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A dupla desvantagem da mulher com deficiência no mercado de trabalho
O presente artigo busca relacionar a condição de ser humano com deficiência e ser humano do gênero feminino com a acessibilidade ao mercado de trabalho.Seriam tais condições uma dupla desvantagem para aquelas que se encontram em ambos os grupos? Para isso, analisaremos um breve histórico da luta das pessoas com deficiência e a mudança no uso da terminologia histórica do termo, a fim de explicar porque o mercado trata tanto as mulheres como as pessoas com deficiência com uma postura assistencialista e como reserva de mão de obra. Quanto à condição de mulher no mercado de trabalho, uma questão é a padronização do corpo ideal e o quanto isso afeta mais as mulheres. Por fim, busca-se aqui refletir acerca da eficácia da lei de cotas e se sua atuação tem garantido oportunidades e rendimentos igualitários para homens e mulheres.
Direitos Humanos
1. Considerações Preliminares O presente artigo pretende analisar a condição da mulher com deficiência no mercado de trabalho brasileiro.Tal condição é significativa, visto que, a própria Organização das Nações Unidas reconhece que alguns grupos apresentamnecessidade de maior proteção por estarem em condição de desvantagem. No texto da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (preâmbulo, alínea q) a Convenção menciona que mulheres estão mais expostas aos riscos de “sofrer violência, lesões ou abuso, descaso ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração”. Analisaremos se essa dupla desvantagem também é traduzida na inserção das mulheres com deficiência no mercado de trabalho.Estudar a realidade destas mulheres já empregadas, bem como das que procuram emprego, é relevante do ponto de vista social, econômico e jurídico. Social, pois trata de dois grupos historicamente discriminados, aos quais foram e são negadosdireitos e questionada suas habilidades. Mulheres e pessoas com deficiência foram ao longo dos séculos impedidas de participarem ativamente da vida social e do mercado de trabalho. Tais aspectos deixam marcas significativas até hoje, por exemplo, mencionamos a dificuldade em encontrar profissionais com deficiência com experiência. Nunca foi dada a esse grupo a chance de se inserir no mercado. Econômico, pois o Brasil possui mais de 45 milhões de pessoas com deficiência, das quais a maioria (53,58%) mulheres.[1]Tais cidadãs devem ser incluídas no mercado de trabalho e constituir mão de obra economicamente ativa. Ademais, deficiência e pobreza estão profundamente relacionadas. Estima-se que na América Latina e Caribe hábem mais 50 milhões de pessoas com deficiência e dessas 82% vivem na pobreza[2]. As classes sociais menos favorecidas têm maior chance de adquirir uma deficiência ao longo de suas vidas. A deficiência é associada a altas taxas de analfabetismo, alimentação inadequada, falta de acesso à água potável, grau de imunidade baixo, doenças (e tratamento inadequado) e condições de trabalho perigosas e insalubres. Acredita-se que a deficiência pode resultar em pobreza, considerando que as pessoas com deficiência sofrem discriminação e marginalização. Por fim, jurídico, pois precisamos analisar a aplicação da Lei de Cotas e sua eficácia na inclusão de pessoas com deficiências no mercado, bem como, se esta está gerando oportunidades igualitárias entre homens e mulheres. Percebemos, muitas vezes, que a conquista do direito acontece apenas formalmente, sem que haja efetividade material da norma jurídica. A lei de cotas é rígida e mesmo assim não é cumprida. Apenas 0,7 % dos profissionais empregados são pessoas com deficiência[3]. Quando cumprida muitas vezes é de forma desigual. Percebe-se hoje que a severidade das deficiências é um critério utilizado pelos empregadores, contratando apenas profissionais com deficiências leves, desse modo, quanto mais severa a deficiência menor a chance de inserção no mercado de trabalho. O objetivo, neste trabalho,consisteem interpretar os dados quantitativos à luz do tema para responder se as mulheres com deficiência encontram maiores dificuldades de inserção no mercado de trabalho, quando comparadas aos homens com deficiência.  Nossa hipótese inicial é que as condições de mulher e pessoa com deficiência, quando somadas formam uma dupla desvantagem que torna o acesso ao mercado desigual entre homens e mulheres. 2. A definição de deficiência e os aspectos históricos na luta das pessoas com deficiência: O que é deficiência? Nesse artigo optamospor tratar os dois temas em conjunto, pois o próprio conceito de deficiência vem se modificando.É necessário esclarecer a diferença entre doença e deficiência.Embora algumas deficiências sejam frutos de uma doença, nem todo corpo deficiente é um corpo doente. Alguém que precisou amputar as pernas por conta de um acidente de carro é uma pessoa com deficiência, porém não possui nenhuma doença. Há várias definições para deficiência. Até a década de 60 o conceito de deficiência era puramente biomédico. Os estudos sobre o tema eram limitados ao tratamento médico e psicológico, além da reabilitação. O corpo deficiente era visto como uma variação do “normal”, do “saudável”. Sobre esse aspecto, assinala Diniz (2007 p. 4): “A concepção de deficiência como uma variação do normal da espécie humana foi uma criação discursiva do século XVIII, e desde então ser deficiente é experimentar um corpo fora da norma.”¹ A questão da normatização do corpo, definindo o que é “normal” por seguir ou não um padrão é até hoje uma das fontes do preconceito e estigmas sofridos por pessoas com deficiência. Reconhece-se, porém, que o cenáriomudou bastante desde os anos 60. Nessa época, pessoas com deficiência eram internadas em instituições e centros com pouco ou nenhum contato com o mundo exterior e sem nenhuma independência. O objetivo era, na maioria das vezes, tirá-las dos olhos da sociedade ou o de reabilitá-las para retornar à família ou meio social como uma pessoa “normal”. Se hoje temos dificuldades com temas como acessibilidade e inclusão, pode-seter uma breve noção do que era ser deficiente em um mundo que não estava preocupado em incluí-lo. A pessoa com deficiência estava encarcerada no próprio corpo e não contava com nenhum esforço do meio social para tornar sua situação menos difícil. A década de 70 é crucial na redefinição do conceito de deficiência e na luta por direitos desse grupo. Relata Diniz (2007, p 7) que o sociólogo Paulo Hunt, do Reino Unido,  escreveu uma carta ao jornal inglês The Guardian, em 20 de setembro de 1972, na qual criticava as condições vividas pelas pessoas com deficiência isoladas nessas instituições e cujossentimentos, pensamentos e opiniões eram desconsiderados. Propunha a criação de um grupo de pessoas que se encontravam nessa situação, objetivandolevar ideias e reivindicações sobre o tema ao Parlamento. Esta carta representou o início de uma verdadeira revolução na luta das pessoas com deficiência. A carta recebeu diversas respostas de apoio. Após quatro anos, foi formada a UPIAS (Liga dos Lesados Físicos contra a Segregação). E a mesma autora destaca que a UPIAS foi uma instituição importantíssima, sobretudo porquedeu voz às pessoas com deficiência e crucial na definição do seu modelo social. Seus membros revolucionaram o modo de perceber a deficiência ao retirar a questão do aspecto puramente biomédico. (ibid) Enquanto o modelo biomédico cataloga e estuda a deficiência sem relacioná-la com o meio social, este entende que muitas das limitações sofridas pelas pessoas com deficiência ocorrem devido ao fato dea sociedade estar pouco ou nada adaptada para conviver com a diferença e promover a inclusão. Diniz (2007 p. 4) esclarece a diferença dos modelos: “O modelo médico de compreensão da deficiência assim pode catalogar um corpo cego: alguém que não enxerga ou alguém a quem falta a visão – esse é um fato biológico. No entanto, o modelo social da deficiência vai além: a experiência dadesigualdade pela cegueira só se manifesta em uma sociedade pouco sensível à diversidade de estilos de vida”. ² E acrescenta Diniz (2007 p.5): “Nessa guinada acadêmica, deficiência não é mais uma simples expressão de uma lesão que impõe restrições à participação social de uma pessoa. Deficiência é um conceito complexo que reconhece o corpo com lesão, mas que também denuncia a estrutura social que oprime a pessoa deficiente.” Surge assim um contraponto em que se questiona se as lesões produzem a deficiência ou se esta última é sinônima das primeiras. “Se para o modelo médico o problema estava na lesão, para o modelo social, a deficiência era o resultado do ordenamento político e econômico capitalista, que pressupunha um tipo ideal de sujeito produtivo. Houve, portanto, uma inversão na lógica da causalidade da deficiência entre o modelo médico e o social: para o primeiro, a deficiência era resultado da lesão, ao passo que, para o segundo, ela decorria dos arranjos sociais opressivos às pessoas com lesão. Para o modelo médico, lesão levava à deficiência; para o modelo social, sistemas sociais opressivos levavam pessoas com lesões a experimentarem a deficiência.”(Diniz, 2007, p. 11.) Essa nova definição foi revolucionária, pois retirava do indivíduo (a visão da “tragédia pessoal”) ou do acaso a responsabilidade pela deficiência ao considerar que a deficiência era um resultado de discriminação social e que não era uma questão puramente médica, mas também política, econômica, e sociológica: “O modelo social definia a deficiência não como uma desigualdade natural, mas como uma opressão exercida sobre o corpo deficiente. Ou seja, o tema da deficiência não deveria ser matéria exclusiva dos saberes biomédicos, mas principalmente de ações políticas e de intervenção do Estado.” (DINIZ, 2007, p.9). Por 20 anos o modelo social elaborado pela UPIAS foi unânime e livre de críticas. As críticas vieram nos anos de 1990 a 2000, elaboradas principalmente por teóricas feministas. A UPIAS foi criada por homens, em sua maioria de classe média alta e com lesões físicas. É notável que os deficientes físicos sofram bem menos preconceito e estigma do que os mentais, por exemplo. A defesa de que a retirada de barreiras levaria a independência não atendia a todos os tipos de deficiência. Nem toda pessoa com deficiência poderá se tornar independente (por exemplo: pessoas com paralisia cerebral): “O argumento do modelo social era o de que a eliminação das barreiras permitiria que os deficientes demonstrassem sua capacidade e potencialidade produtiva. Essa ideia foi duramente criticada pelas feministas, pois era insensível à diversidade de experiências da deficiência. A sobrevalorização da independência é um ideal perverso para muitos deficientes incapazes de vivê-lo. Há deficientes que jamais terão habilidades para a independência ou capacidade para o trabalho, não importa o quanto as barreiras sejam eliminadas”. (DINIZ, 2007, p.28) 6 Surge aqui uma questão crucial que foi posta de lado no primeiro modelo: o cuidado.  A inserção de pessoas não deficientes no debate veio por meio das cuidadoras. Existem pessoas com deficiência que necessitam do cuidado permanente como condição de sobrevivência. As relações sociais também foram tema do segundo modelo. “As feministas cuidadoras não apenas passaram a ser uma voz legítima nos estudos sobre deficiência, mas principalmente colocaram a figura da cuidadora no centro do debate sobre justiça e deficiência, denunciando o viés de gênero no liberalismo político. Há desigualdades de poder no campo da deficiência que não serão resolvidas por ajustes arquitetônicos. Apenas princípios da ordem das obrigações morais, como o respeito aos direitos humanos, serão capazes de proteger a vulnerabilidade e a dependência experimentadas por muitos deficientes. A proposta feminista do cuidado diz respeito a relações assimétricas extremas, como é o caso da atenção aos deficientes graves.* Erroneamente supõe-se que o vínculo estabelecido pelo cuidado seja sempre temporário: há pessoas que necessitam do cuidado como condição de sobrevivência. Por isso, ele é uma demanda de justiça fundamental.” (DINIZ, 2007, p.30) Além disso, o segundo modelo trata de questões de gênero, etnia, orientação sexual e idade. Em alguns casos, a pessoa além de sofrer o estigma da deficiência, ainda sofre com outros tipos de preconceito, por exemplo, ser mulher e deficiente. Por fim, foram as feministas que mostraram que, para além da experiência da opressão pelo corpo deficiente, havia uma convergência de outras variáveis de desigualdade, como raça, gênero, orientação sexual ou idade.9 Ser uma mulher deficiente ou ser uma mulher cuidadora de uma criança ou adulto deficiente era uma experiência muito diversa daquela descrita pelos homens com lesão medular que iniciaram o modelo social da deficiência. Para as teóricas feministas da segunda geração, aqueles primeiros teóricos eram membros da elite dos deficientes, e suas análises reproduziam sua inserção de gênero e classe na sociedade. (DINIZ, 2007, p. 28.) Reconhecer que nem toda pessoa com deficiência é capaz de se tornar independente mesmo com a retirada de barreiras, reconhecer a interdependência nas relações e inserir as questões de cuidado e cuidadoras formamas inovaçõesrepresentativas da segunda geração do modelo social. Embora reconheçamos a contribuição trazida pelo modelo social,não trabalharemos com a divisão entre lesão e deficiência, mas sim, optamos pelos termos empregados pelaONU, quais sejam, deficiência, incapacidade e impedimento, bem como o conceito de desvantagem para tratar das questões sociais. [4] Para a ONU deficiência é “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica.” Incapacidade trata-se de “toda restrição ou falta (devido a uma deficiência) da capacidade de realizar uma atividade na forma ou na medida em que se considera normal a um ser humano”. O impedimento é “a perda ou limitação das oportunidades de participar da vida da comunidade em igualdade de condições com os demais.”O conceito de desvantagem é mais abrangente que o de impedimento pois não apenas pessoas com deficiência podem vivenciar a desvantagem. Grupos minoritários como mulheres, idosos, e minorias raciais sofrem também desvantagem (por isso a hipótese aqui apresentada de que ser mulher e deficiente é uma dupla desvantagem na inserção no mercado de trabalho). Além de outros aspectos que podem causar desvantagem, como por exemplo, ser portadora de HIV ou ter uma deformidade facial que o torne fora dos padrões de beleza e normatividade da sociedade. Isso ocorre porque a desvantagem é principalmente uma questão de estigma e discriminação. No Brasil, a luta pelos direitos das pessoas com deficiência vem sendo positivada no Direito e exteriorizando seus efeitos através de leis, porém não podemos afirmar que os direitos adquiridos vêm sendo respeitados e cumpridos por todos. Conforme assinalado por Araújo (2013), “Socialmente, soa como uma conquista histórica e extremamente significativa o fato de indivíduos com deficiência passarem a ter direitos incluídos em vários trechos da Carta Política […] Enquanto as pessoas com deficiência, os movimentos representativos destas pessoas e setores do Ministério Público, das Defensorias Públicas, intelectuais, etc. comemoram, o processo de inclusão pela legislação vai se consolidando formalmente, sem que tais prescrições levadas à condições de normas positivas venham, em muitas situações, a se traduzir em alterações substanciais na realidade prática da vida das pessoas com deficiência”.( P.10) Por conta dessa relação com o direito materializado em leis, ao tratarmos da reserva de cargos em empresas privadas, temos por base o conceito de deficiência utilizado pelo Ministério do Trabalho e Emprego que por sua vez, funda-se nas definições contidas nas Convenções da Guatemala e Sobre Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes da Organização Internacional do Trabalho (OIT).Esta última trata por pessoa deficiente “todas aquelas cujas possibilidades de obter ou conservar um emprego adequado e de progredir no mesmo fiquem substancialmente reduzidas devido a uma deficiência de caráter físico ou mental devidamente comprovada.” Já a Convenção da Guatemala acolhe o entendimento de que a deficiência é “uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais a vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social.” 3. A mulher com deficiência e o mercado de trabalho A pessoa, especialmente a mulhercom deficiência, tiveram um acesso tardio ao mercado de trabalho formal.Á mulher, por muitos séculos ficou relegado a função reprodutiva. O sexo feminino era tido como frágil e dependente de proteção do chefe da família (normalmente pai ou marido). Sua formação visava à construção de uma boa esposa, dona de casa e mãe (bordado, costura, culinária, administração do lar, etc.). Raríssimas as mulheres que eram, quando muito, alfabetizadas. Não tinham direito a propriedade, sua herança era passada ao marido para que esse administrasse. Entre osséculosXVIII e XIX, a mulher passa a ingressar no mercado de trabalho.Com o fim da escravidão e a introdução de uma nova mão de obra no Brasil ─ os imigrantes ─ além de escravos libertos, mas sem nenhuma qualificação e com um forte preconceito racial da sociedade da época, passaram a existir famílias extremamente pobres. Devido a tal situação, as mulheres e as crianças passam também a trabalhar tanto na lavoura, quanto nas novas fábricas que vem surgindo no país, para compor a renda familiar, não de forma igualitária com o homem, mas sua mão de obra vista como complementar, de baixo custo e com pouca ou nenhuma qualificação.O capitalismo via a mulher como uma reserva de mão de obra: barata e com poucas reivindicações. As guerras também têm grande impacto no mercado de trabalho, visto que, grande parte dos homens em idade produtiva estava na guerra. Além disso, muitos voltavam com ferimentos de guerra e incapazes de exercer suas antigas funções. Ironicamente, o período das duas Grandes Guerras foram ao mesmo tempo o que mais gerou pessoas com deficiências e ao mesmo tempo, o período em que a sociedade começa a aceitar a mulher trabalhando, à medida que faltava mão de obra.  Além dessas, algumas outras conquistas deram a oportunidade da mulher assumir o controle da própria vida. Podemos citar o direito a educação igualitária e o surgimento dos métodos contraceptivos (dando-lhe o direito de escolha de quando e se quer ser mãe). Conforme já destacamos, até os anos 1970, as pessoas com deficiência não contavamcom qualquer independência em sua vida.Logo, a condição da mulher com deficiência era duplamente desigual. Se por um lado como mulher foi lhe negado acesso à educação e ao trabalho por séculos, por ser tida como “frágil” e “necessitar de proteção”, por outro estava em um corpo que era considerado “anormal”, “doente”, e inadequado para o meio social, comumente institucionalizado pela sociedade da época, onde o costume era a retirada dos deficientes do convívio social. Tal estigma ainda é agravado pela visão da sociedade que coloca um padrão aceitável no corpo feminino. A mulher deve ser bela, de formas perfeitas, atrativa, e, para parte da sociedade, um corpo deficiente não se enquadra nesse padrão, o que agrava o preconceito. No mercado de trabalho onde se é comum pedir “boa aparência”, tal idealização do corpo feminino novamente coloca a mulher com deficiência em desvantagem. Essa característica própria da mulher com deficiência éexplicada: “No caso das mulheres, é recorrente na literatura feminista o argumento que evidencia a “dupla desvantagem” com que vivem as mulheres com deficiência em relação a participação social, direitos sexuais e reprodutivos, educação, trabalho e renda. Ao se constituírem mutuamente e se retroalimentarem, os efeitos do duplo estigma potencializam a exclusão das mulheres com deficiência, processo que se complexifica ainda mais quando cruzado com outras categorias como raça/etnia e classe. De todo modo, oque se quer ressaltar aqui é que, se tendemos hoje a falar de masculinidades e feminilidades, é preciso ressaltar a deficiência como componente do espectro de possibilidades dessas posições de gênero plurais.” (MELLO, e NUERNBERG, 2012, P 641) Ao analisarmos a efetividade da Lei de Cotas, procuraremos demonstrar como essa dupla desvantagem da mulher com deficiência se reflete hoje no mercado de trabalho. 4. A Lei de Cotas e as pessoas com deficiência Devido à existência do preconceito contra a pessoa com deficiência se verificar de várias formas,sua inserção no mercado de trabalho somente tem se efetivado através de leis e políticas públicas. Acredita-se que a pessoa com deficiência é um ser incapaz de exercer tarefas profissionais, dando a estas um tratamento assistencialista ao invés de criar serviços de avaliação e capitação. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 23 reconhece que“toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do seu trabalho e a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego”. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 7º, proíbe a discriminação na remuneração e nos critérios de admissão dos trabalhadores com deficiência e, em seu artigo 37, VIII, prevê a reserva de percentual de vagas no setor público exclusivamente. Já no setor privado, foi o plano infraconstitucional, com política de cotas instituída em 1991, que tratou da reserva de vagas, sendo atualmente o principal mecanismo de inserção trabalhista disponível às pessoas portadoras de deficiência. Como disposto no artigo 93 da Lei 8213 de 24 de Julho, o número de funcionários de uma empresa privada determinará o piso percentual obrigatório para a contratação de beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência (para a Lei, a deficiência é considerada quando ocorre a perda ou anormalidade da estrutura ou de sua função psicológica ou fisiológica). Determina o referido artigo, in verbis: “Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção: I – até 200 empregados……………….2%; II – de 201 a 500……………………….3%;  III – de 501 a 1.000……………………4%; IV – de 1.001 em diante. ……………5%. § 1º A dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias, e a imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante. § 2º O Ministério do Trabalho e da Previdência Social deverá gerar estatísticas sobre o total de empregados e as vagas preenchidas por reabilitados e deficientes habilitados, fornecendo-as, quando solicitadas, aos sindicatos ou entidades representativas dos empregados.” Entretanto, apesar da lei possuir plena vigência, de ser de conhecimento geral e de, sobretudo, gerar penalidades para aqueles que não a cumprirem, na prática os seus efeitos estão muito abaixo da própria previsão legal. A principal crítica feita pelos empresários obrigados a contratar portadores de deficiência é que normalmente são estes pessoas de baixa escolaridade e sem qualificação profissional, queacarretam custos elevados para a adaptação necessária na estrutura física das organizações, a fim de que os espaços possam ser adequados ao seu trabalho e deslocamento. No entanto, no que diz respeito à falta de qualificação profissional, o Ministério do Trabalho e Emprego (2007) explica que: “A equipe que efetua a seleção deve estar preparada para viabilizar a contratação deste seguimento. Principalmente, precisa ter claro que as exigências a serem feitas devem estar adequadas às peculiaridades que caracterizam as pessoas com deficiência. Se isto não ocorrer, vai ser exigido um perfil de candidato sem qualquer tipo de limitação”. (p. 23). O sobredito órgão, sobre a baixa  escolaridade ou até a falta dela para as pessoas com deficiência, reconhece como uma realidade, ponderando entretanto que “Às pessoas com deficiência também na foram dadas iguais oportunidades de acesso à escolarização. Entretanto, muitas vezes, apesar de não terem a certificação, tiveram acesso ao conhecimento através do apoio da família ou da comunidade local. De outro lado, muitas vezes é exigido, de forma generalizada, um patamar de escolaridade que não é compatível com as exigências de fato para o exercício das funções”. (p. 23) A partir disso, é possível aferir que a criação da Lei de Cotas foi feita para viabilizar o acesso de um grupo de pessoas que não têm meios nem condições de competir em igualdade por uma vaga profissional com as demais, cabendo as empresas privadas tornarem possível tal acesso. 5. Alguns números da Política de Inclusão Profissional A análise do impacto da Lei de Cotas e de seus resultados é feita pelo banco de dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), instaurada pelo Decreto nº 76.900 de 1975, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que em 2007, pela primeira vez, incorporou a questão da deficiência em seu questionário. Suas informações são prestadas anualmente e obrigatoriamente pelos estabelecimentos brasileiros, inclusive aqueles sem registro de vínculo empregatício no exercício. Em suma, é a RAIS um censo anual do mercado de trabalho formal. Segundo a RAIS, de 2007 a 2011, o número de vínculos empregatícios ativos só aumentou, enquanto que o de portadores de deficiência ativos no mercado de trabalho, entre ligeiras elevações e diminuições, se estagnou em menos de 0,70% do total dos vínculos empregatícios. Os deficientes físicos representam a maior parte e os portadores de deficiência mental e deficiências múltiplas a menor. Quanto aos rendimentos médios das pessoas com deficiência, não houve, durante esses anos, grandes acréscimos, pelo contrário, a RAIS 2011 mostra que os rendimentos médios caíram em 7,29%. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre pessoas sem deficiência, a participação dos homens na população economicamente ativaé 34% maior que a das mulheres. Em pessoas com deficiência tal diferençacorresponde a 30%. Na RAIS 2011, dos 325,3 mil vínculos declarados como de pessoas com deficiência, 213,8 mil eram do sexo masculino e 111,4 mil do feminino, em uma proporção de 65, 74% homens e 34,26 % mulheres. Quanto aos rendimentos médios, em todas as modalidades de deficiência o homem apresenta maior rendimento que as mulheres. Tais taxas variam de 58,34% para pessoas com deficiência auditiva até 90,17% para pessoas com deficiência intelectual. Ainda que a participação dos homens com deficiência no mercado de trabalho seja 30% superior à das mulheres em igual condição, revelando discrepância menor que entre os trabalhadores sem deficiência (34%), as demais comparações aparentemente indicam que ser mulher e deficiente caracteriza dupla desvantagem no mercado de trabalho brasileiro.Ademais,a Lei de Cotas não adquiriu a efetividade esperada quando de sua elaboração, não logrando assegurar nem 1/5 dopercentual previsto no art. 93 do respectivo texto.As mulheres com deficiência, se comparadas às mulheres sem deficiência, dentro do seu respectivo grupo, chegam a perceber 90% menos em relação aos homens deficientes. 6. Considerações Finais Até aqui, tudo o que foi escrito tem por finalidade chamar atenção para aspectos históricos e culturais que marcam significativamente a construção da atual era de direitos formalizados e pouco substancializados. Este trabalho procurou descrever um pouco da história da formação deste movimento e da realidade em números enquanto consequência da inclusão formal. Este conjunto de condições marcado por um forte descompasso entre a norma jurídica e sua aceitação social tem motivado discussões intermináveis sobre os caminhos da política de cotas para pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Para as mulheres, a condição de deficiente traz consequências, na maioria dos casos, mais graves do que para os homens, visto que aquelas, em muitos países, inclusive no Brasil, ainda se encontram em acentuada posição de desvantagem. As mulheres com deficiência suportam, simultaneamente, os reflexos da histórica discriminação pelo simples fato de ser mulher, assim como convivem com toda a carga discriminatória em decorrência da deficiência. Quando duas, três ou maiscondições ensejadoras de preconceitos e discriminação se reúnem em uma só pessoa, falamos em dupla, tripla ou múltipla desvantagem, o que equivale ao conceito de Barton (1996 apud Pastore, 2000) de “opressão simultânea. No Brasil, visando dar fim a esta mazela, foi promulgada em 1991 a Lei de Cotas, que reserva para as pessoas com deficiência 2% a 5% das vagas disponíveis nas empresas privadas com 100 ou mais empregados. Obviamente, não será a mera criação de uma lei a solução de um problema que vem se agravando há anos, entretanto, apesar de a Lei de Cotas ainda estar longe de atingir o seu objetivo, não há como negar que foi ela um fator decisivo para a inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho. A condição da mulher com deficiência, verificados os dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) assim como outros tantos dados estatísticos nos permitem concluir que é momento da ciência jurídica questionar a própria política inclusiva legal vigente, com a finalidade de refletir sobre sua efetividade em relação às questões de gênero. Se as pessoas com deficiência, de uma forma geral, convivem com uma realidade de exclusão, entre as pessoas com deficiência, as mulheres enfrentam o drama da preterição por sua simples condição feminina.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-dupla-desvantagem-da-mulher-com-deficiencia-no-mercado-de-trabalho/
Direito Previdenciário: Aposentadoria dos Professores
Neste sentir o presente artigo cientifico tem com objetivo discorrer em breves palavras sobre a aposentadoria dos professores. Para realização deste trabalho no que tange à metodologia científica utilizaremos a pesquisa bibliográfica que é aquela pautada na leitura avulsa de revistas de direito livros de direito artigos científicos consultas à jurisprudências ou ainda conteúdos indexados na internet bem como outras fontes que serão devidamente indicadas[1]
Direitos Humanos
Introdução A finalidade da seguridade social é amparar os trabalhadores e seus dependentes, quando o laborador se depara com situações que exponha a risco não só a sua integridade física, mas também a estabilidade social de seus dependentes, impossibilitando subsistência destes e daquele. Porquanto, temos como gênero as prestações previdenciárias, as quais se manifestam em benefícios e serviços, e revelando-se como espécie a aposentadoria. Como veremos no decorrer desse artigo, o reconhecimento à aposentadoria para a classe de docente foi por meio do Decreto de 1º de outubro de 1821, que passou a prever a aposentadoria após trinta anos de serviço. Nos dias atuais, é dada a oportunidade dos professores se aposentam após trinta anos de contribuição e vinte cinco anos de contribuição para as professoras. Nesse sentir, o presente artigo científico tem como objetivo discorrer, em breves palavras, sobre a aposentadoria dos professores. Para realização deste trabalho, no que tange à metodologia científica, utilizaremos a pesquisa bibliográfica, que é aquela pautada na leitura avulsa de revistas de direito, livros de direito, artigos científicos, consultas a jurisprudências, ou, ainda, conteúdos indexados na internet, bem como outras fontes que serão devidamente indicadas. 1. Evolução da seguridade social Miguel Horvath Júnior (2008, p, 21) nos ensina que, desde o início o homem sempre esteve exposto a fatores de risco e de inseguranças, sofrimentos e privações, majoritariamente os doutrinadores afirmam que esses fatores de risco ocasionam uma instabilidade social e ameaça a segurança a paz. Forma-se então uma idéia de necessidade de proteção contra esses fatores, que sempre esteve presente na história da humanidade. Enceta-se a criar mecanismos coletivos de proteção social, os quais visam pugnar a situação de fragilidade social e desamparo além de equilibrar as diferenças de forças que se encontram os trabalhadores. Para equilibrar essa situação foram se desenvolvendo muitos modelos protetivos, tanto individual como coletivos. Segundo observa Martins (2001, p, 28), o interesse em amparar os indivíduos das casualidades sociais ou de situações funestas, aflorou desde o limiar da humanidade, que buscava sempre desenvolver procedimentos de proteção social. Já na pré-história, ainda que timidamente, pode-se dizer que a simples reunião dos grupos para caçar, compartilhá-la, a sua estocagem para serem consumidos no futuro e se protegerem dos casos de força maior quer naturais ou, caso fortuito, pela mão humana, já demonstravam a precisão de idealizar formas de proteção. Mozart Victor Russomano (1978, p, 12-13) argumenta que não se podemos imaginar o início da Previdência Social tenha ocorrido com a simples estocagem de alimentos, tão pouco, se pode menosprezar a fusão de esforços para a melhoria das condições de vida dos membros formadores deste grupo, ainda articula: “é o sentimento universal de solidariedade entre os homens, ante as pungentes aflições de alguns e generosa sensibilidade de muitos”. Na obra de Souza (2010, p, 111-112), observamos que os primeiros sistemas de proteção social que se tem notícia eram calcados em um certo nível de organização, direcionados para o auxílio recíproco de seus membros, temos como exemplo o Talmud, o Código de Hamurabi e o Código de Manu, consideradas como as primeiras ordenações normativas, sendo que o último chegava a tratar dos empréstimos para subsidiariamente cobrir dos riscos, espelhando-se nas experiências dos fenícios e dos Gregos. Os produtores e artesãos livres romanos contribuíam periodicamente para um fundo comum, com objetivo de custear os funerais de seus próprios associados. Essas associações eram conhecidas por collegia ou sadalitia, tinham o escopo, fundamentalmente, mutualista. Na Inglaterra de 1601, é editada a lei dos pobres – Poor Law Act – tinha como fito a ajuda humanitária aos miseráveis, dentre eles as crianças. A receita deste regramento jurídico era também destinada ao financiamento para criação de campos de trabalho para os desempregados, além de socorrer os idosos e inválidos. O recurso para sustentar a vigência desta lei advinha do pagamento compulsório de taxas (SOUZA, 2010, p, 01). Com a redação da Declaração dos Direitos do Homem (Revolução Francesa de 1789) redigida pelo poder legiferante francês, conjecturava uma proteção social de caráter público e contributivo, levando para o Estado essa obrigação de controlar e administrar. E na Alemanha de 1883, é editada no dia 15 de junho a Lei do seguro-doença, a qual dividia o ônus, para aplicabilidade da lei, entre o Estado e os empregadores e em 6 de julho 1884 também na Alemanha, é promulgada a Lei do acidente do trabalho, a qual era mantida pelas contribuições dos próprios empregados (HORVATH JÚNIOR, 2008, p, 24). Ainda em terras germânicas, em 1889, criava-se em 22 de junho a Lei do seguro invalidez e idade, onde o Estado, os empregadores e os trabalhadores custeavam o sistema, cada um com sua contribuição. Na Inglaterra do ano de 1897, cria-se um seguro obrigatório contra acidentes no trabalho (Workman’s Compensation Act), onde o empregador tem a responsabilidade objetiva para indenizar algum dano ocorrido ao trabalhador.   E onze anos mais tarde, em 1908, é promulgada uma certa lei que concedia uma pensão para aqueles que atingissem a idade de setenta anos, mesmo se estas pessoas não tivessem contribuído (Old Age Pensions). Em 1911, também em solo Inglês, institui-se um sistema de proteção social, cuja contribuição era obrigatória e custeada pelos trabalhadores, empregadores e pelo Estado. No México de 1917, foi incluso um artigo na Carta Política deste país, o qual delimitava um modelo de seguro social. Em 1919, cria-se a OIT (Organização Internacional do Trabalho) cujos princípios são: o trabalho, seguridade social, busca da paz e da justiça social. Também nesta data, mas voltando à Alemanha, mais precisamente no dia 11 de agosto, data que começou a vigorar a sua constituição, propõem ao Estado providenciar assistência aos cidadãos que não estavam inseridos no mercado de trabalho (HORVATH JÚNIOR, 2008, p, 25).  O 32º Presidente dos EUA, Franklin Delano Roosevelt, em 1935, criava a seguridade social americana (Social Security Act). Já em 1942, o inglês William Henry Beveridge criava-se também um projeto de lei que consistia em dar assistência desde o nascimento até a morte como princípio base da seguridade social. Na data de 1948, era destacado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, nos artigos 22,25 e 28, o direito da pessoa à seguridade social, e por fim, em 1952, ano da convenção de número 102 da OIT, criava preceitos para seguridade social aos trabalhadores (HORVATH JÚNIOR, 2008, p, 26).                  Volvendo ao século XIX, à criação de um sistema protetivo começa a ser alinhavado no auge do capitalismo desenvolvido na Revolução Industrial, quando nas indústrias têxteis para ganharem mais escala produtiva substituíam mão-de-obra masculina pela feminina e de crianças. Sobreveio então o desemprego a remuneração vil, o desamparo aos que estavam sem assistência social até chegarem à miséria. O operário começou a vender seu tempo e o seu trabalho por qualquer valor, sendo pressionado a cumprir horários e metas produtivas (IANNONE, 1995, p, 65). Segundo Iannone (1995, p, 65), tem-se relatos que eram comuns brigas nos interiores das fábricas entre homens operários e mulheres operárias, e até entre adultos e crianças pela disputa de espaço nas fabricas. Cumpriam uma jornada de quinze horas, ou mais, de trabalho sem nenhum benefício tampouco alguma assistência, os acidentes eram freqüentes a alimentação era de péssima qualidade e quase sempre insuficiente, como se não bastasse os erros ou faltas cometidas eram freados com punições, dentre esses corretivos havia o hábito de chicotear crianças. Assevera também a história, com o término da II Grande Guerra mundial, as potências de democracias liberais foram compelidas a repensar suas políticas sociais, incluindo nos temas sociais seu repúdio contra o fascismo e ao socialismo, em face da penúria em que estava mergulhada toda a Europa, nascendo assim o entendimento dos princípios da ampla proteção social. Nasce a idéia de um Estado que voltado ao Bem-Estar Social, ganhando assim a primazia os direitos sociais (PERREIRA JÚNIOR, 2005). 2. Evolução da seguridade social no brasil A evolução da seguridade social começa em 1543 com a fundação da Santa Casa de Misericórdia de Santos, em São Paulo, por Brás Cubas, cujo desígnio era prestar assistências médicas. Em 23 de setembro de 1793 o Príncipe Regente D. João VI sancionava um plano de assistência para os familiares dos oficiais da marinha, momento em que entrassem em óbito suas família receberiam meio soldo (HORVATH JÚNIOR, 2008, p, 26-27). Esse plano era custeado pelos próprios oficiais, dos quais eram descontados de um dia de seus vencimentos, lei esta que vigorou por mais de cem anos. Na Constituição Imperial de 1824, institui-se o chamado socorro público, mas não passou de apenas de uma demagogia política da época, pois apenas acalentava a situação de miserabilidade que tomava conta na época (SOUZA, 2010, p, 02-03). Em 10 de janeiro de 1835, o Estado institui por meio de um Decreto que criava os Estatutos do Montepio da Economia dos Servidores Públicos do Estado. Já em 1888, em plena proclamação da República se inicia uma ação social de cunho associativista, onde outros trabalhadores de áreas econômicas do Estado também reivindicavam as mesmas garantias sociais daqueles servidores (SOUZA, 2010, p, 02-03). Em 1919 com a edição da Lei nº 3.724 de janeiro, “Lei do Acidente do Trabalho”, estipula a responsabilidade objetiva ao empregador por qualquer dano físico aos seus subordinados no ambiente de trabalho, ainda havia previsão, no texto da referida lei, de que o empregador arcaria com a indenização independente de culpa ou dolo (HORVATH JÚNIOR, 2008, p, 28). No dia 24 de janeiro de 1923 é editado o Decreto Legislativo de número 4.682, tido como o dia da Previdência Social, o qual criaria o primeiro sistema de seguridade social no país, seu propósito era de acobertar os trabalhadores contra os riscos de doenças, velhice, invalidez e morte. De imediato, esse sistema era destinado apenas para a classe ferroviária. Pouco tempo depois, as empresas privadas se interessaram e começaram a criar e administrar suas próprias seguridades. O idealizador desse decreto legislativo foi o advogado Elói de Miranda Chaves, ele se inspirou no seguro social Argentino, o qual também foi criado para a classe dos ferroviários platinos (SOUZA, 2010, p, 05). Segundo Horvath Júnior (2008, p, 30), em nossa Carta Política de 1934, regrava a proteção social, a qual incluía os direitos trabalhistas e direito previdenciários, instituía a modalidade de custeio “tripartite”, que constituía que o Estado, empregadores e trabalhadores financiariam o sistema e fixava a obrigatoriedade do ingresso do laborador ao “sistema” e com gestão toda do Estado. Esse custeio “tripartite” era para garantir a proteção ao trabalhador contra a velhice, invalidez, maternidade, morte e acidente do trabalho. Pouco mais de duas décadas depois, na promulgação da “nova” Constituição Federal, criava a expressão “Previdência Social” no lugar de outra expressão “Seguro Social”.  