que pode haver necessidade da realização da cirurgia visando à integridade psíquica desses indivíduos. Por outro lado, sabe-se que não é somente o órgão genital que é relevante para consolidar a integridade física dos transexuais. Na realidade, o legislador ao mencionar os direitos da personalidade deixou de tutelar a integridade psicológica e a dignidade do indivíduo que é entendida como cláusula de tutela da pessoa humana, no caso, do transexual, e ainda, não mencionou nada acerca da disposição do nome, sendo que, em casos como os dos transexuais, referem-se, também, a um direito de personalidade para que seja preservada sua identidade pessoal, física, psíquica e sexual. Porém, resta claro que os princípios constitucionais são suficientes para resolver o drama abordado pelo presente trabalho, não precisando de lei que aborde especificamente este tema. O transexual, por não ter o nome de acordo com o sexo psíquico passa por situações de extremo preconceito, exclusão social, chegando até a apresentar depressão ou suicídio. Tais situações fáticas não decorrem, somente, da insatisfação com a incompatibilidade entre aparência física e psíquica, e sim com a incompatibilidade de tudo que diverge de seu sexo psíquico, sendo, também, seu nome. 3.4 Do direito à saúde O direito à saúde esta previsto no artigo 196 da nossa Constituição Federal. Assim dispõe o mesmo: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário as ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Segundo a Organização Mundial de Saúde: “Saúde é o completo de bem estar físico, psíquico e social” (http://portal.saude.gov.br/portal/saude/default.cfm. Acesso em 24 de março de 2012) Diante de todo o conteúdo já exposto e diante das afirmativas acima, conclui-se que para os indivíduos transexuais, o bem estar psíquico, social e físico somente será alcançado por meio da redesignação de seu estado sexual, englobando, assim, a cirurgia de transgenitalização e a retificação do nome do mesmo. Nesse sentido: “TRANSEXUAL. ALTERACAO DE SEXO. AUTORIZACAO. JURISDICAO VOLUNTARIA. Decididamente, não há que se falar em reprovabilidade nem em censurabilidade na pratica da cirurgia de “mudança de sexo” em face das condições expostas na inicial, pois é inadmissível exigir que o interessado suporte o conflito psicológico que vivencia atualmente, o qual esta acarretando sérios prejuízos para a saúde física e mental. De acordo com o disposto no artigo 5 da Constituição Federal, ninguém será submetido a tratamento desumano. E, obviamente, exigir que o interessado continue suportando a sua atual situação, nas condições acima mencionadas, proibido de se submeter a necessária cirurgia terapêutica, constitui, certamente, uma forma odiosa de lhe infringir um aceitável tratamento desumano, em flagrante violação aos direitos humanos e ao referido dogma constitucional”. (http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/journals/2/articles/31170/submission/copyedit/31170-34462-1-CE.pdf. Acesso em 23 de março de 2010) A cirurgia de transgenitalização no indivíduo transexual já é utilizada, no Brasil, há um bom tempo. Não obstante o Conselho Federal de Medicina autorizar sua pratica desde 1997, com a Resolução n. 1.482, posteriormente revogada pela Resolução n. 1.652/02, e até o momento, inexiste legislação específica para autorização e regulação das suas conseqüências jurídicas. Ressalta-se que, na maioria dos casos, o transexual já consegue retificar seu nome quando feita a cirurgia de transgenitalização. Por que, então a não autorização pela maioria dos magistrados da retificação do nome do individuo em destaque sem que tenha feita a cirurgia? Diante da inexistência de legislação especifica ou de alterações nas legislações já existentes, que asseguram direitos aos transexuais, dentre eles o direito a retificação do nome e do sexo, aplica-se os princípios constitucionais já existentes. Sabe-se que o transexual é portador de doença genética incurável, como afirma Maria Helena Diniz, que tal indivíduo tem tendência à automutilação e que sofre por insatisfação pessoal e perante a sociedade que não o aceita como um cidadão normal, com direitos e obrigações como qualquer outro existente. (DINIZ, 2006, p.290) Portanto, negar a retificação de seu nome, seria o mesmo que desobedecer ao princípio de direito a saúde explicitado nesse item, pois, tal concessão amenizaria o sofrimento do indivíduo em questão, resultando em melhora em sua saúde mental. Neste sentido se manifesta o Ministério Publico do Rio Grande do Sul: “Identifica-se no transexual um distúrbio de saúde, a que corresponde um direito de buscar a sua cura e a diminuição de seu sofrimento, através dos meios médicos possíveis. É também uma faceta do direito a proteção da saúde do ser humano, inscrito no art. 196 da Constituição da Republica. Evidentemente, não se compreende que os direitos das pessoas estejam subsumidos na busca de satisfações ilimitadas, embora a técnica e a ciência estejam descortinando pretensões inimagináveis. Todavia, os sentimentos humanos são elementos da vida e devem ser considerados, porque fatores importantes para o equilíbrio e a dignidade da pessoa. Talvez a formula do bem-estar consigo mesmo seja a busca de paz anterior. Difícil de definir, embora possa corresponder ao pleno gozo dos sentimentos. E física e espiritual. Representa tranqüilidade de consciência, ausência de sofrimento por desejos insatisfeitos ou por aspirações contrariadas.” (TJRS, Apelação Cível nº70022504849, Rel. RuiPortanova, julgamento 06/04/2009, página 19/20). Portanto, ver-se-á a legitimidade de autorizar a retificação do registro civil dos transexuais uma vez, que, também, pelo princípio da isonomia, possuem o direito de gozar da saúde, como os demais indivíduos. São portadores de doença a qual merece tratamento e diminuição do sofrimento causado desses doentes, uma vez que, ainda por cima, não existe cura para tal doença genética, provocada por defeito cromossômico ou fatores hormonais. (DINIZ, 2006, p.290). Outrossim, não se pode olvidar, que à adequação do sexo representa a busca de um corpo e mente equitativos, estando, inclusive amparado no direito ao próprio corpo, no direito à saúde. Sendo assim, seria inconstitucional a vedação da realização da cirurgia de transgenitalização, que tem exclusiva finalidade terapêutica. 3.5 Do preconceito O senso comum aceita, tão somente, o sexo biológico, considerando que, um indivíduo ao ser classificado como homem ou mulher terá, de forma natural, o comportamento e sentimento feminino ou masculino e seu desejo será conforme as pessoas do seu sexo e/ou gênero, ou seja, dirigido a pessoas com sexo oposto ao seu. Portanto, admite-se, com maior naturalidade, a combinação dos elementos sexo, orientação e gênero, como estando freqüentemente combinados de um mesmo modo, homem masculino heterossexual e mulher feminina heterossexual. No entanto, tais elementos dispostos acima podem ter inúmeras combinações. Varias delas já foram dispostas no capitulo em que foi enfatizado os “tipos sexuais”, quais sejam: homossexuais, intersexuais, travestis, bissexuais e os travestis, objetos dessa pesquisa. O que foge do senso comum torna-se preconceito. O mais irônico é que assim dispõe o artigo 5, caput, da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito a vida, a segurança e a propriedade…” Se assim determina esse artigo, sendo clausula pétrea do nosso ordenamento jurídico, deveria, então, serem os transexuais tratados de forma isonômica e com garantia de inviolabilidade a vida, segurança e a propriedade dos mesmos, o que na pratica, não ocorre. Por que, então, os transexuais sofrem exclusão social, enfrentam enorme dificuldade para obterem emprego, são motivos de chacotas nas escolas, nas ruas, na sociedade de forma geral? Por que os direitos desses indivíduos a vida, a segurança e a propriedade são violados a todo tempo conforme já exposto nos itens acima? Fato é que os transexuais sofrem discriminação continuamente, fazendo-o sentir ainda, com mais vigor, os sofrimentos causados pelo descompasso entre o sexo psíquico e os demais já expostos. Exemplo disso e de tentativa de acabar com a discriminação ocorreu recentemente, no ano de 2010, no estado de Alagoas. Vejamos: “01/03/2010 – 07h00 TRAVESTIS E TRANSEXUAIS PODERAO USAR NOME SOCIAL NAS ESCOLAS PUBLICAS DE ALAGOAS Carlos Madeiro Especial para UOL Educação Em Maceió Travestis e transexuais terão direito a utilizar o nome social nas escolas públicas do Estado. A mudança passa a vigorar, de fato, quando for publicado no Diário Oficial, o que deve acontecer nesta semana. A medida foi aprovada pelo CEE (Conselho estadual de Educação) na última terça-feira (23). O pedido foi feito pela ONG Pró-Vida LGBT em janeiro de 2009. Após esse período de análise, os conselheiros decidiram garantir a travestis e transexuais o direito de serem chamadas pelo nome feminino que adotam socialmente – e não o masculino da certidão de nascimento. Relatora do processo no CEE, Barbara Deodora acredita que o respeito à diversidade sexual e um passo crucial para garantir a inclusão dos homossexuais nas escolas. A homofobia priva os travestis do direito básico a educação e provoca isolamento. Ser reconhecido pelo nome social devolve o direito à cidadania, disse ela. Pela decisão, o nome social de travestis e transexuais deve ser inserido nos documentos internos, como cadernetas escolares e provas, com exceção apenas do histórico escolar e do diploma – que devem conter o nome original e uma referência ao nome social. Para solicitar a mudança, basta fazer a solicitação por escrito. No caso de menores de 18 anos, o pedido deve ser feito pelos pais ou responsáveis. Crescimento da violência A medida chega em momento de crescimento da violência contra homossexuais no Estado. Segundo um levantamento do Grupo Gay da Bahia, o Alagoas liderou o ranking de assassinatos em janeiro, registrando cinco das 13 mortes do país no primeiro mês de 2010. No ano passado, o Estado registrou 12 crimes, ficando – proporcionalmente – entre os cinco mais violentos do país. Para o diretor da ONG Pró-Vida, Dino Alves, a mudança aprovada pode ajudar a reduzir as mortes tirando travestis e transexuais da exclusão social. ‘Por que eles não têm acesso ao mercado de trabalho? Porque falta qualificação, que, depende do ensino básico. Ou seja, [com essa medida] reduz a situação de vulnerabilidade’, ressaltou. ‘Essa decisão é marco histórico. Mas e importante dizer que, enquanto esse projeto tramitava no Conselho, outros estados aprovaram medida semelhante e as colocaram em prática’, disse. Para ele, a decisão demorou ‘muito’. Alves conta que percebeu o problema ao analisar a pouca freqüência escolar de travestis e transexuais. ‘eu sentia a dificuldade deles nas escolas. Quando era anunciado o nome na chamada, se tornava motivo de gozação. No banheiro, os meninos sempre tinham a história de que os travestis iam para lá ficar vendo os pênis deles. Já as meninas inventavam que elas tinham AIDS. Ou seja, um ambiente de preconceito que levava a desistência’, explicou. Preconceito leva a evasão Depois de muito se esconder, a estudante do segundo ano do ensino médio, Bianca Lima, conseguiu ser chamada pelo nome social na escola Maribondo, na periferia Maceió. Mas, para vencer o preconceito e convencer diretores, professores e colegas, foram necessários diálogo e insistência. ‘Tenho 26 anos e não conclui o ensino médio antes por conta do preconceito, das humilhações que passava. Eu acabava desistindo de freqüentar as aulas’, conta Bianca. Ela relembra que, por vários anos abandonou a escola para fugir da gozação de colegas e até de professores. Curiosamente, o fato que mais lhe marcou veio de um homossexual: ‘Tive um professor que, apesar de ser gay, não aceitava me chamar pelo nome que adotei. O preconceito existe dos homossexuais também, porque sou um gay que me visto de mulher’, disse. Com a determinação, Bianca diz que vai enfrentar menos preconceito. ‘Não vou mais precisar ficar convencendo as pessoas na chamada para dizer meu nome social. Será obrigatório. Não vou mais me preocupar em descobrirem meu nome na escola e ficarem fazendo brincadeiras preconceituosas. Com a medida, já até penso em me mudar para uma escola mais próxima de casa. Agora vou enfrentar apenas o preconceito fora da escola’, afirmou Bianca.” (http://educqcqo.uol.com.br/ultnot/2010/03/01/ult105u9126.jhtm. Acesso em 03 de março de 2012) Este é apenas um dos casos relacionados a preconceito com transexuais. Insta salientar a necessidade de amenizar esse preconceito e, como visto no caso acima, a retificação do nome desses indivíduos seria uma forma relevante de colocar isso em pratica. Ademais, assim dispõe o artigo 3, inciso IV, da Magna Carta: “Art. 3 Constituem objetivos fundamentais da Republica Federativa do Brasil: IV- promover o bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” Deveria, então, o Estado adotar medidas, como a retificação do nome e sexo, por exemplo, a fim de colocar em prática o artigo transcrito acima, promovendo, assim, o bem estar dos transexuais, amenizando o preconceito a eles. No mesmo sentido o Ministério Publico do Rio Grande do Sul se manifesta, porem, em relação a necessidade da realização da cirurgia de transgenitalizacão, afirmando a existência de situações de preconceito as quais os transexuais se submetem: “Não se desconhece que os transexuais encontram diversos problemas para viver em sociedade e são numerosas vezes considerados e estigmatizados como degenerescência moral. São pessoas diferentes, sim, mas tem direito a igualdade de tratamento na ordem jurídica e social. Por isso, o reconhecimento da identidade sexual e a possibilidade de redesignação do sexo, através da cirurgia, sem prejuízo de eventual consolidação normativa sobre o tema, já existente em alguns países, constituem o caminho para o fortalecimento da sua auto-estima, da sua consideração social, a fim de que sejam tratados com respeito e dignidade a que fazem jus como seres humanos.” (TJRS, Apelação Cível nº70022504849, Rel. RuiPortanova, julgamento 06/04/2009, página 26). 3.6 Do direito a liberdade No exercício da liberdade, o indivíduo tem o direito da busca pela qualidade de vida, não, somente por meio do pleno funcionamento das suas funções orgânicas e psíquicas, também no emprego das suas faculdades e na satisfação dos seus anseios. As extremas insatisfações do individuo com a própria identidade, impedem a pessoa de viver com dignidade e, ainda, constitui fator de perturbação social por não se adaptar ao meio, sendo que e fundamental que a pessoa componha equilíbrio com o meio. Assim vive o transexual, e negar a retificação de seu nome seria, também, negar o exercício de sua liberdade. Liberdade significa poder realizar as coisas em conformidade com a própria vontade, sem qualquer interferência externa, ressaltando que tais atos não impliquem em prejuízo para as demais pessoas. Sendo assim, o transexual deve ser livre para realizar a cirurgia de transgenitalização, bem como para retificar o nome, conforme a sua própria vontade, sem qualquer interferência, inclusive do Estado, uma vez que este possui a obrigação de proibir só aquilo que está estritamente necessário ao bem comum do povo. Os princípios demonstrados neste capítulo representam a solução para a retificação dos nomes dos transexuais. Baseando-se neles não há o que se falar em proibição de tal direito desses indivíduos. Ver-se-á, a seguir, outros argumentos pertinentes a possibilidade de mudança registral, ressaltando que a Constituição é o embasamento de toda a matéria jurídica. Portanto, qualquer manifestação, lei, norma que nega tal possibilidade pode ser considerada inconstitucional, uma vez que a Carta Magna é favorável a retificação do nome dos indivíduos em questão. 4. DA POSSIBILIDADE DE MUDANÇA REGISTRAL 4.1 Da Lei dos registros Públicos O nome civil é um direito de identificação da pessoa, disposto no artigo 16 do Código Civil de 2002. Este é composto por prenome, o qual designa cada membro da família, e por sobrenome, o qual identifica o nome da família. Confira-se: “Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.” (Código Civil de 2002) Assim dispõe o artigo 50, da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973: “Todo nascimento que ocorrer no território nacional deverá ser dado a registro, no lugar em que tiver ocorrido o parto ou no lugar da residência dos pais, dentro do prazo de 15 (quinze) dias, que será ampliado em até 3 (três) meses para os lugares distantes mais de 30 (trinta) quilômetros da sede do cartório”. É obrigatório, portanto, a atribuição de nome à criança, cabendo aos pais a escolha do nome individual, aplicando-se, o princípio da liberdade. Em relação ao nome de família, prevalece o princípio da veracidade. O nome tem como características ser indisponível, inalienável, imprescritível, irrenunciável e inexpropriável.  Ademais, considera-se o direito ao nome ser híbrido em decorrência de apresentar os elementos público e privado. Este é atributo da personalidade, decorre da autonomia da vontade humana e, por isso, tende à mutabilidade, em vista de que ninguém pode ser escravo do nome. Já o público, tem como regra a imutabilidade. A Lei nº 6.015 de 1973 (Lei de Registros Públicos) tem como critério a imutabilidade do nome como regra, admitindo-se o contrário, somente em casos excepcionais trazidos pela doutrina. Eis o que dispõe o artigo 58 da presente Lei: “Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.” Neste sentido tem-se a decisão demonstrada no capítulo anterior, do estado de Alagoas, onde os transexuais poderão ser chamados por seus devidos nomes sociais nas escolas públicas, em razão do preconceito enfrentado no cotidiano desses indivíduos. Porém, existe possibilidade legal de alteração do nome civil quando este expuser o titular ao ridículo ou a situação de vexame, bem como se tratando de nome exótico. Vejamos: “Os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores. Quando os pais não se conformarem com a recusa do oficial, este submeterá por escrito o caso, independente da cobrança de quaisquer emolumentos, á decisão do juiz competente.” (Artigo 55, parágrafo único da Lei de registros Públicos) Não poderia, então, empregar a analogia a este artigo no caso dos transexuais? Estes indivíduos não são expostos ao ridículo e passam por situações vexatórias em razão do nome à eles registrados? Nota-se que o legislador, ao redigir esse artigo, não dimensionou constante modificação social, da evolução da sociedade, esquecendo-se que as questões vexatórias, não são oriundas, tão somente, de nome ridicularizado, engraçado, estranho, etc., mas poderiam ser detectadas após o indivíduo atingir a sua personalidade, a identidade sexual, causando descompasso entre o nome o sexo da pessoa, fazendo esta passar por situações de vexame, expondo o indivíduo ao vexame, ferindo, assim, o direito do mesmo à dignidade da pessoa humana, como é o caso dos transexuais. Ademais, ainda sobre o artigo 55, parágrafo único da Lei de registros Públicos, insta salientar a isonomia dos indivíduos, devendo o transexual, portanto, ser respaldado por tal direito. Outrossim, existem outras situações específicas em que é possível a alteração do nome civil do indivíduo: quando houver erro gráfico evidente, caracterizado por equívocos de grafia, quando há finalidade de incluir apelido notório , conforme disposto no artigo 58, da Lei nº 6.015/73), em decorrência de adoção (Estatuto da criança e adolescente, artigo 47, parágrafo 5º e artigo 1.627, do Código Civil), em decorrência do uso prolongado e constante de nome diverso, quando ocorrer homonímia depreciativa, gerando complicações sociais ou profissionais e pela tradução, nos casos em que foi grafado em língua estrangeira (ROSENVALD, 2007, p. 174-175) A única possibilidade de alteração do nome de maneira imotivada ocorre quando o indivíduo atinge a maioridade, até completar dezenove anos. Assim dispõe o artigo 56, da Lei de Registros Públicos: “O interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos de família, averbando-se a alteração que será publicada pela imprensa”. A respeito deste artigo, pode-se dizer que os transexuais que souberem da existência desta norma e que, ainda, descobrirem sua identidade sexual a tempo, ou seja, um ano após terem atingido sua maioridade civil serão acobertados pela possibilidade de retificação do seu nome, desde que não prejudique os apelidos de família. No entanto, não é todo e qualquer cidadão que conhece todas as normas emanadas do nosso ordenamento jurídico. Ademais, tal conhecimento pode vir após um ano de sua maioridade e, ainda, pode ser que o transexual seja classificado de modo secundário, sendo aquele que descobre sua identidade sexual após a adolescência. Nesses casos, dever-se-ão esses indivíduos serem excluídos de usufruírem desse direito? Talvez o legislador não tenha pensado na questão específica desses portadores de doença, porém, necessitam eles de respaldo jurídico que possam suprir a omissão do legislador neste sentido. Por outro lado, em decorrência da complexidade social e da ausência de lei para solução dos conflitos sociais, cabe ao julgador o papel de intérprete do ordenamento jurídico, analisando conforme o caso concreto. Por isso, tem-se admitido a alteração do nome do indivíduo não só no que se refere aos permissivos legais descritos acima. “O doutrinador Pontes de Miranda (1971, p. 284) critica o princípio da imutabilidade do prenome, afirmando que a função identificadora do nome não bastaria para considerá-lo imutável e inalterável. Para o autor, não há um princípio jurídico de imutabilidade do prenome e sobrenome, tratando-se de uma regra jurídica adotada pelo nosso sistema” (http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12614. Acesso em 23 de março de 2012). Nesse mesmo sentido pronunciaram os professores Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: “(…) o princípio da inalterabilidade relativa do nome implica a possibilidade de o juiz modificar o nome (seja o prenome, seja o sobrenome) em casos justificáveis, na defesa da proteção integral da personalidade humana, independentemente de previsão legal” (http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12614. Acesso em 23 de março de 2012). Outrossim, o TJMG se manifestou acerca da possibilidade de alteração do nome, principalmente quando o nome acarretar distúrbios psicológicos no indivíduo, conforme o voto do Desembargador Wander Marotta. Vejamos: “o excessivo apega à lei pode levar, neste caso, a uma injustiça, ou à aplicação exacerbada do conceito corrente de justo, que nem sempre coincide com a regra jurídica. (…) ‘sentir’ e ‘compreender’ também é fazer hermenêutica. Talvez seja a melhor forma de ‘interpretar’. Sentir o drama humano; compreender que a lei não possui uma vontade única, mas várias vontades, que o intérprete, na complexidade da vida, tentará aplicar na realização do mais justo.” (TJMG, AC 1.0000.00.289.475-6-001, Rel. Des. Belizário de Lacerda, j. 30/09/2003). De um lado a lei no papel, nas páginas do Diário Oficial significando cristalização inflexível, despersonalizada, fria. De outro a lei analisada no caso concreto, em concordância com a atividade humana e adaptada pelos julgados. De fato, não se pode resolver o problema de retificação do nome do transexual através da Lei de Registros Públicos. Porém, configura-se patente o conflito entre a legalidade da mencionada lei e os princípios constitucionais existentes que não só corroboram para a elucidação do tema abordado por este presente trabalho, como tem a solução deste. No entanto, antes de abordar as questões pertinentes ao texto constitucional, importante explicitar o caminho que o ordenamento jurídico vem trilhando a fim de conceder aos indivíduos transexuais seus respectivos direitos. Nesse sentido, tem-se o projeto de lei-70-B, o qual veremos no item a seguir. 4.2 Do Projeto de Lei nº. 70-B O Projeto de Lei nº. 70-B de 1995, de autoria do Deputado José Coimbra está em tramitação no Congresso Nacional. É um verdadeiro marco para os transexuais, uma vez que constitui um grande passo frente à legalização da redesignação do estado sexual desses indivíduos em nosso país, pois, tem como objetivo tornar legal as cirurgias de transgenitalização, bem como a posterior retificação do nome no registro civil. A proposta desse parlamentar significa um acréscimo ao artigo 129, parágrafo 9º do Código Penal, a fim de que seja excluída do crime de lesão corporal a cirurgia de adequação sexual, ou seja, a conduta do médico ao realizar tal procedimento não irá constituir o crime previsto no artigo 129, do Código Penal. Ademais, o deputado propõe, ainda, alterações no artigo 58 da Lei dos registros Públicos (Lei nº. 6.015/1973). De início, com a aprovação deste projeto, o mencionado artigo passaria a conter três parágrafos. O primeiro deles muito semelhante ao original: “Quando for evidente o erro gráfico do prenome, admite-se a retificação, bem como a sua mudança mediante sentença do juiz, a requerimento do interessado, no caso do parágrafo único do art. 55, se o oficial não houver impugnado.” O segundo, com previsão de nova possibilidade de alteração do nome com relação à realização do procedimento cirúrgico de adequação de sexo. Vejamos: “Será admitida a mudança do prenome mediante autorização judicial, nos casos em que o requerente tenha se submetido à intervenção cirúrgica destinada a alterar o sexo originário.” O terceiro e último parágrafo dispõe sobre a averbação no registro de nascimento e no documento de identidade do indivíduo ser transexual. Neste último caso, a comissão assim propôs a nova redação do parágrafo: “No caso do parágrafo anterior, deverá ser averbado no assento de nascimento o novo prenome, bem como o sexo, lavrando-se novo registro.” Após a cirurgia, o transexual deveria estar amparado, também, pelo direito à imagem, uma vez que ele pretende mostrar à sociedade suas novas características, e qualquer tentativa de suprimir a divulgação de sua atual imagem violaria esse direito. O indivíduo em questão possui o direito à intimidade e, também, ao sigilo, em vista de que a cirurgia de transgenitalização praticada deve permanecer no âmbito de sua provacidade. Ressalta-se que qualquer forma de exibição acarretaria conseqüências negativas para a moral e bem estar do transexual. Além disso, as particularidades da vida deste indivíduo devem permanecer em silêncio por mais que o indivíduo se exponha ao público. Pelo exposto, a norma contida no terceiro parágrafo traria ao transexual desconfortos extremos, sendo ainda alvo de preconceitos. Neste sentido, assim se manifesta Maria Helena Diniz: “Entendemos que deve haver a adequação do prenome ao novo sexo do transexual operado sem qualquer referência discriminatória na carteira de identidade, de trabalho, no título de eleitor, no CPF etc. O mandado judicial de retificação deveria então, ordenar não só a averbação À margem do registro masculino ou feminino (e não transexual).” (DINIZ, 2002, P.283) Ademais, foi apresentada emenda aditiva a qual acrescenta mais um parágrafo no artigo 58, ou seja, o quarto parágrafo. Confira-se: “É vedada a expedição de certidão, salvo a pedido do interessado ou mediante determinação judicial.” Ressalte-se que o referido Projeto de Lei já nasce precisando de reformas, pois, apesar de ser extremamente relevante se faz omisso diante de algumas questões, tais como: ser necessária ou não a autorização judicial para o exercício da cirurgia de transgenitalização; a explicitação dos destinatários da norma; qual o estado civil do indivíduo transexual para que seja realizado o procedimento cirúrgico; não aborda a possibilidade de operações em incapazes, ainda que assistidos pelos seus tutores ou genitores; não dispõe sobre a possibilidade de alteração no registro civil do transexual que já passou pelo procedimento cirúrgico que possui filho e do registro deste e foi omisso quanto às garantias ao transexual para que este exerça os direitos decorrentes do seu novo estado sexual. Portanto, não explanou sobre os limites do alcance jurídico desse reconhecimento, bem como, foi omisso em relação aos respectivos deveres. Ademais, vale ressaltar, que o Projeto exclui os indivíduos os quais ainda não realizaram a cirurgia de adequação de sexo. Diante do exposto acima, percebe-se que o referido Projeto é um primeiro passo rumo à solução dos problemas dos transexuais no Brasil. Explicita-se, porém, que não constitui uma lei que irá solucionar, definitivamente, os problemas dos transexuais no nosso país, muito menos o problema abordado pelo tema do presente artigo. 4.3 Da mudança de nome e sexo do transexual independente da cirurgia – decisões inéditas A questão da mudança do nome do transexual no registro civil suscita extrema divergência entre entendimentos, uma vez que, no Brasil ainda não existe legislação específica regulamentando o tema, repita-se. Verifica-se uma resistência por parte da doutrina conservadora brasileira em admitir a presente questão, em vista de que o registro deve ser preciso e regular, constituindo, portanto, a expressão da verdade. Ademais, afirma-se que o registro é imutável, podendo ser retificado, somente, em casos específicos e expressamente previstos em lei. No entanto, diante da falta de previsão legal acerca desse assunto, tem-se o amparo em vários princípios na Constituição da República de 1988 para ratificar a possibilidade do transexual de realizar a retificação do seu registro civil. Conforme já abordado em capítulo anterior deve-se utilizar dos seguintes princípios: dignidade da pessoa humana, identidade pessoal e sexual, cidadania, direito à saúde e a liberdade. A utilidade da lei pode ser verificada através de sua correspondências à situações do cotidiano e necessidades da sociedade. No entanto, existem situações que são carentes de zelo jurídico, possuem lacunas a serem solucionadas através dos instrumentos acima mencionados, manifestando-se, então, a preocupação em compatibilizar e estudar situações inovadoras a serem positivadas. A aplicação dos princípios e da analogia para possibilitar a retificação do nome dos transexuais é a forma mais condizente de fazer justiça, uma vez que, em sendo isso plausível, estará sendo cristalizado o princípio da dignidade da pessoa humana. Não haveria justificativa dentro da moral e da ética o desatendimento à súplica do transexual, ser humano que busca um convívio digno em sociedade sem se expor a situações humilhantes, degradantes e constrangedoras quando solicitado, no caso, os documentos de identificação. Comprovadas as condições da pessoa, judicialmente, embora não exista legislação específica a respeito, somente a jurisprudência o admite, deve o pleito ser acolhido, autorizando-se a retificação do nome no registro civil. Apesar de o Judiciário do Estado de Minas Gerias ser resistente à retificação do nome desses indivíduos, têm-se inúmeras decisões do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro acerca desse assunto de modo positivo, sob a justificativa de que o direito à identidade sexual não se apóia no instrumento, mas no caso concreto, ou seja, na realidade sexual. Confira-se: “APELAÇÃO. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALISMO.TRAVESTISMO. ALTERAÇÃO DE PRENOME INDEPENDENTEMENTE DA REALIZAÇÃO DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL E À DIGNIDADE. CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU. ACOLHIMENTO DE PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE SEGUNDO GRAU. A demonstração de que as características físicas e psíquicas do indivíduo, que se apresenta como mulher, não estão em conformidade com as características que o seu nome masculino representa coletiva e individualmente são suficientes para determinar a sua alteração. A distinção entre transexualidade e travestismo não é requisito para a efetivação do direito à dignidade. Tais fatos autorizam, mesmo sem a realização da cirurgia de transgenitalização, a retificação do nome da requerente para conformá-lo com a sua identidade social. Pronta indicação de dispositivos legais e constitucionais que visa evitar embargo de declaração com objetivo de prequestionamento. Rejeitadas as preliminares, negaram provimento. Unânime.” (TJRS – 70022504849, 8ª C. Cív., Rel. Des. Rui Portanova, j. 16.04.2009). ”Registro civil. Transexualidade. Alteração do prenome. Cabimento. Necessidade de produção de prova, com possibilidade de eventual concessão de tutela antecipada. Mudança de sexo. Impossibilidade jurídica momentânea. Sobrestamento do processo até que seja julgada a outra ação onde a parte pede que o estado forneça o tratamento cirúrgico. Averbação da mudança. 1. O fato da pessoa ser transexual e exteriorizar tal orientação no plano social, vivendo publicamente como mulher, sendo conhecido por apelido, que constitui prenome feminino, justifica a pretensão, já que o nome registral é compatível com o sexo masculino. 2. Diante das condições peculiares da pessoa, o seu nome de registro está em descompasso com a identidade social, sendo capaz de levar seu usuário a situação vexatória ou de ridículo, o que justifica plenamente a alteração. 3. Possibilidade de antecipação de tutela caso fique demonstrado descompasso do nome de registro com o nome pelo qual é conhecido na sociedade, devendo ser realizada ampla produção de prova. 4. Descabe sobrestar o curso do processo enquanto a questão da identidade social do autor não ficar esclarecida. 5. Concluída a fase cognitiva e apreciada a antecipação de tutela, é cabível determinar o sobrestamento do processo até que seja realizada a cirurgia para a transgenitalização, quando, então, o autor deverá ser submetido a exame pericial para verificar se o registro civil efetivamente não mais reflete a verdade. 6. Há, portanto, impossibilidade jurídica de ser procedida a retificação do registro civil quando ele espelha a verdade biológica do autor, mas, diante da perspectiva do tratamento cirúrgico, essa impossibilidade torna-se momentânea, o que justificará, plenamente, o sobrestamento do processo. Recurso provido em parte.” (TJRS, 7.ª C.Cív., AI 70026211797, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, j. 18.02.2009). “Alteração de registro civil. Transexualidade. Cirurgia de transgenitalização. O fato de o apelante ainda não ter se submetido à cirurgia para a alteração de sexo não pode constituir óbice ao deferimento do pedido de alteração de registro civil. O nome das pessoas, enquanto fator determinante da identificação e da vinculação de alguém a um determinado grupo familiar, assume fundamental importância individual e social. Paralelamente a essa conotação pública, não se pode olvidar que o nome encerra fatores outros, de ordem eminentemente pessoal, na qualidade de direito personalíssimo que constitui atributo da personalidade. Os direitos fundamentais visam à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, atua como sendo uma qualidade inerente, indissociável, de todo e qualquer ser humano, relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de cada indivíduo. Fechar os olhos a esta realidade, que é reconhecida pela própria medicina, implicaria infração ao princípio da dignidade da pessoa humana, norma esculpida no inciso III do art. 1º da Constituição Federal, que deve prevalecer à regra da imutabilidade do prenome. Por maioria, proveram em parte.” (TJRS – AC 70013909874, 7ª C. Cív, Rel. Desa. Maria Berenice Dias, j. 05.04.2006). “TRANSEXUALISMO. REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO. RETIFICACAO. MUDANCA DE PRENOME. MUDANCA DO SEXO. Registro Civil. Pedido de retificação do prenome e do sexo constantes do assentamento de nascimento do postulante na serventia de Registro Civil das Pessoas Naturais. Pessoa que, inobstante nascida como do sexo masculino, desde a infância manifesta comportamento sócio-afetivo-psicológico próprio do genótipo feminino, apresentando-se como tal, e assim aceito pelos seus familiares e integrantes de seu círculo social, sendo, ademais, tecnicamente caracterizada como transexual, submetendo-se a exitosa cirurgia de transmutação da sua identidade sexual originária, passando a ostentar as caracterizadoras de pessoa do sexo feminino. Registrando que não é conhecido pelo seu prenome constante do assentamento em apreço, mas pelo que pretende substitua aquele. Conveniência e necessidade de se ajustar a situação defluente das anotações registrais com a realidade constatada, de modo a reajustar a identidade física e social da pessoa com a que resulta de aludido assentamento. Parcial provimento do recurso, para determinar que sejam promovidas as alterações pretendidas no aludido assentamento Conveniência e necessidade de se ajustar a situação defluente das anotações registrais com a realidade constatada, de modo a reajustar a identidade física e social da pessoa com a que resulta de aludido assentamento.” (TJRJ – AC, 8ª. C. Cív., 2005.001.17926. Rel. Des. Nascimento Povoas Vaz, j. 22.11.2005). “REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALIDADE. PRENOME. ALTERAÇÃO. POSSIBILIDADE. APELIDO PÚBLICO E NOTÓRIO. O fato de o recorrente ser transexual e exteriorizar tal orientação no plano social, vivendo publicamente como mulher, sendo conhecido por apelido, que constitui prenome feminino, justifica a pretensão já que o nome registral é compatível com o sexo masculino. Diante das condições peculiares, nome de registro está em descompasso com a identidade social, sendo capaz de levar seu usuário à situação vexatória ou de ridículo. Ademais, tratando-se de um apelido público e notório justificada está a alteração. Inteligência dos arts. 56 e 58 da Lei n. 6015/73 e da Lei n. 9708/98. Recurso provido."” (TJRS – 7.ª C.Cív., AC 70001010784, Rel. Des. Luis Felipe Brasil Santos, j. 14.06.2000). Dessa forma se manifesta o Ministério Público do Rio Grande do Sul:  “De fato, a identidade do transexual deve ser reconhecida perante o Estado, permitindo-se a retificação do registro civil, independentemente da realização da cirurgia, a fim de que a pessoa possa gozar de seus direitos como homem ou mulher, com dignidade, sem discriminação de qualquer espécie.” (TJRS, Apelação Cível nº70022504849, Rel. RuiPortanova, julgamento 06/04/2009, página 27). Nota-se, portanto, a preocupação de parte da sociedade frente aos problemas enfrentados pelos indivíduos, objetos do presente estudo. É necessário que o Magistrado, quando aplicar o direito diante das lacunas, sobreleve os princípios constitucionais de modo imparcial, com a finalidade de proteger o transexual, na medida em que este merece respeito como qualquer outro cidadão. A retificação do nome é uma maneira de satisfazer as necessidades pessoais do transexual, corroborando o fim dos conflitos pessoais e para o bem estar psíquico do mesmo. Ao usufruir o direito em questão, este indivíduo deixa de passar por situações vexatórias e humilhantes, alem de ver atendido o seu direito a identidade, a integridade psíquica, a vida privada, a liberdade, a saúde e a dignidade da pessoa humana. É necessário que haja uma releitura dos institutos jurídicos até então existentes, a fim de que seja solucionado os problemas dos transexuais, em vista de novas realidades que aparecem frente aos olhos da sociedade. Ver-se-á a urgência de modificações, afinal, é a figura de Têmis, em apresentação a justiça, que lança os olhos da sociedade rumo ao futuro, colocando em evidência um equilíbrio cada vez mais fervoroso na balança do conhecimento. 5. CONCLUSÃO Com todas as discussões apresentadas, conclui-se que desimporta a apuração da verdade sobre o gênero ou a sexualidade a qual o transexual pertence para reconhecer a sua condição de ser humano e, também, digno. Como já fora dito, a sociedade está em constante mutação e o Direito deve acompanhar essas modificações, seja no plano jurídico ou no plano legislativo. Antigos dogmas devem ser superados. Não se pode considerar o sexo apenas, por exemplo, em seu aspecto morfológico, de acordo com a genitália externa, ou em seu aspecto hormonal, conforme já exposto. Dessa forma, noção de sexo é bastante complexa, uma vez que engloba vários componentes, inclusive o psicológico. Portanto, o conceito de sexo que leva em consideração apenas aspectos morfológicos, hormonais, gonodais, cromossômicos e legais é insuficiente. Portanto, o sexo jurídico deve ser o mesmo do sexo vivido psicologicamente e socialmente pelo indivíduo. Nesse sentido, o transexual se constitui em uma pessoa a qual possui um sexo morfológico, porém, se identifica com o sexo oposto psicologicamente. Apesar de não resolver todos os problemas do transexual, a mudança de nome no registro civil é de extrema relevância por ser necessidade urgente desse indivíduo. Ressalta-se que ninguém deve ser vítima de situações vexatórias e tratamentos discriminatórios. É o que ocorre quando a aparência física ou a identidade pessoal e sexual não coincidem com o sexo e nome constantes no registro. Dessa forma, apesar de no Brasil não existir legislação específica sobre o tema ver-se-á a necessidade dos magistrados de levar em consideração os princípios gerais do Direito, ao proferirem sentenças, visando a proteção do transexual, que é uma pessoa como qualquer outra merecedora de ver assegurados os seus direitos fundamentais. Cabe ressaltar, a urgente necessidade de promulgação de uma lei ampla que englobe toda a problemática transexual, o que já vem acontecendo em países do mundo inteiro. Salienta-se que o novo assento de nascimento do indivíduo em questão não deve mencionar nada a respeito deste ser um transexual, uma vez que tal fato atenta contra o direito da personalidade e, ainda, gera discriminação social a qual estamos tentando erradicar. A retificação do nome dos transexuais é uma forma de satisfazer os anseios destes indivíduos com a finalidade de viverem normalmente em sociedade. Constitui uma forma de por fim aos conflitos sociais, pois eles deixariam de passar por situações humilhantes e vexatórias perante a sociedade. Ademais, são pessoas que, também, têm direito à identidade, à integridade física e psíquica, à honra, à saúde, à vida privada e à dignidade. O problema abordado pelo presente trabalho existe. Fato é que não podemos deixar predominar a hipocrisia e continuarmos caminhando em sentido oposto à história ao desenvolvimento científico. Assim, cabe à sociedade e aos juristas, operários do Direito, de forma primordial ao Poder Legislativo, lutar a fim de combater os preconceitos e colocar em prática as palavras contidas na Constituição da República, de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.” (artigo 5º, Constituição Federal de 1988)
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-125/protecao-juridica-da-identidade-sexual-do-transexual/
O Conselho Federal de Medicina e o consentimento informado à eutanásia diante do direito
O presente artigo apresenta um estudo sobre o tipo de entidade que o Conselho Federal de Medicina representa para o direito administrativo, qual o grau de hierarquia das suas resoluções na Órbita Jurídica Nacional, qual o tipo de controle que ele sofre. Analisa especificamente as orientações da Resolução 1.995/2012 acerca da possibilidade do ato de eutanásia e o termo de consentimento informado prestado por paciente diagnosticado com doença terminal e irreversível,e a responsabilidade de todos os envolvidos no ato piedoso da boa morte consentida.
Biodireito
1. Eutanásia e orientações à abreviação da vida A discussão acerca do enunciado da Resolução 1.995 do Conselho Nacional de Medicina, ou melhor, Conselho Federal de Medicina tem divido opiniões. Eis que surge a questão da hierarquia entre uma lei e uma resolução de um órgão de classe, o CFM (órgão administrativo que é uma autarquia). Outra questão relevante é a que discute sobre a temática abordada na resolução, pois para os médicos ela se refere a “orientação à antecipação da morte do paciente terminal”, para os operadores do direito, ela se refere a eutanásia, e conforme a circunstância poderá ser considerada homicídio assistido, suicídio, ou morte piedosa. Entretanto, para Luiz Flávio Gomes, o novo Código De Ética Médica nada disse acerca da eutanásia, da ortotanásia e da morte assistida[1]. 1.2. Conceito de eutanásia Para sanar esta dúvida, buscou-se no Vocabulário Jurídico[2] o esclarecimento sobre o conceito de eutanásia, que: “Derivado do grego eu (bom) e thanatos (morte) quer significar, vulgarmente, a boa morte, a morte calma, a morte doce e tranquila. Juridicamente, entende-se o direito de matar ou o direito de morrer, em virtude de razão que possa justificar semelhante morte, em regra,provocada para término de sofrimentos, ou por medida de seleção, ou de eugenia. A eutanásia provocada por outrem, ou a morte realizada por misericórdia ou piedade, constitui o homicídio ou crime eutanásico, considerado como a suprema caridade. Não é, entanto, a eutanásia admitida pelo nosso Direito Penal. Mas, admitem-na outras legislações.” Percebe-se neste conceito uma abordagem apenas do direito penal, não adentrando nas questões de ordem civil e administrativa, como por exemplo, a responsabilidade civil do médico, ou de terceiros por danos ao paciente, como sofrimento além do previsto, danos morais, danos materiais. Responsabilidade do CEPSH e do hospital ou clínica pessoa jurídica. Na parte final desta citação direta in bloco acima, quando se fala em admissão da eutanásia em outras legislações, está se referindo a legislações alienígenas, ou seja, de outros Estados. A Holanda, a Áustria, a Espanha, já se decidiram a favor da eutanásia. Entretanto a Associação de Médicos Mundial já se posicionou contrária através de Declaração sobre a eutanásia. Abaixo se verifica a Declaração sobre Eutanásia da World Medical Association in Madrid/Espanha em 1987. Eutanásia, que é o ato de deliberadamente terminar com a vida de um paciente, mesmo com a solicitação do próprio paciente ou de seus familiares próximos, é eticamente inadequada. Isto não impede o médico de respeitar o desejo do paciente em permitir o curso natural do processo de morte na fase terminal de uma doença. Esta declaração está conforme o World Psychiatric Association. Physicians, patients, society: human rigths and professional responsabilities of physicians. Amsterdam: WPA, 1996:30. É possível observar o grave equívoco, pois não há que se consentir no ato da eutanásia sem o consentimento informado do paciente em estado terminal, nem mesmo quando autorizado por familiares, isso seria uma afronta a dignidade da pessoa humana do doente, e um ato criminoso de eugenia. O termo eutanásia passa por uma evolução semântica ao longo dos séculos, sengundo Barchifontaine[3] a partir de Tomás Morus e Roger Bacon, no século XVII: “o termo “eutanásia” adquire o significado que faz referência ao ato de pôr fim à vida de uma pessoa enferma. O debate sobre eutanásia não se concentra na legitimação de dispor da vida de qualquer pessoa, mas de a pessoa enferma, para a qual não existem esperanças de vida em condições que possam ser qualificadas como humanas, pedir e obter a eutanásia. A palavra “eutanásia” significou a ajuda oferecida ao moribundo por parte do médico consciencioso e atento aos sofrimentos e angústias do enfermo. O conceito clássico de eutanásia é tirar a vida do ser humano por considerações “humanitárias” para a pessoa ou para a sociedade, no caso de deficientes, anciãos, enfermos incuráveis… distingue-se entre eutanásia ativa (positiva ou direta), de um lado, e passiva, de outro. No primeiro caso, trata-se de uma ação médica pela qual se põe fim à vida de uma pessoa enferma, por um pedido do paciente ou a sua revelia. O exemplo típico seria a administração de uma superdose de morfina com a intencionalidade de pôr fim à vida do enfermo. É também chamada de morte piedosa ou suicídio assistido. A eutanásia passiva ou negativa não consistiria numa ação médica, mas na omissão, isto é, na não-aplicação de uma terapia médica com a qual se poderia prolongar a vida da pessoa enferma. Por exemplo, a não-aplicação ou desconexão do respirador num paciente terminal sem esperanças de vida. Tendo em vista a complexidade da questão, alguns autores, entre os quais o eticista Javier Gafo (Espanha), propõem discutir a questão em torno dos termos “deixar morrer em paz” e “eutanásia”. Deixar morrer em paz: seriam aquelas situações em que se toma a decisão de não continuar mantendo a vida, suprimindo determinadas terapias ou não as aplicando a um enfermo em que não existem possibilidades de sobrevivência, porque ele próprio expressou sua vontade explicitamente ou porque se pode pressupor”. (grifo nosso). Lepargneur[4] trata da eutanásia como “intervenção que almeja, com  sucesso, pôr fim simultaneamente à vida biológica e aos sofrimentos julgados intoleráveis de um ser humano que assim o quer (ou o queria, sem ter anulado seu pedido ou sua intenção anterior)”. Entretanto, esta definição não é se restringe a casos estrito senso, mas sim lato senso, pois a sua causa se determina quando o indivíduo “não vê sentido humano no prolongamento da própria existência biológica e nem outro meio mais idôneo para pôr fim a seu desconforto, concretamente, em seu contexto. Tal ser humano deve tomar (ou ter tomado) essa decisão com lucidez e não em estado transitório de depressão”. Para o eminente doutrinador, três são as causas para a eutanásia: “extrema velhice sem perspectiva de rejuvenescimento, excepcionalidade negativa, pesada e incurável, doença previsivelmente terminal”. A orientação à antecipação da morte do indivíduo, no Brasil, conforme a Resolução 1.195 de 2012 do CFM, restringe-se ao paciente que foi diagnosticado com doença grave, terminal e irreversível. Não se trata, por exemplo, de um paciente com problema cardíaco, que é diagnosticado como terminal, mas que se sofrer um transplante eficaz e eficiente, poderá sobreviver. Neste caso o estado terminal não é absoluto, mas relativo, pois vai depender das circunstâncias, como ter o doador, retirar após a morte do doador o coração, mover toda uma equipe qualificada para transportar o coração, enquanto o paciente e sua equipe de médicos e enfermeiros já está  pronta para a cirurgia. 1.3. Aspectos históricos da eutanásia ou da eugenia Segundo o Professor Genival Veloso de França in o direito de matar ou de morrer, em algumas passagens da existência humana se configurou na eugenia, é o que se constata no relato a seguir. “O "direito de matar" ou o "direito de morrer" sempre teve em todas as épocas seus mais extremados defensores. Na Índia de antigamente, os incuráveis eram jogados no Ganges, depois de se lhes vedar a boca e as narinas com a lama sagrada. Os espartanos, conta Plutarco em Vidas Paralelas, do alto do monte Taijeto, lançavam os recém-nascidos deformados e até anciãos, pois "só viam em seus filhos futuros guerreiros que, para cumprirem tais condições deveriam apresentar as máximas condições de robustez e força". Os Brâmanes eliminavam os velhos enfermos e os recém-nascidos defeituosos por considerá-los imprestáveis aos interesses do grupo . Em Atenas, o Senado tinha o poder absolutos de decidir sobre a eliminação dos velhos e incuráveis, dando-lhes o conium maculatum – bebida venenosa, em cerimônias especiais. Na Idade Média, oferecia-se aos guerreiros feridos um punhal muito afiado, conhecido por misericórdia, que lhes servia para evitar o sofrimento e a desonra. O polegar para baixo dos césares era uma indulgente autorização à morte, permitindo aos gladiadores feridos evitarem a agonia e o ultraje. Há até quem afirme que o gesto dos guardas judeus de darem a Jesus uma esponja embebida em vinagre, antes de constituir ato de zombaria e crueldade, teria sido uma maneira piedosa de amenizar seu sofrimento, pois o que lhe ofereceram, segundo consta, fora simplesmente o vinho da morte, numa atitude de extrema compaixão. Segundo Dioscorides, esta substância "produzia um sono profundo e prolongado, durante o qual o crucificado não sentia nem os mais cruentos castigos, e por fim caía em letargo passando à morte insensivelmente". Assim admitida na antiguidade, a eutanásia só foi condenada a partir do judaísmo e do cristianismo, em cujos princípios a vida tinham o caráter sagrado. No entanto, foi a partir do sentimento que cerca o direito moderno que a eutanásia tomou caráter criminoso, como proteção irrecusável do mais valioso dos bens: a vida. Até mesmo nos instantes mais densos, como nos conflitos internacionais, quando tudo parece perdido, face as condições mais precárias e excepcionais, ainda assim o bem da vida é de tal magnitude que a consciência humana procura protegê-la contra a insânia, criando regras para impedir a prática de crueldades irreparáveis. Outras vezes, a ciência, de forma desesperada, intima os cientistas do mundo inteiro a se debruçar sobre as mesas de seus laboratórios, na procura dos meios salvadores da vida.” Esclarece José Roberto Goldin[5] o equívoco da expressão eutanásia quando se trata eugenia praticada na Alemanha Nazista: “Em outubro de 1939, a Alemanha Nazista implantou a  "Aktion T 4", que era um programa de eliminação de recém-nascidos e crianças pequenas, até 3 anos, que tinham uma "vida que não merecia ser vivida". Os médicos e parteiras tinham o dever de notificar a autoridade sanitária de casos de retardo mental, deformidades físicas e outras condições limitantes. Uma junta médica de três profissionais examinava cada caso e a eliminação somente era realizada quando houvesse unanimidade. O programa logo se extendeu para adultos e velhos. Os pacientes que deveriam ser notificados eram portadores de esquizofrenia, epilepsia, desordens senis, paralisias que não respondiam a tratamento, sífilis, retardos mentais, encefalite, doença de Huntington e outras patologias neurológicas. Eram também incluídos os pacientes internados a mais de 5 anos ou criminalmente insanos. Foram acrescidos os critérios de não possuir cidadania alemã, ou ascendência alemã, discriminando especialmente negros, judeus e ciganos. Em seis centros de extermínio foram executadas cerca de 100.000 pessoas em menos de dosi anos que o Programa foi mantido. Um sermão do bispo católico Clemens von Galen, feito em 3 de agosto de 1941 denunciou de forma contundente e definitiva este extermínio. Em 23 de agosto, Hitler suspendeu a Aktion T 4, devido as repercussões deste sermão. A tecnologia de extermínio desenvolvida neste Programa foi utilizada nos campos de concentração para a eliminação em massa, não mais de doentes, mas com finalidade de "purificação racial". A designação Eutanásia para esse tipo de procedimento é incorreta, pois não havia o interesse de minorar o sofrimento de uma pessoa capaz e informada de sua condição de saúde.” O fato da eugenia ter sido um aspecto histórico, na antiguidade, e muitas vezes ter na filosofia a contemplação da morte ou da vida, nada justifica a eliminação dos seres vivos, sejam humanos, ou animais, sem que isso seja, no caso do ser humano, conforme a sua vontade, e no caso dos animais, à sua proteção, ou redução do sofrimento. 1.4. Eutanásia e filosofia existencialista Para Alvaro L.M. Valls[6] in   a que se saber quando é chegada a hora de morrer, e que a filosofia é quem sempre analisou o saber morrer, o morrer através de uma boa morte ou morte doce. “A filosofia já foi considerada, no passado, o aprendizado da morte. Desde Sócrates, filósofo era aquele que sabia morrer. Função da filosofia seria preparar-nos para uma “boa morte”, e o termo grego genérico, no caso, era mesmo “eutanásia”. Supunha-se que aquele que sabe morrer aprendeu a viver, e assim a vida e a morte se iluminavam reciprocamente. No século XIX, época dos grandes sistemas, a morte saiu da temática central dos textos filosóficos, e foi talvez Kierkegaard quem inaugurou uma nova perspectiva, chamada depois “existencial”, descrevendo a morte como algo que para cada um de nós é certo, mas cuja hora é bem incerta. Os filósofos da existência, no século XX, aprenderam esse dado sob a fórmula mais genérica da experiência da “finitude humana”. Para Heidegger, um dos “existenciais” que caracterizariam o homem é o “ser-para-a-morte”: “Zum-Tode-sein”. Isto significaria que entre as diversas possibilidades do homem há uma que representa “a possibilidade da impossibilidade”, ou seja, quando esta ocorre, todas as demais possibilidades ficam excluídas. Não é preciso ser nenhum filósofo para constatar, hoje em dia, que a gente não morre mais como antigamente. A hospitalização, as unidades de terapia intensiva e a invenção dos transplantes caracterizam três grandes tendências do século XX que alteraram totalmente o horizonte da morte e do morrer. A perspectiva de ir terminar seus dias num leito de hospital, preso a uma série de tubos e aparelhos, e como um eventual doador de órgãos a serem retirados ainda vivos quando o paciente estiver legalmente morto (aliás, numa definição de morte legal para fins precípuos de transplantes), não existia antes da última grande guerra mundial. Técnicas extremamente artificiais que nos pareciam adequadas quando aplicadas a um jovem e forte soldado ferido gravemente no Vietnã e que só precisava de algumas horas para chegar ao Hospital de Frankfurt, de onde teria grandes perspectivas de sair capacitado a uma reintegração à vida normal dos cidadãos, chocaram terrivelmente os brasileiros quando aplicadas ao presidente eleito Tancredo Neves, com um quadro clínico totalmente diferente. Técnicas e procedimentos que dão aos profissionais da saúde novos poderes de retardar ao máximo a hora da morte implicam obviamente um acréscimo de responsabilidade na grave questão de definir afinal quando então seria preciso desistir, aceitando o irreversível. A tentativa de definir a “ortotanásia” como um “justo meio termo” entre a eutanásia (apressada), e a distanásia (obstinada), parece ser antes um sintoma do problema do que uma verdadeira e definitiva solução. Aliás, para quem aceitar um pluralismo de definições da morte, entendida de várias maneiras como “um processo”, parece que o conceito genérico da “irreversibilidade” continuará como o mais proveitoso ou operacional nos diversos casos. Nem todos preferem, é claro, a definição enunciada por H. Tristam Engelhardt, Jr. (Fundamentos da Bioética, 1998, p. 296) da pessoa que se consideraria morta “quando seu corpo começasse a cheirar mal sob o sol do verão do Texas”. E se os mais obstinados na recusa da hora da morte chegam a pedir para serem congelados, há um dado que mesmo eles deveriam levar em conta: ninguém, a rigor, pode dar garantia absoluta de que daqui a 50 ou 100 anos, quando a medicina tiver descoberto a cura da doença que os condenou, haverá lugar no planeta para (o retorno de) mais um indivíduo, na hipótese da superpopulação. De modo que o projeto da “conservação criônica” lembra a muitos filósofos o conceito da “má infinitude”, que lança para o puramente quantitativo algo que teria de ser resolvido em termos qualitativos”. Ao encontro de todo o exposto, em relação ao prolongamento da vida por técnicas médicas, José Heck[7] observa que: “A sacralidade da existência revela-se no projeto de vida do indivíduo e não está descolada do conjunto de valores que o paciente adota antes de a morte ser iminente e inevitável, de a pessoa entrar em coma, de ficar demente ou de sofrer de uma doença incurável. Os seres humanos determinam a qualidade de suas vidas por meio de um conjunto de interesses valorativos que dão integridade ao todo da existência. A integralidade diretiva da vida humana é o critério básico contra a inumanidade da obstinação terapêutica, dos tratamentos fúteis e inúteis, do prolongamento da agonia e do adiamento sem sentido da morte lenta, marcada por ansiedade e por muito sofrimento (distanásia), e a favor da morte digna, no tempo certo, sem abreviação e prolongamentos abusivos, sensíveis ao alívio das dores e ao processo de humanização da morte (ortotanásia). A estrutura valorativa da biografia do indivíduo, com o leque das opções feitas ao longo de sua existência, justifica o pedido de abreviação da vida (eutanásia) para o caso de manipulação da morte, ou seja, para as intervenções em seu corpo que adiam indefinidamente a morte e, portanto, negam indevidamente a finitude da condição mortal do paciente” (PESSINI, 2003, p.389-408). Assim percebe-se que a doutrina do existencialismo considera o prolongamento da vida por técnicas médicas como sendo um atentado a dignidade da pessoa humana, no seu direito a finitude da vida através da doce morte. 1.5. Humanizar e o direito de morrer Lepargneur[8] analisando a obra Jacques Pohier sobre a eutanásia constata que se faz necessário humanizar a vida até a morte de forma inclusiva, ou seja, incluir a morte nos direitos humanos. Se há para o indivíduo o direito à vida como sendo um direito fundamental e humano, há, também o direito à morte, com o mesmo fundamento, pois também é um direito humano. Assim como não se defende o direito a qualquer vida, mas sim o direito à vida com qualidade de vida, se defende, nesta monografia, o direito à morte com qualidade profissional de se abster da vida sem sofrimento. Quando Lepargneur elucida que há um tempo para tudo, ele quer se referir que não se deve prolongar a vida além do seu tempo, permitindo que através da tecnologia a medicina prolongue a vida de um moribundo que agoniza um sofrimento eterno, nem que se deva antecipar a morte para quem está em estado de saúde. Ter saúde é ter ausência de doença, de dor, de desequilíbrio mental e espiritual. Ter saúde é viver em equilíbrio, em harmonia, de forma tranquila e serena. Quando os familiares pedem aos médicos para usarem de todo o seu conhecimento científico para prolongar ao máximo a vida do doente terminal, eles estão agindo de forma egocêntrica, pois não estão respeitando o direito do doente terminal de ser respeitado na sua dignidade humana, pois todo ser humano, assim como nasceu, ele irá morrer. A questão é como ele irá morrer? O conhecimento científico do médico e da sua equipe poderá vir ao encontro do direito a imagem, a honra, a dignidade do paciente terminal, e da sua privacidade, desde que solicitado pelo próprio interessado. Chama atenção a observação que Lepargneur faz em relação ao conhecimento do médico. Não basta este conhecimento científico, não basta o saber profissional, faz se necessário o saber introspectivo do paciente. O médico tem que ter o dom, a sensibilidade para interpretar o saber do paciente sobre a sua própria doença. É o paciente que sabe o quanto sofre, qual o grau da sua dor física e moral. Isso é humanizar o querer do paciente que deseja morrer, que deseja antecipar a sua biológica hora final. Assim, Lepargneur ao elucidar Jacques Pohier salienta que “ninguém deve substituir a consciência do outro e o destino de ninguém; isso é respeitar as pessoas e a vida humana que só existe em pessoas concretas”. Ele declara que o saber do paciente deve ser buscado pelo profissional da saúde. Logo, a autonomia da vontade do paciente deve ser observada e respeitada. Cumpre observar, conforme Lepargneur, que Pohier colaborou e participou da Associação para o Direito de Morrer na Dignidade (ADMD). E respeitar a autonomia, livre, sem pressão, sem coação, sem indução, e consentida do paciente lúcido, mas que se encontra em estado terminal irreversível, é respeitar a sua dignidade de pessoa humana, é respeitar o seu direito à vida quanto à morte. 1.6. A face paradoxal do princípio da autonomia O princípio da autonomia da vontade do indivíduo é correlato ao princípio da dignidade humana, quando a bioética proclama como sendo um direito do paciente e um dever do médico. Assim sendo, um direito do paciente terminal, quando em posse das sua faculdade mental, portanto com capacidade civil de se autodeterminar conforme a sua vontade, sem sofrer esta vontade nenhum tipo de intervenção, nem direta, nem indireta. Não pode a vontade do paciente lúcido sofrer ingerência direta como coação, pressão, indução, nem ingerência indireta como sugestão programada para ser cumprida através de estado hipnótico. Se um profissional da saúde, como um psiquiatra ou um psicólogo sugestionar o paciente no transe hipnótico estará ferindo a ética profissional e violando o direito à liberdade do paciente, em através da autonomia da sua própria vontade, se autodeterminar conforme o seu próprio interesse. Além disso tratar-se-á de um flagrante desrespeito ao princípio da dignidade humana. A autonomia da vontade do paciente deve ser manifestada de forma segura, através de instrumento que lhe dê garantias de que a sua vontade não será manipulada. O instrumento que registra de forma cabal os anseios e desejos do paciente é o Termo de Consentimento informado. Entretanto essa adesão a este instrumento deve se dar após o paciente ter recebido todas as informações científicas sobre a sua doença, informações necessárias à tomada de decisão acerca da sua própria vida, ou morte. Logo, o médico deve prestar todos os esclarecimentos e paradigmas à tomada de decisão, e ele deve se expressar de forma clara e concisa. Não deve obscurecer nenhum dado, nem consultar a família do paciente. Não deve agir conforme a vontade dos familiares, mas sim conforme a vontade do paciente. Para que o paciente terminal possa dar o seu consenso, as informações claras e precisas sobre a sua doença devem lhe ser prestadas bem antes da doença se agravar, pois para ele exercer o direito à liberdade com fundamento no princípio da autonomia da vontade livre, ele deve estar com capacidade absoluta de se autodeterminar. Contudo, eis que surge o paradoxo do princípio da autonomia nos casos de bioética, segundo algumas circunstâncias. Verifica Lepargneur[9] que muitas vezes o consentimento informado é impossível de ser concedido, pois “na realidade, nos serviços de reanimação, se se recusa o simulacro e a impostura, tal consentimento é geralmente impossível de ser re colhido…”.  Lepargneur enfrenta a questão da incapacidade relativa momentânea do paciente ao questionar sobre o seu estado para tomar decisões. Ele se refere a inadequação de um quase impossível consentimento informado, esclarecido, mas não compreendido. Perquire Lepargneur sobre a concessão deste tipo de consentimento, no que tange a compreensão e interpretação do paciente, pois para ele nestes casos o médico estaria mais preparado para decidir: “(…)“consentimento esclarecido e perfeitamente livre” de um doente, ser humano que não está na sua melhor forma cultural e emocionalmente incapaz, talvez, de fornecer esta adesão limpa, é tão agudamente percebida por certos médicos norte-americanos que eles pedem, antes de certas intervenções arriscadas, a caução de um tribunal. O médico-reanimador Mantz confessa: “Afinal, a pessoa mais bem situada para resolver estas opções delicadas é o próprio médico:  tem na mão os elementos técnicos, psicológicos e legais… O negócio não é tanto de direito jurídico ou de estrita deontologia quanto de percepção equitativa”. Com todo o respeito que merece as arguições proferidas por este eminente doutrinador e sua experiência profissional acerca da cura no processo terapêutico de uma sinergia, mas  se o médico agir pensando na cura, e que o seu saber profissional é essencial para lhe salvar a vida ou para lhe garantira a morte, ele estará desrespeitando o direito individual do paciente de decidir sobre a sua própria vida. Ousa-se discordar destas arguições, pois se o médico agir conforme o seu juramento profissional e o seu conhecimento científico salvando, ou melhor prolongando a vida de um paciente terminal, por sua vez, prolongando o seu sofrimento, estará agindo de boa-fé? Ou estará agindo de forma egocêntrica, ou a pedido de interesse de terceiros? Ele estará violando o princípio da dignidade humana, e violando o direito à liberdade de se autodeterminar através do princípio da autonomia do paciente, neste caso, paciente terminal. O que o médico deve fazer é dar novos paradigmas para o paciente. O médico deve explicar qual é a doença, em que grau evolutivo ela se encontra, e os possíveis tratamentos que lhe serão propiciados ou para uma possível cura, ou para prolongar a sua vida. Não é uma decisão do médico. É um direito subjetivo do paciente, enquanto capaz, de se autodeterminar. Todavia, se este não mais tiver capacidade plena de se autodeterminar, então o representante legal o fará, assinando o termo de consentimento informado, e assumindo todos os riscos ou, ao menos, compartilhando esta responsabilidade com o médico e o hospital. 2. Consentimento Informado O termo de consentimento informado deve ser assinado pelo paciente, conforme interpretação deste artigo, no hospital deve passar pelo crivo do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, no judiciário deve ser autenticado em cartório para ter eficácia, e, ainda, assinatura de duas testemunhas como em qualquer outro instrumento particular. O presente trabalho demonstra não ser exata a orientação da resolução 1.995 de 2012 do CFM, pois esta acena à possibilidade do paciente, no prontuário médico autorizar a antecipação da sua morte apondo a sua assinatura (seja ortotanásia, ou não). Isso é imoral. O prontuário é prova frágil, podendo facilmente ser alterado por forças e interesses estranhos ao do doente. Faz-se necessário a presença de testemunhas, que poderão profissionais da saúde, ou ser familiares, que na hora da notícia da doença estavam juntos para lhes dar um apoio moral. E, ainda, ou para juntas atestarem que o médico explicou tudo de forma clara e compreensível ao paciente, e que ele agiu conforme as normativas internacionais e nacionais de bioética e biodireito. O primeiro documento que traz no seu bojo instruções à exigência do consentimento informado do paciente, de que forma ele deve ser aplicado e exigido, como deve o médico proceder, é o Código de Nüremberg. Este legado do Pós II Guerra Mundial visa coibir a eugenia e o desrespeito com a vida dos pacientes ou de etnias distintas. Diante da Constituição da República Federativa do Brasil, o médico, mesmo agindo de boa fé, não poderá desrespeitar a vontade do paciente, não poderá decidir sobre a vida do paciente. É, sim, uma questão de direito subjetivo individual garantida pela Magna Carta brasileira. O médico não pode ser um deus que decide sobre a morte ou sobre a vida do paciente, ele é um instrumento de cura ou de alívio no sofrimento alheio que poderá ou não ser chamado para prestar seus serviços, e esse chamamento dependerá única e exclusivamente do paciente, seja ele terminal ou não. Entretanto, o médico que apenas seguiu as orientações dúbias do Conselho Federal de Medicina, cujas interpretações respaldam ao atendimento da última vontade do paciente, movido por compaixão e por sentimento de solidariedade não pode ser tratado como se fosse um homicida. Este profissional tem que ter um amparo do ente de classe diante da lei penal, administrativa e cível. 3. Conselho Federal de Medicina e Resoluções O Conselho Federal de Medicina é uma instituição que foi criada pela Lei 3.268 de 1957, Art. 1º O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina, instituídos pelo Decreto-lei nº 7.955, de 13 de setembro de 1945, passam a constituir em seu conjunto uma autarquia, sendo cada um deles dotado de personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira. Este decreto foi revogado naquilo que lhe contradiz. Segundo Meirelles[10] autarquias são distintas de autonomias: “Autarquias são entes administrativos autônomos, criados por lei específica, com personalidade jurídica de Direito Público interno, patrimônio próprio e atribuições estatais específicas. São entes autônomos, mas não são autonomias. Inconfundível é autonomia com autarquia: aquela legisla para si; esta administra-se a si própria, segundo as leis editadas pela entidade que a criou. O conceito de autarquia é meramente administrativo; o de autonomia é precipuamente político. Daí estarem as autarquias sujeitas ao controle da entidade estatal a que pertencem, enquanto as autonomias permanecem livres desse controle e só adstritas à atuação política das entidades maiores a que se vinculam, como ocorre com os Municípios brasileiros (autonomias), em relação aos Estados-membros e à União. Autarquia é pessoa jurídica de Direito Público, com função pública própria e típica, outorgada pelo Estado. A autarquia não age por delegação; age por direito próprio e com autoridade pública, na medida do jus imperii que lhe foi outorgado pela lei que a criou. Como pessoa jurídica de Direito Público interno, a autarquia traz ínsita, para a consecução de seus fins, uma parcela do poder estatal que lhe deu vida. Sendo um ente autônomo, não há subordinação hierárquica da autarquia para com a entidade estatal a que pertence, porque, se isto ocorresse, anularia o seu caráter autárquico. Há mera vinculação à entidade-matriz, que, por isso, passa a exercer um controle legal, expresso no poder de correção finalística do serviço autárquico.” Assim se percebe que o Estado (Administração centralizada) cria a Autarquia (administração descentralizada) por lei específica, elas são sujeitos auxiliares do Estado, mas não se subordinam a ele, pois não há hierarquia entre eles, mas há controle dos seus atos administrativos. Portanto, se o Estado tem o Poder de Controle dos atos administrativos da Autarquia que ele criou, e este Estado tem bor base jurídica a Constituição Federal, isso significa que os atos administrativos da Autarquia não poderão violar a Magna Carta brasileira, pois estes se sujeitarão ao Controle Constitucional do Supremo Tribunal Federal, que é o guardião da Constituição da República Federativa do Brasil. Se a Autarquia Conselho Federal de Medicina cria uma Resolução que orienta a antecipação da morte do paciente com doença terminal, essa orientação tem eficácia entre os membros desta instituição, ou seja, entre os médicos, mas será ineficaz no Ordenamento Jurídico Nacional. Ela não será eficaz por que fere os direitos constitucionais individuais e coletivos fundamentais recepcionados na Constituição Federal. E, se não ferisse um direito fundamental, assim mesmo, os atos políticos e administrativos são classificados dentro de uma pirâmide com hierarquia, hoje conhecida por blocos de constitucionalização: uma resolução de um regulamento administrativo está na base do Ordenamento Jurídico estando abaixo da Constituição Federal. Então, se o CFM[11] é uma autarquia, é simples desdobramento administrativo do Poder Público. Os atos administrativos desta autarquia, antes de sofrerem Controle Jurídico constitucional visando a anulação do ato administrativo, poderão sofrer um controle administrativo, através de um processo administrativo que poderá anular ou convalidar os atos administrativos praticados pela autarquia. Os servidores desta autarquia são servidores públicos, são agentes públicos, e como tal só poderão agir conforme a lei. Meirelles [12] leciona que: “Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa “pode fazer assim”; para o administrador público significa “deve fazer assim”. Desta maneira, quando o médico agir conforme a Resolução 1.995 de 2012 do Conselho Federal de Medicina, não importa se o conteúdo desta se refere a eutanásia, ou a orientação à antecipação da morte, de qualquer jeito, estará agindo contra a Lei, pois não existe uma lei autorizando tal conduta, e como agente público, o médico vinculado ao CFM, não poderá agir diante de lacunas, ou diante da ausência de lei ordinária ou complementar. O médico não poderá agir por falta de disposição expressa em lei que lhe autorize agir a favor da eutanásia, da ortotanásia, da distanásia. Logo, mesmo que o seu ato não se concretize, não tenho eficácia, assim mesmo o médico responderá. E, esta responsabilidade poderá ser administrativa, civil ou penal, individual ou compartilhada. Mas se o médico não é concursado, não é estatutário como poderá responder como se fosse agente público? Ele está exercendo uma função essencial ao interesse público e coletivo, então responde pela função exercida e não pelo cargo. O CFM induz o médico a erro, há possibilidade de sofrer uma denúncia ao Ministério Público e ação civil pública. 3.1. CFM: Autarquias reguladoras de categorias profissionais Para Marçal Justen Filho[13] os órgão ou entes reguladores de atividades profissionais são entes de direito privado, que tem autorização legislativa, que lhes delega o poder de policia, como se fossem entes públicos, eles exercem a fiscalização daqueles profissionais que lhe são vinculados. “Os entes reguladores de atividades profissionais exercem o poder de polícia da profissão e são investidos no poder de instituir, arrecadar e gerir contribuições de natureza compulsória. Em rigor, no entanto, atribuir a esses entes a natureza autárquica gera problemas jurídicos relevantes. Essas entidades não se subordinam ao poder de tutela jurídica do Estado brasileiro. A escolha, indicação e investidura nas funções de administradores dessas entidades decorre de escolhas dos integrantes da categoria. Por isso, afirma-se que essas entidades não eram propriamente integrantes da estrutura administrativa estatal, mas manifestações da própria sociedade civil, ainda que exercitassem competências tipicamente estatais.” Justen Filho compreende que estes entes reguladores de profissão, não são propriamente autarquias, e que designá-los como autarquia não corresponde ao processo admitido para  o regime de contratação de pessoal, pois este é celetista, enquanto nas autarquias o regime é estatutário. A função de agente público é a mesma, a mesma responsabilidade pela prestação de serviço diante de terceiros, mas a responsabilidade contratual é diferenciada. Em se tratando de responsabilidade, da prestação de serviço ofertada pelos servidores, ou seja pelos médicos vinculados ao CFM, se este for considerado uma autarquia, a responsabilidade é objetiva, e a aplicação da lei, ao servidor (privado ou público) que exerce função pública é rígida. A tutela se dará no âmbito do direito administrativo, podendo agir somente dentro dos limites impostos pela lei. A polêmica do art. 58 da lei 9.649 de 1998, fez com que se reafirma-se a submissão dos órgãos reguladores de profissão, conforme Justen Filho[14], ao regime jurídico de direito público inerente ao seu cunho autárquico. Compreende-se então que a lei 8.112 de 1990 é aplicada aos médicos vinculados ao CFM, se esse é uma autarquia. 3.1.1. Responsabilidade objetiva da autarquia CFM Quando se fala de responsabilidade compartilhada está se falando de responsabilidade objetiva do ente que criou a autarquia e que não a fiscalizou. Também se fala de responsabilidade objetiva quando o agente, o médico, mesmo sendo terceirizado, no exercício da função pública, de interesse público e coletivo causar prejuízo a terceiro, neste caso a autarquia, responderá objetivamente, ou seja, ressarcindo todo o dano e prejuízo, porém poderá através de ação regressiva, responsabilizar subjetivamente o médico negligente, imprudente e imperito, artigo 37, §6º da Constituição Federal de 1988. Ter responsabilidade objetiva é ter o máximo de responsabilidade, a parte mais forte arcará com todo o ônus, independentemente de existir, ou não, culpa. Entre o paciente e o médico a relação é subjetiva, mas a parte mais forte é o médico; entre o médico e o hospital ou clínica a parte mais forte é a pessoa jurídica, entre esta e o Estado, a parte mais forte é o Estado. O Estado responderá pelo funcionamento inadequado do hospital, este pelo procedimento irregular do médico, e o médico pelo dano causado ao paciente. Entretanto, o paciente poderá responsabilizar diretamente o hospital ou o Estado por falta de fiscalização da conduta ética do médico.  3.2.Tipos de controle sobre o CFM e seus agentes médicos Há tipos de controle dependendo do tipo de atos administrativos, se eles são vinculados, o agente só pode agir conforme a lei, se eles são discricionário dependerão dos critérios da oportunidade e da conveniência para poder flexibilizar a ação do ato administrativo. Leciona Mello[15], que as Autarquias são fiscalizadas pelo ente que lhe criou e seus respectivos órgãos: “O controle das autarquias, às vezes designado, sobretudo na doutrina estrangeira, como tutela, é o poder que assiste à Administração Central de influir sobre elas com o propósito de conformá-las ao cumprimento dos objetivos públicos em vista dos quais, harmonizando-as com a atuação administrativa global do Estado. De acordo com o citado Decreto-lei 200, portanto, na órbita federal, este controle é designado “supervisão ministerial”. Todas as entidades da Administração indireta encontram-se sujeitas ou à supervisão do Ministro a cuja Pasta estejam vinculadas- que a exercerá auxiliado pelos órgãos superiores do Ministério- ou da Presidência da República, tratando-se de autarquia diretamente vinculada a ela. Dado que as autarquias são pessoas jurídicas distintas do Estado, o Ministro superior não é autoridade de alçada para conhecer de recurso contra seus atos, pois inexiste relação hierárquica entre este e aquelas, mas apenas os vínculos de controle legalmente previstos. Assim só poderia caber o chamado recurso hierárquico impróprio, isto é, quando previsto na lei própria da autarquia (ou em alguma outra lei).” Queiroz[16] alerta sobre a não supervisão do Ministério, em se tratando de autarquias especiais, a não descaracterização destas pela simples ausência deste, haja vista a flexibilização na sua autonomia. Para ele: “o Supremo Tribunal Federal já tinha enfrentado o tema no Mandado de Segurança n.º 22.643-9-SC, Relator Ministro Moreira Alves, por votação unânime, em que se decidiu que: "(…) – Os Conselhos Regionais de Medicina, como sucede com o Conselho Federal, são autarquias federais sujeitas à prestação de contas ao Tribunal de Contas da União por força do disposto no inciso II do artigo 71 da atual Constituição…. "Esses Conselhos – o Federal e os Regionais – foram, portanto, criados por lei, tendo cada um deles personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira. Ademais, exercem eles a atividade de fiscalização de exercício profissional que, como decorre do disposto nos artigos 5º, XIII, 21, XXIV, e 22, XVI, da Constituição Federal, é atividade tipicamente pública. Por preencherem, pois, os requisitos de autarquia, cada um deles é uma autarquia, embora a Lei que os criou declare que todos, em seu conjunto, constituem uma autarquia, quando, em realidade, pelas características que ela lhes dá, cada um deles é uma autarquia distinta.". Assim, constata-se que se o Conselho Federal de Medicina, tanto quanto os Conselhos Regionais de Medicina são autarquias. E, como autarquias, geralmente, por força de lei, sofrem Controle Administrativo da Administração Direta. No caso do Conselho Federal de Medicina, este sofre controle do Ministério da Saúde e seus órgãos. Sendo-lhes cabível o  recurso hierárquico impróprio. Contudo, além deste tipo de  controle tanto à Administração Direta quanto Indireta, é possível, em especial, às autarquias o Controle dos atos administrativos. Se o ato administrativo for um ato vinculado à lei, este ato não tem nenhum tipo de flexibilidade, ele deve estar afetado a lei. Se ele for praticado com poderes que extrapolam o limite imposto por lei, ele será considerado ilegal, e nulo. Neste caso, tanto a Administração poderá declarar que o ato é nulo desde o seu nascimento, ou seja, desde a sua prática e resultado efetivo, quanto poderá ser declarado nulo pelo Poder Judiciário. Assim há dois tipos de controle para o ato administrativo vinculado, o controle feito pela Administração Indireta, ou melhor, pela Autarquia, por processo administrativo, ou pelo judiciário, por processo judicial. Por outro lado, se o ato administrativo, praticado por agente público, for praticado com uma certa dose de discricionariedade, este ato não é vinculado a lei, e neste caso o agente público poderá agir conforme os critérios exigidos pela Administração. Entre estes tem-se os tradicionais critérios da oportunidade e da conveniência. Neste caso, o judiciário não poderá intervir, cabendo apenas um controle administrativo. Desta forma o controle da administração poderá revogar ou convalidar o ato que foi impugnado. O judiciário não pode analisar o mérito do ato discricionário. Todavia, se o agente não necessitava motivar o porquê agiu de tal forma, e o fez, abriu mão da sua liberdade conquistada por uma certa flexibilização, e vinculou o ato ao motivo. Portanto, o judiciário, agora, nesta situação poderá analisar se o motivo está conforme a lei. Outro tipo de controle é o praticado pelo TCU. O Tribunal de Contas da União é um   órgão do Poder Executivo que auxilia o Poder Legislativo, não é um tribunal, mas que tem o importante papel de fiscalizar as contas e a transparências dos atos de gestão administrativa. O próprio Poder Legislativo pode fiscalizar os atos do Poder Executivo, e em relação aos atos praticados contra a Administração, qualquer cidadão é parte interessada na defesa e proteção do patrimônio público, na moralidade administrativa, na proteção ambiental, cabendo impetrar a Ação Popular, que é gratuita. E, ainda, no caso de direito difuso ou coletivo, cujo interesse é mais amplo do que o público, pois o interesse é comum de todos, é possível denunciar a ilegalidade do ato administrativo ao Ministério Público. Por derradeiro, em se tratando de eutanásia, ortotanásia e distanásia o ato praticado fere o direito fundamental à vida (direito humano), neste caso, o ato praticado pelo médico poderá sofrer Controle Constitucional, seja difuso ou concentrado, dependendo das circunstâncias. O guardião da Constituição da República Federativa do Brasil é o Supremo Tribunal Federal (STF), este poderá praticar o Controle Concentrado, enquanto o Controle Difuso poderá ser praticado por tribunais de outras instâncias. Talvez caiba modulação dos efeitos da decisão, talvez a decisão tenha efeito de súmula vinculante, tudo dependerá do caso in concreto. 3.3. Orientação prevista na Resolução 1.995/2012 do CFM A análise que se faz nesta resolução sobre a orientação sobre a antecipação da vontade do paciente expressa nos artigos 1º e 2º, por analogia, e na lacuna desta resolução, percebe-se que existem novos paradigmas à ortotanásia e para a eutanásia. “Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.” Se o paciente não quiser receber nenhum tipo de tratamento, neste caso se caracteriza a ortotanásia, e se ele quiser como tratamento o auxílio do médico para o desligamento dos aparelhos que lhe manterão vivo no estado de dor e sofrimento, caso de eutanásia. Esta resolução tanto em caso, quanto no outro, apesar deste trabalho de monografia simpatizar com o direito à morte digna, alerta tanto o médico, quanto qualquer profissional da saúde, que uma resolução pode sofrer o controle judiciário ou administrativo dos atos praticados pelo médico. E neste caso o próprio judiciário vai se confrontar diante do conflito de interesses, ou conflito entre princípios de mesmo grau de hierarquia e importância: a liberdade individual (autonomia do paciente) versos o direito à vida; a responsabilidade subjetiva versos a responsabilidade objetiva; os atos administrativos do médico e o controle do CESPH. Para que a Constituição Federal seja modificada e venha a legalizar o ato de (eutanásia) administrativo praticado pelo médico enquanto agente vinculado ao CFM, que é órgão público de interesse público, o que se faz iminente é a compreensão da sociedade, enquanto agente de transformação, fazer pressão e exigir do Congresso Nacional uma lei que venha a delimitar as condições à prática da eutanásia no Brasil, sem que isso seja uma discussão só moral, conforme a religião, mas uma discussão ética, conforme o direito. O direito sagrado que cada cidadão tem de se autodeterminar conforme a sua própria vontade, sobre a sua própria vida, sem que o preconceito dos outros, a falta de coragem de falar e tratar da morte sem tabus, seja um obstáculo para o bem morrer, o morrer com dignidade, com respeito ao direito humano de se morrer, pois a única circunstância que é certa para o ser vivo é a morte. CONSIDERAÇÕES DERRADEIRAS O direito à vida, que é relativo, não pode ser imposto a outrem, assim como não pode a morte ser imposta ao paciente terminal, contra a sua própria vontade. Se o paciente terminal deseja optar pela morte, pela eutanásia, não pode o Estado intervir nesta decisão de ordem privada, individual, de primeira dimensão. O que o Estado pode e deve fazer é intervir no sentido de fiscalizar, de garantidor da assistência qualificada, de fiscalizar os procedimentos para impedir homicídios, impedir abusos de poder, impedir interesses de rapina sobre o espólio do doente, impedir a eugenia, impedir a violação de direitos como venda de órgãos. O Estado deve garantir que os pressupostos da Resolução 1.995/2012, condizentes com o direito constitucional e com a bioética, sejam considerados para fundamentar a legalidade do ato. Urge ao Congresso Nacional escutar a voz que vem do povo, no interesse difuso, de todos os doentes terminais, de forma indeterminada, atemporal, transindividual, em decidir livremente, conforme a sua autonomia, sobre a sua vida, ou sobre a sua morte, no mesmo patamar de direitos, na mesma isonomia, fundamentada na equidade da prestação de serviço do Sistema Unificado da Saúde, ou de instituições privadas, na otimização de custos hospitalares. O direito constitucional, os direitos humanos, o biodireito, a bioética, todos devem juntos transformar o direito privado à vida e o direito social à saúde que estão a mercê da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do ato de eutanásia quando respeitadas ou desrespeitadas as considerações da resolução 1.995/2012. Desta forma, respeitando a vontade de morrer do paciente terminal, ou de viver, estar-se-á respeitando a liberdade de expressão do paciente, assegurada por um documento cabal, o Consentimento Informado, que excluirá da responsabilidade penal, civil e administrativa o médico assistente da morte piedosa. Muito embora se perceba, que se deve dar o direito ao arrependimento, ao médico, que poderá renunciar ao ato de auxílio e acompanhamento profissional à eutanásia, quanto o direito ao arrependimento do paciente, a qualquer tempo, sem delongas formais, do pedido à morte assistida. Por outro lado, no ato de solicitação da própria morte todos os pressupostos, não revogados, ou já modificados, da resolução deverão ser preenchidos, no mais alto grau de formalidade, consignando por expresso, em termo escrito, e com duas testemunhas de cada parte da relação médico-paciente, o desejo cabal, habitual, harmônico e persistente de morrer sem dor, de forma eficaz e eficiente. O Conselho Federal de Medicina e o Estado não podem ficar à margem desta discussão, nem se omitir de fiscalizar todos os atos do médico agente público, sob pena de responder objetivamente. O que se pretende neste trabalho é que haja uma harmonia sistemática entre o querer do paciente, o executar do médico, e o fiscalizar do ente de classe e do Estado, todos juntos em prol do direito fundamental à liberdade do paciente, em Termo de Consentimento Informado, decidir sobre a sua própria vida.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-121/o-conselho-federal-de-medicina-e-o-consentimento-informado-a-eutanasia-diante-do-direito/
Singela análise normativa da evolução do consentimento informado hodierno nas pesquisas clínicas com seres humanos no mundo e no Brasil
O presente artigo faz uma abordagem singela sobre o Consentimento Informado como sendo um critério do princípio da autonomia da bioética e um pressuposto necessário para firmar o Termo de Consentimento Informado enquanto instrumento de segurança jurídica às partes da relação médico pesquisador e paciente participante de pesquisas clínicas com seres humanos. Através do método dedutivo comparativo, faz-se uma análise destes elementos nas Declarações internacionais às resoluções nacionais fundamentadas no biodireito e nos princípios da bioética. A finalidade deste estudo é esclarecer às pessoas leigas, ou desinformadas, sobre o direito líquido e certo do paciente pesquisado em assinar o documento Termo de Consentimento Informado diante das necessárias informações prestadas pelo médico pesquisador acerca dos riscos e benefícios das pesquisa médicas.
Biodireito
1. O que é o Consentimento Informado e o Termo de Consentimento Informado? Hoje, ainda, tem-se dúvidas sobre o que é o consentimento informado na relação médico paciente, pesquisado e pesquisador. As pessoas em geral são leigas no que se referir a bioética, seus princípios, e instrumentos. De uma forma bem singela para as pessoas leigas são direcionadas estas palavras esclarecedoras sobre o que é o Consentimento Informado. O Consentimento Informado, é o sim, que o paciente diagnosticado presta ao médico pesquisador, diante de informações claras, precisas, completas sobre a sua doença, sobre as suas possibilidades de cura, sobre os novos tratamentos, e os possíveis resultados desses novos estudos, é o sim, que permite ao médico agir, ou é o não, é a sua recusa em participar destas pesquisas e as consequentes implicações desta omissão. O Consentimento Informado se concretiza de forma escrita no Termo de Consentimento Informado. Este papel, ou melhor, este documento deve trazer por escrito todas as informações que já foram prestadas pelo médico ao paciente.  Tudo de forma detalhada, minuciosa,   para que o paciente consiga compreender quais são os riscos que ele corre em participar das pesquisas clínicas, as consequências de interromper o tratamento antes do período previsto, e os deveres e responsabilidades do médico, do hospital, da clínica, da equipe de profissionais envolvidos e do acompanhamento do CEP. Logo, o aceite do paciente firmado por sua assinatura e documentado no Termo de Consentimento Informado é um dos instrumentos de bioética e de direitos humanos coibidores de abusos praticados nas experiências clínicas com seres humanos, pois é um dos critérios exigidos pela normativa internacional e nacional de biodireito, fundamentado na bioética e seus princípios pilares. 1.1. Responsabilidade compartilhada dos profissionais e entes Não há que se falar apenas em responsabilidade civil subjetiva do médico pesquisador coordenador das pesquisas. Apesar do paciente ter seus direitos individuais fundamentais como o direito à vida e à saúde, apesar dele ser estudado, e analisado, o objeto da pesquisa, em sendo a cura de doença, é esta, a cura é o objeto. E, os resultados positivos da pesquisa não servirão apenas ao paciente, mas à toda coletividade indeterminada e imprecisa de pessoas que possuem a mesma doença, assim o interesse envolvido não é individual, mas coletivo e difuso da sociedade. Logo, a responsabilidade pelo bom andamento da pesquisa e pela preservação da vida do paciente é de todos os profissionais envolvidos, inclusive dos hospitais e clínicas. Trata-se da Responsabilidade civil objetiva ou responsabilidade compartilhada, que se verifica no direito ambiental à preservação do meio ambiente. Por analogia, para preservar o equilíbrio ambiental todos têm o dever de cuidar do meio ambiente, todos: Estado, sociedade e indivíduo. Logo o mesmo ocorre nas pesquisas, pois os resultados desta são para todos, são de interesse transindividual e difusos, assim tanto o médico quanto a sua equipe de pesquisadores, o hospital e clínica que prestam a infraestrutura, e o CEP, devem se responsabilizar, tanto pela vida do paciente, quanto pelos resultados da pesquisa. Abaixo segue um exemplo de Termo de Consentimento Informado absolutamente equivocado, pois não se pode dizer que a responsabilidade pela pesquisa é somente do pesquisador, este tem a responsabilidade de bem conduzir as pesquisas, mas os procedimentos adotados, não serão de responsabilidade individual do médico, mas, sim, de todos os envolvidos na pesquisa.  “MODELO do TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Dados de identificação Título do Projeto: ________________________________________________________________________ Pesquisador Responsável: ______________________________________________________________________________________ Instituição a que pertence o Pesquisador Responsável: ______________________________________________________________________________________ Telefones para contato: (___) ______________ – (___) _________________ – (___) ___________________ Nome do voluntário: ______________________________________________________________________ Idade: _____________ anos  R.G. ________________  Responsável legal (quando for o caso): _____________________  R.G. Responsável legal: _____________              O Sr. (ª) está sendo convidado(a) a participar do projeto de pesquisa “____________” (nome do projeto), de responsabilidade do pesquisador _________ (nome). Especificar, a seguir, cada um dos itens abaixo, em forma de texto contínuo, usando linguagem acessível à compreensão dos interessados, independentemente de seu grau de instrução: 1.    Justificativas e objetivos; 2.    descrição detalhada dos métodos (no caso de entrevistas, explicitar se serão obtidas cópias gravadas e/ou imagens); 3.    desconfortos e riscos associados; 4.    benefícios esperados (para o voluntário ou para a comunidade); 5.    explicar como o voluntário deve proceder para sanar eventuais dúvidas acerca dos procedimentos, riscos, benefícios e outros assuntos relacionados com a pesquisa ou com o tratamento individual; 6.    esclarecer que a participação é voluntária e que este consentimento poderá ser retirado a qualquer tempo, sem prejuízos à continuidade do tratamento; 7.    garantir a confidencialidade das informações geradas e a privacidade do sujeito da pesquisa; 8.    explicitar os métodos alternativos para tratamento, quando houver; 9.    esclarecer as formas de minimização dos riscos associados (quando for o caso); 10. possibilidade de inclusão em grupo controle ou placebo (quando for o caso); 11. nos casos de ensaios clínicos, assegurar – por parte do patrocinador, instituição, pesquisador ou promotor – o acesso ao medicamento em teste, caso se comprove sua superioridade em relação ao tratamento convencional; 12. valores e formas de ressarcimento de gastos inerentes à participação do voluntário no protocolo de pesquisa (transporte e alimentação), quando for o caso; formas de indenização (reparação a danos imediatos ou tardios) e o seu responsável, quando for o caso. Eu, __________________________________________, RG nº _____________________ declaro ter sido informado e concordo em participar, como voluntário, do projeto de pesquisa acima descrito. Ou Eu, __________________________________________, RG nº _______________________, responsável legal por ____________________________________, RG nº _____________________ declaro ter sido informado e concordo com a sua participação, como voluntário, no projeto de pesquisa acima descrito. _________________________________                ____________________________________ Nome e assinatura do paciente ou seu responsável legal   Nome e assinatura do responsável por obter o                                                                                                                     Consentimento Informado   _________________________________                ____________________________________ Testemunha.1                                                                              Testemunha.2 Informações relevantes ao pesquisador responsável: Res. 196/96 – item IV.2: O termo de consentimento livre e esclarecido obedecerá aos seguintes requisitos: a) ser elaborado pelo pesquisador responsável, expressando o cumprimento de cada uma das exigências acima; b) ser aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa que referenda a investigação; c) ser assinado ou identificado por impressão dactiloscópica, por todos e cada um dos sujeitos da pesquisa ou por seus representantes legais; e d) ser elaborado em duas vias, sendo uma retida pelo sujeito da pesquisa ou por seu representante legal e uma arquivada pelo pesquisador. Res. 196/96 – item IV.3: c) nos casos em que seja impossível registrar o consentimento livre e esclarecido, tal fato deve ser devidamente documentado, com explicação das causas da impossibilidade, e parecer do Comitê de Ética em Pesquisa. Casos especiais de consentimento: 1.     Pacientes menores de 16 anos – deverá ser dado por um dos pais ou, na inexistência destes, pelo parente mais próximo ou responsável legal; 2.     Paciente maior de 16 e menor de 18 anos – com a assistência de um dos pais ou responsável; 3.     Paciente e/ou responsável analfabeto – o presente documento deverá ser lido em voz alta para o paciente e seu responsável na presença de duas testemunhas, que firmarão também o documento; 4.     Paciente deficiente mental incapaz de manifestação de vontade – suprimento necessário da manifestação de vontade por seu representante legal.” Este Termo de Consentimento Informado, conforme a Resolução 196/96 do CNS,  deve ser aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa que referenda a investigação, isso quer dizer que o CEP[1], irá homologar a sua autorização para o prosseguimento da pesquisa, logo ele também tem responsabilidade pela pesquisa, trata-se da responsabilidade compartilhada. Se a própria normativa explicita essa responsabilidade compartilhada, não pode o médico pesquisador ser coagido a arcar com o ônus da operação e procedimentos científicos adotado por todo um grupo de pesquisadores e entes que o monitoram. O Termo de consentimento Informado não deve jamais servir de instrumento de impunidade, ao retirar responsabilidades do médico e de todos os envolvidos na pesquisa. Não pode o médico querer se eximir de responsabilidade quando agir com negligência, imprudência e imperícia, não pode o CEP alegar que lavas as mãos, pois fez todas as exigências necessárias cabíveis em lei, mais do que isso, ele deve acompanhar se os procedimentos adotados pelos pesquisadores são os previstos no projeto que foi aprovado antes do início da pesquisa. Se o paciente se sentir lesado por atos praticados ou omitidos por médico pesquisador de hospital público, que lhe cerceou um direito líquido e certo, quando não couber habeas corpus e habeas data, ele poderá impetrar um mandado de segurança e colocar no mesmo polo passivo tanto, o médico quanto o hospital e o CEP, pois a responsabilidade é compartilhada, ou seja, de todos os envolvidos na pesquisa clínica com seres humanos. Nunca deve o Consentimento Informado ser efetivado em prontuário médico, que é inacessível a qualquer interessado. Não pode o médico exigir que o paciente aposte a sua assinatura em prontuário médico. Em se tratando de paciente capaz de se autodeterminar através da sua vontade livre e consentida, este deveria assinar um contrato de consumo, onde ambas as partes terão obrigações, portanto responsabilidades, o médico de prestar socorro, de respeitar a dignidade humana do paciente, o paciente de não se retirar da pesquisa no meio do tratamento, se tudo estiver conspirando para um resultado positivo. Muito embora, o paciente possa se retirar da pesquisa quando quiser, pois tem a liberdade de se autodeterminar conforme a sua vontade. A finalidade da pesquisa e o seu resultado são de interesse comum de todos. O interesse comum está acima dos interesses individuais e do interesse público ou coletivo, pois se trata de interesse difuso. Não se sabe quem,  quando, onde estão, e quantos são os interessados no resultado das pesquisas que visam a cura de doença, por isso a pesquisa não é de interesse individual do médico ou do paciente, mas é de interesse de todos, de toda a humanidade. Em havendo abuso do médico pesquisador a uma coletividade  de pacientes pesquisados poder-se-á caracterizar como crime hediondo quando se tratar de sujeito vulnerável, portanto com efeitos de direito penal. O respeito a identidade cultural do indivíduo pesquisado deve prevalecer, como por exemplo, quando o paciente é um índio tutelado pelo direito constitucional[2]. 1.2. Princípio bioético da autonomia A principiologia da bioética está alicerçada nos princípios da beneficência, equidade, e autonomia. O princípio da autonomia encontra-se fundamentado no princípio constitucional da liberdade do homem, não apenas no seu direito de ir e vir, em tempo de paz, no território nacional, com seus bens e riqueza, muito mais que isso, ele garante o direito à livre expressão, à liberdade de se autodeterminar conforme a sua razão. Não pode o Estado intervir na esfera privada do indivíduo enquanto este estiver em posse da sua capacidade civil e política plena. Assim sendo, o princípio da autonomia da vontade livre se efetiva na liberdade que o indivíduo tem de agir conforme a sua vontade, desde que esta seja garantida por lei, ou pelos costumes e pela moralidade individual ou ética no trato da coisa pública. Em se tratando de pesquisa clínica, a liberdade do paciente deve ser orientada pela moralidade individual, e o resultado da pesquisa, por ser de interesse comum de toda a sociedade e do Estado, deve ser orientado pela ética pública. 1.3. Princípios ambientais da prevenção e da precaução, do mínimo existencial socioambiental, da proibição do retrocesso, da solidariedade 1.3.1. Princípio da Prevenção Em poucas palavras, o princípio da prevenção fundamenta medidas cautelares preventivas, com a finalidade de impedir que o resultado danoso da pesquisa se efetive, pois já existem conhecimentos científicos suficientes para coibir um risco ou perigo iminente e irreversível. O direito ambiental vem socorrer o biodireito ao preceituar este princípio na Declaração de Estocolmo de 1972, e na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente de 1981[3]. 1.3.2. Princípio da Precaução O princípio da precaução, singelamente, fundamenta medidas cautelares preventivas diante da incerteza científica dos resultados das pesquisas clínicas, com a finalidade de impedir que um dano imediato ou mediato, grave e irreversível possa se concretizar e prejudicar a saúde humana e o equilíbrio ambiental. Por analogia, busca-se o fundamento na Declaração do Rio 92 e fundamento legal na Lei dos Crimes Ambientais[4] e na Lei de Biossegurança[5], e no artigo 225 da CRFB/88[6]. 1.3.3. Princípio do mínimo existencial socioambiental De uma forma bem objetiva, o princípio do mínimo existencial social e ambiental, ou socioambiental, é aquele em que o Estado tem que prestar a sua contraprestação garantido ao indivíduo ou ao meio ambiente o mínimo de qualidade de vida necessário para sobreviver com dignidade. A Constituição Federal garante o direito à vida com qualidade de vida, seja humana, animal, ou vegetal. Logo, toda e qualquer forma de vida, presente ou futura, qualquer ser tem o direito de herdar o mesmo direito à vida, à saúde, que seus ancestrais tiveram. Voltar ao estado a quo, ao estado natural das coisas é impossível, assim como é impossível entrar na mesma água corrente duas vezes, mas se deve garantir que a vida seja como essa água corrente, que continue limpa e livre para no mínimo seguir o seu percurso e garantir a sobrevivência das espécies. 1.3.4. Princípio da proibição do retrocesso Uma das formas da tristeza se manifestar é quando o indivíduo se vê diante de leis que foram modificadas para pior, em prejuízo do meio ambiente e da vida e saúde humana. Exemplo, o Código Ambiental ou Código Florestal de 2012[7]. Por analogia, não se deve permitir que a Resolução 251/97 e 466/12 sejam alteradas para retirar direitos garantidos aos sujeitos participantes das pesquisas clínicas, como por exemplo, não se pode permitir que o direito de ser informado de forma clara e o direito de ter em mãos a cópia do seu Termo de Consentimento Informado, pois isso seria uma violação aos direitos fundamentais destes pacientes pesquisados.  1.3.5. Princípio da solidariedade  Este principio da solidariedade está expresso no artigo 225 da CRFB/88, quando diz que a responsabilidade pela preservação e conservação do meio ambiente equilibrado é de todos: indivíduo, sociedade e o Poder Público, leia-se Estado ou Administração Executiva. Assim, por analogia, não há que se falar, em pesquisas com seres humanos, cuja responsabilidade é única e exclusiva do médico pesquisador, é dele, do hospital, do CEP, e do Poder Público, que pode agir através da ANVISA[8], do CNS[9], dos CFM[10] e dos CRM[11], e, ainda, do Ministério Público. Esta solidariedade é representada pela responsabilidade civil objetiva, e pela responsabilidade compartilhada. Na responsabilidade objetiva, o Estado pode ser chamado para responder pelo seu agente, que no exercício da profissão, violou os direitos básicos e fundamentais do paciente pesquisado, e posteriormente, por ação regressiva, responsabilizar subjetivamente o médico que violou a lei e os princípios constitucionais e bioéticos por negligência, imprudência, e imperícia. E, na responsabilidade compartilhada, todos têm uma parcela de responsabilidade pelo todo, no caso de pesquisas médicas pelo bom andamento da pesquisa e pela preservação e conservação da saúde, ou do estado físico e psíquico do paciente. 2. Quando e como surgiu a bioética e o seu instrumento Consentimento Informado no cenário internacional? O Consentimento Informado tem por fundamento o princípio da autonomia que é um princípio basilar da bioética. Um e outro estão interligados  e imbricados pela ciência da ética da vida. A bioética vem se manifestando nas relações entre médico e paciente desde a Antiguidade através do Código de Hamurábi, entre 1728 a 1686 a.C., e através do Juramento de Hipócrates prestado por profissionais da área da saúde, como os médicos. Entretanto, foi na Idade Contemporânea que a bioética se manifestou com mais intensidade através de movimentos sociais em formação após a II GM[12]. 2.1. O Consentimento Informado no Código de Nüremberg A primeira manifestação da bioética como um movimento transformador nas ciências médicas, foi em 1947, com o Código de Nüremberg, que por sua vez é um legado do Tribunal de Nüremberg. Este condenou 21 autoridades nazistas por seus crimes cometidos contra a humanidade em nome da ciência médica. O Tribunal de Saúde Genética, na década de 30, no Século XX d.C, na Alemanha, com o intuito de proteger o sangue e a honra alemã, tutelou as leis de esterilização para judeus, ciganos, inimigos políticos do governo, e, ainda, tutelou as leis de prevenção de doenças genéticas. O governo concedeu às mulheres arianas reprodutoras o certificado racial, e condenou o homossexualismo como sendo crime, pois não atendia aos interesses da pátria, que era a procriação da raça perfeita, a eugenia. A eutanásia e a ortotanásia, ambas sem o consentimento foi oficializada aos idosos. Assim, sob a bandeira falsa da evolução da ciência médica, muitos abusos e atrocidades forma praticados por médicos nazistas contra diferentes raças que lhes eram consideradas impuras. O Código de Nüremberg concretizou as ideias de proteção aos seres humanos participantes de pesquisas clínicas, afastando toda e qualquer onipotência do médico sobre o paciente, e respeitando este como sujeito de direitos humanos e direitos fundamentais. O Código de Nüremberg do  Tribunal Internacional de Nüremberg – 1947, Trials of war criminal before the Nuremberg Military Tribunals. Control Council Law 1949;10(2):181-182, explicitou o Consentimento Informado como uma exigência da bioética no seu artigo 1º: Posteriormente, na década de 60, nos Estados Unidos, em Seattle, ocorreram movimentos de protestos contra o Comitê de Seattle que escolhia quem iria receber tratamento adequado, quem iria receber tecnologia salvadora da vida humana dos doentes com diálise crônica. Uma cidade que tem no seu passado a mais brilhante defesa de amor ambiental à natureza, do Chefe Touro Sentado, como sendo esta dotada de dignidade ambiental, não iria permitir, que a própria vida humana fosse desrespeitada e violada na sua dignidade. A sociedade passou a questionar os critérios adotados à escolha de quem iria viver, quem teria o direito à vida, se o rico, ou o pobre, o novo ou o velho, quem tivesse risco imediato à saúde, ou risco mediato, etc. Qual a compreensão deste Comitê sobre a equidade, a beneficência, a isonomia, e a não discriminação? O princípio democrático da participação de vários seguimentos ou pessoas distintas, que é aplicado na política, neste caso, talvez não tenha surtido os efeitos esperados diante de um comitê formado por pessoas leigas. Uma sociedade deve ser orientada por princípios que se coadunam, por costumes, pela equidade, pela moral nas relações individuais, e, principalmente, pela ética no trato do interesse público e coletivo de todos. O grande problema da democracia é a falta de conhecimento, esclarecimentos, e estudo para poder opinar de forma consciente sobre os resultados deste ato de expressão. Assim as pesquisas devem ser orientadas pela ética médica e ética profissional do pesquisador. Os códigos deontológicos veem para suprir as lacunas em determinados seguimentos dos órgãos profissionais. Não se indagava o querer dos pacientes que necessitavam das novas tecnologias, apenas se optava por um ou por outro, sem qualquer parâmetro, ou critério de justiça. Eis que surge a bioética, na década de 70, como sendo a ética da vida, para a microbioética a ética da vida humana pesquisada e participante de pesquisas clínicas; para a macrobioética a ética da vida ambiental entorno das pesquisas que usam a vida animal, vegetal, e do planeta Terra no seus estudos e experimentos científicos. Nesta evolução dos movimentos sociais e ambientais, que orientaram o Poder Legislativo e o Executivo a escutarem as vozes que vêm do povo, também os órgãos de classe, e conselhos se reorganizaram e passaram a dispor diretivas protecionistas das vidas em estudo nas pesquisas clínicas, e o Judiciário, hoje, com o seu ativismo passa a ter uma certa parcialidade em prol do homem e a qualidade de vida deste homem, dos animais, e da natureza. 2.2. O Consentimento Informado na Declaração de Helsinki de 1964 Em 1964, na Finlândia, com a 18 ª Assembleia Médica Mundial, na cidade de Helsinki, o consentimento do sujeito pesquisado tomou novas proporções. A declaração de Helsinki  veio ao encontro dos anseios da humanidade que assiste receosa o progresso galopante das ciências biomédicas e sua biotecnologia. O progresso científico é necessário, faz parte da realidade humana desde a modernidade, e todos o querem, porém urge a necessidade de se criarem aparatos científicos e jurídicos que, além de acompanhar toda essa evolução, venham, também, a limitar os excessos praticados nas pesquisas clínicas com seres humanos.  A seguir, na linha evolutiva, verificar-se-á o Consentimento Informado em instrumento internacional da década de 60 manifestando-se com o cuidado que se deve adotar para requerê-lo nas pesquisas clínicas com fim terapêutico, e nas pesquisas clínicas com fim científico não terapêutico. Neste caso, da pesquisa terapêutica, discorda-se no contexto atual da concessão do Consentimento Informado do representante legal, como sendo absoluta e superior a do paciente, pois se sabe que muitas vezes uma pessoa pode estar impossibilitada temporariamente de exercer a sua capacidade civil ou política plena, mas estar de posse da sua faculdade mental. Por exemplo, um presidiário, ele não pode exercer o seu direito de votar, mas pode ficar enfermo, e não ter liberdade para sair do presídio para se tratar, nem pode só pelo fato de estar pagando o que deve à sociedade, além da sua pena, ser mais penalizado sendo obrigado a participar de pesquisa em que não deseja fazer parte dos estudos. E, mesmo que este presidiário alegue estar sofrendo de doença grave cardíaca, e que lhe seja concedido a prisão domiciliar, não pode um parente, ou cônjuge, decidir sobre a sua vida,ou saúde, pois o problema dele não é mental. Logo, em posse da sua capacidade mental, ele terá o direito de se autodeterminar sem nenhum tipo de pressão ou coação, não sendo necessária a intervenção de representante legal. Hodiernamente, a exemplo do direito ambiental e seus princípios não  há que se falar de responsabilidade exclusiva do médico pesquisador, mas sim da responsabilidade compartilhada ou solidária do grupo de profissionais envolvidos, e do ente que monitora, como o CEP, e do ente que financia as pesquisas, e daquele que oferta toda a infraestrutura necessária para o desenvolvimento da pesquisa. Refuta-se nesta situação a aplicação do princípio ambiental do poluidor pagador, pois para as grandes empresas farmacêuticas, os grandes laboratórios, poluir o meio ambiente, ou desrespeitar os direitos humanos do sujeito pesquisado poderá ser mais lucrativo e rentável do que o prejuízo que a sanção pecuniária poderá lhe causar. Isto significa que os grandes laboratórios farmacêuticos, preferem arcar com o ônus da multa, que apesar de grande, ainda assim, será pequeno este prejuízo diante do grande lucro que a violação do biodireito poderá lhe causar. A vida ambiental e humana não pode ser objeto de especulação financeira lucrativa. Neste sentido é que se clama pela responsabilidade compartilhada e civilmente solidária. 