A Lei Orgânica da Previdência Social (Lei 3.807/60 – LOPS) padronizaria a legislação previdenciária entre todos os institutos previdenciários existentes na época privados ou não, e ainda ampliou a gama de benefícios, tais como: o auxílio-natalidade, auxílio-funeral e o auxílio-reclusão. Com a LOPS democratizaria o tratamento para os trabalhadores com a geração de paridades no custeio, sendo que o trabalhador contribuía conforme sua remuneração e ainda aumentaria a cobertura dos riscos sociais (SOUZA, 2010, p, 06). Nesta época o Brasil era considerado como o país que mais proporcionava aos seus trabalhadores a maior proteção previdenciária de todos os países no mundo, pois tinha dezessete benefícios oferecidos. 2.1 Conceito de Seguridade Social O que podemos entender por seguridade social? Segundo professora Almansa Pastor (apud HORVATH JÚNIOR, 2008, p, 102-103), “é a reunião de regras que instrumentalizam a proteção, o bem estar, moral e espiritual dos indivíduos que passam por necessidades sociais e por aqueles que possam encontrar”. Marisa Ferreira dos Santos (2009, p, 102) disciplina que “é um dos instrumentos disciplinados pela ordem social que, assentado no primado do trabalho, propicia bem-estar e justiça social” (sic). Já para Horvath (2008, p, 102) é apenas uma parte da luta contra os cincos gigantes do mal, que são: a miséria física, a doença (que muitas vezes causadora da miséria), a ignorância, imundície (causada pelas indústrias) e pelo desemprego involuntário (o qual destrói a riqueza e corrompe os homens). A seguridade social é direcionada para aquele cidadão que por razões de desemprego, doença, invalidez ou outras causas, não possa manter seu sustento próprio e de sua família, é uma garantia mínima necessária à sua sobrevivência e de seus entes. Tem-se como um dos objetivos da seguridade, amenizar desigualdade social causado pela falta de renda e afastando-o do colosso de uma possível vicissitude da vida, mantendo assim certa estabilidade social (HORVATH JÚNIOR, 2008, p, 102). A seguridade Social está inserida em um sistema o qual pertence ao Estado, e este garante pecuniariamente com a obrigação de amparar seus cidadãos provendo suas necessidades mínimas, afastando ou diminuindo de uma eventual penúria social. O direito a ela é irrenunciável, inalienável e intransmissível, acastelado por normas e regras gerais de imprescritibilidade. Tem-se no princípio do direito público subjetivo a garantia social da Seguridade, isto é, adverso contra o próprio Estado, quando não satisfizer as garantias contidas nos artigos 194 a 200 de nosso Texto Supremo (OLIVEIRA; FERREIRA, 2010, p, 239). 3. Do benefício previdenciário – aposentadoria A Previdência Social assegura a seus segurados cerca de oito benefícios previdenciários: 1) aposentadoria por invalidez; 2) aposentadoria por idade; 3) aposentadoria por tempo de contribuição; 4) aposentadorias especiais; 5) auxílio-doença; 6) salário-família; 7) salário-maternidade e 8) auxílio-acidente. Já para os seus dependentes, a Previdência Social prevê apenas dois benefícios: 1) pensão por morte e 2) auxílio reclusão. Observa Amado (2015, p, 354) que o seguro-desemprego não é considerado benefício previdenciário, tendo em vista que fora excluído por meio do artigo 9º, parágrafo 1º, da Lei nº 8.213/91, pois, é gerenciado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, mesmo a Constituição Federal de 1988 prevendo, por meio do artigo 201, inciso III, que o referido seguro é tutelado pelo RGPS. A aposentadoria por invalidez será concedida para o segurado que estando ou não usufruindo de auxílio-doença, quando for considerado incapaz para o trabalho, bem como não há como efetuar a reabilitação. “A cobertura da contingência invalidez está prevista no art. 201, I, da CF, e restou prevista nos arts. 42 a 47 da Lei n. 8.213/91, regulamentada nos arts. 43 a 50 do RPS. O art. 42 do PBPS dispõe: Art. 42. A aposentadoria por invalidez, uma vez cumprida, quando for o caso, a carência exigida, será devida ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença, for considerado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e ser-lhe-á paga enquanto permanecer nesta condição” (LENZA, 2013, p, 179). Já a aposentadoria por idade está regulamentada por meio do artigo 201, parágrafo 7º, inciso II da Constituição Federal de 1988, pelos artigos 48 a 51, da Lei nº 8.213/91, pelos artigos 51 a 54 do RPS (Decreto nº 3.048/99). Em 2015, por meio da Medida Provisória nº 676, foi alterado o cálculo para a aposentadoria dos segurados da Previdência. Agora, para o segurado requer a aposentadoria por idade terá que somar a idade e o tempo de trabalho. Sendo que para os homens a soma total é de 95, e para as mulheres será de 85, conhecido como “Fator 85/95”. Esse valor, conforme consta na MP, é progressivo, e até 2022 a soma será 90 para as mulheres e 100 para os homens. No que tange à aposentadoria por tempo de contribuição, mesmo vigendo a MP acima estudada, o segurado pode optar em se aposentar por tempo de serviço, desde que tenha contribuído por 30 anos, no caso das mulheres e 35 no caso dos homens. Sendo que a nova regra é uma opção para o cálculo, tem como fito afastar o fator previdenciário. 3.1 Aposentadoria Especial do Professor As aposentadorias especiais estão previstas por meio do artigo 201, parágrafo 1º, da Constituição de 1988, as quais sofreram alterações por meio das Emendas 20 e 47, estão também previstas nos artigos 57 e 58, ambos da Lei nº 8.213/91 e nos artigos 64 a 70, ambos do Decreto nº 3.048/99. “[…] é vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social, ressalvados os casos de atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física e quando se tratar de segurando portadores de deficiência, nos termos definidos em lei complementar.” Muito embora a aposentadoria denominada especial seja para a categoria de trabalhadores que estejam expostos a agentes nocivos, físicos, químicos, bem como agentes biológicos. Segundo Ibrahim (2015, p, 612), o que há realmente, é que a aposentadoria do professor é tida como sendo uma profissão desgastante, por isso ser tratada de forma diferenciada pela Constituição de 1988, “[…] e não por se considerarem alunos como agentes nocivos.” 3.1.1 Aposentadoria do Professor A importância do professor em qualquer sociedade é indiscutível, e por isso, já em 1821 o poder legiferante já legislava em favor dessa classe de trabalhadores. Por meio do Decreto de 1º de outubro de 1821 passou a conceder aos docentes e aos mestres aposentadoria após trinta ano de serviço. “A aposentadoria por tempo de serviço foi extinta pela Emenda 20/1998, surgindo e m seu l ugar a aposentadoria por tempo de contribuição, em decorrência da substituição do tempo de serviço pelo de contribuição, não mais bastando apenas o exercício do serviço remunerado, sendo curial a arrecadação das contribuições previdenciárias d e maneira real ou presumida” (AMADO, 2015, p, 381). Hodiernamente, os professores se aposentarão com trinta anos de contribuição, e as professoras com vinte cinco anos de contribuição. Segundo Amado (2015, p, 381), estes dois benefícios, tanto para os professores como para as professoras, não mais privilegia apenas os professores do ensino superior desde que a Emenda 20/1988 entrou em vigor. Os docentes do ensino infantil, fundamental e médio, que exerçam o magistério, serão também beneficiado com o modelo de aposentadoria. “Os requisitos de idade e de tempo de contribuição serão reduzidos em 5 anos para o professor que comprove exclusivamente tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio. Esses professores podem, então, aposentar-se aos 55 anos de idade e 30 de contribuição, se homens, e aos 50 anos de idade e 25 de contribuição, se mulheres” (KERTZMAN, 2015, p, 541). A comprovação da condição de professor far-se-á por meio do diploma registrado nos órgão federais, estaduais, bem como qualquer documento hábil que comprove o exercício do magistério. A carência para a aposentadoria do professor é de cento e oitenta contribuições. O salário benefício será calculado a partir da média dos oitenta por cento dos maiores salários contribuições. 3.1.2 Aposentadoria do Professor Servidor A aposentadoria do servidor público está previsto por meio dos artigos 40 e126, ambos da Constituição Federal de 1988, pela Lei Complementar nº 836/97 (Plano de Carreira para o Magistério), pelas Emendas Constitucionais nsº 20/1998; 41/03 e 47/05, pela Lei Complementar nº 1012/07, pela Lei Federal nº 10.887/04, bem como pela Lei Complementar nº 1105/07. Existem três modalidades de aposentadoria para o servidor público. A primeira é a aposentadoria por invalidez, a segunda é a aposentadoria compulsória, e a terceira é a aposentadoria voluntária (que compreende o tempo de contribuição). Assim como o regime geral, para o servidor integrante do magistério, que comprove o exercício de todo o período em sala de aula, os requisitos para a aposentadoria serão reduzidos em cinco anos. Dessa forma, o professor servidor se aposentará com trinta anos de contribuição e a professora servidora se aposentará com vinte cinco anos de contribuição. Considerações finais Por meio da presente pesquisa pode-se observar que a primeira norma que previu a oportunidade dos professores em aposentar foi o Decreto de 1821, que, inicialmente, concedia o benefício previdenciário após trinta anos de serviço. Atualmente, os professores podem se aposentar tento trabalhado trinta e/ou vinte cinco anos de contribuição (diferentemente da norma contida no Decreto, que previa tempo de serviço). Sobre os requisitos tempo, trinta anos para os professores e vinte cinco anos para as professoras. Esses requisitos temporais para a concessão do benefício são menores, se compararmos com outras classes de trabalhadores, tendo em vista os desgastes que o docente tem contato no seu mister. O professor que leciona no setor público também pode se aposentar levando em consideração os dois requisitos acima mencionados (25 e 30 anos). Nesse caso, tendo em vista que é considerado como sendo funcionário público, a forma de concessão desse benefício deverá seguir como rege a lei, no caso, no que está previsto por meio dos artigos 40 e126, ambos da Constituição Federal de 1988, pela Lei Complementar nº 836/97 (Plano de Carreira para o Magistério), pelas Emendas Constitucionais nsº 20/1998; 41/03 e 47/05, pela Lei Complementar nº 1012/07, pela Lei Federal nº 10.887/04, bem como pela Lei Complementar nº 1105/07.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/direito-previdenciario-aposentadoria-dos-professores/
A hermenêutica da lei maria da penha na Justiça
O presente artigo tem como escopo analisar a hermenêutica da Lei Maria da Penha na justiça com a finalidade de se estender a sua aplicabilidade a homens heterossexuais, homossexuais, transexuais, travestis e transgêneros. O artigo foi desenvolvido através de uma pesquisa de campo com entrevistas feitas à Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher, ao Centro de Valorização da Mulher, à Secretaria de Saúde do Estado de Goiás, à 63ª Promotoria de Justiça dos Direitos da Mulher, ao 2º Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Também foi realizada pesquisa de cunho bibliográfico, onde se buscou a opinião de doutrinadores, bem como a análise da legislação vigente no País e ainda entrevistas realizadas pela mídia nacional para obtenção do resultado final do artigo.[1]
Direitos Humanos
Introdução Hodiernamente estamos vivendo o neoconstitucionalismo, onde o Direito positivado pelo Estado deve interagir com a realidade social, ou seja, deve-se haver uma adaptação da letra da lei ao mundo fático, analisando as circunstâncias do caso concreto. Acontece que, embora haja casos de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto envolvendo o homem como vítima, o mesmo não possui o devido amparo. A psicóloga Simone Alvim, autora do artigo cujo tema é: “Violência conjugal em uma perspectiva relacional: homens e mulheres agredidos/agressores”, em entrevista com o jornalista Wanderley Araújo do programa Opinião expôs: “A primeira delegacia que eu procurei, obviamente foi a delegacia da mulher, que é aonde a gente sabe que efetivamente só tem casos de violência conjugal, a delegada na época, que eu nem me lembro o nome, me disse que aquilo que eu estava fazendo era um desserviço para a sociedade, que eu devia ter vergonha desse meu trabalho e desistir dessa pesquisa, porque toda a luta e as conquistas feministas que a gente tinha alcançado até aqui, eu estava indo contra esse movimento. E por mais que eu explicasse para ela que é uma tentativa de desmitificar o homem culpado, a mulher culpada, que era uma coisa de entender o casal ela não quis ficar nem com o meu projeto e disse inclusive que eu não voltasse ali nem como uma cidadã, que eu tinha perdido os meus direitos de mulher, porque eu não podia nem mais denunciar se ela estivesse ali. Ok! Dali eu fui então buscar a delegacia comum, porque se ela não quis nem me receber como pesquisadora, você imagina qual é a reação de um homem que vai ali denunciar. Então eu entendi que provavelmente os homens não buscam esse serviço. […] Conversei com alguns delegados que riam do meu trabalho. Claro! Essa é uma reação normal, já estou acostumada com isso, várias vezes quando eu falo, e as vezes eu falo só para chocar mesmo, para ver qual é a reação, as pessoas riem. Eles falavam que não tinha, que não sabiam, que nunca tinha registrado, que eu não ia conseguir, que era para eu desistir e eu pedia para eles para eu deixar um cartaz na recepção das delegacias informando que eu estava fazendo uma pesquisa, casos eles quisessem conversar, que eu era psicóloga, deixava o meu telefone, que eles poderiam entrar em contato. Quando eu voltava lá, uma semana depois, o cartaz tinha sido arrancado, então nem isso eu conseguia, apoio do serviço para fazer (Sic.)”. A realidade vivida pela psicóloga supramencionada infelizmente é algo enraizado na nossa sociedade. Se uma mulher apanha de um homem: “Lei Maria da Penha nele!”. Se um homem apanha de uma mulher, é motivo de chacota. Sobrevindo consequentemente o desiquilíbrio na balança da justiça. Clama-se aqui pelo Princípio Constitucional da Isonomia, ao qual o Estado não pode desrespeitar, devendo sim assegurar a realização das garantias, direitos e liberdades que consagra, sob pena de comprometer sua própria soberania bem como trazer uma insegurança jurídico-social. 1. Noções preliminares da lei 11.340/06 1.1.Razão da Lei Maria da Penha A Lei nº 11.340, sancionada em 7 de agosto de 2006, insurge como resposta do Estado à prática de violência degradante em desfavor da mulher, tratando com especificidade um mal que há muito templo aflige muitas famílias em nosso País. Maria da Penha Maia Fernandes foi a primeira mulher vítima de violência doméstica que teve sua denúncia acatada pela OEA (Organização dos Estados Americanos). Em consequência disso, o Brasil foi condenado internacionalmente em 2001 a indenizá-la no valor de 20 mil dólares por negligência e omissão frente à violência doméstica. Em 2008 foi paga a Maria da Penha uma indenização no valor de 60 mil reais pelo governo do Estado do Ceará, em uma solenidade pública, com pedido de desculpas. Vale frisar também, que conforme o Relatório n.54 da OEA, além de impor o pagamento de indenização em favor de Maria da Penha, recomendou o Brasil a adotar várias medidas, entre elas “simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que se possa reduzir o tempo processual”. Foi quando o então Presidente Lula sancionou a Lei 11.340/2006, chamou-a de Lei Maria da Penha e disse: “Esta mulher renasceu das cinzas para se transformar em um símbolo da luta contra a violência doméstica no nosso país”. 1.2.Razão da aplicabilidade extensiva da Lei Maria da Penha Atualmente as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha são bem mais amplas e completas que algumas medidas cautelares presentes no Código de Processo Penal. Em consequência disso, o homem vítima de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto, por não poder se resguardar no diploma supra, é injustiçado, havendo assim um desequilíbrio jurídico-social. Nesse sentido, não estender a aplicabilidade da Lei 11.340/06 a homens que também sofrem esse tipo de violência é negar os Direitos Humanos e rasgar a Constituição Federal, pois a Lei Maior garante em seu artigo 5º que todos somos iguais em direitos e obrigações. A delegada goiana Laura de Castro Teixeira, plantonista da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher – DEAM, nasceu homem e fez cirurgia de mudança de sexo, alterando consequentemente sua documentação. Laura é a primeira delegada de polícia transexual do Brasil e a prova concreta que a única estabilidade na vida é a mudança. Em entrevista realizada no dia 28/10/2014, a delegada Laura Teixeira com suas sábias palavras disse: “A partir do momento que você cria uma lei para proteger uma pessoa em situação de vulnerabilidade, você não deve fazer essa proteção de maneira restritiva, porque Direitos Humanos é toda uma interpretação que tem que ser feita de maneira extensiva, se por exemplo você está protegendo alguém que esteja em situação de vulnerabilidade, você não tem que está protegendo a mulher, mas você tem que proteger todo e qualquer ser humano em situação de vulnerabilidade. […]O direito de uma maneira geral ele tem que proteger os vulneráveis, a proteção está justamente para isso, para haver um equilíbrio social. Então, a partir do momento que você está vivendo em sociedade, tem certas condições que você tem que manter para que as pessoas possam conviver em harmonia e uma delas é proteger os mais fracos para que eles possam ter condições de ser equiparar a quem tem mais condições físicas, financeiras, etc. Os vulneráveis tem que ser protegidos, à medida que você tem uma lei protegendo uma parcela você vai está criando um anseio para outras parcelas de vulneráveis que não estão amparados pela lei. Então eu acho que esta Lei deveria ter uma aplicação extensiva, com a maioria das leis no Brasil, essa Lei foi criada para atender anseios de uma situação que aconteceu, foi até a situação da própria Maria da Penha, ela foi uma Lei necessária. Como toda situação emergencial o legislador querendo fazer uma proteção a um grupo e esquece que não é só esse grupo de vulnerável que existe, poderia ele naquele momento ter feito uma proteção mais ampla, abrangendo tudo quanto é tipo de situação de vulnerabilidade (Sic.)”. (grifos nossos) Na mesma data foi realizada entrevista com Maria das Dores Dolly Soares, diretora do Centro de Valorização da Mulher – CEVAM. Quando questionada sobre a possibilidade do homem ser vítima de violência doméstica e familiar a mesma respondeu: “Pode! Só que o homem tem vergonha de denunciar devido esta educação que nós tivemos, devido esse machismo todo. Ele esconde! Chegou homem aqui no CEVAM todo machucado, ele fica enrolando, com medo até de falar, conversar com a gente, ‘rodeando o toco’ como a gente diz.  Tem cara que chega aqui tira a camisa e está todo arrebentado, machucado. Tem vergonha, porque se ele for para a delegacia ele vai ser considerado ‘ah… você não é homem!’, ridicularizado (Sic.)”. Aceitar que o homem também pode estar em uma situação de vulnerabilidade e por isso também merece amparo na Lei Maria da Penha é a mudança que se faz necessária dos paradigmas ultrapassados que apenas vitimizam a mulher como único ser possível a estar no pólo passivo em uma situação de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto. 2. Sujeito passivo 2.1. O sujeito protegido atualmente pela Lei Maria da Penha Primeiramente é importante conceituar. Nas palavras do jurista JulioFabrinniMirabete (2005, pg.43) sujeito passivo é: “O titular do bem jurídico lesado ou ameaçado pela conduta criminosa. Nada impede que, em um delito, dois ou mais sujeitos passivos existam: desde que tenham sido lesados ou ameaçados em seus bens jurídicos referidos no tipo, são vítimas do crime. Exemplificando, são sujeitos passivos de crime: aquele que morre (no homicídio), aquele que é ferido (na lesão corporal), o possuidor da coisa móvel (no furto), o detentor da coisa que sofre a violência e o proprietário da coisa (no roubo), o Estado (na prevaricação) etc.”. Dessa forma, pode-se afirmar que sujeito passivo é o ofendido, a vítima, ou seja, o titular do bem jurídico tutelado pela norma penal, que vem a ser ofendido pelo crime. A Lei 11.340/2006, em seu artigo 5º traz a seguinte definição: “Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”. (negrito nosso) Depreende-se do texto acima que a Lei Maria da Penha busca tutelar de forma específica somente a mulher como vítima de violência no âmbito da unidade doméstica, familiar e de relacionamento íntimo de afeto. Em decorrência dessa proteção exclusiva, institui ao sexo feminino tratamento jurídico diverso daquele contido no Código Penal, pois delimita, quanto à sua aplicação, o sujeito passivo das modalidades de agressão, que nestes casos só pode ser a mulher.  Todavia, segundo os autores Cezar Roberto Bitencourt e Luiz Regis Prado (2010, pg. 142): “Não se pode deduzir que a mulher seja a única e exclusiva vítima potencial ou real de violência doméstica, familiar ou de relacionamento íntimo. Também o homem pode sê-lo, tanto empírica quanto normativamente, conforme, aliás, se depreende da redação do § 9º do art. 129 do Código Penal, que não faz restrição a respeito das qualidades de gênero do sujeito passivo, o qual pode abranger ambos os sexo”. Neste sentido, para os ensinadores supra, o homem pode figurar como sujeito do pólo passivo em uma situação de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto. O que a Lei nº 11.340/06 delimita são as medidas de assistência e proteção, as quais, em princípio, são aplicáveis somente à vítima mulher. Os doutrinadores Ana Cecília Parodi e Ricardo Rodrigues Gama (2010, pg. 55) quanto ao sujeito passivo entendem: “deveras, a analogia autoriza encampar o homem como vítima da violência doméstica, desde que ele conviva com outro homem formando um casal homossexual”. A Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, Maria Berenice Dias (2012, pgs. 61 e 62), entende que “transexuais, travestis e transgêneros, que tenham identidade social com o sexo feminino estão sob a égide da Lei Maria da Penha. A agressão contra elas no âmbito familiar constitui violência doméstica”. Em entrevista realizada com a Delegada Laura de Castro Teixeira, ao se interrogar sobre a possibilidade do homem ser vítima de violência doméstica e familiar a mesma relatou: “De acordo com a Lei não tem essa proteção para o homem porque ela é muito taxativa, a pessoa que vai ser protegida é só a mulher. Homem não tem proteção da Lei Maria da Penha porque ele não é um sujeito previsto pela Lei para essa proteção porque a Lei Maria da Penha quando ela veio instituída, sido criada, ela veio com a destinação de proteger uma parcela específica da população, as mulheres. Mas não qualquer mulher, além de vir para proteger certas mulheres, ela veio para proteger mulheres em situação de risco, em uma situação de vulnerabilidade. […]O artigo 5º da Lei é bem específico, tem três incisos que especificam e ainda fala em situação de vulnerabilidade, ou seja, isso já restringe bastante a aplicação dessa Lei não só com mulheres, mas mulheres em que se encontrem em situação de relação doméstica e em situação de vulnerabilidade. Por isso que, quando você fala da aplicação da Lei Maria da Penha a homens, juridicamente, a gente pode falar com tranquilidade que é impossível fazer isso, a Lei não abre margem para essa aplicação extensiva da Lei (Sic.)”. (grifos nossos) Na mesma entrevista foi questionado também sobre as medidas que poderiam ser adotadas para a proteção do homem que passa por situação de violência doméstica e familiar e como a Delegacia da Mulher atua na orientação desses casos, a mesma respondeu: “[…]O Código de Processo Penal trata de medidas cautelares diferentes da prisão preventiva, são medidas que algumas se assemelham bastante as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, só que a diferença é que para essas medidas […] é necessário pelo menos que exista uma investigação criminal em andamento para que o juiz adote ela, ou seja, existem medidas que podem ser tomadas sim, só que essas medidas dependem de ter processo criminal. Agora em relação a questão da Lei Maria da Penha, ela é muito mais ampla, então não existe para o homem, para outra pessoa que não seja a mulher em situação de violência doméstica, em situação de vulnerabilidade, medidas tão eficazes quanto. Porque para que ela tenha acesso a essas medidas, tem que existir um processo criminal, pelo menos instaurado, já em fase investigativa, para poder pedir essas medidas cautelares para se preservar. […]Para outras pessoas que não sejam as mulheres nessa condição específica podem ser tomadas medidas equivalentes mais depende de processo criminal, ou seja, a proteção requer uma burocracia maior.A vantagem da Lei Maria da Penha é que se a mulher não quiser o processo criminal contra o agressor ela pode simplesmente pedir as medidas, só o procedimento das medidas, agora em relação ao homem por exemplo […] tem que entrar com um processo criminal para poder ter essas medidas a sua disposição. […]A princípio encaminharia para o DP para fazer um TCO (Termo Circunstanciado de Ocorrência), caberia medida protetiva, pedida ao juiz também, só que não teria o prazo por exemplo de 48 horas que o juiz tem para decidir, a autoridade policial tem 48 horas para encaminhar expediente, a gente tem prazos corridos para encaminhar na Lei Maria da Penha, as outras medidas protetivas não tem isso, não fica equiparado, não é igual na Lei Maria da Penha (Sic.)”. (grifos nossos) A Lei em seu stricto sensu realmente tem o condão de abarcar apenas a mulher como única e exclusiva vítima de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto. Em consequência disso, a mulher ao ser amparada pela Lei Maria da Penha é beneficiada pela celeridade processual, como por exemplo no caso de lesão corporal, pela incondicionalidade da Ação Penal, além de uma série de medidas protetivas ao qual o homem não faz jus se estiver na mesma situação. Levando-se em conta as impressões da Delegada Laura Teixeira e o texto literal da Lei 11.340/06, nota-se que o homem encontra-se em desvantagem, pois para que o mesmo possa acionar medidas protetivas similares às da Lei Maria da Penha, porém muito menos rigorosas, ele precisa realizar todo um processo criminal, enquanto a mulher pode fazer jus às medidas protetivas imediatamente, conforme prevê o §1º, do artigo 19 do mesmo diploma legal: “As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado”. A partir da publicação da Lei n. 12.403, em 05 de maio de 2011, alguns entendem que seu rol de medidas cautelares, que alterou o artigo 319 do Código de Processo Penal, supre essa carência quando o crime de violência doméstica for praticado contra qualquer pessoa que não apenas o gênero feminino: “Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão: I – comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; IV – proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;V – recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; VI – suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; VII – internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; VIII – fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; IX – monitoração eletrônica”. Em entrevista realizada com a Promotora de Justiça da 63ª Promotoria de Justiça dos Direitos da Mulher, Dra. Rúbian Corrêa Coutinho ao questionar quais medidas poderiam ser adotadas para a proteção do homem que passa por situação de violência doméstica e familiar a mesma explicitou: “Está no Código de Processo Penal no artigo 319 as medidas cautelares que são diversas da prisão e que dão a esse homem essa proteção igual como está na Lei Maria da Penha, claro que na Lei Maria da Penha existe um detalhamento maior porque o crime praticado contra mulher em situação de violência, ele tem algumas peculiaridades[…] (Sic.)”.(grifos nossos)  Acontece que, existem outras medidas protetivas diversas das medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal, medidas essas que apenas a Lei Maria da Penha prevê, quais sejam: “Seção II – Das Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o Agressor. Art. 22.  Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III – proibição de determinadas condutas, entre as quais:a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios. […] Seção III – Das Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida. Art. 23.  Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas: I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; II – determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; III – determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; IV – determinar a separação de corpos. Art. 24.  Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras: I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; II – proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; IV – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.[…]”.(grifos e negritos nossos) Portanto, a teor da letra da Lei 11.340/2006, amparar apenas a mulher como vítima de violência doméstica e familiar, segurando somente a ela medidas protetivas de urgência tais como as supramencionadas é algo leviano, pois a mesma nem sempre é o único e possível sujeito passivo de tal situação.  Insta salientar o teor dos §§ 9º e 11 do artigo 129 do Código Penal: “Violência Doméstica (Incluído pela Lei nº 10.886, de 2004) § 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)Pena – detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)[…] § 11.  Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência. (Incluído pela Lei nº 11.340, de 2006)”. A realidade do parágrafo anterior sugere uma abrangência do texto descrito no Código Penal que, todavia, permanece silenciada pela Lei 11.340/2006, tendo em vista que para esta apenas a mulher figura como sujeito do pólo passivo. Vale frisar que, em Goiânia, foi feito um mapeamento pela Secretaria de Saúde de Goiás no qual aponta os bairros que tiveram os maiores números de casos de violência doméstica em Goiânia neste ano de 2014. Segundo este, foi identificado que vítimas do sexo masculino representam 44% dos casos de violência doméstica nos mesmos bairros. No dia 27 de outubro do presente ano foi realizada entrevista com a Promotora de Justiça Rúbian Corrêa Coutinho da 63ª Promotoria de Justiça dos Direitos da Mulher. Ao se questionar a possibilidade do homem ser vítima de violência doméstica e familiar, a mesma explicou: “O homem que por ventura esteja em situação de violência doméstica e familiar, muitas das vezes ele não externaliza isso por medo de se sentir discriminado, ridicularizado. […]Do mesmo jeito como a mulher bate na porta de uma delegacia e pede amparo e ela é mal atendida, mal compreendida, inclusive é desestimulada a tomar providência, essa mulher sofre de uma violência de gênero. O homem também sofre por outro lado quando ele vai também a delegacia ou a um outro local de serviço de atendimento e lá também ele é visto com um ar assim de jocosidade, brincadeira em relação a situação em que ele está enfrentando. Então ele se sente ridicularizado e muitos não colocam por medo exatamente desse julgamento que a sociedade impõe, exatamente por essa cultura desenvolvida pelo patriarcalismo, dessa relação de poder que sempre a sociedade no estabelecimento dos papéis de homem e mulher estabeleceram (Sic.)”. O nobre doutrinador Rogério Sanches Cunha (2009, pg. 30) ensina: “A Lei 11.340/2006 extraiu do caldo da violência comum uma nova espécie, qual seja, aquela praticada contra a mulher (vítima própria), no seu ambiente doméstico, familiar ou de intimidade (art. 5º). Nesses casos, a ofendida passa a contar com o precioso estatuto, não somente de caráter repressivo, mas, sobretudo, preventivo e assistencial, criando mecanismos aptos a coibir essa modalidade de agressão. Não queremos deduzir, com isso, que apenas a mulher é potencial vítima de violência doméstica. Também o homem pode sê-lo, conforme se depreende da redação do §9º do art. 129 do CP, que não restringiu o sujeito passivo, abrangendo ambos os sexos. O que a lei comento limita são as medidas de assistência e proteção, estas sim aplicáveis somente à ofendida (vítima mulher)”.(grifos nossos) Conforme as citações supramencionadas, pode-se afirmar que o homem também é vítima de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto. Porém, desamparado pela Lei 11.340/2006. Negar ao homem o direito de proteção em paridade com a mulher é abdicar ao Fundamento Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, é abandonar os Direitos Humanos e dilacerar a Carta Magna, fechando os olhos ao disposto no artigo 5º quando diz que: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. 2.2. O sujeito a ser protegido pela Lei Maria da Penha à Luz do neoconstitucionalismo Tipos penais que discriminavam o homem foram alvo de recentes mudanças legislativas, corrigindo a odiosa discriminação, como aconteceu com o estupro e com a violência sexual mediante fraude. Vejamos: a) Anteriormente:“Estupro – Art. 213 – Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:”(negritos nossos) b) Atualmente: “Estupro – Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)”(negritos nossos) c) Antes: “Posse sexual mediante fraude – Art. 215 – Ter conjunção carnal com mulherhonesta, mediante fraude:         Art. 215. Ter conjunção carnal com mulher, mediante fraude: (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005)”(negritos nossos) d) Hoje: “Violação sexual mediante fraude (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) Art. 215.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)”(negritos nossos) Tendo em vista que a legislação evoluiu ao reconhecer que não só as mulheres, mais os homens também poderiam ser vítimas de estupro, assim como, de violação sexual mediante fraude, ao Código Penal foi dada uma nova redação estendendo a todos a possiblidade de denúncia. Pois, o que antes não era crime, não podia ser denunciado e consequentemente gerava impunidade aos violentadores de homens e a revolta para quem sofria esse tipo de violência.  Aceitar que a Lei Maria da Penha só pode ser aplicada as mulheres é cometer o mesmo erro jurídico do caso suso. Desta forma, a proposta que se faz é dar uma nova roupagem a redação da Lei, onde uma palavra pode mudar a vida de muitos. Vejamos: a) Como é no tempo presente:“Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.(tachados e negritos nossos – texto original) b) Como deveria ser futuramente: “Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra alguém qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. (negrito nosso – texto fictício)  Para juíza de direito Ana Cláudia Veloso Magalhães: “Como pilar de todo ordenamento jurídico constitucional e o maior de todos os direitos e garantias fundamentais das pessoas se desnuda o primado da dignidade da pessoa humana, sendo este um valor construído a partir da análise de um caso concreto. Assim, o direito à dignidade é fundamental, cláusula pétrea! É a tutela de todas as pessoas, sejam elas mulheres, negros, pobres, homossexuais, índios, presos, portadores de deficiência, idosos, crianças e adolescentes[…]”. Nesta linha, fica claro que o princípio mencionado tem como núcleo a pessoa humana, não importando suas características individuais. Portanto, excluir ou não reconhecer direitos a uma pessoa apegando-se à sua orientação sexual, seria conceder tratamento indigno ao ser humano, ignorando a proteção constitucional da dignidade da pessoa humana.  Através das inspiradoras palavras da magistrada, pode-se afirmar sem sombra de dúvida que não amparar o homem que se encontra no papel de ofendido em uma situação de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto é violar o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, ou seja, é transgredir um valor moral e espiritual inerente ao ser humano. Em entrevista com o jornalista Wanderley Araújo do programa Opinião, a psicóloga Simone Alvim, autora do livro “Homens, mulheres e violência” relatou: “A primeira vez que eu tive um contato com uma situação dessa que me despertou para esse assunto, eu estava ainda no primeiro período da faculdade, eu trabalhava em uma clínica de teste psicológico (psicotécnico para trânsito) e era um sujeito que veio para reteste, que era um teste mais individualizado […] e ele estava muito nervoso. É um teste que a gente faz uma anamnese, conversa um pouco até a pessoa está mais relaxa, até pelo próprio contexto do teste e esse homem não relaxava de jeito nenhum e em um dado momento eu toquei na questão, perguntei se ele estava com algum problema em casa, se estava acontecendo alguma coisa porque ele estava muito nervoso e isso interferiria no teste. Ele começou a chorar, ficou desesperado e soluçava e não conseguia falar o que que era, depois de um tempo, tentando acalmar, ele acabou relatando que vinha sofrendo violência física da esposa quase que cotidianamente e começou a me mostrar as marcas, assim, levantou a perna, a calça para me mostrar as marcas, ele tinha marcas nas costas, que apanha com um cabo de vassoura. Foi a primeira vez que eu ouvi falar sobre isso. Passou mais um tempo eu, em uma disciplina de pesquisa fiz um questionário fechado, disciplina simples de resposta sim ou não, marcar ‘x’, e me chamou atenção as estatísticas que apareceram nessa pesquisa que eram quase que iguais as taxas de homens que se declaravam vítimas de violência conjugal, ao namoro, ao casamento, em relação as mulheres, então isso foi uma coisa que me chamou atenção. […]Desses homens que eu entrevistei, somente um realmente conseguiu dar cabo ao processo, chegar ao final, ter uma sentença e ser beneficiado por ela, mas isso só aconteceu depois que ele conseguiu um boletim médico porque ele já tinha tentado várias vezes fazer uma denúncia (ele foi em delegacias diferentes), ou o delegado não acreditava na história que ele estava relatando, ou dizia uma coisa que é muito comum se ouvir por parte dos serviços de segurança do modo geral, que “briga de marido mulher, não se mete a colher”, que isso é um assunto privado para ser tratado em casa, ou faz chacota, faz o cara se sentir humilhado e ele desiste de voltar ali ou de registrar a ocorrência, então realmente o homem está bastante desamparado. A minha sugestão é que a gente tenha um serviço, não necessariamente do homem ou da mulher, não adianta segmentar tanto o serviço, mas especializar uma parte do sistema judiciário, delegacias e da assistência de um modo geral para a violência doméstica, que tenha psicólogos, assistente social, que esteja mais preparado para lhe dar com essas questões que não são pura e simplesmente violência, não é por exemplo, um assalto que você resolve impessoalmente. […]As mesmas questões que as mulheres sofrem em relação a vergonha, a humilhação, a desonra, por sofrer violência do marido, os homens sentem com uma dosezinha a mais por ser homem, não se espera que o homem vá apanhar de mulher, então tem um preconceito em relação à masculinidade dele, isso é colocado em xeque. Eu tenho um casal a mostra que na época da entrevista já estava um ano e meio sem ter relação sexual, por exemplo.Ele questionava a própria sexualidade, ele achava que ele tinha ficado impotente e ele me conta nesse momento (ela na sala de espera para ser entrevistada), ele me conta que ele tinha traído com uma colega de trabalho para ele ter certeza que ele funcionava. […] Mas essa mulher bateu nele (eles tinham uns dez anos de relacionamento) ele já tinha apanhado sete vezes na rua (dentro de ônibus, na igreja) […]”. O que acima se lê, retrata uma realidade que embora não seja conhecida por todos, não deve ser silenciada pela justiça. Não podemos vendar os olhos e fingir que esses fatos são fictícios. O homem vítima de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto merece o mesmo amparo que a mulher pelo Estado. 3. Princípio da isonomia 3.1. A essência do Princípio da Igualdade De acordo com o dicionário jurídico (2007, pg.371), hermenêutica jurídica se define como: “conjunto de princípios gerais que devem ser respeitados e seguidos na interpretação da lei aplicada a caso concreto”. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos o artigo 1º assegura que: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. A Magna Carta garante no caput do artigo 5º que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (…)” e reafirma no inciso I que: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;”. Portanto, o Princípio da Isonomia é previsão internacional e constitucional do ordenamento jurídico brasileiro. Por isso, basilar no que diz respeito a interpretação da lei. Cada dia que passa o mundo evolui, os pensamentos mudam, os valores se transformam. O Brasil lutou e hoje vive em uma democracia. Acontece que as sociedades democráticas estão fundamentadas nos valores da liberdade e da igualdade. Norberto Bobbio (2001, pg.5) salienta que: “Os dois valores da liberdade e da igualdade remetem um ao outro no pensamento político e na história. Ambos se enraízam na consideração do homem como pessoa. Ambos pertencem à determinação do conceito de pessoa humana, como ser que se distingue ou pretende se distinguir de todos os outros seres vivos. Liberdade indica um estado; igualdade, uma relação. O homem como pessoa – ou para ser considerado como pessoa – deve ser, enquanto indivíduo em sua singularidade, livre; enquanto ser social, deve estar com os demais indivíduos numa relação de igualdade. […] liberdade e igualdade são os valores que servem de fundamento à democracia. Entre as muitas definições de democracia, uma delas – a que leva em conta não só as regras do jogo, mas também os princípios inspiradores – é a definição segundo a qual democracia é não tanto uma sociedade de livres e iguais (porque, como disse, tal sociedade é apenas um ideal-limite), mas uma sociedade regulada de tal modo que os indivíduos que a compõem são mais livres e iguais do que em qualquer forma de convivência. A maior ou menor democraticidade de um regime se mede precisamente pela maior ou menor liberdade de que desfrutam os cidadãos e pela maior ou menor igualdade que existe entre eles”.(grifos e negritos nossos) No que tange a liberdade, a Magistrada Ana Cláudia Veloso Magalhães ensina: “Merece referência o princípio da liberdade, que se desdobra em liberdade sexual, também previsto em nossa Carta Magna, devendo ser entendido como aquele em que o indivíduo pode agir da maneira que deseja, desde que não contrarie as regras esculpidas no ordenamento jurídico.”  Direito à liberdade sexual, à autonomia sexual, à privacidade sexual, ao prazer sexual e à informação sexual livre de discriminações são alguns dos desdobramentos mais importantes dos primados da Igualdade e da Liberdade, que regulamentam a tutela da sexualidade.   É por pertencer a um Estado Democrático de Direito, que não se deve admitir imposição da opção sexual, sendo dever todos respeitar e serem respeitados em suas respectivas proteções e orientações sexuais.   O princípio da liberdade sexual garante ao indivíduo, sujeito de direitos e obrigações, a livre escolha por sua orientação. Desse modo, todas as pessoas são livres, para escolher com quem se relacionam e com quem pretendem constituir família.   A partir do momento que o Estado impõe restrições a esse direito, ele está agindo de forma discriminatória, violando, especialmente, o primado da liberdade.  No que diz respeito a igualdade, o constitucionalista José Gomes Canotilho (1999, pg.399) com suas circunspectas palavras afirma: “ser igual perante a lei não significa apenas aplicação de leis igual da lei. A lei, ela própria, deve tratar por igual todos os cidadãos”. Neste sentido, entende-se que a lei deve ser aplicada sem analisar qualidades pessoais dos cidadãos. Não tolerar que o homem também pode ser vítima de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto e por isso não merece amparo às medidas protetivas previstas na Lei 11.340/2006 é um retrocesso do que hoje chamamos de País democrático. Importa e faz-se necessário que a Lei proteja à todos indistintamente, assim como os Direitos Fundamentais que se estendem à toda a sociedade. No entanto, verifica-se uma contradição entre a Lei 11.340/06 e a Lei das Leis. Se a Lei Maior traz o princípio que defende a igualdade sem qualquer tipo de distinção entre os indivíduos, porque há esta diferenciação na Lei Maria da Penha, protegendo apenas a mulher como vítima de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto? Neste sentido, se faz necessário o desapego à formalidades de forma a se estender ao homem todas as proteções esculpidas no nosso ordenamento jurídico, com as tintas fortes da liberdade e da igualdade, no quadro hodierno da Lei Maria da Penha. 3.2. Decisões acerca da aplicabilidade da Lei 11.340/06 em relação a homens heterossexuais, homossexuais, transexuais, travestis e transgêneros figurando no pólo passivo Antes de adentrar ao mérito, é de grande valia mencionar dois artigos importantes presentes na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, quais sejam: a) “Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” b) “Art. 5o Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. No que diz respeito ao artigo 4º da LINDB, ao magistrado foi dada a possibilidade de usar da analogia quando a lei não prever solução ao caso concreto. Neste sentido, há várias decisões espalhadas no judiciário brasileiro, a exemplo da proferida pelo juiz Mário R. Kono de Oliveira (Cuiabá-MT), que sublinhou: “o homem que, em lugar de usar violência, busca a tutela judicial para sua situação de ameaça ou de violência praticada por mulher, merece atenção do Poder Judiciário”. Pertinente ainda ao artigo supra, é de conhecimento dos operadores do Direito que, diante da falta de norma regulamentadora, para aplicação em um caso concreto, pode o magistrado decidir com base, por exemplo, nos princípios gerais do Direito. Assim, partindo da premissa de que o que não é proibido é permitido e do conhecimento de que, no ordenamento jurídico, o que prevalece são os princípios constitucionais, entende-se que seria inconstitucional não proteger os homens heterossexuais, homossexuais, transexuais, travestis e os transgêneros contra agressões praticadas pelos seus companheiros ou companheiras valendo-se do Princípio da Paridade das Armas.  No que tange ao artigo 5º da LINDB, aperfeiçoando o previsto no artigo 4º do mesmo diploma, tendo em vista que o Brasil vive hoje o neoconstitucionalismo, pois o nosso ordenamento jurídico tende a acompanhar a evolução cultural da sociedade, ou seja, o direito caminha conforme as necessidades sociais. Abre-se a possibilidade de aplicação da Lei 11.340/06 a homens vítimas de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto, tendo em vista a exigência de se fazer valer o Princípio da Isonomia.  Tendo em vista que o sexo masculino também é vítima de violência doméstica, familiar ou de relação íntima de afeto, vale citar decisões amparando ao homem, seja heterossexual, homossexual, transexual, travesti ou transgênero: a) Do nosso Ilustre Tribunal: “Goiás- Anápolis – Aplicabilidade da Lei Maria da Penha na transexualidade. (TJGO, Autos 201103873908, 1ª Vara Criminal, Juíza de Direito Ana Cláudia Veloso Magalhães, j. 23/09/2011)”. b) Do Exímio Tribunal do Rio de Janeiro: “Rio de Janeiro – Concessão de medida protetiva ao homem em face de agressões de que foi vítima por parte de seu companheiro. (TJRJ, Processo nº 0093306-35.2011.8.19.0001, 11ª Vara Criminal, Juiz Alcides da Fonseca Neto,j. 18/04/2011 )”. c) Do Conspícuo Tribunal do Rio Grande do Sul: “Rio Grande do Sul – Rio Pardo – Concessão de medida protetiva ao homem em face de agressões de que foi vítima por parte de seu companheiro. (TJRS, Processo nº indisponível, Juiz Osmar de Aguiar Pacheco, j. 23/02/2011)”.  d) Do Preclaro Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul: “A inovadora Lei 11.340 veio por uma necessidade premente e incontestável que consiste em trazer uma segurança à mulher vítima de violência doméstica e familiar, já que por séculos era subjugada pelo homem. É certo que não podemos aplicar a lei penal por analogia quando se trata de norma incriminadora, porquanto fere o princípio da reserva legal, firmemente encabeçando os artigos de nosso Código Penal: ‘Art. 1º. Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal’.  Se não podemos aplicar a analogia in malam partem, não quer dizer que não podemos aplicá-la in bonam partem, ou seja, em favor do réu quando não se trata de norma incriminadora, como prega a boa doutrina: ‘Entre nós, são favoráveis ao emprego da analogia in bonam partem: José Frederico Marques, Magalhães Noronha, Aníbal Bruno, Basileu Garcia, Costa e Silva, Oscar Stevenson e Narcélio de Queiróz’ (DAMÁSIO DE JESUS – Direito Penal – Parte Geral – 10 ed. p. 48).   Ora, se podemos aplicar a analogia para favorecer o réu, é óbvio que tal aplicação é perfeitamente válida quando o favorecido é a própria vítima de um crime. Não é vergonha nenhuma o homem se socorrer ao Poder Judiciário para fazer cessar as agressões da qual vem sendo vítima. Também não é ato de covardia. È sim, ato de sensatez (…). E compete à Justiça fazer o seu papel de envidar todos os esforços em busca de solução de conflitos e paz social. Defiro o pedido e determino à autora do fato o seguinte:  1) que se abstenha de se aproximar da vítima, a uma distância inferior a 500 metros, incluindo sua moradia e local de trabalho;  2) que se abstenha de manter qualquer contato com a vítima, seja por telefonema, e-mail, ou qualquer outro meio direto ou indireto. Expeça-se o competente mandado e consigne-se no mesmo a advertência de que o descumprimento desta decisão poderá importar em crime de desobediência e até em prisão”. (J.E.C.U – MT – Proc º 1074/2008)”. e) Do Notável Tribunal do Mato Grosso – “Primavera Leste – Aplicação de medidas protetivas a homem ameaçado por ex-companheiro. Lei Maria da Penha. (MT, Proc. nº 6670-72.2014.811, Juíza de Direito Aline Luciane Ribeiro Viana Quinto, j. 29/07/2014)”. f) Do Insigne Tribunal de Santa Catarina: “Conflito negativo de competência. Violência doméstica e familiar. Homologação de auto de prisão em flagrante. Agressões praticadas pelo companheiro contra pessoa civilmente identificada como sendo do sexo masculino. Vítima submetida à cirurgia de adequação de sexo por ser hermafrodita. Adoção do sexo feminino. Presença de órgãos reprodutores femininos que lhe conferem a condição de mulher. Retificação do registro civil já requerida judicialmente. Possibilidade de aplicação, no caso concreto, da lei n. 11.340/06. Competência do juízo suscitante. Conflito improcedente. (TJSC, Conf. Jurisd. 2009.006461-6, 3ª Vara Criminal, Rel. Des. Roberto Lucas Pacheco, j. 29/06/2009)”. g)Do Nobre Tribunal de Justiça do Espírito Santo: “Conflito negativo de competência. Relação materno-filial. Mãe e filho. Possibilidade de aplicação das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha quando a vítima for do sexo masculino. A aplicação da analogia não implica alteração da competência. A vara especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher pressupõe que a vítima seja do sexo feminino. Conflito julgado procedente. A Lei n° 11.340/06 deve ser tratada como uma lei de gênero, que se destina a proteger a mulher, em face de sua fragilidade dentro de um contexto histórico, social e cultural. Neste caso, entendeu-se que as mulheres são seres que merecem atenção especial, dado o contexto de violência e submissão que frequentemente se encontram inseridas. Verifica-se perfeitamente possível estender as medidas protetivas, de caráter não penal, previstas na Lei n° 11.340/06 em favor de qualquer pessoa (sujeito passivo), desde que a violência tenha ocorrido dentro de um contexto doméstico, familiar ou de relacionamento íntimo. Nesse caso, a pessoa a ser protegida pode ser tanto o homem quanto a mulher”. (TJES, Conflito de Competência 100120021330, 2 Câmara Criminal, Relator Sérgio Luiz Teixeira Gama, Julgado em 05/09/2012)”. h) Do Notável Tribunal de Justiça de Minas Gerais: “Se a norma constitucional garante não apenas a igualdade de direitos entre homens e mulheres (art. 5.º, I), cria a necessidade de o Estado coibir a violência no âmbito de relações familiares (art. 226, § 8.º) e confere competência legislativa à União para legislar sobre direito penal e processual penal (no art. 22, I), não há dúvida de que a Lei Federal 11.340/2006 deve ser interpretada afastando-se a discriminação criada e não negando vigência à norma por inconstitucionalidade que é facilmente superada pelo só afastamento da condição pessoal de mulher nela existente. Basta ao intérprete afastar a condição pessoal de mulher em situação de risco doméstico, suscitada na sua criação, para que não haja qualquer inconstitucionalidade possível, estendendo-se os efeitos da norma em questão a quaisquer indivíduos que estejam em idêntica situação de violência familiar, ou doméstica, sejam eles homens, mulheres ou crianças. A leitura da Lei Federal 11.340/2006, sem a discriminação criada, não apresenta qualquer mácula de inconstitucionalidade, bastando afastar as disposições qualificadoras de violência doméstica à mulher, para violência doméstica a qualquer indivíduo da relação familiar, para que seja plenamente lícita suas disposições. Neste contexto, inexiste a condição de inconstitucionalidade decorrente da discriminação produzia, mas tão somente uma imposição inconstitucional que deve ser suplantada pelo intérprete equiparando as condições de homem e mulher, de modo a permitir a análise da pretensão que é da competência do Juízo que afastou a incidência da norma” (TJMG, ApCrim 1.0672.07.249317-0, j. 06.11.2007, rel. JudimarBiber, data da publicação 21.11.2008)”.  Solidificado estes entendimentos, extrai-se que a falta de previsão legal não é óbice à atuação do Judiciário. Contudo, vale trazer também a reportagem do Jornal A TRIBUNA, de Santos por Eduardo VelozoFuccia: “À dona de casa Maria será imposta pena de R$ 100,00 cada vez que se aproximar a menos de 100 metros do ex-marido, o funcionário público João, ou inserir dados a seu respeito na internet ou qualquer outro meio de comunicação. Os nomes são fictícios, mas a história não.  Ela acontece em Praia Grande e é alvo de decisão judicial inédita na Baixada Santista e raríssima no País, porque deriva de interpretação extensiva da Lei nº 11.340, de 7 agosto de 2006. Conhecida por Lei Maria da Penha, essa legislação foi concebida para coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher. No entanto, a juíza auxiliar do Juizado Especial Criminal (Jecrim) de Praia Grande, Luciana Viveiros Corrêa dos Santos Seabra, a aplicou em benefício de um homem. Para não incorrer em ilegalidade, uma vez que expressamente a Lei Maria da Penha prevê como sujeito passivo (vítima) apenas a mulher, a juíza confrontou a legislação com outros dispositivos do ordenamento jurídico. ‘A decisão foi tomada com base no poder geral de cautela do juiz. Se ao juiz coubesse uma aplicação fria da lei, sem uma análise do caso concreto, bastaria ele lançar o problema para um computador resolvê-lo matematicamente’, justificou a magistrada”. Inspiração. A juíza Luciana, porém, admitiu ter decidido sob a "inspiração" da Lei Maria da Penha, porque a obrigação imposta à acusada está prevista na legislação especial de proteção às mulheres. Para a magistrada, a solução encontrada objetivou apenas proporcionar justiça. O Capítulo II da Lei Maria das Penha especifica as medidas de proteção de urgência que obrigam o agressor a fazer ou a deixar de fazer algo. Entre elas está a proibição de aproximação da ofendida, conforme a redação original, fixando o limite mínimo de distância entre esta e o agressor. Tal medida, de acordo com o Artigo 22 da Maria da Penha, é cabível quando for constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, ainda conforme o texto legal. Mas no caso específico de Praia Grande, João é quem se beneficia da proteção. Maria é a vilã. […] Tratamento isonômico. Sobre a aplicação de medida prevista na Lei Maria da Penha para garantir a proteção do cliente, que é homem, Gisele e Samira a consideraram válida. De acordo com elas, a decisão da magistrada vai ao encontro da isonomia consagrada na Constituição Federal. O caput (cabeça ou parte inicial) do Artigo 5º da Carta Magna diz que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. O inciso I do mesmo artigo reforça essa isonomia, especificando que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. O pedido das advogadas recebeu o aval do promotor de justiça Fernando Pereira da Silva e foi deferido pela juíza, inclusive em relação à expedição de ofício à empresa Google, responsável pelo Orkut. No documento encaminhado ao Google pelo Jecrim é requisitada a exclusão do perfil de Maria do site de relacionamentos, em razão dela utilizá-lo para ofender e ameaçar o ex-marido. A divulgação indevida de dados pessoais de João pela internet também fundamentou a decisão. A Tribuna procurou a acusada, mas ela nada quis declarar (Sic.)”. Por fim, é de grande valia mencionar o precioso voto do Ministro Sálvio de Figueiredo, do Superior Tribunal de Justiça, no qual nos ensina que: “A vida, enfatizam os filósofos e sociólogos, e com razão, é mais rica que nossas teorias. A jurisprudência, com o aval da doutrina, tem refletido as mudanças do comportamento humano no campo do direito de família. Como diria o notável De Page, o juiz não pode quedar-se surdo às exigências do real e da vida. O direito é uma norma essencialmente viva. Está ele destinado a reger homens, isto é, seres que se movem, pensam, agem, mudam, se modificam. O fim da lei não deve ser a imobilização ou a cristalização da vida, e sim manter contato íntimo com esta, segui-la em sua evolução e adaptar-se a ela (…). Em outras palavras, a interpretação das leis não deve ser formal, mas sim, antes de tudo, real, humana, socialmente útil” (RSTJ 129/364) (Sic)”. Será que pedir apenas que se faça valer o princípio mais conhecido entre juristas e também previsto explicitamente na Constituição Federal, qual seja o Princípio da Isonomia, é pedir demais? Conclusão Decisões de magistrados estendendo a aplicação da Lei nº. 11.340/2006, originalmente destinada à proteger apenas a mulher, apesar de aparentemente serem incoerentes no plano formal, representam a concretização de uma coerência moral, pois sela um compromisso da justiça para solucionar o caso concreto, zelando um princípio maior constitucional – o da Isonomia. O formalismo excessivo corrompe a essência do direito e não resolve as atuais situações aludidas pela sociedade. De tal modo, as normas não devem ser entendidas como tendo um caráter imutável, fixo, inquestionável, canônico, estático. Ao contrário, é papel do aplicador do direito atualizar no processo hermenêutico tais normas segundo a mutabilidade das circunstâncias históricas e a moral política social. É, pois, função do aplicador, dentro de parâmetros razoáveis, estender a norma, em nome da equidade e da isonomia, para alcançar a justiça. O direito justo não se esgota no direito positivo. Summus jus, summa injuria – Excesso de justiça, excesso de injustiça. Em outras palavras, a aplicação rigorosa da lei pode ensejar injustiças. Ademais, foi o resgate da interação entre a concretude social e a abstração legal que levou o Supremo Tribunal Federal a, recentemente, estender a casais homoafetivos o direito a união estável, adoção, benefícios previdenciários, etc. Isso nada mais é do que o resultado da luta de movimentos sociais em prol do seu reconhecimento como sujeitos de direitos. Portanto, homens heterossexuais, homossexuais, transexuais, travestis e transgêneros são cidadãos como os demais indivíduos da sociedade e sujeitos de direitos. Dentro desse contexto, busca-se não seguir à risca as formalidades, o texto literal da Lei 11.340/06, mas sim sua contextualização no âmbito atual, o que está implícito. Logo, privá-los de uma proteção, configuraria uma forma terrível de preconceito e discriminação, algo que a Lei Maria da Penha busca exatamente combater.
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Violência contra mulher: aspectos sócio-juridico e as políticas sociais de proteção
Tendo em vista as discussões acerca do papel da mulher na sociedade bem como as diversas formas de violência praticadas contra as mulheres, o presente artigo visa suscitar questões importantes acerca da violência contra mulher propõe-se aqui um estudo conceitual, uma breve analise histórica e social analisando e identificando as diversas formas de violência praticada contra as mulheres, bem como o que se tem na sociedade enquanto aparato jurídico e social de proteção as mulheres e de coerção aos que praticam tais violências.
Direitos Humanos
Introdução: Diante de inúmeras notícias sobre situações de violência enfrentadas por mulheres tanto em lugares públicos, como em transportes urbanos, quanto no ambiente privado, principalmente nas unidades domésticas onde se dá as relações intrafamiliares, chama a atenção o debate acerca do que se entende por violência quando se trata das mulheres.  Embora o termo violência de gênero seja recente, assim como o próprio reconhecimento acerca dos maus tratos praticados contra as mulheres, não é mais possível ignorar tal situação na sociedade brasileira. A Constituição Federal Brasileira de 1988 em seu artigo 5° proclama de modo enfático a igualdade entre homens e mulheres. No entanto, persistem as imagens sociais de que os homens são superiores às mulheres em varias dimensões. Destacam-se aqui importantes declarações firmadas na Conferência Mundial para os Direitos Humanos realizada na cidade de Viena, em 1993; da Convenção Interamericana de 1994 para prevenir, condenar e erradicar a violência contra mulher, e, finalmente na Conferência Mundial de Mulheres, realizada em Pequim, em 1995, e em agosto de 2006 a Lei 11.340 conhecida como “Lei Maria da Penha” até então uma das maiores conquistas da nossa sociedade brasileira fruto das pressões de movimentos feministas, dos direitos humanos e de varias mulheres brasileiras. As resoluções adotadas nessas ocasiões podem ser consideradas expressão da resistência das mulheres que reconhecem a violência contra elas e questionam as explicações biológicas ou mesmo de ordem doméstica. Elas tratam como uma questão de gênero. Que resulta de um processo de construção histórica e social. Implicando um conjunto de valores sociais. Ou seja, esses valores mostram e definem quais seriam as regras de comportamento esperadas e praticadas por homens e mulheres, inclusive nas sociedades contemporâneas.  Essas desigualdades de gênero, isto é, de homens e mulheres enaltecem comportamentos de um homem viril, desde o nascimento. Eles são educados para serem fortes e orientados para não demonstrar suas emoções, como por exemplo, a frase “homem não chora!”, ratifica essa questão. Enquanto as mulheres são lhes reservado o papel da fragilidade e, por isso, necessitam sempre de serem protegidas.  Assim, caberia aos homens ocupar os espaços públicos e às mulheres se manterem no ambiente doméstico, privado, tendo a responsabilidade de cuidar dos filhos, do esposo e a responsabilidade de organizar o lar. Cabe destacar que a violência contra mulher não é algo em que está posto em nossa sociedade apenas nos dias atuais, tal visibilidade acerca deste fenômeno trata-se de fruto de muitas lutas, sobretudo dos movimentos sociais feministas, que impulsionaram uma serie de manifestações, debates o que impulsionou o Estado a criar mecanismos para julgar, coibir a violência praticada e dar proteção a mulher em situação de violência. Sendo assim o presente artigo visa trazer reflexões e analises conceituais, sociológicas sobre a violência contra mulher que identificamos e em especial nas unidades domesticas e as relações de poderes entre mulheres e homens. 1. Desenvolvimento: Conceituando os aspectos sociais e históricos da violência contra mulher Para falar de violência praticada contra mulher devemos compreender que tal fenômeno já existe na sociedade de maneira histórica e atravessa vários modelos de economia, tem raízes aprofundadas na cultura e está presente em todas as classes sociais. Tendo por definição o conceito de violência a partir de Chaui (1985), que define a violência para além de uma transgressão de regras e normas e nos leva a avaliar por meio de dois outros prismas essa problemática: o primeiro apontamento é a violência com finalidade na opressão, dominação e exploração em uma relação onde se predomina a diferença e a desigualdade; a segunda analise é quando uma conduta trata o outro não como ser humano, mas o “coisifica”. Assim, desconsiderando sua personalidade, sua capacidade de agir e falar colocando a pessoa em condição de passividade de inércia, outra forma de violência.  Para compreendermos melhor a violência praticada contra a mulher, devemos considerar a dimensão de gênero, construção social de papeis a serem desempenhados por homens e mulheres na sociedade. Esse fenômeno se da tanto em âmbito relacional como social que para tanto provoca desigualdades, opressão entre outros. Para que se iniba essa relação de forma desigual, implica mudança em nível educacional, cultural e social. De acordo com Scott (1995), a questão de gênero é constituída e mantida com bases em normas, regras e instituições sociais que impõem e definem o que é do masculino e do feminino, e padroniza os comportamentos de mulheres e homens – o gênero delimita campos de atuação para cada sexo. A categoria gênero é uma construção social sobreposta a um corpo, ou seja, uma forma significativa de domínio e poder. Podemos destacar a seguinte definição a partir de Safiotti, (2004) violência de gênero é a violência contra mulher, simplesmente por ser mulher independente de sua cor, raça, etnia classe social e perpetrada pelos homens. Beauvoir (1949) aponta que a subalternidade da mulher ao homem advém da perspectiva de que o papel feminino é destituído de identidade cultural. Assim sendo, a mulher acaba por ocupar por vezes o espaço de menor representatividade na sociedade, ou seja, de subalternidade e desvalorização. Não apenas se trata de diferenças, mas sim de tratamento desigual que se configura em vários espaços: doméstico, profissional e social. Em face a violência praticada contra mulher, sabe-se da violência que ocorre no espaço privado, onde a mulher vive e se relaciona,  denomina-se violência doméstica, esta é fruto da violência de gênero, que de acordo com a Organização Mundial de Saúde (1998) a violência domestica se configura como sendo todo ato de violência baseado em gênero que tem como resultado, possível ou real, um dano físico, sexual ou psicológico, incluídas as ameaças, a coerção ou a privação arbitrária da liberdade, seja a que aconteça na vida pública ou privada. Abrange, sem caráter limitativo, a violência física, sexual e psicológica na família, incluídos os golpes, o abuso sexual, a violação relacionada à herança, o estupro pelo marido, a mutilação genital e outras práticas tradicionais que atentem contra mulher. Uma violência exercida por outras pessoas – que não o marido – e a violência relacionada com a exploração física, sexual e psicológica e ao trabalho, em instituições educacionais e em outros âmbitos, o tráfico de mulheres e a prostituição forçada e a violência física, sexual e psicológica perpetrada ou tolerada pelo Estado, onde quer que ocorra. A descrição acima serve como base e orientação para os profissionais das diversas áreas que atuam no atendimento a mulher de modo a instrumentalizar o entendimento acerca desse fenômeno. Permite ainda a esses profissionais a compreensão dos diversos sinais manifestados de maneira explicita ou não por parte da mulher agredida, e contribui para essas se perceberem nesse processo de violência, que pode vir a contribuir com a busca por seus direitos. 2-As diferentes formas de violência: Para alcançarmos uma melhor compreensão acerca da violência contra mulher faz-se necessário buscarmos conceitos acerca da violência. Sendo assim, de acordo com MELO e TELES (p.13, 2012) no seu significado mais freqüente quer dizer fazer o uso da força psicológica, intelectual e física visando obrigada outrem a fazer algo contra a sua vontade, de modo a constranger, cercear a liberdade impedindo assim a outra pessoa de manifestar-se sua vontade. Tal situação é manifestada para com o outro de modo a ameaçar, espancar e, até mesmo, chegar à morte. Compreender que a violência é um fenômeno gerado nos processos sociais que atinge o âmbito das instituições, grupos, indivíduos sendo desigualmente distribuída culturalmente delimitada e reveladora das contradições e das formas de dominação na sociedade. Para fins deste artigo nos atentaremos no que tange a violência praticada contra mulher que tem sido empregado por vários pesquisadores e citado neste artigo acima. O termo violência de gênero como sendo algo relacionado à violência praticada contra a mulher, a sociologia e a antropologia a partir desta categoria sistematizam e demonstram que há desigualdades socioculturais entre homens e mulheres que possuem repercussão e reprodução nas relações sociais, tanto em esferas privadas, quanto públicas impondo papeis diferenciados e assim criando pólos de tensão, dominação e poder. A convenção do Belém do Pará 1995 traz em seu artigo 1º a seguinte definição acerca da violência contra mulher: como sendo qualquer ato ou conduta baseado no gênero, que cause morte dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico a mulher, tanto na esfera pública quanto a privada. Já a Lei 11.340 de 2006, comumente conhecida no Brasil como “Lei Maria da Penha”, traz em seu capitulo II: das formas de violência doméstica e familiar contra mulher os seguintes tipos de violência doméstica e familiar praticadas contra mulher: 1. Violência física: entende-se como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; 2. Violência psicológica: é definida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional, prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação dentre outros. 3. Violência sexual: qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça coação, uso da força. 4. Violência patrimonial: é aquela que configura retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos. 5. Violência Moral: é entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. Ao buscarmos conhecimento mais aprofundado no tema da violência doméstica contra a mulher podemos compreender que primeiramente, trata-se de uma forma específica de violência de gênero, “que visa à preservação da organização social de gênero fundada na hierarquia e desigualdade de lugares sociais sexuados que subalternizam o gênero feminino”(SAFFIOTI E ALMEIDA, 1995). É perceptível que as mulheres não sofrem apenas um tipo de violência, mas vários. Como mencionado acima,estas sofrem violência no âmbito público por estranhos e até por instituições públicas e, principalmente, no ambiente familiar doméstico tendo como principais agressores parceiros, ex-parceiros e atuais companheiros. 2.1 – As fases da violência praticada contra mulher A violência praticada contra a mulher que decorre da violência de gênero não é algo esporádico, casual, mas sim um processo de ciclo continuo quando não há a oportunidade de interromper onde por vezes se dá de forma tensa e violenta com posterior pedido de perdão e o dizer ” eu te amo”(grifo meu), esse ciclo comumente conhecido como ciclo da violência é composto por três fases: 1. O inicio da tensão no relacionamento: É quando ocorrem menores agressões, como as verbais, ameaças, crises de ciúmes, sentimento de posse e possível destruição de objetos da mulher dentre outros. Nessa fase a mulher por vezes tenta acalmar o seu parceiro, se coloca compreensiva e, por vezes, passivas e colocando culpada pela raiva e processos de explosão do companheiro. Ela justifica a condição do companheiro por ele está por desempregado, embriagado. 2. A explosão da violência: Fase caracterizada pelas agressões mais graves e intensas, onde a mulher em situação de violência por vezes necessita da intervenção dos serviços de proteção no centro de referência de atendimento à mulher do Centro de Referência Especializada em Assistência Social – CREAS, com serviços de saúde, sistema judiciário, Delegacia Especializada no Atendimento a Mulher – DEAM, dentre outros. 3. A lua de mel: Nessa fase, após toda a situação grave de violência, o companheiro se apresenta de maneira carinhosa, demonstrado amor, afeto, jura amor único a companheira, presenteia, promessas de não agir mais de forma violenta e que irá voltar a ser “aquele homem” que um dia a sua companheira se apaixonou. Vale ressaltar que as fases descritas acima estão assim dispostas para fins didáticos de compreensão da violência contra a mulher. A violência na verdade não é circular e sim semelhante a um espiral onde a cada reconciliação, arrependimento as fases da tensão e explosão se tornam mais violentas, em situações limites podem vir a se findar em homicídio praticado contra a mulher. 3- Os serviços de atendimento brasileiro a mulheres que sofrem violência: A primeira delegacia de atendimento a mulher em situação de violência foi criada em 1985 no Estado de São Paulo, mesmo ano de criação do Conselho Nacional dos direitos da mulher (CNDM). Posterior a esse ano foi criada também a primeira casa abrigo para mulheres em situação de risco de morte em São Paulo. Vale ressaltar que essas três grandes conquistas para a mulher brasileira se deram por conta da militância por parte do movimento feminista, impulsionando o Estado a fazer sua parte enquanto proposta e execução de ações voltadas para a população, neste caso mulheres em situação de violência. Entre os anos de 1985 a 2002 os respectivos serviços citados foram o principal eixo focado na política de enfrentamento da violência contra a mulher com ênfase na segurança pública e assistência social. Em 2003 com a criação da Secretaria de políticas para mulheres surgem novas ações para o enfrentamento à violência contra a mulher como: centros de referência de atendimento a mulher, as defensorias da mulher, a construção de uma rede de atendimento a mulheres. Com a conferência nacional de mulheres em 2004 cria-se o Plano nacional de políticas para mulheres e, este por sua vez, aponta que a responsabilidade do atendimento a mulher, que sofre violência, não se restringe a ação da política de assistência social e da segurança pública, pois tal fenômeno envolve a todas as políticas públicas no que tange atuação e responsabilidade. Em 2005 o governo federal cria a central de atendimento a mulheres em situação de violência que visa auxiliar bem como orientar as mulheres nos casos de violência através do numero 180. As ligações são gratuitas e o serviço atende 24 horas incluindo finais de semana e feriados. Os serviços focalizados no atendimento a mulheres que estão em situação de violência doméstica estão organizados e denominados pela Secretaria de política para mulheres (SPM), como a rede de enfrentamento a violência contra mulher que tem o conceito definido pela própria da SPM: “atuação articulada entre as instituições e serviços governamentais e não governamentais bem como a comunidade com vistas ao desenvolvimento de estratégias de efetiva proteção, e de políticas que visam garantir o empoderamento das mulheres e seus direitos humanos, bem como a responsabilização dos agressores e a assistência de maneira qualificada a essas mulheres que, por hora, encontra-se em situação de violência”. Já a rede de atendimento, faz referência ao conjunto de ações e serviços de diferentes setores de modo especial referentes a política de assistência social, o sistema de justiça, saúde e segurança pública. Esses serviços visam a ampliação e a melhoria da qualidade do atendimento, a identificação e o encaminhamento adequado a todas mulheres em situação de violência, a sua integridade e, por fim, a humanização do atendimento. Assim sendo, nos serviços que atendem a mulher em situação de violência é de suma importância o processo de acolhimento e escuta qualificada (grifo meu),onde nesse processo a equipe profissional demonstrará a mulher que está pronta para atender suas demandas, dar a importância para sua situação e providenciar os devidos encaminhamentos e demais procedimentos que devem ser tomados. Com a escuta qualificada é possível transmitir um serviço de confiança e amparo à mulher, bem como permitir ao profissional identificar em que situação de violência a mulher se encontra. Considerações finais: Importa destacar o avanço no campo das políticas públicas sociais voltadas para a questão da violência contra mulher, violência essa provocada por uma desigualdade de gêneros.Por isso, a Lei Maria da Penha é considerada um grande marco na luta pelo fim da violência contra a mulher, é um instrumento de proteção às mulheres vítimas de violência doméstica e, uma vez que une as três esferas de poder, é garantidora da redução e prevenção dos casos desse tipo de violência. Entretanto, para além de decretos, leis e políticas focalizadas no atendimento a mulher em situação de violência e punição ao agressor, faz-se necessário investir em políticas sociais e culturais para atuarem como práticas educativas e preventivas que se inicie desde a escolarização e perpetue-se na vivência em sociedade. Sendo assim, que seja assumido de fato pelo poder público um comprometimento ético e político das equipes multiprofissionais, bem como a formação e qualificação continuada para atender e acompanhar sistematicamente as expressões da violência contra a mulher.  E que a sociedade civil corrobore, por meio dos espaços de discussão (conselhos),a adoção de políticas públicas direcionadas ao atendimento às vítimas de violência de maneira continuada, jamais perdendo de vista a necessidade de se desenvolver políticas públicas educacionais, econômicas e culturais que, de fato, contribuam com a redução das desigualdades sociais e de gênero e, por sua vez, auxiliem na construção de relações mais igualitárias entre mulheres e homens.