3. Quando e como surgiu a bioética e o seu instrumento Consentimento Informado no cenário nacional? As Resoluções internacionais, de Nüremberg, de Helsinki foram recepcionadas pelo Conselho Nacional de Saúde do Brasil, que em 1996 promulgou a Resolução 196; em 1997, a Resolução 251; e, em 2012, a Resolução 466 sobre questões relacionadas as pesquisas clínicas com seres humanos, novos medicamentos, novos fármacos, e testes, em pessoas sãs e pacientes voluntários. Abaixo segue, sem aprofundar este estudo, a evolução do Consentimento Informado e o Termo de Consentimento Informado no cenário nacional. 3.1. Resolução 196 de 1996 do CNS No âmbito interno, percebe-se nesta Resolução do Conselho Nacional de Saúde do Brasil, uma imensa evolução nas questões que envolvem as pesquisas clínicas com seres humanos, em especial, acerca do Consentimento Informado. Esta resolução 196 é ratificada pela resolução 251 de 1997, assim, ela será melhor dissecada no próximo ponto 3.2. “II- Consentimento livre e esclarecido – anuência do sujeito da pesquisa e/ou de seu representante legal, livre de vícios (simulação, fraude ou erro), dependência, subordinação ou intimidação, após explicação completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar, formulada em um termo de consentimento, autorizando sua participação voluntária na pesquisa.” Observa-se acima a previsão constitucional ao respeito da dignidade da pessoa humana em formação das crianças e adolescentes que se encontram em estado de subordinação ao poder familiar. Para garantir este respeito é que esta pessoa com capacidade relativa deve ser esclarecida para prestar o seu consentimento e este deve ser considerado e acrescentado ao consentimento informado do seu representante legal. Não se compreende que apenas um deles,  criança ou adolescente, ou seus pais, ou terceiro que seja seu representante legal, como tutor ou curador possa decidir sozinho sobre a participação ou não de pesquisas clínicas. E, ainda, o MP deveria estar presente nestas decisões. “III – ASPECTOS ÉTICOS DA PESQUISA ENVOLVENDO SERES HUMANOS. As pesquisas envolvendo seres humanos devem atender às exigências éticas e científicas fundamentais. III.1 – A eticidade da pesquisa implica em: a) consentimento livre e esclarecido dos indivíduos-alvo e a proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente incapazes (autonomia). Neste sentido, a pesquisa envolvendo seres humanos deverá sempre tratá-los em sua dignidade, respeitá-los em sua autonomia e defendê-los em sua vulnerabilidade;” Outro aspecto ético é a boa fé do médico pesquisador em obter resultados positivos à sociedade, é o agir conforme o princípio da beneficência, onde o que se almeja é o bem de todos. Um médico que se dedica às pesquisas deve ser movido pelo amor universal que une todos os seres humanos. E, neste sentido, este nobre pesquisador merece todo o respeito e admiração da comunidade acadêmica e da sociedade. “IV – CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO. O respeito devido à dignidade humana exige que toda pesquisa se processe após consentimento livre e esclarecido dos sujeitos, indivíduos ou grupos que por si e/ou por seus representantes legais manifestem a sua anuência à participação na pesquisa. IV.1 – Exige-se que o esclarecimento dos sujeitos se faça em linguagem acessível e que inclua necessariamente os seguintes aspectos: a) a justificativa, os objetivos e os procedimentos que serão utilizados na pesquisa; b) os desconfortos e riscos possíveis e os benefícios esperados; c) os métodos alternativos existentes; d) a forma de acompanhamento e assistência, assim como seus responsáveis; e) a garantia de esclarecimentos, antes e durante o curso da pesquisa, sobre a metodologia, informando a possibilidade de inclusão em grupo controle ou placebo;” Deveria ser prestado o Consentimento Informado em caso de comunidade de índios, conforme o seu dialeto, e em português. O Termo de Consentimento Informado deveria ser redigido na língua alienígena (original) e em português. Outra observação se faz em relação a um tipo de impacto ambiental, neste caso, para prever um potencial de risco danoso à saúde do pesquisado e ao meio ambiente entorno do local da pesquisa. IV.  “1-f) a liberdade do sujeito se recusar a participar ou retirar seu consentimento, em qualquer fase da pesquisa, sem penalização alguma e sem prejuízo ao seu cuidado; g) a garantia do sigilo que assegure a privacidade dos sujeitos quanto aos dados confidenciais envolvidos na pesquisa; h) as formas de ressarcimento das despesas decorrentes da participação na pesquisa; e, i) as formas de indenização diante de eventuais danos decorrentes da pesquisa. IV.2 – O termo de consentimento livre e esclarecido obedecerá aos seguintes requisitos: a) ser elaborado pelo pesquisador responsável, expressando o cumprimento de cada uma das exigências acima; b) ser aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa que referenda a investigação; c) ser assinado ou identificado por impressão dactiloscópica, por todos e cada um dos sujeitos da pesquisa ou por seus representantes legais; e, d) ser elaborado em duas vias, sendo uma retida pelo sujeito da pesquisa ou por seu representante legal e uma arquivada pelo pesquisador”. Adequada a exigências do próprio médico redigir o Termo de Consentimento Informado, pois cada caso, ou cada pesquisa terá peculiaridades próprias, sendo inviável o uso padrão de um modelo de Termo de Consentimento Informado. Por se tratar de procedimento de grande relevância e por existir uma possibilidade de riscos é que sempre deveria ser o paciente pesquisado identificado por impressão dactiloscópica e a confirmação da sua assinatura, em cartório. Tudo isso, torna a pesquisa mais onerosa e burocrática, mas viabiliza as garantias fundamentais. V.     “IV.3 – Nos casos em que haja qualquer restrição à liberdade ou ao esclarecimento necessários para o adequado consentimento, deve-se ainda observar: a) em pesquisas envolvendo crianças e adolescentes, portadores de perturbação ou doença mental e sujeitos em situação de substancial diminuição em suas capacidades de consentimento, deverá haver justificação clara da escolha dos sujeitos da pesquisa, especificada no protocolo, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, e cumprir as exigências do consentimento livre e esclarecido, através dos representantes legais dos referidos sujeitos, sem suspensão do direito de informação do indivíduo, no limite de sua capacidade; b) a liberdade do consentimento deverá ser particularmente garantida para aqueles sujeitos que, embora adultos e capazes, estejam expostos a condicionamentos específicos ou à influência de autoridade, especialmente estudantes, militares, empregados, presidiários, internos em centros de readaptação, casas-abrigo, asilos, associações religiosas e semelhantes, assegurando-lhes a inteira liberdade de participar ou não da pesquisa, sem quaisquer represálias; c) nos casos em que seja impossível registrar o consentimento livre e esclarecido, tal fato deve ser devidamente documentado, com explicação das causas da impossibilidade, e parecer do Comitê de Ética em Pesquisa;” Não está clara a alínea “c”, pois de qualquer forma deve ser exigido o consentimento do responsável legal, no caso de incapacidade absoluta, mas jamais se deve permitir que se inicie ou se mantenha uma pesquisa sem o Consentimento Informado e o seu Termo, sob pena de violar o biodireito. “d) as pesquisas em pessoas com o diagnóstico de morte encefálica só podem ser realizadas desde que estejam preenchidas as seguintes condições: – documento comprobatório da morte encefálica (atestado de óbito); – consentimento explícito dos familiares e/ou do responsável legal, ou manifestação prévia da vontade da pessoa; – respeito total à dignidade do ser humano sem mutilação ou violação do corpo; – sem ônus econômico financeiro adicional à família; – sem prejuízo para outros pacientes aguardando internação ou tratamento; – possibilidade de obter conhecimento científico relevante, novo e que não possa ser obtido de outra maneira; e) em comunidades culturalmente diferenciadas, inclusive indígenas, deve-se contar com a anuência antecipada da comunidade através dos seus próprios líderes, não se dispensando, porém, esforços no sentido de obtenção do consentimento individual; f) quando o mérito da pesquisa depender de alguma restrição de informações aos sujeitos, tal fato deve ser devidamente explicitado e justificado pelo pesquisador e submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa. Os dados obtidos a partir dos sujeitos da pesquisa não poderão ser usados para outros fins que os não previstos no protocolo e/ou no consentimento.” As exigências acima vêm ao encontro da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, da ONU[14], pois reza seu artigo 1º “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. E, reafirma-se o princípio da autonomia e da anuência do consentimento do sujeito pesquisado, no artigo 3º ao prescrever que “Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Portanto, liberdade de se expressar, de conceder o seu aceite, mesmo sendo uma criança, ou pessoa com capacidade relativa de se autodeterminar, e direito à segurança pessoal de preservar e manter a sua saúde, a integridade física e a vida humana respeitada na sua dignidade. Além disso, essa Resolução 196 de 1996 é regida por princípios constitucionais fundamentais, que por sua vez, são considerados cláusulas pétreas no Ordenamento Jurídico Nacional. 3.2. Resolução 251 de 1997 do CNS Esta Resolução surpreende pelo grau de intergovernabilidade inserido nas suas exigências, como normativas, ou seja, resolução do Grupo Mercado Comum do Mercosul. A questão relacionada à liberdade, à saúde, à vida, e à segurança do indivíduo que participa de testes para novos fármacos sendo discutida e recebendo um tratamento transnacional. “q – O protocolo deve ser acompanhado do termo de consentimento: quando se tratar de sujeitos cuja capacidade de auto determinação não seja plena, além do consentimento do responsável legal, deve ser levada em conta a manifestação do próprio sujeito, ainda que com capacidade reduzida (por exemplo, idoso) ou não desenvolvida (por exemplo, criança). r – Pesquisa em pacientes psiquiátricos: o consentimento, sempre que possível, deve ser obtido do próprio paciente. É imprescindível que, para cada paciente psiquiátrico candidato a participar da pesquisa, se estabeleça o grau de capacidade de expressar o consentimento livre e esclarecido, avaliado por profissional psiquiatra e que não seja pesquisador envolvido no projeto”. Acima se percebe a participação indireta de terceiro, alguém que não está participando diretamente da pesquisa, não tem responsabilidade sobre ela, mas tem responsabilidade de atestar a capacidade do sujeito paciente psiquiátrico de se autodeterminar, conforme os princípios da bioética, por sua vontade livre sem sofrer qualquer tipo de influência. Neste caso expresso é um profissional da saúde, um psiquiatra, mas além dele, deveria estar presente fiscalizando todos os atos praticados contra ou em prol destas pessoas com capacidade relativa, não só o seu representante legal, mas o fiscal da lei, dos direitos coletivos e difusos da sociedade, o representante do Ministério Público.  3.3. Resolução 466/2012 do CNS A Resolução 466 de 12 de dezembro de 2012 traz no seu bojo um considerado aumento no cuidado ao outro, no respeito ao outro, que se dispõe a participar livremente das pesquisas clínicas. Esta ratifica as anteriores declarações e esclarece o que é o Consentimento Informado e o que é o Termo de Consentimento Informado  ao dispor que: “II.5- consentimento livre e esclarecido – anuência do participante da pesquisa e/ou de seu representante legal, livre de vícios (simulação, fraude ou erro), dependência, subordinação ou intimidação, após esclarecimento completo e pormenorizado sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar; II.23 – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE – documento no qual é explicitado o consentimento livre e esclarecido do participante e/ou de seu responsável legal, de forma escrita, devendo conter todas as informações necessárias, em linguagem clara e objetiva, de fácil entendimento, para o mais completo esclarecimento sobre a pesquisa a qual se propõe participar;” Contudo, ela traz uma imensa inovação, pois conforme a ciência médica foi evoluindo, paralelamente, as normativas bioéticas ou o biodireito foram acompanhando as necessidades de maiores garantias à segurança dos indivíduos pesquisados. “II.24 – Termo de Assentimento – documento elaborado em linguagem acessível para os menores ou para os legalmente incapazes, por meio do qual, após os participantes da pesquisa serem devidamente esclarecidos, explicitarão sua anuência em participar da pesquisa, sem prejuízo do consentimento de seus responsáveis legais; III.1 – A eticidade da pesquisa implica em: a) respeito ao participante da pesquisa em sua dignidade e autonomia, reconhecendo sua vulnerabilidade, assegurando sua vontade de contribuir e permanecer, ou não, na pesquisa, por intermédio de manifestação expressa, livre e esclarecida;g) obter consentimento livre e esclarecido do participante da pesquisa e/ou seu representante legal, inclusive nos casos das pesquisas que, por sua natureza, impliquem justificadamente, em consentimento a posteriori;” Verifica-se que o Consentimento Informado deve ser prestado tanto pelo responsável legal quanto pelo paciente interessado em participar, seja ele um menor ou uma pessoa que está temporariamente incapacitada de dar a sua anuência ao feito. Se esta pessoa não tem condições de prestar o seu consentimento por escrito, então, obviamente ela não poderá assinar o Termo de Consentimento Informado. A resolução 466 inova ao trazer o Termo de Assentimento destas pessoas vulneráveis, contudo, ela não esclarece de que forma eles poderão dar a sua anuência, se é por impressão digital, se é por gravação, filmagem, outros meios legais, e qual o grau de valor hierárquico deste Termo de Assentimento diante do Termo de Consentimento Informado. “IV – DO PROCESSO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO O respeito devido à dignidade humana exige que toda pesquisa se processe com consentimento livre e esclarecido dos participantes, indivíduos ou grupos que, por si e/ou por seus representantes legais, manifestem a sua anuência à participação na pesquisa. Entende-se por Processo de Consentimento Livre e Esclarecido todas as etapas a serem necessariamente observadas para que o convidado a participar de uma pesquisa possa se manifestar, de forma autônoma, consciente, livre e esclarecida.” Este conceito expresso na Resolução 466, faz referência a toda e qualquer pesquisa, porém mister se faz esclarecer que se tratam de pesquisas clínicas com seres humanos, sejam elas terapêuticas ou não terapêuticas que têm por escopo o estudo científico justificado no bem comum de todos: a cura de doenças, a manutenção da saúde, a preservação da vida, a longevidade com qualidade de vida. IV.1              “- A etapa inicial do Processo de Consentimento Livre e Esclarecido é a do esclarecimento ao convidado a participar da pesquisa, ocasião em que o pesquisador, ou pessoa por ele delegada e sob sua responsabilidade, deverá: a) buscar o momento, condição e local mais adequados para que o esclarecimento seja efetuado, considerando, para isso, as peculiaridades do convidado a participar da pesquisa e sua privacidade; b) prestar informações em linguagem clara e acessível, utilizando-se das estratégias mais apropriadas à cultura, faixa etária, condição socioeconômica e autonomia dos convidados a participar da pesquisa; e, c) conceder o tempo adequado para que o convidado a participar da pesquisa possa refletir, consultando, se necessário, seus familiares ou outras pessoas que possam ajudá-los na tomada de decisão livre e esclarecida.” Não há que se confundir a questão do apoio familiar, com a determinação e decisão familiar. Os familiares poderão estar presente no momento do diagnóstico de doença grave e irreversível, e até no momento dos esclarecimentos sobre a possibilidade de novos paradigmas à cura da doença, e assim, neste momento delicado em que o paciente se encontra fragilizado, ajudá-lo a compreender o que está acontecendo de fato, e o que o médico está lhe propiciando, ou seja ofertando o convite para participar de testes de novos medicamentos, ou tratamento inovador. Nunca, jamais deverá a família decidir pelo paciente que tem capacidade de se autodeterminar. Além disso, ousa-se sugerir que o paciente não seja convidado a participar de pesquisas, mas diante de um diagnóstico comprovadamente grave de doença irreversível, ele possa acessar site da pesquisa e se cadastrar como voluntário, indicando o nome do médico que lhe diagnosticou para possíveis confirmações. Não é o paciente que tem de ser convidado, mas é ele quem tem que se oferecer (por livre vontade) a participar. Logo, para isso a Plataforma Brasil deveria divulgar as pesquisas em andamento, no Brasil, relacionadas àquela doença do paciente. Assim o paciente não iria se sentir uma cobaia humana às pesquisas, mas sim uma pessoa voluntária que luta per si, e pela coletividade para encontrar a cura de moléstia. IV.2              “- Superada a etapa inicial de esclarecimento, o pesquisador responsável, ou pessoa por ele delegada, deverá apresentar, ao convidado para participar da pesquisa, ou a seu representante legal, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para que seja lido e compreendido, antes da concessão do seu consentimento livre e esclarecido. IV.3 – O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido deverá conter, obrigatoriamente: a) justificativa, os objetivos e os procedimentos que serão utilizados na pesquisa, com o detalhamento dos métodos a serem utilizados, informando a possibilidade de inclusão em grupo controle ou experimental, quando aplicável; b) explicitação dos possíveis desconfortos e riscos decorrentes da participação na pesquisa, além dos benefícios esperados dessa participação e apresentação das providências e cautelas a serem empregadas para evitar e/ou reduzir efeitos e condições adversas que possam causar dano, considerando características e contexto do participante da pesquisa;” Ao encontro da segurança garantida no Termo de Consentimento Informado, encontra-se além do princípio da autonomia, acima descrito, os princípios da prevenção e da precaução para impedir riscos ou dirimir sua potencialidade, e assim, mais uma vez inova a presente resolução IV.2.c)       “esclarecimento sobre a forma de acompanhamento e assistência a que terão direito os participantes da pesquisa, inclusive considerando benefícios e acompanhamentos posteriores ao encerramento e/ ou a interrupção da pesquisa; d) garantia de plena liberdade ao participante da pesquisa, de recusar-se a participar ou retirar seu consentimento, em qualquer fase da pesquisa, sem penalização alguma”; Tanto a resolução anterior quanto a atual expressam a possibilidade do paciente pesquisado desistir de participar da pesquisa sem qualquer tipo de sanção. Nesta situação não se está pensando na paciente, mas nos responsáveis pela pesquisa, pois, atualmente, no Brasil, ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, exceto se a proibição estiver prevista em lei, em outras palavras, se não fere a lei, pode se praticar determinando ato. O coordenador da pesquisa não quer cercear o direito do participante recusar continuar na pesquisa, por receio de ser processado. Urge a necessidade de explicar ao paciente os riscos de interromper um tratamento, que não lhe está causando nenhum tipo de prejuízo (por negligência ele não quer participar).  Não esclarece a presente Resolução 466, como será prestada a assistência a que terão direito os participantes da pesquisa, se essa não obter um resultado positivo, se não houver benefícios. No caso de prejuízo caberá indenização. A indenização é um valor pecuniário pelo prejuízo sofrido na saúde do indivíduo pesquisado, mas quem está com a saúde fragilizada quer um aparato, um suporte médico, uma assistência qualificada de imediato, um seguro, um plano de saúde, e não apenas dinheiro em espécie. De que vale ter o dinheiro se não tem saúde. “e) garantia de manutenção do sigilo e da privacidade dos participantes da pesquisa durante todas as fases da pesquisa; f) garantia de que o participante da pesquisa receberá uma via do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; g) explicitação da garantia de ressarcimento e como serão cobertas as despesas tidas pelos participantes da pesquisa e dela decorrentes; e, h) explicitação da garantia de indenização diante de eventuais danos decorrentes da pesquisa”. A indenização provavelmente será pleiteada no judiciário. Quem está mal pode  não ter tempo suficiente para esperar uma decisão de antecipação de tutela na demanda judicial, por isso é que a assistência imediata deve ser um tratamento, um auxílio médico e hospitalar, nem que seja apenas para aliviar a dor e o sofrimento do paciente, se não lhe for possível buscar a cura à doença diante do fracasso da pesquisa. IV.4              “- O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido nas pesquisas que utilizam metodologias experimentais na área biomédica, envolvendo seres humanos, além do previsto no item IV.3 supra, deve observar, obrigatoriamente, o seguinte: a) explicitar, quando pertinente, os métodos terapêuticos alternativos existentes; b) esclarecer, quando pertinente, sobre a possibilidade de inclusão do participante em grupo controle ou placebo, explicitando, claramente, o significado dessa possibilidade; e, c) não exigir do participante da pesquisa, sob qualquer argumento, renúncia ao direito à indenização por dano. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido não deve conter ressalva que afaste essa responsabilidade ou que implique ao participante da pesquisa abrir mão de seus direitos, incluindo o direito de procurar obter indenização por danos eventuais”. Se houvesse a imoral possibilidade de renúncia a direitos fundamentais e da indenização pelo prejuízo sofrido, isso seria pior que a tão discriminada eutanásia, seria quase uma ortotanásia, onde a pessoa ficaria sem nenhum tipo de auxílio, ou tratamento, ficando à mercê da própria sorte. Neste caso, não há que ser esquecida que se trata de uma relação de consumo, apesar de ser voluntária e gratuita a participação, o paciente pesquisado paga com a sua vida, com a sua saúde, com a sua dignidade a continuação do processo e procedimentos da pesquisa em andamento. E, isso é eutanásia, o paciente sabe que poderá morrer por consequência de um tratamento mal aplicado, e assim mesmo lhe dá o consentimento para o médico pesquisador intervir na sua vida, no seu corpo físico, na sua saúde. O direito civil e constitucionais estão atentos para toda e qualquer violação aos direitos do homem. “IV.5 – O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido deverá, ainda: a) conter declaração do pesquisador responsável que expresse o cumprimento das exigências contidas nos itens IV. 3 e IV.4, este último se pertinente; b) ser adaptado, pelo pesquisador responsável, nas pesquisas com cooperação estrangeira concebidas em âmbito internacional, às normas éticas e à cultura local, sempre com linguagem clara e acessível a todos e, em especial, aos participantes da pesquisa, tomando o especial cuidado para que seja de fácil leitura e compreensão; c) ser aprovado pelo CEP perante o qual o projeto foi apresentado e pela CONEP, quando pertinente; e, d) ser elaborado em duas vias, rubricadas em todas as suas páginas e assinadas, ao seu término, pelo convidado a participar da pesquisa, ou por seu representante legal, assim como pelo pesquisador responsável, ou pela (s) pessoa (s) por ele delegada (s), devendo as páginas de assinaturas estar na mesma folha. Em ambas as vias deverão constar o endereço e contato telefônico ou outro, dos responsáveis pela pesquisa e do CEP local e da CONEP, quando pertinente”. Compreende-se que para proteção do próprio médico pesquisador, deveria ser exigido três vias para arquivamento, uma do médico, uma do paciente, outra do hospital ou clínica, e este por sua vez deveria escanear o documento físico e disponibilizá-lo para o CEP, o CONEP ou a Plataforma Brasil, respeitando o sigilo das informações prestadas. Assim como a Ata de uma reunião ou Assembleia deve ser assinada na última folha e rubricada em todas, inova a presente resolução, pois esta exigências vem ao encontro de concretizar este instrumento como sendo um documento, portanto, uma prova, que poderá ser utilizada, tanto na defesa do paciente, quanto do médico pesquisador. IV.6              “- Nos casos de restrição da liberdade ou do esclarecimento necessários para o adequado consentimento, deve-se, também, observar: a) em pesquisas cujos convidados sejam crianças, adolescentes, pessoas com transtorno ou doença mental ou em situação de substancial diminuição em sua capacidade de decisão, deverá haver justificativa clara de sua escolha, especificada no protocolo e aprovada pelo CEP, e pela CONEP, quando pertinente. Nestes casos deverão ser cumpridas as etapas do esclarecimento e do consentimento livre e esclarecido, por meio dos representantes legais dos convidados a participar da pesquisa, preservado o direito de informação destes, no limite de sua capacidade; b) a liberdade do consentimento deverá ser particularmente garantida para aqueles participantes de pesquisa que, embora plenamente capazes, estejam expostos a condicionamentos específicos, ou à influência de autoridade, caracterizando situações passíveis de limitação da autonomia, como estudantes, militares, empregados, presidiários e internos em centros de readaptação, em casas-abrigo, asilos, associações religiosas e semelhantes, assegurando-lhes inteira liberdade de participar, ou não, da pesquisa, sem quaisquer represálias;” O direito à liberdade é um direito fundamental individual e coletivo, que não pode sofrer ingerência como limitações, apenas nos casos previstos em lei, lei criada pelo Poder Legislativo e não por um colegiado composto por diferentes profissionais (leigos). Esta redação da citação direta in bloco não foi bem redigida, pois conduz o leigo a errada interpretação. Não é o direito à liberdade de prestar o consentimento que está sendo restrito, mas é a capacidade do participante da pesquisa que está limitada, pois ele não está em posse da sua plena capacidade de se autodeterminar, que só deveria ser considerada em casos de paciente mentalmente perturbado ou em coma, ou criança com incapacidade absoluta. Assim mesmo devem ser consideradas, esclarecidas, e escutadas as suas vontades, quando tiverem uma capacidade relativa de compreensão e autodeterminação. “c) as pesquisas em pessoas com o diagnóstico de morte encefálica deverão atender aos seguintes requisitos: c.1) documento comprobatório da morte encefálica; c.2) consentimento explícito, diretiva antecipada da vontade da pessoa, ou consentimento dos familiares e/ou do representante legal; c.3) respeito à dignidade do ser humano; c.4) inexistência de ônus econômico-financeiro adicional à família; c.5) inexistência de prejuízo para outros pacientes aguardando internação ou tratamento; e, c.6) possibilidade de obter conhecimento científico relevante, ou novo, que não possa ser obtido de outra maneira; d) que haja um canal de comunicação oficial do governo, que esclareça as dúvidas de forma acessível aos envolvidos nos projetos de pesquisa, igualmente, para os casos de diagnóstico com morte encefálica;” Muito interessante esta alínea “C”, pois impede que fetos diagnosticados com anencefalia sejam abortados por outros interesses que não sejam o de preservar a vida da mãe, o seu estado mental, e sua saúde. Não podendo jamais o aborto ser motivado por interesses financeiros. Outra inovação é o chamamento do Estado à responsabilidade compartilhada, ao enunciar que o governo deverá criar um canal oficial para esclarecer as dúvidas existentes acerca da anencefalia do feto da mulher grávida que participa da pesquisa clínica. Argui-se sobre a possibilidade da Plataforma Brasil ser este canal, não só através de números telefônicos específicos para este assunto, mas através do próprio site e suas mensagens eletrônicas que deverão ser respondidas por profissionais qualificados.  “e) em comunidades cuja cultura grupal reconheça a autoridade do líder ou do coletivo sobre o indivíduo, a obtenção da autorização para a pesquisa deve respeitar tal particularidade, sem prejuízo do consentimento individual, quando possível e desejável. Quando a legislação brasileira dispuser sobre competência de órgãos governamentais, a exemplo da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, no caso de comunidades indígenas, na tutela de tais comunidades, tais instâncias devem autorizar a pesquisa antecipadamente”. No Brasil, o índio recebe uma tutela constitucional, por isso não pode e não deve somente a FUNAI autorizar antecipadamente a pesquisa, pois o Ministério Público Federal deverá acompanhar tudo, sendo o fiscal da lei, e deverá dar o seu parecer, e se for necessário intervir com uma Ação Civil Pública em defesa desta coletividade que para ser estudada deverá ser respeitada na sua identidade cultural. IV.7              “- Na pesquisa que dependa de restrição de informações aos seus participantes, tal fato deverá ser devidamente explicitado e justificado pelo pesquisador responsável ao Sistema CEP/CONEP. Os dados obtidos a partir dos participantes da pesquisa não poderão ser usados para outros fins além dos previstos no protocolo e/ou no consentimento livre e esclarecido.” Conforme o direito constitucional brasileiro, toda e qualquer pessoa tem o direito de buscar informações sobre a sua própria pessoa, e se isso lhe for negado, ela, o paciente participante de pesquisa poderá impetrar um remédio constitucional, como o Habeas Data, neste banco de dados, que mesmo sendo privado terá caráter de público pela relevância dos resultados obtidos na pesquisa à sociedade. IV.8              “- Nos casos em que seja inviável a obtenção do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou que esta obtenção signifique riscos substanciais à privacidade e confidencialidade dos dados do participante ou aos vínculos de confiança entre pesquisador e pesquisado, a dispensa do TCLE deve ser justificadamente solicitada pelo pesquisador responsável ao Sistema CEP/CONEP, para apreciação, sem prejuízo do posterior processo de esclarecimento”. No mínimo parece imoral ou antiético a dispensa do Termo de Consentimento Informado  que deve ser livre e esclarecido, pois este deveria ser pressuposto fundamental e obrigatório às pesquisas com seres humanos, com ou sem finalidade terapêutica. Se é possível ao paciente pesquisado se manifestar, ou não o sendo, ele ser assistido por representante legal, não há justificativa plausível para a dispensa do consentimento informado, diante deste cenário evolutivo deste instrumento de segurança que foi demonstrado no presente artigo científico, pois isso seria um retrocesso às normas de biodireito e às resoluções e princípios da bioética. Além disso, erra a resolução citada em sugerir que se recorra ao CONEP, pois, hoje, o correto é buscar informações e ajuda para clarear as dúvidas sobre pesquisa com seres humanos na Plataforma Brasil. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo demonstrou, de forma singela, sem se aprofundar na temática, a evolução das principais orientações e resoluções de biodireito e de bioética às pesquisas clínicas com seres humanos, isso do cenário internacional ao nacional, de 1947 a 2012. O Termo de Consentimento Informado é um instrumento de justiça, de segurança às partes, e pelo grau de relevância que tem, jamais deveria ser omitido, ou mal prestado, quando apesar de ser informado, não é transmitida a informação adequada, completa, pormenorizada e cercada dos fundamentos pilares da bioética. É inadmissível, em pleno Século XXI, as pessoas desconhecerem os seus direitos básicos, entre eles, o da informação e concessão do consentimento informado. As pessoas, em geral, não sabem o que é o Termo de Consentimento Informado. Por isso, apenas com o intuito de auxiliar o paciente e seus familiares, ou profissionais que não se atualizaram, é que se fez, nesta obra, uma breve explicação sobre o que é o Consentimento Informado e o Termo de Consentimento Informado nas declarações internacionais e nas Resoluções vigentes do Conselho Nacional de Saúde.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-121/singela-analise-normativa-da-evolucao-do-consentimento-informado-hodierno-nas-pesquisas-clinicas-com-seres-humanos-no-mundo-e-no-brasil/
A constitucionalidade da pesquisa com células-tronco
O presente artigo analisa a constitucionalidade da pesquisa com células-tronco, partindo da premissa que o início da vida se dá com a concepção, mas que o ordenamento jurídico distingue determinados momentos da evolução de tal direito, como o embrião, o feto, até chegar à pessoa humana com advento do nascimento, fazendo análise do entendimento do Supremo Tribunal Federal no caso da pesquisa com células-tronco, que abre importante precedente para apreciação de questões envolvendo aspectos da bioética e do biodireito, muitas vezes difíceis de equacionar.
Biodireito
Abstract: This article examines the constitutionality of stem cell research, on the premise that early life is given to the design, but that the law distinguishes certain times of the evolution of such a right, as the embryo, the fetus, until the human person with the advent of birth, making analysis of the understanding of the Supreme Court in the case of stem cell research, which opens important precedent for consideration of issues involving aspects of bioethics and biolaw often difficult to equate. Dentre os principais dilemas enfrentados pelo direito fundamental à vida, apresenta-se a pesquisa em células-tronco embrionárias humanas, possibilidade de pesquisa proporcionada por intermédio da medicina reprodutiva que a ciência recentemente alcançou através de suas intervenções no embrião humano. Para compreender o que vem a ser uma célula-tronco, faz-se necessário ter uma pré-compreensão dos diferentes tipos de células-tronco existentes. Nesse sentido a esclarece a obra de Renata Rocha[1]: “[…] as células-tronco caracterizam por duas propriedades fundamentas: a primeira delas consiste na capacidade que elas tem de se autoperpetuar ou auto-replicar, dividindo-se a partir delas mesmas, dando origem a outras células com características idênticas; a segunda propriedade representa o principal interesse dos cientistas  nas pesquisas em células-tronco humanas e consiste na habilidade que algumas apresentam de, em determinadas circunstâncias, se converterem em outros tipos celulares especializados, responsáveis pela formatação dos mais diferentes órgãos do corpo humano. […] É no embrião humano que são encontradas, em abundância, as células tronco embrionárias humanas, também conhecidas como células ES (embryo Stem Cell) dotadas de pluriopotência, ou seja, capazes de se converterem em outros tipos celulares e de serem utilizadas na reparação de tecidos específicos, ou mesmo na produção de órgãos . As primeiras pesquisas de experimentações científicas em embriões humanos foram realizadas com excedentes oriundos da técnica de fertilização in vitro. Em seguida, constatou-se a possibilidade da produção de embriões humanos em nível laboratorial, por meio de clonagem terapêutica, para que deles se pudessem servir as pesquisas com células-tronco embrionárias. Tanto o uso de embriões excedentes da fertilização in vitro, quanto o uso de embriões resultantes de clonagem terapêutica, enfrentam dilemas jurídicos e éticos, posto que são confrontados com a questão do direito à vida, uma vez que o uso desses embriões em pesquisas cientificas pode implicar em sua destruição. No intuito de regulamentar as pesquisas envolvendo embriões humanos, tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, foi promulgada a Lei nº 11.105 de 24 de março de 2005. Conhecida como Lei de Biossegurança, que dentre outras regulamentações, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, esta norma regulamenta o dispositivo constitucional que dispõe que: incumbe ao Poder Público controlar o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida. Para tanto, reza seu art. 5º: “Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I – sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. § 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. § 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa. § 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.”[2] Ocorre que o Ministério Público Federal pátrio, na pessoa do então Procurador-Geral da República, Cláudio Fontelles, motivado pela doutrina concepcionista, interpôs ação direta de inconstitucionalidade contra o dispositivo supra transcrito da Lei de Biossegurança, aduzindo, em síntese, que os dispositivos questionados contrariam a inviolabilidade do direito à vida, porque o embrião humano é vida, e faz ruir fundamento maior do Estado democrático de direito, que radica na preservação da dignidade da pessoa humana”[3]   A referida tese de inconstitucionalidade existente na Lei de Biossegurança tem como principais argumentos: a vida humana tem início na fecundação do óvulo pelo espermatozóide; o zigoto, constituído por uma única célula, é um ser humano; é no momento da fecundação que a mulher engravida, e a partir desse momento estaria propiciado o ambiente próprio para o desenvolvimento do zigoto; e, por fim, a pesquisa com células-tronco adultas é mais promissora do que a pesquisa com células-tronco embrionárias. Quanto ao argumento das células-tronco adultas serem mais promissoras para a pesquisa, não se presta a ser considerado na presente análise, primeiramente porque a ampla maioria da comunidade científica defende a idéia de que as células tronco embrionárias constituem tipologia celular que acena com melhores possibilidade de recuperação da saúde das pessoas, seja em razão de anomalia graves, incômodos genéticos, adquiridos ou em conseqüência de acidentes. Nesse sentido, lição de Marco Antônio Zago, citado por Ayres em seu voto vencedor na ADI nº 3150: “Apesar da grande diversidade de células que podem ser reconhecidas em tecidos adultos, todas derivam de uma única célula-ovo, após a fecundação de um óvulo por um espermatozóide. Essa única célula tem, pois, a propriedade de formar todos os tecidos do indivíduo adulto. Inicialmente, essa célula totipotente divide-se formando células idênticas, mas, muito precocemente na formação do embrião, os diferentes grupos celulares vão adquirindo características especializadas e, ao mesmo tempo, vão restringindo sua capacidade de diferenciação”.[4] De outra ótica, é preciso ter em vista que linhas de pesquisa com células embrionárias não invalidam outras, porque a essas outras vêm a se somar em prol do mesmo objetivo de enfrentamento e cura de patologias e traumatismos que acometem expressivo contingente populacional. Sem embargo da tese de que o início da pessoa humana venha a coincidir com o momento da concepção, ou seja, no instante da fecundação de um óvulo feminino por um espermatozóide masculino, é preciso que se desmistifique que o início da vida não se confunde com o que vem a ser uma pessoa humana. Nesse sentido a doutrina de Leon Cassires[5]: “Umas das características da pessoa humana é que ela é original, única e indivisível. Alguns, então, propuseram que até o tempo em que cada célula do embrião, destacada das outras, fosse capaz de dar a ela mesma, sozinha, um novo embrião, o conjunto embrionário não deveria ser considerado um verdadeiro indivíduo (mais ou menos os 14 primeiros dias-McCormick). Outros (Singer e Khuse) estimam que um traço necessário ao sujeito humano é que ele seja capaz de um mínimo de percepção, o que demanda a presença de um começo, ao menos,  do sistema nervoso.  Este aparece, ainda, que de modo rudimentar entre o décimo quarto e o vigésimo oitavo dia. Outros ainda, (B Brody) fazem um paralelo com a morte cerebral: como a morte é determinada pela ausência de qualquer atividade elétrica cerebral, assim o início da vida humana começaria com esta atividade, ou seja, mais ou menos seis semanas após a concepção. Na mesma linha de pensamento, poder-se-ia considerar como sinal da vida humana os primeiros movimentos do feto, ou ainda o momento onde ele se torna capaz de vida autônoma, fora do útero materno, etc. […].O leitor que teve a boa vontade de nos seguir até aqui compreenderá, sem dificuldade, que, na medida em que se fala de um embrião muito recente, antes da nidação (por exemplo, 14 dias no máximo), não podemos ver aí uma transgressão do tabu do assassinato. Nossa formação cientifica objetiva mostra este embrião como fazendo parte da ordem geral do humano. Ademais, e mais importante ainda, sabemos que ele (embrião) surge da vontade dos genitores que deram seus gametas, ovulo e espermatozóide, e que as intenções de seus genitores devem ser plenamente respeitadas (por exemplo, se elas fazem parte de um projeto parental). Mas este embrião, como tal, não apresenta de modo algum suficientes características humanas para ser considerado uma pessoa inteira, senão por um abuso de linguagem.  Ele é, no máximo, uma “pessoa potencial”, quer dizer, uma possibilidade necessária, mas não suficiente, para se tornar esta pessoa. E esta potencialidade nos surge como um ponto incerto e aleatório que, em certas situações, em balanço com tantos outros interesses – que também tem seus valores éticos – não pode ser assimilada com a exigência de se tornar realizada. O embrião pode, então, no nosso entendimento  ser destinado às pesquisas, sem transgressão do tabu do assassinato. Convergente na constatação de que o direito protege, de modo variado, cada etapa do desenvolvimento biológico é o voto do eminente ministro relator da ADI nº 3150: “Não estou a ajuizar senão isto: a potencialidade de algo para se tornar pessoa humana já é meritória o bastante para acobertá-lo, infraconstitucionalmente, contra tentativas esdrúxulas, levianas ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica. Mas as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana. Esta não se antecipa à metamorfose dos outros dois organismos. É o produto final dessa metamorfose.[…] Sem embargo, esse insubstituível início de vida é uma realidade distinta daquela constitutiva da pessoa física ou natural; não por efeito de uma unânime ou sequer majoritária convicção metafísica (esfera cognitiva em que o assunto parece condenado à aporia ou indecidibilidade), mas porque assim é que preceitua o Ordenamento Jurídico Brasileiro.”[6] (não grifado no original). Ademais, uma vez admitida a tese manifestada pela corrente amparada pela doutrina concepcionista, que equipararia em direitos o embrião à pessoa humana, não haveria amparo legal a justificar a utilização de inúmeras técnicas de reprodução assistida. Tal vedação impediria que casais que não conseguem procriar pelo método convencional do coito recorressem a técnicas de reprodução assistida que incluem a fertilização artificial ou in vitro. Ocorre que o uso de técnicas com a fertilização in vitro para possibilitar que casais possam gerir seus próprios filhos materializa o próprio valor da família, instituição esta que mereceu tutela especial da Constituição Federal de 1988, que proclamou: “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. […] § 7º – Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.[7] Partindo da idéia de equiparação do embrião a uma pessoa humana, ficaria difícil conciliar o direito de reprodução do casal, valendo-se da técnica de reprodução in vitro, sem lhe impor a obrigação do aproveitamento reprodutivo de todos os óvulos eventualmente fecundados. A fertilização in vitro, diferentemente da intra-uterina, depende da vontade dos titulares das células envolvidas para se desenvolver, ou seja, é preciso que haja o consentimento do casal, sobretudo da mulher, para que possa haver a nidação (fixação do embrião no útero feminino). Assim, neste caso, seria impossível a lei impor a obrigação da mulher gerir uma criança contra a sua vontade, sem com isso ferir seu direito à liberdade, integridade física e dignidade. Respondendo a esses dilemas, em proteção à família e ao direito de paternidade responsável do casal, concluiu o Ministro Ayres Britto: “É o que tenho como suficiente para, numa segunda síntese, formular os seguintes juízos de validade constitucional: I – a decisão por uma descendência ou filiação exprime um tipo de autonomia de vontade individual que a própria Constituição rotula como direito ao planejamento familiar, fundamentado este nos princípios igualmente constitucionais da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável; II – a opção do casal por um processo in vitro de fecundação de óvulos é implícito direito de idêntica matriz  constitucional, sem acarretar para ele o dever jurídico do aproveitamento reprodutivo de todos os embriões eventualmente formados e que se revelem geneticamente viáveis.” “Remarco a tessitura do raciocínio: se todo casal tem o direito de procriar; se esse direito pode passar por sucessivos testes de fecundação in vitro; se é da contingência do cultivo ou testes in vitro a produção de embriões em número superior à disposição do casal para aproveitá-los procriativamente; se não existe, enfim, o dever legal do casal quanto a esse cabal aproveitamento genético, então as alternativas que restavam à Lei de Biossegurança eram somente estas: a primeira, condenar os embriões à perpetuidade da pena de prisão em congelados tubos de ensaio; a segunda, deixar que os estabelecimentos médicos de procriação assistida prosseguissem em sua faina de jogar no lixo tudo quanto fosse embrião não-requestado para o fim de procriação humana; a terceira opção estaria, exatamente, na autorização que fez o art. 5º da Lei. Mas uma autorização que se fez debaixo de judiciosos parâmetros, sem cujo atendimento o embrião in vitro passa a gozar de inviolabilidade ontológica até então não explicitamente assegurada por nenhum diploma legal (pensasse mais na autorização que a lei veiculou do que no modo necessário, adequado e proporcional como o fez). Por isso que o chanceler, professor e jurista Celso Lafer encaminhou carta à ministra Ellen Gracie, presidente desta nossa Corte, para sustentar que os controles estabelecidos pela Lei de Biossegurança “conciliam adequadamente os valores envolvidos, possibilitando os avanços da ciência em defesa da vida e o respeito aos padrões éticos de nossa sociedade”.[8] (grifo nosso) Nestes termos, o Supremo Tribunal Federal, conciliando o ordenamento jurídico com os imperativos de ética humanista e desenvolvimento científico, com vistas à preservação da vida e tutela da saúde, julgou improcedente a ação direta de inconstitucionalidade que se propunha e declarou constitucional a pesquisa com células-tronco. Assim, prevalece hoje na suprema corte, em decisão de controle concentrado de constitucionalidade, com efeito erga onmis, a constitucionalidade da pesquisa com células-tronco embrionárias, nos moldes preconizados pela Lei de Biossegurança. Com base nessa premissa, se reconhece o direito à reprodução assistida dos casais que não conseguem procriar pelo método convencional do coito e recorrem à técnicas de reprodução assistida, o que inclui a fertilização in vitro, bem como a não obrigação de nidação dos óvulos eventualmente fecundados, e por decorrência lógica e racional, que não o descarte, a utilização dos mesmos consoante diretrizes preconizadas pela Lei de Biossegurança, quais sejam, na hipótese de serem embriões inviáveis; ou embriões congelados há 3 (três) anos ou mais. Tal entendimento revela uma legítima posição pós-positivista adotada pela suprema corte, configurada num julgamento conciliatório do ordenamento pátrio com os imperativos de ética humanista, em pleno reconhecimento dos limites de tutela infra-constitucional ao direito à vida e respeito à dignidade da pessoa humana
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-120/a-constitucionalidade-da-pesquisa-com-celulas-tronco/
O direito de não nascer e a sua aplicação no direito brasileiro
Resumo O direito assim como a sociedade, evolui, entretanto, nem sempre o primeiro consegue acompanhar as necessidades do segundo. Não raro os Tribunais atuam de forma a atualizar a lei com decisões inéditas após analisarem exaustivamente o caso concreto. Se tem notícia ao redor do planeta de diversas decisões, muitas das quais polêmicas que entraram para a história, uma delas diz respeito a teoria do direito de não nascer advinda do entendimento da Corte de Cassação Francesa no final do século passado que indenizou criança e pais pelo nascimento posto que o bebê, por erro em diagnóstico não foi abortado em virtude de possuir sérios problemas de saúde. No Brasil, assim como na grande maioria dos países ao redor do mundo, prioriza o direito à vida e a preservação e manutenção da dignidade humana, assim sendo, como permitir que alguém seja indenizado pelo fato de ter nascido, posto considerar sua existência penosa se o requisito para que o direito possa atuar é o nascimento ou mesmo a expectativa dele?
Biodireito
1 A PRIMAZIA PELA VIDA A atual Constituição Brasileira traz logo em seu primeiro artigo, inciso III que é um dos fundamentos do Estado à proteção à dignidade humana. Não há que se pensar em qualquer tipo de proteção do ser humano sem que haja ressalvas à sua vida. Para se proteger a vida se pune no país técnicas abortivas ou mesmo a eutanásia e o homicídio tendo em vista que sem vida não há que se falar em proteção de nenhum outro direito. Violações contra a vida devem ser punidas, sejam praticadas por particulares ou o próprio ente estatal. Muito embora a internacionalização dos direitos fundamentais tenha acontecido no século passado após a criação da ONU, os ditames de proteção do ser humano datam de épocas antigas. Foi no século XX onde mais se violou e consequentemente mais se falou em dignidade humana, proteção da vida e do ser humano, Com o fim da II Grande Guerra, a criação de organismos internacionais de proteção e a afirmação em muitos países dos direitos e garantias constitucionais hoje é possível encontrar nas leis respaldo para que seja garantida a dignidade humana de todas as pessoas. De acordo com Novais (2009, p. 72), “Ao limitar os atos dos Estados de forma mais abrangente, cria-se a ONU e, com a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, impulsiona-se o processo de internacionalização dos Direitos Humanos. A vida passou a ser responsabilidade de proteção não mais de um Estado, como fator interno ou de uma ordem jurídica interna, mas de vários Estados do mundo”. No Brasil a Constituição Federal de 1988 foi a primeira Lei Maior do país a incluir em seu texto como sendo um de seus fundamentos a dignidade humana, constando o direito à vida, integridade física e moral entre os direitos fundamentais de todos que no território nacional se encontrem uma vez que “todo ser dotado de vida é indivíduo, isto é: algo que não se pode dividir, sob pena de deixar de ser. O homem é um indivíduo, mas é mais que isto, é uma pessoa” (SILVA, 2005, p. 197). Sendo a proteção da vida humana um dever de todos, como pode a violação desse direito ser aceita ou mesmo permitida por uma Corte Suprema? Como é possível haver uma vida indigna? Seria possível abrir mão da própria vida a fim de que um sofrimento termine? De acordo com Silva (2005, p. 198), todo ser humano tem direito de existir, assim, há o direito de estar vivo, de permanecer vivo e não ter o período vital interrompido, a não ser pela morte natural uma vez que existir é o oposto de morte, o direito de existir deve ser pautado ainda no direito de existir com dignidade, conforme os preceitos constitucionais atuais. Diversas foram as jurisprudências ao redor do mundo que visualizaram o direito de alguém ser indenizado por ter nascido com problemas de saúde em virtude de erros dos genitores ou dos médicos, sendo que o caso mais famoso data da década de 90 do século passado, na França, onde a Corte de Cassação reconheceu o direito dos pais serem indenizados por terem tido um filho com problemas de saúde pois não foram informados de doenças que o bebê possuía, o que inviabilizou o seu aborto e uma criança, Nicolas Perruche foi indenizado por ter nascido com tais problemas de saúde. Embora tal fato possa ter sido aceito no exterior, no Brasil, uma vez que os casos em que pode ocorrer o aborto são taxativos pelo Código Penal no artigo 128, sendo possível ainda quando há anencefalia em virtude da ADPF 54, não existe possibilidade dos pais decidirem o aborto em virtude de outros problemas de saúde do feto, futilidades ou qualquer outro motivo. 2 O DIREITO DE NÃO NASCER O direito de não nascer tem sido fontes de debates entre muitos juristas e Cortes ao redor do mundo, principalmente em alguns países da Europa e Estados Unidos. Para entender melhor o assunto e as teorias relacionadas ao direito de não nascer, nascimento injusto ou falhas em métodos contraceptivos abaixo segue breves apontamentos a respeito bem como uma possível aplicação de tais preceitos no direito brasileiro. 2.1 Vida injusta A wrongful life, também conhecida como vida injusta surgiu a partir do reconhecimento pela Corte Francesa acerca do direito de não nascer, através da possibilidade de propositura da ação por vida injusta, ou wrongful life (COSTA, 2012, p. 22). No caso citado, datado da década de 90 os responsáveis por uma criança nascida com sérios problemas de saúde intentaram em seu nome uma ação judicial visando à obtenção de indenização em virtude de seus pais não terem sido informados acerca de suas enfermidades não o abortando. Diversas discussões pairam a respeito de tal tema, ainda pouco difundido no Brasil, até mesmo pelo fato de que no país não é aceito o aborto eugênico, salvo em caso de risco de vida para a gestante, conforme preceitua o artigo 128 do Código Penal. Como uma criança nascida com problemas de saúde, muitas vezes genéticos ou por outras causas poderia intentar uma ação reivindicando medidas que deveriam ter sido tomadas antes mesmo de adquirir personalidade? Seria aceitável uma pessoa considerar o seu sofrimento tão insuportável a ponto de preferir não ter existido? Para Amin (2011, p. 44) no Brasil é possível o ajuizamento pelo nascituro de ação de investigação de paternidade, ação de responsabilidade civil advinda de direito de personalidade ou ação de alimentos (alimentos gravídicos), mas não uma ação por vida injusta. É possível ainda que se intente em nome da criança ação visando o conhecimento de suas origens genéticas, tendo em vista este ser um direito fundamental, incluído nos direitos de personalidade desde a sentença Landsgerichts Münster de 21 de fevereiro de 1990, onde na Alemanha se reconheceu o direito de uma filha em ter revelado a identidade de seu pai biológico, embora a mãe se recusasse a informar tendo em vista que o direito da criança deve se sobressair ao direito de recusa dos genitores. As responsabilidades oriundas da relação de filiação não foram reconhecidas, uma vez que a autora da ação já possuía uma família, consagrando, para tanto, a filiação socioafetiva (MADALENO, 2011, p. 485). De acordo com Chavenco; Oliveira (2012, p. 660), “Ter o direito de nascer, significa que a mulher deve completar o ciclo de gestação do ser humano, que se inicia com a concepção e prossegue em todo o desenvolver da gravidez, até que ocorre o completo nascimento do novo ser, com vida, e venha a ser sujeito de direitos e obrigações perante a ordem jurídica.” Embora a gravidez seja algo natural dos seres vivos, incluindo os seres humanos, na Europa e nos Estados Unidos já existem ações de wrongful life, ou seja, reivindicando a responsabilização de profissionais da saúde pela não notificação aos pais de problemas com o embrião já implantado ou em vias de o ser, ou mesmo problemas que deveriam ter sido diagnosticados, mas não o foram, que caso tivesse sido informado, teria evitado o nascimento de pessoas com algum problema sério de saúde, de acordo com Raposo (2010, p. 62), “Neste caso poderão os pais da criança apresentar dois pedidos de indemnização: um em seu nome próprio, pelo danos que advêm da circunstância de ter um filho com animalidade tão gravosas (mas nesse caso estaremos perante um processo de wrongful birth); outro em nome da própria criança, pelo facto de esta ter nascido com semelhante doença ou anomalia (a wrongful live propriamente dita).” No Brasil, conforme dito tais medidas ainda não podem ser realizadas uma vez que a interrupção de gestação pode ser realizada apenas nos casos descritos no artigo 128 do Código Penal ou em virtude de anencefalia, conforme decisão em 2012 pela Suprema Corte. Atualmente tramita no Congresso o Projeto de Lei 1184/03 que prevê que todos os embriões produzidos (que serão limitados em 2) deverão ser implantados no útero materno, mesmo que sejam inviáveis. Pela teoria da vida injusta há ainda, segundo Raposo (2010, p. 62) outra discussão referente aos pais que optarem por continuar a gestação de fetos com deficiência ou malformados, uma vez que os genitores teriam o dever de interromper a gestação, sob pena de responderem por negligência perante o futuro filho que tenha nascido com limitações diagnosticadas durante o seu desenvolvimento embrionário, Tanto na Alemanha quanto na Inglaterra não é reconhecido o direito de ser indenizado por ter nascido (COSTA, 2012, p. 15). Após a análise já realizada, o direito de não nascer pode ser resumido na possibilidade de ser praticado o aborto evitando o nascimento de um indivíduo com problemas graves de saúde, o que o tornaria dependente de seus pais e irmãos, colocando em prejuízo, além da qualidade de vida do indivíduo, a de seus parentes também. Nesse caso uma vida com sofrimentos contínuos não poderia ser considerada digna de ser vivida. De acordo com Raposo (2010, p. 61-62), a questão relacionada ao direito de não nascer pode ser traduzida da seguinte forma: “As wrongful life actions surgem quando uma criança nasce mal-formada e pretende reagir contra quem deu azo ao nascimento, ainda que não tenha provocado directamente a malformação. As acções de wrongful life são sempre interpostas pela criança (ou por outrem em seu nome, dado que muitas vezes falamos de um menor e/ou incapaz) nascida nestas condições, e podem dirigir-se contra os médicos e instituição hospitalar e mesmo – sendo esta a hipótese mais controvertida – contra os pais.” É relevante que haja o diagnóstico e o tratamento de doenças antes ou depois do nascimento, e, caso não seja viável a gestação, que a mesma seja interrompida, porém a vida e a dignidade devem estar acima de qualquer procedimento e intervenção humana, que caso exceda ou cause ainda mais dado ao nascituro ou indivíduo, o profissional ou mesmo os pais devem ser responsabilizados. 2.2 Nascimento injusto Wrongful birth actions ou nascimento injusto é um tipo de ação que deve ser proposta pelos pais em virtude de não terem sido informados acerca de doenças graves que o feto possuía, sendo privados do direito de abortar ou mesmo de terem uma criança saudável, enquanto que a wrongful life é proposta no nome do menor, privado de uma vida saudável, fadado a conviver com doenças e limitações (RAPOSO, 2010, p. 63-64). Assim, por tal medida é possível que os pais possam requerer direito a uma indenização, seja por danos materiais e/ou morais em virtude do nascimento de um filho com problemas graves de saúde, que deveriam ter sido diagnosticados ou mesmo informados durante o período de gestação para que, caso entendessem necessário, que houvesse a decisão dos pais pela interrupção da gravidez. Costa (2012, p. 23) lista quatro requisitos para que a ação possa ser proposta: deficiência desde o nascimento, deficiência ocasionada por fatos da natureza, presunção de interrupção da gestação caso os pais tivessem conhecimento da moléstia e a existência de erro do médico, hospital ou laboratórios. Mesmo que houvesse um diagnóstico correto, caberia aos pais decidirem pelo aborto, não se pode afirmar com veemência que o teriam realizado, uma vez que se trata de faculdade e não obrigação, até mesmo porque questões relacionadas com o aborto são polêmicas, cheias de prós e contras e é preciso tomar cuidado para que a prática não seja banalizada, ocasionando aborto de fetos saudáveis devido à futilidade dos pais. O direito a receber uma indenização pode ser baseado na teoria francesa que aponta “a perda de uma chance”, onde o valor a ser recebido pela vítima deve ser proporcionado a atitudes contrárias caso houvesse conhecimento da real situação da saúde e do desenvolvimento do feto. Para Siano (2009, p. 815), é possível a responsabilização de médicos e hospital em virtude de prescrição de medicamento à mãe que conhecidamente pela comunidade médica causa danos ao feto, como o que ocorreu em Nápoles em 19.3.2004, no caso de n. 995, onde o Tribunal de Apelação confirmou a sentença do Tribunal de Nápole de 25.05.2001. De acordo com Raposo (2010, p. 68), “O primero processo a dar razão a uma wrongful life action foi Curlener v. Bio-Science Laboratories, no qual uma criança afectada pela doença de Tay-Sachs e os seus pais (estes num processo de wrongful birth) accionaram o laboratório que estes últimos tinham procurado para determinar se eram ou não portadores de Tay-Sachs, tendo o referido laboratório emitido um juízo negativo. O Supreme Court da Califórnia começou por distinguir este caso dos precedentes e afastou a sua rejeição com base na suposta dificuldade no cálculo do dano. Desconsiderou igualmente certas concepções morais sobre a vida que continuavam a dominar a apreciação jurídica destas questões. Segundo o Tribunal, pouco releva o facto de que a criança não houvera nascido sem a negligência dos arguidos. Mas já releva a circunstância de ela ter efectivamente nascido, e é no cenário concretamente existente que se deve avaliar se tem direito a ser ressarcida dos danos que sofre.” Na jurisprudência francesa, aponta Raposo (2010, p. 70-71) temos um famoso caso denominado Perruche, onde, “Nicolas Perruche nasceu com fortes deficiências (síndroma de Gregg: lesões auditivas e visuais, cardiopatias e neuropatias), em consequência da rubéola contraída pela mãe durante a gravidez (sendo que a mulher chegou a informar os médicos da história clínica da sua família que poderia colocar em risco a criança, e avisou que caso existisse a possibilidade de esta nascer com problemas preferiria abortar) mas que não foi detectada, pelo que os pais accionaram o médico e o laboratório. Depois de em primeira instância ter sido atribuída uma indemnização aos pais, mas não ao filho37, o Tribunal de Cassação conferiu aos pais uma indemnização pelo facto de terem sido privados da possibilidade de escolher entre abortar e prosseguir com a gravidez (autodeterminação reprodutiva)38, mas também à criança, em virtude dos danos por ela sofridos (que, sublinhe-se, foram provocados pela rubéola e não pelos médicos).” Embora a decisão do citado caso tenha vindo em 2000, o debate judicial teve início quase 10 anos antes, em 1992, onde o Tribunal Superior de Evry condenou médico e laboratório por erros na análise da gestação e a possível contaminação do feto pela rubéola adquirida pela mãe. Se o fato tivesse sido devidamente diagnosticado, a mãe teria a possibilidade de interromper a gestação, evitando que a criança nascesse com uma série de problemas, o então bebê Nicolas Perruche nasceu com problemas oculares, cardíacos, auditivos e neurológicos e necessitava de uma pessoa ao seu lado todo o tempo, o que geraria um gasto exorbitante para a família. Médico e a clínica que realizou a análise do material colhido e encaminhado pelo médico foram responsabilizados a pagarem pesadas indenizações. Após uma série de julgamentos e recursos, os tribunais franceses, ao final do caso, haviam reconhecido por duas vezes o direito apenas dos pais de receberem indenizações em virtude de ter sido tirada a alternativa de interromper a gestação e evitar o nascimento de uma criança com muitos problemas e outros três tribunais reconheceram também o direito de a criança ser indenizada. A jurisprudência final do caso segue abaixo: “Profissões médicas e paramédicas – médico cirurgião – responsabilidade contratual – Falha – Causa – grávida – Concurso falhas de um laboratório e um médico – Crianças nascidas com deficiência – Direito a indemnização (tradução livre da autora).”[1]. De acordo com tal decisão, uma vez que por falha em diagnostico ou erro em resultados laboratoriais resultarem no nascimento de uma criança com problemas graves de saúde, e os problemas pudessem ser diagnosticados durante a gestação, podendo a mãe optar por ter ou não a criança, há o dever de indenização devido a perda da chance de interromper a gestação para a gestante e direito de indenização por ter nascido com problemas para a criança. Uma vez que o jovem Nicolas recebeu uma indenização em pecúnia em decorrência de ter nascido, foi-lhe garantido pela jurisprudência francesa o direito de não nascer. Questionando o caso Perruche, veio um pensamento bastante ousado de Axel Gosseries, que aponta que a única forma de se ter o direito de não viver seria o caso da vida não alcançar o mínimo de dignidade, sendo uma vida indigna de ser vivida, indigna de nascer e, então, digna de morrer (GODOY, 2007, p. 10). No que cabe a Itália, o direito de não nascer não é aceito pela jurisprudência, que, entretanto, reconhece o direito dos pais reclamarem em juízo o direito de serem indenizados em caso de erro de diagnóstico ou na prescrição de medicamentos que ocasionem o nascimento de criança portadora de problemas físicos ou mentais, conforme esclarece Di Ciommo (2010, p. 146). O aborto terapêutico, ou seja, aquele onde se evita o nascimento de fetos com problemas graves de saúde é aceito em diversos países da Europa, como a França e a Itália. No Brasil tal medida é aceita apenas em caso de anencefalia ou quando apresentar sérios riscos de vida para a gestante. Embora o caso Perruche tenha ganhado repercussão mundial, nos Estados Unidos, na década de 60 houve um caso onde os médicos falharam ao diagnosticar uma deficiência do feto, o que ocasionou o seu nascimento, motivo pelo qual o caso Gleitman v. Cosgrove ocorreu mediante o pedido de wrongful life proposta pelos pais como representantes do menor, uma vez que nasceu deficiente. Se a deficiência tivesse sido diagnosticada durante a gestação, provavelmente o bebê teria sido abortado (GODOY, 2007, p. 17). Quando se compara os dois casos, temos que, “O caso Gleitman v. Cosgrove abarcou a propositura de duas ações: uma por nascimento injusto, proposta pelos pais, e outra por vida injusta, proposta em nome da criança. Mas, no caso Perruche, foi proposta apenas uma ação por wrongful life, uma ação por vida injusta” (GODOY, 2007, p. 33). Mas, e os direitos dos portadores de necessidades especiais, tenham nascido com deficiências ou as adquirido ao longo da vida? Não devem ter acesso a direitos? Teria alguma vida que não seja digna de ser vivida? E se a culpa pela criança ter nascido com alguma limitação for alheia à atuação humana, não terá direito a nenhum auxílio financeiro capaz de garantir a manutenção de sua vida? As pessoas que possuem alguma deficiência devem ter a chance de nascer, caso já estejam se desenvolvendo no útero materno, tendo em vista que nenhuma doença poderá lhes tirar a humanidade que lhes pertence e as expectativas de direitos inerentes a tal qualidade. A Lei anti-Peruche foi revogada em 2005, entretanto, foi aprovado o Código de Acção Social francês um art. L. 114-5, com conteúdo bastante parecido. Ressalte-se que o aborto de fetos com graves problemas de saúde é aceito na Europa caso a medicina ainda não possua nenhuma forma de tratamento ou cura, propiciadas por intervenções realizadas ainda quando nascituro. Difícil entender como pode haver um direito de não ter direitos, ou melhor, um direito de não nascer uma vez que muitas dúvidas teriam de ser sanadas e uma exceção constitucional deveria ser quebrada, tendo em vista o direito a vida ser inviolável, porém, tal entendimento pode ser cabível perfeitamente quando se fala em nascituro, mas e quando se está a analisar um embrião ainda não implantado, excedente ou inviável, o entendimento poderia ser outro, uma vez que não há vida, nem mesmo em potencial. Nesses casos poderia haver uma não implantação em útero de embrião que apresentasse algum problema genético ou mesmo não fosse a vontade de seus pais. Poderia então a vida ser um dom na maioria dos casos e um dano em outros? Essa questão valeria apenas para os embriões e nascituros ou para os já nascidos também, como o caso da eutanásia? Ressalte-se, novamente que, o direito de ter um filho saudável ou o direito ao planejamento familiar é totalmente possível de indenização por responsabilidade de médicos e clínicas, desde que tenha culpa do profissional que não tenha realizado uma esterilização com o devido cuidado, motivo que a tornou ineficaz ou mesmo não informou aos pais doenças totalmente diagnosticáveis no período pré-implantatório ou pré-natal, fatos totalmente aceitos pela jurisprudência portuguesa. A questão é bastante divergente, principalmente pelo fato de que poderia ocorrer uma banalização do termo “vida injusta”, que poderia ser alegado, por exemplo, em casos de pobreza, entre outros e acarretar em constantes abortos, muitos pautados em futilidades. CONCLUSÃO Num país que possui a proteção da vida digna como um de seus fundamentos e princípios norteadores certamente terá sérios problemas internos caso decida acatar teorias como do nascimento injusto e da vida injusta uma vez que o pressuposto para se exercer direitos e deveres é a existência de vida, é ilógico imaginar que alguém possa exercer direitos antes mesmo de ter personalidade e é impossível saber antes que a criança atinja a maioridade de qual seria a sua vontade. A evolução tecnológica tem trazido boas esperanças para as pessoas que sofrem algum tipo de doença séria e a cada dia a qualidade de vida de dezenas de pessoas tem ficado menos sofrida. Como se demonstrou o Brasil é bastante receoso com relação a aplicação de teorias referentes ao direito de não nascer e embora as pessoas tenham seus direitos fundamentais elencados no Texto Maior é incoerente exercer um direito colocando em risco a própria vida. Assim, acredita-se que em caso de erros médicos ou mesmo atitudes dos genitores que possam causar problemas de saúde ao feto podem ser indenizadas, entretanto questões relativas ao direito de não nascer são inaceitáveis diante dos atuais parâmetros legislativos nacionais posto que a vida deve prevalecer, e a morte, quando chegar a hora, deve vir de forma natural e o menos dolorida possível.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-120/o-direito-de-nao-nascer-e-a-sua-aplicacao-no-direito-brasileiro/
Testamento vital como instrumento assecuratório do direito à morte digna
O presente trabalho propõe analisar o direito à morte digna como consequência da dignidade da pessoa humana, bem como em razão da colisão entre os princípios constitucionais do direito à vida perante a liberdade de consciência e de crença religiosa. Ainda, pretende enfocar o tratamento legal conferido às principais formas de morte assistida e os direitos do paciente quanto aos cuidados paliativos. Por fim, será tratado do testamento vital, como um instrumento válido e eficaz para a manifestação antecipada de vontade do paciente quanto aos procedimentos que deverão ser observados na hipótese em que não possa manifestar sua vontade, principalmente quanto à sua recusa em se submeter a tratamentos médicos e procedimentos cirúrgicos inúteis.