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Da alteração de prenome e gênero sem mudança de sexo
O presente artigo tem por escopo apresentar uma defesa aos direitos de quem pretende modificar o prenome e gênero sem que seja necessário se submeter a um procedimento invasivo de mudança de sexo. No Brasil, quem não tem condição financeira ou interesse em se sujeitar a uma intervenção médica vem passando por sérias dificuldades para garantir seus direitos. Sem a pretensão de esgotar a matéria, o estudo será eminentemente teórico. O mesmo abordará tangencialmente a identidade de gênero, através dos elementos da identidade pessoal, quais sejam: sexo, gênero, orientação sexual e prenome, bem como tratará do papel do Estado frente a opinião religiosa acerca do tema. Seu fundamento de validade será a legislação alienígena, o projeto de lei de autoria dos deputados Jean Wyllys e Érika Kokay de nº 5002/2013, também conhecido por Lei João W. Nery e a jurisprudência nacional, que acertadamente já vem se posicionando favorável a essa alteração.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A sociedade dita um padrão a ser seguido, seja de cultura, beleza, moda etc. e quem não se enquadra nesse conceito é excluído e consequentemente sofre maiores dificuldades para salvaguardar seus direitos. Contudo, essa mesma sociedade ditadora vem alargando e modificando seu ponto de vista nos mais variados assuntos. No que concerne as pessoas e suas inúmeras maneiras de se relacionar, vem sendo adotada uma postura mais liberal, aceitando e apoiando a diversidade sexual. Nesse contexto, emerge o direito a identidade de gênero. Como se verificará mais adiante, trata-se do sexo psicológico e o direito de auto reconhecimento, ou seja, se um indivíduo não se reconhece com o sexo de nascimento terá o direito de alterar prenome e gênero, a fim de adequar com sua verdadeira identidade pessoal. Para entender a matéria será imprescindível definir cada elemento que forma uma personalidade humana, ou seja, é preciso diferenciar entre sexo, gênero, orientação sexual e as vertentes acerca do prenome. Ainda, não se pode olvidar do papel do Estado frente a opinião religiosa que tanto influencia a população. Passando deste ponto, se fará uma análise do posicionamento de outras nações que admitem a correção no registro civil do prenome e gênero, sem a necessidade de se fazer uma cirurgia, verificando também quais foram os passos legislativos que já foram dados no Brasil e, por fim, como o Poder Judiciário vem decidindo acerca do tema. 1 ELEMENTOS IDENTIFICADORES DA IDENTIDADE PESSOAL A identidade pessoal é um atributo da personalidade humana e consiste na soma de caracteres físicos, psicológicos e sociais. Para sua compreensão, se faz necessário explicar e distinguir cada uma das partes que a compõe, conforme os novos ditames sociais.   1.1 SEXO, GÊNERO E ORIENTAÇÃO SEXUAL O sexo é um termo empregado pela medicina, pois parte de pressupostos genéticos que diferenciam homem e mulher, dependendo exclusivamente de elementos da anatomia humana, tais como os órgãos genitais, o aparelho reprodutor e os efeitos ocasionados pelos hormônios testosterona e progesterona. Já o gênero é um critério que divide-se em feminino ou masculino, é subjetivo e moldado por variadas circunstâncias, como a cultura, família, educação. É ele quem dita a forma pela qual alguém vê a si mesmo e é visto no meio em que vive. A orientação sexual, por outro lado, é pautada em uma construção que se faz ao longo das experiências. Compreende o heterossexual, cujo interesse afetivo e sexual é direcionado ao gênero oposto; o homossexual pelo semelhante; o bissexual pelos dois tipos e o assexual que não se envolve sexualmente com ninguém, podendo desenvolver um relacionamento afetivo com homem e/ou mulher. Desse modo, em um contexto tradicional e conservador, ou será homem e o gênero masculino ou será mulher e o gênero feminino. Conquanto, essa dicotomia caiu por terra, cite-se o caso de quem tenha nascido com o sexo biológico de homem, mas seu gênero psicológico é feminino, tendo orientação assexual, será considerada uma mulher assexual. Destarte, pode-se dizer que o gênero psíquico é quem define a identidade. (PINHEIRO, 2015). 1.2 PRENOME O nome também faz parte da identidade, é direito da personalidade previsto no Código Civil de 2002, particularmente no artigo 16, que é categórico ao afirmar que todos têm direito a um nome, que corresponde ao prenome e sobrenome. O prenome é alusivo ao gênero, sendo masculino ou feminino e manifesta como o indivíduo será reconhecido em seu meio familiar e social. Trata-se, de predicado que irá constituir a personalidade por toda a vida. Não existe uma pessoa sem nome, ainda que não tenha sido registrada, pois é próprio da natureza humana nomear coisas. Isto posto, para assegurar que todos terão direito a um nome é que a Lei nº 6.015/73, denominada Lei de Registro Público (LRP), no artigo 54, item 4º, ordena a indicação de um prenome no assento de nascimento. Logo, a certidão de nascimento, documento este emitido pelo competente Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais, conterá um prenome e sobrenome, sendo o último composto pelo apelido de família de ambos ou de um dos pais. Na esteira do entendimento, a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica dispõe, no artigo 18, que um indivíduo não pode ficar sem nome e, se preciso for, serão criados nomes fictícios. Outrossim, não basta possuir um nome, é indispensável que outras prerrogativas sejam atendidas, entre elas, a de ter um prenome que não cause nenhum tipo de constrangimento. O artigo 55 da LRP, é expresso ao afirmar que aos oficiais do registro civil é permitido recusar o assentamento de “prenome suscetível de expor ao ridículo os seus portadores”. Todavia, o dispositivo acima citado não traz a noção e nem exemplifica essas situações, dando margem a inúmeras interpretações. Nesse sentido, se inclui a hipótese daqueles que, por não se identificarem com o seu sexo biológico, sentem uma enorme vergonha, angústia e dor ao serem chamados pelo nome de batismo e, por isso, anseiam modificar o prenome a fim de amoldar ao gênero psicológico. 2 O PAPEL DO ESTADO DIANTE DA RELIGIÃO Não se pode falar na história da humanidade sem mencionar a religião. Nas mais diversas manifestações sociais ela está presente, seja formando ou influenciando opiniões. Contudo, a liberdade de professar a fé deve ter limites, pois a crença de uma pessoa não pode impedir a concretização do direito de alguém. Religião e ciência sempre estiveram em lados opostos, mas uma não pode se sobrepor a outra. Ocorre que, na prática, a primeira vem oprimindo a segunda, principalmente em temas polêmicos como a diversidade sexual e o direito a identidade de gênero. A visão religiosa é que Deus criou o homem e a mulher para juntos constituírem uma família, ou seja, a manifestação da sexualidade só pode haver entre indivíduos de sexos opostos. Entretanto, no mundo não existem apenas pessoas heterossexuais. Dessa maneira, mesmo que a religião afaste uma pessoa por causa de sua orientação sexual, o papel do Estado é de agente garantidor de direitos, devendo resguardar o interesse de todos os cidadãos, independente de credo ou condição sexual. 3 DA ALTERAÇÃO DO PRENOME E GÊNERO NO MUNDO E NO BRASIL Este capítulo é dedicado a análise do direito a alteração do prenome e gênero, sem a mudança de sexo, sob uma perspectiva do que acontece no mundo e no Brasil. Tem por proposta incentivar a produção de uma norma, tomando como exemplo as legislações alienígenas, bem como estimular que mais decisões judiciais sejam favoráveis à matéria. 3.1 Legislação estrangeira Muitas nações vêm aderindo ao conceito de identidade de gênero. Em especial, duas se destacam, a mais recente é de Malta. Esse país integra a comunidade europeia, sendo praticamente desconhecido no mundo. Porém, nesse ano de 2015, ganhou visibilidade internacional, ao editar uma norma em prol do direito a identidade de gênero. Os parlamentares desse arquipélago tiveram uma atitude arrojada ao permitirem a mudança de gênero sem submissão a cirurgia, sendo o suficiente uma declaração em cartório (CAPIRACA, 2015). A Argentina, por sua vez, é referência na América Latina. No ano de 2012, publicou a Lei de Identidade de Gênero, que assegura o direito à autodeterminação do gênero, autorizando a retificação no registro civil. Melhor dizendo, para alterar o nome e o gênero os cidadãos não carecem recorrer ao aval da justiça, basta manifestar a intenção. Esse avanço é tanto que se estendeu até aos estrangeiros residentes nesse país (G1, 2012). 3.2 Legislação brasileira No Brasil não existe uma lei que regule a identidade de gênero. A LRP, perante o sistema normativo nacional, é a responsável pelo registro do prenome e gênero de uma pessoa em cartório de Registro Civil. Ela usa como parâmetro o sexo biológico, que já se demonstrou falho, para definir o prenome e gênero a ser declarado na certidão de nascimento e demais documentos que se seguirão na vida de uma pessoa. Essa norma é extremamente restritiva e admite a substituição de prenome somente em algumas disposições. O artigo 58, por exemplo, consente que seja acrescentado ou suprimido o nome por apelidos públicos notórios, é o caso das celebridades e dos políticos, bem como, admite a permuta visando a segurança de quem tenha sido ameaçado ou coagido em face de colaboração com a investigação criminal. Sucede que da década de 70 adiante, período da publicação da LRP, poucas foram as inserções feitas na mencionada lei. Assim, no esforço de suprir suas lacunas e conciliar com a atual realidade social, surgiu o projeto de lei nº 5002/2013, de autoria dos deputados federais Jean Wyllys e Érika Kokay, a denominada Lei João W. Nery (PROJETO DE LEI). Esse projeto pretende conferir a todo ser humano o direito a identidade de gênero. Entendida, consoante artigo 2º, como “a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente, que pode corresponder ou não com o sexo atribuído após o nascimento, incluindo a vivência pessoal do corpo”. Ademais, o artigo 4º, parágrafo único, é claro ao possibilitar a mudança do prenome e gênero nos documentos pessoais, com ou sem cirurgia de mudança de sexo. Essa iniciativa representa um progresso social, já que o Estado não pode obrigar uma pessoa a passar por uma intervenção cirúrgica para ter acesso a seus direitos. 3.3 Jurisprudência nacional As transformações sociais clamam por modificações nas leis e tal não poderia ser diferente com a identidade de gênero. É cediço que a legislação é o alicerce para as decisões judiciais. Ocorre que o regramento legislativo muitas vezes é omisso e tantas outras defasado. Nesses casos, o Poder Judiciário mesmo sem lei tem que julgar e o socorro terá de vir de institutos como o direito comparado e os princípios gerais do Direito. Nesse contexto, a alteração de prenome e gênero sem a imposição de cirurgia é medida de promoção a igualdade social, baseada em valores supremos como o da dignidade da pessoa humana. Dispondo sobre este princípio, tem-se que: “A dignidade da pessoa humana é o valor-base de interpretação de qualquer sistema jurídico, internacional ou nacional, que possa se considerar compatível com os valores éticos, notadamente da moral, da justiça e da democracia. Pensar em dignidade da pessoa humana significa, acima de tudo, colocar a pessoa humana como centro e norte para qualquer processo jurídico de interpretação, seja na elaboração da norma, seja na sua aplicação”. (GARCIA; LAZARI, 2015, p. 97) Diante desse enunciado, depreende-se a relevância do direito a identidade de gênero. Não pode o Estado negar a alteração de prenome e gênero baseando-se em critérios puramente genéticos, haja vista a superação da antiga distinção homem, gênero masculino versus mulher, gênero feminino. Para argumentar esse nova percepção acerca da identidade pessoal, colaciona-se algumas posições adeptas a alteração de prenome e gênero sem mudança de sexo. Segue abaixo transcrito um trecho dos acórdãos dos Estados do Piauí e de Sergipe, respectivamente (DIREITO HOMOAFETIVO, 2015): “Apelação cível. Ação de modificação de registro civil. Transexualismo. Modificação do prenome sem a realização de cirurgia de transgenitalização. Dignidade da pessoa humana. Direito à identidade pessoal. Reforma da sentença. Recurso provido. Suficientemente demonstradas que as características da parte autora, físicas e psíquicas, não estão de acordo com os predicados que o seu nome masculino representa para si e para a coletividade, tem-se que a alteração do prenome é medida capaz de resgatar a dignidade da pessoa humana, sendo desnecessária a prévia transgenitalização. Decisão unânime, de acordo com o parecer ministerial superior. (TJPI, AC 2012.0001.008400-3, 2ª C. Esp. Cível, Rel. Des. Brandão de Carvalho, p. 22/01/2014). Grifo da autora. Apelação cível. Ação de retificação de registro civil. Pedido realizado por transexual – Inclusão de prenome feminino no registro civil – Cabimento. A incoincidência da identidade do transexual provoca desajuste psicológico, não se podendo falar em bem-estar físico, psíquico ou social. Assim, o direito à adequação do registro é uma garantia à saúde, e a negatividade modificação afronta imperativo constitucional, revelando severa violação aos direitos humanos. Sentença reformada. Recurso do autor conhecido e provido. Recurso do Ministério Público conhecido e parcialmente provido. Decisão unânime. (TJSE, AC 5751/2012, Rel. Des. Ricardo Múcio Santana de Abreu Lima, j. 30/10/2012)”. Grifo da autora. Por fim, a incumbência de solucionar os conflitos gerados em decorrência da ausência de norma fica a cargo do Judiciário, que deve ponderar valores, princípios e buscar no Direito estrangeiro uma referência para suas decisões.     CONCLUSÃO A tendência universal é o reconhecimento da identidade de gênero, nela compreendido o direito de retificar o prenome e gênero no registro civil, sem que seja necessário recorrer a subterfúgios como a cirurgia para a mudança de sexo. O Brasil tende a acompanhar esse raciocínio e o ápice dar-se-á com a aprovação do projeto de lei nº 5002/2013. Acontece que a aceitação desse projeto está diretamente concatenada com a opinião popular que, infelizmente, se deixa conduzir pela atitude de alguns fundamentalistas religiosos que são contrários a promulgação da lei. Nesse meio termo, enquanto não for aprovado o projeto, o Judiciário pátrio julgará os casos postos a seu crivo, valendo-se de princípios e do estudo do Direito comparado. Por derradeiro, apesar de não existir uma uniformidade nas decisões, a Justiça brasileira tem apreciado acertadamente em prol do direito a identidade de gênero, consentindo na alteração de prenome e gênero, ainda que não tenha sido realizada uma intervenção médica.
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Ação afirmativa: uma análise do sistema de cotas
Resumo:A igualdade e os direitos humanos são elementos constitucionais ainda carentes em alguns aspectos de implementação material. Assim, as Ações Afirmativas possibilitam instrumentos de eficácia e aplicabilidade desses pilares. São meios de corrigir distorções materiais e históricas que levaram à marginalização das minorias. O foco deste estudo são as Ações Afirmativas, em especial o sistema de cotas para negros, pardos e índios nas universidades públicas. Toda ação afirmativa tem como finalidade cumprir o discurso constitucional de efetivação da dignidade humana, que, aliás, vem sendo questão de ordem na atual concepção do Estado constitucionalista do pós-guerra, em que todo problema do corpo social passa, inevitavelmente pela necessidade de efetivar direitos básicos do indivíduo. Dessa forma, cultuar os chamados direitos fundamentais, na atualidade não é o bastante, mas, sim torná-los efetivos, portanto, dando-lhes o mesmo direito à educação superior. No contexto da análise jurídica do sistema de cotas, procura-se discutir sobre a ADPF 186, que reconheceu a constitucionalidade do sistema de cotas e o seu impacto na sociedade, visto que, mesmo sendo declarada válida, a norma ainda gera muita polêmica nos meios jurídicos.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A Constituição Federal Brasileira traz em seus artigos iniciais os fundamentos da dignidade da pessoa humana, o princípio da não discriminação e da igualdade como alguns dos pilares do Estado e da sociedade brasileira. Com base nestes princípios foram criadas políticas de Ações Afirmativas, que são uma das formas de diminuir as desigualdades sociais entre as pessoas de diferentes raças, em especial para os negros, índios e pardos. Neste trabalho monográfico, será feita uma análise crítica da discriminação, do tema igualdade na Constituição Federal, do sistema de cotas para negros nas universidades e da ADPF 186, que discutiu a constitucionalidade destas cotas. 1 AÇÕES AFIRMATIVAS 1.1 Considerações iniciais Ao se criar a exigência da igualdade perante a lei, inicialmente o Estado permaneceu neutro nas relações interpessoais, buscando não intervir na esfera íntima das pessoas. Assim, o papel do Estado foi meramente de espectador do mecanismo liberal de definição das relações econômicas, espirituais e pessoais, deixando que o próprio mercado ajuste as discrepâncias. A política liberal-capitalista que tomou conta da sociedade não foi capaz de tornar as relações sociais justas, apesar de deixar que o mercado ajustasse o que estivesse fora do comportamento comum. Como exemplo, cita-se a escravidão, que por séculos transformou os escravos em seres discriminados pela sociedade e que, mesmo após o seu, não transformou seus descendentes em seres com o mesmo status do branco dominador, mantendo-os marginalizados. Assim, constata-se que garantir a igualdade legal não é o suficiente para tornar as pessoas iguais ou mesmo para proporcionar a igualdade desejada pelo constituinte, motivo pelo qual o Estado renunciou à sua histórica neutralidade e passou a utilizar políticas para modificar este erro histórico. 1.2 Ações afirmativas propriamente ditas Deste modo, foram criadas as ações afirmativas que, na definição de GOMES são: “(…) um mero "encorajamento" por parte do Estado a que as pessoas com poder decisório nas áreas pública e privada levassem em consideração, nas suas decisões relativas a temas sensíveis como o acesso à educação e ao mercado de trabalho, fatores até então tidos como formalmente irrelevantes pela grande maioria dos responsáveis políticos e empresariais, quais sejam, a raça, a cor, o sexo e a origem nacional das pessoas. Tal encorajamento tinha por meta, tanto quanto possível, ver concretizado o ideal de que tanto as escolas quanto as empresas refletissem em sua composição a representação de cada grupo na sociedade ou no respectivo mercado de trabalho. […] conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. (GOMES, 2001, p.39-40)” Assim, diferem-se as políticas de ação afirmativa das políticas anti-discriminatórias porque estas se limitam a proibir a discriminação, nas suas diversas formas, enquanto aquelas agem positivamente para corrigir as injustiças discriminatórias, efetivando o ideal de igualdade. As ações afirmativas são criadas tanto por empresas privadas quanto pelo próprio Estado, visto que a própria lei garante as políticas de ação afirmativa. Percebe-se que ao criar estruturas unicamente com o objetivo de promover políticas anti-discriminatórias, o Estado passa a ter um papel mais ativo na busca da igualdade real entre os pares, tentando efetivar o ideal constitucional. Além disso, o governo brasileiro busca promover as ações afirmativas baseadas também no Estatuto da Igualdade Racial, que, em seu artigo 4.º dispõe: “Art. 4º A participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de:I – inclusão nas políticas públicas de desenvolvimento econômico e social;II – adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa;III – modificação das estruturas institucionais do Estado para o adequado enfrentamento e a superação das desigualdades étnicas decorrentes do preconceito e da discriminação étnica;IV – promoção de ajustes normativos para aperfeiçoar o combate à discriminação étnica e às desigualdades étnicas em todas as suas manifestações individuais, institucionais e estruturais;V – eliminação dos obstáculos históricos, socioculturais e institucionais que impedem a representação da diversidade étnica nas esferas pública e privada;VI – estímulo, apoio e fortalecimento de iniciativas oriundas da sociedade civil direcionadas à promoção da igualdade de oportunidades e ao combate às desigualdades étnicas, inclusive mediante a implementação de incentivos e critérios de condicionamento e prioridade no acesso aos recursos públicos;VII – implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento das desigualdades étnicas no tocante à educação, cultura, esporte e lazer, saúde, segurança, trabalho, moradia, meios de comunicação de massa, financiamentos públicos, acesso à terra, à Justiça, e outros.Parágrafo único. Os programas de ação afirmativa constituir-se-ão em políticas públicas destinadas a reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação social do País.” (BRASIL, 2010, on line) Tal norma tem como objetivo implementar as ações que a Lei de Organização da Presidência da República e dos Ministérios impõe como competência da Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial, sendo necessária para que a mesma norteie o seu trabalho. No Brasil, a principal política de ação afirmativa é a criação de cotas para negros em universidades federais, contemplando a parcela da população excluída de educação de qualidade durante a educação básica com a possibilidade de estudarem nas melhores universidades do país. (GOMES, 2001). Note-se que a construção das ações afirmativas no direito pátrio teve como base a evolução do instituto nos Estados Unidos, sendo este um país pioneiro na discussão da legalidade das ações afirmativas frente às normas constitucionais. A jurisprudência brasileira entende as ações afirmativas como válidas segundo critérios semelhantes aos critérios exigidos pela Suprema Corte norte-americana, dando a entender pela universalidade da necessidade das ações afirmativas. Esta necessidade existe por tentar trazer efetividade ao preceito maior da Constituição Federal, que é a busca da dignidade da pessoa humana, como será estudado no próximo capítulo. 2 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO INSTRUMENTO DE DIGNIDADE HUMANA A Constituição de 1988 trouxe um novo ambiente jurídico, em que os Direitos Sociais e Humanos passaram a ter mais destaque no conjunto de normas brasileiras. Sob a preocupação em trazer efetividade às normas trazidas pela Constituição de 1988, os Tribunais passaram a entender suas normas como de aplicação imediata e não uma simples carta de intenção, promessas vazias de direito. Ao ser promulgada a Constituição separou as competências estritamente constitucionais para que fossem cuidadas pelo Supremo Tribunal Federal, das competências que ainda possuía para o recém criado Superior Tribunal de Justiça.  Tal mecanismo valorizou tanto a Corte Suprema, que deixa de ser uma terceira instância para se transformar num tribunal constitucional, quanto a própria Carta Magna, que passa a ser discutida diretamente em instância exclusiva e especializada. Porém, mesmo sendo uma corte estritamente constitucional, ainda guarda alguns mecanismos que divergem do objetivo precípuo de guardar a Constituição, tais como julgar extradição e diversas hipóteses de habeas corpus e mandados de segurança. Segundo Luís Roberto Barroso: “(…) congestiona o Tribunal a sistemática do recurso extraordinário e a avalanche de agravos de instrumento contra a denegação de seu seguimento. Enquanto as Cortes Constitucionais espalhadas pelo mundo, inclusive a Suprema Corte americana, inspiradora do modelo brasileiro, apreciam algumas centenas de processos por ano, o Supremo Tribunal Federal debate-se em dezenas de milhares de feitos, que desviam a atenção dos Ministros das questões verdadeiramente constitucionais e relevantes. (BARROSO, 2002, p. 303)” O Direito à liberdade e igualdade são direitos fundamentais, os direitos vigentes numa ordem jurídica concreta. São chamados de direitos materialmente constitucionais, segundo J. J. Canotilho que expõe: “(…) direitos fundamentais formalmente constitucionais, isto é, os direitos expressamente consagrados na constituição formal, e direitos fundamentais constante das leis, mas não formalmente normados na constituição -, deve distinguir-se uma outra: a distinção entre direitos fundamentais em sentido formal e material e direitos fundamentais em sentido meramente formal. No âmbito dos direitos fundamentais, a distinção reconduz-se ao seguinte: há direitos fundamentais, aconsagrados na constituição que só pelo facto de beneficiarem da positivação constitucional merecem a classificação de constitucionais (e fundamentais), mas o seu conteúdo não se pode considerar materialmente constitucional; outros, pelo contrário, além de revestirem a forma constitucional, devem considerar-se materiais quanto à sua natureza intrínseca (direitos formal e materialmente constitucionais). A base da distinção deve procurar-se, segundo uma persistente tradição doutrinal, na <<subjectividade pessoal>>, no <<radical subjectivo>>, caracterizador dos direitos fundamentais materiais. Direitos fundamentais materiais seriam, nesta perspectiva, os direitos subjectivamente conformadores de um espaço de liberdade de decisão e de auto-realização, servindo simultaneamente para assegurar ou garantir a defesa dessa subjectividade pessoal. (CANOTILHO, 2003, p. 406, grifo nosso).” Assim, percebe-se que os direitos instituídos de forma a proteger a liberdade serão sempre normas material e formalmente constitucionais. Todavia, as ações afirmativas, como normas que buscam efetivar a igualdade material, protegida pela constituição, se enquadra em normas que buscam também a proteção à liberdade, como fora exposto no capítulo 2 deste estudo. Desta forma, normas que buscam evitar tratamento discriminatório, tornando livres e iguais as minorias protegidas contra tal tratamento, deve ser tratadas como complemento necessário à efetivação dos direitos fundamentais à liberdade e igualdade, no sentido exposto por Canotilho. Desta necessidade de se promover a executoriedade das normas constitucionais, em especial aquelas constantes nos artigos 1.º ao 5.º concernentes à dignidade da pessoa humana, o Estado passou a tratar tais Direitos de forma mais ativa, buscando os ideais neles contidos. Entre estes ideais está o Direito à igualdade que, na forma real, não somente formal, tal como disposto na Carta Magna, somente poderia ser atingido ao se buscar políticas discriminatórias positivas, como já fora exposto. Um dos maiores desafios que o Estado teve ao tentar reduzir as desigualdades foi para trazer educação de qualidade para todos, inclusive para aqueles que não tiveram acesso à educação de qualidade ainda no ensino fundamental e ensino médio. Para tanto forma criadas cotas em que reservaram-se vagas para estudantes provenientes de minorias, não sem antes haver polêmica sobre a constitucionalidade de tal medida, como será exposto adiante. 3 COTAS NAS UNIVERSIDADES As cotas nas universidades funcionam da seguinte maneira: uma parte das vagas de cada universidade é reservada para aqueles que pertencerem à uma minoria. Foram aplicadas de diversas maneiras. Em algumas universidades, bastava declarar-se negro ou indígena que estaria concorrendo à vaga reservada para seu grupo racial. Em outras era necessário comprovar por meio de foto colorida a sua condição ou mesmo apresentando documento emitido pela FUNAI a fim de que se preenchessem os requisitos. Era também necessário, em alguns casos, comprovar ser o estudante também de baixa renda para fazer jus à vaga dentro do sistema de cotas, visto que a discriminação causaria prejuízo somente naquele que fora privado das mesmas chances dos grupos dominantes. Como exemplo, segue a resolução da UNIFESP criando vagas exclusivas para pretos, pardos e indígenas: “Artigo 1º – Aumentar em 10% o número de vagas dos diversos cursos de graduação, com a finalidade de destiná-las a candidatos de cor (ou raça) preta, parda ou indígena, que cursaram o ensino médio exclusivamente em escolas públicas (municipais, estaduais ou federais). (…) Parágrafo Segundo – O enquadramento se dará mediante a auto-declaração do interessado, conforme classificação adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.” (BRASIL, 2006, on line) Nas universidades que adotaram o sistema de cotas, foi criada uma comissão que avaliou a necessidade da criação das cotas e acompanhou o processo de criação das mesmas, baseado no questionário sócio-econômico que acompanha a ficha de inscrição do candidato. Foi feito pesquisa prévia para quantificar os alunos negros pardos e indígenas das universidades, comparando com sua situação econômica. De posse desses dados, comparou-se o número de estudantes inscritos no vestibular e os estudantes que se matricularam na universidade e, ao entenderem existir uma grande diferença entre os dados relativos, abriram vagas para tais minorias, tentando corrigir tal diferença. A variação das medidas tomadas entre as universidades existe porque as instituições possuem autonomia na forma como destinam as vagas que colocam à disposição aos alunos no vestibular, de acordo com o que dispõe a Constituição, da seguinte forma: "Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão." (BRASIL, 1988,on line). Porém, mesmo com o permissivo constitucional de autonomia universitária e dos princípios de promoção da igualdade social foram ajuizadas diversas ações no sentido de barrar o sistema de cotas. A Universidade de Brasília foi uma das pioneiras à instituir o sistema de cotas, criada como resposta à reprovação em uma matéria de doutorado do primeiro negro a obter cursar o doutorado em antropologia naquela universidade. Em 6 de junho de 2003 foi aprovado um "Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial" naquela universidade contendo os seguintes termos: “I. Objetivo: O Plano de Metas visa atender à necessidade de gerar, na Universidade de Brasília, uma composição social, étnica e racial capaz de refletir minimamente a situação do Distrito Federal e a diversidade da sociedade brasileira como um todo.II. Ações para alcançar o objetivo:1. Acesso a) Disponibilizar, por um período de 10 anos, 20% das vagas do vestibular da UnB para estudantes negros, em todos os cursos oferecidos pela universidade.b) Disponibilizar, por um período de 10 anos, um pequeno número de vagas para índios de todos os estados brasileiros, sempre como resposta às demandas específicas de capacitação colocadas pelas nações indígenas e apenas na medida em que contem com secundaristas qualificados para preenchê-las. A expectativa atual é de que o número de vagas solicitadas não deverá ser superior a 20 por ano, de um total de 3900 ofertadas anualmente pela UnB. II – Permanência: 1. A Universidade de Brasília alocará bolsas de manutenção para os estudantes indígenas e para aqueles estudantes negros em situação de carência, segundo os critérios usados pela Secretaria de Assistência Social da UnB. 2. A UnB, em parceria com outras instituições como a FUNAI, propiciará moradia para os estudantes indígenas. Além disso, concederá preferência nos critérios de moradia para os estudantes negros em situação de carência.3. A UnB se disporá a implementar três programas relacionados diretamente com o Plano de Metas:a) um programa de apoio acadêmico psico-pedagógico, ou de tutoria, não obrigatório, porém sob solicitação, para todos os calouros que demonstrarem dificuldades no acompanhamento das disciplinas;b) um programa acadêmico destinado a observar o funcionamento das ações afirmativas, avaliar seus resultados periodicamente, sugerir ajustes e modificações e identificar aspectos que prejudiquem sua eficiência;c) uma Ouvidoria, destinada a promover inclusão de pessoas negras e membros de outras minorias e categorias vulneráveis na universidade.” (SISTEMA…) Para ser beneficiado com o sistema de cotas, o aluno deveria inserir fotografia colorida em sua ficha de inscrição, juntamente com autodeclaração da condição de preto ou pardo. Porém, mesmo com todo o arcabouço histórico e legal, tal sistema de cotas foi alvo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, pelo processo conhecido como ADPF 186. Na inicial, o Democratas, arguinte, afirma que a reserva de 20% das vagas daquela universidade contraria as especificidades brasileiras, não devendo entender como necessitados das vagas os negros ou pardos, mas sim os pobres que têm condições piores de acesso às vagas que os negros. Alega também que o critério de cor é insuficiente e impreciso, visto que estaria submetendo o julgo à um tribunal racial e não objetivo. Insiste que a adoção de cotas da maneira preceituada pela UnB agrava o preconceito de cor e viola o princípio da dignidade da pessoa humana, visto que estimula a diferenciação entre as pessoas pela cor de pele. Ao final do processo, é julgada totalmente improcedente a arguição, sendo consideradas constitucionais as ações afirmativas em que é estabelecido um sistema de cotas nas universidades, à semelhança da Universidade de Brasília. No julgamento, o voto do ministro relator, Ricardo Lewandowski foi no sentido de que: “(…) as políticas de ação afirmativa adotadas pela UnB estabelecem um ambiente acadêmico plural e diversificado, e têm o objetivo de superar distorções sociais historicamente consolidadas. Além disso, segundo ele, os meios empregados e os fins perseguidos pela UnB são marcados pela proporcionalidade, razoabilidade e as políticas são transitórias, com a revisão periódica de seus resultados.“No caso da Universidade de Brasília, a reserva de 20% de suas vagas para estudante negros e ‘de um pequeno número delas’ para índios de todos os Estados brasileiros pelo prazo de 10 anos constitui, a meu ver, providência adequada e proporcional ao atingimento dos mencionados desideratos. A política de ação afirmativa adotada pela Universidade de Brasília não se mostra desproporcional ou irrazoável, afigurando-se também sob esse ângulo compatível com os valores e princípios da Constituição”, afirmou o ministro Lewandowski. (BRASIL, 2013, on line).” Apesar de ser decisão definitiva, outras foram as decisões de tribunais a favor da política de cotas raciais no Brasil, como as que seguem: “STJ-314859) ADMINISTRATIVO. UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. SISTEMA DE COTAS PARA ALUNOS NEGROS EGRESSOS DE ESCOLA PÚBLICA. EXCLUSÃO DE ALUNA DO SISTEMA DE COTAS. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. 1. Cuidam os autos de mandado de segurança interposto por aluna inscrita no sistema de cotas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na condição de afrodescendente, optante pelo sistema de reserva de vagas para egressos do sistema público de ensino. 2. Sobre as normas que estabelecem o processo seletivo, sabe-se que estas não comportam exceção, sob pena de inviabilização do sistema de cotas proposto. Ou seja, "não se pode interpretar extensivamente norma que impõe como critério a realização do ensino fundamental e médio exclusivamente em escola pública para abarcar instituições de ensino particulares, sob pena de inviabilizar o fim buscado por meio da ação afirmativa" (REsp 1.247.728/RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 07.06.2011, DJe 14.06.2011). 3. No caso concreto, adotou-se o princípio da razoabilidade para considerar que a Impetrante é egressa dos sistema público de ensino. Recurso especial improvido. (Recurso Especial nº 1264649/RS” (2011/0158193-6), 2ª Turma do STJ, Rel. Humberto Martins. j. 01.09.2011, unânime, DJe 28.10.2011). (http://www.stj.jus.br/SCON/)(BRASIL, 2011, on line). Na decisão acima, mesmo não tendo a aluna estudado todo o ensino fundamental e médio em escola pública, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que a mesma tem direito à vaga, visto que as cotas reservadas para negros baseiam-se em políticas de ação afirmativa e não de distribuição de riqueza. Assim, percebe-se que o sistema de cotas em universidades é reconhecido pelos tribunais como forma legítima de ação afirmativa. 3.1 O sistema de cotas como busca da igualdade efetiva Conforme o ensinamento de Pedro Lenza, a igualdade prevista na Constituição Federal não é apenas aquela igualdade legal em que a lei se aplica a todos uniformemente, mas sim uma igualdade como ideal, em que o Estado busca tornar todos os cidadãos com iguais oportunidades, tendo acesso à todos os serviços do Estado na mesma condição que um cidadão mais rico ou mais pobre, chamado também de princípio da isonomia. A igualdade efetiva é necessária para a efetividade do princípio da não-discriminação, como ensina Passos: “Em verdade, o princípio de não discriminação é insuscetível de ser "construído" a partir dele próprio ou de uma direta referência ao homem. É sempre um consectário ou reflexo do princípio da igualdade, como seja entendido e positivado, ao qual se prende umbilicalmente. Poderíamos dizer que, cuidando do princípio da igualdade, é sempre possível, em que pesem as dificuldades reconhecidas, identificar o seu conteúdo, construir sua fundamentação e delimitar seu alcance. Partindo-se do homem e de sua necessária sociabilidade temos condições de definir o que os faz iguais ou reclama que como iguais sejam tratados. Já no particular da não discriminação, comportamento idêntico é impensável, porque esse princípio não tem consistência própria, mas é uma aparente derrogação do princípio da igualdade, em face da inelutável necessidade prática de termos que tratar diferentemente os homens para igualá-los. Delimitar a diferenciação aceitável, porque compensadora, da que não comporta acolhida no sistema jurídico constitucional, é o que denominamos, com certa improbidade, de "princípio" de não discriminação, quando se trata não de um princípio, mas de um desdobramento do princípio da igualdade, em face da essencial desigualdade dos homens da necessidade politicamente essencial, em termos de modernidade, de dar-lhes um tratamento igualitário. (PASSOS, 2012, digital)” A própria igualdade é necessária para a coesão da sociedade e da própria raça humana, pois como ensina Passos, o homem pensa o futuro imaginando que os seres humanos do futuro terão as mesmas necessidades dos homens de sua geração. Naturalmente, a igualdade aqui pensada não se refere à homogeneidade de culturas e gostos, que de tão diferentes tornam a sociedade bem heterogênea, mas sim da igualdade como espécie, tratando tais diferenças como particularidades pessoais. Porém, qual a forma correta de tratar as diferenças? Será que o idoso deve ser tratado da mesma forma que o jovem? A solução, trazida por Passos, citando o brilhante jurista Celso Antônio Bandeira de Melo é de que o tratamento daqueles que têm condições diferentes deve ser pensado da seguinte forma: “A primeira, diz respeito ao elemento tomado como fator de desigualização. A segunda, reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de descrimen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico. A terceira é pertinente à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados. Esclarecendo essas colocações, diz ele que as operações a seguir são as seguintes: 1) identificar o que é adotado como critério discriminatório; 2) verificar, em seguida, se há justificativa racional (fundamento lógico) para, em vista desse critério, atribuir-se o tratamento desigual; 3) finalmente, analisar se o fundamento racional abstratamente existente é in concreto afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional; exige-se, portanto, mais que uma correlação lógico-abstrata entre o fator diferencial e diferenciação conseqüente, reclamando-se a existência de uma correlação lógica concreta, ou seja, aferida em função dos interesses abrigados no direito positivo constitucional. (PASSOS, 2012, digital)” Assim, a norma, para que tenha o efeito desejado pela igualdade constitucional deve haver um procedimento para verificar a sua legalidade, em respeito ao princípio da não-discriminação, tal qual o raciocínio da Suprema Corte dos Estados Unidos. Segundo Passos, novamente citando Celso Antônio Bandeira de Melo, “Há ofensa ao preceito constitucional da isonomia, por conseguinte também ofensa ao princípio de não discriminação, quando: I – A norma singulariza atual e definitivamente um destinatário determinado, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, ou uma pessoa futura e indeterminada. II – A norma adota, como critério discriminador, para fins de diferenciação de regimes, elementos não residentes nos fatos, situações ou pessoas por tal modo desequipardes. E exemplifica: é o que ocorre quando se pretende tomar o fator "tempo" – que não descansa no objeto, como fator diferencial. III – A norma atribui tratamentos jurídicos diferentes em atenção a fator de discrimen adotado que, entretanto, não guarda relação de pertinência lógica com a disparidade de regimes outorgados. IV – A norma supõe relação de pertinência lógica existente em abstrato, mas o discrimen estabelecido conduz a efeitos contrapostos ou de qualquer modo dissonantes dos interesses prestigiados constitucionalmente. V – A interpretação da norma extrai dela distinções, discrimens, desequiparações que não foram professadamente assumidas por ela de modo claro, ainda que por via implícita. (PASSOS, 2012, digital).”. Deste modo, para que a discriminação legal seja feita de modo a respeitar a Carta Magna, o tratamento deve ser justificado, ou seja, não deve haver discriminação legal que prejudique outros grupos em prol de uma minoria sem que essa discriminação tenha efeito benéfico superior ao prejuízo aos outros grupos. Este raciocínio é semelhante à razoabilidade exigida pela Corte Suprema norte-americana, que exige que a medida de ação afirmativa tenha cunho histórico e respeite a razoabilidade. Assim, ao se interpretar o princípio da não-discriminação em conjunto com o princípio da isonomia percebe-se que a Constituição Federal ordena a redução das desigualdades, nos moldes do respeito à isonomia da forma exposta por Passos. Finalmente, as normas que propõem a isonomia só terão o sentido completo caso seja estudadas de acordo com o princípio da não-discriminação pois não se é possível discriminar aquele com as mesmas condições que todos, pois a minoria passa a ser absorvida pelo grupo, que se torna mais homogêneo. O sistema de cotas foi então considerado constitucional, desde que seguisse os requisitos previstos para que fosse legal, tais como a razoabilidade e proporcionalidade da medida, além de haver histórico de desigualdade nos grupos beneficiados com as cotas. 3.2 A Lei 12.711/2012 ou Lei de Cotas Na busca de alcançar o objetivo de diminuir a discriminação das minorias e, após ser julgada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal o sistema de cotas, foi criada a Lei 12.711/2012. Nesta lei, o vestibulando que se autodeclarar preto, pardo ou indígena terá acesso às vagas destinadas à estas minorias, segundo a proporção de tais minorias na unidade da federação em que se encontra a instituição federal de ensino superior vinculada ao Ministério da Educação. De acordo com a norma: “Art. 1o As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita.(…) Parágrafo único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser completadas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Art. 4o As instituições federais de ensino técnico de nível médio reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso em cada curso, por turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que cursaram integralmente o ensino fundamental em escolas públicas. Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita. Art. 5o Em cada instituição federal de ensino técnico de nível médio, as vagas de que trata o art. 4o desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Parágrafo único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser preenchidas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino fundamental em escola pública”. (BRASIL, 2012, on line) Importante notar que somente as instituições federais vinculadas ao Ministério da Educação estão obrigadas a obedecer o sistema de cotas. Tal restrição faz com que as conceituadíssimas instituições de ensino superior e técnico militares e as criadas por estados e municípios não tenham que obedecer o sistema de cotas. Foram excluídas universidades como o Instituto Tecnológico da Aeronáutica, Instituto Militar de Engenharia, que são vinculadas ao Ministério da Defesa e Universidade de São Paulo, Universidade Estadual do Rio de Janeiro que são vinculadas ao Estado que estão situadas e a Universidade Municipal de São Caetano do Sul, vinculada ao município de São Caetano do Sul. A exclusão das universidades estaduais e municipais justifica-se porque o sistema de cotas foi instituído apenas a nível federal, não sendo inclusa na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei n.º 9.394/96. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação traz normas gerais para a educação brasileira, inclusive instituindo o alcance da autonomia das instituições de ensino superior. Com base nesta autonomia, as universidades criaram as vagas pelo sistema de cotas, visto que a norma permite da seguinte forma: “Art. 53. No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições: I – criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e programas de educação superior previstos nesta Lei, obedecendo às normas gerais da União e, quando for o caso, do respectivo sistema de ensino; II – fixar os currículos dos seus cursos e programas, observadas as diretrizes gerais pertinentes; III – estabelecer planos, programas e projetos de pesquisa científica, produção artística e atividades de extensão; IV – fixar o número de vagas de acordo com a capacidade institucional e as exigências do seu meio; V – elaborar e reformar os seus estatutos e regimentos em consonância com as normas gerais atinentes; VI – conferir graus, diplomas e outros títulos; VII – firmar contratos, acordos e convênios; VIII – aprovar e executar planos, programas e projetos de investimentos referentes a obras, serviços e aquisições em geral, bem como administrar rendimentos conforme dispositivos institucionais; IX – administrar os rendimentos e deles dispor na forma prevista no ato de constituição, nas leis e nos respectivos estatutos; X – receber subvenções, doações, heranças, legados e cooperação financeira resultante de convênios com entidades públicas e privadas. Parágrafo único. Para garantir a autonomia didático-científica das universidades, caberá aos seus colegiados de ensino e pesquisa decidir, dentro dos recursos orçamentários disponíveis, sobre: I – criação, expansão, modificação e extinção de cursos; II – ampliação e diminuição de vagas; III – elaboração da programação dos cursos; IV – programação das pesquisas e das atividades de extensão; V – contratação e dispensa de professores; VI – planos de carreira docente”. (BRASIL, 1996, on line) Assim, não sendo obrigadas por lei a seguir um sistema de cotas, as instituições estaduais e municipais podem, no exercício de sua autonomia, criar vagas em sistema de cotas autônomo. Porém, note-se que injustificadamente foram excluídas as universidades vinculadas ao Ministério da Defesa. Ora, se o objetivo é promover ensino de qualidade às minorias, porque deixar de fora as universidades militares? Não há justificativa, dentro do próprio objetivo das cotas para tornar estas universidades elitizadas, excluindo as minorias do acesso ao ensino superior e técnico ministrado por universidades militares. Cabe lembrar que o estudo em tais universidades proporciona ao aluno acesso à carreira de oficial militar nas forças sob as quais estão vinculadas. Se o objetivo da norma é proporcionar igualdade real, tal como a Constituição Federal expõe, porque excluir das Forças Armadas o dever da inclusão social? Assim, percebe-se que mesmo com os avanços obtidos pela lei de cotas, garantindo o sistema de cotas nas universidades federais do Brasil, há ainda que se rever as injustiças que a lei impõe, tornando essa igualdade uniforme. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do trabalho realizado, percebe-se a importância das políticas de ação afirmativa para uma melhor compreensão das raças e do panorama histórico-social no Brasil. O sistema de cotas, além de ser um importante instrumento para corrigir as injustiças cometidas no passado contra os negros, pardos e índios, é também um instrumento democrático, manifestação da dignidade da pessoa humana e condizente com os objetivos da República Brasileira. O estudo das ações afirmativas é necessário para o entendimento de como os direitos e garantias fundamentais podem ser efetivados de forma ativa pelo Estado, que passa a ser o principal motor para a promoção da igualdade real. Este estudo conseguiu expor a discriminação em suas diversas formas, trazendo a sua história e a busca pelo seu fim, sendo debatido também o conceito real de igualdade constitucional, incluindo um estudo sobre a efetividade das normas constitucionais. Ao analisar as cotas e a ação julgando a constitucionalidade de tais medidas, percebeu-se que o sistema constitucional brasileiro, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal que aceitou as cotas como parte do preceito de igualdade e não como uma forma de discriminação. Porém, mesmo com a Lei de Cotas, é necessário fazer muito mais para promover esta igualdade, visto que tal norma não tornou as cotas uma obrigação universal para o ensino. A confirmação da constitucionalidade do sistema de cotas é mais um sinal que a constituição democrática de 1988 caminha no sentido de inserir os brasileiros no mercado de trabalho, trazendo esperanças de que no futuro a cor da pele terá tão somente efeito visual, sem implicar os preconceitos ainda vigentes no país. As políticas de reserva de vagas para negros, pardos e índios em universidades é um dos caminhos para que nosso país ofereça justiça social para todos os seus cidadãos.
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O direito à terra como um direito humano: a função social da terra à luz da Constituição de 1988
Imperioso se faz versar, de maneira maciça, acerca da evolução dos direitos humanos, os quais deram azo ao manancial de direitos e garantias fundamentais. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos. Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade. Os direitos de segunda dimensão são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou mesmo de um Ente Estatal especificamente.
Direitos Humanos
1 Comentários Introdutórios: Ponderações ao Característico de Mutabilidade da Ciência Jurídica Em sede de comentários inaugurais, ao se dispensar uma análise robusta sobre o tema colocado em debate, mister se faz evidenciar que a Ciência Jurídica, enquanto conjunto plural e multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as pujantes ramificações que a integra, reclama uma interpretação alicerçada nos múltiplos peculiares característicos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste diapasão, trazendo a lume os aspectos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com ênfase, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Ora, em razão do burilado, infere-se que não mais prospera a ótica de imutabilidade que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios da população, suplantados em uma nova sistemática. É verificável, desta sorte, que os valores adotados pela coletividade, tal como os proeminentes cenários apresentados com a evolução da sociedade, passam a figurar como elementos que influenciam a confecção e aplicação das normas. Com escora em tais premissas, cuida hastear como pavilhão de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Deste modo, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas fincadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não fiquem inquinados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo fundamental está assentado em assegurar que inexista a difusão da prática da vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras, nas quais o homem valorizava os aspectos estruturantes da Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade. Afora isso, volvendo a análise do tema para o cenário pátrio, é possível evidenciar que com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, primacialmente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica jaz justamente na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais. Ainda nesta senda de exame, pode-se evidenciar que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda de sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis. 2 Prelúdio dos Direitos Humanos: Breve Retrospecto da Idade Antiga à Idade Moderna Ao ter como substrato de edificação as ponderações estruturadas, imperioso se faz versar, de maneira maciça, acerca da evolução dos direitos humanos, os quais deram azo ao manancial de direitos e garantias fundamentais. Sobreleva salientar que os direitos humanos decorrem de uma construção paulatina, consistindo em uma afirmação e consolidação em determinado período histórico da humanidade. “A evolução histórica dos direitos inerentes à pessoa humana também é lenta e gradual. Não são reconhecidos ou construídos todos de uma vez, mas sim conforme a própria experiência da vida humana em sociedade”[4], como bem observam Silveira e Piccirillo. Quadra evidenciar que sobredita construção não se encontra finalizada, ao avesso, a marcha evolutiva rumo à conquista de direitos está em pleno desenvolvimento, fomentado, de maneira substancial, pela difusão das informações propiciada pelos atuais meios de tecnologia, os quais permitem o florescimento de novos direitos, alargando, com bastante substância a rubrica dos temas associados aos direitos humanos. Nesta perspectiva, ao se estruturar uma análise histórica sobre a construção dos direitos humanos, é possível fazer menção ao terceiro milênio antes de Cristo, no Egito e Mesopotâmia, nos quais eram difundidos instrumentos que objetivavam a proteção individual em relação ao Estado. “O Código de Hammurabi (1690 a.C.) talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relação aos governantes”, como bem afiança Alexandre de Moraes[5]. Em mesmo sedimento, proclama Rúbia Zanotelli de Alvarenga, ao abordar o tema, que: “Na antiguidade, o Código de Hamurabi (na Babilônia) foi a primeira codificação a relatar os direitos comuns aos homens e a mencionar leis de proteção aos mais fracos. O rei Hamurabi (1792 a 1750 a.C.), há mais de 3.800 anos, ao mandar redigir o famoso Código de Hamurabi, já fazia constar alguns Direitos Humanos, tais como o direito à vida, à família, à honra, à dignidade, proteção especial aos órfãos e aos mais fracos. O Código de Hamurabi também limitava o poder por um monarca absoluto. Nas disposições finais do Código, fez constar que aos súditos era proporcionada moradia, justiça, habitação adequada, segurança contra os perturbadores, saúde e paz”[6]. Ainda nesta toada, nas polis gregas, notadamente na cidade-Estado de Atenas, é verificável, também, a edificação e o reconhecimento de direitos basilares ao cidadão, dentre os quais sobressai a liberdade e igualdade dos homens. Deste modo, é observável o surgimento, na Grécia, da concepção de um direito natural, superior ao direito positivo, “pela distinção entre lei particular sendo aquela que cada povo da a si mesmo e lei comum que consiste na possibilidade de distinguir entre o que é justo e o que é injusto pela própria natureza humana”[7], consoante evidenciam Siqueira e Piccirillo. Prima assinalar, doutra maneira, que os direitos reconhecidos não eram estendidos aos escravos e às mulheres, pois eram dotes destinados, exclusivamente, aos cidadãos homens[8], cuja acepção, na visão adotada, excluía aqueles. “É na Grécia antiga que surgem os primeiros resquícios do que passou a ser chamado Direito Natural, através da ideia de que os homens seriam possuidores de alguns direitos básicos à sua sobrevivência, estes direitos seriam invioláveis e fariam parte dos seres humanos a partir do momento que nascessem com vida”[9]. O período medieval, por sua vez, foi caracterizado pela maciça descentralização política, isto é, a coexistência de múltiplos centros de poder, influenciados pelo cristianismo e pelo modelo estrutural do feudalismo, motivado pela dificuldade de práticas atividade comercial. Subsiste, neste período, o esfacelamento do poder político e econômico. A sociedade, no medievo, estava dividida em três estamentos, quais sejam: o clero, cuja função primordial estava assentada na oração e pregação; os nobres, a quem incumbiam à proteção dos territórios; e, os servos, com a obrigação de trabalhar para o sustento de todos. “Durante a Idade Média, apesar da organização feudal e da rígida separação de classes, com a consequente relação de subordinação entre o suserano e os vassalos, diversos documentos jurídicos reconheciam a existência dos direitos humanos”[10], tendo como traço característico a limitação do poder estatal. Neste período, é observável a difusão de documentos escritos reconhecendo direitos a determinados estamentos, mormente por meio de forais ou cartas de franquia, tendo seus textos limitados à região em que vigiam. Dentre estes documentos, é possível mencionar a Magna Charta Libertati (Carta Magna), outorgada, na Inglaterra, por João Sem Terra, em 15 de junho de 1215, decorrente das pressões exercidas pelos barões em razão do aumento de exações fiscais para financiar a estruturação de campanhas bélicas, como bem explicita Comparato[11]. A Carta de João sem Terra acampou uma série de restrições ao poder do Estado, conferindo direitos e liberdades ao cidadão, como, por exemplo, restrições tributárias, proporcionalidade entre a pena e o delito[12], devido processo legal[13], acesso à Justiça[14], liberdade de locomoção[15] e livre entrada e saída do país[16]. Na Inglaterra, durante a Idade Moderna, outros documentos, com clara feição humanista, foram promulgados, dentre os quais é possível mencionar o Petition of Right, de 1628, que estabelecia limitações ao poder de instituir e cobrar tributos do Estado, tal como o julgamento pelos pares para a privação da liberdade e a proibição de detenções arbitrárias[17], reafirmando, deste modo, os princípios estruturadores do devido processo legal[18]. Com efeito, o diploma em comento foi confeccionado pelo Parlamento Inglês e buscava que o monarca reconhecesse o sucedâneo de direitos e liberdades insculpidos na Carta de João Sem Terra, os quais não eram, até então, respeitados. Cuida evidenciar, ainda, que o texto de 1.215 só passou a ser observado com o fortalecimento e afirmação das instituições parlamentares e judiciais, cenário no qual o absolutismo desmedido passa a ceder diante das imposições democráticas que floresciam. Outro exemplo a ser citado, o Habeas Corpus Act, de 1679, lei que criou o habeas corpus, determinando que um indivíduo que estivesse preso poderia obter a liberdade através de um documento escrito que seria encaminhado ao lorde-chanceler ou ao juiz que lhe concederia a liberdade provisória, ficando o acusado, apenas, comprometido a apresentar-se em juízo quando solicitado. Prima pontuar que aludida norma foi considerada como axioma inspirador para maciça parte dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, como bem enfoca Comparato[19]. Enfim, diversos foram os documentos surgidos no velho continente que trouxeram o refulgir de novos dias, estabelecendo, aos poucos, os marcos de uma transição entre o autoritarismo e o absolutismo estatal para uma época de reconhecimento dos direitos humanos fundamentais[20]. As treze colônias inglesas, instaladas no recém-descoberto continente americano, em busca de liberdade religiosa, organizaram-se e desenvolveram-se social, econômica e politicamente. Neste cenário, foram elaborados diversos textos que objetivavam definir os direitos pertencentes aos colonos, dentre os quais é possível realçar a Declaração do Bom Povo da Virgínia, de 1776. O mencionado texto é farto em estabelecer direitos e liberdade, pois limitou o poder estatal, reafirmou o poderio do povo, como seu verdadeiro detentor[21], e trouxe certas particularidades como a liberdade de impressa[22], por exemplo. Como bem destaca Comparato[23], a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia afirmava que os seres humanos são livres e independentes, possuindo direitos inatos, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, a felicidade e a segurança, registrando o início do nascimento dos direitos humanos na história[24]. “Basicamente, a Declaração se preocupa com a estrutura de um governo democrático, com um sistema de limitação de poderes”[25], como bem anota José Afonso da Silva. Diferente dos textos ingleses, que, até aquele momento preocupavam-se, essencialmente, em limitar o poder do soberano, proteger os indivíduos e exaltar a superioridade do Parlamento, esse documento, trouxe avanço e progresso marcante, pois estabeleceu a viés a ser alcançada naquele futuro, qual seja, a democracia.  Em 1791, foi ratificada a Constituição dos Estados Unidos da América. Inicialmente, o documento não mencionava os direitos fundamentais, todavia, para que fosse aprovado, o texto necessitava da ratificação de, pelo menos, nove das treze colônias. Estas concordaram em abnegar de sua soberania, cedendo-a para formação da Federação, desde que constasse, no texto constitucional, a divisão e a limitação do poder e os direitos humanos fundamentais[26]. Assim, surgiram as primeiras dez emendas ao texto, acrescentando-se a ele os seguintes direitos fundamentais: igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política, princípio da legalidade, princípio da reserva legal e anterioridade em matéria penal, princípio da presunção da inocência, da liberdade religiosa, da livre manifestação do pensamento[27]. 3 Direitos Humanos de Primeira Dimensão: A Consolidação dos Direitos de Liberdade No século XVIII, é verificável a instalação de um momento de crise no continente europeu, porquanto a classe burguesa que emergia, com grande poderio econômico, não participava da vida pública, pois inexistia, por parte dos governantes, a observância dos direitos fundamentais, até então construídos. Afora isso, apesar do esfacelamento do modelo feudal, permanecia o privilégio ao clero e à nobreza, ao passo que a camada mais pobre da sociedade era esmagada, porquanto, por meio da tributação, eram obrigados a sustentar os privilégios das minorias que detinham o poder. Com efeito, a disparidade existente, aliado ao achatamento da nova classe que surgia, em especial no que concerne aos tributos cobrados, produzia uma robusta insatisfação na órbita política[28]. O mesmo ocorria com a população pobre, que, vinda das regiões rurais, passa a ser, nos centros urbanos, explorada em fábricas, morava em subúrbios sem higiene, era mal alimentada e, do pouco que lhe sobejava, tinha que tributar à Corte para que esta gastasse com seus supérfluos interesses. Essas duas subclasses uniram-se e fomentaram o sentimento de contenda contra os detentores do poder, protestos e aclamações públicas tomaram conta da França. Em meados de 1789, em meio a um cenário caótico de insatisfação por parte das classes sociais exploradas, notadamente para manterem os interesses dos detentores do poder, implode a Revolução Francesa, que culminou com a queda da Bastilha e a tomada do poder pelos revoltosos, os quais estabeleceram, pouco tempo depois, a Assembleia Nacional Constituinte. Esta suprimiu os direitos das minorias, as imunidades estatais e proclamou a Declaração dos Direitos dos Homens e Cidadão que, ao contrário da Declaração do Bom Povo da Virgínia, que tinha um enfoque regionalista, voltado, exclusivamente aos interesses de seu povo, foi tida com abstrata[29] e, por isso, universalista. Ressalta-se que a Declaração Francesa possuía três características: intelectualismo, mundialismo e individualismo. A primeira pressupunha que as garantias de direito dos homens e a entrega do poder nas mãos da população era obra e graça do intelecto humano; a segunda característica referia-se ao alcance dos direitos conquistados, pois, apenas, eles não salvaguardariam o povo francês, mas se estenderiam a todos os povos. Por derradeiro, a terceira característica referia-se ao seu caráter, iminentemente individual, não se preocupando com direitos de natureza coletiva, tais como as liberdades associativas ou de reunião. No bojo da declaração, emergidos nos seus dezessete artigos, estão proclamados os corolários e cânones da liberdade[30], da igualdade, da propriedade, da legalidade e as demais garantias individuais. Ao lado disso, é denotável que o diploma em comento consagrou os princípios fundantes do direito penal, dentre os quais sobreleva destacar princípio da legalidade[31], da reserva legal[32] e anterioridade em matéria penal, da presunção de inocência[33], tal como liberdade religiosa e livre manifestação de pensamento[34]. Os direitos de primeira dimensão compreendem os direitos de liberdade, tal como os direitos civis e políticos, estando acampados em sua rubrica os direitos à vida, liberdade, segurança, não discriminação racial, propriedade privada, privacidade e sigilo de comunicações, ao devido processo legal, ao asilo em decorrência de perseguições políticas, bem como as liberdades de culto, crença, consciência, opinião, expressão, associação e reunião pacíficas, locomoção, residência, participação política, diretamente ou por meio de eleições. “Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam subjetividade”[35],  aspecto este que passa a ser característico da dimensão em comento. Com realce, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado, refletindo um ideário de afastamento daquele das relações individuais e sociais. 4 Direitos Humanos de Segunda Dimensão: Os Anseios Sociais como substrato de edificação dos Direitos de Igualdade Com o advento da Revolução Industrial, é verificável no continente europeu, precipuamente, a instalação de um cenário pautado na exploração do proletariado. O contingente de trabalhadores não estava restrito apenas a adultos, mas sim alcançava até mesmo crianças, os quais eram expostos a condições degradantes, em fábricas sem nenhuma, ou quase nenhuma, higiene, mal iluminadas e úmidas. Salienta-se que, além dessa conjuntura, os trabalhadores eram submetidos a cargas horárias extenuantes, compensadas, unicamente, por um salário miserável. O Estado Liberal absteve-se de se imiscuir na economia e, com o beneplácito de sua omissão, assistiu a classe burguesa explorar e “coisificar” a massa trabalhadora, reduzindo seres humanos a meros objetos sujeitos a lei da oferta e procura. O Capitalismo selvagem, que operava, nessa essa época, enriqueceu uns poucos, mas subjugou a maioria[36]. A massa de trabalhadores e desempregados vivia em situação de robusta penúria, ao passo que os burgueses ostentavam desmedida opulência. Na vereda rumo à conquista dos direitos fundamentais, econômicos e sociais, surgiram alguns textos de grande relevância, os quais combatiam a exploração desmedida propiciada pelo capitalismo. É possível citar, em um primeiro momento, como proeminente documento elaborado durante este período, a Declaração de Direitos da Constituição Francesa de 1848, que apresentou uma ampliação em termos de direitos humanos fundamentais. “Além dos direitos humanos tradicionais, em seu art. 13 previa, como direitos dos cidadãos garantidos pela Constituição, a liberdade do trabalho e da indústria, a assistência aos desempregados”[37]. Posteriormente, em 1917, a Constituição Mexicana[38], refletindo os ideários decorrentes da consolidação dos direitos de segunda dimensão, em seu texto consagrou direitos individuais com maciça tendência social, a exemplo da limitação da carga horária diária do trabalho e disposições acerca dos contratos de trabalho, além de estabelecer a obrigatoriedade da educação primária básica, bem como gratuidade da educação prestada pelo Ente Estatal. A Constituição Alemã de Weimar, datada de 1919, trouxe grandes avanços nos direitos socioeconômicos, pois previu a proteção do Estado ao trabalho, à liberdade de associação, melhores condições de trabalho e de vida e o sistema de seguridade social para a conservação da saúde, capacidade para o trabalho e para a proteção à maternidade.  Além dos direitos sociais expressamente insculpidos, a Constituição de Weimar apresentou robusta moldura no que concerne à defesa dos direitos dos trabalhadores, primacialmente “ao instituir que o Império procuraria obter uma regulamentação internacional da situação jurídica dos trabalhadores que assegurasse ao conjunto da classe operária da humanidade, um mínimo de direitos sociais”[39], tal como estabelecer que os operários e empregados seriam chamados a colaborar com os patrões, na regulamentação dos salários e das condições de trabalho, bem como no desenvolvimento das forças produtivas. No campo socialista, destaca-se a Constituição do Povo Trabalhador e Explorado[40], elaborada pela antiga União Soviética. Esse Diploma Legal possuía ideias revolucionárias e propagandistas, pois não enunciava, propriamente, direitos, mas princípios, tais como a abolição da propriedade privada, o confisco dos bancos, dentre outras.  A Carta do Trabalho, elaborada pelo Estado Fascista Italiano, em 1927, trouxe inúmeras inovações na relação laboral. Dentre as inovações introduzidas, é possível destacar a liberdade sindical, magistratura do trabalho, possibilidade de contratos coletivos de trabalho, maior proporcionalidade de retribuição financeira em relação ao trabalho, remuneração especial ao trabalho noturno, garantia do repouso semanal remunerado, previsão de férias após um ano de serviço ininterrupto, indenização em virtude de dispensa arbitrária ou sem justa causa, previsão de previdência, assistência, educação e instrução sociais[41]. Nota-se, assim, que, aos poucos, o Estado saiu da apatia e envolveu-se nas relações de natureza econômica, a fim de garantir a efetivação dos direitos fundamentais econômicos e sociais. Sendo assim, o Estado adota uma postura de Estado-social, ou seja, tem como fito primordial assegurar aos indivíduos que o integram as condições materiais tidas por seus defensores como imprescindíveis para que, desta feita, possam ter o pleno gozo dos direitos oriundos da primeira geração. E, portanto, desenvolvem uma tendência de exigir do Ente Estatal intervenções na órbita social, mediante critérios de justiça distributiva. Opondo-se diretamente a posição de Estado liberal, isto é, o ente estatal alheio à vida da sociedade e que, por consequência, não intervinha na sociedade. Incluem os direitos a segurança social, ao trabalho e proteção contra o desemprego, ao repouso e ao lazer, incluindo férias remuneradas, a um padrão de vida que assegure a saúde e o bem-estar individual e da família, à educação, à propriedade intelectual, bem como as liberdades de escolha profissional e de sindicalização. Bonavides, ao tratar do tema, destaca que os direitos de segunda dimensão “são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas do Estado social, depois que germinaram por ora de ideologia e da reflexão antiliberal”[42]. Os direitos alcançados pela rubrica em comento florescem umbilicalmente atrelados ao corolário da igualdade. Como se percebe, a marcha dos direitos humanos fundamentais rumo às sendas da História é paulatina e constante. Ademais, a doutrina dos direitos fundamentais apresenta uma ampla capacidade de incorporar desafios. “Sua primeira geração enfrentou problemas do arbítrio governamental, com as liberdades públicas, a segunda, o dos extremos desníveis sociais, com os direitos econômicos e sociais”[43], como bem evidencia Manoel Gonçalves Ferreira Filho. 5 Direitos Humanos de Terceira Dimensão: A valoração dos aspectos transindividuais dos Direitos de Solidariedade Conforme fora visto no tópico anterior, os direitos humanos originaram-se ao longo da História e permanecem em constante evolução, haja vista o surgimento de novos interesses e carências da sociedade. Por esta razão, alguns doutrinadores, dentre eles Bobbio[44], os consideram direitos históricos, sendo divididos, tradicionalmente, em três gerações ou dimensões. A nomeada terceira dimensão encontra como fundamento o ideal da fraternidade (solidariedade) e tem como exemplos o direito ao meio ambiente equilibrado, à saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos, a proteção e defesa do consumidor, além de outros direitos considerados como difusos. “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo”[45] ou mesmo de um Ente Estatal especificamente. Ainda nesta esteira, é possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Os direitos de terceira dimensão são considerados como difusos, porquanto não têm titular individual, sendo que o liame entre os seus vários titulares decorre de mera circunstância factual. Com o escopo de ilustrar, de maneira pertinente as ponderações vertidas, insta trazer à colação o robusto entendimento explicitado pelo Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 1.856/RJ, em especial quando destaca: “Cabe assinalar, Senhor Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível”[46]. Nesta feita, importa acrescentar que os direitos de terceira dimensão possuem caráter transindividual, o que os faz abranger a toda a coletividade, sem quaisquer restrições a grupos específicos. Neste sentido, pautaram-se Motta e Motta e Barchet, ao afirmarem, em suas ponderações, que “os direitos de terceira geração possuem natureza essencialmente transindividual, porquanto não possuem destinatários especificados, como os de primeira e segunda geração, abrangendo a coletividade como um todo”[47]. Desta feita, são direitos de titularidade difusa ou coletiva, alcançando destinatários indeterminados ou, ainda, de difícil determinação. Os direitos em comento estão vinculados a valores de fraternidade ou solidariedade, sendo traduzidos de um ideal intergeracional, que liga as gerações presentes às futuras, a partir da percepção de que a qualidade de vida destas depende sobremaneira do modo de vida daquelas. Dos ensinamentos dos célebres doutrinadores, percebe-se que o caráter difuso de tais direitos permite a abrangência às gerações futuras, razão pela qual, a valorização destes é de extrema relevância. “Têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”[48]. A respeito do assunto, Motta e Barchet[49] ensinam que os direitos de terceira dimensão surgiram como “soluções” à degradação das liberdades, à deterioração dos direitos fundamentais em virtude do uso prejudicial das modernas tecnologias e desigualdade socioeconômica vigente entre as diferentes nações. 6 O Direito à Terra como um Direito Humano: A Função Social da Terra à Luz da Constituição de 1988 É possível evidenciar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, com profundos sulcos, condicionou a propriedade ao atendimento de sua função social, de maneira que, uma vez ausente a função social ambiental, o proprietário se vê obstado do pleno exercício de sua propriedade. Clara é a dicção do artigo 5º, incisos XXII e XXIII, da Carta de Outubro, ao consagrar, de maneira expressa, que o direito de propriedade é garantido aos titulares que comprovarem o atendimento de sua função social. Ao lado disso, é possível verificar que, dentre os baldrames que norteiam as atividades econômicas, encontra-se, novamente, prevista a função social da propriedade, consoante se extrai do conteúdo do inciso III do artigo 170 da Constituição Cidadã. No tocante à propriedade rural, é observável que a função social da propriedade restará materializada quando houver a confluência, concomitantemente, dos seguintes fatores, quais sejam: (i) aproveitamento racional e adequado; (ii) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis  e  preservação  do  meio  ambiente;  (iii)  observação  das disposições que regulam as relações de trabalho; e, (iv) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores. Tecidos estes comentários, ao se considerar a indivisibilidade dos direitos humanos, cuida reconhecer que o direito humano à terra é imprescindível para a materialização de um sucedâneo de outros direitos, sobremaneira o direito humano à alimentação adequada. Ora, o direito humano em apreço tem bases jurídicas assentadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no PIDESC, que foi recepcionado pelo Texto Constitucional e detalhado no Comentário Geral 12, o qual concede destaque as possibilidades que têm o indivíduo de alimentar-se, seja diretamente da terra produtiva ou de outros recursos naturais, tal como por meio de sistemas eficientes de distribuição, processamento e venda, que possam transportar o alimento de sua origem para o local necessário, de acordo com a demanda. Além disso, insta explicitar que tal comentário reclama a obrigação de tratamento igual a mulheres no que se refere ao acesso à terra e a outros insumos produtivos. “26. A estratégia deveria dedicar atenção especial à necessidade de evitar discriminação no acesso ao alimento ou a recursos para a alimentação. Isto deveria incluir garantias de acesso total e igual aos recursos econômicos, particularmente para as mulheres, inclusive o direito de herança e à titularidade da terra e de outras propriedades, crédito, recursos naturais e tecnologia apropriada; medidas para fazer respeitar e proteger o trabalho autônomo e o trabalho que forneça uma remuneração capaz de assegurar um padrão de vida decente para os assalariados e suas famílias (como estipulado no artigo 7 (a) (ii) do Pacto); manutenção de registros de direitos à terra (inclusive os florestais)”[50]. Com destaque, dentre os principais dispositivos constitucionais e legislativos nacionais que colocam o acesso à terra como um direito está o princípio da função social da propriedade, o qual constitui o fundamento jurídico mais destacado para a reforma agrária. O artigo 184 da Constituição Federal de 1988 estabelece que compete ao governo federal à desapropriação de terras para fins de reforma agrária que não cumpram a função social. O artigo 186, por seu turno, especifica que a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Ora, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, insta salientar que o direito de propriedade perdeu o aspecto absoluto, ilimitado e intangível, caracterizados pela concepção individualista contida na   Lei   Substantiva   Civil   então   vigente,   sendo   revestido,   por conseguinte, de uma moldura social como fator de progresso e promoção de bem-estar de todos. Quando se diz que a propriedade privada tem uma função social, na verdade está se afirmando que ao proprietário se impõe o dever de exercer o seu direito de propriedade, não mais unicamente em seu próprio e exclusivo interesse, mas em benefício da coletividade, sendo, precisamente, o cumprimento da função social que legitima o exercício do direito de propriedade pelo seu titular. Cuida reconhecer que a Constituição Federal, ainda que implicitamente, reconheceu os contornos humanísticos do direito à terra, conferindo-lhe, inclusive, no cenário jurídico nacional, uma função social atrelada ao desenvolvimento de seus detentores.
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Pedófilo: tratamento em busca de dignidade, cidadania, inclusão e segurança
Mediante uma abordagem com ótica clínica – médica e psicológica – sobre o pedófilo e os recursos de tratamento ofertados com auxílio da criminologia, objetiva-se, suscintamente, despertar reflexão sobre o assunto, despida de qualquer sectarismo, pelo ponto de vista do doente e de seus familiares, com vistas a suas inclusões na sociedade com dignidade e segurança a sociedade e ao pedófilo.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO O presente artigo centra-se no tratamento e reinserção dos condenados por crimes sexuais com crianças e adolescentes, diagnosticados pela medicina como pedófilos. Um dos focos é o tratamento em face da existência de vários aspectos portadores de relevância, sobretudo, em se referindo ao condenado por crimes sexuais com crianças.  Conforme consta do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 4th edition (DSM- IV), da Associação de Psiquiatras Americana, a pedofilia consiste numa desordem psicológica em adulto, caracterizada pela preferência sexual por criança ou pré-púbere. Consoante à análise de Michael Seto, diretor da Universidade de Ottawa da Unidade de Pesquisa Forense, a maioria dos homens pedófilos corresponde aproximadamente a 1% da população, o equivalente a 1,2 milhões apenas nos Estados Unidos. Neste contexto preocupante da criminalidade em geral, a moderna criminologia caminha no sentido do foco ir além do fato delituoso, ou seja, alcançar as causas, os fatores endógenos e exógenos concorrentes para a ação do criminoso, penetrando no território da criminalidade de forma ampla. Não sendo assunto nem responsabilidade restrita da esfera policial, seja na prevenção ou na repressão. Como já cediço a questão aterrissa, também na área social, familiar, saúde, educação e outras. Portanto, não é função exclusiva da polícia, justiça e do direito. Indiscutivelmente o melhor caminho a trilhar se encontra na prevenção primária, antecedente a prática do delito, abrangente à educação, habitação, convívio social, identificação do indivíduo diante do meio social, criar mecanismos a introjetar fatores fortalecedores que promovam no cidadão, a capacidade social para dotá-lo de recursos internos e externos a demover, de forma positiva, possíveis conflitos ocorrentes no dia a dia.   Nessa diretriz se faz mister alcançar as causas, as raízes da criminalidade, bem como chegar aos fatores impulsionadores e estimulantes no individuo ao desvio de conduta, identificando-os, a fim de possibilitar estudá-los e buscar caminhos a serem trilhados pelo ser acessível os suplantar.  Em se tratando de portadores da parafilia, ora abordada, a prevenção deveria agir como nos demais infratores de outras ações delituosas antes do cometimento da infração, todavia se noutros desvios de condutas há dificuldades, mais ainda ocorre no caso do pedófilo, mormente em razão do sentimento de horror e de exclusão reinante nas pessoas, acaba o pedófilo vivendo em segredo, deixando de buscar apoio mesmo no âmbito familiar. Nesse sentido, parece oportuno invocar lições de Berger (1986. p. 78), sobre “forças repressoras e coercitivas”: “Por fim, o grupo humano no qual transcorre a chamada vida privada das pessoas […] E nesse círculo que se encontram normalmente os laços sociais mais importantes de um indivíduo. A desaprovação. A perda do prestígio, o ridículo ou o desprezo nesse grupo mais íntimo tem efeito psicológico muito mais sério que em outra parte[1].” PEDOFILIA: TRATAMENTO VERSUS PUNIÇÃO Um ponto a ser sopesado, neste assunto, consiste na inexistência de pena de morte e prisão perpétua no Brasil. Por certo, o condenado ao cumprir sua pena retornará ao meio da sociedade, quando terá o direito de ir e vir, como qualquer outro cidadão, razão por que a finalidade da prisão não consiste em tão somente proteger a sociedade do criminoso, retirando do convívio social aquele que comete crime, punido com pena restritiva de liberdade, como deve, também, buscar o tratamento e a reinserção. Ao praticar ação delituosa submete-se o criminoso a processo e julgamento. Neste diapasão, será que o encarceramento por si só resolverá? E, por outro lado, como já comentado acima, na falta de pena perpétua, como proteger a sociedade e reintegrar o egresso? Vários estudos já foram realizados visando combater a criminalidade, na teoria clássica centrou os estudos na forma de punir com intuito de intimidar componentes da sociedade e ao infrator a não mais praticar ato delituoso. Em seguida a escola “positivista” com base no estudo antropológico do homem delinquente e do crime como fato social, ofertando passagem para estudos antropológicos e criminológicos, considerando o crime e o criminoso como patologias sociais que deveriam ser tratadas. Já a moderna criminologia vislumbra a possibilidade de atenuar a criminalidade por meio de formas diversas não apenas restrito ao delinquente, mas buscando caminhos como prevenir. Nesse contexto dever-se-ia percorrer desde a educação, habitação, emprego, levando a inserção da pessoa ao meio social com qualidade de vida, proporcionando ao indivíduo condições sociais, acarretando fortalecimento ético, dentre outros pontos construtores de valores morais. Quando o portador de pedofilia exterioriza o seu comportamento resultando na pratica delituosa as formas de prevenção a evitar falharam ou na maioria das vezes se quer existiram. Com advento da criminologia, os estudos sobre comportamentos desviantes têm acenado o caminho a percorrer rumo ao tratamento e à reintegração, podendo ocorrer simultaneamente. Nesse sentido invoca-se palavras de Pablos de Molina: “Em todo programa ressocializador, o que se procura é reintegrar o indivíduo no mundo de seus concidadãos, e, antes de tudo, nas coletividades sociais básicas, como família, a escola, profissão, trabalho, proporcionando-lhe uma autêntica ajuda que o faça sair do isolamento e assumir sua própria responsabilidade[2].” Defende Sá a extensão da Justiça Restaurativa nas instituições carcerárias, inserindo-as em programas com o desiderato de auxiliar no resgate da relação entre o encarcerado e o meio social onde vivia[3]. A restauração ocorreria com a comunidade acompanhando e/ ou participando do desenvolvimento do tratamento, quando teria ensejo de conhecer o preso, suas regras de conduta, convicções, e motivos que o levaram a prática do delito, bem como possibilitaria ao encarcerado oportunidade de conhecer a percepção de parte da sociedade diante de suas falas.  Em contrapartida, o encarcerado no “círculo restaurativo” conseguiria estímulos para caminhar em busca de implantar ou restaurar valores, como dignidade, saúde, e melhorar a convivência social, enxergando-se como cidadão, com “capacidade e responsabilidade em termos de construção social”, fatores esses com potencialidade de levá-lo percorrer rumo ao tratamento. (SÁ, 2010)[4]. Entretanto, para se aplicar a Justiça Restaurativa no cárcere, é importante todo um arrimo transdisciplinar, possibilitando uma visão macroscópica do presídio e do preso. Nesse rumo, a moderna criminologia porta o interesse dos estudos científicos em alcançar outros focos além do infrator, sobretudo fatores endógenos e exógenos propulsores ou indutivos à prática da conduta delitiva, sejam: biológicos, personalidade, a vítima, o controle social. Portanto, leva-se em consideração não apenas perspectiva “biopsicopatológica” mais também a “biopsicossocial”, com escopo de proporcionar elementos a construção de planos de prevenção aos comportamentos delituosos e planificação de tratamentos com vistas à reabilitação e reinserção[5]. A criminologia clínica direciona a aplicação de conhecimentos criminológicos aos problemas penitenciários e forenses, para, mediante estudo da personalidade do criminoso e outros, prescrever diagnóstico e prognóstico, ao final elaborar programa de tratamento a possibilitar a restauração do condenado e consequentemente evitar reincidência. Consoante se observa nas décadas de 60 e 70, a psicoterapia prevaleceu no âmbito penitenciário, tendo-se registro da utilização de terapia grupal em 15 estabelecimentos correcionais ingleses. A legislação norte-americana autorizava o cumprimento de penas de adolescentes infratores em comunidades terapêuticas, as quais tinham como metodologia, também, a psicoterapia grupal[6]. Os pioneiros da atividade terapêutica como sistema de intervenção nas penitenciárias foram Aicchorn e Metz, Tendo acarretado um efeito positivo no regime da pena privativa de liberdade, em virtude de as penitenciárias deixarem de atuar tão somente como custódia e passarem a trilhar rumo à reinserção[7]. No lugar do castigo corporal, visa promover um tratamento específico lastrado na empatia com o encarcerado e em uma política de portas abertas, em que o objetivo dos programas terapêuticos possibilita gerar uma cultura grupal e comunitária, numa sinergia de compreensão e colaboração mútua dos internos e inter-relação entre eles e a comunidade[8].  Neste sentido, o referido trabalho proporcionou o surgimento de diversos métodos e técnicas terapêuticas, dentre eles: método analítico; psicodrama; terapia familiar, análise transacional; assessoramento pessoal terapêutico; técnicas de modificação de conduta; técnicas repressivo-admonitórias, baseadas no controle das contingências (sistema progressivo, técnica de crédito de fichas, sistema de autogoverno e contrato de bom comportamento); tratamento de orientação comportamental; técnicas de intervenção de orientação cognitiva; técnicas de dirimir problemas; técnicas de controle emocional, técnicas de raciocínio crítico[9]. No campo específico de tratamentos desenvolvidos com molestadores de crianças ou adolescentes, concebidos pela medicina como portadores de transtorno sexual, o primeiro passo em direção ao possível tratamento deve ser o diagnóstico, ou seja, detectar a patologia, o que se requer vários procedimentos. Segundo Baltieri, são necessárias várias “entrevistas, exames neuropsicológicos, tomografias, ressonâncias magnéticas, eletroencefalogramas […]”, e “não pode ser qualquer psiquiatra”, mas um profissional especializado no assunto[10]. São critérios para diagnóstico de pedofilia segundo o DSM- IV: “A. Ao longo de um período mínimo de 6 meses, fantasias sexualmente excitantes recorrentes e intensas, impulsos sexuais ou comportamentos envolvendo atividade sexual com uma (ou mais de uma) criança pré-púbere (geralmente com 13 anos ou menos). B. As fantasias, impulsos sexuais ou comportamentos causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo. C. O indivíduo tem no mínimo 16 anos e é pelo menos 5 anos mais velho que a criança ou crianças no Critério A[11].” Nas percepções da Psicologia e da Psiquiatria não é fácil descrever um padrão clássico de personalidade do pedófilo, sobretudo em razão de haver vários subgrupos – pedófilo preferencial, molestador, molestador preferencial sedutor, molestador preferencial sádico, molestador preferencial introvertido, bem como, devido a alguns indivíduos portadores de pedofilia, apresentarem psicologicamente normais ao serem submetidos a exames ou entrevistas superficiais. Há estudos, porém, demonstrando certos traços presentes em pedófilos como […]: “[…] sentimento de isolamento, de inferioridade ou solidão, baixa auto-estima, disforia, imaturidade emociona, dificuldade com interações pessoais adultas, notadamente devido a assertividade reduzida, níveis de agressividade elevados, […] dificuldade em lidar com o afeto doloroso, o que resulta no uso excessivo dos principais mecanismos de defesa da intelectualização, negação, distorção cognitiva (por exemplo, a manipulação da verdade), e racionalização. Mesmo que os pedófilos muitas vezes têm dificuldade com as relações interpessoais, 50% ou mais, vai se casar em algum momento de suas vidas[12].” Indubitavelmente, para comentar sobre pedofilia há de se adentrar e procurar melhor compreender o fenômeno do abuso sexual com crianças. Neste desiderato, traz-se a experiência do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina – Universidade de São Paulo. Fatores que levam à prática criminosa Por intermédio de perícias e pesquisas do referido Núcleo com criminosos de prática sexual com crianças e adolescentes, considerados pedófilos abusadores ou molestadores, constatou-se a existência de estrutura obsessiva e compulsiva. Os abusadores raramente utilizam de violência contra a criança, em geral trata-se de uma pessoa imatura, solitária e com pouca habilidade social, tendo um comportamento direcionado a carícias discretas, em sua maioria, envolve-se com pornografia infantil, seja via espaço cibernético ou mediante fotografias de diferentes molestadores[13].  