Biodireito
Introdução Para Kant, o homem possui um dever consigo mesmo, não podendo dela dispor, por ser obrigado a preservar sua própria vida. Em que pese consagrar a liberdade como um direito inato, para este filósofo nada pode se contrapor à vida, porquanto viver é uma obrigação. A vida sempre foi consagrada como um direito supremo da pessoa, como um bem sagrado e que deve se sobrepor a todos os outros direitos fundamentais. No entanto, a morte é uma consequência natural, pois é a única certeza que temos enquanto vivos, posto que a vida não será eterna e inevitavelmente terá um fim. Com o fim da Segunda Guerra, os direitos fundamentais do homem foram prestigiados e cada Estado, em repúdio aos horrores praticados, buscou inserir em seu ordenamento jurídico o direito à vida em grau de superioridade. Contudo, a supervalorização da vida se choca com outros direitos fundamentais e que também devem ser prestigiados. O direito à liberdade de consciência, aliados a outros direitos fundamentais dele decorrentes, também devem prevalecer, em prestígio a autodeterminação do indivíduo de dispor do seu corpo de acordo com sua livre convicção, inclusive quanto ao momento e forma da morte. Novas técnicas de geração da vida humana surgem a cada dia, aliado ao aprimoramento dos tratamentos médicos que buscam prolongar a derradeira e inevitável morte. Mas será que este prolongamento traz benefícios aos seres humanos? Vale dizer, o retardamento da morte – como algo inevitável -, realmente atende aos anseios dos indivíduos? Certamente há um conflito natural entre a vida e a morte, e o biodireito auxilia-nos a compreendê-lo. Neste contexto, surge a necessidade de estudo dos aspectos relacionados ao direito à morte digna, como um aspecto fundamental da dignidade da pessoa humana e diante da colisão com alguns outros direitos fundamentais. Por consequência, faz-se necessária a abordagem do tratamento conferido às principais formas de morte assistida, identificando os tipos legais que se enquadram em nosso ordenamento jurídico para o fim de auferir sua licitude. Ainda diante do escopo deste trabalho, cabe à análise dos direitos do paciente quanto aos cuidados paliativos e que buscam aliviar sua dor e sofrimento quando acometido por doença grave e terminal. Sob o mesmo prisma, também será enfrentado os direitos do paciente de recusa à submissão à tratamentos médicos e procedimentos cirúrgicos inúteis. Finalmente, será tratado do testamento vital, com uma forma de manifestação antecipada de vontade do paciente quanto aos procedimentos que deverão ser observados no momento em que não puder expressar seu consentimento. 1. O princípio da dignidade da pessoa humana e a colisão entre os direitos fundamentais Nossa Constituição Federal, em seu artigo 1º, estabelece como fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana, que é o sustentáculo da felicidade existencial dos seres humanos. Na concepção de Ingo Wolfgang Sarlet: “(…) temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”[1]. Por conseguinte, o caput do artigo 5º da Carta Magna elenca a vida dentre os direitos e garantias fundamentais. As normas infraconstitucionais acompanham este entendimento, ao passo que apenas o nascimento com vida faz da pessoa um sujeito de direito (artigo 2º do Código Civil). A primeira indagação que se coloca para fins do presente estudo é a que ponto o direito a vida deve se sobrepor aos demais, que igualmente são classificados como garantias fundamentais. As normas de direito fundamental constantes na Constituição Federal possuem forte conteúdo axiológico e devido a sua importância em nosso ordenamento jurídico, ostentam a natureza de princípios. Para Alexandre de Morais, os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal “não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela carta magna (princípio da relatividade)”[2]. Logo, é inevitável que existam conflitos entre tais princípios, haja vista que “as normas constitucionais são potencialmente contraditórias, já que refletem uma diversidade ideológica típica de qualquer Estado Democrático de Direito”[3]. Em temas relacionados ao biodireito esta colisão é recorrente e vem sendo solucionada de acordo com a ponderação sobre os valores buscados em cada direito fundamental, a fim de verificar qual deles deve prevalecer no caso concreto. É o que se verifica, por exemplo, no caso em que o Supremo Tribunal Federal decidiu pela possibilidade de utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas para fins terapêuticos, sustentando a constitucionalidade do Artigo 5º da Lei nº 11.105/05 (Lei de Biosegurança), por não violar o direito à vida, tampouco a dignidade da pessoa humana[4]. Os mencionados princípios trazem conceitos que devem ser adequados à realidade, para que possam acompanhar a evolução da sociedade e as tendências atuais das necessidades dos seres humanos. Por certo, os avanços tecnológicos surgidos ao longo dos anos contribuíram sobremaneira para a melhora na qualidade de vida. É indiscutível que os novos tratamentos médicos aumentaram a probabilidade de cura, gerando a esperança de que doenças – até então consideradas terminais – possam ser superadas. Entretanto, estes avanços também criaram formas artificiais de prolongar a vida. Os órgãos humanos são substituídos por equipamentos que suprem sua função no corpo humano. A respiração é mantida por aparelhos; ao coração são implantados dispositivos eletrônicos; e órgãos de animais são transplantados em seres humanos. Sobre o assunto em análise, cabe a reflexão de Roxana Cardoso Brasileiro Borges: “O avanço da medicina quanto às tecnologias ao dispor do médico é um acontecimento que tem provocado não apenas benefícios à saúde das pessoas, mas, ao contrário, em alguns momentos, todo esse aparato tecnológico pode acabar afetando a dignidade da pessoa. Esses avanços são dotados sobretudo quanto ao controle da morte. Biologicamente, pessoas podem ser mantidas em funcionamento indefinidamente, de forma artificial, sem nenhuma perspectiva de cura ou melhora. Alguns procedimentos médicos, em vez de curar ou de propiciar benefícios ao doente, têm apenas prolongado o processo da morte”[5]. Enquanto consentido, deve-se prestigiar as novas técnicas médicas. Porém, questiona-se a dignidade de doentes em estado terminal na postergação artificial de sua morte à custa de tratamentos dolorosos, causando-lhes angustia e sofrimento em seus momentos finais. O direito à vida entra em conflito com outras garantias fundamentais propagadas no artigo 5º da Carta Magna, notadamente de que: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei (inciso II); ninguém será submetido à tortura nem tratamento degradante (inciso III); é livre a manifestação de pensamento (inciso IV); é inviolável a liberdade de consciência e de crença (inciso IV); ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (inciso IV); são invioláveis a intimidade e a vida privada das pessoas (inciso X); dentre outros. Assim sendo, considerando que cada um dos princípios constitucionais deve ser valorado e interpretado de acordo com cada momento histórico, a manutenção artificial do paciente acometido por doença incurável ou que se encontre em estado terminal irreversível não nos parece assegurar a verdadeira dignidade da pessoa humana. 2. Direito à morte digna O direito à morte digna se apoia na reivindicação da liberdade e autodeterminação do indivíduo de decidir sobre sua própria existência, seja em respeito à sua convicção religiosa, seja em decorrência de sua própria consciência. Aos defensores deste pensamento surge a possibilidade da eutanásia e da ortotanásia. A eutanásia significa a boa morte, sem dor ou sofrimento. Etimologicamente, seu significado deriva dos vocábulos grego eu e thanatos, significando a “boa morte”, uma morte sem dor ou sofrimento. Contudo, na concepção atual ela se associa à ideia da morte provocada ou antecipada por compaixão e piedade do doente, de forma a não prolongar seu sofrimento com tratamentos inúteis, diante da irreversibilidade de uma doença terminal. Como esclarece Maria Celeste Cordeiro Leite Santos, há quatro tipos distintos de eutanásia: “a. Eutanásia genuína (Sterbebegleitung) através tanto da assistência médica e sanitária, dirigida a paliar as dores, quanto o cuidado de outras pessoas que acompanham o enfermo; b. Eutanásia passiva, consistente na omissão de medidas que prolongam a vida no caso de pacientes terminais; c. Eutanásia indireta, que consiste na administração de calmantes aceitando-se o possível encurtamento da vida; d. Eutanásia ativa, como causação ativa e voluntária da morte que se realiza normalmente a pedido do paciente”[6]. Não se trata de apenas buscar a morte, é necessário que haja a motivação humanística, pela qual o médico, amigos ou familiares buscam aliviar a dor a que é acometido o paciente terminal. Sob o ponto de vista jurídico, no Brasil, a eutanásia configura crime de homicídio previsto no artigo 121 do Código Penal; cuja pena poderá ser reduzida, nos termos o parágrafo primeiro, “se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral”. E, ela não deve ser confundida com o auxílio ao suicídio – delito igualmente tipificado na lei penal -, porquanto neste caso a pessoa não se encontra incapacitada para a prática do ato, tal como geralmente ocorre com os doentes em estado terminal. Doutra feita, a ortotanásia – proveniente dos vocábulos orto, certo e thanatos, morte – se verifica quando o doente já se encontra em processo natural e irreversível de morte, mormente de morte encefálica. Por ela, o médico deixa de empregar meios artificiais para o prolongamento da vida, fazendo com que siga seu curso natural. É o oposto da distanásia, pela qual há o prolongamento artificial do processo de morte, com a utilização de meios artificiais e que podem causar o sofrimento do doente[7]. A ortotanásia tem por finalidade exatamente de evitar a distanásia, contribuindo para que a morte se desenvolva naturalmente. A distinção entre a eutanásia e a ortotanásia se verifica em razão da conduta praticada, pois, como esclarece José Henrique Rodrigues Torre, “Na ortotanásia, o seu autor não pratica nenhuma conduta de ação, não mata o doente, mas apenas o deixa morrer, praticando, portanto, uma conduta de omissão, não de ação”. Porém, neste caso, não há que se falar em homicídio por omissão, nem que se confundir com eutanásia ativa ou eutanásia passiva, tendo em vista que o médico não pode ser considerado o causador da morte, que é inevitável[8]. A ortotanásia consiste em figura atípica no Código Penal e que, portanto, não configura crime; sendo uma prática lícita se exercida exclusivamente por médico e sem que haja o encurtamento da vida[9]. O encurtamento da vida pela eutanásia ou o não prolongamento da morte pela ortotanásia novamente vem traz à baila a discussão sobre a liberdade da pessoa de decidir sobre seu destino e dispor de seu próprio corpo. Há, assim, a contraposição do direito à vida com uma série de outras garantias fundamentais, especialmente da liberdade que norteia autodeterminação de cada indivíduo de agir de acordo com sua própria consciência. A liberdade de consciência consiste num direito intrínseco de cada ser humano de livremente pensar e acreditar no que quiser. A consciência é foro íntimo, inviolável, sobre a qual outros não podem legislar ou interferir. Esta liberdade assegura a cada indivíduo o direito de agir de acordo com sua convicção pessoal, desde que não pratique qualquer ato contrário a lei. E este agir evolui e se modifica constantemente, sendo fortemente influenciado por fatores externos, inclusive de crença religiosa. Mas não deve ser confundida a liberdade de crença com a de consciência, posto que esta decorre de valores morais e espirituais e que não se relacionam com qualquer religião, sendo assegurada a ateus e agnósticos. Seja por qualquer destes motivos – de crença religiosa ou convicção pessoal -, não nos parece correto que o Estado, sob o fundamento de assegurar o direito à vida, possa interferir na liberdade de consciência da pessoa e proibi-la de abreviar sua própria morte, quando ela não pretende se submeter a certos tratamentos médicos paliativos ou inúteis e que poderão lhe causar sofrimento nos últimos instantes da vida. Os preceitos constitucionais, ao dispor sobre direitos e garantias fundamentais, não apresentam conceitos estanques; ao contrário, devem ser aplicados de acordo com a evolução da humanidade e, no caso, devem considerar a possibilidade de o indivíduo de recusa quanto à manutenção artificial de seu estado de vida. Sobre o assunto, oportunas as palavras de Celso Ribeiro Bastos: “Em primeiro lugar, urge notar que a vida espiritual não se desenvolve em compartimentos estanques. As condições sociais, econômicas, históricas e culturais exercem, sem dúvida, influência sobre o pensamento individual. O condicionamento deste por fatores externos tem-se mostrado tão mais acentuado quanto se desenvolveram os meios de comunicação em massa e as técnicas de formação de opinião. (…) No contexto mesmo da liberdade de pensamento, há que se destacar a liberdade de opinião cuja característica é a escolha pelo homem da sua verdade, não importa em que domínio. Ela ganha o nome de liberdade de consciência, quando tem por objeto a moral e a religião”[10]. A dignidade humana deve compreender não somente a dignidade da vida, mas também a dignidade da morte. A utilização da ciência na manutenção da vida deve ser limitada quando contrariar os princípios e direitos fundamentais. É neste panorama que se defende o direito a uma morte digna. Entretanto, de acordo com a legislação vigente[11], a eutanásia será considerada como ato delituoso e punida como crime de homicídio, em razão da contribuição que o terceiro fizer para a morte do doente terminal. Já a ortotanásia, porquanto consiste em figura atípica, poderá ser praticada pelo médico, sem que a conduta seja configurada como crime. O Código de Ética Médica em vigor, aprovado pelo Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução 1.931/09, em seu Capítulo I – que cuida dos Princípios Fundamentais – prevê: "XXII. Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará sob sua atenção todos os cuidados apropriados". O artigo 41 da referida norma, por outro lado, veda ao médico "abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal". Como se vê, a ética médica não permite a prática da eutanásia nem autoriza expressamente a ortotanária, apenas recomenda seja evitada a distanásia. O médico nada poderá fazer para abreviar o estado terminal do doente, ainda que seja esta a sua vontade; pois, não obstante seja uma conduta antiética, poderá ser responsabilizado criminalmente. Apesar de sua ilicitude no Brasil, há outros países em a eutanásia é permitida. O Uruguai foi um dos primeiros países a legislar sobre a eutanásia, quando, em 1934, incluiu no Código penal o homicídio piedoso, facultando ao juiz a não aplicação de qualquer pena, desde que seja realizada por motivo piedoso e o paciente o tenha requerido. Na Holanda a eutanásia foi legalizada em 2001, por meio de lei específica que autoriza o procedimento sob as condições de que o paciente tenha uma doença incurável e estiver com dores insuportáveis; haja pedido voluntário pelo paciente; e um segundo médico tiver emitido sua opinião sobre o caso. Também foi editada uma lei na Austrália sobre a legalidade da eutanásia, mas que posteriormente veio a ser revogada. Já nos Estados Unidos, o suicídio assistido é autorizado no estado do Oregon desde 1994, mas desde que sejam observados alguns procedimentos preliminares e seja oportunizado um período de reflexão pelo paciente[12]. 3. Direitos do paciente No exercício de sua função, o médico sempre terá de adotar os melhores procedimentos no cuidado com o paciente, tentando aliviar sua dor e sofrimento, por meio de analgésicos e outros sedativos. Esta adoção de cuidados paliativos ao doente em estado terminal é recomendada pelo Código de Ética Médica, nos termos do parágrafo primeiro do já citado artigo 41: “Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”. Os cuidados paliativos ou de fim de vida “são medidas tomadas quando já não é mais possível curar ou estender a vida do paciente. As prioridades passam a ser, então, o controle da dor e os confortos físico e psicológico do doente e de seus familiares”[13]. E, de acordo com a definição da Organização Mundial da Saúde: “Cuidados paliativos é uma abordagem que aprimora a qualidade de vida, dos pacientes e famílias que enfrentam problemas associados com doenças ameaçadoras de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento, por meios de identificação precoce, avaliação correta e tratamento da dor e outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual”[14]. A adoção destes cuidados é direito do paciente, com a finalidade de aliviar sua dor e sofrimento, inclusive de tratamento psicológico para si e sua família. Não se trata, pois, da ortotanásia, haja vista que a atuação do médico “não visa medidas de prolongamento artificial da vida, mas sim proporcionar o maior conforto possível para que a pessoa doente consiga viver até o momento de sua morte”[15]. Outrossim, o Sistema Único de Saúde, por meio da Portaria nº 19/2002, estabelece o direito do paciente de recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para prolongar a vida, tendo instituídos o Programa Nacional de Assistência à Dor e Cuidados Paliativos, cujos objetivos gerais são: “a – articular iniciativas governamentais e não governamentais voltadas para a atenção/assistência aos pacientes com dor e cuidados paliativos; b – estimular a organização de serviços de saúde e de equipes multidisciplinares para a assistência a pacientes com dor e que necessitem cuidados paliativos, de maneira a constituir redes assistenciais que ordenem esta assistência de forma descentralizada, hierarquizada e regionalizada; c – articular/promover iniciativas destinadas a incrementar a cultura assistencial da dor, a educação continuada de profissionais de saúde e de educação comunitária para a assistência à dor e cuidados paliativos; d – desenvolver esforços no sentido de organizar a captação e disseminação de informações que sejam relevantes, para profissionais de saúde, pacientes, familiares e população em geral, relativas, dentre outras, à realidade epidemiológica da dor no país, dos recursos assistenciais, cuidados paliativos, pesquisas, novos métodos de diagnóstico e tratamento, avanços tecnológicos, aspectos técnicos e éticos; e – desenvolver diretrizes assistenciais nacionais, devidamente adaptadas/adequadas à realidade brasileira, de modo a oferecer cuidados adequados a pacientes com dor e/ou sintomas relacionados a doenças fora de alcance curativo e em conformidade com as diretrizes internacionalmente preconizadas pelos órgãos de saúde e sociedades envolvidas com a matéria”[16]. Atualmente, os pacientes devem ser tratados como clientes ou consumidores, tendo em vista o caráter consumerista que norteia sua relação com o hospital, e que é extensiva aos médicos responsáveis por seu tratamento. Desse modo, o paciente tem o direito à ampla informação quanto ao seu estado de saúde e ao prognóstico real de cura em razão dos tratamentos existentes. Acerca do tema, válida a lição de Tereza Rodrigues Vieira: “Há que salientar que hoje ele já não é mais considerado um simples ‘paciente’ e sim ‘cliente’. O seu direito à autonomia é um dos pilares da bioética, deixando a relação médico-paciente de ser assimétrica. O objetivo dessa relação de consumo é proteger o consumidor e seus familiares. Assim, não pode o médico exercer ascendência sobre o cliente, ademais deve informá-lo, em linguajar acessível, acerca dos procedimentos a serem efetuados”[17]. Em decorrência dos direitos assegurados no Código de Defesa do Consumidor, também deve ser respeitada a autonomia do paciente quanto à decisão de se submeter ou não a determinado tratamento médico ou procedimento cirúrgico. Portanto, a vontade do paciente deve ser observada pelo médico, mesmo que a não submissão a determinado procedimento terapêutico implique em risco de morte. Ele tem a opção de dispor de seu próprio corpo e não está obrigado a aceitar determinado tratamento que lhe cause dor e sofrimento, notadamente em se tratando de cuidados paliativos e que não possam trazer chances efetivas de cura. Com efeito, o artigo 15 do Código Civil prevê que “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. Esta norma – ao tratar dos direitos de personalidade – tem por objetivo preservar a integridade do corpo humano, tutelando a vida que poderá ser exposta a risco em virtude de um tratamento ou cirurgia desnecessária. Ao comentar sobre o artigo acima citado, Álvaro Villaça Azevedo e Gustavo Rene Nicolau asseveram que: “Todavia, o maior problema não foi enfrentado pelo artigo e correspondente justamente às pessoas que – por convicções pessoais e religiosas – não queiram se submeter a determinadas espécies de tratamento médico, ainda que tais tratamentos não as coloquem em risco. (…) Impingir-lhe a um tratamento forçado equivaleria a uma violência que – apesar de salvar sua vida – não lhe daria um futuro feliz e digno por conta da violação de sua intimidade e consciência. Como sempre o Direito Civil deve se submeter às normativas e preceitos constitucionais, assegurando a dignidade do paciente”[18]. No estado de São Paulo, a Lei nº 10.241/99 foi editada com o objetivo de evitar a desumanização crescente dos estabelecimentos de saúde, assegurando aos pacientes um tratamento digno, com a observância de direitos básicos sobre sua integridade física, privacidade, individualidade, respeito aos seus valores éticos e culturais, confidencialidade de suas informações pessoais e segurança do procedimento a que será submetido. E, dentre outros direitos, estabelece o artigo 2º, inciso XI da referida norma, o direito ao paciente terminal ou ao seu representante legal de recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários que visam prolongar a vida; além da garantia de escolha do local de sua morte (inciso XXIV). Estes deveres também hão de ser observados pelo médico, que deverá respeitar a vontade do paciente quanto a não realização de tratamentos, internações, exames, prescrição de medicamentos, cirurgias e qualquer outra intervenção, sob pena de violação à integridade e dignidade da pessoa. O respeito à dignidade e integridade do paciente também se encontra previsto no Código de Ética Médica, ao prescrever que “VI – O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade”. Desse modo, o paciente tem assegurado o direito de livremente se recusar os tratamentos médicos que lhe são recomendados, mesmo que isso possa causar agravamento de seu estado de saúde ou risco de morte. É o que frequentemente ocorre, por exemplo, com os adeptos da religião Testemunhas de Jeová; os quais, por convicção religiosa, preferem não se submeter a transfusão de sangue, mesmo em casos de iminente risco de morte. O nosso país, como um Estado laico, deve respeitar toda e qualquer convicção e manifestação religiosa. Isso porque, como já observado, a Constituição Federal, ao garantir a liberdade de consciência, também assegura o livre exercício da liberdade religiosa, tal como propagado no artigo 3º, inciso IV[19], assim como no artigo 5º, incisos VI, VII, VIII, IX e X [20]. Nada impede que determinada pessoa possa se recusar um tratamento médico, por convicção meramente religiosa; pois não cabe ao Estado intervir para coagi-lo a fazer o que não deseja, sob pena de infringência dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. Assim sendo, apesar de o médico ter o dever de realizar todos os procedimentos que estiver ao seu alcance para salvar a vida do paciente (e, em determinados casos a transfusão de sangue se mostra necessária), ele possui o direito de recusar o tratamento convencional, preferindo se submeter à forma alternativa de tratamento, mesmo que não sejam as mais recomendadas pela ciência médica. 3.1. Consentimento do Paciente O paciente não deve ser tratado como um sujeito passivo e ser obrigado a submeter ao tratamento que lhe tenha sido diagnosticado. Sua vontade deve prevalecer, não só porque ele está dispondo de sua própria vida, mas em razão de ser ele o consumidor dos serviços médicos. No entanto, muito se discute sobre a validade do seu consentimento: se ele será valido mesmo diante da opinião contrária do médico ou da família; e, ainda, se será necessária a manifestação expressa de recusa quanto ao tratamento. Em se tratando de direito à vida e à saúde, a manifestação deve ser expressa e específica; pois, caso a pessoa nada tenha declarado a respeito, o médico deverá empregar todos os meios que estiver ao seu alcance para tentar livrar o paciente da morte, desde que não se trate de tratamentos inúteis e que apenas prologam o término da vida, causando-lhe mais sofrimento. Vale dizer, é imprescindível o consentimento válido da pessoa sobre sua recusa em se submeter ao tratamento, sob pena de a ausência do médico ser caracterizada como omissão de socorro, punível por infração ética e por crime tipificado em lei. É o que se verifica, contraio sensu, da dicção do artigo 15 do Código Civil, porquanto a expressão “ser constrangido” pressupõe a vontade consciente de não se submeter a tratamento médico ou intervenção cirúrgica; de modo que a ausência destes procedimentos apenas não será considerada como ilícito quando o paciente manifestou sua vontade nesse sentido. Ademais, a recusa dever ser manifestada por sujeito que esteja no pleno exercício de suas faculdades mentais, enquanto consciente e capaz de exprimir sua vontade livre, tal como sustenta Wanderlei de Paula Barreto: “A natureza ou qualidade do consentimento exigido pela lei, por se tratar de guarida pela ordem jurídica a valor absoluto, qual seja a vida humana, não pode ser apequenada ou negligenciada. É insuficiente o consentimento irrefletido, açodado, não fundamentado, não arrimado em informações completas, claras, objetivas e que espelhem o mais atualizado estado da arte médica”[21]. Desta feita, não deve ser considerado o consentimento manifestado pelo doente que já estiver acometido pela doença e que não disponha de consciência para manifestar sua vontade; tal como pode ocorrer com a existência de patologias psíquicas ou quando forem contatados delírios decorrentes da dor ou influenciados por medicamentos. Do mesmo modo, o consentimento somente será valido se manifestado por pessoa maior e dotada de capacidade civil; devendo ser desconsiderada a vontade manifestada por menores ou incapazes, mesmo que tenha sido expressada pelos seus representantes legais. Ora, por mais que determinada pessoa possa manifestar sua vontade, o direito não admite como válida tal declaração enquanto não forem dotados de plena capacidade para a prática dos atos da vida civil; como ocorre com os absolutamente ou relativamente incapazes. E, a interdição não será cabível neste caso, pois, em se tratando de direito personalíssimo e inviolável, a vontade não poderá ser suprida por terceiros, mesmo que investidos de poderes de representação. Também não se deve admitir a validade da manifestação de vontade verbal ou tácita do paciente, porquanto ela deve ser expressa, não podendo ser provada por meios indiretos ou duvidosos. No entanto, nos parece possível admitir a comprovação da vontade por testemunhas, desde que haja provas irrefutáveis de que a pessoa não desejava prolongar a sua vida por meios artificiais ou se submeter a procedimentos que lhe causassem sofrimento. Neste caso, a vontade deve ser manifestada por decisão judicial, que, ao analisar as provas necessárias, venha a suprir a vontade do paciente; sendo recomendável este procedimento, inclusive, para isentar o médico de qualquer responsabilidade pelo ato praticado. De qualquer forma, existindo a manifestação válida de vontade, esta deve ser respeitada, em prestígio à liberdade de consciência do indivíduo. 4. Testamento vital Diante da possibilidade de manifestação da pessoa consciente sobre os tratamentos médicos a serem utilizados em momento futuro, enquanto não puder manifestar sua vontade, surge a questão da vontade antecipada do paciente, que comumente ocorre por meio do denominado testamento vital. Importante destacar que o testamento vital não se confunde com o testamento civil. Este pode ser conceituado como “o negócio jurídico unilateral e de natureza personalíssima por meio do qual se opera a transmissão dos bens com a morte do testador em prol dos seus sucessores livremente indicados”[22]. Ou seja, pelo testamento civil há a declaração de última vontade com relação a transmissão de bens, de modo que o testador, de acordo com os limites da lei, estabelece o destino de seu patrimônio, no todo ou em parte. No que tange ao testamento vital, consiste numa “declaração escrita da vontade de um paciente quanto aos tratamentos aos quais ele não deseja ser submetido caso esteja impossibilitado de se manifestar”[23]. Cuida-se de um documento escrito pelo qual a pessoa expressa sua vontade com relação ao tratamento e intervenção médica que deseja ou não se submeter, indicando, por exemplo, os tipos de doença que recusa ser tratado; se prefere que sua vida seja preservada a qualquer custo ou se dispensa os cuidados paliativos; sua negativa a determinadas intervenções cirúrgicas invasivas; sendo possível, ainda, designar um médico de confiança para o tratamento. O testamento vital tem por objetivo registrar a linha de conduta a ser seguida pelo médico nas hipóteses de inconsciência do paciente, que fica impossibilitado de exprimir sua vontade pelo estado de incapacidade, mormente nos casos de perda de consciência, sem a possibilidade de recuperá-la; tal como ocorre no coma; quando houver lesão permanente no cérebro; diante da ausência das funções vitais; ou na presença de sequela que torne a vida do paciente impossível sem o auxílio permanente de um cuidador[24]. No testamento vital há a manifestação das diretrizes antecipadas pelo paciente, mas que observa determinada forma para que o consentimento seja indene de dúvidas. Em que pese inexistir forma prescrita em lei, recomenda-se seja “reduzido a um documento escrito, subscrito por testemunhas, como maneira de viabilizar a prova do fato jurídico”, apesar de ser possível a adoção de outras formas menos usuais, como a gravação em vídeo[25]. Também é usual que esta manifestação seja lavrada por escritura pública, a fim de dar publicidade ao ato e se assegurar que houve vontade livre e consciente. É exatamente em decorrência da observância desta forma, que se convencionou denomina-lo como testamento vital. O doutrinado português Rui Nunes, propõe a observância de alguns princípios para a validade jurídica do testamento vital, a saber: (i) esteja limitado a pessoas maiores, capazes e que não estejam acometidas por anomalia psíquica; (ii) haja informação e esclarecimentos adequados, por intermédio de um médico com formação técnica apropriada; (iii) enseje em efeitos compulsórios para a equipe médica e não meramente indicativos; (iv) existência de um formulário-tipo, com a finalidade de padronizar os procedimentos; (v) possibilidade de revogação a qualquer momento e sem qualquer formalidade; (vi) renovação periódica da manifestação de vontade e que poderá se dar por prazos determinados; (vii) a certificação perante o Tabelião para garantir a autenticidade e evitar influências indevidas na decisão pessoal; e (viii) a criação de um órgão governamental para registro, facilitando o acesso pelos profissionais de saúde[26]. Não há momento específico para a elaboração do testamento vital, podendo, inclusive, ser feito nos momentos finais de vida do paciente, desde que este esteja no pleno exercício de suas faculdades mentais; o que poderá ser atestado por um médico, tabelião ou pelas testemunhas que presenciaram o ato. Ademais, esta declaração pode ser revogável a qualquer momento, mesmo que não haja revogação expressa e, ainda assim, “é preciso examinar em cada caso grave, se nas circunstâncias dadas, deseja o paciente perseverar sua vontade anteriormente manifestada”[27]. Diante do estado de incapacidade do paciente, para conferir eficácia ao testamento vital, é importante que haja a nomeação de um procurador, que ficará responsável por informar o médico desta manifestação de vontade, assim como exigir sejam cumpridas as determinações nela contidas. Por questões éticas, o médico não poderá figurar como procurador, sendo recomendável a nomeação de algum membro da família ou amigo próximo. O dever ético do médico de observar a vontade do doente se encontra disciplinado na Resolução 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina, que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Esta resolução leva em consideração a relevância da autonomia do paciente no contexto da relação com o médico e os novos recursos tecnológicos que permitem a adoção de médicas desproporcionais e que tão somente prolongam o sofrimento da pessoa em estado terminal, sem trazer-lhe benefícios. No artigo 2º constam diversas diretrizes sobre a observância da vontade do paciente que se encontrem incapaz de se comunicar ou de expressar sua vontade de maneira livre e independente. Por dever ético, cabe ao médico levar em consideração as informações prestadas pelo representante que o paciente tenha designado para tal fim, as quais prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico e, inclusive, sobre o desejo dos familiares. O testamento vital, apesar de não ser regulado de forma específica em nosso país, possui reconhecimento jurídico na Alemanha, Argentina, Áustria, Bélgica, Espanha, Estados Unidos da América, França, Holanda, Hungria, Inglaterra, México, Porto Rico, Portugal, União Europeia e Uruguai[28]. Todavia, em que pese a inexistência de legislação a respeito, é certo que o testamento vital possui valor no campo jurídico, haja vista que esta vontade deve prevalecer desde que haja uma declaração válida e eficaz, porquanto se funda na autonomia de vontade e na dignidade da pessoa humana. Pondere-se, ademais, já ter sido ajuizada uma ação civil pública pelo Ministério Público Federal, visando declarar a inconstitucionalidade e ilegalidade da mencionada Resolução CFM nº 1.995/2012, sob o argumento de que as normas nela contidas importam em riscos à segurança jurídica, alija a família de decisões que lhe são de direito e estabelece instrumento inidôneo para o registro de diretivas antecipadas de pacientes. No entanto, a 1ª Vara Federal de Goiás julgou a ação improcedente, por reconhecer que, apesar da inexistência de legislação específica sobre a matéria, as diretrizes antecipadas de vontade do paciente não encontram proibição no ordenamento jurídico. Consignou, outrossim, que apesar de o Conselho Federal de Medicina ter apenas tratado de regular a conduta ética do médico nestas circunstâncias, a norma é compatível com a autonomia da vontade, o princípio da dignidade da pessoa humana e a proibição de submissão de tratamento desumano ou degradante insertas na Constituição Federal[29]. Conclusão Não se nega que a vida consiste no principal direito da pessoa humana; mas, por certo, os demais direitos fundamentais não devem ser desprezados por conta de sua importância. Obviamente não está a se defender a morte; ao contrário, busca-se que este processo natural do fim da vida seja tratado com respeito e dignidade, prevalecendo o direito a uma morte digna. Com a chegada da fase terminal da vida, é direito da pessoa morrer dignamente, sem que haja sofrimento adicional provocado por tratamentos inúteis, intervenções cirúrgicas desnecessárias e o prolongamento artificial de um estado irreversível. Em última análise, não se pode admitir que o tratamento médico seja mais prejudicial do que a própria doença. A autodeterminação do indivíduo, baseada em sua liberdade de consciência, é um direito tão importante quanto à vida e, por isso, deve ser respeitada. A qualquer pessoa deve ser assegurada possibilidade de dispor de seu próprio corpo, possibilitando-lhe externar sua recusa a qualquer dos tratamentos médicos que lhe forem sugeridos, mesmo que com isso seu processo de morte seja abreviado. Neste estudo, não se pretendeu discutir a legalidade da eutanásia – que, atualmente, configura em ilícito penal –, mas a possibilidade da ortotanásia como um processo para evitar a dor e sofrimento desnecessário ao paciente. Por consequência, não há qualquer óbice para que a pessoa capaz possa, antecipadamente, exprimir sua vontade sobre os tratamentos que lhe serão empregados quando sobrevier seu estado de inconsciência. Surge, desse modo, a importância do testamento vital, como uma forma válida de consentimento que deve ser respeitada por todos, notadamente pelo médico, que possui a obrigação legal e ética de obedecer a vontade do paciente, inclusive como corolário da dignidade da pessoa humana.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-120/testamento-vital-como-instrumento-assecuratorio-do-direito-a-morte-digna/
Testamento vital: a necessidade de sua inclusão no ordenamento jurídico brasileiro
Este trabalho tem o objetivo de examinar a legislação atual e a viabilidade da implantação do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro, defendendo a autonomia privada como forma do indivíduo se autodeterminar para que seja garantida sua dignidade, a qual é assegurada quando se respeita a decisão de uma pessoa que exara sua não vontade de submeter a tratamentos médicos diante um diagnóstico de doença terminal.  Pode-se pensar que haverá choque entre o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito a vida, assegurado no ordenamento pátrio, todavia deve-se lembrar o conceito de vida deve ser interpretado como viver bem, e não viver a qualquer custo. Assim o estudo defenderá a implantação do testamento vital, um objeto de grande importância para o paciente e para que os médicos sejam eximidos de qualquer responsabilidade, diante da vontade exarada.