Segundo se pode depreender das características identificadas por meio dos estudos, os molestadores se dividem em dois grupos: molestadores situacionais e preferenciais: A diferença entre o molestador situacional e o preferencial se encontra na própria denominação, o situacional não tem como objeto erótico central a criança, por isso, deixa de ser diagnosticado como pedófilo, tanto o desejo como a excitação fazem parte das necessidades primárias do seu comportamento sexual. Outros aspectos observados são a impulsividade e o oportunismo, ainda, esse tipo de molestador geralmente se encontra entre pessoas pertencentes às classes socioeconômicas mais baixas, com pouca capacidade intelectual. O comportamento sexual exsurge quando se vê diante de situação de estresse. Já em relação ao molestador preferencial, a satisfação sexual só ocorre com crianças, ao contrário do molestador situacional, tem como características a persistência, a compulsão, grau intelectual diferenciado da média, comportamento infantil, com mais de 30 (trinta) anos de idade. A aproximação da criança se o realiza gradativamente, por meio da sedução, conquista da confiança e diminuição da inibição da criança. Quanto aos molestadores situacionais regredidos e inescrupulosos, também não residem o foco em criança e sim em pessoas frágeis, vulneráveis podendo ser criança, idoso, portadores de dificuldades física e mental. Como se constata, mediante contribuição dos aspectos psicodinâmicos, as causas da pedofilia decorrem de histórias de abuso sexual ou emocional na infância. Da mesma forma, as primeiras experiências sexuais ou fantasias sexuais têm possibilidades de influenciar comportamentos futuros, independentemente de serem satisfatórias ou não[14]. Segundo estudos, o molestador preferencial sedutor constitui o perfil de molestador mais difícil de uma criança deixar de ser atraída, visto se tratar de indivíduo com alto grau de persuasão, excessivamente bajulador, geralmente exerce profissões como: professor de educação física, funcionário de escolas, padre, monitor de acampamento, condutor escolar, fotógrafo e outras. Com referencia ao molestador preferencial sádico, a excitação sexual se encontra na mesma proporção da violência, embora a prática delituosa ocorre de forma premeditada e seguindo ritos, não utiliza a sedução se sim ardis. Já o molestador preferencial introvertido, por ser desprovido de habilidades para atrair seu objeto sexual, busca a realização sexual em criança desconhecida e de tenra idade, geralmente procura em parques infantis. Outra forma de atuar ocorre via internet, telefonemas obscenos e outros meios de comunicação. A maioria dos molestadores não se preocupa com as consequências da conduta, diferentemente do quadro de pessoas com transtorno obsessivo compulsivo, ou seja, nos abusadores, inexiste o arrependimento ou a culpa, os quais inclusive para realização dos atos criminosos, caminham rigorosamente por um “ritual com hierarquias” de ações, e caso haja algum percalço a proporcionar interrupção na sequência de ações, em geral o indivíduo cessa o ato[15] (SERAFIM, 2010), o que permite asseverar  haver capacidade volitiva seja de continuar a ação ou de cessá-la, dependendo da situação, portanto considerado imputável. Entretanto na visão psiquiátrico-forense, sobretudo de Moscatello[16], a pedofilia se encontra dentre as doenças causadoras de distúrbio da saúde mental, consequentemente o portador é parcialmente ou totalmente incapaz de manter controle dos impulsos e desejos sexuais, embora tenha consciência da reprovabilidade da sua conduta e caráter delituoso da mesma. Malgrado se verifica na área da medicina estudos sobre pedofilia têm-se iniciado pela etimologia do distúrbio, embora carecedor de mais esclarecimento, já se pode afirmar, segundo pesquisas atuais, a existência de alterações neurológicas, hormonais e psicodinâmicas em torno desse fenômeno (SPIZZIRRI, 2011)[17]. Ante os diversos fatores um diagnóstico de pedofilia, conforme mencionado acima, requer uma investigação profunda na história do paciente, consubstanciada com exames neurológicos, ressonância e outros, “destacando-se os diversos aspectos da anamnese sexual[18]”. Nos fatores neurológicos, constatou-se a existência em pedófilos de “diminuição considerável do volume e da massa cinzenta da amígdala direita, do hipotálamo bilateral, das regiões septais, da substância innominata e do núcleo da estria terminal […] e pode refletir alterações ou agressões do ambiente, em períodos críticos do desenvolvimento psicossexual” [19]. Outro aspecto importante a ser observado, ainda na esfera da medicina, consiste na constatação de haver “diminuição do volume da massa cinzenta do núcleo estriado ventral (estendendo-se ao núcleo accumbens), do córtex orbitofrontal e do cerebelo dos pedófilos, o que indica “associação entre anormalidades da morfometria fronto-estriatal e pedofilia” [20]. Consoante estudos, mediante a realização de comparação entre indivíduos heterossexuais com interesses sexuais e parafílicos, verificou-se “alterações eletroencefalográficas em diferentes áreas corticais, como reação à estimulação erótica visual. No mesmo estudo observou-se em pedófilos, quando na presença de crianças, “aumento anormal do ritmo alfa e diminuição da atividade em áreas frontais” [21]. Por intermédio de exame de ressonância magnética funcional constatou-se que diversas regiões cerebrais são estimuladas ou reprimidas, quando submetido o pedófilo à incitação erótica visual[22]:  “Há evidências de que o lobo frontal occipital superior e o fascículo arqueado conectam as regiões corticais da resposta à estimulação sexual, indicando que aquelas regiões corticais operam como uma rede no reconhecimento dos estímulos sexuais relevantes e que a pedofilia resulta de uma desconexão parcial desta rede.” No tocante aos fatores hormonais, foi observado aumento dos níveis de testosterona, mormente nos pedófilos com características agressivas.  Na comparação entre parafílicos pedófilos com parafílicos não pedófilos, possibilitou-se identificar no pedófilo “maior índice de hormônio luteinizante[23]”, “o que indica uma disfunção no eixo hipotalâmico-hipofisário-gonadal”. Numa amostra de 528 criminosos sexuais, foram detectados níveis mais elevados de prolactina entre os pedófilos[24]. Tratamento e prevenção da reincidência No caminho de estudos e constatações fica patente a existência de patologia, e, portanto, com doentes deve-se trilhar em busca de tratamento. No caso da pedofilia, encontra-se na esfera da Medicina, da Farmacologia e ou da Psicologia. Os tratamentos existentes perpassam pela esterilização, a qual pode ocorrer por intervenção cirúrgica com efeito definitivo, quando se removem os testículos, como sucede por vezes em caso de câncer, já o tratamento reversível há com administração de procedimento químico de hormônio sintético feminino, com dosagem variável dependendo do quadro clinico do paciente, deve ocorrer de forma temporal, com escopo de aumentar os níveis desses hormônios até se assemelharem aos da testosterona, a inibir a libido ou diminui o impulso sexual [25]. Concomitante a esses tratamentos utiliza-se recursos da psicologia. A gravidade da falta de tratamento se traduz por pesquisas, um número superior à metade dos condenados por crimes sexuais antes de completar um ano comete crime da mesma natureza. De outro lado, há pesquisa registrando que, em razão da aplicação de hormônio feminino, a reincidência de condenados por crimes sexuais caiu de 75% para 2%, resultado estimulador para adesão ao referido tratamento[26]. Consoante é cediço, os Estados Unidos foram pioneiros na aplicação do tratamento químico de criminosos considerados pedófilos, tratamento esse existente em vários Estados americanos, estipulando pena facultativa para condenados primários e compulsória aos reincidentes e registro em cadastro. No tocante aos menores considerados agressores sexuais em 18 Estados e 3 territórios americanos, a idade mínima é de 14 anos para serem inscritos no cadastro[27]. Na União Europeia, o único país que implantou castração compulsória foi a Polônia, devendo o condenado por pedofilia ou incesto, após cumprimento da pena, ser submetido a exame com psiquiatra, em havendo diagnostico favorável o Juiz decreta o tratamento químico. Na França, Dinamarca, Inglaterra o tratamento químico ocorre de forma voluntária. Já na Alemanha além desta terapêutica, também há terapia cognitiva. No cenário da América Latina somente a Colômbia e a província de Mendonza na Argentina adotam a castração química para estupradores. Enquanto no mundo asiático, recentemente na Coréia do Sul e na China, a castração química chegou, sendo que no primeiro país especificamente para estupradores reincidentes e no segundo para pedófilos. Não obstante aparentemente o tratamento cirúrgico trazer a percepção de ser agressivo, entretanto existe entendimento no sentido da esterilização cirúrgica ser mais branda e com efeitos menos danosos em longo prazo, devido os efeitos colaterais provocados pelo tratamento farmacológico[28]. Porém, há controvérsia, como se deflui de estudos, conforme explicita Baltieri “Quando bem administrado, não provoca impotência ou lesão corporal, nem deixa o sujeito sem apetite sexual[29]”. Estudos pertinentes à esterilização cirúrgica, realizados por Heim, na Alemanha, constataram, mediante o acompanhamento de 39 agressores sexuais submetidos à referida intervenção cirúrgica, que não houve completa eliminação do impulso sexual, visto 36% deles permanecerem com atividade sexual e 70% (setenta por cento) com fantasia sexual.  Dentre os criminosos sexuais, foi verificada maior tendência nos estupradores em continuar com atividade sexual, mesmo após serem submetidos a tratamento cirúrgico[30]. Existem resultados sobre a efetividade de tratamentos desenvolvidos com delinquentes sexuais, como destaque, os tratamentos com orientação cognitivo-comportamental, que possibilitam a redução de reincidência, registrando como média apenas 13% dos tratados retornarem ao cometimento de crimes[31].  Com a utilização da psicodinâmica tem revelado tratamento com repostas profícuas, por intermédio da psicoterapia e da psicanálise, sobretudo em grupos, por meio de estímulo a determinados comportamentos, valores e habilidades cognitivas, que orientam e controlam desenvolvimento social e sexual[32]. Em face da utilização dos tratamentos com “programas de orientação cognitivo comportamental em conjunto com programas hormonais”, na Alemanha como nos Estados Unidos, têm apresentado patamar médio de 20% na reincidência de condenados por crimes sexuais[33]. Nos programas de orientação cognitivo-comportamental, geralmente inicia-se com terapia por meio de diálogo entre psiquiatra ou psicólogo e condenado, seguindo de exercícios e treinamentos, tendo como objetivo levar o paciente a contornar os pensamentos e fantasias sexuais com crianças e, por conseguinte, o conduzido a desviar os interesses para atividades mais adequadas antes de atingir o clímax, conhecido como tratamentos de recondicionamento, havendo o contrário, como sucede no treinamento de saciedade, quando o paciente se masturba com fantasias preferenciais repetidamente até suprir seus desejos. Corroborando com administração em geral de doses altas de antidepressivos com escopo de controlar o impulso sexual, e concomitantemente a terapia prossegue[34]. Com a utilização do referido tratamento, segundo Baltieri, a doença é controlada em 90% (noventa por cento), no tocante ao restante (10%) requer-se um controle mais profundo, por vezes recorre-se a internação em hospitais psiquiátricos[35].  Na Alemanha há o programa terapêutico denominado Projeto Prevenção Dunkelfeld, liderado pelo Dr. Klaus Beier, cujo trabalho é dedicado a potenciais infratores, com ênfase primordial na confiabilidade dentro da terapia cognitivo-comportamental, com utilização se necessário de medicamentos de redução da libido, porém sem utilizar recondução[36]. No Brasil, existe experiência de tratamento com recurso de drogas e hormônios feminino, mediante pesquisa cientifica realizada pela Faculdade de Medicina na região do ABC Paulista, no ambulatório de Transtorno de Sexualidade, em 30 participantes, utilizando tratamentos com intervenções psicológicas, farmacológicas, primeiramente sem uso de procedimento químico hormonal, só incorrendo a medicamentos da referida natureza em deixando de haver sucesso com drogas antidepressivas, todavia, todos os passos são reportados ao paciente e seguidos somente com aquiescência do mesmo[37]. Na busca de uma solução no ordenamento jurídico para tratamento de infratores de crimes sexuais, permitindo o interesse do Estado sobrepor à vontade do condenado por estupro de crianças e adolescente a se submeter a tratamento químico, tramitavam no Congresso Nacional brasileiro Projetos de Lei (PL-4.399/2008 e o PL 5.122/2009), tendo como objetivo a implantação do instituto da castração química no ordenamento jurídico, a ser aplicado como pena alternativa a condenados por crimes sexuais. Porém, ambos os projetos foram arquivados com base no artigo 5.º, inciso XLVII, alínea “e” da Constituição Federal c/c artigo 137, § 1.º, inciso II, alínea "b", do Regimento Interno da Câmara dos Deputados(RICD). Atualmente no Senado brasileiro tramita o PLS282/11, o qual se encontra na Subsecretaria de Coordenação Legislativa do Senado. No sentido de sobrepor o interesse da coletividade sobre o do doente, já existe corolário para essa atuação do Estado, sobrepondo à autonomia decisória do doente em razão de interesse maior em prol da sociedade de do próprio enfermo, como dita a Lei 10.016/2001, que versa sobre os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, dentre outros pontos focados na mencionada lei tem-se a internação psiquiátrica e suas modalidades: voluntária, involuntária e compulsória mediante determinação judicial. Outro corolário se encontra no capítulo dos direitos da personalidade do Código Civil, prescrito especificamente no artigo 13, com o qual o legislador visou o bem-estar físico e psíquico do ser humano. “Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”. Com arrimo nesse comando legal se deflui em havendo exigência médica e tratamento garantindo proteção a integridade física do enfermo não se discute a segunda parte do preceito legal.   Mesmo com a utilização de interpretação extensiva do termo exigência médica ser diferente de recomendação ou conveniência, tem-se o dever de primar nessa exegese o suporte principal acalmado nos direitos da personalidade assentado na dignidade da pessoa, visto o bem-estar, a saúde, a intimidade e a integridade psíquica comporem os direitos a personalidade resguardados pela Constituição. E, com suporte no mencionado entendimento se permite a mutilação do órgão genital no caso dos transexuais, com escopo de proporcionar pacificação do sexo psicológico ao genital. Nesse sentido indubitavelmente alcança o portador de pedofilia, visto o tratamento objetivar, também, a recuperação da dignidade do portador de pedofilia. Para alguns ao considerarem as modalidades de tratamentos aviltantes à dignidade humana, arrimam-se na Lei Maior brasileira, lastrada quanto aos direitos fundamentais na Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida por “Pacto de San José”, da qual o Brasil é signatário, que segundo a exegese impossibilita qualquer legislação autorizando a aplicação dos tratamentos No referido Pacto, dentre os direitos humanos essenciais, tem-se a integridade física, conforme prescreve o artigo 5.º, e há ressalva, no item 2, sobre a forma como a pessoa na condição de privada da liberdade deve ser tratada: “Com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano[38]”. Na percepção da bioética, há preocupação no tocante aos experimentos científicos em razão de inexistir cura para pedofilia, assim, o pedófilo voluntário estaria em polo de vulnerabilidade, praticamente em estado de necessidade ante a proposta de se submeter a experimento, e, por tanto a autonomia para decidir se encontra potencialmente fragilizada, por tal razão não bastaria realizar os procedimentos requeridos pelo Conselho Nacional de Saúde como o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE[39].  Porém só ateve ao princípio da beneficência, todavia sem perscrutar os enfermos, deixando de verificar os outros dois princípios formadores da tríade da bioética e pouco aprofundando no princípio da beneficência, do latim “bônus facere”, fazer bem ao paciente. Por conseguinte quanto a autonomia da capacidade de ser e agir do enfermo ocorreu por meio de uma presunção sem apoio empírico. De forma igual o princípio da justiça foi ignorado, extirpando o direito de lhe ofertar tratamento diferenciado como dispõe aos demais componentes da sociedade.   Contudo, outros seguimentos da sociedade persistem com entendimentos contrários às medidas de tratamentos farmacológicos, mormente os defensores dos direitos humanos dos sentenciados, os quais trazem como argumento: “não se resolve uma violência com outra”; “a simples falta de ereção não evitaria que os pedófilos cometessem outros atos libidinosos”; “a castração seria pior que a pena de morte”; “é uma sanção física, vedada pela constituição”; “se a motivação do tratamento for a redução da pena e não o desejo de mudança, não haveria garantia de sucesso”; “a medida seria uma muleta, com efeito unicamente no sintoma”; “o pedófilo não deixaria de ser pedófilo, apenas não cometeria mais o crime” [40]. Embora, como já falado, a medicina e a psicologia têm desenvolvido estudos com escopo de tratar do pedófilo, não serão suficientes para possibilitar ao egresso uma perspectiva de melhora extramuros se outros meios deixarem de ser produzidos, principalmente a inclusão na sociedade. Nesse caminho já existem instrumentos e programas com possibilidade de serem utilizados para auxiliar, seja na reintegração, seja no tratamento. O monitoramento eletrônico constitui um dos recursos com possibilidade de o condenado cumprir pena  e poder conviver extramuros, no período de duração da sanção, evitando esporádico, parcial ou total o encarceramento e concomitantemente, permitindo o acompanhamento dele, via monitoramento e a continuidade do tratamento àqueles que necessitarem de permanecerem ou de a manutenção, como já sucede em alguns países, possibilitando-lhes o retorno ao convívio com a família e a comunidade, transmitindo certa segurança a todos. Na década de 80, tanto os Estados Unidos como a Inglaterra passaram a aplicar o monitoramento eletrônico de prisioneiros. Conforme consta do relatório do III Workshop sobre o referido monitoramento, ocorrido em 2003, cerca de 9.200 participantes eram incluídos diariamente em programas de monitoramento eletrônico na Europa. Nos países que utilizam o monitoramento há procedimentos para serem cumpridos. Em geral, o condenado deve ser submetido a uma avaliação. Em sendo considerado apto, passa a ser monitorado[41]. Já existem algumas tecnologias empregadas, dentre essas os dispositivos acoplados ao corpo (pulso ou tornozelo), conectados às centrais de monitoramento, onde são registrados requisitos espaciais, temporais e fisiológicos, a depender da decisão judicial imposta previamente[42]. Especificamente sobre o egresso pedófilo, há o emprego de pulseiras rastreadoras tanto na Espanha como na França[43] e monitoramento via satélite na Inglaterra. O Reino Unido e a França contam também com arquivo digital dos criminosos, contendo amostras de DNA. Já na Bélgica há obrigatoriedade do egresso em portar bracelete eletrônico, contendo um alarme que dispara ao se aproximar de locais proibidos, dentre esses, parques de diversão e escolas. Na América do Sul, há monitoramento eletrônico na Argentina[44] e no Uruguai em se tratando de crimes de violência doméstica. Enquanto no Brasil, com advento da Lei n.º 12.258/2010, o monitoramento eletrônico foi inserido como medida de fiscalização, quando do benefício de saída temporária aos condenados que estejam no regime semiaberto ou quando se tratar de prisão domiciliar [45]. Em alguns Estados brasileiros encontra-se em estudo, noutros já em implantação, como São Paulo, onde foi implementado em 4.800 presos do sistema semiaberto, na saída temporária referente à celebração do Natal de 2010[46]. O monitoramento eletrônico de preso teve grande atenção no Brasil com o advento do egresso que se encontrava no regime semiaberto e cometeu abuso sexual seguido de homicídio no município de Luziânia/GO, tendo como vítimas seis jovens. Nos Estados Unidos, além dos métodos já descritos há leis nos diversos Estados prescrevendo de forma impositiva o cadastro de pedófilo, bem assim a exigência de se identificar aos vizinhos. Os profissionais, sobretudo, professores, médicos e psicólogos têm o dever de notificar em relatórios pacientes portadores de pedofilia[47].  Reinserção na sociedade Na busca de melhor promover assistência ao preso, por iniciativa do Conselho Nacional de Justiça, foi implantado o Projeto “Começar de Novo”, por intermédio da Resolução n.º 96, de 17 de outubro de 2009. O objetivo principal do referido projeto consiste na redução da reincidência e outros, como integrar o preso na sociedade e concretizar ações de cidadania, mediante sinergia com diversos segmentos públicos, privados e a sociedade a apoiarem os propósitos do projeto, mormente quebrando paradigmas e preconceitos, possibilitando ofertas de trabalho, educação e capacitação profissional destinadas a presos e egressos do sistema penitenciário[48]. Na concepção de Sá (2010), é mister desenvolver programas restaurativos nos presídios, os quais deveriam concentrar-se em sanar feridas existentes na trajetória de vida do recluso e da sociedade, abrangendo fatores endógenos e exógenos. Com utilização de técnicas de aproximá-lo da sua comunidade e vice-versa, bem como de outros segmentos da sociedade, proporcionando, assim, experiências e aprendizados restauradores de valores e princípios saudáveis, para possibilitar “capacidade e responsabilidade em termos da construção social [49]”. Para tanto, é imprescindível uma mudança de cultura, o que Sá (2010) denomina transdisciplinaridade, no sentido de “uma transposição das fronteiras dos diversos ramos do conhecimento e das diversas ciências, em busca de uma visão mais abrangente, mais holística do cárcere e dos encarcerados[50]”. Na visão de Miranda (1982, p. 29)[51], há necessidade de um programa de ressocialização que possa “integrar o indivíduo no mundo dos seus concidadãos, sobretudo nas coletividades sociais básicas”, como a família, a escola ou o trabalho, proporcionando o auxílio necessário que o faça ultrapassar a situação da negação social em que se encontra.  Assim, havendo tratamento com acompanhamento dentro e fora do cárcere, concomitantemente, com programas restaurativos, as possibilidades de atenuar e haver inclusão, poderão acontecer, no sentido contrário a sociedade estará somente temporariamente afastada de alguns pedófilos, enquanto permanecerem nos presídios[52]. CONCLUSÃO Diante dos estudos apresentados nos diversos campos, criminologia, direito, sociologia, psicologia, medicina e bioética com desiderato em restaurar o condenado, verifica-se haver particularidades difíceis a proporcionar o tratamento e consequentemente a reintegração social quanto ao pedófilo, diagnosticado como doente de fundo psiquiátrico, com transtorno sexual, independente do grau a lhe retirar a capacidade intelectiva e/ou não volitiva. No Brasil, consoante foi sobejamente demonstrado, existem defensores com três posições: aplicação de penas severas ao pedófilo, dentre essas a de morte e a prisão perpétua; outros em prol de tratamento, cirúrgico ou químico (farmacológica) e/ou terapia psíquica; e aqueles contrários a todas as propostas citadas. Os defensores no sentido de não se permitir tratamento diferenciado, sobretudo a respeito do cirúrgico ou químico para os condenados por crimes sexuais com crianças ou pré-púberes, considerados pela medicina como pedófilos, utilizam argumentos de se configurar uma violência absurda que decepa a dignidade. Enfim, qual o caminho a ser trilhado pelo Estado, detentor do poder do controle social? Visto a ação de praticar pedofilia atinge drasticamente terceiros e na maioria incapazes de se defender, e, o Estado indiscutivelmente tem o dever de intervir para controlar a prática de pedofilia. Por todas as razões expostas o assunto deve ser abordado com maior profundidade, abrangendo tanto a vítima como o infrator. Uma vez que o Estado além de ter a obrigação de defender a população das condutas de portadores de pedofilia, coibindo atos atentatórios à dignidade humana, também tem o dever de proporcionar ao egresso sua inclusão junto à sociedade. Com um olhar desprovido de conhecimento, parece sofisma dizer que o pedófilo irá perder a dignidade caso seja submetido a tratamento, uma vez que o possível resgate da dignidade está justamente no tratamento, sem o qual sequer se pode falar em reintegração, restauração e, muito menos em dignidade perante si mesmo e a sociedade. Neste aspecto a bioética deve atentar como realizar a inclusão de um portador de pedofilia e evitar a discriminação, preconceito, se nem tratamento diferenciado lhe foi permitido. O que é ético o tratamento ou a eterna exclusão? No compasso, seria de bom alvitre lembrar o conceito de dignidade descrito pelo ínclito jurista Alexandre Moraes (2005): “A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos[53].” Por conseguinte ao se falar em qualquer forma de tratamento, primeiramente é necessário buscar a opinião de quem será eternamente etiquetado de pedófilo e daqueles que, de certa forma, também, sofrem consequências do estigma, no presente caso os familiares do pedófilo. Havendo  tratamentos médico, farmacológico e/ou psicológico diferenciado, obrigatórios ou não, corroborado com controle e acompanhamento, indubitavelmente, a sociedade terá sensação de segurança e confiança, o egresso será visto de outra forma, inclusive terá maior motivação a continuar com tratamento. Enfim, sobreviverá no mundo dos incluídos com dignidade restaurada, isto é, com o mínimo vital a proporcionar cidadania, consequentemente sucederá, também, com seus entes queridos. Na conjuntura atual o credenciamento ofertado ao condenado diagnosticado portador de pedofilia ao retornar ao convívio social constitui paradoxo.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/pedofilo-tratamento-em-busca-de-dignidade-cidadania-inclusao-e-seguranca/
Sistema penitenciário brasileiro: uma reflexão sobre a interdição da tortura como direito humano intangível
As reflexões contidas neste artigo abordam alguns aspectos relevantes sobre a realidade do sistema penitenciário brasileiro como um violador dos direitos humanos. Ao mesmo tempo objetiva propor uma reflexão sobre a interdição da tortura como direito humano intangível, considerando que o Brasil incorporou os instrumentos de proteção aos direitos humanos.
Direitos Humanos
1. Introdução:  O sistema de proteção internacional dos direitos humanos das Nações Unidas se caracteriza como um sistema de normas jurídicas, tendo como objetivo implantar e promover o respeito aos direitos humanos, neste interim, os direitos humanos foram conquistados pelas instituições jurídicas em face ao direito à dignidade humana, sendo considerado como direito universal. Destarte, a partir da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH de 1948 abre um leque para discussão e adoção de inúmeros tratados internacionais voltados a proteção de direitos fundamentais, tendo em vista que o artigo 28 da DUDH versa que “todos têm direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades sejam plenamente garantidos e realizados”. No entanto, presenciamos com frequência nos diversos meios de comunicação e relatórios dos órgãos de defesa aos direitos humanos casos de violência no sistema penitenciário, a exemplo do crime de tortura. Neste contexto, a visibilidade ao sistema penitenciário brasileiro caracteriza hoje uma das mais graves expressões da questão social brasileira, um espaço de humilhação, ambiente insalubre, superlotação, corrupção, falta de acesso à educação e saúde, maus tratos e tortura, fato este que deslegitima aos aparatos legais de proteção aos direitos humanos. Desta forma, legitimam um sistema penitenciário falido e punitivo no qual as violações dos direitos humanos são notórias. Partindo deste pressuposto, demonstraremos como as violações dos direitos humanos vêm ocorrendo no sistema penitenciário brasileiro, uma vez que às  margens de arbitrariedades por parte das unidades prisionais, ainda tem sido comum  a prática de  tortura nessas instituições,  como meio constante de violação da integridade física e moral, fato este que caracteriza o sistema penitenciário como “cemitério de seres vivos”, que  viola sistematicamente os tratados de proteção aos direitos humanos que pactuam sobre a interdição da tortura. 1.1. Direitos humanos e sistema penitenciário O sistema penitenciário brasileiro está regulamentado pela Lei de Execuções Penais (LEP lei nº 7.210 de 11/10/1984), na qual determina como deve ser executada e cumprida a pena privativa de liberdade e restrição de direitos. Sendo que em o artigo 1º versa que a “execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.  É importante enfatizar o artigo 3º porque fica previsto que “Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.” É importante enfatizar que o sistema prisional passa a ter relevância enquanto mantenedor da ordem e da segurança, ficando em segundo plano seu potencial ressocializador, reforça-se como espaço de punição e tortura. Segundo o Relatório Anual do Centro de Justiça Global (2003, p.23), destaca que “a sociedade brasileira enxerga as prisões como locais de pessoas violentas que cometeram crimes terríveis contra inocentes, daí a banalização das violações dos direitos humanos dentro das prisões”. Assim, no que se refere a tortura, caracteriza predominantemente como prática rotineira nos presídios, delegacias de todo Brasil, isto porque seu principal objetivo ainda se concentra na substituição de técnicas violentas como meio de extrair confissões dos suspeitos, bem como na própria disciplina dos centros de detenção, com intuito de punir o mau comportamento dos presos (SANTOS, 2010). Sobre a realidade brasileira, Torres afirma que o sistema prisional é, “Um sistema que apresenta sérios problemas e sobrevive caoticamente, mantendo em constantes conflitos e sob o jugo da violação dos direitos humanos de milhares de homens e mulheres presos. Esse quadro decorre da ausência de uma política institucional definida e estruturada em níveis nacionais, que construa novos parâmetros e objetos para o sistema penitenciário além de segurança e do encarceramento” (TORRES, 2001, p.77). Carvalho (2008, p.209) acrescenta que “o fenômeno das violações dos direitos da pessoa presa, por parte da administração pública, é uma das realidades mais notórias no país”. Neste âmbito, ao discorrer sobre estas violações dos direitos humanos no sistema penitenciário brasileiro, abre-se um leque para abordamos esse tipo de violação, enfatizando a interdição da tortura como direito humano intangível. Assim, cabe lembrar que as violações de direitos humanos submetidas aos presos raramente são alvo de investigações, fato este que entra em desacordo como previsto na Constituição Federal de 1988 em seu Artigo 5º,  XLIX, no qual é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral, bem como o mesmo artigo, III, afirma que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante. Diante deste contexto, o Brasil vem adotando importantes medidas em prol da incorporação dos tratados de proteção aos direitos humanos para proibição desta prática que permanece como violência presente nos presídios e delegacias dos Estados brasileiros. Um exemplo disso foi a promulgação dos tratados que versa sobre a interdição da tortura, tendo em vista que a abertura democrática do país possibilitou um debate em torno dos direitos humanos fundamentais, dando visibilidade para a efetivação desses direitos. Assumido este pressuposto, a Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 4º que a “República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: […] II – prevalência dos direitos humanos” (BRASIL, p.13). Em face desse cenário, observa-se que a Emenda Constitucional nº. 45 de 2004 em seu artigo 5º, § 3º teve como princípio fundamental, a aprovação dos tratados e convenções internacionais sobre os direitos humanos. Neste ínterim, o Brasil ratificou os  principais tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, a saber os que pactuam sobre a interdição da tortura:  a  Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura em 20 de julho de 1989, Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 28 de setembro de 1989;  a Convenção Americana de Direitos Humanos, em 25 de setembro de 1992,  o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos em 24 de janeiro de 1992;  o Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 11 de janeiro de 2007, neste cenário, o Brasil começa a se inserir no cenário de proteção internacional dos direitos humanos. Pode-se afirmar que além das inovações constitucionais, o Brasil promulgou a Lei 9455 de abril de 1997 que versa sobre o crime de tortura e dá outras providencias. Neste cenário histórico a Lei 9455/97 define o crime de tortura em seu artigo 1º, I “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou menta”. Destaca-se que a tortura é um crime que lesa a humanidade, assim “os maus tratos, abusos e humilhação dos presos, o que é, a todos os títulos, injustificável” (MARQUES, 2006, p.125). No que se refere ao sistema prisional há uma dicotomia entre os aportes legais que institucionalizam direitos para aqueles que se encontram em privação de liberdade e a concretização do acesso aos direitos se revela na realidade prisional quando há denuncias das violações dos direitos dos presos.  Ademais, a Convenção Contra a Tortura e Outras Penas e Tratamentos Cruéis Desumanos e Degradantes de 1984 afirma em seu artigo 1º que “[…] qualquer ato pelo qual dor ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são intencionalmente infligidos a uma pessoa […] quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário publico ou por outra pessoa que aja a titulo oficial, a sua instigação, ou com consentimento expresso ou tácito”. Cabe lembrar que as condições dos sistemas penitenciários brasileiros são divulgadas através de noticiários vinculados a mídia como um sistema de “depósito de seres humanos”, “escola do crime”, o que  deslegitima o artigo 5º, XLVII da Constituição Federal de 1988 que é “assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. Deve-se observar que a realidade do sistema penitenciário é caótica, ou seja, é um espaço onde os direitos humanos não são efetivados, realidade essa que deslegitimam os instrumentos internacionais e regionais de proteção aos direitos humanos, pois não oferece um estabelecimento digno para o cumprimento da pena. No que se refere ao sistema penitenciário, o Código Penal Brasileiro de 1940 caracteriza três regimes de cumprimento de penas privativas de liberdade, a saber: fechado, semiaberto e aberto, tendo em vista que há uma contradição com aporte legal e a realidade dos estabelecimentos prisionais brasileiro, considerando que há iminência de condenação para muitos presos que aguardam julgamentos, além da superlotação. Neste interim, a  realidade do sistema prisional  ostenta uma população carcerária por Estado de 715.655 mil presos,  nota-se que os problemas do sistema penitenciário não se referem apenas ao aumento da população carcerária, mas as diversas outras formas de violência, tais como:  espancamentos, rebeliões, entre outras formas  de tratamento cruel, desumano e degradante, assim, segundo os relatórios  dentre os casos de violações de direitos humanos, a tortura continua umas das práticas mais denunciadas pelos órgãos de defesa dos direitos humanos ( SANTOS, 2012). No que se refere à prática da tortura a Convenção Contra a Tortura e Outras Penas e Tratamentos Cruéis Desumanos ou Degradantes da ONU é a mais recente que aborda a interdição da tortura, embora não seja a única fonte jurídica que versa sobre o tema. Em razão desta Convenção foi criado um comitê das Nações Unidas Contra a Tortura (CAT): órgão responsável pelo monitoramento internacional da implementação da Convenção contra a Tortura pelos países-membros. Quanto aos mecanismos de monitoramento, a Convenção criou um Comitê e o incumbiu de receber e de analisar os relatórios de acordo com o Artigo 17 cujo objetivo implica realizar investigação sobre notícias de tortura ocorridas no território de algum Estado-parte. Além dos referidos mecanismos de proteção, a Convenção ainda estabelece um Protocolo Facultativo à Convenção, em vigor 2006 prevê um sistema de visitas periódicas aos centros de detenção, efetuadas por um organismo internacional e outro nacional e independentes sem a necessidade de comunicação previa ao Estado-parte, conforme seu artigo 1º. Esta autorização é dada na ratificação do protocolo, de acordo com o artigo 4º, o objetivo principal é reforçar a proteção de pessoas privadas de sua liberdade contra a tortura, prevenindo a sua ocorrência ao submeter Estados à inspeção permanentemente e sem prévio aviso. Nesta ótica, os Estados vem criando mecanismo estadual de prevenção e combate à tortura, o que permite alguns avanços na proteção dos direitos humanos, a exemplo: Acre, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Santa Catarina, Goiás, Paraná, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Espírito Santos e Rio de Janeiro, conforme versa o relatório do anual de 2013 do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ).No entanto, o Brasil institui o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, cria o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, através da Lei nº 12. 847/2013, tendo como objetivo de fortalecer a prevenção e o combate à tortura, por meio de articulação e atuação cooperativa de seus integrantes, dentre outras formas, permitindo as trocas de informações e o intercâmbio de boas práticas.      Neste ínterim, fica evidente a ineficácia dos estados brasileiros de legitimar as legislações de proteção aos direitos humanos, tendo em vista que há prática sistemática de tortura no sistema penitenciário brasileiro e que para que haja a sua interdição, cabe aos cumprimentos desses aparatos que referendam sobre os direitos humanos pactuado pelo Brasil, porque são eles que regulamentam e sancionam a defesa dos direitos humanos, sobretudo ao referir a favor da interdição de qualquer forma de tortura, principalmente praticada pelo Estado aos sujeitos sociais em situação privativa de liberdade. 2. Considerações finais:  Observamos que que no âmbito normativo dos direitos humanos – internacional e nacional-, conseguimos intensamente avançar em definições, mecanismos de fiscalização, no entanto, a pratica de violação aos direitos humanos são  constante no sistema penitenciário, desde a superlotação ao de crime de tortura, fato este que vem sendo apresentado nos relatórios de organizações dos direitos humanos internacionais e nacionais. Todavia, a divulgação dos relatórios não deve servir como mero joguete de informação  midiática, assim,  cabe ao Estado cumprir com rigor o dever de investigar, processar e responsabilizar os torturadores, haja vista que os aparatos legais de proteção aos direitos humanos versa sobre a interdição da   tortura como direito humano intangível. Diante disso, fica evidente que o Brasil ratificou todas as convenções e tratados de direitos humanos, bem como vem criando mecanismo estaduais de prevenção e combate à tortura nos sistemas prisionais, no entanto, a tortura é um crime que ocorre em todo país, só que ocorre com mais frequência no nos locais onde as pessoas são mantidas em privação de liberdade, ou seja,  ambientes fechados  de pouca vigilância. Assim, faz-se necessário que o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, bem como os demais comitês locais socializem os relatórios, tendo em vista que  o mundo precisa saber o que está por trás das grades, ao mesmo tempo, faz-se necessário uma proposta de Educação e Direitos Humanos, sobre processo educativos e de disseminação de informação sobre a interdição da tortura,  sendo que deve ser construída e socializada no  contexto do sistema penitenciário, englobando a comunidade penitenciaria: apenado, agentes penitenciários, técnicos, baseada na disseminação de informação sobre seus direitos, haja vista, que tais sujeitos sociais também contribuem para a legitimação do crime de tortura.  Neste contexto, é importante enfatizar que além dos mecanismos de proteção aos direitos a sociedade civil também precisa ser atuante para cobrar dos órgãos públicos respostas concretas quanto ao crime de tortura e outras formas de tratamento desumano e degradante encontrada nos sistemas penitenciário brasileiro. Assim, cabe aos órgãos de direitos humanos proteger qualquer pessoa que tenha sido torturada e que venha apresentar queixa perante as autoridades competente, bem como as testemunhas.
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Seguro Defeso e Importância de Garantia de Renda Mínima para os pescadores artesanais do Estuário da Lagoa dos Patos
O artigo trata da importncia do seguro-desemprego para os pescadores durante o período de reprodução dos cardumes para si e suas famílias já que não têm outra fonte de renda nem possibilidade de exercer outra profissão.
Direitos Humanos
1 Introdução Há um período na cadeia produtiva da pesca, em que existe uma proibição para se efetuar a pesca, tendo em vista proteger a necessidade de renovação dos cardumes. Neste período, ficam vetadas ou controladas as atividades de caça, captura e coleta de peixes em determinadas áreas, em períodos estabelecidos pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente. Essa medida visa proteger a fauna, tendo em vista que ocorre no período de reprodução dos peixes, de molde que haja sustentabilidade na pesca. Nesse período, em nossa Cidade, especialmente, os pescadores artesanais e suas famílias ficam impedidos de pescar no estuário da Lagoa dos Patos, sendo que precisam prover a sua família. Em razão disso, há um benefício oferecido pelo Governo Federal para os pescadores, por causa da proibição de exercer a sua atividade. Tal benefício é pago como auxílio assistencial, no importe de 1 (um) salário-mínimo, nos meses em que durar a proibição e visa a garantia de sobrevivência do pescador. É importante o auxílio não só para a dignidade do pescador, como também de sua esposa, que lhe ajuda no emalhe das redes, na filetagem do peixe etc. O objetivo deste trabalho é analisar a importância desse benefício não só para o pescador, como também para sua companheira. A pesca é uma das atividades mais antigas feitas pelo ser humano. O ato de extração de organismos aquáticos da água, remonta desde a Antiguidade. Na própria Bíblia encontramos diversas passagens, relatando que os apóstolos pescavam, talvez a mais importante sendo a de João, 21: “João 21 1 Depois disso Jesus apareceu novamente aos seus discípulos, à margem do mar de Tiberíades. Foi assim: 2 Estavam juntos Simão Pedro; Tomé, chamado Dídimo; Natanael, de Caná da Galileia; os filhos de Zebedeu; e dois outros discípulos. 3 "Vou pescar", disse-lhes Simão Pedro. E eles disseram: "Nós vamos com você". Eles foram e entraram no barco, mas naquela noite não pegaram nada. 4 Ao amanhecer, Jesus estava na praia, mas os discípulos não o reconheceram. 5 Ele lhes perguntou: "Filhos, vocês têm algo para comer?" Eles responderam que não. 6 Ele disse: "Lancem a rede do lado direito do barco e vocês encontrarão". Eles a lançaram e não conseguiam recolher a rede, tal era a quantidade de peixes. 7 O discípulo a quem Jesus amava disse a Pedro: "É o Senhor!" Simão Pedro, ouvindo-o dizer isso, vestiu a capa, pois a havia tirado, e lançou-se ao mar. 8 Os outros discípulos vieram no barco, arrastando a rede cheia de peixes, pois estavam apenas a cerca de noventa metros da praia. 9 Quando desembarcaram, viram ali uma fogueira, peixe sobre brasas e um pouco de pão. 10 Disse-lhes Jesus: "Tragam alguns dos peixes que acabaram de pescar". 11 Simão Pedro entrou no barco e arrastou a rede para a praia. Ela estava cheia: tinha cento e cinquenta e três grandes peixes. Embora houvesse tantos peixes, a rede não se rompeu. 12 Jesus lhes disse: "Venham comer". Nenhum dos discípulos tinha coragem de lhe perguntar: "Quem és tu?" Sabiam que era o Senhor. 13 Jesus aproximou-se, tomou o pão e o deu a eles, fazendo o mesmo com o peixe. 14 Esta foi a terceira vez que Jesus apareceu aos seus discípulos, depois que ressuscitou dos mortos”. É, portanto, uma atividade antiga, histórica e que vem sendo desenvolvida desde a Antiguidade, mesmo ainda antes da invenção da agricultura. No Brasil a pesca é importante desde o seu descobrimento, sendo praticada em todo o litoral por pescadores artesanais, em parceria, ou individualmente, com a ajuda de sua família. Em nossa região, especificamente, é praticada desde longos tempos, extensivamente, devido à dimensão do nosso litoral. O Rio Grande do Sul é um dos Estados mais importantes no segmento pesqueiro no País, sendo o quarto estado brasileiro mais importante na produção artesanal de pescado, sendo o Estrado maior produtor de camarão-rosa, sendo que esse tipo de pesca é realizado exclusivamente por pescadores artesanais. São cerca de 5 mil pescadores artesanais na região do Rio Grande, que dependem exclusivamente da atividade para seu sustento e de sua família (GARCEZ e SANCHEZ-BOTERO, 2005). 3. Importância do auxílio para o pescador e sua mulher O auxílio era deferido apenas para o homem, conforme orientação do Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador – CODEFAT, com base na sua resolução n° 657/2010, de 16/12/2010, que em seu art. 3º estabeleceu os requisitos: “Art. 3º O benefício do Seguro-Desemprego será requerido pelo pescador profissional, categoria artesanal, nas unidades de atendimento autorizadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, vedada a intervenção de agenciadores/despachantes no processo de habilitação, mediante a apresentação dos seguintes documentos: I – documento de identificação oficial; II – comprovante de inscrição no Programa de Integração Social – PIS ou Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público – PASEP; III – comprovante de inscrição no Cadastro de Pessoa Física – CPF; IV – Carteira de Pescador Profissional, categoria artesanal, emitida e atualizada pelo MPA, cuja data do primeiro registro comprove a antecedência mínima de um ano da data do início do defeso; V – comprovante de venda de pescado ou comprovante de recolhimento ao INSS, conforme disposto nos incisos III e IV do art. 2º, desta Resolução; VI – comprovante do Número de Inscrição do Trabalhador – NIT como segurado especial na Previdência Social; VII – comprovante de inscrição no Cadastro Específico do INSS – CEI, quando necessário; VIII – comprovante de domicílio.” Conforme ação civil pública intentada pelo Ministério Público Federal, de número 5002559-10.2012.4.04.7101,através de liminar, depois confirmada na sentença, foi estendido o benefício às mulheres dos pescadores. O objetivo é evitar a pobreza, garantir uma renda mínima para a família durante o período de reprodução dos cardumes. Para YUNUS (2000, p. 133) “a pobreza é uma doença crônica. Não pode ser curada com medidas improvisadas.” Daí a importância de se garantir um mínimo existencial para os pescadores artesanais, que durante o período do defeso, ficam impedidos de exercer a sua atividade. Mormente que são pessoas humildes com pouca ou nenhuma instrução, que aprenderam o ofício desde criança e não têm outros meios de subsistência. A renda mínima seria devida, conforme a ideia de SINGER (2002, p. 36), resgatando a ideia de redistribuição de renda de Fourier, para quem “todos teriam uma renda mínima, ‘modesta’ mas muito decente’, mesmo que não trabalhem”. É necessário proteger esses personagens da cadeia produtiva, pois, conforme CATTANI, apud BOURDAIS (p. 74), “ o trabalho precário e, sobretudo, o desemprego são vistos como uma perda de qualificação social que antes respaldava os contatos com parentes, amigos e vizinhos, respaldando a ´miséria da situação´”. Prossegue o mesmo autor afirmando que (p. 76) “poucos meses de precariedade ou de desemprego são suficientes para apagar os registros de valores, das práticas, dos engajamentos e da dignidade anteriores. Resta ainda uma visão nostálgica da identidade profissional, mas desconectada de princípios de solidariedade ou de engajamento das ações coletivas”. 4 Considerações finais É extremamente relavante se garantir um mínimo existencial para os pescadores artesanais, que durante o período do defeso, ficam impedidos de exercer a sua atividade. Veja-se que os pescadores são pessoas humildes com poucos anos de estudo, sendo, no mais das vezes, apenas alfabetizados, que aprenderam o ofício desde criança e não têm outros meios de subsistência. Além disso, não têm qualificação ou instrução para exercer qualquer outro tipo de atividade, razão pela qual o benefício é muito bem-vindo para as famílias, que devotaram a vida na atividade e não sabem fazer outra coisa. Em tempos de tantos programas assistencialistas do governo federal, parece acertada a decisão da Justiça Federal ao reconhecer o benefício assistencial também para a mulher do pescador. Ela ajuda o marido filetando os peixes, limpando-os, ajudando no emalhe e conserto das redes, sendo também importante garantir-lhe um mínimo existencial durante o período de defeso, que refletirá no bem-estar de toda a família. Se não se reconhecesse esse benefício, os pescadores estariam sujeitos à marginalidade e exclusão social, visto que ficariam sem dignidade e sem perspectiva de sua mantença durante os meses de pesca proibida.
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Audiência de Custódia: garantia do Direito Internacional Público
Este modesto trabalho tem por objetivo fomentar o debate sobre a audiência de custódia e chamar à atenção acerca do fato de que tal instituto é garantia do Direito Internacional Público e está inserido no ordenamento jurídico brasileiro, por meio de ratificação dos Tratados Internacionais que o asseguram, haja vista que o Brasil é signatário do Pacto de Direitos Civis e Políticos, promulgado por meio do Decreto nº 592, de 06 de julho de 1992, bem como da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – CADH (Pacto de San Jose da Costa Rica), incorporado à nossa ordem jurídica interna por meio da promulgação do Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992, nesses dois tratados de direitos humanos a audiência de custódia está expressamente assegurada. É importante destacar que tramita no Congresso Nacional, no Senado Federal, o Projeto de Lei – PLS nº 554/2011, que tem como escopo alterar o art. 306 do Código de Processo Penal (CPP), para garantir expressamente naquele código a tão falada, no momento, audiência de custódia.
Direitos Humanos
Introduçâo  Este trabalho trata da audiência de custódia e tem por objetivo difundir tal garantia, a partir da sua previsão no Direito Internacional Público, por meio de tratados em que o Brasil é signatário. Aborda o assunto em discussão, não somente do ponto de vista do Direito Internacional Público dos Direitos Humanos, mas como é previsto no Código de Processo Penal, como está sendo tratado no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal. 1. Conceito de direito internacional público Preliminarmente, antes de se adentrar à essência da discussão ora apresentada, ou seja, a audiência de custódia, é necessário que se entenda minimamente o que é o Direito Internacional Público e, neste sentido buscamos na obra do professor de Direito Internacional Público, Paulo Henrique Gonçalves Portela (2013), o seu conceito, veja-se: “O Direito Internacional Público é o ramo do Direito que regula as relações internacionais, a cooperação internacional e temas de interesse da sociedade internacional, disciplinando os relacionamentos que envolvem Estados, organizações internacionais e outros atores em temas de interesse internacional, bem como conferindo proteção adicional a valores caros à humanidade, como a paz e os direitos humanos. […]”. (Portela, 2013, p. 57). 2. Audiência de custódia como princípio fundamental do direito internacional público Da mesma forma, é imprescindível que se entenda também o que é, fundamentalmente a audiência de custódia. Esta por sua vez, consiste no fato de que, aquele que for levado à prisão deva ser ouvido sem demora, o que quer dizer: deve ser levado imediatamente à presença da autoridade judiciária competente. Deve se apresentar incontinenti ao juiz habilitado para essa finalidade. Trata-se de um princípio fundamental do Direito Internacional Público, que há muito é amparado no Direito das Gentes, tal medida é essencial para garantir que o preso seja levado ao estabelecimento penal em situação absolutamente compatível com a lei, sem que sofra qualquer tipo de violação, sobretudo a tortura, ou mesmo que não seja levado ao cárcere e sim colocado em liberdade de imediato, se assim for o caso. 3. A audiência de custódia no direito público interno No Brasil o Direito Público Interno, positivado nas leis vigentes, não regulamenta a , ressalvado o caso previsto no art. 287, do Código de Processo Penal no que pertine ao crime inafiançável, o dispositivo legal mencionado diz textualmente: “Se a infração for inafiançável, a falta de exibição do mandado não obstará à prisão, e o preso, em tal caso, será imediatamente apresentado ao juiz que tiver expedido o mandado.” Do contrário, esse preso pode ficar sem se avistar com o um juiz competente por muitos meses, o que é corriqueiro em nosso Território. Entretanto, há quem classifica essa questão de forma um pouco diferente, a exemplo do defensor público da União, especialista em Ciências Criminais, Caio Paiva, que analisando o dispositivo mencionado, diz: “Aqui, porém, não há uma audiência de custódia propriamente dita, mas apenas uma “audiência de apresentação”, cuja finalidade é menos ampla do que a daquela, eis que se limita à provar para o conduzido que contra ele havia sido expedido um mandado de prisão. (Paiva, 2015) […].” Caio Paiva, acrescenta ainda sobre a discussão ora apresentada, o entendimento de Basileu Garcia (1945), que recorda, a propósito, que o art. 287 do CPP concilia o interesse individual com o interesse social, pois: “[…] O primeiro exige “a obediência a fórmulas que resguardem de abusos o direito à liberdade”, razão pela qual “tolerando a lei a captura sem exibição do mandado nos crimes mais graves, os inafiançáveis, determina seja o preso imediatamente conduzido à presença do magistrado que haja ordenado a prisão” (GARCIA, 1945, p. 36). 4. A audiência de custódia nos tratados dos quais o brasil é signatário Ante essa breve exposição, não há como dissociar a audiência de custódia do Direito Internacional Público dos Direitos Humanos, haja vista que o Brasil é signatário do Pacto de Direitos Civis e Políticos, promulgado por meio do Decreto nº 592, de 06 de julho de 1992, que reconhece a todos os membros da família humana direitos iguais e inalienáveis, constituindo a dignidade da pessoa humana o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Nesse mesmo entendimento, o item 3 do Artigo 9 do referido Pacto, estabelece que: “3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença. […]” De igual forma, este país é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – CADH (Pacto de San Jose da Costa Rica), incorporado à nossa ordem jurídica interna por meio da promulgação do Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992, que antes, neste particular, cumpriu todos os pontos exigidos pelo processo legislativo, que traz igual determinação no item 5 do seu Artigo 7 que trata do Direito à Liberdade Pessoal, ipsis litteris: “5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. […].” Assim, é de fácil entendimento as normas constantes dos Tratados Internacionais mencionados, que são de clareza inquestionável, ao orientar que o detido deve ser conduzido sem demora à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais. 5. O que diz o congresso nacional acerca da audiência de custódia É importante destacar que está em trâmite no Congresso Nacional, especialmente na casa representativa dos Estados-membros, ou seja, no Senado Federal, o Projeto de Lei – PLS nº 554/2011, de iniciativa do senador Antônio Carlos Valadares, que tem como escopo alterar o art. 306 do Código de Processo Penal (CPP), instituindo a obrigatoriedade de que todos os presos sejam apresentados ao magistrado competente no prazo de 24 horas após sua prisão, conforme consta literalmente do art. 1º, § 1º, do Projeto em referência, in verbis: “Art. 1º O § 1º do art. 306 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 306. (sic) § 1º No prazo máximo de vinte e quatro horas depois da prisão, o preso deverá ser conduzido à presença do juiz competente, ocasião em que deverá ser apresentado o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.” […]. O projeto em referência, é de 2011, todavia, estamos em 2015, lamentavelmente o processo legislativo no Brasil, quando não interessa aos anseios gerais e pessoais dos parlamentares, é tão moroso quanto o processo judicial, celeridade mesmo só quando está em pauta proposições do tipo auxílio moradia, inclusive aos magistrados, membros do Ministério Público e financiamento de passagens aéreas para os cônjuges dos legisladores, basta observar o tempo recorde que esse benefício foi aprovado na Câmara dos Deputados recentemente, que, graças a pressão da sociedade foi, pelo menos, por enquanto impedido de entrar em vigor. Diante da inércia do Congresso Nacional frente ao projeto de autoria do diligente senador Antônio Carlos Valadares, só resta-nos cumprir os Tratados Internacionais acerca da matéria ora em discussão. 6. Como a constituição de 1988 classifica os tratados internacionais, em especial os de direitos humanos Ainda sobre o tema, é salutar destacar o que nos ensina o estudioso do Direito Internacional Público, Paulo Henrique Gonçalves Portela (2013), que em sua obra assim se manifesta acerca da obrigatoriedade dos tratados na ordem jurídica nacional, senão vejamos: “O tratado promulgado incorpora-se ao ordenamento jurídico brasileiro e, dessa forma, reveste-se de caráter vinculante, conferindo direitos e estabelecendo obrigações, podendo ser invocado pelo Estado e por particulares para fundamentar pretensões junto aos órgãos jurisdicionais e, por fim, pautando a conduta de todos os membros da sociedade. Como parte da ordem interna, o descumprimento das normas do tratado enseja a possibilidade de sanções previstas no próprio Direito brasileiro. Como parte de um ordenamento, o tratado é colocado em algum nível de hierarquia normativa, de acordo com o que cada Estado decida a respeito. No Brasil, o tratado recebe, em princípio, o status de lei ordinária. Há também a possibilidade de que seja conferido caráter de emenda constitucional às normas internacionais de direitos humanos, nos casos do art. 5º, § 3º, da CF. Existem também entendimentos de que os tratados de direitos humanos têm status supralegal ou mesmo constitucional. […].” Já a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 consagrou a autoridade do tratado em face da lei nacional, fato facilmente comprovado quando em seu art. 27, determina que: “uma parte não pode invocar as disposições do seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado.” O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), conjuntamente com o Ministério da Justiça, bem como o Tribunal de Justiça de São Paulo, conforme noticiado recentemente por meio da mídia nacional, têm discutido a necessidade da implantação da audiência de custódia no Brasil, cuja discussão já toma proporções em todo o território nacional, a exemplo do que ocorreu recentemente em Teresina-Piauí, por ocasião das visitas do diretor geral do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, Renato De Vitto, ao Sistema Prisional piauiense, em que conjuntamente com o secretário de Justiça, Daniel Oliveira, reuniram-se com o corregedor geral do Tribunal de Justiça do Piauí, des. Sebastião Ribeiro Martins e outros magistrados para discutir a instalação da tão falada audiência de custódia. 7. A necessária e imprescindível mobilização do judiciário na implementação da audiência de custódia A discussão foi amplamente realizada na OAB-PI, por ocasião da visita da Comissão Nacional de Acompanhamento e Fiscalização do Sistema Carcerário (COASC) do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que fizeram audiência pública sobre o Sistema Penitenciário, inclusive, após visitas a estabelecimentos penais no Estado, dentre outras situações nos estabelecimentos penais do Estado foi constatado o alto índice de presos provisórios, que ultrapassa a média nacional, fato que tem direta relação com a não implementação da audiência de custódia. Em seguida, por ocasião do 68º – Encontro do Colégio Permanente de Corregedores-Gerais dos Tribunais de Justiça do Brasil (ENCOGE), ocorrido na Cidade de Teresina-Piauí, nos dias 25, 26 e 27 de março de 2015, este, dentre suas deliberações, resolveu por manifestar integral apoio às iniciativas de implementação e normatização das audiências de custódia como forma de política pública de controle do ingresso de presos no sistema carcerário e garantia dos direitos constitucionais do preso. Não podemos regredir à intensa e crescente tendência de internacionalização do exercício dos direitos humanos, assim tem sido com o tratamento que o STF deu à prisão civil do depositário infiel, bem como ao cumprimento do princípio da presunção de não culpabilidade, dentre outros. Pois, na América Latina, países como Peru, México, Argentina, Chile e Colômbia já adotam a audiência de custódia, nesses países o cidadão que é levado à prisão tem que se apresentar num curto espaço de tempo ao juiz competente, o que em regra demora entre 24 e 36 horas. Esse é mais um momento especial para se analisar o Direito Internacional dos Direitos Humanos face ao Direito Interno brasileiro e/ou à sua omissão no que diz respeito à audiência de custódia, levando-se em consideração o disposto no art. 5º, § 2º, da CRFB/1988, que literalmente assegura: “Os direitos e garantias previstos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Tal dispositivo constitucional nos diz que o leque de direitos fundamentais não é exaustivo, porque amplia assim o rol dos direitos e garantias constitucionais por meio dos tratados em que o Brasil seja signatário. 8. Precedente do stf garante a aplicação da audiência de custódia Deve-se considerar ainda acerca dessa temática, as decisões análogas do Supremo Tribunal Federal (STF), em especial o Recurso Extraordinário nº 466.343-1/São Paulo em que foi Relator o ministro Cezar Peluso, nesta ocasião, pede-se vênia para transcrever parte do voto do ministro Gilmar Mendes: “Assim, a premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos interno e internacional torna imperiosa uma mudança de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre direitos na ordem jurídica nacional. É necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano. […]. De qualquer forma, o legislador constitucional não fica impedido de submeter o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San Jose da Costa Rica, além de outros tratados de direitos humanos, ao procedimento especial de aprovação previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição, tal como definido pela EC n° 45/2004, conferindo-lhes status de emenda constitucional.” Ademais, o entendimento do STF como se ver, vai ainda mais além do previsto para esses tratados de direitos humanos em discussão, que atualmente têm status supralegal no Brasil, mas podendo a critério do legislador brasileiro, submetê-los ao procedimento previsto no art. 5º, § 3º, da CRFB/1988 em que diz: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que foram aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Com os mesmos argumentos constantes do voto do ministro Gilmar Mendes no Recurso Extraordinário nº 466.343-1, do STF, por tratar-se de situação, a nosso ver, análoga àquela que discutiu a prisão do depositário infiel, entendemos que a audiência de custódia está plenamente em harmonia com o ordenamento jurídico brasileiro, haja vista o que dispõem os Decretos oriundos da Presidência da República Federativa do Brasil anteriormente mencionados, que incorporaram ao Direito Público Interno o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica). Conclusão Portanto, acreditamos que o Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da Justiça têm toda garantia legal para implementar esse importante mecanismo de cidadania denominado audiência de custódia, que, indubitavelmente colaborará para dentre outras coisas, reduzir a superlotação carcerária, a violação dos direitos fundamentais, o sofrimento dos encarcerados pelas razões já amplamente conhecidas no Sistema Prisional do país, a partir, inclusive, da morosidade relacionada ao atendimento processual ao preso, principalmente para encontrar-se com o juiz competente do seu processo. Contribuirá decisivamente para que os profissionais da segurança pública atuem de forma mais transparente e submetidos ao controle social mais eficaz, o que ajudará a esses profissionais a exigir e a receber uma melhor valorização no seu mister profissional. Sem falar na redução do estresse dos agentes penitenciários, principais executores da pena privativa de liberdade, que receberão menos presos nos estabelecimentos penais, por conseguinte melhor desempenharão suas funções. Assim, a audiência de custódia deve ser considerada como uma importantíssima hipótese de franco acesso à jurisdição penal, pois trata-se indubitavelmente, como já do conhecimento dos profissionais do direito, de uma das garantias da liberdade pessoal que se traduz em obrigações positivas a cargo do Estado. Seu êxito está condicionado essencialmente à vontade do Estado-juiz, pois deste depende sua execução.
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Direitos da pessoa com deficiência e possíveis descumprimentos de tratados internacionais
Dentre a série de normas internacionais editadas sobre direitos humanos, ressalta-se a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Brasil em 2009, com status de Emenda Constitucional. Essa norma introduziu a visão social para fins de definição do que vem a ser deficiência. Entretanto, a principal norma brasileira – Decreto 3298, de 1999- que ainda hoje rege os concursos públicos em todo o país, no que tange à análise da condição do candidato a tais vagas, mantém a antiga visão biomédica da deficiência, suprimindo direitos e fomentando uma crescente judicialização, decorrente do conflito entre normas. O objetivo geral deste estudo é demonstrar a ocorrência do conflito entre normas, indicativo da necessidade de fazer valer aquela mais recente, de superior hierarquia normativa.[1]
Direitos Humanos
Introdução O objetivo desta pesquisa é demonstrar a ocorrência de possíveis descumprimentos de norma internacional em vigor no Brasil, tendo como foco específico os direitos da pessoa com deficiência que pretenda concorrer às vagas a ela reservadas nos concursos públicos. O tema foi selecionado em razão da experiência que o autor vivencia neste momento, justificando-se também pela constatação de profundas divergências entre o Decreto 3298, de 20 de dezembro de 1999 – alterada pelo Decreto 5296, de 02 de dezembro de 2004 – que ainda hoje rege os citados certames, e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Brasil em 2009, com status de Emenda Constitucional, nos moldes do parágrafo 3º. Do art. 5º. Da Constituição Federal, cujo teor mudou e ampliou a visão sobre o tema. Tal conflito normativo gera insegurança jurídica e suprime direitos, fomentando uma judicialização plenamente evitável, desde que observado o Princípio da Legalidade Estrita, segundo o qual a administração pública só pode fazer o que consta da lei. Não cabendo, em decorrência, interpretações que se desviem do texto da lei supra referida. No primeiro capítulo, apresento um breve histórico da origem dos direitos humanos; em seguida, analiso alguns conceitos fundamentais sobre o tema central. No segundo, faço um cotejamento entre as referidas normas, seguido do relato da minha expediência pessoal nesta seara. Finalmente, no terceiro capítulo apresento o entendimento da recente jurisprudência, face à crescente judicialização dos impasses surgidos. I Breve histórico e análise conceitual 1.1 Breve histórico As ciências humanas e sociais oferecem um vasto conjunto de informações destinadas a mostrarem ao homem atual os caminhos pelos quais trilharam os antepassados, na direção da sociedade moderna, mormente no que tange a suas conquistas e seus direitos. Diante da amplitude do tema, faz-se indispensável a este trabalho uma delimitação, apresentando ao leitor alguns dos conceitos e institutos relacionados aos pontos principais que aqui serão abordados. Tal detalhamento objetiva oportunizar ao interessado, ainda que resumidamente, conhecer do significado dos tratados internacionais e da sua internalização na seara jurídica nacional, além da conceituação do que se entende por deficiência física e da referência aos direitos das pessoas com deficiência para, somente então, adentrarmos no cotejamento entre as normas alienígenas internalizadas e as de nascedouro pátrio. A conscientização mundial sobre os direitos humanos não se deu de maneira instantânea, intuitiva. É fato relativamente recente e está em permanente evolução. No curso dessa evolução é que se deu um atentar mais consistente para a pessoa com deficiência, marcada por discriminações e exclusões que remontam a longínquas datas, a distantes momentos da vida humana. Segundo Damasceno, “Em vários momentos essa visão excludente e preconceituosa chegou inclusive a ser positivada na legislação de alguns povos, como, por exemplo, no Código indiano de Manu (1500 a.C.), onde as pessoas com deficiência eram proibidas de suceder, tal como determinado em seu art. 612: “os eunucos, os homens degradados, os cegos, surdos de nascimento, os loucos, idiotas, mudos e estropiados, não serão admitidos a herdar”.[2] Palumbo tem a seguinte visão sobre o assunto: “A discriminação das pessoas com deficiência existe desde as civilizações antigas. Porém, com a positivação da dignidade da pessoa humana como um valor jurídico a ser protegido, o que ocorreu logo após a segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional passou a buscar respostas às atrocidades produzidas nas grandes guerras, dando ensejo a um sistema global de proteção aos direitos humanos”.[3] De fato, o que se constata é que o Pós Guerra revelou-se um período de avanços muito significativos na defesa dos direitos humanos, trazendo consigo ações decisivas para o reconhecimento e adoção de políticas em relação aos direitos dos deficientes. Esclarecendo a causa dessa salutar mudança de paradigma, acrescenta Damasceno: “[…] após o término da Segunda Guerra Mundial, a sociedade deparou-se com o problema de milhares de soldados vítimas de deficiências ocasionadas pelos combates. Com o fim da Guerra por volta de 1945, os soldados mutilados retornaram para seus lares como heróis e, cientes de tal condição, passaram a exigir serviços de reabilitação, infra-estrutura e acessibilidade das cidades para sua integração”.[4] Para Joaquín Herrera Flores (apud Piovesan, 2006, p.08) “[…] os direitos humanos compõem uma racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana.” Vale dizer, o direito do portador de deficiência existe antes mesmo de reconhecidos e outorgados pelo Estado. Esta, em verdade, é uma concepção de direitos humanos contemporânea, trazida a lume pela Declaração Universal de 1948, reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena, em 1993. Sobre o assunto, assim entende Piovesan (2006, p.8): “Essa concepção é fruto da internacionalização dos direitos humanos, que constitui um movimento extremamente recente na história,surgindo a partir do Pós-Guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Apresentando o Estado como grande violador de direitos humanos, a Era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa humana.” Prossegue Piovesan (2006, p.09), ressaltando que “É nesse cenário que se vislumbra o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea.” Piovesan destaca as grandes mudanças ocorridas nessa fase da história. Segundo a autora (2006, p.10) o esforço realizado no Pós-Guerra no sentido de reconstruir os fundamentos dos direitos humanos provocou “a emergência do Direito Internacional dos Direitos Humanos”, trazendo consigo (2006, p.11) “a emergência da nova feição do Direito Constitucional ocidental, aberto a princípios e a valores, com ênfase no valor da dignidade humana”. Canotilho (apud Piovesan, 2006,p.12) acrescenta: “Os direitos humanos articulados com o relevante papel das organizações internacionais fornecem um enquadramento razoável para o constitucionalismo global. […] É como se o Direito Internacional fosse transformado em parâmetro de validade das próprias Constituições nacionais (cujas normas passam a ser consideradas nulas se violadoras das normas do jus cogens internacional).” A relevância mundialmente atribuída à atuação dos organismos internacionais, na dinâmica do tema ora estudado, recomenda que elenquemos os diplomas que sobre ele versaram, chegando ao momento atual: Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948: dignidade humana é proclamada como valor fundamental, passando a sociedade, a partir de então, a criticar o modelo de isolamento das pessoas com deficiência. A propósito desse diploma, opina Gugel (2006, p.54): “É consenso que a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) constitui-se no marco da nova concepção mundial sobre o direito de se ter oportunidades, propondo como ideal comum, a ser atingido por todos os povos e todas as nações, que cada indivíduo e cada órgão da sociedade se esforce para promover o respeito aos direitos e liberdades. Entre eles o direito de trabalhar e viver sem ser alvo de humilhações, violência, agressões, desrespeito, perseguições e discriminação.” Recomendação nº 99 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1955: trata da reabilitação das pessoas deficientes. Declaração (ONU) dos Direitos do Retardado Mental, de 1971: afirmação de que as pessoas com deficiência intelectual devem gozar dos mesmos direitos que os demais seres humanos; Declaração (ONU) dos Direitos das Pessoas Deficientes, de 1975: pessoas deficientes gozam dos mesmos direitos civis e políticos, econômicos, sociais e culturais que os demais seres humanos; Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 1976: proclamou o ano 1981 como o Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD); Declaração da Assembléia Geral da Onu da Década das Nações Unidas para as Pessoas com Deficiência (1983/1992): finalidade de executar ações do Programa de Ação Mundial relativo a Pessoas com Deficiência, baseado no seguinte tripé: prevenção, reabilitação e equiparação de oportunidades; Convenção OIT nº 159, da “Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes”, de 1983: informa Maria Aparecida Gurgel (2006, p. 59), dando conta de que tal documento objetivava a reabilitação profissional da pessoa com deficiência, levando-a a obter e conservar um emprego digno, além de induzir os Estados a implementarem políticas de igualdade para os trabalhadores com deficiência devidamente reabilitados; Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1978: ratificada pelo Brasil em 1992, é conhecida por Pacto de São José da Costa Rica; define os direitos humanos que os Estados ratificantes se comprometam internacionalmente a respeitar, configurando verdadeira garantia de respeito a esses direitos; Convenção Interamericana para eliminação de todas as formas de Discriminação contra as pessoas Portadoras de Deficiência, de 1999: conhecida por Convenção de Guatemala, foi o primeiro documento regional que assumi o caráter vinculante no tocante aos direitos das pessoas com deficiência; Classificação Internacional de Funcionalidade, Deficiência e Saúde, de 2001: trata-se do resultado da revisão, pela OMS, d seu critério de classificação internacional sobre o tema da deficiência. Conforme Damasceno: “Esta classificação traz uma alteração substancial relativamente à classificação anterior, a qual era pautada no critério biomédico. Passa a usar o termo “deficiência” para expressar o fenômeno multidimensional resultante da interação entre as pessoas e seus ambientes físicos e sociais, ou seja, adota de forma explícita o modelo social de deficiência.” [5] Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2006: conhecida por Convenção de Nova York sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência; diploma que, juntamente com seu Protocolo Facultativo foi assinado em março de 2008. Ratificado pelo Congresso Nacional Brasileiro através do Decreto Legislativo n.º 186/2008, promulgado através do Decreto n.º 6.949, de 25 de agosto de 2009. A respeito da citada Convenção, afirma Damasceno: “Um ponto importante a ser destacado é que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi a primeira convenção internacional sobre direitos humanos a ser incorporada com status de Emenda Constitucional, uma vez que seguiu os termos do novo §3º, do art. 5º, do texto constitucional de 1988”.[6] Para Maria Aparecida Gugel (2006,p.6), “O primeiro fundamento da ordem jurídica é o Direito Natural. Direito que decorre da natureza das coisas. Engloba os direitos humanos fundamentais, ou seja, aqueles que são condição de existência da pessoa humana”. Pensamento que Gugel (2006, p.11) complementa da seguinte maneira: “Em relação aos direitos humanos fundamentais, nos quais se incluem aqueles dos portadores de deficiência, não é o Estado que os outorga, mas apenas os reconhece como ínsitos à pessoa humana. Assim, em relação a esses direitos, não há que falar em natureza constitutiva do direito de declarações, como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), formulada na Revolução Francesa e a declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), formulada pela ONU. Daí se percebe a natureza declaratória desses atos, reconhecendo algo que preexiste ao Estado”. Nesse contexto evolutivo, o Brasil, enquanto membro de vários organismos internacionais, participa, vota, decide e internaliza conceitos e posturas relativas a direitos humanos e pessoas com deficiências. Tais direitos se consolidam no arcabouço jurídico representado pela Constituição Federal de 1988, seguida de normas internacionais internalizadas a partir da apreciação e aprovação pelo legislador pátrio, conforme salienta Maria Aparecida Gurgel (2006, p.53): “Os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem os tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (5º, § 2º). Portanto, os tratados e convenções internacionais, definitivamente analisados e resolvidos pelo Congresso Nacional na forma de decreto legislativo, com ratificação presidencial por meio de decreto, passam a integrar nosso sistema jurídico com eficácia plena”. Prossegue a autora, qualificando o atual papel da norma alienígena inserida no contexto normativo nacional: “A alteração produzida pela Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, ao acrescentar o § 3º, ao artigo 5º da Constituição, destaca o novo valor dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, equivalendo-os às emendas constitucionais, desde que aprovados, seguindo o rito de proposta a emenda constitucional (Art. 60, § 2º), em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros.” Seguindo os passos evolutivos das nações do chamado primeiro mundo, o Brasil vem, ao longo das últimas décadas, de forma consistente e por vezes bastante arrojada, modernizando seus diplomas legais. Essa modernização se dá por duas vias: a primeira, pela criação de normas jurídicas internas, editadas em respostas às demandas sociais que ganhem repercussão judicial e/ou a atenção do legislador pátrio, via de regra, após a adesão de segmentos com forte visibilidade; a segunda, pela internalização de normas emanadas em sede de acordos multinacionais, dos quais o Brasil tenha participado ou aos quais opte por aderir. Segundo Maria Aparecida Gugel (2006, p.25), as mudanças em relação aos vocativos empregados para fazer referência ao portador de deficiência refletem não somente a influência das normas alienígenas internalizadas, mas também uma considerável participação da sociedade: “Ao longo do tempo termos como aleijado, inválido, incapacitado, defeituoso, desvalido (Constituição de 1934), excepcional (Constituição de 1937 e Emenda Constitucional n. 1 de 1969) e pessoa deficiente (Emenda Constitucional 12/78) foram usados (e ainda são, infelizmente!) para designar a pessoa com deficiência. Continham em sua essência, o preconceito de que se tratavam de pessoas sem qualquer valor, socialmente inúteis e dispensáveis do cotidiano social e produtivo. A principal preocupação do Estado, refletida na consciência da sociedade, era o amparo por comiseração e a assistência como proteção dessas pessoas, reunidas em grupos de iguais, apartados do contexto comum e institucionalizados. Essas terminologias foram sendo alteradas por exigência e pressão constante dos movimentos sociais.” Constata-se que a mais recente definição de deficiência física acha-se declinada no teor do Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009, o qual promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. A letra dessa lei é de absoluta relevância, porquanto representa, a nosso ver, o principal fundamento dos direitos dos portadores de deficiência, interesse maior deste estudo: “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.” A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência ampliou o enfoque, ultrapassando a visão meramente biomédica. Na avaliação de Diniz, “O conceito de deficiência, segundo a Convenção, não deve ignorar os impedimentos e suas expressões, mas não se resume a sua catalogação. Essa redefinição da deficiência como uma combinação entre uma matriz biomédica, que cataloga os impedimentos corporais, e uma matriz de direitos humanos, que denuncia a opressão, não foi uma criação solitária da Organização das Nações Unidas. Durante mais de quatro décadas, o chamado modelo social da deficiência provocou o debate político e acadêmico internacional sobre a insuficiência do conceito biomédico de deficiência para a promoção da igualdade entre deficientes e não deficientes.”[7] O modelo social de definição do que seja deficiência, trazido pela Convenção internalizada no Brasil em 2009, carreou novas idéias a respeito do tema. Segundo Cesar Augusto Baldi (2009), a Convenção “procura conjugar o antigo modelo biomédico de deficiência, vinculado às lesões que incidiam sobre o corpo, reforçando a estigmatização, com o modelo social, vinculado às práticas e estruturas excludentes da sociedade”.[8] No entender de Baldi, o texto ali convencionado modifica o conceito introduzido pela Convenção Interamericana de 1999, estabelecendo nova ótica de leitura para a própria Constituição brasileira, que até então utilizava a expressão “portador de deficiência”, além de tornar inválida toda norma infraconstitucional que seja com ela incompatível. Afinado com o pensamento acima citado, Celso Duvivier de Albuquerque Mello tece o seguinte questionamento: “Qual o valor de um tratado se um dos contratantes por meio de lei interna pode deixar de aplicá-lo?” (2000, p.119). A respeito do modelo social da conceituação de deficiência, acrescenta Diniz (2009): “Com o modelo social, a deficiência passou a ser compreendida como uma experiência de desigualdade compartilhada por pessoas com diferentes tipos de impedimentos: não são cegos, surdos ou lesados medulares em suas particularidades corporais, mas pessoas com impedimentos, discriminadas e oprimidas pela cultura da normalidade. Assim como há uma diversidade de contornos para os corpos, há uma multiplicidade de formas de habitar um corpo com impedimentos. Foi nessa aproximação dos estudos sobre deficiência dos estudos culturalistas que o conceito de opressão ganhou legitimidade argumentativa: a despeito das diferenças ontológicas impostas por cada impedimento de natureza física, intelectual ou sensorial, a experiência do corpo com impedimentos é discriminada pela cultura da normalidade. O dualismo do normal e do patológico, representado pela oposição entre o corpo sem e com impedimentos, permitiu a consolidação do combate à discriminação como objeto de intervenção política, tal como previsto pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.”