Biodireito
1. O TESTAMENTO VITAL Com o reconhecimento e a legitimidade do testamento Vital pelo Conselho Federal de Medicina, muda a conduta do médico brasileiro, fazendo valer as escolhas individuais relativas aos tratamentos médicos em um quadro terminal, baseando no princípio da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade. O trabalho busca defender a autonomia privada daquele que elabora o chamado testamento vital, tendo por finalidade dispor acerca dos tratamentos e não a que tratamentos deseja ser submetido diante de um diagnóstico de doença terminal e impossibilitado de manifestar sua vontade. O que se defende, legitima a autonomia privada do paciente terminal e exime o médico de possíveis responsabilidades sobre o ato que lhe fora determinado. O Testamento Vital consiste em um documento devidamente assinado, que o interessado juridicamente capaz, declara a que tipo de tratamento médico deseja ser submetido ao se encontrar em situação que impossibilite a sua manifestação de vontade,podendo se opor a futura aplicação de tratamentos e procedimentos médicos que prolonguem sua vida em detrimento da qualidade da mesma. Diferencia-se da eutanásia, pois nestao médico age ou omite-se, surgindo diretamente a morte, com consentimento do paciente, a pedido de algum familiar ou sob impulso de exacerbado sentimento de piedade humana. Ressalte-se que no caso da eutanásia tudo acontece no momento de sofrimento do paciente, ou quando este não mais responde pelos seus atos, vindo a mesma acontecer por ação ou omissão impulsionada pela piedade do médico ou a pedido de alguém, muitas das vezes sem o consentimento do próprio paciente, não prevalecendo à vontade do mesmo, uma vez que esta não foi manifestada devido a seu estado debilitado. A eutanásia pode ser ativa ou passiva, ativa quando a intenção de realizá-la gera uma ação e passiva quando gera uma omissão.Para Maria de Fátima Freire de Sá “[…] eutanásia ativa seria uma proposta de promover a morte mais cedo daquela que se espera, por motivo de compaixão, ante o sofrimento insuportável”. (SÁ, 2011:67) Para o Direito Penal Pátrio a eutanásia é tratada como homicídio, ainda que privilegiado, conforme o artigo 121, do Código Penal, “matar alguém: pena de reclusão, de seis a vinte anos”, no artigo 121§ 1º do Código Penal “[…] se o agente comete crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo seguida a injusta provocação da vítima, o Juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço […]”. (BRASIL, 2013: 535) Mesmo sendo pelos motivos descritos no inciso I do artigo 121, quem pratica eutanásia responde criminalmente. Depreende-se que o ato de tirar a vida de outrem que se encontre em grande sofrimento pode ser considerado motivo de relevante valor moral e por isso, o agente que praticar o delito terá a sua pena reduzida. Ainda que seja por induzimento, instigação ou auxilio ao suicídio, responderá conforme o artigo 122, do código penal: “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxilio para que o faça: pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, se a tentativa de suicídio resulta de lesão corporal de natureza grave” (BRASIL, 2013:536). No Direito Brasileiro é irrelevante o consentimento do paciente para descaracterizar a conduta como crime. Por um lado nosso ordenamento jurídico não pune a forma de tentativa de suicídio, sendo a vida é um bem inviolável. Por outro lado, se fragiliza a partir das diversas concepções de vida boa. Ainda que todos tenham como bem maior a vida, não se pode pensar em tal substantivo sem adjetivações, ou seja, o que se deseja é uma vida boa, saudável e feliz. Ao confrontar-se a ausência de tais predicados é que cabe questionar a quem pode ser dado o poder de decidir sobre a vida ou a morte de alguém. Paulo Gustavo Gonet Branco diz que “[…] O direito à vida aparece vinculado aos direitos a integridade física […]”.(BRANCO, 2009:394). Para o mesmo autor, “[…] o direito à vida é por vezes referido sob um modo qualificado, num sentido amplo, a abranger não apenas a preservação da existência física, mas designando, além disso, um direito a uma vida digna […]” (BRANCO, 2009:400). O Estado elegeu a vida como bem a ser protegido, acabando por criminalizar qualquer ato, prática ou mecanismo que leve à exclusão, até mesmo, da sobrevida inviável. Desde o momento da concepção até a ocorrência da morte mediante a cessação de todos os sinais vitais, é vedado qualquer ato, qualquer gesto, qualquer omissão que impeça a manutenção da vida, postura que inclusive integra a esfera do Direito Penal, configurando crime, porque no campo jurídico a eutanásia provocada por outrem, ou a morte realizada por misericórdia ou piedade, constitui homicídio ou crime eutanásico, como já vimos. Portanto, se o direito a vida é um direito absolutamente indisponível, por que em certos casos é concedido ao Estado violar esse direito? Como no caso de pena de morte, uma exceção prevista expressamente na Constituição em seu artigo 5°, inciso XLVII, no qual preceitua em seu inciso I, que não haverá pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, ou por parte de um particular amparado por umas das hipóteses de exclusão da antijuridicidade, quais sejam: a legítima defesa e o estado de necessidade, previstos expressamente no artigo 23, incisos I e II do Código Penal. Cabe indagar se a não regulamentação do testamento vital não seria uma violação do Estado ao Princípio da Dignidade da Pessoa humana. No artigo 15 do Código Civil, o legislador consagrou o princípio da liberdade de escolha do indivíduo, podendo este recusar a se submeter a certos tratamentos, beneficiando tão somente os pacientes em estado terminal, onde diz que “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. (BRASIL, 2013: 157).Mas em relação às pessoas que não estão em estado terminal e sofrem de doenças crônicas que causam dores insuportáveis ao indivíduo, tornando sua vida insustentável, haveria também esse direito de escolha? O que se propõe não é apressar a morte, mas humanizá-la, pois quando a Constituição de 1988 consagrou o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, tornando-se a primeira a reconhecê-lo expressamente, foi aberta uma porta não só para o direito a uma vida digna, mas também para o direito de morrer com dignidade. O direito de morrer é assim um corolário do direito à vida. Maria de Fátima Freire de Sá diz que “[…] o ser humano tem outras dimensões que não somente a biológica, de forma que aceitar o critério da qualidade de vida significa estar a serviço não só da vida, mas também da pessoa. O prolongamento da vida somente pode ser justificado se oferecer às pessoas algum benefício, ainda assim, se esse benefício não ferir a dignidade do viver e do morrer […]” (SÁ, 2001:60). Apesar de Constituição Federal preservar o direito à vida no caput do seu artigo 5º, o direito à integridade física e moral, à dignidade humana no artigo 1º, inciso III e à saúde como direito de todos e dever do Estado no artigo 196, é bastante escassa a interpretação doutrinária e jurisprudencial sobre o Testamento Vital no Direito Brasileiro. Ressalte-se que a vida é o maior bem jurídico, devendo ser preservada a qualquer custo, mesmo contra a vontade do próprio paciente. Mas no caso em comenta não estamos falando de um quadro reversível, mas sim de uma prorrogação inútil, onde o único resultado será aumentar a dor e o sofrimento do paciente, privando-o de uma morte digna. Ao tratar do direito à vida em colisão com outros bens e valores, a primazia recai sobre o primeiro, porém, em situações extremas, válido se torna mitigar este posicionamento, uma vez que o próprio ordenamento jurídico admite sua supressão nos casos que autoriza o aborto e a legítima defesa.Então, pode se dizer que preservar a vida humana em detrimento de morrer dignamente está contrariando o princípio da dignidade da pessoa humana, garantido pela CF/88.Da mesma forma que não se pode dispor da vida é defeso impor o dever de viver a todo custo, portanto, uma vez comprovado o estágio terminal e irreversível do paciente, interromper o tratamento que o mantém vivo não pode ser considerado ato ilícito. 2. Declaração Prévia de Vontade para o Fim da Vida Ao se falar em Testamento Vital, há controvérsia no sentido jurídico em relação ao seu significado e ao do Testamento, uma vez que este tem efeito após a morte e aquele tem efeito antes da morte. Luciana Dadalto utiliza a nomenclatura Declaração Prévia de Vontade para o Fim da Vida. Ela entende que Testamento Vital se assemelha ao Testamento por ser um negócio jurídico unilateral, personalíssimo, gratuito e revogável, mas que se distancia do mesmo por produzir efeitos post mortem. “[…] chegou-se ao nome “declaração prévia de vontade para o fim da vida”, por meio de verificação de que o documento comumente chamado de “testamento vital” é, na verdade, uma declaração de vontade que será utilizada pelo paciente em estágio de fim de vida, mas que deve ser manifestada previamente à esta situação[…]” (DADALTO, 2013:17) O nome Testamento Vital torna-se inadequado para designar uma declaração de vontade de uma pessoa com discernimento acerca dos tratamentos aos quais não deseja se submeter quando estiver em estado de terminalidade da vida e impossibilitada de manifestar sua vontade, apesar de em alguns pontos do texto mencionar Testamento Vital, o considerado mais adequado é a Declaração Prévia de Vontade para o Fim da Vida, uma vez que este vem representar as características e objetivos do instituto. No Brasil ainda não há legislação específica que rege o instituto da Declaração Prévia de Vontade para o Fim da Vida, entretanto, a falta da norma regulamentadora não desvalida sua concepção, devido a liberdade dos particulares em instituir categoria não contemplada em Lei, na condição de que a mesma não contraponha o ordenamento jurídico. No ordenamento jurídico brasileiro há várias formas de Testamento. Dispõe o artigo 1.857 do Código Civil que “Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte”. (BRASIL, 2013: 280). No parágrafo 2º, diz que: “São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado” (BRASIL, 2013: 280). Portanto, as disposições testamentárias não versam somente sobre questões patrimoniais, mas também não patrimoniais, como por exemplo, o reconhecimento de paternidade. O testamento é um negócio jurídico, uma vez que tem seus efeitos previstos na Lei Mister se faz aclarar algumas de suas características, tais como: 1- ato personalíssimo: a declaração de vontade é emitida somente pelo disponente; 2- ato unilateral: pois é manifestada a vontade livre e soberana do testador; 3- formal e solene: garante a aplicabilidade da vontade do testador; 4- revogável: pode ser revogado a qualquer tempo antes da morte do testador; 5- mortis causa: uma vez que tem efeito somente após a morte do testador. O artigo 1.862 do Código Civil de 2002 traz as formas ordinárias de testamento, sendo: público, serrado e o particular. No artigo 1.886 do mesmo Código, fala dos Testamentos Especiais, quais sejam: marítimo, aeronáutico e o militar. Outra forma de Testamento é o trazido pelo artigo 1.881 do codicilo, sendo considerado um ato de última de vontade da pessoa, versando sobre enterro, esmola de pouca monta, destinação de móveis, roupas ou jóias de pouco valor, faz-se por meio de um documento informal, assim como uma simples carta, é um instrumento particular, escrito, datado e assinado pelo próprio codicilante. Verifica-se então que o rol é taxativo, não tendo validade no ordenamento jurídico outro testamento ou declaração. O Testamento Vital também é uma disposição de vontade, assim como o próprio testamento, também é unilateral, personalíssimo, gratuito e revogável, é dirigido à eficácia jurídica antes da morte do interessado, por outro lado, este é elaborado por pessoa juridicamente capaz, devidamente assinado, onde o interessado declara quais tipos de tratamentos médicos deseja ou não se submeter, o que deve ser respeitado de forma incontroversa nos casos futuros em que o interessado encontra-se impossibilitado de manifestar sua vontade, tem efeito erga omnes, aplicando ao mesmo, por analogia ao artigo 1.858 do Código Civil, onde diz que “[…] o testamento é ato personalíssimo, podendo ser mudado a qualquer tempo”. (BRASIL, 2013: 280). Necessário se faz a edição de Lei específica sobre este assunto no Brasil, considerando que a Declaração Prévia de Vontade para o Fim da Vida é um documento pessoal, intransferível e revisável a qualquer tempo, não havendo óbice para sua inclusão no ordenamento jurídico. Diante do exposto, é relevante citara posição de alguns médicos a respeito do “testamento vital”[1]. Médico cardiologista Roberto Kalil: “[…] um dos pontos mais decisivos do meu testamento vital seria o direito de revisá-lo constantemente. A medicina avança muito rapidamente. O que agora é considerado uma terapia fútil amanhã pode ser a cura de uma doença. Além disso, certamente não serei a mesma pessoa daqui a dez, vinte ou trinta anos. Quem disse que não vou querer ficar preso a uma máquina para ver meu neto nascer? E, caso eu não possa me expressar e haja dúvida entre minhas diretrizes como paciente e as determinações de meu médico, as dele devem prevalecer”. (KALIL 2012:100). O que ele destaca com a sua opinião é a importância de revisar a qualquer momento o testamento vital, pois o que hoje é fútil amanhã poderá ser a cura, e o que pensa quando jovem, pode mudar de opinião com a maturidade adquirida pela idade. O cirurgião Ben-Hur Ferraz Neto “Meu testamento vital deverá conter uma única informação: o nome do meu médico de confiança. Ele será a pessoa mais indicada para tomar decisões sobre minha vida e minha morte. Meu médico não permitirá que eu sinta dor e que eu sofra por semanas se isso não me oferecer uma condição digna de sobrevida. Caso não seja possível tê-lo ao meu lado, eu vetaria qualquer medida exagerada de tratamento no fim da minha vida. A passagem da morte tem de ser forma mais digna e confortável possível”. (NETO, 2012:102). A importância neste caso é ter um médico de confiança, o que nem sempre será possível, valendo então as disposições do testamento vital.O oncologista Andrey Soares “Não quero ser submetido a nenhuma medida invasiva no fim de minha vida. Se precisar ir para UTI para ser entubado, por exemplo, prefiro ser sedado. Também não quero ser alimentado e hidratado, caso tais procedimentos sirvam apenas para postergar minha morte, de maneira sofrida. Além de conviver com frequência devido a minha especialidade, perdi minha mãe para uma doença que a fez sofrer por um longo período. Optamos, eu e minha família, por não submetê-la a terapias invasivas e desnecessárias. Minha mãe morreu no quarto, sedada, em paz”. (SOARES, 2012:102). Aqui se faz menção a uma morte de maneira sofrida, com finalidade única de postergação e não de cura.A Médica geriatra, Ana Claudia Arantes “Eu, Ana Cláudia Arantes, diante de uma situação de doença grave e, progressão e fora de possibilidade de reversão, apresento minhas diretrizes antecipadas de cuidados à vida. Se chegar a padecer de alguma enfermidade manifestamente incurável, que me cause sofrimento ou me torne incapaz para uma vida racional e autônoma, faço constar, com base no princípio da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade, que aceito a terminalidade da vida e repudio qualquer intervenção extraordinária, inútil ou fútil. Ou seja, qualquer ação médica pela qual os benefícios sejam nulos ou demasiadamente pequenos e não superem os seus potenciais metafísicos. As diretrizes incluem os seguintes cuidados: admito ir para UTI somente se tiver alguma chance de sair em menos de uma semana; não aceito que me alimentem à força. Se não puder demonstrar vontade de comer, recuso qualquer procedimento de suporte à alimentação; não quero ser reanimada no caso de parada respiratória ou cardíaca”. (ARANTES, 2012:99). Este é um trecho do testamento vital de uma médica geriatra, ela trata das questões referentes ao suporte médico almejado na terminalidade, bem como dos cuidados paliativos. Algumas pessoas já fizeram o seu próprio testamento vital por terem se deparado em algum momento da vida com situações que as levaram a tomar decisões por algum membro familiar, sendo este,acometimento de uma doença que o incapacitou de expressara sua própria vontade, como a empresária Anete Kurzweil Sallhago “Minha mãe morreu das complicações do Alzheimer, em 2008. Nos últimos meses de vida, seu organismo estava muito comprometido. Ela não conseguia mais responder por si, vivia em outro mundo. Já estava internada quando o medico me comunicou que teria de usar sonda gástrica, pois ela não queria mais comer nem tomar remédios. Eu sabia que não seria a solução do problema. Recusei por ela. Não foi fácil. Alguns médicos não concordaram comigo. Estou segura do que fiz. Minha mãe ainda viveu mais três meses. Recentemente, fiz meu próprio testamento vital, só que verbalmente. Desejo ter a morte tranquila da minha mãe”. (SALHAGO, 2012:105). A química Sônia Maria Simão Leite “[…] fiz meu testamento vital há dois anos. Tomei essa decisão depois de ter perdido meus pais e meu marido vítimas de doenças que exigiram cuidados médicos por longos períodos – acompanhei o sofrimento de cada um deles de perto. Eu sabia que se sentiriam mais acolhidos em casa. Por isso, optei por interná-los somente quando se tornou realmente inviável cuidar deles fora do hospital. Estabelecias escolhas para o fim da minha vida com a ajuda da minha médica de confiança. Hoje, o documento está em meu prontuário. E isso me deixa mais tranquila.” (LEITE, 2012: 105) Como já dito, a Declaração Prévia de Vontade para o Fim da Vida é um documento pelo qual a pessoa manifesta o desejo de quais tratamentos quer ou não se submeter no estado terminal, onde não puder expressar suas vontades. Este documento é feito quando a pessoa é detentora de sua capacidade e terá eficácia apenas na terminalidade de vida – quando não puder mais expressar suas vontades – tendo esta declaração efeito erga omnes, com alguns limites citados pela doutrina, trazidos por Luciana Dadalto, sendo estes: “[…] a objeção de consciência do médico, a proibição de disposições contrárias ao ordenamento jurídico, e disposições que sejam contra-indiciadas à patologia do paciente ou tratamento que já estejam superados pela Medicina.” (DADALTO, 2013:92). Segundo o artigo 28 do Código de Ética Médica brasileiro é direito do médico se opor a realização de atos que sejam contrários aos ditames de sua consciência, feita esta recusa, a mesma deve ser fundamentada na ética, moral, religião ou razão de foro íntimo. Em relação às disposições contrárias ao ordenamento jurídico há preocupação de se confundir a Declaração Prévia de Vontade para o Fim da Vida com a eutanásia passiva consentida, confusão essa que não se admite vez que há distinção “[…] pois, enquanto a eutanásia passiva, ainda que consentida, pressupõe, segundo Garay, a suspensão de meios terapêuticos proporcionados e úteis – aqui denominados de tratamentos ordinários ou cuidados paliativos – na declaração prévia de vontade para o fim da vida pretende-se a retirada de tratamentos extraordinários, ou fúteis […]” (DADALTO, 2012:93/94) A eutanásia passiva provoca à morte, enquanto a suspensão de tratamento fútil permite que ela ocorra naturalmente. Quanto às disposições que sejam contra-indiciadas à patologia do paciente ou tratamento que já estejam superados pela Medicina há que observar o melhor interesse do paciente. Em seu aspecto formal a Declaração Prévia de Vontade para o Fim da Vida deve ser escrita e registrada em um cartório competente. 2.1.A POSIÇÃO DO Conselho Nacional de Medicina e a regulamentação do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro A legitimidade do testamento vital é reconhecida pela decisão do Conselho Federal de Medicina, no documento os pacientes registram o tratamento que desejam receber quando a morte se aproximar. No Brasil o CFM não estabeleceu um formato padrão. O procurador de justiça Dialulas Ribeiro, que participou da elaboração da resolução do CFM, diz que “É crucial, porém, que o testamento seja discutido com um especialista, para não haver nenhum conflito ético médico […]” (RIBEIRO, 2012:102). Os progressos operadores no campo das ciências médicas contribuíram para a manutenção da vida humana em condições antes impensáveis, ao mesmo tempo em que impuseram aos pacientes a sujeição a tratamentos, por vezes, involuntários. Nesse contexto, a morte aparece como fracasso terapêutico. De outro lado, a concepção da vida humana como um bem absoluto impede quaisquer valorações qualitativas da mesma, que deve ser entendida como simples realidade bio-psicológica. Mas uma interpretação constitucional desse bem jurídico autoriza a sua consideração ao lado de outros valores fundamentais, entre os quais, o da dignidade da pessoa humana. Ao médico já não mais se impõe o dever incondicionado de tratante aquelas situações em que não haja perspectivas objetivas de que o paciente possa vir a recuperar a consciência e restabelecer uma vida de relações, nesse caso a obstinação terapêutica deve ceder. A resolução do CFM nº 1995/2012, dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes, na seguinte forma: “Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade. § 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico. § 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica. § 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares.§ 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente. § 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente. Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação”. (BRASÍLIA, 2012:269-70). Esta resolução não é uma faculdade dos médicos, se não fizerem conforme o disposto serão responsabilizados, uma vez que as resoluções são atos emanados dos plenários do Conselho Federal de Medicina e de alguns dos Conselhos Regionais de Medicina que regulam temas de competência privativa e dessas entidades em suas áreas de alcance. Pois elas resultam do esforço dos órgãos supervisores, normatizadores, disciplinadores, fiscalizadores e julgadores da atividade profissional médica em todo território nacional. O foco das resoluções é o zelo pelo desempenho ético da Medicina, adequadas às condições de trabalho, valorização do profissional médico e pelo bom conceito da profissão e dos que exercem legalmente e de acordo com os preceitos do Código Ética Médica vigente. Não se pode olvidar que a possibilidade de recusa a tratamento médico não se refere a tratamentos necessários para preservar a vida do paciente, mas sim a tratamentos que tenham somente a finalidade de prorrogar a vida sem nenhuma possibilidade de cura, portanto não há que se falar em invalidade do ato por ser ilícito o objeto. Entre as utilidades para o documento, podemos destacar três, tais como: a) assegurar que a vontade do paciente seja seguida pelo médico; b) evitar desentendimentos na família sobre quais procedimentos adotar em casos de inconsciência do paciente; c) proteção e amparo legal ao médico. A necessidade da inclusão do Testamento Vital em nosso ordenamento jurídico é o respeito à autonomia do paciente perante a possibilidade de suspensão dos tratamentos médicos. Ressaltando que a decisão não é do médico, ele tem a obrigação de informar ao paciente seu prognóstico, que lhe faculta procurar outras opiniões ou meios de tratamento.Ao médico cabe o dever de informar ao paciente, dever este garantido na CF/88, em seu artigo 5º. XIV “É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo de fonte, quando necessário ao exercício profissional”. (BRASIL, 2013:9). O Código de Ética Médica, diz em seu artigo 34 que é vedado ao médico “Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal”. (BRASÍLIA, 2013:1).Resta claro que o médico tem o dever de informar ao paciente acerca do tratamento que deverá ser submetido. É de sabença que a cultura médica é preservar a vida a qualquer preço. Há também uma restrição religiosa, algumas pessoas não se sentiriam bem administrando cuidados paliativos, entre outros assuntos. No entanto, é dever do médico diagnosticar e determinar o alcance da enfermidade, bem como a sua possibilidade de cura, cabendo então ao paciente exercer a opção de limitar ou suspender o tratamento, com respaldo nas garantias constitucionais, não podendo estas ser descartadas, uma vez que são garantias e não opcionalidades. 2.2. O Princípio da dignidade da Pessoa Humana É um valor moral e espiritual inerente à pessoa, constituindo o princípio máximo do estado democrático de direito, elencado no rol de direitos fundamentais da CF/88. Este princípio abrange uma diversidade de valores existentes na sociedade, como as exigências básicas do ser humano à mantença de uma vida digna, condições indispensáveis para o desenvolvimento de suas potencialidades. Edílson Pereira de Farias diz que “O princípio da dignidade da pessoa humana refere-se às exigências básicas do ser humano no sentido de que ao homem concreto sejam oferecidos os recursos de que dispõe a sociedade para a mantença de uma existência digna, bem como propiciadas as condições indispensáveis para o desenvolvimento de suas potencialidades. Assim, o princípio em causa protege várias dimensões da realidade humana, seja material ou espiritual”. (FARIAS, 2000:63) Cabe ao direito brasileiro, garantir, incentivar e promover a realização da dignidade da pessoa humana. A dignidade da pessoa humana confere ao sujeito dotado de direitos, liberdade no plano ético, não podendo nunca ser considerado como objeto. 2.3. O Princípio da Autonomia Privada E autonomia da vontade O Dicionário Aurélio diz que Autonomia “[…] é a capacidade de se governar por suas próprias leis, dirigir-se por sua própria vontade […]” (FERREIRA). Para César Fiúza o princípio da autonomia da vontade “[…] faculta às partes a liberdade para concluir seus contratos. Funda-se na vontade livre, na liberdade de contratar […]” (FIUZA, 2011:456). Antes das Revoluções Burguesas na Europa, no século XVIII, a sociedade européia vivia em um sistema que não permitia ascensão social, privilegiava o clero e a nobreza.O povo e a burguesia então se uniram e depuseram o Antigo Regime, tendo uma nova forma de governo, o Estado Liberal. A nova Sociedade baseou-se no individualismo, como resposta aos privilégios feudais, conferindo ao homem uma posição central nas sociedades européias, surgindo então, a igualdade entre os homens, sem haver submissão uns aos outros. Então, somente por meio de um acordo de vontade, as obrigações se tornariam um dever juridicamente exigível, surgindo à autonomia de cada um para decidir se desejava ou não contratar, tendo essa liberdade sido denominada autonomia da vontade, vindo este instituto ao encontro das necessidades da burguesia, pois quanto menos interferência do Estado, melhor era para os negócios jurídicos entre particulares. Após a primeira Guerra Mundial, com o aumento da industrialização na Europa, o Estado aumentou a intervenção na esfera privada, com o objetivo de justiça material, começando então essas relações regidas por princípios como a função social, assim o princípio da Autonomia da Vontade passou a sofrer limitações pelo Princípio da Autonomia Privada.Surge então, o Estado Democrático de Direito, buscando garantir o bem-estar coletivo e a valorização individual das pessoas. O princípio da Autonomia Privada garante as partes o poder de manifestar a própria vontade, permanecendo à vontade dos contratantes, não sendo este princípio totalmente livre, pois na concepção moderna de Estado, este exerce o Dirigismo Contratual, ou seja, intervenção na relação com os particulares para garantir princípios mínimos à coletividade. Conforme artigo 421 do CC, a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, este artigo não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses meta individuais ou interesse individual à dignidade da pessoa humana. Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves, “[…] o princípio da autonomia da vontade se alicerça exatamente na ampla liberdade contratual, no poder dos contratantes de disciplinar os seus interesses mediante acordo de vontade, suscitando efeitos ou não tutelados pela ordem jurídica. Têm as partes a faculdade de celebrar ou não contratos, sem qualquer interferência do Estado. Podem celebrar contratos nominados ou fazer combinações, dando a origem a contratos inominados […]” (GONÇALVES, 2013:719). A importância ao mencionar este princípio, é esclarecer que é possível um contrato entre o paciente e o médico acerca de procedimentos a que se deseja submeter,mas que não seria o ideal, uma vez que ao chegar a um estado que não possa expressar sua vontade, ou seja, no momento em que o paciente precisaria usar o contrato, corre o risco do médico não estar mais exercendo sua profissão, o que impossibilitaria a execução do mesmo. Para Maria de Fátima Freire de Sá, “[…] considera-se autonomia, o direito à autonomia, a capacidade ou aptidão que têm as pessoas de conduzirem suas vidas como melhor conviver ao entendimento de cada uma delas […]” (SÁ, 2001:130). Luciana Dadalto afirma que “[…]a autonomia privada garante ao indivíduo o direito de ter seu próprio conceito de “vida boa” e de agir buscando tal objetivo[…]” (DADALTO, 2013:29). A autonomia privada não reduz somente à autonomia contratual, vez que tem fundamentos em situações patrimoniais e não-patrimoniais. As primeiras são situações relacionadas às obrigacionais, contratuais, reais e creditícias, e as segundas são aquelas que referem aos direitos de personalidade, de família e aos direitos de sucessões, em alguns aspectos. Nas palavras de Taísa Maria Macena de Lima, “[…] a autonomia privada assume novas dimensões, como a luta pelo direito à redesignação sexual, o reconhecimento de diferentes modelos de família (matrimonial, não-matrimonial, monoparental etc.), o modelo de filiação voltado antes para a paternidade sócio-afetiva do que para paternidade apenas biológica, a união homoafetiva, entre outros”. (LIMA, 2004:5). Pode se verificar então que a autonomia privada não se reduz à autonomia contratual, vez que possui fundamentos diversificados (patrimoniais e não-patrimoniais). As situações jurídicas existentes no ordenamento jurídico brasileiro são tuteladas pelo princípio da autonomia privada que está ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que reconhecendo um por consequência reconhece-se o outro. “Consequência imediata do reconhecimento da autonomia privada é o respeito à dignidade da pessoa humana. Reconhecida a potencialidade da pessoa humana em se autodeterminar como interlocutor numa rede de interlocutores, como merecedores de respeito, é inegável que a adoção de qualquer postura reveladora do exercício de liberdade e não-liberdades, argumentativa construídas, possibilitarão que a dignidade seja evidenciada”. (MOUREIRA, 2009:82) É sob a análise da autonomia privada dos pacientes em terminalidade que se analisará a validade da Declaração Prévia de Vontade para o Fim da Vida no ordenamento jurídico brasileiro. 2.4. AUTONOMIA PRIVADA DOS PACIENTES NO FIM DA VIDA O Testamento Vital se aplica não só em pessoas no estado terminal, mas em todos os estágios clínicos que as colocam em situação de fim de vida, como doença terminal, estado vegetativo persistente e doenças crônicas. Busca-se o direito de morrer com dignidade. Paciente terminal é aquele que se encontra em situação irreversível, independente de tratamento ou não, apresentando grande possibilidade de morrer em pouco tempo, é quando o seu quadro clínico se torna irreversível. A terminalidade da vida está ligada a impossibilidade de cura do paciente, se o tratamento pode proporcionar a cura deste, não há que se falar em terminalidade, mas se apenas prolonga sua vida, sem possibilidade de reversão do quadro clínico, ou seja, não há possibilidade de cura, está presente então o estado de terminalidade do paciente. Então surge a questão de seus direitos, tais como, de morrer com dignidade e de deixar que a morte ocorra de forma natural. Helena Pereira de Melo diz que “O doente terminal é, antes de mais nada, uma pessoa que não pode ver limitados arbitrariamente ao seus direitos pelo simples facto de se encontrar doente, na fase final de uma doença incurável no estado actual do conhecimento médico. Continua, portanto, não obstante a doença que lhe dá uma esperança de vida previsível de um ou dois meses, a ser titular dos direitos reconhecidos nas grandes declarações de direitos no plano do Direito Internacional […]” (MELO, 2006:72) Ressalte-se que o paciente em estado terminal pode ou não estar consciente, uma vez que este não goze de plena consciência, fica então reduzida sua autonomia, razão pela qual deverão prevalecer os desejos do pacientes manifestados anteriormente por meio de declaração prévia de vontade para o fim da vida, inexistindo este documento, prevalece à vontade da família, devendo preservar sempre a dignidade e autonomia do paciente, quer ele esteja consciente ou não. Para Letícia Ludwig Moller “O direito de um doente em estágio terminal (cuja morte é inevitável e iminente), de recusar receber tratamento médico, bem como, o de interrompê-lo, buscando a limitação terapêutica no período final da sua vida, de modo a morrer de uma forma que lhe parece mais digna, de acordo com suas convicções e crenças pessoais, no exercício de sua autonomia, encontra-se plenamente amparado e reconhecido pela nossa Constituição.” (MOLLER, 2007:144). A vida então não pode ser vista de uma forma mais valorada que a liberdade e a dignidade.Pois mesmo em um estado onde a vontade do paciente não pode ser manifestada, não se pode esquecer que é um sujeito de direito, devendo sua vontade, mesmo que prévia, ser levada em consideração. 3.O direito de morrer com dignidade Se por um lado o Estado tem o dever de proporcionar saúde às pessoas, em contraposto, ninguém está obrigado a algo que não está previsto em Lei, não cabendo imposição de tratamento ao paciente, sem antes consultá-lo. A autonomia do paciente deve, antes de tudo, ser prevista e respeitada. Necessários e faz que o Estado não olvide esforços para garantir ao ser humano uma vida digna, mas que por outro lado, não se esqueça de garanti-la no momento da morte, uma vez que morrer de forma digna também é direito do ser humano, não devendo ser uma imposição, mas sim uma faculdade. Aclarando que a vontade expressa do paciente na Declaração Prévia de Vontade para o Fim da Vida de não ser submetido a tratamentos inúteis, cuja finalidade seja apenas prolongar a vida sem nenhum outro resultado, não é forma de eutanásia, mas sim reconhecer a morte como elemento da vida humana, deixando que ocorra sem o recurso de meios artificiais que prolonguem a agonia do paciente, documento este que deverá ser escrito por pessoa com discernimento e terá eficácia somente quando o paciente estiver em estado de terminalidade da vida, podendo ser revisado a qualquer momento, garantindo ao paciente um tratamento digno.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-120/testamento-vital-a-necessidade-de-sua-inclusao-no-ordenamento-juridico-brasileiro/
Abordagem sobre as modalidades de tratamento nos casos de pedofilia e as visões éticas e jurídicas com relação às duas modalidades de tratamento
Nesse trabalho foram observadas as modalidades de tratamento relacionadas à pedofilia. Como resultado foram detectadas polêmicas em torno da temática que se refere à castração física e química, permeando discussões multidisciplinares, remetendo-nos a questionamentos sobre de que forma esta conduta deve ser responsabilizada. Bem como, uma análise sobre a visão ética e jurídica com relação às duas modalidades de tratamento.
Biodireito
Introdução A pedofilia é considerada uma doença, forma de perversão sexual da ordem da parafilia[1] ou um transtorno de preferência sexual. Acomete em média 1% da população mundial. Consiste em atração sexual exclusiva por crianças, ou seja, não é considerado pedófilo aquele que se excita com adultos e crianças. O pedófilo pode se sentir atraído tanto por meninas como por meninos e, geralmente, essa atração está voltada para crianças de uma única faixa etária. A aproximação pode se dar por sedução ou por violência (ABDO, 2002). O tratamento pedofílico geralmente começa na adolescência, embora em alguns casos somente se manifeste na meia-idade. Seu curso costuma ser crônico, e a taxa recidiva é elevada, especialmente na pedofilia que envolve indivíduos como preferência pelo sexo masculino, em uma relação de aproximadamente o dobro daquela para a preferência pelo sexo feminino (TRINDADE/ BREIER, 2010). A pedofilia não é regulamentada pelos instrumentos legislativos, não está vinculada a uma definição legal, mas a uma definição clínica, ficando clara a psicologização da questão. O direito e a medicina se encontram em torno do crime e do criminoso e fornecem subsídios importantes para entendermos as ideias relacionadas ao crime em geral e de maneira específica, à violência sexual contra menores. Portanto, é relevante avaliar o compromisso do Direito na reconstrução do social, com ênfase no papel da política jurídica e da abordagem interdisciplinar nos casos de pedofilia. O objetivo desse trabalho é abordar algumas questões que geram polêmicas em torno da temática que se refere à castração física e química, permeando discussões multidisciplinares, remetendo-nos a questionamentos sobre de que forma esta conduta deve ser responsabilizada. 1. Modalidades de Tratamento 1.1 Castração Física Face ao generalizado insucesso das abordagens terapêuticas de cunho psicológico, para as quais os pedófilos apresentam um prognóstico reservado, e diante do relativo fracasso no que se refere à reincidência crônica, uma das alternativas tem sido a denominada castração. De um lado situa-se a castração clínica ou física, que se dá através da retirada dos testículos, para impedir a produção do hormônio (testosterona), que estimula o desejo sexual. Do outro lado, a castração química que altera e modifica os neurotransmissores e cria mecanismos de obstrução do impulso e do desejo sexual. Segundo Trindade/  Breier (2010), contemplar modelos preventivos é tão ou mais relevante do que abordar a questão do tratamento. Os supra citados autores entendem que, primeiramente, se deve enfocar o problema da pedofilia sob a ótica da prevenção primária, a qual estaria destinada a evitar o ato danoso através de esclarecimento e conscientização da criança e/ ou adolescente e da escola. Diante disto se deve investir na promoção do bem estar físico, emocional e social da família e dos seus vínculos afetivos. Em outra etapa, como prevenção secundária, ratificam os autores que, ao se detectarem as situações de risco – e somente em última instância -, devem-se estabelecer estratégias para não permitir que o abuso se repita.  “No tratamento das pessoas que abusam sexualmente, como aditos, é importante que o foco do controle fique firmemente com o processo legal, pois aqui o abusador não pode escolher, como um agente livre, entre terapia e não terapia. A escolha limita-se a aceitar as pré condições para a terapia com apoio legal, no contexto de uma intervenção terapêutica primária, ou escolher uma abordagem punitiva primária, pois o abuso sexual continuado não pode ser aceito. Mesmo em um processo terapêutico considerado bem sucedido, deve-se deixar claro que os pedófilos podem não ficar curados, sendo preferível referir uma condição de melhoria e de cessação do abuso, uma vez que, sob algum fator desencadeante, a conduta pedofílica pode ser reeditada e se manifestar como forma de recidivismo” (TRINDADE/BREIR 2010). Trindade/ Breier (2010), identificam quatro etapas no processo de tratamento: “1) a negação – dificuldade de aceitar os fatos, o que implica o sujeito se perceber como disfuncional; 2) barganha e minimização – intenção ou desejo de negociar e dirimir os efeitos de seus atos; 3) aceitação – instaurar competências para se tornar capaz de entender e aceitar sua condição; 4) reconstrução – processo de elaboração efetivo e verdadeiro do sujeito frente a si próprio.” Contudo, chega-se a provisória conclusão, diante da exposição teórica dos autores, que o tratamento deveria conduzir à percepção do mal causado, à aquisição do sentido de responsabilidade, à atenção com o outro, à consciência do dano e ao desejo de reparação. Entretanto, reconhecendo que a reincidência é elevada, infere-se que à reabilitação do pedófilo deve desenvolver a capacidade de empatia, promover o redirecionamento da conduta sexual inadequada, restabelecer o autocontrole e a aptidão para a resolução de problema, bem como prevenir a recaída. 1.2 Castração Química Trindade/ Breier (2010) prosseguem apresentando exemplos práticos de que, em alguns países, as dificuldades do tratamento do sujeito pedófilo existem, mesmo diante do uso da denominada castração química, em casos extremos. Estas experiências fazem uso de tratamentos farmacológicos inibidores de impulsos sexuais, que conseguem bloquear o desejo sexual, utilizando-se drogas que neutralizam o hormônio testosterona produzido pelos testículos[2]. Comparando o tratamento psicossocial com a castração química, tem-se a seguinte estimativa[3]:   A expressão “melhora” não significa cura, no sentido etiológico da palavra, principalmente porque estes sujeitos estão sob forte pressão externa para “mudar”, por estarem inseridos em um regime de internação carcerária. Ainda há poucos estudos confiáveis relacionados à conduta pedofílica, e escassos elementos para aplicar as teorias interpretativas que permitam o desenvolvimento de tratamento bem fundamentado. Pedófilos precisam ser tratados para o seu bem e o das possíveis e futuras vítimas. Estes costumam reincidir e uma vez que as diversas abordagens psicoterapêuticas não têm obtido êxitos, a reclusão prolongada é utilizada como medida preventiva. Trindade/ Breier (2010) apontam exemplos, ao apresentar vivências internacionais, ao adotarem medidas para enfrentar o problema da pedofilia: “Grã Bretanha permite a castração química voluntária; possui um registro nacional de abusadores de crianças; Dinamarca e Suécia: admitem a castração química para casos extremos; as taxas de reicidividade caíram acentuadamente; França: Projeto de Lei prevê tratamento obrigatório, que pode ser psiquiátrico ou farmacológico, com a administração de fármacos que inibem a libido; Áustria: a castração química foi proposta em 1999, devido à insuficiência das terapias tradicionais; Estados Unidos: existe um registro de pedófilos desde 1996, sendo a Califórnia o primeiro Estado a aprovar uma lei que prevê a administração de fármacos inibidores dos impulsos sexuais, obrigatória depois da segunda condenação. Aplicada também nos Estados de Montana e Texas”. Moreira (2010, p. 115), ao analisar a construção do social das relações humanas, analisando a delinquência / crime com o fenômeno da pedofilia, consegue promover uma reflexão crítica sobre o compromisso a existir do Direito com a Moral, esta teórica, no que se aproxima da realidade da pedofilia no Brasil, quando aponta “que não é permitido o uso de antiandrógenos para o problema. A abordagem depende da legislação de cada país.” Através do Projeto de Lei n. 552 / 07, o Brasil discute a adoção do tratamento químico para diminuir a libido dos pedófilos. A proposta visa que o condenado que aceitar o tratamento poderá ter pena diminuída em um terço (1/3), mas a terapia deverá ser iniciada antes do livramento condicional, ficando sob tratamento até a expedição do laudo técnico ao Ministério Público e ao Juiz de execução para demonstrar que os resultados foram alcançados. Conforme a citada autora, será inaugurado no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG) o Centro de Estudos e Atendimento de Abuso Sexual, um ambulatório que irá atender os abusadores. A única experiência semelhante no Brasil é feita pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), através do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica (NUFOR). Contudo, atualmente, não há nada definido no ordenamento jurídico brasileiro em relação a um eventual tratamento para os sujeitos pedófilos. 2. Visões éticas e jurídicas com relação às duas modalidades de tratamento. Breier (2011) ressalta que o debate sobre a natureza da castração química reside em vários segmentos como o legal, o sociológico e o psiquiátrico. Cada um destes com suas ponderações sobre a real eficácia do método para a redução de casos de pedofilia. Sob o aspecto legal, o embate centraliza-se na constitucionalidade do projeto. Os que defendem ser inconstitucional utilizam-se dos preceitos de direitos fundamentais descritos no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, por entenderem que esse método seria uma punição de natureza física e cruel, o que é vedado expressamente. Porém, outros defendem que a aplicação da castração química não tem natureza de pena, mas sim de tratamento, o que impediria a vedação constitucional. As duas modalidades enfrentam inúmeros obstáculos de ordem ética[4] e mesmo jurídica, com defensores e críticos carreando prós e contras. Devem-se sublinhar as limitações do tratamento e do prognóstico dos sujeitos pedófilos. Tratar um pedófilo com terapia não é tarefa simples, e se converte em muito difícil, senão impossível, com pedófilos crônicos ou afetados por uma deterioração mental. Estes, não estabelecem vínculo emocional verdadeiro, instrumento essencial para o tratamento psicológico. Dessa feita Trindade/ Breier  (2010, p. 50) ressaltam que os pedófilos são:  “Como regra, não apresentam sentimento de culpa e são egossintônicos[5], faltando-lhes aquele desconforto emocional interior necessário para a mudança. Não possuem motivação. São sedutores e envolventes e transportam esse tipo de funcionamento para a relação terapêutica. Além disso interrompem o tratamento tão logo alcançam algum benefício secundário. Essas características são responsáveis pelo ceticismo dominante quando se cuida de tratamento psicológico”.   Observando o debate no campo jurídico de forma independente, é relevante considerar se a aplicabilidade da medida seria ou não efetiva. Com base em estatísticas criminais, os casos de reincidência diminuiriam desde que o tratamento fosse devidamente acompanhado.  Apenas com a aplicação da pena privativa de liberdade, o sujeito pedófilo, não seria recuperado, demonstrando que esse tema não deveria ser tratado somente no campo da restrição da liberdade, já que estaria relacionado, necessariamente, as medidas de tratamento terapêuticas. Nesse sentido, se torna útil afirmar que caso seja necessária a aplicação de castração química ou física, o Estado teria o dever de avançar nesse tema, devido aos altos índices de abusos sexuais de crianças no Brasil. As sequelas das crianças abusadas repercutem no campo psicoafetivo e sexual, um desajuste emocional para o resto de suas vidas. A viabilidade de aplicação da castração química é um tema atual e necessário para uma sociedade democrática, impotente na prevenção dos casos de abuso sexual infantil. Para o estudo do fenômeno da pedofilia é imprescindível analisar o papel da sociedade e seu vitalismo na busca do estar junto. Ainda é necessário observar a norma jurídica, o direito e o fim a que se propõe à pena. Nesse sentido Moreira (2010, p. 151), afirma: “Não há dúvidas de que o direito é fenômeno cultural, construído historicamente pela experiência na vida social e nas práticas comunitárias, com a influência de variadas manifestações ideológicas, isto deve explicar a formação histórica dos princípios gerais de direito e, em grau especialíssimo, daqueles que garantem o elenco dos direitos humanos no constitucionalismo contemporâneo”. Esses fenômenos permeiam o meio social, desta forma, torna-se possível trabalhar o tema proposto com uma abordagem da Política Jurídica e com o tratamento do Direito pelo valor ético e uma convivência social estética. A valoração do Direito revela-se, essencialmente, uma questão ética, política e, em última instância filosófica. A sociedade tem papel fundamental na elaboração do direito, vez que é fonte de expressão e necessidades (DIAS apud MOREIRA, 2010). Buscar a aplicação de uma norma jurídica eficaz cabe ao político, em que as necessidades sociais sejam observadas e supridas de modo que legitime o direito positivo através da sua aceitação social. Nesse sentido Hessen (2010, p. 152), expressa: “O valor inserido dentro das concepções de ser e dever ser pode ser observado da seguinte forma: o ser é imprescindível à existência do valor e o dever ser se funda em um valor. Assim, o desvalor não tem ser, é a ausência deste”. Ao estudar Hessen, constata-se mais uma vez semelhanças a Moreira (2010), quando a autora corrobora com a ideia de que a subjetividade, os sentimentos e os valores do homem devem ser considerados de forma racional, sendo estes a preocupação da visão global – “Weltanschaung” – da Modernidade, ou como diria Luhmann da Pós-modernidade, da mesma maneira deveria acontecer com a técnica. Dando prosseguimento a este diapasão jus filosófico, compreendemos que o Direito não é eficaz quando é incompatível com as aspirações, tornando-se assim, letra morta, resultando em insatisfação coletiva, que gera indignação e injustiça. Não é possível submeter uma sociedade complexa ao molde de uma legislação ineficiente e estática. A finalidade do Direito é disciplinar a vida da sociedade. Porém, não se limita somente a regulação social, este também deve prezar pelo bem estar comum. Os valores sociais estão intimamente relacionados com os valores individuais, que constituem a moral do indivíduo. Neste sentido é que ao elaborar a norma, é fundamental observar a sua aplicabilidade em meio ao corpo social. A moral é valor interno, individual, a ética é a conduta esperada pela aplicação das regras morais no comportamento social, em síntese é a qualificação do comportamento do homem enquanto ser em situação. É esse caráter normativo de ética que a colocará em conexão com o Direito (MELO apud MOREIRA, 2010). Dessa forma, os valores morais dariam o balizamento do agir e a ética seria assim a moral em realização, pelo reconhecimento do outro como ser de direito, especialmente de dignidade. Assim a compreensão do fenômeno ético não mais surgiria metodologicamente dos resultados de uma descrição ou de uma reflexão, mas sim, objetivamente, de um agir, de um comportamento consequencial, capaz de tornar possível e correta à convivência, dando-lhe inclusive o aporte estético, a correlação do bom com o belo. Ter um cuidado para perceber a experiência humana, na qual o elemento sensível é o mais importante. A estética é um processo de correspondência do ambiente social e natural. O estilo estético, ao se tornar atento a globalidade das coisas, tende a favorecer um estar junto que não busca um objetivo a ser atingido, mas empenha-se em usufruir os bens deste mundo, encontrar o outro e partilhar com ele algumas emoções e sentimentos comuns. Observamos que não há como pensar o Direito sem a interferência da Política Jurídica[6], através desta é que se busca a conveniência axiológica, que faz com que o poder opte por determinado projeto, de forma justa, ética e adequada ao interesse coletivo. Entre o Direito e a Política podem existir discordâncias para a regulação da vida em sociedade, dessa forma, cabe a Política Jurídica harmonizar estes institutos no âmbito da vida social (MOREIRA, 2010). A sociedade sendo complexa possui necessidades que se transformam com passar do tempo, sendo o pensamento dogmático algo superado por não conseguir atingir todo o fenômeno social. Para este faz-se necessário à existência de recursos mais aprimorados para suprir suas insatisfações. Sobre o pensamento dogmático ensina Melo apud Moreira (2010, p. 158), afirma que, “O pensamento dogmático em que pese sua inestimável e permanente tarefa de sustentar o Estado de Direito, pelo inflexível compromisso com uma segurança jurídica, tem sido submetido a uma crítica cada vez mais perturbadora, em razão de pretender insistir na fonte normativa para a decisão sobre a norma, o que significa tão só o estudo do Direito vigente, abstraindo-se de emitir juízo de valor, como se bastante fosse para explicar e a ampliar a norma sem justificá-la. A dogmática seria assim uma atividade que não só acredita produzir um conhecimento neutralizado ideologicamente, mas também desvinculado de toda preocupação, seja de ordem sociológica, antropológica, econômica ou política”. Nesse contexto Moreira, ao considerar os referentes éticos e estéticos, percebe-se que a Política Jurídica será o sopro vivificador que deve bafejar os sistemas dogmáticos. Ao exigir a justificação não só da norma, mas também de seus processos de elaboração e aplicação, a Política Jurídica provocará não apenas normas corrigidas, mas um direito reconceituado para servir às reais necessidades do viver. Conclusão A complexidade do fenômeno da pedofilia exige uma abordagem interdisciplinar do tema e os casos de pedofilia requerem medidas diferenciadas, e a punição via pena, exige a complementaridade de ações para o tratamento de recuperação do pedófilo. Analisar a pedofilia sem constatar sua existência no meio social como uma realidade, não é possível, devido à impossibilidade de esta ser ignorada. Dessa forma é recomendável e necessário que seja tratada de maneira a reinserir o sujeito pedófilo em um ambiente de acolhimento. Não se pode dar ao pedófilo um tratamento igualitário aos demais membros da sociedade que cometem crimes. O pedófilo possui características específicas na sua atuação, assim como em sua parafilia. É preciso aceitar a pedofilia com um fenômeno presente ao corpo social e trabalhar o pedófilo para reinserção de seus valores atribuindo-lhe um tratamento adequado. Para tanto é necessário que os operadores do direito atuem como políticos do direito ao elaborar normas compatíveis com as aspirações sociais, que tragam resultados eficazes e em conformidade com uma escala de valores presentes em cada sociedade. Não apenas na produção do direito deve-se compreender a Política Jurídica, mas na aplicação da norma jurídica. Dessa feita, cabe aos operadores do direito em conjunto com a sociedade, primar por um estar junto baseado na ética, que formará uma convivência estética.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-118/abordagem-sobre-as-modalidades-de-tratamento-nos-casos-de-pedofilia-e-as-visoes-eticas-e-juridicas-com-relacao-as-duas-modalidades-de-tratamento/
O conflito entre o direito à identidade genética e o direito à intimidade do doador na reprodução assistida
Objetiva-se nesta pesquisa apontar a fundamentação jurídica do direito à identidade genética e do direito à intimidade do doador nas técnicas de assistida, contrapondo os dois direitos. Para tanto, buscou-se a partir de doutrina de bioética, biodireito e direito civil, além de pesquisa jurisprudencial, verificar em quais situações estes direitos devem ser protegidos. Por fim, propõe-se a resolução do conflito entre estas garantias fundamentais com base na análise de cada caso concreto, junto a um processo discursivo permeado pelo Estado Democrático de Direito.
Biodireito
1 Direito à identidade genética[1] O direito á identidade genética tem seu fundamento com base na dignidade da pessoa humana, conforme preceitua o art.1º, inc. III da Constituição da República de 1988. De acordo com Maria de Fátima Freire de Sá e Ana Carolina Brochado Teixeira: “Saber de onde vem, conhecer a progenitura proporciona ao sujeito a compreensão de muitos aspectos da própria vida. Descobrir as raízes, entender seus traços (aptidões, doenças, raças, etnia) socioculturais, saber quem nos deu a nossa bagagem genético-cultural básica são questões essenciais para o ser humano, na construção da sua personalidade e para seu processo de dignificação […]” (SÁ; TEIXEIRA, 2005, p.64).  Ademais, com base ainda na Constituição, o direito à identidade genética fundamenta-se com base na não discriminação, a partir do art. 3º inc. IV[2] e no art. 227 §6º[3] em analogia ao direito dos filhos adotivos poderem saber quem são seus pais biológicos. Segue este entendimento André Rüger, para quem: “É possível estabelecer um paralelo entre a adoção e a utilização de técnicas de RA heterólogas: o filho, em ambos os casos, não descende biologicamente de seus pais. No entanto, o filho adotivo, via de regra, tem a possibilidade de investigar sua origem biológica, através de um pedido judicial de expedição de uma certidão de inteiro teor. O registro civil mantém arquivados todos os dados anteriores à adoção, bem como o mandado judicial que determinou o cancelamento do registro anterior. […]Tal possibilidade viabiliza ao adotado o exercício oportuno do direito de conhecer as próprias origens”. (RÜGER, 2007, p.122-123). Por meio do art.5º, inc. XIV[4] e LXXII a)[5], ambos do diploma constitucional, seria possível os filhos oriundos da reprodução assistida heteróloga requererem o acesso aos dados pessoais dos seus pais biológicos, doadores de gametas; no caso da primeira norma, por solicitação ao médico, e, para o habeas data, para que o hospital ou órgão público que detenha as informações do doador possa fornecê-las em juízo. Ainda que a Resolução n. 1.957/2010 do CFM proíba aos receptores o conhecimento dos doadores e vice-versa, salvo em casos excepcionais, por motivação médica, que mesmo assim, resguarda o sigilo da identidade dos doadores[6], seria questionável, pois referida resolução é ato administrativo, que vincula somente a classe médica e não tem força de lei.   Sendo assim, com base no art. 5º inc. II da Constituição[7], haveria a possibilidade do conhecimento dos doadores, já que não há vedação legal[8] para tanto. Ademais, o direito à identidade genética é consagrado pela doutrina como um direito de personalidade, ainda que não disposto taxativamente no Código Civil de 2002, pois este direito é necessário para a formação da identidade do indivíduo e sua construção biográfica. Coadunam Maria de Fátima Freire de Sá e Ana Carolina Brochado Teixeira: “Deflagra-se o biológico como o primeiro fator a compor a pessoa humana, que carrega consigo o dado correspondente à herança genética. Portanto, ele é inegável na composição de sua ontologia. O direito ao conhecimento da origem genética, que ora denominamos de fundamental, traz consigo a revelação da memória genética, que pode coincidir – ou não – com a memória familiar, componente indelével da historicidade pessoal” (SÁ; TEIXEIRA, 2005, p. 64-65). Como direito de personalidade, o direito à identidade genética é permeado pelo melhor interesse da criança, para proteção da saúde e conhecimento de possíveis doenças genéticas que o menor possa estar predisposto. Paulo Luiz Netto Lóbo afirma que: “[..] O objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é assegurar o direito da personalidade, na espécie direito à vida, pois os dados da ciência atual apontam para necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus parentes biológicos próximos para prevenção da própria vida. Não há necessidade de se atribuir a paternidade a alguém para se ter o direito da personalidade de conhecer, por exemplo, os ascendentes biológicos paternos do que foi gerado por doador anônimo de sêmen, ou do que foi adotado, ou do que foi concebido por inseminação artificial heteróloga […]” (LÔBO, 2004, p.13). Diante do exposto, passa-se a seguir ao estudo da fundamentação civil constitucional do direito à intimidade do doador de gametas. 2 Direito à intimidade do doador de gametas A intimidade do doador de gametas é protegida pela Constituição de 1988 como um direito fundamental, previsto no art. 5º, inc. X. A intimidade é um direito inviolável e, portanto, passível de indenização. Refere-se à vida privada do indivíduo, do seu viver em si, aspectos relacionados aos seus gostos, hábitos, segredos, pudores e relacionamentos íntimos e afetivos. O elemento fundamental do direito à intimidade, manifestação primordial do direito à vida privada, é a exigibilidade de respeito ao isolamento de cada ser humano, que não pretende que certos aspectos de sua vida cheguem ao conhecimento de terceiros. Em outras palavras, é o direito de estar só. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010) (Grifos dos autores). A intimidade do doador de gametas deve ser preservada, pois este realiza uma doação de parte de seu corpo licitamente[9], pois não compromete sua integridade física, para uma clínica de reprodução assistida, não visando ao lucro e a fins comerciais, independente do motivo, seja por caráter ideológico, como perpetuação, ou por solidariedade, para ajudar casais ou homens e mulheres solteiros a terem filhos. Ressalta-se, por conseguinte, a importância do termo de consentimento livre e esclarecido. Carlos Nelson Konder conceitua o consentimento livre e esclarecido como: “[…] é possível conceituar o consentimento livre e esclarecido como a anuência, livre de vícios, do paciente, após explicação completa e pormenorizadamente sobre a intervenção médica, incluindo sua natureza, objetivos, métodos, duração, justificativa, possíveis males, riscos e benefícios, métodos alternativos existentes e nível de confidencialidade dos dados, assim como de sua liberdade total para recusar ou interromper o procedimento em qualquer momento; tendo o profissional a obrigação de informá-lo em linguagem adequada (não técnica) para que ele a compreenda” (KONDER, 2003, p.61). Sendo assim, depois de esclarecido todo o procedimento da doação de gametas, o indivíduo de forma livre, poderá aceitar o contrato de doação, sem qualquer ônus ou bônus, conforme dispõe a Resolução n. 1.957 de 2010 do CFM[10]. Ademais, a intimidade do doador é um direito de personalidade, previsto no art. 21 do Código Civil de 2002[11]. Deve-se resguardar a identidade do doador com o intuito de evitar a aproximação de um filho que nunca desejou e pode lhe causar inumeráveis transtornos, como por exemplo, na hipótese de ter constituindo uma família, ainda que não tenha deveres jurídicos decorrentes do estado de filiação, dando-se primazia, na atualidade à filiação socioafetiva. Pontua Paulo Luiz Netto Lôbo que: “[…] a Constituição não oferece qualquer fundamento para a primazia da filiação biológica, pois amplo é seu alcance. A primazia não está na Constituição, mas na interpretação equivocada que tem feito fortuna, como se o paradigma da filiação não tivesse sido transformado. Até mesmo no direito anterior, a filiação biológica era nitidamente recortada entre filhos legítimos e ilegítimos, a demonstrar que a origem genética nunca foi, rigorosamente, a essência das relações familiares” (LÔBO, 2004, p.08). Ao discutir o conflito entre este direito e a identidade genética, Maria de Fátima Freire de Sá e Ana Carolina Brochado Teixeira afirmam que: “[…] Temos, aí, direitos personalíssimos distintos: o direito do filho e o direito do pai, ambos genéticos. O primeiro, consistente em saber sua origem, na busca da construção de sua identidade pessoal. O segundo, preza o anonimato, numa relação em que existiu, tão-somente, a doação de material biológico que permitiu a um casal ou a uma mulher sozinha ter um filho” (SÁ; TEIXEIRA, 2005, p.147). Para tentar solucionar este conflito entre a o direito à identidade genética e o direito à intimidade do doador de gametas, seria possível a criação de um banco de dados genéticos em que o filho biológico tivesse acesso somente aos dados genéticos do doador e fosse proibido o conhecimento de sua identidade. Assim, haveria proteção da saúde do filho biológico e preservação do anonimato do doador. É o que propõe os arts. 16, §2º e 17 do Projeto de Lei n. 1184 de 2003[12] do Senado Federal que dispõe: “Art. 16. Será atribuída aos beneficiários a condição de paternidade plena da criança nascida mediante o emprego de técnica de Reprodução Assistida. § 2º A pessoa nascida por processo de Reprodução Assistida e o doador terão acesso aos registros do serviço de saúde, a qualquer tempo, para obter informações para transplante de órgãos ou tecidos, garantido o segredo profissional e, sempre que possível, o anonimato. Art. 17. O doador e seus parentes biológicos não terão qualquer espécie de direito ou vínculo, quanto à paternidade ou maternidade, em relação à pessoa nascida a partir do emprego das técnicas de Reprodução Assistida, salvo os impedimentos matrimoniais elencados na legislação civil” (SENADO, 2003). Até que referida proposição legislativa se torne lei, como resolver este conflito normativo?  Sugere-se que a possível solução seja resolvida a partir de cada caso concreto, no respeito a iguais liberdades fundamentais, na construção de um processo discursivo em que as partes e os fatos trazidos aos autos possam trazer a resposta mais correta.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-117/o-conflito-entre-o-direito-a-identidade-genetica-e-o-direito-a-intimidade-do-doador-na-reproducao-assistida/
Comentários às diretrizes da Lei de Bossegurança: notas ao biodireito no cenário jurídico em prol da preservação do patrimônio genético
Verifica-se, em decorrência da promulgação do Texto Constitucional, em 1988, que o patrimônio genético passou a usufruir de tratamento jurídico, sendo que a contemporânea ótica adotada buscou salientar a necessidade de preservar não apenas a diversidade e a integridade do supramencionado patrimônio, como também estabelecer determinação, em relação ao Poder Pública, para promover fiscalização as entidades que se dedicam à pesquisa e à manipulação de material genético. Desta feita, emerge a autorização constitucional com os limites estatuídos na própria redação da Carta de Outubro, com o escopo de dispensar tutela jurídica à produção e à comercialização, tal como emprego de técnicas, métodos e substâncias que abarquem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Neste passo, a tutela jurídica do patrimônio genético da pessoa humana encontra proteção ambiental constitucional, sendo imperiosa a observância dos incisos II, IV e V do §1º do artigo 225, sendo cediço que, em sede infraconstitucional, a Lei Nº 11.105, de 24 de Março de 2005, que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências, foi responsável por estabelecer as normas de segurança, tal como mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam os organismos geneticamente modificados.
Biodireito
Sumário: 1 Ponderações Introdutórias: Breves notas à construção teórica do Direito Ambiental; 2 Comentários à concepção de Meio Ambiente; 3 Anotações ao Biodireito e a Tutela Jurídica do Patrimônio Genético: A Concreção dos Direitos Humanos de Quarta Dimensão no Cenário Nacional; 4 Diretrizes da Lei de Biossegurança: Diálogo entre Pilares Estruturantes do Direito Ambiental e do Biodireito em prol da preservação do Patrimônio Genético 1 Ponderações Introdutórias: Breves notas à construção teórica do Direito Ambiental Inicialmente, ao se dispensar um exame acerca do tema colocado em tela, patente se faz arrazoar que a Ciência Jurídica, enquanto um conjunto multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as robustas ramificações que a integram, reclama uma interpretação alicerçada nos plurais aspectos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste alamiré, lançando à tona os aspectos característicos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com ênfase, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Ora, em razão do burilado, infere-se que não mais prospera o arcabouço imutável que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios da população, suplantados em uma nova sistemática. Com espeque em tais premissas, cuida hastear, com bastante pertinência, como flâmula de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Destarte, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas fincadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não fiquem inquinados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo primevo é assegurar que não haja uma vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras em que o homem valorizava a Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade. Ademais, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, precipuamente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica repousa, justamente, na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais e os institutos jurídicos neles consagrados, estando contemporâneo as demandas apresentadas. Ainda neste substrato de exposição, pode-se evidenciar que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda dos mencionados sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis, diante das situações concretas. Nas últimas décadas, o aspecto de mutabilidade tornou-se ainda mais evidente, em especial, quando se analisa a construção de novos que derivam da Ciência Jurídica.  Entre estes, cuida destacar a ramificação ambiental, considerando como um ponto de congruência da formação de novos ideários e cânones, motivados, sobretudo, pela premissa de um manancial de novos valores adotados. Nesta trilha de argumentação, de boa técnica se apresenta os ensinamentos de Fernando de Azevedo Alves Brito que, em seu artigo, aduz: “Com a intensificação, entretanto, do interesse dos estudiosos do Direito pelo assunto, passou-se a desvendar as peculiaridades ambientais, que, por estarem muito mais ligadas às ciências biológicas, até então era marginalizadas”[4]. Assim, em decorrência da proeminência que os temas ambientais vêm, de maneira paulatina, alcançando, notadamente a partir das últimas discussões internacionais envolvendo a necessidade de um desenvolvimento econômico pautado em sustentabilidade, não é raro que prospere, mormente em razão de novos fatores, um verdadeiro remodelamento ou mesmo uma releitura dos conceitos que abalizam a ramificação ambiental do Direito, com o fito de permitir que ocorra a conservação e recuperação das áreas degradadas, primacialmente as culturais.  Ademais, há de ressaltar ainda que o direito ambiental passou a figurar, especialmente, depois das décadas de 1950 e 1960, como um elemento integrante da farta e sólida tábua de direitos fundamentais. Calha realçar, com cores quentes, que mais contemporâneos, os direitos que constituem a terceira dimensão recebem a alcunha de direitos de fraternidade ou, ainda, de solidariedade, contemplando, em sua estrutura, uma patente preocupação com o destino da humanidade[5]·. Ora, daí se verifica a inclusão de meio ambiente como um direito fundamental, logo, está umbilicalmente atrelado com humanismo e, por extensão, a um ideal de sociedade mais justa e solidária. Nesse sentido, ainda, é plausível citar o artigo 3°., inciso I, da Carta Política de 1988 que abriga em sua redação tais pressupostos como os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direitos: “Art. 3º – Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária”[6]. Ainda nesta esteira, é possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Com o escopo de ilustrar, de maneira pertinente as ponderações vertidas, insta trazer à colação o entendimento do Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 1.856/RJ, em especial quando destaca: “Cabe assinalar, Senhor Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível”[7]. “Têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”[8]. Com efeito, os direitos de terceira dimensão, dentre os quais se inclui ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, positivado na Constituição Federal de 1988, emerge com um claro e tangível aspecto de familiaridade, como ápice da evolução e concretização dos direitos fundamentais. Verifica-se, neste cenário, a concreção dos ideários de solidariedade, ultrapassando a individualidade egoística que tendia a qualificar os direitos humanos construídos, sensibilizando-se para uma realidade coletiva, ultrapassando a premissa da sociedade como constituída por um grupamento de indivíduos, imprimindo a fraternidade como traço caracterizador. 2 Comentários à concepção de Meio Ambiente Em uma primeira plana, ao lançar mão do sedimentado jurídico-doutrinário apresentado pelo inciso I do artigo 3º da Lei Nº. 6.938, de 31 de agosto de 1981[9], que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências, salienta que o meio ambiente consiste no conjunto e conjunto de condições, leis e influências de ordem química, física e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Pois bem, com o escopo de promover uma facilitação do aspecto conceitual apresentado, é possível verificar que o meio ambiente se assenta em um complexo diálogo de fatores abióticos, provenientes de ordem química e física, e bióticos, consistentes nas plurais e diversificadas formas de seres viventes. Consoante os ensinamentos de Silva, considera-se meio-ambiente como “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”[10]. Nesta senda, ainda, Fiorillo[11], ao tecer comentários acerca da acepção conceitual de meio ambiente, coloca em destaque que tal tema se assenta em um ideário jurídico indeterminado, incumbindo, ao intérprete das leis, promover o seu preenchimento. Dada à fluidez do tema, é possível colocar em evidência que o meio ambiente encontra íntima e umbilical relação com os componentes que cercam o ser humano, os quais são de imprescindível relevância para a sua existência. O Ministro Luiz Fux, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 4.029/AM, salientou, com bastante pertinência, que: “(…) o meio ambiente é um conceito hoje geminado com o de saúde pública, saúde de cada indivíduo, sadia qualidade de vida, diz a Constituição, é por isso que estou falando de saúde, e hoje todos nós sabemos que ele é imbricado, é conceitualmente geminado com o próprio desenvolvimento. Se antes nós dizíamos que o meio ambiente é compatível com o desenvolvimento, hoje nós dizemos, a partir da Constituição, tecnicamente, que não pode haver desenvolvimento senão com o meio ambiente ecologicamente equilibrado. A geminação do conceito me parece de rigor técnico, porque salta da própria Constituição Federal”[12]. É denotável, desta sorte, que a constitucionalização do meio ambiente no Brasil viabilizou um verdadeiro salto qualitativo, no que concerne, especificamente, às normas de proteção ambiental. Tal fato decorre da premissa que os robustos corolários e princípios norteadores foram alçados ao patamar constitucional, assumindo colocação eminente, ao lado das liberdades públicas e dos direitos fundamentais. Superadas tais premissas, aprouve ao Constituinte, ao entalhar a Carta Política Brasileira, ressoando os valores provenientes dos direitos de terceira dimensão, insculpir na redação do artigo 225, conceder amplo e robusto respaldo ao meio ambiente como pilar integrante dos direitos fundamentais. “Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, as normas de proteção ambiental são alçadas à categoria de normas constitucionais, com elaboração de capítulo especialmente dedicado à proteção do meio ambiente”[13]. Nesta toada, ainda, é observável que o caput do artigo 225 da Constituição Federal de 1988[14] está abalizado em quatro pilares distintos, robustos e singulares que, em conjunto, dão corpo a toda tábua ideológica e teórica que assegura o substrato de edificação da ramificação ambiental. Primeiramente, em decorrência do tratamento dispensado pelo artífice da Constituição Federal, o meio ambiente foi içado à condição de direito de todos, presentes e futuras gerações. É encarado como algo pertencente a toda coletividade, assim, por esse prisma, não se admite o emprego de qualquer distinção entre brasileiro nato, naturalizado ou estrangeiro, destacando-se, sim, a necessidade de preservação, conservação e não-poluição. O artigo 225, devido ao cunho de direito difuso que possui, extrapola os limites territoriais do Estado Brasileiro, não ficando centrado, apenas, na extensão nacional, compreendendo toda a humanidade. Neste sentido, o Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N° 1.856/RJ, destacou que: “A preocupação com o meio ambiente – que hoje transcende o plano das presentes gerações, para também atuar em favor das gerações futuras (…) tem constituído, por isso mesmo, objeto de regulações normativas e de proclamações jurídicas, que, ultrapassando a província meramente doméstica do direito nacional de cada Estado soberano, projetam-se no plano das declarações internacionais, que refletem, em sua expressão concreta, o compromisso das Nações com o indeclinável respeito a esse direito fundamental que assiste a toda a Humanidade”[15]. O termo “todos”, aludido na redação do caput do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, faz menção aos já nascidos (presente geração) e ainda aqueles que estão por nascer (futura geração), cabendo àqueles zelar para que esses tenham à sua disposição, no mínimo, os recursos naturais que hoje existem. Tal fato encontra como arrimo a premissa que foi reconhecido ao gênero humano o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao gozo de condições de vida adequada, em ambiente que permita desenvolver todas as suas potencialidades em clima de dignidade e bem-estar. Pode-se considerar como um direito transgeracional, ou seja, ultrapassa as gerações, logo, é viável afirmar que o meio-ambiente é um direito público subjetivo. Desta feita, o ideário de que o meio ambiente substancializa patrimônio público a ser imperiosamente assegurado e protegido pelos organismos sociais e pelas instituições estatais, qualificando verdadeiro encargo irrenunciável que se impõe, objetivando sempre o benefício das presentes e das futuras gerações, incumbindo tanto ao Poder Público quanto à coletividade considerada em si mesma. Assim, decorrente de tal fato, produz efeito erga mones, sendo, portanto, oponível contra a todos, incluindo pessoa física/natural ou jurídica, de direito público interno ou externo, ou mesmo de direito privado, como também ente estatal, autarquia, fundação ou sociedade de economia mista. Impera, também, evidenciar que, como um direito difuso, não subiste a possibilidade de quantificar quantas são as pessoas atingidas, pois a poluição não afeta tão só a população local, mas sim toda a humanidade, pois a coletividade é indeterminada. Nesta senda, o direito à interidade do meio ambiente substancializa verdadeira prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, ressoando a expressão robusta de um poder deferido, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas num sentido mais amplo, atribuído à própria coletividade social. Com a nova sistemática entabulada pela redação do artigo 225 da Carta Maior, o meio-ambiente passou a ter autonomia, tal seja não está vinculada a lesões perpetradas contra o ser humano para se agasalhar das reprimendas a serem utilizadas em relação ao ato perpetrado. Figura-se, ergo, como bem de uso comum do povo o segundo pilar que dá corpo aos sustentáculos do tema em tela. O axioma a ser esmiuçado, está atrelado o meio-ambiente como vetor da sadia qualidade de vida, ou seja, manifesta-se na salubridade, precipuamente, ao vincular a espécie humana está se tratando do bem-estar e condições mínimas de existência. Igualmente, o sustentáculo em análise se corporifica também na higidez, ao cumprir os preceitos de ecologicamente equilibrado, salvaguardando a vida em todas as suas formas (diversidade de espécies). Por derradeiro, o quarto pilar é a corresponsabilidade, que impõe ao Poder Público o dever geral de se responsabilizar por todos os elementos que integram o meio ambiente, assim como a condição positiva de atuar em prol de resguardar. Igualmente, tem a obrigação de atuar no sentido de zelar, defender e preservar, asseverando que o meio-ambiente permaneça intacto. Aliás, este último se diferencia de conservar que permite a ação antrópica, viabilizando melhorias no meio ambiente, trabalhando com as premissas de desenvolvimento sustentável, aliando progresso e conservação. Por seu turno, o cidadão tem o dever negativo, que se apresenta ao não poluir nem agredir o meio-ambiente com sua ação. Além disso, em razão da referida corresponsabilidade, são titulares do meio ambiente os cidadãos da presente e da futura geração. 3 Anotações ao Biodireito e a Tutela Jurídica do Patrimônio Genético: A Concreção dos Direitos Humanos de Quarta Dimensão no Cenário Nacional Verifica-se, em decorrência da promulgação do Texto Constitucional, em 1988, que o patrimônio genético passou a usufruir de tratamento jurídico, sendo que a contemporânea ótica adotada buscou salientar a necessidade de preservar não apenas a diversidade e a integridade do supramencionado patrimônio, como também estabelecer determinação, em relação ao Poder Pública, para promover fiscalização as entidades que se dedicam à pesquisa e à manipulação de material genético. Desta feita, emerge a autorização constitucional com os limites estatuídos na própria redação da Carta de Outubro, com o escopo de dispensar tutela jurídica à produção e à comercialização, tal como emprego de técnicas, métodos e substâncias que abarquem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Neste passo, a tutela jurídica do patrimônio genético da pessoa humana encontra proteção ambiental constitucional, sendo imperiosa a observância dos incisos II, IV e V do §1º do artigo 225[16], sendo cediço que, em sede infraconstitucional, a Lei Nº 11.105, de 24 de Março de 2005[17], que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências, foi responsável por estabelecer as normas de segurança, tal como mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam os organismos geneticamente modificados. Cuida anotar que a Lei de Biossegurança objetivou destacar no plano jurídico ambiental a tutela jurídica concernente ao patrimônio genético da pessoa humana, “assegurando em sede infraconstitucional tanto a tutela jurídica individual das pessoas humanas (como o direito às informações determinantes dos caracteres hereditários transmissíveis à descendência)”[18], em especial os referentes ao povo brasileiro, atento, porém, para a sua dimensão metaindividual. Quadra salientar que o diploma legislativo em comento afixou sanções para apenar a responsabilidade civil, administrativa e criminal em decorrência de possíveis condutas ou mesmo atividades consideradas lesivas ao patrimônio genético da pessoa humana. Neste passo, ainda, cuida rememorar que a Lei de Biossegurança não está adstrita ao patrimônio genético humano, mas compreende também à informação de origem genética contida em amostras de todo ou de parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, na forma de moléculas e substâncias oriundas do metabolismo desses seres vivos e de extratos colhidos desses organismos vivos ou mortos. Ao lado disso, é possível assinalar, ainda, que as referidas amostras podem ser obtidas in situ, tal como os domesticados ou mantidos em coleções ex situ, desde que coletados, porém, em condições in situ no território brasileiro, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva. Com efeito, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[19] possibilitou que as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético desenvolvessem atividades destinadas, maiormente, para a solução dos problemas brasileiros, sensíveis não apenas à preservação da diversidade e integridade do patrimônio genético para as presentes e futuras gerações, tal como os fundamentos elencados no artigo 1º do texto constitucional. “Ementa: Direito constitucional. Direito administrativo. Direito processual civil. Agravo retido prejudicado. Algodão. OGM. Meio ambiente. Produção de espécie não autorizada. Necessidade do parecer favorável da CTNbio. Infringência à Lei Nº. 11.105/205. Auto de infração. Multa. Termo de fiscalização. Termo de suspensão da comercialização. Fundamentação e motivação presentes. Legalidade dos atos administrativos. Portaria nº. 437/2005. Interpretação. Sentença mantida. […] 2. A impetrante insurgiu-se contra auto de infração e termos de fiscalização e suspensão de comercialização de algodão tido como transgênico, pugnando pela sua anulação, uma vez que a pluma do algodão não se enquadraria no conceito de organismo geneticamente modificado (OGM), autorizando a sua comercialização e beneficiamento ou, ao menos, o beneficiamento, ou, ainda, a redução do valor da multa aplicada. 3. Ora, não se deve olvidar que o caso em tela envolve interesses sociais relevantes, tutelados pela Constituição Federal de 1988, pois, de um lado, nos termos do artigo 225, todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, devendo ser preservado para as gerações presentes e futuras. […] 5. Resta evidente a preocupação do legislador constituinte em conciliar os direitos que inscreveu na Carta Magna, surgindo, porém, inequívoca a qualificação do meio ambiente como direito fundamental, devendo o Poder Público exigir estudos de impacto ambiental para autorizar a exploração de variedades oriundas de organismos geneticamente modificados, ou para a instalação de obra ou outra atividade qualquer, sempre com a finalidade de evitar degradação ambiental. 6. A impetrante cultivou espécie de algodão com presença de OGM não autorizado, o que ensejou a autuação e suspensão de sua  comercialização, conquanto a cultura foi feita sem a devida liberação e parecer favorável da CTNBio, órgão que delibera a respeito da segurança dos produtos que contenham organismos geneticamente modificados – OGM, sendo que o seu parecer técnico favorável é exigência imposta por lei, a teor do artigo 6º, inciso VI, da Lei nº. 11.105.2005. […] 11. Nesse contexto e considerando as circunstâncias do caso concreto, de um lado, o parecer técnico favorável da CTNBio constitui exigência inafastável para o cultivo de organismos geneticamente modificados, e de outro, nem se cogita que o Poder Judiciário está autorizado a liberar a comercialização da produção do algodão objeto de  autuação legítima, por se tratar de variedade de OGM cujo cultivo não foi liberado. 12. Agravo retido prejudicado e apelação a que se nega provimento.” (Tribunal Regional Federal da Terceira Região – Terceira Turma/ AMS 0002621-46.2007.4.03.6000/ Relator: Juiz Convocado Valdeci dos Santos/ Julgado em 18.03.2010/ Publicado em 30.03.2010, p. 560). Denota-se, desta sorte, que a Lei de Biossegurança apoia e estimula as empresas que invistam em pesquisa e criação de tecnologias adequadas ao Brasil dentro de orientação constitucional voltada maciçamente para a solução de problemas nacionais, assim como para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional. O mencionado diploma legislativo viabilizou, no plano infraconstitucional a contemporânea visão adotada Carta de 1988, que já buscava realçar no final do século passado a necessidade de preservar não apenas a diversidade como a integridade de referido patrimônio genético brasileiro. “A norma aludida não se esqueceu de também determinar em referido plano jurídico de que forma a incumbência constitucional destinada ao Poder Público, no sentido de fiscalizar as entidades que se dedicam à pesquisa”[20], consoante bem observa Fiorillo, tal como manipulação do direito material genético, deverá ser realizada concretamente. Ao lado disso, a autorização constitucional com os limites estabelecidos no Texto Constitucional passa a ser regulamentar pela Lei de Biossegurança, objetivada conferir viabilidade jurídica à produção e comercialização, tal como a utilização de técnicas, métodos e substâncias que ofereçam risco para a vida, a qualidade de via e o meio ambiente. Assim, como a produção e a comercialização, tal como o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem riscos para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente serão controladas carecidamente pelo Poder Público, notadamente em razão da existência de atividades que pelo menos potencialmente possam causar significativa degradação ambiental. Para tanto, destaque-se, é imperiosa a estruturação do Estudo Prévio de Impacto Ambiental a que se dará sempre publicidade. Desta feita, o Poder Público deverá exigir, na forma da lei, o EIA sempre que ocorrer iniciativa destinada a instalar obra ou mesmo atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental. 4 Diretrizes da Lei de Biossegurança: Diálogo entre Pilares Estruturantes do Direito Ambiental e do Biodireito em prol da preservação do Patrimônio Genético Ao esmiuçar a Lei Nº 11.105, de 24 de Março de 2005[21], que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências, verifica-se que o legislador infraconstitucional estabeleceu três diretrizes basilares para perseguir a concreção da Política Nacional de Biossegurança. Neste cenário, cuida evidenciar que a primeira diretriz afixada buscar promover o estímulo ao avanço científico na área de Biossegurança e Biotecnologia, fomentando a incitação das atividades destinadas ao desenvolvimento da sistematização do conhecimento nas áreas de biossegurança e da biotecnologia. É importante salientar que, nesta senda, a biossegurança consiste no “conjunto de estudos e procedimentos que visam a controlar os eventuais problemas suscitados por pesquisas biológicas, assim como em face de suas aplicações”[22]; ao passo que a biotecnologia materializa o uso da ciência norteada a produzir organismos vivos com características particulares, maiormente pela manipulação de material genético diferente. É possível, neste sedimento, trazer à colação o entendimento manifestado pela Ministra Cármen Lúcia: “O termo ‘ciência’, enquanto atividade individual, faz parte do catálogo dos direitos fundamentais da pessoa humana (inciso IX do art. 5º da CF). Liberdade de expressão que se afigura como clássico direito constitucional-civil ou genuíno direito de personalidade. Por isso que exigente do máximo de proteção jurídica, até como signo de vida coletiva civilizada. Tão qualificadora do indivíduo e da sociedade é essa vocação para os misteres da Ciência que o Magno Texto Federal abre todo um autonomizado capítulo para prestigiá-la por modo superlativo (capítulo de nº IV do título VIII). A regra de que ‘O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas’ (art. 218, caput) é de logo complementada com o preceito (§ 1º do mesmo art. 218) que autoriza a edição de normas como a constante do art. 5º da Lei de Biossegurança. A compatibilização da liberdade de expressão científica com os deveres estatais de propulsão das ciências que sirvam à melhoria das condições de vida para todos os indivíduos. Assegurada, sempre, a dignidade da pessoa humana, a CF dota o bloco normativo posto no art. 5º da Lei 11.105/2005 do necessário fundamento para dele afastar qualquer invalidade”[23]. Com destaque, a primeira diretriz estabelece no plano infraconstitucional os critérios orientadores ao cumprimento da determinação contida no artigo 218 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[24], que impõe ao Estado o dever de promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica, bem como apoiar a formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa e tecnologia concedendo, desta maneira, aos que delas se ocupem meios e condições especiais de trabalho. Quadra anotar que a orientação constitucional é direcionada a brasileiros e estrangeiros residentes no território nacional no plano de direitos individuais e coletivos. Ora, o Estado tem o dever de incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica em face de organismos geneticamente modificados, abarcando desde o cidadão pesquisador até entidades organizadas em proveito da pesquisa, afixando o sucedâneo de regras de apoio e estímulo às empresas que promovam o investimento em pesquisa. “A diretriz visa obviamente ao progresso das ciências no Brasil (art. 218, §1º), destinado evidentemente a assegurar a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, c/c o art. 218, §1º, da CF) dentro de uma ordem jurídica adaptada à economia capitalista (art. 1º, IV, c/c o art. 170, VI, da CF); daí a clara orientação da Carta Magna para estabelecer que a pesquisa tecnológica deverá estar voltada preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros, assim como para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional” (art. 218, §2º, c/c os arts. 3º e 170, VI, da CF)[25]. Por seu turno, a segunda diretriz vocaliza a proteção à vida, à saúde humana, animal e vegetal, destinando-se a impor, no plano infraconstitucional, não apenas em relação ao Poder Público, mas também àqueles que dedicam às atividades de pesquisa ou mesmo às atividades de uso comercial a defesa e a preservação da vida, tal como a saúde humana, animal e vegetal em face de obras e atividades vinculadas aos corpos vivos, cujo material genético venha a ser submetido à modificação por qualquer tecnologia. Denota-se que a Lei Nº 11.105, de 24 de Março de 2005[26], que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providência, buscou dispensar proteção da vida, sendo tal acepção estendida não apenas à espécie humana, mas também compreendendo as demais espécies, tanto vegetal quanto animal, conferindo tutela especial ao tema. Neste passo, a terceira diretriz entalhada na Lei de Biossegurança estabelece a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente, valorando o princípio constitucional do meio ambiente ecologicamente equilibrado alçado à condição de materialização da dignidade da pessoa humana. Susta pontuar que o princípio da precaução, também denominado de princípio da prevenção, foi, de maneira expressa, consagrado na redação da Constituição de 1988, sendo certo que seus influxos passam a permear a Política Nacional de Biossegurança, estabelecendo, no plano infraconstitucional, a precaução como dogma a ser observado no âmbito das normas de segurança, bem como estruturando mecanismos de fiscalização e atividades que envolvam organismos geneticamente modificados. “O princípio da precaução deverá ser verificado caso a caso, ou seja, em face de eventual ameaça à vida em todas as suas formas, e os instrumentos do direito processual ambiental deverão dirimir a controvérsia”[27], como bem anota Fiorillo em seu magistério. Desta feita, o que se ambiciona é estruturar pericialmente a eventual existência de lesão ou ameaça ao bem ambiental juridicamente protegido, por meio de perícia complexa edificar uma resposta jurídica em face da efetiva caracterização do princípio da precaução. É possível salientar que o corolário da precaução se apresenta como uma garantia contra os riscos potenciais que, em harmonia com o estado atual de conhecimento, não são passíveis, ainda, de identificação. É desfraldada como flâmula pelo preceito da precaução que, em havendo ausência de certeza científica formal, existência de um dano robusto ou mesmo irreversível reclama a estruturação de medidas e instrumentos que possam minimizar e/ou evitar este dano. Com destaque, o conteúdo material do patrimônio genético entalhado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[28], tal como na a Lei Nº 11.105, de 24 de Março de 2005[29], que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providência, está a reclamar dos profissionais de direito e, maiormente, dos juízes, preparo adequado para lidar com a temática em destaque.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-117/comentarios-as-diretrizes-da-lei-de-bosseguranca-notas-ao-biodireito-no-cenario-juridico-em-prol-da-preservacao-do-patrimonio-genetico/
A problemática ambiental a partir de uma perspectiva da bioética: alinhando o discurso contemporâneo de preservação e o desenvolvimento sustentável
Inicialmente, quadra salientar que o corolário do desenvolvimento sustentável se apresenta como um dos robustos arrimos da tábua principiológica ostentada pela ramificação ambiental do Direito. Trata-se, com efeito, de preceito que busca dialogar e harmonizar vertentes distintas, cada qual dotada de complexidade, quais sejam: o crescimento econômico, a preservação ambiental e a equidade social. Quadra pontuar que o ideário de desenvolvimento socioeconômico em consonância com a preservação ambiental tem seu sedimento na Conferência Mundial de Meio Ambiente, realizada, em 1972, em Estocolmo, que se apresenta como verdadeiro marco histórico da discussão dos problemas ambientais. É verificável, ainda, que o corolário em tela encontra respaldo na redação do artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, notadamente quando dicciona que é imposição ao Poder Público e de toda a coletividade defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Em harmonia com o sedimento apresentado, carecido faz-se ponderar que a estruturação dessa nova ética ambiental, ancorada nos ideários densos da corresponsabilidade, desfralda como corolário que as pessoas assumam papel social de maior relevância, dialogando cooperação e solidariedade. Ora, os direitos que florescem na contemporaneidade não mais estão vestidos de aspectos individuais, mas sim são emoldurados por aspectos transindividuais, nos quais a coletividade é vista como unidade, a qual passa a reclamar conjunção de esforços para a promoção do ser humano. Nesta linha de exposição é possível identificar nos pilares estruturantes da bioética, concatenado a temas complexos e dotados de proeminência no cenário contemporâneo, a confluência de esforços para analisar fenômenos que vindicam o desenvolvimento de um discurso pautado na promoção da coletividade, na condição de unidade, a fim de alcançar, individualmente, a concretização do ser humano.
Biodireito
Sumário: 1 A Construção do Direito Ambiental: A Mutabilidade como Aspecto Renovador da Ciência Jurídica; 2 Análise do Meio Ambiente a partir de uma feição conceitual; 3 O Princípio do Desenvolvimento Sustentável como Flâmula Norteadora do Direito Ambiental; 4 A Problemática Ambiental a partir de uma Perspectiva da Bioética: Alinhando o Discurso Contemporâneo de Preservação e o Desenvolvimento Sustentável 1 A Construção do Direito Ambiental: A Mutabilidade como Aspecto Renovador da Ciência Jurídica Inicialmente, ao se dispensar um exame acerca do tema colocado em tela, patente se faz arrazoar que a Ciência Jurídica, enquanto um conjunto multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as robustas ramificações que a integram, reclama uma interpretação alicerçada nos plurais aspectos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste alamiré, lançando à tona os aspectos característicos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com a ênfase reclamada, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Nestes termos, o Direito não mais ostenta a feição engessada da interpretação dos elementos que estruturam suas balizas.  Ora, em razão do burilado, infere-se que não mais prospera o arcabouço imutável que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios apresentados pela população, suplantados em uma nova sistemática. Com escora em tais premissas, cuida desfraldar, com bastante pertinência, como estandarte de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Deste modo, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas cravadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não estejam maculados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo fundamental é assegurar que não haja uma vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras em que o homem valorizava a Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade. Ademais, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, precipuamente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica apoia-se, justamente, na constante e cogente mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais e os institutos jurídicos neles consagrados, moldando-se às nuances e particularidades caracterizadoras da situação concreta. Ainda neste substrato de exposição, é possível realçar, com grossos traços, que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma sedimentada independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda dos mencionados sustentáculos, compreende-se que o ponto nodal da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis, diante das situações concretas. Nas últimas décadas, o aspecto de mutabilidade tornou-se ainda mais evidente, em especial, quando se analisa a construção de novos que derivam da Ciência Jurídica.  Entre estes, cuida destacar a ramificação ambiental, considerando como um ponto de congruência da formação de novos ideários e cânones, motivados, sobretudo, pela premissa de um manancial de novos valores adotados. Nesta trilha de argumentação, de boa técnica se apresenta os ensinamentos de Fernando de Azevedo Alves Brito que, em seu artigo, aduz: “Com a intensificação, entretanto, do interesse dos estudiosos do Direito pelo assunto, passou-se a desvendar as peculiaridades ambientais, que, por estarem muito mais ligadas às ciências biológicas, até então era marginalizadas”[4]. Assim, em decorrência da proeminência que os temas ambientais vêm, de maneira paulatina, alcançando, notadamente a partir das últimas discussões internacionais envolvendo a necessidade de um desenvolvimento econômico pautado em sustentabilidade, não é raro que prospere, mormente em razão de novos fatores, um verdadeiro remodelamento ou mesmo uma releitura dos conceitos que abalizam a ramificação ambiental do Direito, com o fito de permitir que ocorra a conservação e recuperação das áreas degradadas, primacialmente as culturais.  Ademais, há de ressaltar ainda que o direito ambiental passou a figurar, especialmente, depois das décadas de 1950 e 1960, como um elemento integrante da farta e sólida tábua de direitos fundamentais. Calha realçar, com cores quentes, que mais contemporâneos, os direitos que constituem a terceira dimensão recebem a alcunha de direitos de fraternidade ou, ainda, de solidariedade, contemplando, em sua estrutura, uma patente preocupação com o destino da humanidade[5]·. Ora, daí se verifica a inclusão de meio ambiente como um direito fundamental, logo, está umbilicalmente atrelado com humanismo e, por extensão, a um ideal de sociedade mais justa e solidária. Nesse sentido, ainda, é plausível citar o artigo 3°., inciso I, da Carta Política de 1988 que abriga em sua redação tais pressupostos como os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direitos: “Art. 3º – Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária” [6]. Ainda nesta esteira, é possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Com o escopo de ilustrar, de maneira pertinente as ponderações vertidas, insta trazer à colação o entendimento do Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 1.856/RJ, em especial quando coloca em destaque que: “Cabe assinalar, Senhor Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível”[7]. “Têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”[8]. Com efeito, os direitos de terceira dimensão, dentre os quais se inclui ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, positivado na Constituição Federal de 1988, emerge com um claro e tangível aspecto de familiaridade, como ápice da evolução e concretização dos direitos fundamentais. 2 Análise do Meio Ambiente a partir de uma feição conceitual Ao lançar mão do sedimentado jurídico-doutrinário apresentado pelo inciso I do artigo 3º da Lei Nº. 6.938, de 31 de agosto de 1981[9], que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências, salienta que o meio ambiente consiste no conjunto e conjunto de condições, leis e influências de ordem química, física e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Pois bem, com o escopo de promover uma facilitação do aspecto conceitual apresentado, é possível verificar que o meio ambiente se assenta em um complexo diálogo de fatores abióticos, provenientes de ordem química e física, e bióticos, consistentes nas plurais e diversificadas formas de seres viventes. Consoante os ensinamentos de Silva, considera-se meio-ambiente como “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”[10]. Nesta senda, ainda, Fiorillo[11], ao tecer comentários acerca da acepção conceitual de meio ambiente, coloca em destaque que tal tema se assenta em um ideário jurídico indeterminado, incumbindo, ao intérprete das leis, promover o seu preenchimento. Dada à fluidez do tema, é possível colocar em evidência que o meio ambiente encontra íntima e umbilical relação com os componentes que cercam o ser humano, os quais são de imprescindível relevância para a sua existência. O Ministro Luiz Fux, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 4.029, salientou, com bastante pertinência, que: “[…] o meio ambiente é um conceito hoje geminado com o de saúde pública, saúde de cada indivíduo, sadia qualidade de vida, diz a Constituição, é por isso que estou falando de saúde, e hoje todos nós sabemos que ele é imbricado, é conceitualmente geminado com o próprio desenvolvimento. Se antes nós dizíamos que o meio ambiente é compatível com o desenvolvimento, hoje nós dizemos, a partir da Constituição, tecnicamente, que não pode haver desenvolvimento senão com o meio ambiente ecologicamente equilibrado. A geminação do conceito me parece de rigor técnico, porque salta da própria Constituição Federal”[12]. É verificável, desta sorte, que a constitucionalização do meio ambiente no Brasil viabilizou um verdadeiro salto qualitativo, no que concerne, especificamente, às normas de proteção ambiental. Tal fato decorre da premissa que os robustos corolários e princípios norteadores foram alçados ao patamar constitucional, assumindo colocação eminente, ao lado das liberdades públicas e dos direitos fundamentais. Superadas tais premissas, aprouve ao Constituinte, ao entalhar a Constituição Cidadã, ressoando os valores provenientes dos direitos de terceira dimensão, insculpir na redação do artigo 225 amplo e robusto respaldo ao meio ambiente como pilar integrante dos direitos fundamentais. “Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, as normas de proteção ambiental são alçadas à categoria de normas constitucionais, com elaboração de capítulo especialmente dedicado à proteção do meio ambiente”[13]. Nesta toada, ainda, é observável que o caput do artigo 225 da Constituição Federal de 1988[14] está abalizado em quatro pilares distintos, robustos e singulares que, em conjunto, dão corpo a toda tábua ideológica e teórica que assegura o substrato de edificação da ramificação ambiental. Primeiramente, em decorrência do tratamento dispensado pelo artífice da Constituição Federal, o meio ambiente foi içado à condição de direito de todos, presentes e futuras gerações. É encarado como algo pertencente a toda coletividade, assim, por esse prisma, não se admite o emprego de qualquer distinção entre brasileiro nato, naturalizado ou estrangeiro, destacando-se, sim, a necessidade de preservação, conservação e não-poluição. O artigo 225, devido ao cunho de direito difuso que possui, extrapola os limites territoriais do Estado Brasileiro, não ficando centrado, apenas, na extensão nacional, compreendendo toda a humanidade. Neste sentido, o Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N° 1.856/RJ, destacou que: “A preocupação com o meio ambiente – que hoje transcende o plano das presentes gerações, para também atuar em favor das gerações futuras […] tem constituído, por isso mesmo, objeto de regulações normativas e de proclamações jurídicas, que, ultrapassando a província meramente doméstica do direito nacional de cada Estado soberano, projetam-se no plano das declarações internacionais, que refletem, em sua expressão concreta, o compromisso das Nações com o indeclinável respeito a esse direito fundamental que assiste a toda a Humanidade”[15]. O termo “todos”, aludido na redação do caput do artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, faz menção aos já nascidos (presente geração) e ainda aqueles que estão por nascer (futura geração), cabendo àqueles zelar para que esses tenham à sua disposição, no mínimo, os recursos naturais que hoje existem. Tal fato encontra como arrimo a premissa que foi reconhecido ao gênero humano o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao gozo de condições de vida adequada, em ambiente que permita desenvolver todas as suas potencialidades em clima de dignidade e bem-estar. Pode-se considerar como um direito transgeracional, ou seja, ultrapassa as gerações, logo, é viável afirmar que o meio-ambiente é um direito público subjetivo. Desta feita, o ideário de que o meio ambiente substancializa patrimônio público a ser imperiosamente assegurado e protegido pelos organismos sociais e pelas instituições estatais, qualificando verdadeiro encargo irrenunciável que se impõe, objetivando sempre o benefício das presentes e das futuras gerações, incumbindo tanto ao Poder Público quanto à coletividade considerada em si mesma. Assim, decorrente de tal fato, produz efeito erga mones, sendo, portanto, oponível contra a todos, incluindo pessoa física/natural ou jurídica, de direito público interno ou externo, ou mesmo de direito privado, como também ente estatal, autarquia, fundação ou sociedade de economia mista. Impera, também, evidenciar que, como um direito difuso, não subiste a possibilidade de quantificar quantas são as pessoas atingidas, pois a poluição não afeta tão só a população local, mas sim toda a humanidade, pois a coletividade é indeterminada. Nesta senda, o direito à interidade do meio ambiente substancializa verdadeira prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, ressoando a expressão robusta de um poder deferido, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas num sentido mais amplo, atribuído à própria coletividade social. Com a nova sistemática entabulada pela redação do artigo 225 da Carta Maior, o meio-ambiente passou a ter autonomia, tal seja não está vinculada a lesões perpetradas contra o ser humano para se agasalhar das reprimendas a serem utilizadas em relação ao ato perpetrado. Figura-se, ergo, como bem de uso comum do povo o segundo pilar que dá corpo aos sustentáculos do tema em tela. O axioma a ser esmiuçado, está atrelado o meio-ambiente como vetor da sadia qualidade de vida, ou seja, manifesta-se na salubridade, precipuamente, ao vincular a espécie humana está se tratando do bem-estar e condições mínimas de existência. Igualmente, o sustentáculo em análise se corporifica também na higidez, ao cumprir os preceitos de ecologicamente equilibrado, salvaguardando a vida em todas as suas formas (diversidade de espécies). Por derradeiro, o quarto pilar é a corresponsabilidade, que impõe ao Poder Público o dever geral de se responsabilizar por todos os elementos que integram o meio ambiente, assim como a condição positiva de atuar em prol de resguardar. Igualmente, tem a obrigação de atuar no sentido de zelar, defender e preservar, asseverando que o meio-ambiente permaneça intacto. Aliás, este último se diferencia de conservar que permite a ação antrópica, viabilizando melhorias no meio ambiente, trabalhando com as premissas de desenvolvimento sustentável, aliando progresso e conservação. Por seu turno, o cidadão tem o dever negativo, que se apresenta ao não poluir nem agredir o meio-ambiente com sua ação. Além disso, em razão da referida corresponsabilidade, são titulares do meio ambiente os cidadãos da presente e da futura geração. Em tom de arremate, é possível destacar que a incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresarias nem manter dependência de motivações de âmago essencialmente econômico, notadamente quando estiver presente a atividade econômica, considerada as ordenanças constitucionais que a norteiam, estando, dentre outros corolários, subordinadas ao preceito que privilegia a defesa do meio ambiente, que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. O corolário do desenvolvimento sustentável, além de estar impregnando de aspecto essencialmente constitucional, encontra guarida legitimadora em compromissos e tratados internacionais assumidos pelo Estado Brasileiro, os quais representam fator de obtenção do justo equilíbrio entre os reclamos da economia e os da ecologia, porém, a invocação desse preceito, quando materializada situação de conflito entre valores constitucionais e proeminentes, a uma condição inafastável, cuja observância não reste comprometida nem esvaziada do aspecto essencial de um dos mais relevantes direitos fundamentais, qual seja: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações. 3 O Princípio do Desenvolvimento Sustentável como Flâmula Norteadora do Direito Ambiental Inicialmente, quadra salientar que o corolário do desenvolvimento sustentável se apresenta como um dos robustos arrimos da tábua principiológica ostentada pela ramificação ambiental do Direito. Trata-se, com efeito, de preceito que busca dialogar e harmonizar vertentes distintas, cada qual dotada de complexidade, quais sejam: o crescimento econômico, a preservação ambiental e a equidade social. Nesta esteira de exposição, “importa frisar que o desenvolvimento somente pode ser considerado sustentável quando as três vertentes acima relacionadas sejam efetivamente respeitadas de forma simultânea”[16], como bem afiança Romeu Thomé. Quadra pontuar que o ideário de desenvolvimento socioeconômico em consonância com a preservação ambiental tem seu sedimento na Conferência Mundial de Meio Ambiente[17], realizada, em 1972, em Estocolmo, que se apresenta como verdadeiro marco histórico da discussão dos problemas ambientais. É verificável, ainda, que o corolário em tela encontra respaldo na redação do artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[18], notadamente quando dicciona que é imposição ao Poder Público e de toda a coletividade defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. “Constata-se que os recursos ambientais não são inesgotáveis, tornando-se inadmissível que as atividades econômicas desenvolvam-se alheias a esse fato”[19]. Desta feita, é observável que o núcleo sensível do corolário do desenvolvimento sustentável está alicerçado na coexistência harmônica entre economia e meio ambiente, sendo permitido o desenvolvimento, contudo, de maneira planejada e sustentável, a fim de evitar que os recursos existentes não se esgotem ou mesmo se tornem inócuos. Insta anotar, inclusive, que tais ponderações encontram identificação nos princípios segundo, quarto e quinto da Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, consoante se extrai: “Princípio 2: Os recursos naturais da terra incluídos o ar, a água, a terra, a flora e a fauna e especialmente amostras representativas dos ecossistemas naturais devem ser preservados em benefício das gerações presentes e futuras, mediante uma cuidadosa planificação ou ordenamento. Princípio 4: O homem tem a responsabilidade especial de preservar e administrar judiciosamente o patrimônio da flora e da fauna silvestres e seu habitat, que se encontram atualmente, em grave perigo, devido a uma combinação de fatores adversos. Consequentemente, ao planificar o desenvolvimento econômico deve-se atribuir importância à conservação da natureza, incluídas a flora e a fauna silvestres. Princípio 5: Os recursos não renováveis da terra devem empregar-se de forma que se evite o perigo de seu futuro esgotamento e se assegure que toda a humanidade compartilhe dos benefícios de sua utilização”[20]. Sobreleva frisar, deste modo, que o princípio do desenvolvimento sustentável agasalha a manutenção das bases vitais da produção e produção do homem e de suas atividades, assegurando, de igual forma, uma relação satisfatória entre os homens e destes com o seu meio ambiente, com o escopo de que as futuras gerações também tenham a oportunidade de utilizar os mesmos recursos existentes. Romeu Thomé pontua, em seu magistério, que “as gerações presentes devem buscar o seu bem-estar através do crescimento econômico e social, mas sem comprometer os recursos naturais fundamentais para a qualidade de vida das gerações subsequentes”[21]. Ora, o desenvolvimento sustentável resta consubstanciado quando faz face às necessidades das gerações sem que haja comprometimento da capacidade das gerações futuras na satisfação de suas próprias carências. A Ministra Carmem Lúcia, ao relatoriar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 101/DF, no tocante ao dogma em apreço, manifestou que desenvolvimento sustentável é “crescimento econômico com garantia paralela e superiormente respeitada da saúde da população, cujos direitos devem ser observados em face das necessidades atuais e daquelas previsíveis e a serem prevenidas para garantia e respeito às gerações futuras”[22]. A Constituição Federal adotou o princípio do desenvolvimento sustentável, segundo o qual a preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado é necessária à manutenção da capacidade produtiva e à própria sobrevivência do ser humano, implicando no estabelecimento de limites ao exercício das atividades econômicas que geram transformação ou degradação dos recursos naturais. Impende destacar, ainda, com grossos traços e cores quentes, que a atividade econômica não pode ser exercida em desacordo com os princípios destinados a tornar efetiva a proteção do meio ambiente. A incolumidade do meio ambiente, com realce, não pode ser embaraçada por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de âmago essencialmente econômico, ainda mais quando a atividade econômica, em razão da disciplina constitucional, estiver subordinada a um sucedâneo de corolários, notadamente àquele que privilegia a defesa do meio ambiente, o qual abarca o conceito amplo e abrangente de noções atreladas ao meio ambiente em suas múltiplas manifestações, quais sejam: o meio ambiente natural, meio ambiente cultural, meio ambiente artificial e meio ambiente do trabalho (ou laboral). Verifica-se, assim, que os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural. Com perfeita consonância com as ponderações aventadas, até o momento, cuida transcrever o robusto escólio apresentado pelo Ministro Celso de Mello, ao relatoriar a Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº. 3.540/DF, em especial quando destaca que: “Concluo o meu voto: atento à circunstância de que existe um permanente estado de tensão entre o imperativo de desenvolvimento nacional (CF, art. 3º, II), de um lado, e a necessidade de preservação da integridade do meio ambiente (CF, art. 225), de outro, torna-se essencial reconhecer que a superação desse antagonismo, que opõe valores constitucionais relevantes, dependerá da ponderação concreta, em cada caso ocorrente, dos interesses e direitos postos em situação de conflito, em ordem a harmonizá-los e a impedir que se aniquilem reciprocamente, tendo-se como vetor interpretativo, para efeito da obtenção de um mais justo e perfeito equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, o princípio do desenvolvimento sustentável, tal como formulado nas conferência internacionais […] e reconhecido em valiosos estudos doutrinários que lhe destacam o caráter eminentemente constitucional […]”[23]. Prima, ainda, sublinhar que a compreensão do baldrame do desenvolvimento sustentável reclama a sua contextualização histórica, a fim de realçar a incidência de seus feixes principiológicos, porquanto, como é cediço, o liberalismo tornou-se um sistema inoperante diante do fenômeno da revolução das massas. “Em face da transformação sociopolítica-econômica-tecnológica, percebeu-se a necessidade de um modelo estatal intervencionista com a finalidade de reequilibrar o mercado econômico”[24]. Infere-se, desta sorte, a acepção conceitual do desenvolvimento, estruturados em um Estado de concepção liberal, modificaram-se, porquanto não mais encontravam arrimo na sociedade moderna. Ora, salta aos olhos que se passou a vindicar um papel ativo do Ente Estatal, precipuamente no que se refere ais valores ambientais, concedendo outra noção de conceito de desenvolvimento. Conferindo o realce que o preceito em testilha reclama, o Ministro Ari Pargendler, ao relatoriar o Agravo Regimental na Suspensão de Liminar e de Sentença Nº. 1.448/MA, manifestou-se no sentido que: “[…] Não é cabível a suspensão de decisão judicial que determinou a suspensão de incentivos e benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público a empresa privada que descumpriu continuamente normas ambientais na hipótese em que tal pedido é feito pelo Estado, sob a alegação de que tal decisão acarreta lesão à ordem administrativa e econômica estadual, consubstanciada na perda de empregos diretos e de arrecadação tributária propiciados pela empresa, pois a suspensão dos incentivos fiscais pode repercutir na economia estadual apenas de modo indireto, não podendo o Estado defender interesse econômico de empresa privada, sendo que o interesse público primário a ser protegido é justamente o tutelado pela decisão judicial impugnada que é a proteção ao meio ambiente e a promoção do desenvolvimento econômico sustentável”[25]. A proteção do meio ambiente e o fenômeno desenvolvimentista, sendo arrimado na livra iniciativa, passaram a constituir um objetivo comum, pressupondo a confluência dos escopos das políticas de desenvolvimento econômico, social, cultural e de proteção ambiental. Trata-se, com efeito, da concatenação de elementos que enfatizam “a necessidade de mais crescimento econômico, mas com formas, conteúdos e usos sociais completamente modificados, com uma orientação no sentido das necessidades das pessoas”[26], materializada por meio da distribuição equitativa de renda e de técnicas de produção adequadas à preservação dos recursos. Ademais, não se pode olvidar que a conquista de um ponto de equilíbrio entre o desenvolvimento social, o crescimento econômico e a utilização dos recursos naturais carecem de um adequado planejamento territorial que considere os limites estabelecidos pela sustentabilidade. Como bem alardeia o articulista Vianna, “o princípio do desenvolvimento sustentável colima compatibilizar a atuação da economia com a preservação do equilíbrio ecológico”[27]. É perceptível, desta maneira, que o corolário em comento passou a gozar de robusta importância, eis que numa sociedade desregrada, despida de parâmetros de livre concorrência e iniciativa, o caminho inexorável para uma situação ambiental caótica se revela como uma certeza. “Não há dúvida de que o desenvolvimento econômico também é um valor precioso da sociedade. Todavia, a preservação ambiental e o desenvolvimento econômico devem coexistir, de modo que aquela não acarrete  a anulação deste”[28], como bem explicita Fiorillo. Sensível ao cenário fático contemporâneo, aprouve ao Constituinte de 1988 afixar que as atividades econômicas mereciam um tratamento novo, em consonância com os anseios e modificações apresentados. Nesta toada, a preservação ambiental passou a figurar como a flâmula norteadora, eis que a contínua degradação acarretaria a diminuição da capacidade econômica do País. Desta feita, a livre iniciativa, que norteia as atividades econômicas, passou a assumir outra significação, sendo que a liberdade de agir, compreendida no Texto Constitucional, passou a ser compreendida de forma mais restrita. Objetiva-se, com efeito, a coexistência de ambos sem que a ordem econômica obste o meio ambiente ecologicamente equilibrado e sem que este embarace o desenvolvimento econômico. Tal argumento encontra guarida na premissa que a ordem econômica, alicerçada na livre iniciativa e na valorização do trabalho humano, imperiosamente será regida pelos ditames contidos na justiça social, atento ao corolário da defesa do meio ambiente. “É certo afirmar que a Constituição reconheceu como legítimo o desenvolvimento sustentável, sendo imprescindível para sua implementação o equilíbrio entre desenvolvimento econômico, meio ambiente e o social”[29]. O fortalecimento do corolário em comento passou a gozar de proeminência no cenário pátrio, notadamente quando se colhem entendimentos jurisprudenciais que afixam: “Ementa: Processual Civil. Ação Civil Pública. Reparação de danos ao meio ambiente. Desmatamento ilegal na floresta amazônica. Área de propriedade particular. Legitimidade ativa do IBAMA. […] 2. A preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, é uma exigência imposta ao Poder Público e à coletividade, os quais têm o dever de defendê-lo. Assim é que, embora seja imprescindível conferir efetividade ao desenvolvimento econômico do País, este, contudo, deve ocorrer de maneira sustentável e, por isso mesmo, sem agressão antijurídica ao meio ambiente. Ressalte-se que tal política pública constitui a positivação legislativa da máxima constitucional que prevê a necessidade da preservação ambiental para as presentes e futuras gerações (CF, art. 225, caput). […] (Tribunal Regional Federal da Primeira Região – Quinta Turma/ AC 0000774-52.2007.4.01.3902/PA/ Relator: Desembargador Federal Fagundes de Deus. Publicado no e-DJF1 em  26/08/2011, p. 159)”. “Ementa: Mandado de Segurança – Meio Ambiente – Art. 225 da Constituição da República – Decreto Estadual Nº 43.713, de 14 de Janeiro de 2004, art. 14, inciso II, alínea ""a"", regulamentador da Lei Estadual Nº 14.181, de 17 de Janeiro de 2002 – Pesca – Proibições – Direito ao lazer – Ausência de direito líquido e certo – Denegação da segurança. […] A Constituição restringe a atuação do homem, dando parâmetros para seu desenvolvimento quando fala que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observado o princípio da defesa do meio ambiente (art.170 da CF/88). Portanto a defesa do meio ambiente, intrínseco interesse público, é ao mesmo tempo direito e obrigação da coletividade, sendo que o Estado não poderá se omitir de tal obrigação, caracterizando assim sua indisponibilidade. A questão ambiental requer comportamentos unilaterais e multilaterais, até mesmo independentes, mas sempre harmônicos entre si, que propiciem à atual e, sobretudo, às futuras gerações a oportunidade de viver num ambiente economicamente viável e ecologicamente sustentável. (Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – Corte Superior/ Mandado de Segurança Nº. 1.0000.04.406869-0/000/ Relator: Desembargador Carreira Machado/ Julgado em 27.10.2004/ Publicado no DJe em 24.11.2004)”. “Ementa: Ação Civil Pública – Pico do Ibituruna – Dano ao Meio Ambiente – Risco de incêndio e poluição visual – Princípio da precaução. […] O princípio da prevenção está associado, constitucionalmente, aos conceitos fundamentais de equilíbrio ecológico e desenvolvimento sustentável; o primeiro significa a interação do homem com a natureza, sem danificar-lhe os elementos essenciais. O segundo prende-se à preservação dos recursos naturais para as gerações futuras. A ""Declaração do Rio de Janeiro"", votada, à unanimidade, pela Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (1992), recomendou a sua observância no seu Princípio 15. (Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – Sétima Câmara Cível/ Apelação Cível Nº 1.0000.00.295312-3/000/ Relator: Desembargador Wander Marotta/ Julgado em 10.02.2003/ Publicado no DJe em 27.03.2003)”. Deste modo, objetivando satisfazer as necessidades da coletividade, o Direito Ambiental normas pautada na razoabilidade da utilização dos recursos naturais, visto que a preocupação com o meio-ambiente deve ser uma das molas propulsoras para o desenvolvimento sustentável, salvaguardando uma relação harmônica entre necessidade de preservar e o crescimento econômico por parte da sociedade. Ademais, fato é que o desenvolvimento é imprescindível, todavia deve ocorrer em observância e atinência com as limitações ecológica do planeta, evitando, por conseguinte, a destruição dos ecossistemas. Consoante exalta Facin, “há que se ter em mente que a proteção ambiental é parte integrante do processo de desenvolvimento, não podendo ser considerada isoladamente”[30]. Agindo em consonância com tais ideários, as presentes gerações permitem que aqueles que estão por vir possam utilizar do meio-ambiente como vetor de promoção da dignidade da pessoa humana, aliando satisfação de suas necessidades e conservação. 4 A Problemática Ambiental a partir de uma Perspectiva da Bioética: Alinhando o Discurso Contemporâneo de Preservação e o Desenvolvimento Sustentável Imerso no sucedâneo de argumentos apresentados, cuida ponderar que a construção de uma consciência ambiental ética apresenta-se como alternativa para viabilizar a existência humana em um cenário caracterizado por inúmeras degradações. Desta feita, a aplicação do arcabouço legislativo ambiental, ancorado substancialmente em paradigmas com vistas a privilegiar o ideário de solidariedade intergeracional, materializando a premissa de equidade social para as presentes e futuras gerações. Nesta esteira, revela curial ponderar que o aspecto de fraternidade que emoldura o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ultrapassando a mera essência de preservação do meio ambiente, alcançando, por seu turno, como uma das muitas facetas de concreção da dignidade da pessoa humana. É imperiosa, desta maneira, a edificação de uma ótica e postura global alicerçada na disseminação do ideário de que é imprescindível que se reverta a crise ambiental contemporânea. Trata-se, com efeito, da busca pela corresponsabilidade ambiental arrimada numa nova ética, na qual se deve buscar a superação do modelo egoístico do antropocentrismo alargado, primando, de outro ponto, a manutenção e preservação ambiental na condição de elemento atrelado, umbilicalmente, ao desenvolvimento do ser humano. Ao lado disso, o ideário desenvolvimentista, por si só, invoca, urgentemente, à incidência do princípio da corresponsabilidade. Ademais, a crise ambiental existente na contemporaneidade reclama um enveredamento que seja capaz de promover o diálogo entre o desenvolvimento econômico e a preservação dos ecossistemas, traduzindo-se em desenvolvimento sustentável. Em harmonia com o sedimento apresentado, carecido faz-se ponderar que a estruturação dessa nova ética ambiental, ancorada nos ideários densos da corresponsabilidade, desfralda como corolário que as pessoas assumam papel social de maior relevância, dialogando cooperação e solidariedade. Ora, os direitos que florescem na contemporaneidade não mais estão vestidos de aspectos individuais, mas sim são emoldurados por aspectos transindividuais, nos quais a coletividade é vista como unidade, a qual passa a reclamar conjunção de esforços para a promoção do ser humano. Nesta linha de exposição é possível identificar nos pilares estruturantes da bioética, concatenado a temas complexos e dotados de proeminência no cenário contemporâneo, a confluência de esforços para analisar fenômenos que vindicam o desenvolvimento de um discurso pautado na promoção da coletividade, na condição de unidade, a fim de alcançar, individualmente, a concretização do ser humano.
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Direito fundamental de acesso a água potável e a dignidade da pessoa humana
É inegável que sem água não há vida na terra, dada a essencialidade desse elemento. No entanto, por muito tempo se questionou a fundamentalidade do direito a água potável, já que, admiravelmente, nenhum documento oficial o reconhecia como tal expressamente. Recentemente, a sua intima ligação com o direito à vida e com a dignidade da pessoa humana acabou o elevando a tal status. Nesse sentido, por meio de um estudo bibliográfico, o presente trabalho irá desenvolver o aspecto de direito fundamental que o direito a água vem tomando ao longo de sua evolução histórica, de forma que possa restar clara a conexão do direito a água potável e a dignidade da pessoa humana, uma vez que inegável sua importância no contexto econômico, social e vital do mundo atual.
Biodireito
Introdução Há algumas décadas, a sociedade vem adotando um novo referencial para se pensar as relações humanas e o meio ambiente, principalmente influenciada por movimentos ambientalistas que vem alertando sobre os impactos causados pela constante destruição da natureza, seja por indústrias, empresas ou até mesmo atitudes isoladas.  Foi nesse sentido que surgiu a ideia dos direitos fundamentais de terceira geração, também conceituados de direitos de fraternidade ou de solidariedade que se diferenciam das concepções anteriores pelo fato de se distanciarem da figura do homem como indivíduo único, passando a se destinarem à proteção de grupos humanos, ou seja, uma coletividade. Dentre os temas que envolvem essa geração de direitos fundamentais encontra-se o direito ao meio ambiente equilibrado e saudável. A questão do meio ambiente engloba diversos assuntos, já que se destina a estudar as matérias primas que a natureza nos oferece. No meio de tantas matérias uma se destaca como a mais preciosa de todas, motivo pelo qual vem sendo, constantemente, base de diversos debates: a água. Isso porque sem a água não há como existir os demais direitos consagrados, já que não é possível vida sem esse elemento natural essencial ao ser humano e aos demais seres vivos.  Após séculos de exploração ambiental, o mundo começou a se atentar para o fato de que os recursos hídricos mundiais são finitos e se alertar que a falta de uma postura mais protetora poderia levar o planeta a um verdadeiro colapso.  A primeira problemática que se apresenta é que grande parte da água mundial não é potável, pois a maioria do porcentual é composta pelas águas salgadas dos oceanos, inviáveis para o consumo humano, o que vem a limitar a quantidade de água potável mundial.  Não bastasse a sua limitação e a constatação de seu porcentual reduzido, o uso indiscriminado da água vem sendo praticado há tempos sem qualquer preocupação com a sua poluição, que torna a sua reutilização inviável. Esse fato ocorre em face do aumento da industrialização, o crescimento acelerado da população que despeja seus detritos nos rios sem qualquer tratamento prévio, o uso constante de agrotóxicos que contaminam as águas, a destruição e desmatamento que não protegem o leito dos rios e acabam por assoreá-los, etc.  Ademais, outra questão que vem sendo motivo de alerta é o fato de que, embora existam países fortemente privilegiados em recursos hídricos, os mesmos não são corretamente aproveitados e utilizados, o que acaba por desperdiçar o potencial das águas e deixam a população carente desses recursos.  No mais, outro fator preocupante é que apenas uma pequena porcentagem da população mundial consome mais de 40% das águas, o que vem evidenciar um verdadeiro descompasso no consumo hídrico, marcado, ainda, pela ausência de um acesso a água que seja realmente eficaz em uma grande parte do mundo.  Todas essas problemáticas, em especial a que se destaca no ultimo parágrafo, faz com que se questione se a forma como essas pessoas estão vivendo pode ser considerada digna, diante das concepções de dignidade humana apresentada nas legislações internacionais. Rapidamente, percebe-se que a ausência de acesso à água acaba tornando a vida mais desumana e degradante, o que viola um dos maiores direitos fundamentais já consagrados pelo homem: a dignidade da pessoa humana.  Para constatar tal fato basta voltar os olhos para a situação que se encontra a população africana, que sofre com a escassez de água ou a sua má distribuição. Trata-se de uma forma de vida baseada em muito sofrimento, já que a população não obtém facilmente esse recurso, precisando se deslocar longas distâncias para conseguir o suficiente para sobrevivência.  No entanto, não é necessário ir tão longe para se perceber que a escassez e a má distribuição das águas é um fato que atinge uma grande parcela de pessoas também no Brasil. Assim como a destruição dos recursos hídricos, o acesso aos mesmos tem se tornado questão a ser debatida, inclusive nos pequenos municípios.  Trata-se do reconhecimento de que o direito ao acesso a água é um direito humano fundamental e que deve ser distribuído de modo igualitário a todos os cidadãos, sob pena de se ferir a dignidade humana, haja vista que não existe vida sem água e não há como se viver dignamente se seu acesso é falho ou até mesmo não ocorre.  Nesse trabalho, busca-se trazer tal problemática para o contexto do Brasil, de modo que se analisem os conceitos de água, a sua caracterização como direito fundamental e sua intrínseca relação com o principio da dignidade da pessoa humana, a dificuldade de acesso da população a essa água, verificando a forma como a mesma é respeitada ou prejudicada pela ação humana. A grande questão que envolve o presente tema atualmente é, além da preocupação em se conseguir harmonizar a necessidade de proteção à água com o desenvolvimento do país e das cidades, que precisam do uso dessa matéria prima para poderem manter sua economia e a sobrevivência da população, é verificar se esse recurso natural esta sendo conscientemente utilizado e uniformemente distribuído para a população, pelo que deveria ser unanimente considerada direito fundamental para a vida humana e, portanto, usufruído por todos. 2 Direitos Fundamentais de Terceira Geração Para se chegar, portanto, à concepção atual que temos de direitos humanos houve uma série de precedentes históricos que levaram a construção do ordenamento jurídico de base internacional que afirma que os direitos que são universalmente reconhecidos as pessoas. Os direitos humanos se dividem em dimensões, com base na ordem cronológica em que passaram a ser consagrados à Humanidade, isso quer dizer que não surgiram todos de uma única vez, muito menos pelos mesmos motivos, mas de acordo com as lutas contra o poder e opressões que foram aparecendo ao longo dos tempos. Nas palavras de Norberto Bobbio: “Os direitos do homem, […] são direitos históricos, […] caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.” (BOBBIO, 1992, p. 5) Ainda completa Celso Lafer que “[…] do século XVIII até os nossos dias, o elenco de direitos do homem contemplados nas constituições e nos instrumentos internacionais foram-se alterando com a mudança das condições históricas.”(LAFER, 1988, p. 124)  A terceira geração de direitos foi marcada pela reivindicação da materialização de poderes de titularidade coletiva e difusa e que se correlaciona aos ideais de fraternidade e solidariedade. Após as duas Guerras Mundiais e o fim da Guerra Fria, o mundo começou a questionar a segregação do poder nas mãos de poucos, momento no qual países de terceiro mundo intensificaram movimentos requerendo sua autonomia, principalmente econômica, seu desenvolvimento e sua autodeterminação.  Buscava-se o direito a paz, a autodeterminação dos povos, qualidade de vida, o direito `a comunicação, ao desenvolvimento, a um meio ambiente saudável, o direito `a paz e o direito ao patrimônio comum da humanidade, os quais se destinavam a uma universalidade. Conforme bem explicita Celso Lafer, todos esses direitos foram concebidos com titularidade coletiva ou difusa, se baseando em uma identidade de circunstancias de fato (LAFER, 1988).  Portanto, se direcionam para grupos mais “vulneráveis”, como crianças, idosos, indígenas, etc. Nesse sentido, “estes direitos têm como titular não o indivíduo na sua singularidade, mas sim grupos humanos como a família, o povo, a nação, coletividades regionais ou étnicas e a própria humanidade”. (LAFER, 1988, p. 131) Nas palavras de Paulo Bonavides, são direitos: “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente a proteção dos interesses de um individuo, de um grupo ou de um determinado Estado. Tem por primeiro destinatário o ser humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.” (BONAVIDES, 2001, p. 569) Alguns desses direitos podem até assumir uma dupla titularidade, sendo tanto individual como coletivo, é o caso do direito ao desenvolvimento, ao meio ambiente e a comunicação, isso porque podem ser reivindicados por uma pessoa física individualmente, tendo como sujeito passivo, no geral, o próprio Estado. Por outro lado, o direito `a paz, `a autodeterminação e o direito ao patrimônio comum da humanidade têm como titular somente o povo.  (FERREIRA FILHO, 2011). No mais, é certo que devem beneficiar, ao mesmo tempo, a todos e a cada um separadamente.  O objeto desses direitos pode ser uma conduta, que pode se materializar por diversas formas seja exigindo uma situação de fazer ou não fazer, que pode se direcionar a determinados bens ou atitudes, ou seja, pode ser na preservação ambiental ou na não poluição, pode ser na proibição de guerras, na não interferência de um Estado em outro, etc. Logo, se fundamentam na solidariedade entre os povos, já que se espera a conduta adequada de cada um, de modo que agindo assim, esta sendo respeitado um direito que se aplica a todos.  De todos os direitos presentes nessa geração o mais elaborado foi o direito ao meio ambiente, consagrado na Declaração de Estocolmo de 1972, onde se admite que: “O homem tem o direito fundamental a liberdade, `a igualdade e ao gozo de condições de vida adequadas num meio ambiente de tal qualidade que lhe permita levar uma vida digna […]” (FERREIRA FILHO, 2011, p. 80).  A reivindicação por um meio ambiente saudável surgiu nesse momento, já que foi então que se percebeu que os recursos naturais eram finitos, isso porque a exploração predatória em prol de um desenvolvimento econômico estava deteriorando os ecossistemas que ainda se encontravam intactos.  Os movimentos ambientalistas fizeram questionamentos que vieram se contrapor a essa necessidade de desenvolvimento econômico, o que acabou por não ter muito respaldo, uma vez que os países emergentes focaram mais em seu crescimento econômico que na preservação ambiental. Contudo, alguns anos depois, o tema voltou a ser objeto de discussão na ECO 92, originando a ideia do desenvolvimento sustentável.  Um meio ambiente saudável envolve diversos aspectos e temas, dentre eles a água. Atualmente, a água tem sido foco de debates econômicos, políticos e sociais. Em muitas oportunidades já foi considerado o “ouro azul” do século. Embora sua importância seja latente, a ONU ainda não formulou qualquer documento que defina a água como direito fundamental, o que vem causando alguns questionamentos. 3 A água como direito fundamental A água, como parte do meio ambiente, foi mencionada em algumas ocasiões, embora seu reconhecimento como direito fundamental tenha sido tardio, já que nenhum texto internacional mencionava expressamente esse direito como fundamental. No ano de 1977 ocorreu a primeira Conferência especifica sobre a água, na Argentina, conhecida como Ação de Mar Del Plata. Posteriormente, a ONU organizou a Conferência Internacional sobre a Água e Meio Ambiente na Irlanda na cidade de Dublin, em 1992, antes da ECO-92.  Nessa Conferencia observou-se a finitude dos recursos hídricos e a necessidade de sua preservação, pelo que se extraiu a sugestão de que os Estados adotassem gestões de recursos hídricos. O Documento produzido relaciona o cuidado com a água e a mitigação de doenças; o estímulo à adoção de técnicas de reaproveitamento de água e à proteção contra os desastres naturais; ao desenvolvimento urbano sustentável; a produção agrícola; aos conflitos geopolíticos decorrentes da posse de bacias hidrográficas; ao fornecimento de água potável às zonas rurais; além da proteção e conservação desse precioso recurso natural.  No encontro relacionado ao meio ambiente a água também foi motivo de pauta, como a ECO – 92, desse encontro originou-se a Agenda 21, a qual afirma, em seu Capitulo 18, que: “A água é necessária em todos os aspectos da vida. O objetivo geral é assegurar que se mantenha uma oferta adequada de água de boa qualidade para toda a população do planeta, ao mesmo tempo em que se preserve as funções hidrológicas, biológicas e químicas dos ecossistemas, adaptando as atividades humanas aos limites da capacidade da natureza e combatendo vetores de moléstias relacionadas com a água. Tecnologias inovadoras, inclusive o aperfeiçoamento de tecnologias nativas, são necessárias para aproveitar plenamente os recursos hídricos limitados e protegê-los da poluição.” Nesse contexto, ainda estabelece alguns programas, no Item 18.5, que promoveriam a Proteção dos recursos hídricos, da qualidade da água e dos ecossistemas aquáticos e o devido Abastecimento de água potável e saneamento.  Mais tarde, o Fórum Mundial da Água teve por objetivo despertar a consciência sobre os problemas diretamente relacionados com a água, buscando contribuir na elaboração de políticas públicas em dimensão global e regional. O I Fórum Mundial da Água ocorreu em 1997, em Marrocos, na cidade de Marraquech, no qual governos, empresas, organizações não governamentais, especialistas, generalistas hídricos, além da sociedade civil em geral, debateram os problemas hídricos. No ano de 2000, o II Fórum foi realizado em Haia, na Holanda. Em 2003, o III Fórum Mundial da Água foi no Japão.  Em 2006, na Cidade do México, realizou-se o IV Fórum Mundial da Água, onde o público foi bem maior e também onde se debateu a Água para o Desenvolvimento, a Gestão Integrada, Saneamento, Alimentação, Meio Ambiente e a Gestão de Riscos. O relatório originado desse encontro fez referência explicita a tal direito: “a água, a essência da vida e um direito humano básico, encontra-se no cerne de uma crise diária que afecta vários milhões das pessoas mais vulneráveis do mundo – uma crise que ameaça a vida e destrói os meios de subsistência a uma escala arrasadora”.  Foi a primeira vez que se apontou expressamente a preocupação com o direito a água. E mais recentemente a Assembleia Nacional da ONU reconheceu, em 28 de julho de 2010, o acesso à água potável como um direito humano fundamental, como se observa no relatório da Assembleia: “Assembleia Geral reconhece o acesso à água como um direito humano.” No mais, ainda acrescentou que quase 900 milhões de pessoas carecem do exercício desse direito.  A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 aborda o tema da água fora dos artigos destinados aos direitos fundamentais, deslocando a mesma para outro Título, que a considera como bem da União e dos Estados. Assim, no Título III, da Organização do Estado, no Capítulo II, dispõe: “Art. 20. São bens da União: III – os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a territórios estrangeiros ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais. (Grifo nosso). Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados: I – as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União.”  A Lei Federal nº. 9.433/97, no Título I, Da Política Nacional de Recursos Hídricos, no Capítulo I, Dos Fundamentos, Art. 1º, inciso II, reza que “a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico”. Essa lei instituiu o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, estabelecendo o direito de propriedade e exploração dos recursos hídricos, seja para uso industrial, geração de energia, irrigação, etc. prevendo no corpo do seu texto a possibilidade de penalização e responsabilização pelas perdas e danos causados no uso irregular das águas. (BRENNY, 2013) Percebe-se que a água é tratada como valor econômico e socioambiental.  Existe, atualmente, uma proposta de Emenda Constitucional que visa incluir o direito a água dentro do rol dos direitos sociais dispostos no artigo sexto, ficando o texto da seguinte forma: Art. 6º. “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a água, o lazer, a segurança, a previdência, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”  Não obstante, a água é elemento essencial para a vida humana, sem a qual não se faz possível que qualquer elemento vivo possa sobreviver. Nesse sentido, não há como negar que a água se trata de um direito fundamental para o ser humano e, portanto, deve ser usufruída por todos os indivíduos. O acesso à água é primordial em uma vida digna, no entanto, o que se vislumbra é uma imensa dificuldade de se concretizar esse direito em algumas regiões do Brasil. 4 Direito de Acesso a Água Potável Como Dignidade da Pessoa Humana Saliente-se que o corpo humano é composto de 60% a 70% de água e que não há como o ser humano sobreviver se não consumir uma quantidade mínima de água diária. Contudo, o acesso à água potável vem se tornando cada vez mais difícil, isso porque o crescimento industrial e o constante descuido com o meio ambiente acabou por contaminar e poluir muitos mananciais responsáveis pelo abastecimento de milhares de pessoas. Em alguns casos os indivíduos tem acesso água, mas a mesma se encontra inviável para consumo. Em outros casos, as pessoas se quer consegue ter esse acesso,  isso porque além da contaminação há a má distribuição dos recursos hídricos, assim como a falta de planejamento urbano acaba por deixar diversas localidades sem acesso à água, razão pela qual em alguns casos as pessoas se deslocam grandes distancias para conseguir um pouco do que beber. A problemática que envolve o acesso à água potável, segundo Boaventura de Sousa Santos é que a "A desertificação e a falta de água são os problemas que mais vão afectar os países do Terceiro Mundo na próxima década. Um quinto da humanidade já não tem hoje acesso à água potável". (SANTOS, 2001, p. 24). O fato de o acesso ser comprometido ao ponto de afetar um quinto da população mundial causa graves preocupações, visto que a escassez vem provocando o aumento do numero de mortes no mundo. As mortes se dão pela ausência da água e pelas doenças que são trazidas quando se consome águas contaminadas. Dados sobre o tema alertam para esse caos anunciado. Observe-se que apenas 0,3% da água doce do mundo admitem a captação e distribuição para as comunidades, sendo certo que do total de água no planeta somente 2,5 % são água doce. Não bastasse, no ano de 2000, verificou-se que 2,4 bilhões de pessoas não tinham qualquer acesso a saneamento básico, enquanto aproximadamente um bilhão de pessoas não possuíam acesso a um abastecimento mínimo às suas necessidades básicas. Diante desse problema, cada vez mais crescente, a organização das Nações Unidas (ONU) definiu o período compreendido entre 2005 e 2015 como a “Década Internacional para a Ação Água para a vida”, como forma de contribuir na preservação das águas mundiais e com a meta de reduzir pela metade a proporção da população mundial sem acesso sustentável à água potável e saneamento até 2015. Para tanto, deverá ser fornecida água para 1,6 bilhão de pessoas e saneamento para 2,1 bilhões entre 2002 e 2015, principalmente entre as famílias pobres nos países mais pobres do mundo. Esse novo posicionamento internacional demonstra a importância do direito de acesso a água potável como direito fundamental, compreendido dentro da terceira geração de direitos humanos e do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, razão pela qual se impôs aos Estados um posicionamento mais ativo que concretize e melhore a situação dessas pessoas que estão prejudicadas e vivem em condições sociais precárias, como forma de lhes garantir o direito a dignidade humana.  Para que o indivíduo possa ter o pleno gozo de suas principais características faz-se necessário que lhe esteja assegurada a dignidade. Trata-se de um direito inato a todo ser humano e anterior ao próprio Estado. A ideia central do princípio da dignidade é a valorização da pessoa humana. Para o doutrinador Rizzatto Nunes, a dignidade da pessoa humana consiste no fato de que “[…] toda pessoa, pelo simples fato de existir, independentemente de sua situação social, traz na sua superioridade racional a dignidade de todo ser. Não admite discriminação, quer em razão do nascimento, da raça, inteligência, saúde mental ou de crença religiosa.” (NUNES, 2002, p. 49-50). Maria Helena Diniz afirma que a dignidade da pessoa humana esta ligada a uma qualidade moral que infunde respeito, honraria, respeitabilidade, tratando-se de um princípio moral de que o ser humano deve ser tratado sempre como um fim e nunca como um meio. (DINIZ, 1992) Por sua vez, José Afonso da Silva, afirma que a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai todos os outros direitos fundamentais do homem.(SILVA, 2005)  Enfim, percebe-se que a dignidade humana só é alcançada quando se vislumbra a concretude de diversos direitos destinados ao homem, sem os quais a essência do ser humano se perderia em transtornos.  A manutenção da vida é o principal objetivo das legislações criadas, seja no âmbito internacional seja nacionalmente e para sua afirmação são necessários diversos elementos, os quais irão tornar o homem apto a gozar de todos seus outros direitos. Como afirmado anteriormente, sem água não há vida, sem água apropriada para o consumo, ou seja, potável, não há como sobreviver, isso a inclui como importante elemento para a dignidade humana. Em outras palavras, para a vida é primordial a existência de água, esta antecede aquela, pelo que é necessário o aumento do comprometimento com a preservação ambiental e das águas, por meio de sua tutela efetiva das águas como direito humano fundamental essencial à dignidade da pessoa humana, uma vez que a vida e a água são bens invioláveis e de interesse indisponível, inalienável, inderrogável e irrenunciável. Ainda assim, alguns dados mostram que esse direito está sendo desrespeitado constantemente. As águas, como águas dos mares, dos rios ou dos lagos, águas vivas, correntes ou estanques, são bens que pertencem a toda a Humanidade, o que quer dizer que os atos lesivos ao meio ambiente, no que diz respeito à degradação das águas, serão considerados delitos de lesa humanidade, porque se trata de bem jurídico-penal prevalente e de máxima importância, ante o interesse global e a necessidade premente de preservação e atenção por sua riqueza imensurável e constante escassez.     Nesse sentido, a proteção jurídica do bem água à luz dos Direitos Humanos é urgente e muito importante através da educação ambiental adequada que demonstre a necessidade de se preservar esse bem tão precioso para a manutenção da vida na terra. Considerações Finais Pode-se concluir que o direito ao acesso a água potável realmente é um direito fundamental, visto que intimamente ligado ao direito à vida e a saúde. Desse modo, nada mais obvio que o correlacionar com o principio da dignidade humana, já que um leva a fruição do outro. A vida é o bem mais precioso que o homem possui e todos os elementos que a tornam possível são igualmente precioso e devem ser protegidos. É preciso que se forme uma educação ambiental adequada, que leve a conscientização das pessoas sobre a necessidade de preservação do meio ambiente para a própria existência humana, visto que sem o mesmo não é possível que o homem sobreviva na terra. Sem o acesso a água potável, ou seja, própria para consumo, não há como se assegurar que as pessoas terão uma vida saudável e, portanto, irão usufruir dos direitos que lhe foram estabelecidos. A busca por essa década da água, com um trabalho voltado para que as pessoas tenham acesso à mesma é uma questão de Humanidade, é uma necessidade vital. A conscientização para a não poluição dos rios é fundamental, mas também a criação de políticas públicas para que o fornecimento seja feito de forma igualitária é primordial. Trata-se de uma questão de estabelecimento de metas mundiais e nacionais, inclusive para o próprio Brasil, onde algumas regiões são constantemente castigadas pela ausência de água. Em nosso caso, em especial, a ausência de acesso seria facilmente resolvida se houvesse vontade política.  Com o reconhecimento da ONU de que o acesso à água é um direito humano fundamental, uma possibilidade se abriu de que as pessoas possam exigir tal atuação de seus governos, sendo certo que o seu não atendimento pode gerar uma punição, inclusive internacional.  O presente trabalho se torna essencial para uma reflexão das violações a dignidade da pessoa humana que vem sendo cometida por séculos, quando não se admite que pessoas tenham acesso a um bem fundamental a vida humana.
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A possibilidade de alteração do nome e sexo civil do transexual
O presente artigo tem a pretensão de expor um estudo sobre o transexualismo, trazendo a concepção de que o sexo é composto por um conjunto de fatores físicos, biológicos e psíquicos, onde se buscou trazer a lume a existência de um desajuste entre o sexo físico e o psíquico, ocasionando ao indivíduo portador desse transtorno da sexualidade sérias dificuldades de convivência em sociedade. Seu objetivo consiste em examinar o direito à identidade pessoal dos transexuais. O direito à identidade é uma espécie dos Direitos da Personalidade e tem o nome como elemento individualizador da pessoa humana e, no caso do transexual, além do nome, assume também relevância o direito à identidade sexual. Dentro deste tema, foi feita uma abordagem sobre a possibilidade de realizar a cirurgia de redesignação sexual do transexual, a retificação de seu nome e sexo no Cartório de Registro Civil e demais documentos e de como deverá ser tratada a situação anterior no Registro Civil e na Certidão, levando-se em conta a inexistência de legislação brasileira apta a regulamentar a situação do transexual. Neste contexto, é trazido o posicionamento jurisprudencial acerca do tema, além de projeto de Lei que tramita nas Casas Legislativas. Busca-se, com este trabalho, expor a necessidade de debruçar-se na análise do problema do transexual quanto à retificação ou mudança do seu Registro Civil com o fim de preservar o seu bem-estar físico, psíquico e social e garantir ao transexual o livre e concreto exercício dos direitos e garantias fundamentais determinados na Constituição Federal.
Biodireito
Introdução O presente artigo origina-se de monografia inédita apresentada, em Junho de 2010, como requisito para obtenção do grau de bacharel em Direito pela Universidade Tiradentes, sob a orientação do professor Raimundo Giovanni, e aprovada com distinção e indicação para publicação pela banca. O tema escolhido foi fruto de experiência prática vivida durante o estágio desenvolvido na 5ª Promotoria de Justiça Distrital de Aracaju (Ministério Público de Sergipe). Foi tomando conhecimento de um processo no Fórum Integrados I, em Aracaju, que o tema veio à tona. O presente trabalho versa sobre a importância do direito à identidade pessoal dos transexuais. É sabido que os elementos individualizadores da pessoa humana são: o nome, o estado e o domicílio. O nome, em especial, identifica e individualiza um indivíduo dentro da sociedade. O direito à identidade pessoal é o direito que tem todo indivíduo de ser reconhecido em sociedade por denominação própria e está garantido pela Carta Magna e em Legislação Infraconstitucional. O referido direito caracteriza-se por ser um direito absoluto, imprescritível, irrenunciável, inalienável, impenhorável, intransmissível e personalíssimo. O direito à identidade é uma espécie dos Direitos da Personalidade e tem o nome como o principal elemento individualizador da pessoa humana e, no caso do transexual, além do nome, assume também relevância o direito à identidade sexual, que se traduz, neste caso, no direito de ser reconhecido pelo sexo e de acordo com a sua íntima convicção (sexo psicológico). Nesta obra, a temática da transexualidade, controvertida, atual e relevante no universo jurídico, é o objeto de estudo, onde serão apresentadas a sua definição, sua classificação, a diferença entre os demais fenômenos da sexualidade, também será visto em que se consiste à cirurgia, além disso, a possibilidade de alterar o nome e sexo no Registro Civil de Nascimento do transexual, submetido à cirurgia de redesignação sexual. Diante da ausência de uma legislação específica no Brasil, o que se objetiva é contribuir para o esclarecimento da questão, colacionando entendimentos doutrinários e jurisprudenciais atuais do assunto, analisando o problema do transexual quanto à retificação ou mudança do seu Registro Civil com o fim de preservar o seu bem-estar físico, psíquico e social e sua inserção na sociedade. Através de uma ampla pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, utilizando-se de metodologia crítica e hermenêutica, inúmeras reflexões foram tecidas, originando um olhar jurídico diferente acerca dos direitos dos transexuais, onde se perceberá, ao final desse estudo, que a cirurgia, per si, não dará a efetividade necessária aos direitos personalíssimos do transexual. Isso porque, haverá discordância entre o sexo morfológico (pós-cirurgia) e o sexo civil e será mostrado que, mesmo não existindo lei específica para os transexuais, compete ao Estado promover, através dos princípios da dignidade humana, da igualdade, da liberdade e do direito à saúde, o bem estar psicológico e físico desses cidadãos. 1. Transexualismo O cerne da discussão acerca do transexualismo, ou síndrome da disforia sexual ou do gênero, está em saber se seria possível à cirurgia de redesignação do sexo e se é possível ao juiz deferir a alteração do prenome e do sexo no Assento de Nascimento no Registro Civil do transexual e, mais ainda, como seria esse procedimento: seria feita uma averbação no Registro Civil antigo ou este seria cancelado e haveria a confecção de um novo. A temática provoca reflexos em várias áreas da Ciência, tais como, a Medicina, a Psicologia e o Direito. O direito à identidade pessoal e o direito à identidade sexual constituem direitos da personalidade inerentes à dignidade da pessoa humana, princípio basilar da Constituição Federal de 1988. O enfoque jurídico que se pretende aqui é mostrar a possibilidade do transexual exercer os seus direitos da personalidade, mesmo com a falta de lei brasileira para protegê-lo, através de esclarecimentos sobre a questão, colacionando entendimentos doutrinários e jurisprudenciais atuais sobre o assunto. Outras denominações são dadas ao transexualismo, tais como, transexualidade, neurodiscordância de gênero, trangeneralismo, hermafroditismo psíquico, ou síndrome da disforia sexual ou do gênero, etc., e é entendido pela Medicina e, em particular, pela Medicina Legal, como uma patologia da sexualidade humana, e, de acordo com Genival Veloso de França (2004, p.235), citando a definição de Roberto Farina (1982), é: “[…] uma pseudo-síndrome psiquiátrica, profundamente dramática e desconcertante, na qual o indivíduo se identifica com o gênero oposto. Trata-se, pois, de uma inversão psicossocial, uma aversão e uma negação ao sexo de origem, o que leva esses indivíduos a protestarem e insistirem numa forma de cura através da cirurgia de reversão sexual, assumindo, assim, a identidade do seu desejado gênero.” O ilustre Silvio Venosa observa que "o transexual não redesignado vive em situação de incerteza, angústia e conflitos o que lhe dificulta, senão impede de exercer as atividades inerentes aos seres humanos." (VENOSA, 2003, p. 223) A doutrinadora Aracy Augusta Leme Klabin (apud LACERDA, 2007, p.2) define da seguinte forma: “O transexual é um indivíduo, anatomicamente de um sexo, que acredita firmemente pertencer ao outro sexo. Essa crença é tão forte que o transexual é obcecado pelo desejo de ter o corpo alterado a fim de ajustar-se ao “verdadeiro” sexo, isto é, ao seu sexo psicológico” Pela Classificação Internacional de Doenças, o transexualismo é considerado um transtorno e é classificado pelo CID10 (F 64.0), como: “F64 – Transtornos da identidade sexual: F64.0 – Transexualismo – Trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado.” (grifo nosso) Assim, o transexualismo é considerado uma desordem da sexualidade, de ordem psicológica e médica, que se caracteriza por uma inversão da identidade de gênero do indivíduo, que conduz a uma neurose obsessiva, e se traduz em uma identificação psicológica oposta aos órgãos genitais externos e, além de um desejo compulsivo de modificação do sexo morfológico. A pessoa portadora desse transtorno rejeita o sexo original, não aceita manter relações sexuais com pessoa que possui o mesmo sexo psicológico que o seu e vive em constante estado de insatisfação. Há uma necessidade psicológica imutável de mudar o seu sexo morfológico. Segundo Berenice Dias (2009, p. 234), o processo de redesignação do sexo, “começa com o vertir-se como o outro sexo, passa por tratamento hormonal e terapêutico e impõe a realização de inúmeras cirurgias. Não é um processo passageiro. É a busca consistente de integração física, emocional, social, espiritual e sexual, conquistada com muito esforço e sacrifícios por pessoas que vivem infelizes e muitas vezes depressivas quanto ao próprio sexo.” O Dr. Harry Benjamin, um médico norte-americano, cuja especialidade era clínico geral e endocrinologia, mais tarde, veio a interessar-se por temas ligados à transexualidade. Então, em 1966, publicou sua obra de maior importância, O Fenômeno Transexual (BENJAMIN, 1966). Nesta obra, o termo “transexualismo” foi dito pela primeira vez. Nela, também, ele apresentou a “Escala” com os tipos de transexuais, classificando em: “TIPO I – Pseudo Travesti; TIPO II – Travesti Fetichista; TIPO III – Travesti Verdadeiro; TIPO IV – Transexual do tipo não-cirúrgico; TIPO V – Transexual Verdadeira (Intensidade Moderada); TIPO VI – Transexual Verdadeira (Alta Intensidade)” Outros cientistas classificam o transexualismo em primário e secundário, a exemplo da professora Aracy Augusta Leme Klabin (apud LACERDA, 2007, p. 4): “O transexual primário é um indivíduo anatomicamente de um sexo, que acredita firmemente pertencer ao outro, este indivíduo é obcecado pelo desejo de ter o corpo alterado a fim de ajustar-se ao verdadeiro sexo, isto é, ao sexo biológico.[…] O transexual secundário é completamente diferente do transexual primário, sendo que, o secundário aceita sua situação e seu corpo […]” O transexual é marcado por uma vida de frustrações, angústias, tendo que conviver com problemas na escola, no trabalho, na vida social, no lazer, nas suas relações familiares e amorosas, devido à falta da correta identificação entre o sexo biológico (real) e o psicológico (desejado), devido à pressão social que espera que seu comportamento seja de acordo com o sexo que aparenta ou o anotado em seu Registro Civil. Em decorrência, busca incessantemente o ajustamento jurídico do seu registro como forma de, finalmente, enquadrar-se perante a sociedade. Essa luta compreende duas fases: 1) a realização da cirurgia de correção do sexo; e 2) a posterior alteração do assento de nascimento. 2. Sexualidade humana: conceitos e diferenças A palavra “sexo” possui duas acepções diferentes: a) é o ato sexual propriamente dito e b) é o gênero (masculino e feminino) que define a pessoa morfologicamente considerada, de acordo com o tipo genital externo. O sexo é uma categoria anatômico-biológica e o gênero é uma categoria histórico-cultural. O papel do gênero é a expressão pública da identidade. Para a Psicologia, sexo e sexualidade não se confundem. A sexualidade possui um sentido amplo, enquanto o sexo, um sentido restrito. O sexo conota um ato fisiológico. A sexualidade conota a totalidade do ser humano, é um conceito mais complexo que leva em conta aspectos físicos, religiosos, jurídicos, psico-emocionais e sócio-culturais relativos à percepção e controle do corpo, ao exercício do prazer-desprazer, valores e comportamentos afetivos e sexuais. (FAFIBE, 2010) A transexualidade é um fenômeno da sexualidade humana que gera efeitos na determinação do sexo, pois seu objetivo principal é adequar o seu sexo físico ao sexo psíquico, através da cirurgia corretiva de sexo. 2.1. Sexo biológico, sexo psicológico e sexo civil Para se compreender a transexualidade é preciso entender como se estabelece a sexualidade humana. Esta resulta de uma combinação de elementos: 1) o sexo biológico – formado pelo sexo morfológico, sexo genético e sexo endócrino (DIAS, 2009, p. 232): a) sexo morfológico ou somático resulta da soma das características genitais (órgão genitais externos, pênis e vagina, e órgãos genitais internos, testículos e ovários) e extragenitais somáticas (caracteres secundários – desenvolvimento de mamas, dos pêlos pubianos, timbre de voz, etc.); b) sexo genético ou cromossômico é responsável pela determinação do sexo do indivíduo através dos genes ou pares de cromossomos sexuais (XY – masculino e XX – feminino) e; c) sexo endócrino é identificado nas glândulas sexuais, testículos e ovários, que produzem hormônios sexuais (testosterona e progesterona) responsáveis em conceder à pessoa atributos masculino ou feminino. 2) o sexo psicológico – formado pela convicção íntima do indivíduo de pertencer a um determinado sexo. Pode ser: psicossexual, que é o sentimento individual, intrínseco, do gênero sexual a que se pertence; ou psicossocial (sexo de criação), que é o resultado da combinação de fatores genéticos, fisiológicos e psicológicos que se forma dentro do meio onde o indivíduo se desenvolve. (DIAS, 2009, p. 249) 3) o sexo civil ou jurídico ou legal – é aquele que consta no Registro Civil das Pessoas Naturais, determinado pelo critério do sexo biológico, de acordo com a apresentação de sua genitália externa, atribuindo à pessoa a designação de pertencer ao sexo masculino ou feminino. (DIAS, 2009, p. 232) 2.2. Classificação dos fenômenos da sexualidade Antes de diferenciar o transexualismo dos outros paradigmas da sexualidade, mister se faz explicar o que seja identidade sexual, orientação sexual e comportamento sexual. A identidade sexual é o conjunto de características sexuais que diferenciam uma pessoa das outras e que se expressam pelas preferências sexuais, sentimentos ou atitudes em relação ao sexo. É a percepção individual sobre o gênero (masculino ou feminino), que a pessoa tem para si mesma (sexo psicológico). Nem sempre está de acordo com a genitália da pessoa. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 29-30) A orientação sexual ou opção sexual ou preferência sexual é a atração afetiva e/ou sexual que uma pessoa sente pela outra. Ela indica qual o gênero (masculino e feminino) que uma pessoa se sente preferencialmente atraída fisicamente e/ou emocionalmente. A orientação sexual homossexual foi removida da lista de doenças mentais nos Estados Unidos, em 1973, e do CID 10 (Clasificação Internacional de Doenças) editado pela OMS, Organização Mundial da Saúde, em 1993. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 29-30) O comportamento sexual humano compreende o repertório de experiências e práticas sexuais. É construído a partir de modelos e padrões de condutas. É determinado por três fatores: a) herança genética, que caracteriza biologicamente o indivíduo; b) fator social, composto por influências da sociedade (educação, família) sobre o indivíduo; c) fator psicológico, formado pelos mecanismos psíquicos inconscientes. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 29-30) Com base nas explicações de Tereza Vieira (2008, p.218-220) e do Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB (2004, p. 29-30), do Conselho Nacional de Combate à Discriminação do Ministério da Saúde, a seguir será descrita a diferença entre os transexuais e os outros fenômenos da sexualidade. a) Homossexuais: são aqueles indivíduos que têm atração sexual e afetiva por pessoas do mesmo sexo. Por entender que depende da orientação sexual e que não se trata de doença, o Conselho Federal de Medicina em 1993, retirou a homossexualidade do rol da Classificação Internacional de Doenças (CID). A diferença entre o transexual e o homossexual é que este está satisfeito com o seu sexo biológico, com a sua genitália de origem, não deseja adequar o seu sexo, sente-se homem (homossexual masculino), por exemplo, e tem como parceiro um outro homem. O transexual masculino, considera-se mulher, não está satisfeito com o seu sexo biológico e tem como parceiro um homem, vendo essa relação como heterossexual. b) Bissexuais: são indivíduos que se relacionam sexual e/ou afetivamente com homens e mulheres. Seu comportamento sexual é voltado para ambos os sexos. c) Travestis: são pessoas que, como forma de obter prazer pessoal e sexual, fazem uso de roupas, maneirismos e atitudes do sexo oposto. Tanto podem ter comportamento homossexual como heterossexual. O travesti não sente repulsa por seu órgão sexual externo como o faz o transexual, este não aceita pertencer àquela fisionomia do seu sexo biológico e não admite ser tocado. Apesar de vestir-se como alguém de outro gênero sexual e, muitas vezes, fazer modificações em seu próprio corpo, como no caso de travesti homem que se transforma em mulher (que implanta próteses de silicone nos seios, deixa o cabelo crescer, ingere hormônios femininos), o travesti admite utilizar-se da genitália para obter prazer durante o sexo, admite ser tocado nesta parte do corpo (OLIVEIRA, 2001). d) Hermafroditas: também chamadas de intersexuais ou sexo dúbio. São pessoas que possuem órgãos sexuais dos dois sexos. O indivíduo possui a genitália externa e/ou a genitália interna indiferenciadas. São indivíduos que possuem, simultaneamente, os órgãos sexuais internos e externos. São geneticamente de uma forma e o seu órgão sexual externo é de outra. Alguns médicos e psicólogos afirmam que o transexual é uma espécie de hermafrodita psíquico. e) Transexuais: são pessoas que não aceitam o sexo morfológico de origem. Sendo o fator psicológico predominante na transexualidade, o indivíduo possui genitália externa e interna de um único sexo, mas identifica-se com o sexo oposto. O transexualismo, como já dito, é considerado um transtorno e é classificado pelo CID10 (F 64.0). 3. A cirurgia de transgenilização ou de redesignação sexual O indivíduo portador, após o diagnóstico de transexualismo, necessita de tratamento para que tenha equilíbrio entre o psíquico e físico, para gozar de saúde e bem-estar. Em tese, teria duas opções: a psicoterapia, para adaptar o sexo psicológico ao anatômico ou o inverso. A psicoterapia é ineficaz para os casos de transexuais verdadeiros. Suas gônadas (ovários e testículos), órgãos que produzem células sexuais necessárias para a sua reprodução, tem histologia normal, porém atrofiadas pela incidência de hormônios do sexo oposto, ou produzidos pelo próprio corpo ou aplicados. Ou a cirurgia de redesignação de sexo, considerando que o seu distúrbio psíquico possui caráter permanente e imutável. Até agora, esta é a única comprovadamente bem-sucedida.A cirurgia é complexa e irreversível, como será, sucintamente, descrita mais adiante. Antes de ser realizada, o processo de correção de sexo começa da seguinte maneira: o paciente é analisado por uma equipe multidisciplinar de profissionais especializados no assunto e é feita uma avaliação do diagnóstico onde se emite pareceres e laudos, a seguir o paciente recebe tratamento psicoterápico, analisa-se a experiência de vida real, se preciso é feito um tratamento com hormônio e, por fim, a cirurgia. Vale registrar que a primeira cirurgia realizada no Brasil foi em 1971, pelo cirurgião plástico Roberto Farina. A operação corretiva é do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e/ou procedimentos complementares sob gônadas e caracteres sexuais secundários. A neocolpovulvoplastia (autorizada em hospitais públicos ou privados) é uma cirurgia composta de duas etapas. Na primeira, há ablação do pênis e são retirados os testículos do paciente, após, faz-se uma cavidade vaginal. Na segunda etapa é realizada a constituição plástica, com a pele do saco escrotal são formados os lábios vaginais. (LACERDA, 2007, p. 9-10) A neofaloplastia (autorizada em hospitais em hospitais públicos ou universitários) é o procedimento cirúrgico no qual um pênis é construído a partir de um tecido sensível retirado do próprio corpo, como o antebraço. A pele do antebraço, então é anexada à região vaginal juntamente com os seus nervos, artérias e veias e formado em torno de um cateter de tubo plástico, que servirá como a uretra e, dessa maneira, permitir a micção, uma vez que foi conectado à uretra feminina. Além da uretra, são formados o eixo e a glande (cabeça). Os nervos do clitóris estão ligados aos nervos enxertados e vai crescer dentro do pênis após a cirurgia. A pele e o tecido dos lábios vaginais são usados para criar um escroto. Apesar disso tudo, não há garantia de que a aparência e o funcionamento do novo órgão serão normais ou razoáveis. (LACERDA, 2007, p. 10-11) 3.1. Critérios No Brasil não há previsão legal para que as intervenções cirúrgicas corretivas sejam realizadas em transexuais. O Conselho Federal de Medicina reconheceu essa cirurgia como correta e adequada para adequação de sexo e libera eticamente aos médicos a realização da operação desde 2002, quando expediu a Resolução nº. 1.652/02, estabelecendo os critérios de definição do transtorno e os critérios para realização da cirurgia, nos arts. 3º e 4º:  “Art. 3º – Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados: 1) Desconforto com o sexo anatômico natural; 2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; 3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos; 4) Ausência de outros transtornos mentais.” “Art. – 4º Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo os critérios abaixo definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto: 1) Diagnóstico médico de transgenitalismo; 2) Maior de 21 (vinte e um) anos; 3) Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.” A avaliação é por dois anos, nesse tempo o paciente recebe terapia psicológica, a depender, aplica-se hormônios e a equipe multidisciplinar ao constatar que o quadro é irreversível, autorizará a cirurgia. A equipe multidisciplinar é formada por médico, cirurgião plástico, endocrinologista, psiquiatra, neurologista, além de psicólogos e assistentes sociais, que acompanham o paciente durante dois anos. Essa cirurgia pode ser realizada em hospitais públicos ou universitários ou hospitais privados. Inclusive, pelo SUS (Sistema Único de Saúde – Portaria nº. 1.707 de 20/08/2008). O art. 4º, item 2, da Resolução supramencionada exige que o paciente tenha 21 anos para ingressar no tratamento. Ela é de novembro de 2002 e não levou em consideração que a lei civil, publicada em janeiro de 2002 e em vigor desde 2003, estabeleceu que a maioridade civil ocorre aos 18 anos. A cirurgia leva em conta, ainda, a possibilidade de disposição do corpo humano e o consentimento válido do paciente (capacidade de discernir, maioridade). 3.2. Integridade física e responsabilidade médica Para alguns julgadores, a cirurgia de adequação do sexo biológico ao sexo psicológico do transexual violaria o princípio da indisponibilidade do corpo humano, por considerá-la mutilante, e o médico cometeria, então, o crime do art. 129, §2º, III, do Código Penal Brasileiro (VIEIRA, 2008, p. 241), que preceitua:  “Art. 129 – Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.[…] § 2º – Se resulta:[…] III – perda ou inutilização de membro, sentido ou função;[…] Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.” (grifo nosso) Este foi o crime que o cirurgião plástico Roberto Farina foi condenado pelo juiz a quo por realizar a cirurgia de redesignação em Waldir Nogueira (Waldirene), em 1971, a primeira no Brasil. Porém, o Tribunal de Alçada Criminal, da 5ª Câmara, de São Paulo o absolveu, por votação majoritária, em 1979, com o argumento de que o médico não agiu com dolo, querendo provocar um dano ao corpo do paciente (mutilá-lo), mas sim pretendia curá-lo ou reduzir o seu sofrimento físico ou mental. O médico praticou o ato no exercício regular de um direito (art. 23, III, do Código Penal). Analisando o princípio da indisponibilidade do corpo humano que está inserido no direito à integridade física, espécie dos direitos da personalidade, verifica-se que se trata de uma proteção jurídica do corpo humano, vivo ou morto, abrangendo tecidos, órgãos e partes separáveis (CHAVES; ROSENVALD, 2007, p. 118-122). O indivíduo que desrespeita a incolumidade corporal de outrem, desrespeita a norma constitucional, em conseqüência responde, na seara penal, por crimes contra a vida e por lesão corporal (arts. 121 a 129, do Código Penal). Entretanto, a Constituição Federal demonstra que esse princípio não é absoluto quando preceitua no seu art. 199, § 4º: “Art. 199 – […] § 4º – A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.” (grifo nosso) Dessa forma, a Constituição Federal de 1988 admite atos de disposição do corpo, de forma gratuita e para fins de tratamentos terapêuticos ou pesquisa científica, nos limites legais estabelecidos. A legislação Civil demonstra exatamente essa indisponibilidade relativa, no seu art. 11 e no Enunciado 4, da I Jornada de Direito Civil (2002): “Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.” (grifo nosso) “Enunciado 4 – Art.11: o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral.” (grifo nosso) Assim, admite-se a disponibilidade do corpo pelo titular desde que não seja em caráter absoluto, permanente, genérico, violando a dignidade do titular. Seguindo a análise na lei civil, os seus arts. 13 e 14, do Código Civil e o Enunciado 6, da I Jornada de Direito Civil (2002), preceituam: “Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. […]” (grifo nosso) “Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.” “Enunciado 6 – Art. 13: a expressão “exigência médica” contida no art. 13 refere-se tanto ao bem-estar físico quanto ao bem-estar psíquico do disponente.” (grifo nosso) Dessa “exigência médica” infere-se que deve haver pareceres médicos e psicológicos indicando e autorizando a realização da cirurgia. A interpretação literal do artigo 13, do novo Código Civil, proíbe a cirurgia de mudança de sexo, problema este solucionado diante do Enunciado 6 da Jornada de Direito Civil. Adiante, no art. 15, do Código Civil Brasileiro está estabelecido, expressamente, que é vedada a realização de qualquer tratamento médico ou intervenção cirúrgica que possa trazer risco para a pessoa, sem o seu consentimento, é o chamado consentimento informado, esclarecido (CHAVES; ROSENVALD, 2007, p. 119): “Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.” O Código de Ética Médica (definido pelo Conselho Federal de Medicina, através da Resolução 1.246/88), lei infraconstitucional, no Capítulo V, ao regular a relação de médico com pacientes e familiares, proíbe-o de práticas terapêuticas menosprezando a vontade de seu paciente, descrito no art. 56: “É vedado ao médico: Art. 56. ‘Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida’” (grifo nosso) O que se observa, é que há um conflito entre o interesse no progresso da Medicina e o de integridade da pessoa humana. Ambos são, simultaneamente, interesses da coletividade e do indivíduo. Devem ser analisados tanto sob o ponto de vista Direito, quanto sob o ponto de vista da Medicina, na busca da solução mais adequada. O limite para a utilização do corpo humano, seja para experiência científica, seja para conduta médica terapêutica para curar ou aliviar o sofrimento, leva em consideração, necessariamente, a possibilidade de disposição do corpo humano, parcial ou totalmente e o consentimento válido do sujeito na utilização do seu próprio corpo. Além disso, a disponibilidade do corpo humano é limitada pela proporção entre o interesse individual ofendido (dano ao corpo) e a potencial vantagem psicológica e social esperada (harmonização). Seguindo essa linha de raciocínio, o consentimento do sujeito de direito à integridade física tem validade limitada em sua expressão, conteúdo e extensão. Pois, só é válido o consentimento: obtido sem vícios na manifestação da vontade (vícios advindos de coação, fraude, dolo ou simulação); o sujeito deve estar esclarecido sobre o procedimento da cirurgia e de todas as circunstâncias e fatos de determinada situação jurídica, para que possa validamente manifestar-se; deve ter capacidade de compreender os fatos, discernir e manifestar-se de modo livre e espontâneo. A professora Tereza Vieira (2008, p. 243) entende que nem o médico, a família ou o representante do paciente transexual podem suprir a manifestação de vontade deste para a realização da operação. Assim, a necessidade terapêutica e o consentimento válido do paciente transexual derrubam a tese de que a cirurgia violaria o princípio da indisponibilidade do corpo humano e o direito à integridade física, pois não há dolo por parte do médico, não é intenção dele mutilar o paciente transexual, mas de curar ou amenizar o sofrimento deste paciente. 4. Possibilidade de alteração no Registro Civil do transexual O direito à identidade pessoal é o direito do indivíduo de ser conhecido como ele é. Neste direito está o direito do transexual de realizar a cirurgia de adequação de sexo com a finalidade de se buscar a sua real identificação. A adequação do sexo implica na mudança de prenome para adequar ao seu sexo real. O exercício completo da cidadania do transexual não se obtém somente com a correção cirúrgica do sexo, resta, ainda, a autorização para adequar os registros civis desses indivíduos. 4.1. Possibilidade de alteração do prenome e do estado sexual no Registro Civil O portador de transexualismo encontra dificuldades de inserção social, seja no aspecto familiar ou profissional, em decorrência da sua não identificação sexual. A sociedade, através do preconceito, ridiculariza-o e coloca-o à margem dela. O Direito deve garantir a essas pessoas condições para uma vida digna, o que somente é possível, segundo a Medicina, com a adequação do sexo biológico ao psicológico do transexual e, segundo este, a conseqüente retificação do seu Registro Civil. Com base nisso, verifica-se que a luta pela inserção social do transexual tem dois momentos: 1) a realização da cirurgia; e 2) a posterior alteração do assento de nascimento. No Brasil, a falta de norma jurídica específica para proteger o desenvolvimento pleno do transexual como ser humano possuidor de personalidade só faz agravar a sua situação desconfortante. O direito a adequação do sexo do transexual, para a maioria dos doutrinadores e pela jurisprudência atual, encontra respaldo na Constituição, nos princípios da dignidade da pessoa humana e da cidadania, nos direitos da personalidade, tais como, direito à vida, direito à liberdade, direito à igualdade, direito à saúde, direito à identidade pessoal, além da Lei de Introdução do Código Civil (art. 4º) e na Lei de Registros Públicos. A Constituição Federal de 1988 tem como princípio nuclear a dignidade da pessoa humana que, segundo Cristiano Chaves (2007), é a cláusula geral de proteção e desenvolvimento da personalidade do indivíduo que assegura ao cidadão que direcione sua vida íntima de maneira que melhor lhe convir, permitindo-lhe receber respeito do Estado e dos demais cidadãos. A Constituição garante a cidadania, o direito a ter direitos, de votar e ser votado e não se pode ter cidadania onde há um conflito entre o seu ser e o dever ser social. O tratamento igualitário que deve ser dado ao transexual deve pautar-se no não impedimento a cirurgia e o não impedimento a alteração no seu Registro Civil, segundo o ideal de Justiça, dando a cada um o que é seu por direito. Ato contínuo, a cirurgia de redesignação de sexo reintegra o indivíduo à sociedade, permitindo que ele tenha, enfim, o direito à saúde (direito social), indispensável ao desenvolvimento da personalidade, disposto nos arts. 6º e 196, da Constituição Federal, estabelecendo:  “Art. 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (grifo nosso) “Art. 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (grifo nosso) O direito à saúde é o elemento incentivador do direito da adequação do sexo e do prenome do transexual. A falta de identidade adequada do transexual provoca desajuste psicológico, não se podendo falar em bem-estar físico, mental e social. É através da cirurgia e da adequação do sexo e do nome no Registro Civil de Nascimento que o transexual terá estabilidade psicológica. Importante registrar que, a cirurgia de adequação de sexo só ocorre por exigência médica, conforme preceituam o caput do art. 13, do Código Civil Brasileiro e o Enunciado nº. 276 da IV Jornada de Direito Civil (2007), do Conselho de Justiça Federal: “Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.” (grifo nosso) “CJF, Enunciado Nº. 276.: Art. 13: O art. 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a conseqüente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil.” (grifo nosso) Tais cirurgias que modificam o sexo do transexual são consideradas intervenções terapêuticas, essenciais a saúde, porém, sem autorização escrita, o cirurgião não realiza a cirurgia. Por outro lado, a cirurgia independe de autorização judicial, por se tratar de um direito à saúde e já estar em vigor na Resolução do Conselho Federal de Medicina. O transexual não precisa ingressar com ação em juízo para obter autorização para realizar a cirurgia, por ser a questão de competência da área da saúde, resolvendo-se de acordo com os princípios éticos. No Registro Civil estão escriturados os fatos importantes da vida do indivíduo: nascimento, casamento e suas alterações e morte. De acordo com a Lei de Registros Públicos (LRP), em seu artigo 1º, a finalidade dos serviços concernentes aos Registros Públicos é a autenticidade, a segurança, a publicidade e a eficácia dos atos jurídicos. Há que se ressaltar a oponibilidade “erga omnes” dos atos registrados.  (CENEVIVA, 2009, p. 3-6). O Registro Civil de Nascimento da pessoa natural dota de formalidade e publicidade aquele fato jurídico que é o nascimento com vida, início da personalidade civil. Com isso, apresenta o indivíduo à sociedade, dando eficácia à sua personalidade. Neste sentido, sua natureza é declaratória, pois o ser humano não precisa do Registro Civil para receber a sua qualidade de pessoa. Ele se presta a fazer prova segura, certa e correta do estado da pessoa. Alguns juristas negavam a possibilidade de alteração do estado sexual, muitos eram os argumentos, e um deles é o do art. 1.604, do Código Civil: “Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.” (grifo nosso) A norma coloca o erro como exceção à imutabilidade do estado. Uma interpretação que poderia ser dada é no sentido de que a cirurgia de redesignação sexual, como tratamento terapêutico, veio a gerar, após sua realização, um erro no registro. Na acepção vulgar de erro, poderia dizer que aquele registro não corresponder à realidade. É um fato superveniente que, estando a situação anterior registrada, produz um erro de registro do estado atual. Nesse momento, faz-se necessário tecer comentários acerca do estado individual, onde se enquadra o sexo (status sexual). O estado individual, em geral, é atributo da personalidade. O registro gera a presunção relativa do estado da pessoa. É ele que reveste as situações jurídicas da pessoa, perante a sociedade, de oponibilidade “erga omnes”. Contudo, em determinados casos, a realidade jurídica não retrata a realidade fática e, por isso, existem as ações de estado, que objetivam tanto criar, modificar ou extinguir um estado, neste caso, a sentença será constitutiva, como reconhecer um estado pré-existente, o guarnecendo de eficácia jurídica – aqui, a sentença será declaratória. (TRAVAGLIA, 2005, p. 3) No caso do transexual, ao nascer e ser registrado, o Oficial lança o seu sexo, no livro de Registro Civil, classificado segundo o seu órgão genital externo como pertencente a um dos sexos, ou feminino ou masculino. Este sexo, assentado em registro público, é o sexo civil, que é o levado em conta no ordenamento jurídico brasileiro. Porém, neste momento, abre-se um parêntese, para chamar atenção ao fato de que a avaliação da fisionomia não é a única forma para a determinação do sexo de um indivíduo, conforme explicitado anteriormente neste capítulo. A averiguação do status sexual ou do sexo da pessoa requer a conjugação dos aspectos biológico, psíquico e comportamentais (DIAS, 2009, p. 231-232). Somente o conjunto desses aspectos será capaz de apontar com maior fidelidade e compromisso a qual dos dois sexos pertence a pessoa. A regra, contudo, é que os três aspectos correspondam revelando uma identidade sexual, mas esta convergência harmônica pode não ocorrer. Com os transexuais isso não acontece. Verifica-se, então, que a principal inadequação é a realidade dos fatos com a realidade jurídico-formal. É através do Registro Civil que a pessoa ingressa no mundo jurídico, disposto a conferir segurança e estabilidade nas relações jurídicas e que marca o indivíduo em sua vida social. Se o registro tem publicidade, segurança, autenticidade e eficácia, não existe, observando a situação do transexual, principalmente se operado, o reconhecimento social do seu estado. A identidade sexual transcende o aspecto morfológico, encontra-se no campo da identificação psíquica de se pertencer a determinado gênero sexual que se externa, de acordo com as suas íntimas convicções e comportamento sexual. O Direito é uma Ciência Social, devendo sempre estar em marcha, assim, não pode o operador do Direito ignorar as informações fornecidas por médicos, psicólogos, sociólogos e antropólogos, pois elas enriquecem o seu raciocínio. Levando em consideração a tríade dignidade-solidariedade-igualdade e sendo a pessoa humana o bem jurídico primeiro a ser protegido pelo Estado, o magistrado deve dar efetividade, limitada pelos princípios constitucionais, às normas, captando sempre o espírito da lei, sem apegar-se inteiramente à interpretação literal da lei. Se assim não for, o Direito se desviará da justiça e pode inviabilizar a operacionalização do Direito. Não há lei brasileira que acolha expressamente o pedido de adequação do sexo e do prenome do transexual no Registro Civil. A falta de previsão legal expressa não é motivo suficiente para que os julgadores recusem os avanços da Medicina. A doutrina majoritária vem entendendo que o pedido de alteração feito pelo transexual operado deve ser acolhido. A jurisprudência a partir da metade da década de oitenta vem julgando procedentemente o pedido de adequação no Registro Civil do transexual redesignado. A jurisprudência e a doutrina, como por exemplo, os doutrinadores Cristiano Chaves (2007, p. 123-126), Tereza Vieira (2008, p. 258) e Berenice Dias (2009, p. 238-240), se posicionam favoravelmente a alteração do prenome do transexual operado, com base no art. 55, parágrafo único (exposição ao ridículo, mesmo que o ridículo seja resultante de fato superveniente, o operador do Direito lança mão desse artigo), no art. 57 (mudança de sexo e nome é caso excepcional e justifica a alteração), no art. 58 (apelidos públicos notórios, quando uma pessoa é reconhecida publicamente por um prenome diverso ao que consta do seu Registro Civil. É uma regra geral que possibilita a extensão para o caso do transexual). Todos estes artigos são da Lei de Registros Públicos, pois o Registro Civil deve espelhar a realidade. Em virtude de haver a possibilidade de alteração no Registro Civil do transexual, grandes polêmicas surgem, uma delas é a seguinte: deve ou não o Judiciário autorizar a alteração do prenome e do sexo ou só o prenome de transexual não operado? Essa situação é a do transexual que não realizou a operação por temer uma cirurgia mal realizada, não tiver condições físicas para realizá-la ou não possua condições financeiras para custeá-la. Há doutrinadores e jurisprudência que entendem que, em se tratando de transexual feminino, por ser a neofaloplastia complicada e por não garantir a funcionalidade do membro inserido, deve sim o juiz permitir a alteração do prenome e do sexo, independente da realização da cirurgia. (Vieira, 2008, p. 264-265) Outrossim, outra polêmica rende calorosas discussões: deve-se averbar o novo prenome e o sexo no Registro Civil antigo ou a produção de um novo Registro? A solução jurídica não é simples de ser alcançada, tendo em vista ter que atender aos interesses do transexual e proteger os interesses de terceiros. O passado do transexual não pode ser ignorado, inclusive para comprovar o seu passado escolar e profissional. A cirurgia de adequação do sexo não culminou com a morte real do indivíduo, assim, continua sujeito de direitos e obrigações. O cancelamento do registro anterior e a confecção de um registro totalmente novo não parece ser a decisão mais acertada, pois os direitos dos transexuais e de terceiros estariam assegurados se somente no livro do Cartório de Registro Civil constasse a alteração ocorrida, através de averbação, por tratar-se de ação modificadora do estado da pessoa. (VIEIRA, 2008, p. 262-263). Na nova Certidão de Nascimento é mais sensato que não se faça nenhuma referência à aludida alteração, para que não conste na Carteira de Identidade, CPF, Passaporte, Carteira de Trabalho, etc. A alteração poderá vir na Certidão de inteiro teor, pois são pedidas apenas pelo interessado ou autoridade competente. 4.2. Jurisprudência Na década de setenta e na década de oitenta, algumas decisões eram contrárias ao pedido de alteração do prenome e do sexo do transexual, principalmente por considerar que a cirurgia teria um caráter mutilador e que não altera a situação biológica, o seu código genético. A imputação de um caráter mutilador, ao invés de transformador, à cirurgia de redesignação é que embasava a imutabilidade do registro. A ementa deste acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) exemplifica:  “EMENTA: Registro Civil. RETIFICACAO DE ASSENTO DE NASCIMENTO. ALTERACAO DE SEXO. MUTILACAO CIRURGICA CONSISTENTE NA EXTIRPACAO DA GENITALIA EXTERNA COM A FINALIDADE DE AJUSTAMENTO A TENDENCIA FEMININA. PERSISTENCIA DAS CARACTERISTICAS SOMATICAS QUE INFORMARAM O ASSENTO. IMPOSSIBILIDADE DE MUDANCA DE SEXO PARA SOLUCIONAR CONFLITO DO PSIQUICO COM O SOMATICO. PRELIMINAR REPELIDA. SENTENCA DESCONSTITUIDA. RECURSO PROVIDO.” (TJRS – Apelação Cível Nº. 585049927, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Mário Rocha Lopes, Julgado em 19/12/1985) (grifo nosso) O julgamento que mais chamou a atenção no Brasil foi o de Roberta Close. Ela realizou a cirurgia corretiva, na Inglaterra, em 13.08.1989 e entrou com a ação em 1991 e o pedido foi indeferido em 1994. Neste primeiro processo, a Juíza deferiu o pedido de alteração do prenome e sexo, determinando, porém, que fosse discriminado, ao lado do sexo feminino, entre parênteses, a palavra “operada”. No entanto, recorreu o Ministério Público de tal sentença e, devido à reforma da decisão de primeira instância, o seu pedido sucumbiu, por força do não conhecimento do Agravo de Instrumento, interposto em face da decisão que inadmitiu Recurso Extraordinário ao Supremo Tribunal Federal (STF), por ausência de prequestionamento da matéria constitucional alegada. Após 10 anos, em 2001, Roberta buscou novos advogados para atingir seu objetivo de retificar os documentos e, finalmente, em 2005, foi reconhecido o estado sexual feminino de Roberta Gambine Moreira, conhecida publicamente como Roberta Close. Com a averbação da retificação do nome e do sexo no registro de nascimento, pôde trocar seus documentos. Destaca-se o trecho da juíza responsável pela sentença que lhe outorgou a vitória na luta pela adequação do prenome e do sexo, que esclarece: “esta ação é diversa daquela promovida em 1991 por possuir nova causa de pedir e se fundamentar em diagnósticos resultantes de recentes descobertas médicas”. (VIEIRA, 2008, p. 287-296) Realizando uma pesquisa jurisprudencial sobre a possibilidade de alteração, são encontrados diversos posicionamentos acerca do deferimento ou indeferimento da pretensão de retificação de prenome e sexo do transexual operado. Existe uma tendência à uniformização de entendimentos no sentido de acolher o pedido, mas a falta de legislação específica conduz a jurisprudências em sentido diversos. Vale transcrever, por oportuno, a ementa do acórdão do TJSP, que decidiu reformar a sentença do Juiz a quo, quanto ao prenome e sexo do Apelante, decidindo por sua alteração, e o voto divergente: “EMENTA: APELAÇÃO – Retificação de Registro Civil – Transexual que se submeteu à cirurgia de adequação ao sexo feminino – Obediência ao princípio da dignidade da pessoa humana – Harmonização dos direitos e garantias fundamentais com a segurança jurídica e a verdade registraria – Modificação de nome e sexo que, no entanto devem ser processadas pela via da averbação, para que se preserve a continuidade do Registro Civil e os direitos de terceiro – Recurso provido.” “Declaração de voto parcialmente divergente. Divirjo da douta maioria em relação à retificação do sexo do apelante junto ao Registro Civil,ainda que derivada de singela averbação. O requerente, pese a submissão â cirurgia de redesignação sexual, ainda pertence ao gênero masculino. A retificação pretendida afrontaria a autenticidade do registro exigida pelo artigo 1º da Lei n. 6.105/73. Prevalece a identidade biológica do apelante;, que é imutável. Nesse sentido, o entendimento que adotei no julgamento da Apelação Cível n. 440.843.4/0, de São Paulo, voto vencido. Isto posto, com a devida vênia, mantenho o indeferimento do pedido quanto à alteração do sexo do apelante junto ao Registro Civil, desprovendo o recurso no referido ponto. Donegá Morandini/Juiz" (TJSP – 3ª Câmara de Direito Privado – Apelação Cível n. 994.08.04577-8 – da Comarca de Guarulhos – Data do julgamento: 23/02/2010)” (grifo nosso) Vale registrar que vários projetos de Lei aguardam votação no plenário, na tentativa de esclarecer a licitude da cirurgia e a modificação no Registro Civil do prenome e sexo. O Projeto de Lei nº. 70-B, de 1995, de autoria do Deputado José Coimbra, é um deles. Este projeto pretende acrescentar um parágrafo ao artigo 129 (lesões corporais), do Código Penal, estabelecendo excludente do crime a operação destinada alterar o sexo, bem como o acréscimo de dois parágrafos ao art. 58, da LRP, possibilitando a alteração do prenome no caso da alteração do sexo, mediante autorização judicial e averbação no registro de nascimento e no documento de identidade de que se trata de um transexual, só que tal averbação viola o art. 5º, X, da Constituição Federal. 4.3. Procedimento Na doutrina e, principalmente, na jurisprudência, há uma grande discussão quanto ao juízo competente, tipo de procedimento e a via processual (o tipo de ação) a ser usada para o caso de alteração de prenome e sexo do transexual. A doutrina, a Lei de Introdução do Código Civil (art. 4º) e o art. 126, do CPC, ensinam que, em caso de lacuna na lei, o juiz deve utilizar a analogia, os costumes, os princípios gerais de direito e a eqüidade, como se vê nos artigos supramencionados: “Art. 4o – Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. (grifo nosso) “Art. 126 – O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.” (grifo nosso) No caso concreto, o fato social, como transexualismo, não pode ficar sem amparo jurisdicional. O procedimento a ser seguido é o especial da jurisdição voluntária, arts 1.103 a 1.111, do Código de Processo Civil, ouvido o representante do Ministério Público (fiscal da lei, art. 82, II, Código de Processo Civil), sob pena de nulidade. A sentença que alterar o prenome e o sexo é declaratória e tem efeito “ex nunc”. Quando a alteração for somente do prenome no Registro Civil, serão aplicadas as regras gerais de procedimento para alteração de prenome (VIEIRA, 2008, p.254). E a ação será a Ação de Retificação de Registro Civil. Geralmente, a jurisprudência, vem utilizando como argumento, para a mudança de prenome, os arts. 55, parágrafo único (por exposição ao ridículo), art. 57 (por exceção e motivadamente) e art. 58, caput (por apelido público notório), da Lei de Registros Públicos (Lei nº. 6.015/73). No entender de Tereza Vieira (2008, p. 249), havendo a possibilidade de alteração do prenome utilizado anteriormente não deve obrigatoriamente ser transformado do gênero feminino para o masculino e vice-versa. A não ser que o requerente queira que seja assim. Acrescenta, ainda, a ilustre professora, que o novo prenome deve ser escolhido livremente, evitando a homonímia e a exposição ao ridículo. O ridículo aqui está no fato da desconformidade da aparência física e psíquica com o exarado na documentação legal. O nome deve existir para identificar de forma correta e perfeita a pessoa humana e não o contrário. Quando bem aparelhada a petição inicial com pareceres médicos e psicológicos, juntamente com outras provas robustas, os julgadores tem acolhido o julgamento antecipado da lide, não havendo necessidade de perícia. Caso o juiz não tenha formado o seu convencimento através dos documentos acostados aos autos, pode ele requerer uma audiência de justificação, para colher o depoimento pessoal do interessado. A Jurisprudência tem entendido que quando se trata de alteração de prenome por entender que é um procedimento administrativo por se tratar de mera adequação o registro ao fato, a competência da Vara Especializada de Registros Públicos, quando esta existe, assim se conduz a Justiça da Bahia e de São Paulo, do contrário a Competência é da Vara de Família. Quando for alteração do sexo no Registro Civil, não será realizada mediante ação de retificação de Registro Civil, não se aplicando o art. 109 da LRP (CHAVES; ROSENVALD, 2007, p. 179). A ação é denominada Ação de Redesignação do Estado Sexual, como ensina Cristiano Chaves (2007, p. 179). Para alguns operadores do Direito, a competência para julgar a ação de alteração do sexo do Registro Civil do transexual não está definida, se é na Vara de Família ou na Vara dos Registros Públicos. Porém, para a maioria dos doutrinadores, como Tereza Vieira (2008, p. 322-330), Cristiano Chaves (CHAVES; ROSENVALD, 2007, p. 124-125) e Berenice Dias (2009, p. 245-246) e para a jurisprudência dominante, está claro que o foro competente para processar e julgar pedido de adequação do sexo e, também, do prenome, será a Vara da Família, do domicílio do requerente, por se tratar de ação de estado das pessoas que é matéria de ordem pública, tramitando em segredo de justiça. Por se tratar de alteração de estado da pessoa e não de mera retificação de Registro Civil, a competência é absoluta e pode ser declarada de ofício (CHAVES; ROSENVALD, 2007, p. 124-125). A competência da Vara de Registros Públicos limita-se a processar e julgar as controvérsias sobre a regularidade registral, é o entendimento jurisprudencial e doutrinário. A pretensão do interessado equivale a uma ação de estado (alteração de estado da pessoa), de cunho declaratório e desconstitutivo, que tem por objetivo criar, modificar ou extinguir. No julgamento das ações de mudança de estado sexual, o juiz também pode requerer a perícia médico-fisiológica e a realização de laudo psicossocial com o intuito de se convencer da irreversibilidade da identificação psicológica ou para constatar a realização da cirurgia alegada pela parte. Quanto à averbação, os juízes vem fazendo a determinação de não dar publicidade da situação anterior do requerente quando do fornecimento de certidões a terceiro, salvo ao próprio interessado ou no atendimento de requisição judicial, sob pena de ser mantido o preconceito e a discriminação. Deverá, então, ser feita uma averbação apenas no livro dos Registros Públicos constando que o indivíduo X passou oficialmente, a partir daquele momento, a se chamar fulano de tal, pertencente ao sexo “X”. Na Certidão do Registro Civil nada deve conter, nem nos demais documentos, pois do contrário, vai de encontro ao seu direito de personalidade e ao artigo 5º, X da CF/88, em seus princípios do direito à intimidade, à privacidade, à honra, à vida íntima. (DIAS, 2009, p. 246-248) Sobre a averbação, o TJSP traz o interessante acórdão, aqui colacionado a ementa: “EMENTA: Processo Civil. Retificação de Registro Civil. Transexual. Obediência ao princípio da dignidade da pessoa humana. Aplicação do artigo I o , III, da Constituição Federal. Modificação de nome e sexo que, no entanto devem ser averbadas, para que se preserve a continuidade do Registro Civil e os direitos de terceiros. Recurso provido para tal fim.” (TJSP – APELAÇÃO CÍVEL n° 617.871-4/2, da Comarca de São José do Rio Preto – Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado – Data do julgamento: 19/02/2009) (grifo nosso) 4.4. Repercussões no Direito de Família Após a cirurgia e a alteração do sexo e prenome no Registro Civil do transexual, alguns desdobramentos poderão acontecer e gerar reflexos no Direito de Família, tais como: a) direito ao casamento do transexual A partir do momento que a doutrina e jurisprudência reconhecem ao transexual a adequação do seu sexo no Registro Civil subtende-se que ele pode contrair matrimônio com pessoa de sexo oposto ao adequado. (VIEIRA, 2008, p. 299) É por isso que, mais acertado, é que no livro do Cartório de Registro Civil constasse a alteração ocorrida, que fosse feita apenas a averbação, pois os direitos dos transexuais e de terceiros estariam assegurados. Não correria o risco de uma pessoa contrair casamento com o transexual desconhecendo a sua condição. Uma parte da doutrina entende que o casamento existe e é válido, pois a identidade de sexo não é causa para desconstituição do casamento, pois o sexo psíquico prepondera sobre o sexo biológico, nem a inexistência de capacidade procriativa é motivo para a desconstituição (DIAS, 2009, p.249-250). Em sentido contrário, Maria Helena Diniz, afirma que:  “O casamento tem como pilar o pressuposto fático da diversidade de sexos dos nubentes, embora não haja nenhuma referência legislativa a respeito, ante a sua evidência essa condição impõe-se por si mesma. Se duas pessoas do mesmo sexo, como aconteceu com Nerus e Sporus, convolarem núpcias, ter-se-á casamento inexistente, uma farsa”. b) transexual casado Pode a cirurgia de redesignação sexual ser motivo de dissolução do casamento? É necessário o consentimento do outro cônjuge para realizá-la? A resposta para o Direito não é simples de ser encontrada. Na época da celebração do casamento, a identidade de sexo não existia, então não poderá ser invocada a anulação do casamento, nem há que se invocar erro sobre a pessoa. O divórcio por consentimento mútuo e o divórcio por separação de fato são duas possibilidades coerentes, haja vista que em havendo cirurgia na constância do casamento, a vida em comum torna-se difícil, além da identidade de sexo dos cônjuges. (VIEIRA, 2008, p. 305) A professora Tereza Vieira diz que para evitar constrangimento, o reconhecimento da adequação ao sexo deve ser dado ao transexual solteiro, divorciado ou viúvo. Porém, o problema continua presente, pois poderia haver o questionamento se haveria nesta hipótese de tratamento diferenciado a violação à igualdade constitucional. A cirurgia de adequação do sexo não culminou com a morte real do indivíduo, assim, continua sujeito de direitos e obrigações. A morte deve ser registrada, como dispõe o art. 9º, I, do Código Civil: “Art. 9º – Serão registrados em registro público: I – os nascimentos, casamentos e óbitos; […]” (grifo nosso) Assim, se é pela certidão de óbito que comprova a morte do indivíduo e não pela cirurgia e pela alteração do prenome e sexo no Registro Civil, a nova designação legal não dissolve, por si só, o vínculo matrimonial ou extingue o pátrio poder e nem a obrigação de prestar alimentos, no caso do transexual que já era casado ou tinha filhos. Quanto ao consentimento, entende-se, que este não é necessário por se tratar de um problema de saúde. c) erro essencial sobre a pessoa do cônjuge Na hipótese de uma pessoa X desconhecer o fato de que a pessoa Y é um transexual operado, e casa-se com este, há indagação se a transexualidade é causa de anulabilidade do casamento, levando-se em conta um erro essencial sobre a pessoa do cônjuge. O Código Civil define que o erro essencial capaz de macular a vontade matrimonial e consequentemente ensejar a anulação do casamento, está disposto nos arts. 139, 1.556 e 1.557, do novo Código Civil: “Art. 139. O erro é substancial quando:[…] II – concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante;[…]” (grifo nosso) “Art. 1.556. O casamento pode ser anulado por vício da vontade, se houve por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro.” (grifo nosso) “Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge: I – o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado; […]”(grifo nosso) O cônjuge enganado pode invocar erro sobre a identidade sexual do seu cônjuge. Assim, pode se aplicar ao caso, o mesmo tratamento legal que os tribunais vem dando ao homossexual que escondeu a sua condição, onde o erro essencial quanto à pessoa do outro cônjuge, em particular quanto à sua identidade psíquica, moral e social, enquadra-se na hipótese de anulação do casamento, devendo o cônjuge observar o prazo decadencial de três anos para exercer o seu direito de anular. d) filiação e adoção É mais salutar considerar também que deverá constar o prenome utilizado anteriormente (princípio da irretroatividade da mudança de estado) no assento de nascimento dos filhos havidos ou adotados pelo transexual, no assento de casamento do cônjuge, etc., antes da sentença que julgou procedente constar o seu novo prenome. Após a sentença, no Registro Civil dos filhos adotados deverá conter o novo prenome. Aqui não há uma mudança no pai ou na mãe. Esses são apenas alguns dos muitos questionamentos que giram em torno do transexualismo. Conclusão Os direitos da personalidade são o mínimo imprescindível para o ser humano desenvolver-se dignamente e deve ser encarado como um valor máximo do ordenamento, modelador da autonomia privada. É, por isso, que a Constituição Federal de 1988 tem como princípio nuclear a dignidade da pessoa humana que, segundo Cristiano Chaves (2007), é a cláusula geral de proteção e desenvolvimento da personalidade do indivíduo que assegura ao cidadão que direcione sua vida íntima de maneira que melhor lhe convir, permitindo-lhe receber respeito do Estado e dos demais. A Constituição garante a cidadania, o direito a ter direitos, de votar e ser votado e não se pode ter cidadania onde há um conflito entre o seu ser e o dever ser social. O direito ao nome deve ser reconhecido e respeitado pelo ordenamento jurídico por configurar como um dos maiores direitos da personalidade. O nome é o sinal externo que identifica e individualiza a pessoa na sociedade e na família. Ele nasce com a pessoa e a acompanha durante toda a vida, até pós-morte. Não se extingue com a morte. Pois, permanece vivo na memória daqueles que a conheceram. A inalterabilidade do nome vem sendo relativizada, pois se tem admitido a autonomia jurídica do titular em relação ao nome. Neste trabalho, foi analisado a transexualidade, diferenciando-a de outros fenômenos da sexualidade, discorrendo sucintamente sobre a cirurgia, os critérios para realizá-la. Após, fora avaliado o âmbito jurídico da cirurgia, o direito à realização da cirurgia, sobre aspectos médicos e psicológicos para elucidar a possibilidade de sua realização. Pautado no entendimento de profissionais da Medicina e na Psicologia, segundo a doutrina e jurisprudência, que a cirurgia de transgenitalização se apresenta como a melhor e única opção de cura desse desvio de identificação do sexo psíquico com o físico, verifica-se que a ablação dos órgãos genitais tende a beneficiar o paciente transexual, biológica, psicológica e socialmente. Importa registrar que essa intervenção cirúrgica não encontra óbice para a sua realização, no ordenamento jurídico brasileiro, pois o objetivo principal é a harmonização do sexo biológico com o sexo psicológico e a inserção social e profissional do transexual, contribuindo com a sua cura ou a melhora da sua saúde, já que a Medicina atual não apresenta outra solução a não ser a correção cirúrgica do sexo para os casos de transexualismo. Inclusive, o Conselho Federal de Medicina reconheceu essa cirurgia como correta e adequada para adequação de sexo e libera eticamente aos médicos a realização da operação desde 2002, quando expediu a Resolução nº. 1.652/02, estabelecendo os critérios de definição do transtorno e os critérios para realização da cirurgia. Essa cirurgia pode ser realizada em hospitais públicos ou universitários ou hospitais privados. Importante registrar que pode ser realizada pelo SUS (Sistema Único de Saúde – Portaria nº. 1.707 de 20/08/2008). Foi dito que a necessidade terapêutica e o consentimento válido do paciente transexual derrubam a tese de que a cirurgia violaria o princípio da indisponibilidade do corpo humano e o direito à integridade física, pois não há dolo por parte do médico, não é intenção dele mutilar o paciente transexual, mas de curar ou amenizar o sofrimento deste paciente. O transexual pode realizar a cirurgia, desde que por exigência médica, sem necessidade de autorização judicial. O Direito é uma Ciência Social, devendo sempre estar em marcha, acompanhando as transformações sociais e científicas. Não pode o operador do Direito ignorar as informações fornecidas por médicos, psicólogos, sociólogos e antropólogos, pois elas enriquecem o seu raciocínio. Se o Direito procura ser justo, de toda norma jurídica deve-se extrair o seu fim social e aplica-la no caso concreto. Levando em consideração a tríade dignidade-solidariedade-igualdade e sendo a pessoa humana o bem jurídico primeiro a ser protegido pelo Estado, o magistrado deve dar efetividade, limitada pelos princípios constitucionais, às normas, captando sempre o espírito da lei, sem apegar-se inteiramente à interpretação literal da lei. Se assim não for, o Direito se desviará da justiça e pode inviabilizar a operacionalização do Direito. O exercício completo da cidadania do transexual não se obtém somente com a correção cirúrgica do sexo, resta, ainda, a autorização para adequar os registros civis desses indivíduos. Tema bastante polêmico na doutrina e jurisprudência. A falta de legislação específica brasileira para proteger o transexual e possibilitá-lo a exercer os seus direitos da personalidade não é motivo suficiente para que os julgadores recusem os avanços da Medicina. A doutrina majoritária vem entendendo que o pedido de alteração feito pelo transexual operado deve ser acolhido. A jurisprudência a partir da metade da década de oitenta vem julgando procedentemente o pedido de adequação no Registro Civil do transexual redesignado. A doutrina, a Lei de Introdução do Código Civil (art. 4º) e o art. 126, do CPC, ensinam que, em caso de lacuna na lei, o juiz deve utilizar a analogia, os costumes, os princípios gerais de direito e a eqüidade. Assim, conclui-se que cirurgia, aliada à posterior compatibilização do Registro Civil ao novo gênero sexual, adequando o aspecto sexual físico ao sexo psicológico do indivíduo transexual trará ao indivíduo o almejado bem-estar: 1) por possuir uma identidade e, então, reconhecer-se e ser reconhecido, tal qual se sente; 2) de ter liberdade para sentir quem realmente sempre foi sem sofrer preconceitos e sem lhe ser exigido comportamento diverso; 3) de sentir, no âmago, a satisfação e o conforto de pertencer fisicamente ao gênero sexual psíquico, de não precisar esconder sua condição física originária, sentindo vergonha ou humilhação. (TRAVAGLIA, 2005, p. 1) Seguindo essa linha de raciocínio, não se pode interpretar uma norma sem se ter em vista um fato concreto. O Direito não pode obstacularizar a regularização a identidade de gênero do transexual, pois seria insistir que ele permaneça com sua perturbação psíquica (sem direito à integridade psíquica, direito à saúde); na perpetuação da situação vexatória e constrangedora (sem direito à honra); na negação do direito à identidade sexual (integrante do direito à identidade); na desigualdade com os demais, posto que todo homem e mulher têm direito ao registro do seu estado sexual tal qual se mostra para a sociedade (sem direito à igualdade); sem qualidade de vida, meio ambiente equilibrado, paz (sem direito à solidariedade); no aprisionamento ao estado sexual registrado no assento de nascimento, sem o direito à opção sexual (direito à liberdade) e acima de tudo sem direito à sua dignidade. Através de uma pesquisa jurisprudencial, foi possível concluir que o entendimento majoritário da Jurisprudência é no sentido de que após a cirurgia de correção de sexo, é de dar procedência ao pedido, e, assim poder alterar o prenome e o sexo no Registro Civil. O cancelamento do registro anterior e a confecção de um registro totalmente novo não parece ser a decisão mais acertada, pois os direitos dos transexuais e de terceiros estariam assegurados se somente no livro do Cartório de Registro Civil constasse a alteração ocorrida, através de averbação, por tratar-se de ação modificadora do estado da pessoa. (VIEIRA, 2008, p. 262-263) Na nova Certidão de Nascimento é mais sensato que não se faça nenhuma referência à aludida alteração, para que não conste na Carteira de Identidade, CPF, Passaporte, Carteira de Trabalho, etc. A alteração poderá vir na Certidão de inteiro teor, pois são pedidas apenas pelo interessado ou autoridade competente. Disso surgem vários questionamento e reflexos no Direito de Família: O transexual, que já é casado, poderá se submeter à cirurgia? Como fica o Registro dos filhos naturais e adotivos? Precisa pedir o divórcio? Precisa da anuência do cônjuge para realizar a cirurgia? O cônjuge poderá pedir separação alegando erro sobre a pessoa do outro cônjuge? Poderá o transexual, após a cirurgia, resolver utilizar o útero remanescente para gerar um filho? Ente outros. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou que o transexual que tenha se submetido à cirurgia de mudança de sexo pode trocar nome e gênero em registro sem que conste anotação no documento. Em uma decisão inédita (REsp 1.008.398), em 15/10/2009, o STJ julgou que o caso de um transexual em São Paulo, que realizou a cirurgia de redesignação sexual. Após não ter conseguido a mudança no registro junto à Justiça paulista e ele recorreu ao Tribunal Superior. A decisão da Terceira Turma do STJ é inédita porque garante que nova certidão civil seja feita sem que nela conste anotação sobre a decisão judicial. O registro de que a designação do sexo foi alterada judicialmente poderá figurar apenas nos livros cartorários. A ministra relatora do recurso, Nancy Andrighi, afirmou que a observação sobre alteração na certidão significaria a continuidade da exposição da pessoa a situações constrangedoras e discriminatórias. Anteriormente, em 2007, a Terceira Turma analisou caso semelhante (STJ – REsp 678.933) e concordou com a mudança desde que o registro de alteração de sexo constasse da certidão civil. Após, a recente decisão do STJ, não é mais raro encontrar outras decisões, posteriores, iguais, pois o objetivo principal é a harmonização do sexo biológico com o sexo psicológico e a inserção social e profissional do transexual. Diante do exposto, acredita-se que a finalidade do presente trabalho alcançou e terá sido alcançada se houve alguma contribuição a respeito do tema, com eventuais aplicações práticas, como a citada acima.
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Descriminalização do aborto: um desrespeito à vida
O presente artigo tem como objetivo estabelecer um posicionamento quanto ao eixo III do Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDHIII), onde  apóia a descriminalização do aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seu próprio corpo. Para tanto, com fulcro em diversos especialistas, defendo a rejeição deste dispositivo, haja vista, ferir a legitimidade do Estado Democrático de Direito, que é atuar como guardião do bem mais precioso que temos o direito à vida. Partimos do pressuposto de que o aborto é uma idéia de irresponsabilizar o Estado, diante da sua ineficácia social, e condenar os conceptos. Por fim, busca – se comprovar por meio da legislação brasileira a inviolabilidade à vida humana, sendo resguardada na Constituição Federal como cláusula pétrea, no Código Civil (art.2º), no Código penal (art.122) e até mesmo em Tratados Internacionais. [1]
Biodireito
INTRODUÇÃO Atualmente no Brasil o aborto é considerado crime, exceto nas duas hipóteses redigida no inciso I e II do artigo 128 do Código Penal, respectivamente: se não há outro meio de salvar a vida da gestante e, se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. A proposta do 3º Programa de Direitos Humanos que está tramitando no Congresso Nacional está permitindo a liberalização do aborto, neste caso, fica a critério da mulher abortar ou não. Com efeito, “não se pode considerar apenas a vontade da mulher de fazer o que quiser com seu próprio corpo se uma outra vida humana, protegida constitucionalmente, está em jogo.”[2] Além do mais, “a vida não é o domínio da vontade livre. A vida exige que o próprio titular do direito a respeite”[3].O fato da mulher carregar o feto durante o período gestacional não lhe dá autonomia para dispor desta vida. Explicitando melhor com as palavras do renomado Marconi do Ó Catão (2004, p. 156): “A vida humana é um bem eminentemente dinâmico, visto que é uma força que a si mesma se vai completando e que o nosso Direito considera devida dimensão, pois a declara inviolável (art.5º, caput, da CF). Então não há apenas um direito de vida (à preservação da vida existente), mas também um direito à vida (ao processo evolutivo vital e até mesmo à consecução do nascimento com vida)”. Dessa forma, “a vida humana deve ser protegida contra tudo e contra todos, pois é objeto de direito personalíssimo. O respeito a ela e aos demais bens e direitos correlatos decorre de um dever absoluto erga omnes, por sua própria natureza, ao qual a ninguém é lícito desobedecer”.[4] É ilusório o pensamento de que a interrupção da gravidez por motivo egoístico seja conducente a uma experiência de liberdade, pois não há nenhum princípio de liberdade individual que possa ser maior do que o que coloca a vida humana como o valor supremo da humanidade (PEDRO LUIZ STRINGHINI, 1994 apud DINIZ, 2010, p. 81). Ademais, a liberdade como dito pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, consiste em fazer tudo o que não prejudica o outro, com base nisso, pode – se dizer que compete ao Estado intervir mediante punições, àqueles que tentarem ceifar a vida do nascituro, em prol de caprichos ideológicos, socioeconômicos ou até mesmo estéticos. 1 INICIO DA VIDA HUMANA Seria inadmissível considerarmos a prática do aborto sem antes, entendermos a partir de que momento há vida humana. Segundo Almeida (1998 apud PASSINI & BARCHIFONTAINE, 2004, p. 312), “para denominar – se algo como aborto, é indispensável que tenha ocorrido a morte do nascituro, a vida do qual é o valor a ser juridicamente preservado.” Apesar de existir várias teorias díspares quanto à origem da vida humana, a que sobressai no Direito Penal Brasileiro é a teoria da nidação, haja vista, a ingestão da pílula do dia seguinte, ser considerada um método anticoncepcional legal. É sabido de todos que a função deste medicamento é dificultar o encontro do espermatozóide com o óvulo ou, caso a fecundação tenha ocorrido, provoca descamações do endométrio o que impedi a fixação do zigoto e, consequentemente a gravidez. Para estes defensores a vida humana passa a existir, quando o embrião se fixa na parede do útero materno. “Acredita – se que o ovo humano leva de 1 a 4 dias na trompa, devendo entre o sexto e o oitavo dia já estar implantado na mucosa uterina”.[5] Em contrapartida, Moore & Persand (2000, p. 430) defendem o seguinte posicionamento:  “O zigoto tem o potencial de dar origem a um ser humano, como um pinhão tem em relação a um pinheiro. Cientificamente, a resposta, é a de que o embrião tem exclusivamente potencial humano, e nenhum outro, desde o momento da fertilização, por causa da constituição humana de seus cromossomas”. Não há o que discordar quanto a isso, mas é verdade também, que o zigoto não sobrevive fora do útero da mãe. Á luz do embriologista George Doyle (2004, p.54; 96-97) “o ovo humano não possui substâncias de reserva, dependerá, para a sua sobrevida, de material nutritivo que possa obter do endométrio. Diz mais ainda, durante a 4ª semana de desenvolvimento o arco mandibular e os processos maxilares são evidentes, forma – se o tubo cardíaco primitivo e seus primeiros batimentos, surgem os placóides óticos e olfativos, surgem os brotamentos hepático e pancreático dorsal, o estômago e fusiforme, o cordão umbilical começa a tomar forma, inicia – se a histogênese do tecido nervoso, a curvatura mesencefálica das vesículas cerebrais acentua – se”. Com base neste estudo, condeno a prática do aborto, porque a grande maioria das mulheres senão todas abortam, quando começam a sentir os primeiros sinais de gravidez (atraso na menstruação, enjôo, aumento das mamas, dentre outros sintomas), isso ocorre pela 4ª semana, quando o embrião já está formado e com órgãos funcionando. 2 MITO SOBRE A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO A descriminalização do aborto, constituiria mera tentativa para resolver um efeito, sem contudo eliminar a causa.[6] Segundo a titular Maria Helena Diniz (2010, p.92), “a humanidade quer manter uma vida digna à custa da organização legal da morte em massa de nascituros, escudando – se no direito absoluto da mulher sobre seu próprio corpo, no crescimento demográfico, na fome, na marginalização, na discriminação de classes sociais, nos perigos de clandestinidade, na falta de informação contraceptiva, na precariedade de recursos financeiros para educar um filho, na rejeição do filho, dentre outros”. Partindo dessa lógica, entende – se que a legalização do aborto, atuaria como um meio de esconder a deficiência do Estado em lidar com os problemas sociais. Haja vista, ser dever deste, promover programas de assistência integral à família (art.227, §1º da CF).  Segundo dados, “nos países onde o aborto foi legalizado a prática abortiva atingiu requinte de degradação, violência e comercialização, ante a multiplicação de clínicas especializadas, que chegam, até mesmo, a usar fetos para fins experimentais[…]” (DINIZ, 2010, p. 84). Ante o exposto, entendo que uma solução eclética seria pressionar o Estado a cumprir a sua função social, ao invés, de ceifarmos vidas humanas. 2.1 SÍNDROME PÓS – ABORTO  A Síndrome pós – aborto é um stress pós – traumático, gera sofrimento, uma grande angústia e traumas, àqueles que praticam o aborto (PSICOLÓGA MARIA VILAÇA, 21/04/2008). Salvo raras exceções, as mulheres que provocam aborto tendem a desenvolver, posteriormente, distúrbios psíquicos.  Assim dito por Maria Helena Diniz (2010, p. 95): “O impacto psicológico de um abortamento poderá afetá – la, inconscientemente, pelo resto de sua vida, gerando: recrudescimento do sentimento de culpa; pertubações nervosas; insônia; remorso; depressão, que às vezes, constitui uma porta aberta à loucura ou ao suicídio; super proteção ao filho nascido de outra gravidez, como tentativa de resgatar o aborto anteriormente feito; rejeição de um filho, por não ter conseguido amar aquele que abortou, etc.” Além dos problemas exposto acima, destaca – se lesões como: Laceração do colo uterino provocada pelo uso de dilatadores, perfuração do útero, hemorragias uterinas, infecção uterina secundária, hipertônica salina, além da histerectomia.[7] 3 ASPECTOS JURÍDICOS O Código Penal, em seu art. 124, pune o aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, de 1 a 3 anos. “Como também tem prevalecido o entendimento de que, em um Estado Democrático de Direito, o Direito Penal deve ter a missão de proteger bens jurídicos, reconhecidos pelo constituinte e, posteriormente, pelo legislador ordinário, dentre os valores mais caros à sociedade”.[8] Juridicamente o direito à vida é clausula pétrea, assegurado no caput do artigo 5º da Constituição Federal. Com isso, seria inadmissível qualquer pressão no sentido de uma emenda constitucional tendente a legalizar o aborto. Por tudo isso, o caput do artigo 2º do Código Civil, “põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Se não bastasse, o artigo 4º do Tratado Internacional São José da Costa Rica ao qual o Brasil é signatário, versa: “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”. Assim sendo, “a tutela da personalidade humana individual implica na proteção, quer da vida humana pré – natal, quer da vida humana pós – natal, incluindo, nesse caso, toda a fase de crescimento e maturidade, até a morte” (CATÃO, 2004, p. 156). Neste mesmo raciocínio, lembra – nos, Pedro – Juan Viladrich (1995 apud DINIZ, 2010, p. 76): “para que se pudesse sustentar juridicamente um direito ao aborto provocado, seria preciso a comprovação científica de que o feto não é um ser humano […]” Hodiernamente, muito se têm lutado pela preservação da natureza, dos animais, por outro lado, vê – se aqueles lutando pela morte do nascituro. Não é à toa que o § 1º, inciso I, art. 29 da Lei nº 9.605/1998 “condena com detenção de seis meses a um ano, e multa quem impede a procriação da fauna”. Através disso, contata – se a coisificação da raça humana. CONCLUSÃO A partir de uma análise criteriosa chega- se à conclusão de que o movimento pela legalização do aborto baseia – se em fundamentos frágeis, equivocados, além disso, as propostas do eixo III do PNDH – 3 são impossíveis juridicamente. Os legalizadores do aborto possuem os seguintes fundamentos: a mulher é dona de seu próprio corpo; o que cresce no ventre materno não é vida humana; atualmente o aborto é praticado na clandestinidade, acarretando para a mulher de poucos recursos financeiros graves problemas de saúde, podendo, às vezes, causar – lhe a morte. Primeiramente, para sustentar juridicamente um direito ao aborto provocado, seria preciso a comprovação científica de que o feto não é um ser humano, mas algo pertencente ao corpo de sua mãe, ou haver uma previsão constitucional de que os pais ou o Poder Público teriam direito sobre a vida ou a morte desse ser humano.[9] Isso, porém, não ocorre. Haja vista, o óvulo fecundado ser um humano com vasto potencial e não em potencial. Como observou Arnold Gesell, até mesmo a organização do “eu” psicossomático já é subjacente no feto.[10] Diante da realidade a mulher e o homem devem gozar de liberdade sexual quanto a seu corpo, mas esta tem um forte e absoluto limite: a não interferência no direito de nascer.[11] É preciso consignar, que é dever de todos prevenir ocorrência de ameaça ou violação ao direito à vida, contudo, é dever principalmente, do Poder Público promover programas de assistência familiar. As premissas utilizadas, por vezes, para a deliberalização do aborto, transparecem no sentido de isentar o Estado a cumprir sua função social. Sabe – se que vivemos em condições socioeconômicas precárias, com uma taxa elevada de analfabetismo, falta de educação sexual adequada. Por isso, considero eficaz uma organização dos pós – abortistas, no sentido de mobilizar toda a sociedade para cobrar dos órgãos públicos a efetiva implantação do planejamento e programa familiar; investimentos em programas educativos visando orientar sexualmente a população, a distribuição de métodos anticoncepcionais nos postos de saúde amplificados, à assistência pré- natal, o auxílio maternidade com larga escala, o serviço de saúde com ampla efetividade, ajuda habitacional, dentre outros mecanismos de prevenção e cuidados em prol da saúde da mulher e do nascituro. Por fim, finalizo esta obra questionando o caro leitor. O aborto é um direito ou uma ofensa à dignidade da vida humana? Não é o aborto um contra – senso com tantos métodos anticoncepcionais existente? Não seria melhor antes prevenir do que abortar? Qual será o direito que os homens se reservam de trucidar seus semelhantes? Como pode haver, no menor sacrifício da liberdade de cada um, o do bem maior de todos, a vida?
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Os direitos personalíssimos como limites à intervenção médica no corpo humano
Na dinâmica da sociedade atual é evidente a intensa ligação entre os campos de atuação das ciências. Uma forte manifestação deste fenômeno encontra-se no fato da seara do direito e da medicina se interligarem, principalmente, no que se refere ao crescente avanço da área médica e as consequências para personalidade humana, advindas deste processo. Nesse sentido, o presente estudo se dedicará à análise de um possível limite para a intervenção médica sobre o corpo humano, a fim de, garantir ao individuo, não apenas o exercício de uma vida digna, mas também a possiblidade de uma morte digna, na medida em que se concede ao indivíduo o poder sobre sua própria vida, de forma a não atingir em nenhum estágio de sua existência os seus direitos personalíssimos.[1]
Biodireito
1 INTRODUÇÃO  A temática dos direitos personalíssimos é de extrema importância, pois consiste em uma categoria de direitos interligados à existência humana e necessária para o exercício de uma vida plena, a qual não deve ser entendida como apenas o ato de se manter vivo, mas também no de exercê-la de forma digna. A ideia de dignidade humana nos remete à necessidade de proteção à pessoa humana devido aos abusos cometidos nos períodos ditatoriais no Brasil e, principalmente, no cenário internacional. Porém, atualmente, a relevância desse assunto não decaiu, muito pelo contrário, tornou-se um tema rodeado por polêmicas discussões, pois, quando nos referimos aos avanços médicos, as suas consequências atingem diretamente as faculdades da personalidade humana. A partir do exposto, o estudo presente será dedicado aos direitos personalíssimos e sua atual ligação com os avanços médicos, no que circunda o limite de atuação dos dois campos. Portanto, a análise em questão se divide em cinco partes. Primeiramente, será trabalhado todo âmbito dos direitos da personalidade, incluindo seu conceito e características. Em segundo lugar, será abordada a polêmica questão da morte digna, a qual abordará uma pequena perspectiva do que ocorre no Brasil, e em seguida, um caso em que métodos à esse processo foram aplicados. Posteriormente, a quinta parte, trará as considerações finais sobre o assunto discutido, a fim de concluir o debate. 2 DIREITOS PERSONALÍSSIMOS  Na conjuntura sócio jurídica atual, os direitos da personalidade exercem um papel relevante. Nesse sentido, observa-se no Código Civil brasileiro de 2002, uma grande preocupação com a pessoa humana desde o início de sua personalidade até o fim da mesma. Contudo, para ser possível compreender os direitos personalíssimos, é de extrema importância que se tenha claro o que pode ser entendido como personalidade. De acordo a Leite[2], quando pensamos em personalidade, logo nos destaca a figura do ser humano, com suas características únicas e inerentes, fato que o diferencia dos demais. Partindo deste pressuposto último, não se pode olvidar que é fundamental proteger a figura humana, sendo o melhor modo, garanti-los por meio dos direitos referentes à personalidade, ou ainda, os chamados direitos personalíssimos. Por conseguinte, Bittar[3] define os direitos da personalidade como: “Direitos próprios da pessoa em si, existentes por sua natureza, como ente humano, com o nascimento, mas, são também direitos referentes às projeções do homem para o mundo exterior (a pessoa como ente moral e social, ou seja, em seu relacionamento com a sociedade).” Em outras palavras, são aqueles direitos pertencentes à condição humana, que, por sua vez, só pode exercer todas as suas faculdades se os mesmos forem protegidos. É oportuno reiterar que os direitos da personalidade possuem certas características, as quais Leite[4] enumera como: I. Absolutos: cabe a todos respeitar tais direitos, logo sua sanção se impõe sobre qualquer pessoa. II. Extrapatrimoniais ou extrapecuniários: não podem ser mensurados economicamente e, portanto, não podem ser objeto de consumo. III. Intransmissíveis ou indisponíveis: não podem ser transmitidos para outras pessoas. IV. Impenhoráveis ou imprescritíveis: são direitos que não se perdem pelo decorrer do tempo ou pelo não uso. V. Irrenunciáveis: o indivíduo não pode abster-se desses direitos. VI. Vitalícios e necessários: são direitos que permanecem com o indivíduo por toda sua vida, exatamente por serem essências ao exercício pleno desta. VII. Ilimitados: são direitos que decorrem das necessidades humanas, portanto em constante surgimento. São estas características que garantem a efetividade desses direitos tão importantes e, por consequência, protege os indivíduos de qualquer violação a sua integridade. Por fim, resta-nos esclarecer quando inicia e finaliza os direitos personalíssimos. Em resposta à questão o Código Civil 2002, no seu artigo 2° prescreve que “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Como se nota, o Código Civil, apesar de assegurar os direitos do nascituro desde a sua geração, ou seja, enquanto este ainda esta no ventre materno, a sua personalidade e, por consequência, todos os direitos referentes, só podem ser adquiridos depois do nascimento com vida, ou mais precisamente, quando houver a respiração após o nascimento. Em outra vertente, quando se refere ao fim da personalidade, o Código Civil brasileiro, no seu artigo 6°, prescreve que “A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva”. Portanto, quando ocorre a morte, todos os direitos e deveres do de cujus são desconsiderados. Mas no que consiste a morte? O Código Civil brasileiro abarca algumas possibilidades, nas quais se pode considerar um indivíduo como morto, são elas a morte presumida sem decretação de ausência, presente no artigo 7°; a morte ficta ou morte presumida com a decretação de ausência, exposta no artigo 22° e a morte real, objeto a qual nos atemos a partir de agora. A morte real, que, de acordo o artigo 3° da Lei n. 9.434/97, consiste na morte encefálica, ou seja, é a “perda irreversível de todas as funções de todo o cérebro, inclusive do tronco cerebral” [5]. É a partir deste momento, no qual se encerra as atividades cerebrais, que o indivíduo é considerado morto e, por conseguinte, perde seus direitos personalíssimos. Quando a morte ocorre de forma instantânea, é simples analisar as consequências, a partir do exposto, mas quando, ocorre um processo de morte, ou seja, quando o indivíduo, seja por qualquer motivo, se encontra em percurso constante em que há o declínio da vida, a questão se torna bem mais complexa. Nesta vertente, será que a morte também deve ser encarada como parte da dignidade humana e, assim, um direito personalíssimo? Quais seriam, então, os parâmetros para uma morte digna? São questões polêmicas, as quais nos dedicaremos a analisar em sequência. 3 DIREITO A UMA MORTE DIGNA  Os avanços tecnológicos na área médica trazem inúmeras vantagens, mas também, levantam questões muito polêmicas, as quais envolvem o fato de que não podemos lutar para sempre contra um fato inerente à condição humana, que consiste na morte do corpo. Existem alguns processos médicos, na atualidade, que permitem manter uma pessoa viva, mesmo em casos extremos, nos quais a morte é incontestável, ou seja, sem que haja nenhuma possibilidade de recuperação. Desta forma, torna-se essencial citar a distanásia ou obstinação terapêutica, que, de acordo a Diniz[6], consiste no método em que “[…] tudo deve ser feito mesmo que cause sofrimento atroz ao paciente”, ou seja, é a aplicação de terapias que, muitas vezes, não vão resultar na melhora do paciente, mas causar dores e sofrimento, pois já se concretizou tudo que era possível fazer, e seu quadro tornou-se irreversível. Nestes casos, os métodos são abusivos e ferem a dignidade da pessoa humana, pois a ciência está apenas prolongando o processo de morte e sofrimento do indivíduo. Por consequência, há um processo, como aduz Leite[7], em que “[…] reivindica-se a reapropriação da morte pelo próprio doente”, em prol de uma morte mais humanizada, onde os direitos da personalidade são resguardados até o último minuto. Diante deste aspecto, é importante diferenciar o direito de morrer com dignidade, que “[…] refere-se ao desejo de se ter uma morte humana, sem o prolongamento da agonia por parte de um tratamento inútil”[8], do direito de morrer, que é muito diferente, e consiste em “[…] intervenções que causam ou antecipem a morte”[9]. Um dos métodos pertinentes ao direito de morrer é o da eutanásia, a qual Diniz[10] define como: “[…] deliberação de antecipar a morte de doente irreversível ou terminal, a pedido seu ou de seus familiares, ante o fato da incurabilidade de sua moléstia, da insuportabilidade de seu sofrimento e da inutilidade de seu tratamento, empregando-se, em regra, recursos farmacológicos, por ser a prática indolor de supressão da vida”. Consiste, portanto, em antecipar a morte por meios indolores, motivados sempre por piedade ao enfermo. Porém, deve-se ressaltar que sendo a vida um direito irrenunciável e intransmissível, é inaceitável que o indivíduo, afetado por grave doença, venha a abster-se da vida, seu bem maior, ainda mais por encontrar-se em uma situação atípica, na qual as condições o impeçam de decidir corretamente seus atos. Sobretudo, permitir que alguém decida sobre a vida de outra pessoa. Portanto, é muito importante destacar que “não se pode aceitar a licitude do direito de matar piedosamente […]”[11], como meio para acabar com sofrimento próprio ou alheio. Em contrapartida, a ortotanásia, vem como meio de uma garantia do direito de morrer com dignidade, pois consiste, segundo Leite[12], no “[…] não prolongamento artificial do processo de morte, além do que seria o processo natural, feito pelo médico”. Com isso, seriam mantidos apenas os métodos que visassem à garantia do conforto do paciente, evitando seu sofrimento, mas não impedindo, inutilmente, seu processo natural de morte. Esse método serviria exatamente para evitar os abusos decorrentes da distanásia, e permitir uma morte mais humanizada, mais digna e confortável para o enfermo. 3.1 CENÁRIO BRASILEIRO ALARMANTE  O cenário da saúde brasileira, o qual é de conhecimento de todos, se encontra em situação alarmante, completamente ineficiente. Isso se deve a interação de fatores econômicos, sociais e geográficos, os quais não contribuem para uma conjuntura favorável ao desenvolvimento de uma estrutura capaz de atender as demandas da sociedade, associada ao descaso dos políticos a questão, devido, principalmente, a falta de sanção. Com isso é comum observarmos corriqueiramente, como se fosse algo factível, o fenômeno chamado mistanásia, ou ainda, a eutanásia social, que de acordo a Diniz[13] consiste na “[…] morte miserável fora e antes da hora, que nada tem de boa ou indolor […]”. De fato, a deficiência das estruturas de atendimento público de saúde, principalmente nos países de terceiro mundo, como o caso do Brasil, faz com que muitas pessoas tenham um atendimento de má qualidade, que não trará resultados positivos à sua doença, ou mesmo, acarreta na omissão de socorro. Esta última, infelizmente, é muito comum. Não são raras as notícias de pessoas em estados gravíssimos à espera de leitos em hospitais públicos, por não terem condições de arcar uma assistência privada, o que leva a morte desses indivíduos, devido à falta do atendimento. Portanto, essa carência do sistema de saúde é responsável pela morte antecipada de muitos enfermos e também pelo processo de sofrimento de muitas outras pessoas, que por não terem suas necessidades atendidas ou mesmo, os medicamentos garantidos, passam por períodos de dores em sua trajetória de vida. Convém lembrar, que o direito à vida e o direito à saúde são direitos fundamentais, positivados em nossa Carta Máxima, a Constituição da República Federativa do Brasil e que estão interligados, pois um modo de garantir a vida, de forma plena e digna, é por meio da proteção da saúde dos indivíduos. Desta forma, o descaso observado na saúde pública do Brasil fere os princípios constitucionais. Portanto, deve ser discutido, a fim de corrigir a situação e mudar o péssimo quadro em que estamos inseridos, o qual torna comum uma das formas mais indignas de morte, que além de não ser uma escolha, ocorre de forma sofrida. 4 EUTANÁSIA OU ORTOTANÁSIA? UM ESTUDO SOBRE O CASO TERRI SCHIAVO Um dos casos mais polêmicos, o qual envolve a questão da morte digna, foi o da norte americana Theresa Marie Schindler-Schiavo (Terri Schiavo), que em 1990 teve um ataque cardíaco, devido à diminuição de potássio no sangue, a qual foi associada a um suposto distúrbio alimentar, como relata Goldim[14]. Após o ataque, Schiavo permaneceu, no mínimo, cinco minutos sem fluxo sanguíneo no cérebro, fato que lhe acarretou uma grande lesão cerebral, responsável pela condição de estado vegetativo persistente a que ficou condicionada. Segundo Castanhato e Matsushita[15], durante o período de três anos, Schiavo foi submetida a diversos métodos tradicionais e experimentais, sem nenhum sucesso. A partir deste período, seu marido, Michael Schiavo, iniciou uma batalha judicial em busca de autorização para a retirada dos tubos que a mantinham “viva”. Porém, a família de Terri Schiavo não aceitava o diagnóstico de irreversibilidade do caso e era, portanto, contra a suspensão dos tratamentos. Com isso, gerou-se uma verdadeira guerra judicial, a qual perdurou cerca de doze anos, permeada de supostos escândalos, referentes ao motivo que levará Michael decidir pela morte de sua esposa. No estado da Flórida, localizado nos Estados Unidos da América, deve-se observar a vontade do enfermo, quanto à manutenção de sua condição, mas devido ao estado de inconsciência de Terri, seu marido Michael, seu então responsável legal, era quem deveria ser consultado. Com base nesses argumentos expostos, a Suprema Corte da Flórida decidiu em manter a decisão das Cortes inferiores, as quais permitiram a retirada dos tubos de Terri. Em 2005, após quinze anos em estado vegetativo e doze de luta judicial, o tubo que alimentava e hidratava Terri foi retirado, o que levou, após treze dias, ao seu falecimento. A partir do breve relato, podemos, inicialmente, classificar o caso Schiavo como uma prática da ortotanásia, pois em nenhum momento houve o pedido para a antecipação da morte e sim para a suspensão do que mantinha Terri viva, mesmo em estado vegetativo. Porém, tendo em vista o princípio da dignidade humana, é possível ter duas visões, do caso Schiavo, sobre este mesmo aspecto. Primeiramente, é inquestionável que ser mantida em estado vegetativo, sem nenhuma possibilidade de recuperação, submetendo-se a diversos procedimentos, durante quinze anos, é algo que fere a dignidade da pessoa humana, pois apenas será prolongado o processo de sofrimento. Entretanto, possibilitar que o curso normal da morte seja por meio da inanição, ou seja, a morte por falta de alimentação e hidratação é, sem dúvida, um fato que fere a dignidade humana, pois isso seria o mínimo que a família deveria fornecer a Terri. Tendo em vista que a morte de um indivíduo ocorre quando não há mais atividade cerebral, e a inerente consequência deste fato é a falência de todos os órgãos, visto que o indivíduo não conseguiria mais respirar sozinho, havendo ou não o suprimento alimentar, a morte seria inevitável. Contudo, no caso de Terri não houve a morte encefálica, mas apenas a persistência do chamado estado vegetativo, que de acordo a Bare e Smeltzer [16] “é uma condição em que o paciente é descrito como acordado, mas não consciente, sem função mental cognitiva ou afetiva”, isto é, um estado de atividade mínima do cérebro, acionado como mecanismo de defesa ao trauma sofrido. Nesta condição o indivíduo consegue respirar sozinho, mantendo-se assim, vivo, mas não consegue movimentar-se ou alimentar-se sozinho. Desta forma, ao se retirar os tubos de alimentação, indiretamente antecipa-se a morte do paciente, pois a morte normal viria em decorrência de uma complicação em seu estado e não por falta de alimento. Na prática da ortotanásia continua-se mantendo as mínimas condições, as quais possibilitaria o menor grau de sofrimento ao paciente. Com isso seria, portanto, a prática indireta da eutanásia, que ocorrera não por meio de medicamentos, mas por inanição. Por fim, é importante destacar que, por Schiavo encontrar-se em estado vegetativo persistente, e não com morte cerebral, havia uma chance, mesmo que mínima, de retorno de sua atividade cerebral, e, portanto, é um ato ilícito retirar os tubos que a hidratavam e a alimentavam. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, é importante salientar que não se deve interromper o curso natural da vida, o qual inclui nascer, mas também morrer. Portanto, não cabe, em nenhuma hipótese, a prática de métodos abusivos à dignidade humana, como a distanásia ou eutanásia. Existem alternativas para essas situações complicadas, as quais estamos todos sujeitos, por isso é fundamental discutir o assunto sempre e não apenas esporadicamente, quando há uma caso polêmico na mídia. Tal discussão, independente de crenças, valores ou religiões, deve objetivar a regulamentação dessas práticas, de forma bem aprofundada e precisa, pois é atrás de tabus, os quais a sociedade e as autoridades evitam, como a morte, que se camuflam as piores atrocidades e ilicitudes contra o bem supremo, que é a vida e contra a dignidade da pessoa humana, importante direito da personalidade.
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