[9] O normativo em tela tem raiz constitucional. Sua essência guarda consonância com mandamentos da Carta Magna no tocante a proteção de direitos fundamentais. Gurgel (2009, p.45) esclarece: “Compreender a aparente dicotomia entre o princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei e o tratamento diferenciado que a própria Constituição da República confere às pessoas com deficiência é fundamental para a eficácia e aplicabilidade das normas que lhes são dirigidas. O tratamento diferenciado está evidenciado, entre outros direitos de ordem social, na reserva de cargos e empregos públicos para pessoas com deficiência prevista no artigo 37, VIII da Constituição[…]” A autora complementa seu raciocínio (p.49): “A discriminação positiva em favor das pessoas com deficiência está em perfeita consonância com os objetivos fundamentais estabelecidos na Constituição que impõe a ação positiva do Estado de erradicar a pobreza, a marginalização, reduzir as desigualdades sociais, regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (3º, III e IV), oferecendo meios institucionais diferenciados para o acesso de grupos de excluídos do sistema e, portanto, viabilizar-lhes o gozo e o exercício de direitos fundamentais, alcançando, assim, a ‘igualdade real’.” Concluindo a sua exposição acima, Gurgel esclarece os fundamentos que justificam a existência do Decreto 3298/99 (p.49): “Nesse contexto, a Constituição amálgama, para as pessoas com deficiência, o direito à isonomia, estabelecendo que o acesso aos cargos, empregos e funções públicas da administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e Municípios é de todos os brasileiros e estrangeiros e, sua investidura depende de aprovação prévia em concurso público, delegando à lei a fixação de reserva de cargos e empregos públicos para pessoas portadoras de deficiência.” Em decorrência da política adotada pelo Estado brasileiro, temos que empresas públicas nacionais, no tocante ao acesso às vagas reservadas para pessoas com deficiências aprovadas em concursos públicos, agem baseadas em lei infraconstitucional em vigor, a saber, o Decreto 3298/99. Os referidos certames, que impõem a observância do teor do citado decreto, via de regra, informam que além das regras nele contidas hão de serem observadas as suas alterações, como o Decreto 5296, de 02 de dezembro de 2004. Todavia, a rigor é a lei mencionada que baliza todo e qualquer certame envolvendo pessoas com deficiências. Deficiência é assim definida pelo Decreto 3298/99: “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade dentro do padrão considerado normal para o ser humano”. Do teor da lei já se depreende o enfoque biomédico que orienta a avaliação da deficiência. Assim define o decreto a pessoa portadora de deficiência: “Art. 4º É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias: I – deficiência física – alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções; II – deficiência auditiva – perda parcial ou total das possibilidades auditivas sonoras, variando de graus e níveis na forma seguinte: a) de 25 a 40 decibéis (db) – surdez leve; b) de 41 a 55 db – surdez moderada; c) de 56 a 70 db – surdez acentuada; d) de 71 a 90 db – surdez severa; e) acima de 91 db – surdez profunda; e f) anacusia; III – deficiência visual – acuidade visual igual ou menor que 20/200 no melhor olho, após a melhor correção, ou campo visual inferior a 20º (tabela de Snellen), ou ocorrência simultânea de ambas as situações; IV – deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: a) comunicação; b) cuidado pessoal; c) habilidades sociais; d) utilização da comunidade; e) saúde e segurança; f) habilidades acadêmicas; g) lazer; e h) trabalho; V – deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências.” Os concursos públicos, quando oferecem vagas para pessoas com deficiência, determinam que os candidatos a tais vagas deverão, no ato da inscrição para o certame, enviar laudo médico que comprove a alegada deficiência, laudo este contendo uma série de especificidades. Conforme esclarece Gurgel (2009, p.100): “No ato da inscrição será exigido do candidato com deficiência o laudo médico, atestando a espécie e o grau da deficiência, com expressa referência ao código correspondente da CID e a provável causa da deficiência. A comprovação da deficiência justifica-se uma vez que o candidato concorrerá, se for sua livre opção, às vagas reservadas destinadas exclusivamente às pessoas com deficiência.” Também constará do Edital, invariavelmente, a obrigação do candidato aprovado e classificado de se submeter a uma avaliação por equipe multidisciplinar, a qual irá confirmar ou não a condição de pessoa com deficiência. Tal avaliação decidirá, finalmente, pela existência ou não da deficiência, bem como se a deficiência é ou não impeditiva do exercício do cargo para o qual o candidato se inscreveu. E qual a justificativa para se promover uma discriminação positiva em relação à pessoa com deficiência? Valemo-nos das palavras de Gurgel (2009, p.52): “A reserva de cargos e empregos públicos na administração pública direta e indireta é uma forma de discriminação positiva e um meio para que a pessoa com deficiência recupere o tempo de exclusão, eis que participará do concurso público, observadas as necessárias adaptações no modo em que o prestará em face de deficiência declarada, em igualdade de condições com os demais candidatos, quanto ao conteúdo das provas, à avaliação, aos critérios de aprovação, ao horário, ao local de aplicação das provas e à nota mínima exigida para todos os demais candidatos.” Em todo o território nacional, os Editais informam qual a legislação que orienta a avaliação supra referida, para fins de acesso às vagas reservadas às pessoas com deficiência, a saber, o Decreto 3298/99, alterado pelo Decreto 5296/04. A jurisprudência, por seu turno, é unânime no entender que o Edital faz lei entre as partes. Entretanto, o que ocorre na prática, é que tem-se tomado por norte o rol declinado no inciso I do art 4º., transcrito acima. De tal forma que o citado rol é, muitas vezes, considerado taxativo, levando a negativas de enquadramento e exclusões de aprovados no concurso, sob justificativa de inexistência da alegada deficiência. Com relação à taxatividade do rol discriminado no citado inciso, temos que a jurisprudência condena a sua supervalorização, como se percebe no julgado abaixo: “ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. PORTADOR DE DEFICIÊNCIA. DEFINIÇÃO. ROL NÃO EXAUSTIVO. 1. O Decreto 3.298/99 deve ser interpretado à luz da norma que regulamenta, qual seja, a Lei nº 7.853/89, que assegura igualdade de oportunidade às pessoas portadoras de deficiência, bem como tratamento prioritário tendente a viabilizar sua inserção no mercado de trabalho, sem fazer maiores distinções acerca das deficiências. Dessa forma, não caberia ao decreto determinar restrições que fossem de encontro ao espírito da norma legal, razão pela qual se impõe a leitura do inciso I do art. 4º do Decreto nº 3.298/99 como rol não exaustivo.(grifo nosso) 2. Corroboram tal entendimento os seguintes itens do referido decreto: inciso I do art. 3º – considera deficiência toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano, e primeira parte do inciso I do art. 4º – enuncia deficiência física como alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física […]. 3. A deficiência da autora, Distonia por Tarefa -Específica (câimbra ou mal dos escrivães e músicos), a impede, conforme perícia judicial, de realizar a escrita normal ou convencional com caneta ou lápis, o que compromete sua capacidade para o desempenho de atividade dentro do padrão considerado normal para o ser humano. Logo, nos termos das normas supracitadas, a autora está apta a concorrer às vagas destinadas aos portadores de deficiência física. 4. Além disso, Projeto de Lei em curso no Senado acrescenta dispositivos à Lei nº 7.853/89, para incluir as definições de deficiência e estabelecer que a síndrome do escrivão constitui modalidade de deficiência física. 5. •O trânsito em julgado é condição sine qua non para nomeação de candidato cuja permanência em concurso público foi garantida por meio de decisão judicial. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. PORTADOR DE DEFICIÊNCIA. DEFINIÇÃO. ROL NÃO EXAUSTIVO. 1. O Decreto 3.298/99 deve ser interpretado à luz da norma que regulamenta, qual seja, a Lei nº 7.853/89, que assegura igualdade de oportunidade às pessoas portadoras de deficiência, bem como tratamento prioritário tendente a viabilizar sua inserção no mercado de trabalho, sem fazer maiores distinções acerca das deficiências. Dessa forma, não caberia ao decreto determinar restrições que fossem de encontro ao espírito da norma legal, razão pela qual se impõe a leitura do inciso I do art. 4º do Decreto nº 3.298/99 como rol não exaustivo. 2. Corroboram tal entendimento os seguintes itens do referido decreto: inciso I do art. 3º – considera deficiência toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano, e primeira parte do inciso I do art. 4º – enuncia deficiência física como alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física […]. 3. A deficiência da autora, Distonia por Tarefa – Específica (câimbra ou mal dos escrivães e músicos), a impede, conforme perícia judicial, de realizar a escrita normal ou convencional com caneta ou lápis, o que compromete sua capacidade para o desempenho de atividade dentro do padrão considerado normal para o ser humano. Logo, nos termos das normas supracitadas, a autora está apta a concorrer às vagas destinadas aos portadores de deficiência física. 4. Além disso, Projeto de Lei em curso no Senado acrescenta dispositivos à Lei nº 7.853/89, para incluir as definições de deficiência e estabelecer que a síndrome do escrivão constitui modalidade de deficiência física. 5. •O trânsito em julgado é condição sine qua non para nomeação de candidato cuja permanência em concurso público foi garantida por meio de decisão judicial (STJ, AgRg no REsp 1074862/SC). Precedentes do STF: RMS 23.820-DF e RMS 23.692-DF. 6. Remessa e apelação da União parcialmente providas.” (TRF-2 – REEX: 200851010200547, Relator: Desembargador Federal LUIZ PAULO DA SILVA ARAUJO FILHO, Data de Julgamento: 17/10/2012, SÉTIMA TURMA ESPECIALIZADA, Data de Publicação: 31/10/2012) De sorte que, embora guarde a essência da ação afirmativa, cujo objetivo maior é a proteção dos direitos reconhecidos às pessoas com deficiência, temos que o Decreto 3298/99 se revela inadequado, demandando a interpretação jurisprudencial que realinhe a sua aplicabilidade à pretensão do legislador, mormente para frear injustiças decorrentes da impropriedade de se considerar exaustivo o rol de limitações apresentado no inciso I do artigo 4º. Do Decreto 3298/99. 2.2 A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência: a visão social Para esclarecer o significado da nova conceituação de deficiência, Diniz (2009) esclarece: “[…] o modelo biomédico afirmava que a experiência de segregação, desemprego, baixa escolaridade, entre tantas outras variações da desigualdade, era causada pela inabilidade do corpo com impedimentos para o trabalho produtivo”.[10] Prossegue a autora: “O modelo social da deficiência, ao resistir à redução da deficiência aos impedimentos, ofereceu novos instrumentos para a transformação social e a garantia de direitos. Não era a natureza quem oprimia, mas a cultura da normalidade, que descrevia alguns corpos como indesejáveis. Essa mudança de causalidade da deficiência, deslocando a desigualdade do corpo para as estruturas sociais, teve duas implicações. A primeira foi a de fragilizar a autoridade dos recursos curativos e corretivos que a biomedicina comumente oferecia como única alternativa para o bem-estar das pessoas com deficiência. A segunda implicação foi a de que o modelo social abriu possibilidades analíticas para uma redescrição do significado de habitar um corpo com impedimentos. O drama privado e familiar da experiência de estar em um corpo com impedimentos provocava os limites do significado do cuidado na vida doméstica, muitas vezes condenando as pessoas com maior dependência ao abandono e ao enclausuramento. Ao denunciar a opressão das estruturas sociais, o modelo social mostrou que os impedimentos são uma das muitas formas de vivenciar o corpo. A tese central do modelo social permitiu o deslocamento do tema da deficiência dos espaços domésticos para a vida pública”.[11] O conceito culturalista, que apontava para a constatação da existência de uma cultura da normalidade e seus perniciosos efeitos, são destacados por Diniz: “Com o modelo social, a deficiência passou a ser compreendida como uma experiência de desigualdade compartilhada por pessoas com diferentes tipos de impedimentos: não são cegos, surdos ou lesados medulares em suas particularidades corporais, mas pessoas com impedimentos, discriminadas e oprimidas pela cultura da normalidade. Assim como há uma diversidade de contornos para os corpos, há uma multiplicidade de formas de habitar um corpo com impedimentos. Foi nessa aproximação dos estudos sobre deficiência dos estudos culturalistas que o conceito de opressão ganhou legitimidade argumentativa: a despeito das diferenças ontológicas impostas por cada impedimento de natureza física, intelectual ou sensorial, a experiência do corpo com impedimentos é discriminada pela cultura da normalidade. O dualismo do normal e do patológico, representado pela oposição entre o corpo sem e com impedimentos, permitiu a consolidação do combate à discriminação como objeto de intervenção política, tal como previsto pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência”.[12] Para Baldi (2009) a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é marcada por algumas características importantes: “a) ao contrário da “Convenção Interamericana para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência”, incorporada pelo Decreto Legislativo 198/2001, as disposições procuram ter em conta as “formas múltiplas ou agravadas de discriminação por causa de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de outra natureza, origem nacional, étnica, nativa ou social, propriedade, nascimento, idade ou outra condição” (prêambulo, letra “p”), do que se seguiu a normatização específica para estas situações de discriminação (por exemplo, previsões para mulheres — artigo 6, crianças, artigo 7, acessibilidade, artigo 9, exploração, artigo 16, educação, artigo 24 e saúde, artigo 25); b) fica reconhecida a diversidade das pessoas com deficiência (preâmbulo, letra “i”);  c) não obstante todos os instrumentos internacionais, reconhece que as pessoas com deficiência “continuam a enfrentar barreiras contra sua participação como membros iguais da sociedade e violação de seus direitos humanos”.[13] O reconhecimento, pela comunidade internacional, de que persistem, no Brasil, as barreiras contra direitos das pessoas com deficiência encontra eco nos tribunais pátrios, como se depreende do julgado abaixo: “STF – AG.REG. NO RECURSO ORD. EM MANDADO DE SEGURANÇA RMS 32732 DF (STF) Data de publicação: 31/07/2014 Ementa: CONCURSO PÚBLICO ESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA – RESERVA PERCENTUAL DE CARGOS E EMPREGOS PÚBLICOS (CF, ART. 37, VIII) – OCORRÊNCIA, NA ESPÉCIE, DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS AO RECONHECIMENTO DO DIREITO VINDICADO PELA PESSOA PORTADORA DEDEFICIÊNCIA – ATENDIMENTO, NO CASO, DA EXIGÊNCIA DE COMPATIBILIDADE ENTRE O ESTADO DE DEFICIÊNCIA E O CONTEÚDO OCUPACIONAL OU FUNCIONAL DO CARGO PÚBLICO DISPUTADO, INDEPENDENTEMENTE DE A DEFICIÊNCIA PRODUZIR DIFICULDADE PARA O EXERCÍCIO DA ATIVIDADE FUNCIONAL – INADMISSIBILIDADE DA EXIGÊNCIA ADICIONAL DE A SITUAÇÃO DE DEFICIÊNCIA TAMBÉM PRODUZIR DIFICULDADES PARA O DESEMPENHO DAS FUNÇÕES DO CARGO” – PARECER FAVORÁVEL DA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. PROTEÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL ÀS PESSOAS VULNERÁVEIS. LEGITIMIDADE DOS MECANISMOS COMPENSATÓRIOS QUE, INSPIRADOS PELO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA DIGNIDADE PESSOAL (CF, ART. 1º, III), RECOMPÕEM, PELO RESPEITO À ALTERIDADE, À DIVERSIDADE HUMANA E À IGUALDADE DE OPORTUNIDADES, O PRÓPRIO SENTIDO DE ISONOMIA INERENTE ÀS INSTITUIÇÕES REPUBLICANAS . – O tratamento diferenciado em favor de pessoas portadoras de deficiência, tratando-se, especificamente, de acesso ao serviço público, tem suporte legitimador no próprio texto constitucional (CF, art. 37, VIII), cuja razão de ser, nesse tema, objetiva compensar, mediante ações de conteúdo afirmativo, os desníveis e as dificuldades que afetam os indivíduos que compõem esse grupo vulnerável. Doutrina . – A vigente Constituição da República, ao proclamar e assegurar a reserva de vagas em concursos públicos para os portadores de deficiência, consagrou cláusula de proteção viabilizadora de ações afirmativas em favor de tais pessoas, o que veio a ser concretizado com a edição de atos legislativos, como as Leis nº 7.853/89 e nº 8.112/90 (art. 5º, § 2º), e com a celebração da Convenção Internacional das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007), já formalmente incorporada…” Também nos tribunais estaduais, já se constata a formação de jurisprudência muito clara e firme na aplicação da Convenção. Senão vejamos: “TJ-MG – Ap Cível/Reex Necessário AC 10027120106169001 MG (TJ-MG) Data de publicação: 29/04/2014 Ementa: REEXAME NECESSÁRIO – APELAÇÃO CÍVEL – MANDADO DE SEGURANÇA – DIREITO LÍQUIDO E CERTO COMPROVADO – CANDIDATAPORTADORA DE DEFICIÊNCIA VISUAL – NECESSIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO PROMOVER ADAPTAÇÃO RAZOÁVEL PARA QUE A CANDIDATA POSSA REALIZAR SUAS ATIVIDADES – ADEQUAÇÃO À DEFICIÊNCIA APRESENTADA PELA CANDIDATA – DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – VALOR SOCIAL DO TRABALHO – PRECEDENTE DO EGRÉGIO STJ. – O Mandado de Segurança é a ação constitucional, que visa a garantir direito líquido e certo, id est, contra ato eivado de ilegalidade ou ameaça de lesão a tais direitos, praticado por autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. – De acordo com a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pelo Decreto nº. 6.949 /09, a Administração deve promover "adaptação razoável" das condições de trabalho para que os candidatos deficientes possam exercer satisfatoriamente suas atividades. Isso significa que a Administração deve realizar modificações e ajustes necessários e adequados, que não acarretem ônus desproporcional ou indevido, observado cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais. – A reserva de vagas a candidatos portadores de deficiências tem caráter eminentemente social e busca atender princípios constitucionais como, por exemplo, o da isonomia, do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana.” Embalado pela própria experiência, Dantas (2005) tece as seguintes considerações: “Outro aspecto a ser considerado está relacionado com a definição de deficiente contida no citado parecer. Há uma confusão entre deficiente e inválido, adotando-se equivocadamente o conceito do segundo para definir aquele. Apenas para ilustrar, cumpre consignar que o eminente Juiz Federal Francisco Eduardo Guimarães, da 3ª.Vara da Justiça Federal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte, ao apreciar o pedido de liminar, o deferiu, determinando à Autoridade Coatora que se abstenha de praticar qualquer ato tendente a obstaculizar o exercício do cargo de analista previdenciário no qual a Impetrante foi investida, garantindo-lhe, inclusive, o direito a perceber vencimentos a partir de entrada em exercício, esta ocorrida em 11.04.2003, até decisão posterior ou até o julgamento de mérito do presente mandamus”.[14] O autor prossegue a narrativa: “Insatisfeito com o teor da decisão, o Instituo Nacional do Seguro Social – INSS recorreu, por meio de Agravo de Instrumento, ao Egrégio Tribunal Regional Federal da 5ª. Região. Devidamente distribuído, o ilustre Relator, Desembargador Federal Paulo Roberto de Oliveira Lima, concedeu efeito suspensivo ao recurso, cassando a liminar deferida em primeiro grau. Em breve exposição, com base nas razões de recurso apresentadas pelo Recorrente, o Relator concluiu que: está provado, tanto por laudo do instituto agravante, quanto pelos exames particulares que instruem a inicial que, de fato, a candidata é portadora de escoliose. Entretanto, esta moléstia não a impossibilita d praticar os atos do cotidiano, inclusive, exercer o cargo de analista previdenciária . Mais à frente fez a seguinte ponderação: Pretender concorrer a certame na qualidade de deficiente físico, e se valer da proteção constitucional garantida àqueles, inclusive logrando ser aprovada em detrimento de outros candidatos com deficiências mais graves, é esvaziar por completo o conteúdo da norma.”[15] Dantas (2005) conclui sua análise do julgado, com as seguintes considerações: “Ao nosso ver a decisão do Ilustre Relator é que fere os dispositivos constitucionais. Seus argumentos violam o princípio da isonomia na medida em que sustenta que deve haver diferenciação entre os próprios deficientes, e não apenas entre eles e as demais pessoas ditas normais. Explica-se: existem pessoas com diferentes graus de deficiência; no entanto, a legislação não as diferencia, tratando simplesmente dos deficientes latu senso. O intuito da norma é o de tratar de maneira especial pessoas que, de alguma forma, possuem limitações, enquadrando-as em cargos compatíveis com a sua deficiência. […] Há uma confusão de significados entre deficiência e aptidão/capacidade para o trabalho.Um deficiente pode ser apto o não para determinado cargo ou função, mas será sempre deficiente”. 3.2 O caso vivenciado pelo autor e jurisprudência a respeito. Em 2010 o autor participou do certame promovido pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM, concorrendo para o cargo de Técnico Executivo, na categoria de pessoa com deficiência, para a qual estavam reservadas 03 (três) vagas. Foi aprovado e classificado em 1º. lugar. Tendo sido convocado para submeter-se a uma avaliação por equipe multidisciplinar, cumpriu essa etapa, sendo orientado a aguardar a comunicação do resultado. Comunicação essa que jamais ocorreu. Intrigado com a demora, dias depois o autor compareceu à Gerência de Recursos Humanos da autarquia, onde foi informado pelo chefe da unidade que, embora estranhasse a demora, eu deveria continuar aguardando uma resposta por email. Inconformado com a posição o autor, ato contínuo, redigiu manualmente uma petição, requerendo o cumprimento do Edital, com a prestação de informações acerca da avaliação da sua deficiência. Protocolou o requerimento administrativo e manteve-se no aguardo. Dias depois a autarquia federal publicou no Diário Oficial a convocação de dezenas de candidatos, dentre eles o 2º. e o 3º. aprovados na condição de pessoas com deficiência. Buscou o autor a necessária orientação jurídica, sendo acolhido pela Defensoria Pública da União. Ocorre que o autor tratava-se de neoplasia maligna de pulmões. Em 2007, quando da primeira cirurgia, foi submetido a uma broncoplastia, quando teve seccionada parte do seu pulmão esquerdo. Em razão da interferência cirúrgica, muito invasiva, adquiriu seqüelas que resultaram em limitação de movimentos do membro superior esquerdo, quadro diagnosticado e declarado pelo Instituto Nacional do Cancer – INCA e pelo Hospital dos Servidores do Estado, ambos hospitais federais, além de Pneumologista do Município. Dois anos depois, sofreu uma recidiva, com novo tumor, desta feita no pulmão direito, tratada no INCA com emprego de técnica experimental inovadora, que foi bem sucedida, evitando o trauma anterior. À época do certame da CVM, a deficiência foi confirmada em laudo médico-pericial do DETRAN/RJ. Desde então, a perícia do órgão estadual obriga o autor a somente dirigir carros adaptados. Investido na delegação que lhe confere a Receita Federal, o órgão faz constar dos seus laudos a concessão ao autor de isenção de tributos federais, estaduais e municipais para fins de aquisição de automóvel com a necessária adaptação. Tal laudo foi juntado ao processo movido pela DPU. Entretanto, apesar da farta prova documental, a medida interposta pela Defensoria da União não teve acolhimento pelo juiz singular, que negou a tutela antecipada, conforme se extraído site da Justiça Federal, Seção Judiciária do Rio de Janeiro: “No caso, o Autor alega que foi portador de neoplasia maligna, e teve que se submeter a uma cirurgia para retirada de parte de um dos pulmões. Como resultado desta cirurgia, teria ficado com os movimentos do braço esquerdo reduzidos. Os laudos médicos apresentados às fls. 24/28 atestam a ocorrência da cirurgia, e informam que o Autor apresenta restrições de movimentos do membro superior esquerdo. Todavia, não há como se saber, no presente estágio do processo, se tais restrições dos movimentos são suficientes para caracterizar uma das situações previstas no citado inciso I, do art. 4º do Dec. nº 3.298/99, o que exige dilação probatória, com a realização de perícia médica. Ausente, portanto, no atual momento processual, a prova inequívoca da verossimilhança do direito alegado, o que impede que seja deferida antecipação dos efeitos da tutela, na forma do art. 273 do CPC. Formula o Autor também pedido subsidiário, para que seja deferida medida cautelar, reservando-se uma das vagas do cargo de Agente Executivo destinadas a deficientes físicos, até a decisão do presente processo. Conforme o item 1.3.3 do Edital, à fl. 36, foram destinadas três vagas para deficientes físicos relativas ao cargo de Agente Executivo, na cidade do Rio de Janeiro. E de acordo com o Edital ESSAF nº 8/2011, à fl. 60, apenas três candidatos com deficiência foram considerados aprovados, não havendo nos autos notícia de que a Primeira Ré tenha convocado outro candidato para preencher a vaga pretendida pelo Autor. Portanto, não restou demonstrado o periculum in mora, motivo pelo qual indefiro a medida cautelar pretendida.” (JUSTIÇA FEDERAL SEÇÃO JUDICIÁRIA DO RIO DE JANEIRO.24ª Vara Federal do Rio de Janeiro processo n. 0014693-34.2011.4.02.5101(2011.51.01.014693-0). 28.10.2011).[16] Entretanto, em contraponto à avaliação do Ilustre Julgador, destacando-se a similaridade das situações, temos uma série de jurisprudências, algumas das quais reconhecem a condição de pessoa com deficiência, e casos que guardam grande similaridade com o do autor, em especial o Agravo de Instrumento 186235-3/02, que tramitou na 8a Vara da Fazenda Publica da Comarca de Recife, autuado em 25.05.2009. Ressalte-se que o processo em que é parte o autor segue tramitando no Tribunal Regional Federal, em sede de Apelação. Ainda em correlação com o caso do autor, interessante consignar a manifestação do julgador, no caso abaixo: “PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CARGO DE TÉCNICO JUDICIÁRIO DO TSE. DIREITO A PROSSEGUIR NO CERTAME. INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA. RECONHECIMENTO DA DEFICIÊNCIA. II – Há que se estabelecer distinção entre a pessoa plenamente capaz, o deficiente e o inválido. O deficiente é a pessoa que, não sendo totalmente capaz, não é, todavia, inválida. (Precedente Colendo STJ, RMS 22.459/DF, TRF – 1ª Região AMS n. 1998.01.00.061913-2) III – Ao candidato, acometido de insuficiência renal em fase de hemodiálise, enfermidade que enseja deficiência física, deve ser resguardado o direito à reserva de vaga na lista para pessoa portadora de deficiência, com fundamento no princípio da isonomia que rege a Administração Pública (Precedente desta 6ª Turma Apelação/REO 0016425-44.2008.4.01.3400). IV – A adaptação do candidato à sua limitação física não é idônea a afastar a deficiência, uma vez que, precisando fazer hemodiálise três vezes por semana, não lhe retira a dificuldade de conviver em sociedade quando comparado com um cidadão que não necessita de cuidados diários. V – Apelações e remessa oficial tida por interposta não providas. Ressalvada posterior avaliação de compatibilidade entre as atribuições do cargo e a deficiência física (Lei n. 8.112/90 art. 20, Decreto n. 3.298/99 art. 43 § 2º). AC 15585-DF-0015585-68.2007.4.01.3400. Des.Fed.JIRAIR ARAM MEGUERIAN, 25.01.2013.Sexta Turma. E-DJF1 p.87, de 25.02.2013.” 3.3 A discriminação como crime. O eventual impedimento, por ação ou omissão do administrador público, é passível de ser enquadrado como crime, conforme esclarece Gurgel (2009, p.143) “Obstar ou impedir que a pessoa com deficiência (sujeito passivo) acesse cargo ou emprego público pode decorrer de ação do administrador público (sujeito ativo) que, sem justificativa alguma, obsta – do latim obstare, estar diante ou contra; impedir, causar embaraço, dificultar o acesso a cargo público, caracterizando o crime. Também pode decorrer de omissão que, segundo o Código Penal, é penalmente relevante quando o administrador, por força do disposto na lei, deveria ou poderia agir para evitar o resultado (§2º, Art. 13). Somente a justa causa ou, as condutas justificadas, poderão impedir que a pessoa com deficiência acesse cargos e empregos públicos. Ressalte-se que para esse justo motivo não poderá concorrer qualquer elemento, ou causa, ligado à deficiência da pessoa.” Cabe ressaltar que a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência se fez acompanhar de um Protocolo Facultativo, que foi subscrito pelo Brasil. Esclarecendo a importância desse diploma complementar, temos a visão de Baldi (2009): “De salientar, por fim, que ao aderir ao protocolo facultativo, restou reconhecida a competência do Comitê para receber e considerar comunicações “submetidas por pessoas ou grupos de pessoas, ou em nome deles, sujeitos à sua jurisdição, alegando serem vítimas de violação das disposições da Convenção”, desde que obedecidos os critérios de admissibilidade (artigo 2) : a)Não ser anônima; b)Não constituir abuso de direito ou ser incompatível com as disposições da Convenção; c)Não tenha sido examinada pelo Comitê anteriormente ou esteja sendo examinada por outro procedimento internacional; d)Tenham sido esgotados todos os recursos internos disponíveis, salvo tramitação que se prolongue injustificadamente ou cuja solução efetiva seja improvável; e)Não estar precariamente fundamentada; f)Os fatos não tenham ocorrido antes da entrada em vigor do protocolo para o Estado- parte, “salvo se os fatos continuaram ocorrendo após aquela data.” Como se percebe, a internalização dos dois instrumentos internacionais encerra consequências de âmbito legal e constitucional, inclusive em termos de indivisibilidade, interdependência e universalidade dos direitos humanos, a partir da matriz “pessoas com deficiência”, que ainda não tem merecido a necessária atenção.”[17] Considerações finais De todo o exposto, resta evidenciado que o Decreto 3298/99, atual diploma legal a reger, em todo o território nacional, a política de acesso da pessoa com deficiência às vagas para esse grupo reservadas, carece de eficácia. Isto porque mantém limitações de direitos hoje não mais aceitas. Seu conteúdo apresenta um rol de deficiências muitas vezes entendido como exaustivo. Esse entendimento, equivocado, gera insegurança jurídica, leva milhares de pessoas a recorrerem ao judiciário, objetivando assegurar direitos, em face da sua real condição. Tal providência, como se sabe, pode demandar anos de espera por uma definição do poder judiciário-como acontece com este autor, há 03(três) anos aguardando o posicionamento do judiciário sobre seu direito a uma vaga para a qual foi aprovado. A nosso ver, esta é uma celeuma que tem solução muito prática, factível, apropriada e juridicamente indispensável: a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pelo Decreto Legislativo e promulgada pelo Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009, tem força normativa de Emenda Constitucional, eis que atendeu ao preconizado no parágrafo 3º. do art. 5º. da Constituição Federal. Como versa sobre o cerne da problemática, qual seja, a definição do que se deva entender por pessoa com deficiência, não há mais que se falar dos conceitos biomédicos ultrapassados, contidos no atual decreto-regente. A medida prática, capaz de por termo ao conflito normativo, eliminando a insegurança jurídica que o mesmo proporciona àquelas pessoas que o legislador pretendeu atender, demanda uma iniciativa legislativa que altere o teor do Decreto 3298/99, para que este passe a ter a redação da norma internacional abarcada pelo Brasil. Entretanto, até que tal providência seja adotada, havemos de lamentar que direitos sejam suprimidos e que batalhas judiciais intermináveis se propaguem, pois no atual estado de coisas não se pode, com segurança, saber se o país respeitará a norma que internalizou, apesar de esta normatizar, a nível federal, sobre tão relevante tema.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/direitos-da-pessoa-com-deficiencia-e-possiveis-descumprimentos-de-tratados-internacionais/
Democracia racial e miscigenação: a desmistificação
Este artigo tem como proposta apresentar aos seus leitores, embasado em pesquisas aprofundadas, a questão da democracia racial e miscigenação, tema muito pertinente no Brasil e que apresenta conseqüências que variam desde seu contexto histórico, com suas influências e prolongamentos, até situações de relevante importância mundial, como a questão do preconceito. É sabido que os efeitos de um passado histórico foram capazes de moldar a concepção de toda uma nação, que ao mesmo tempo em que estava intimamente ligada à questão da miscigenação, que provinha da mestiçagem da população, via-se distante dessa realidade, tudo isso pelo fato de seguirem um modelo europeu de idéia de raça, que não era recomendável ao Brasil. A sociedade não se desvincula dos preconceitos ao libertar os negros simplesmente por força da lei, o preconceito é algo presente nas organizações sociais desde os primórdios, e o racismo brasileiro tem noções particulares que serão explicitadas nesse trabalho.
Direitos Humanos
Introdução Este artigo é resulta da necessidade de debate acerca de um tema que é atemporal, tendo em vista a vasta aplicabilidade prática.Trata-se de uma pesquisa qualitativa feita a partir da análise de dados coletados através do refinamento teórico, e que pretende expor e contrapor as diversas faces do processo de miscigenação racial ao qual o país está submetido. O Brasil, enquanto unidade territorial, onde se reconhece uma nação, é pensando e visto internacionalmente, desde meados do século XIX, como o país da mistura de raças. Mistura de seres humanos de múltiplas origens – indígena, européia e africana – a miscigenação teve valorização que variou através dos tempos e é o retrato mais fiel do povo brasileiro (PITA, 1976, p.87). Estudiosos antigos e conservadores desenvolveram teses e teorias a respeito da tão falada miscigenação racial brasileira atribuindo a ela o caráter originário da democracia racial. Essa valorização positiva da mestiçagem camufla um ideal equivocado e coloca a escravatura como algo benévolo na história do nosso país, e que possibilitou a interação entre diferentes povos. O que esses estudos não apontam é que essas relações se deram entre partes antagônicas da pirâmide social brasileira e que os conflitos nascidos dessas relações foram silenciados por uma sucessão de governos que se empenharam em ocultar essas realidades e transformar o país, aos olhos do mundo, como local conciliador e harmonioso onde se zela pelos interesses de todos. Pode-se diante disso pensar que a democracia racial, tão desejada e invejada pelos que de longe a apreciam, se constitui como um dos maiores mitos da sociedade brasileira. Esse aspecto pode ser visto e confirmado nas cifras, muitas delas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): a maioria dos desempregados é negra; o mercado de trabalho é ocupado maximamente por brancos; também são os brancos que têm mais possibilidades de acesso aos muitos benefícios que são oferecidos pelo Estado. Frente aos fatos, a relevância desse projeto se justifica no sentido de que, sendo o Direito uma ciência preocupada em demonstrar a igualdade dos indivíduos perante a lei baseada em conceitos de justiça, o tema, que discorre sobre interesses sociais como preconceito e discriminação racial, uma das mazelas mais correntes no Brasil, se torna bastante pertinente a nós, juristas em formação, e a toda uma sociedade que se tornará mais esclarecida a respeito de sua condição de seres humanos que merecem respeito, independentemente de aparência, condição financeira, credo e etc. Sendo assim, tem-se por objetivo demonstrar aos leitores a discussão feita acerca do tema proposto: Democracia Racial e miscigenação: a desmistificação. Apresentando-se como premissas à análise das questões históricas do país, e extraindo-se delas o fundamento primordial da discussão, elucidando as conseqüências desse processo e evidenciando as ligações com o nosso tema central, expondo dessa maneira os questionamentos a respeito da controvérsia gerada pelo embate de idéias e finalmente indicando uma outra forma de encarar esse problema tão presente em nosso país. 1. A questão étnica no brasil – existência efetiva de uma minoria? Segundo a revista RAÇA do ano de 2004 (p.37), atualmente usa-se a palavra raça com varias conotações, que vão da mais inequivocamente positiva, que é a idéia de gana, vontade, determinação, até conotações que os afrodescendentes e a ciência sabem que são de diferenças aparentes: a cor da pele e os traços do rosto seriam indicadores de habilidades e competências diferentes.  Existem duas linhas principais de pensamento que defendem a questão do uso da palavra raça, as questões biológicas e as questões sociais. Para a biologia, raça é considerada um sinônimo de subespécie, caracterizada pela comprovada existência de linhagens distintas dentro das espécies, portanto, para a delimitação de subespécies ou raças é necessária a diferenciação genética, é uma condição essencial. E, no caso de negros ou brancos, não há isso comprovado cientificamente, algo na carga genética, que comprove diferenciação e que com isso acarrete variação na cor da pele, pelo contrario, as variações de coloração, são do mesmo tipo das de tamanho, por exemplo. Sendo assim, para a biologia, ciência que busca a comprovação empírica de seus estudos é inaceitável a utilização do termo “raça” para classificação de seres humanos entre si. Já dentro das questões sociais, para a antropologia, o conceito de raça é empregue como construtor de identidades culturais e experiências de sentido. A primeira classificação dos seres humanos em raça foi feita por George Louis de Buffon (1707-1788), a partir daí, foram escritas várias outras obras a respeito do tema, que gerou grande polemica, principalmente no século XIX. (SALZANO, 2005). É sabido que muitos empregam esse conceito com a desculpa de que defendem minorias, mas sabemos que no Brasil, os negros e afrodescendentes, são maioria! Uma maioria efetiva, mas que não se encontra inserida, como deveria, e não participa tão firmemente de setores primordiais para uma boa formação dos indivíduos. Isso é fruto do processo de integração do negro livre, porém analfabeto e despreparado, em uma sociedade com idéias preconceituosas e escravocratas. A abolição no Brasil se deu como fruto de interesses da coroa Britânica, carente de mercado consumidor para seus produtos, com isso, a liberdade dos negros teve um único objetivo de transforma-lo em mão de obra assalariada e logo consumidora, e encontrou confortável situação na medida em que as revoltas ministradas pelos negros cresciam de forma galopante. A Lei Áurea, decretada no ano de 1888, dava aos escravos plenas condições de homens livres, e direitos como a qualquer outro cidadão, porem sem a participação da sociedade, o que deu a essa lei um caráter de ilegitimidade, pois tal não emana dos valores e costumes da sociedade. De acordo com os estudos de Arruda e Piletti, as classes sociais desse período eram subdivididas em apenas três camadas, onde no topo de sua hierarquia, e em menor número de pessoas, estavam os grandes proprietários de terra, numa estreita faixa, estavam os homens livres e a pequena burguesia que separavam o descomunal contingente humano de negros escravos que sustentavam a base dessa pirâmide.  Portanto, os negros, apesar de livres, encontraram-se perdidos em meio a uma sociedade preconceituosa, e que continuava vendo-os como seres inferiores que nunca deveriam ter saído de suas senzalas. O fato de terem sido libertos apenas por força de lei implicou em sua rejeição no meio social. Pois apesar de livres, os negros ao partirem em direção as cidades não encontraram seu espaço tornando-se marginalizados e excluídos. Esse processo desastroso de abolição deixou como herança cultural para as gerações posteriores, resquícios de uma sociedade escravocrata, na qual o negro, apesar de juridicamente igual as demais etnias, ainda não tem na pratica seus direitos respeitados. Em sua obra, Toda a História – História Geral e História do Brasil – Arruda e Piletti apontam que negro nunca foi omisso à sua luta, a revolta de um povo que clamava por sua identidade perdida, resultante das imposições determinadas pelos colonizadores portugueses, causaria as primeiras manifestações organizadas e contundentes em busca de sua tão desejada liberdade. A exemplo disso estão os quilombos, aldeias criadas como abrigo para negros fugidos das fazendas, e que se tornaram símbolo da resistência à escravidão. Movimentos como esses perduraram durante anos e também deixaram marcas como exemplo de luta que influenciam até os dias de hoje os movimentos contra o preconceito racial. 2. Análise sociojurídica do preconceito Incipiente ressaltar que preconceito significa um conceito formado antecipadamente, uma idéia preconcebida. Realmente é complexo abordar esse tema, pois se deve ter como referencial a formação, origem, contexto histórico e socioeconômico do individuo concretamente considerado. Pode-se afirmar que, desde que existe relação humana existe preconceito. Isso é notório em estudos sociológicos, desde as pequenas organizações de pessoas até as mais complexas e com maiores conflitos, ilustrando as sociedades orgânicas e mecânicas da teoria de Durkheim. As pessoas, quando mantém relações sociais com outras, na sua grande maioria, possuem problemas para conviver com as diferenças, sejam elas de diversos gêneros. Tendo em vista o conhecimento adquirido através da publicação de Schneeberguer, o Brasil na situação de colônia subordinada a Portugal, seguia o modelo europeu de vida, desde as vestimentas dos senhores, até o habito do chá da tarde, tipicamente europeu. O racismo teve sua fase mais firme na época da escravidão, e, logo após a sua abolição. Vale ressaltar que essa fase se deu devido ao fato de que os negros nessa época não eram considerados seres humanos como os brancos, e o preconceito era direto, agressivo e declarado. Hoje, a população tenta nortear-se pelo principio de sociedade mais humana, mais ética, com a variação de alguns valores morais, que até então eram vigentes e possuíam a força não mais encontrada nos tempos atuais, as pessoas procuram demonstrar-se mais suscetíveis à aceitação das diferenças, até mesmo porque, na Constituição do país – outorgada em 1988 – se assegura a igualdade sem distinção de qualquer natureza, e o racismo é terminantemente proibido e sujeito à sanção. Entretanto é de grande valia lembrar que a Ética é uma Ciência, e como tal, fixa-se em aprofundar-se nas questões teóricas e mais generalizadas, o preconceito, como comportamento humano, como um fato, tem explicação pela ética tomando a pratica da moral da humanidade em seu conjunto e como objeto da sua reflexão. É do conhecimento geral, que o racismo é um fato moral, e que essa palavra, moral, deriva do latim (mos ou mores =costume), e o seu próprio significado já traduz o que seria esse comportamento humano em face de determinados problemas. A moral é aquilo que pode variar de época, lugar, povo, e etc, é o comportamento prático em si, não se trata de teoria, não é generalizada, dá ao homem a capacidade de aplicar juízos morais que pressupõem a certas normas do que se deve fazer, e essas normas, onde as pessoas têm a consciência do que deve ser feito é justamente a ética, que tem como objeto de estudo, a moral. “Contra a ordem harmoniosa e não-conflitiva pintada pelo enredo mítico, ergue-se a fala desmistificadora que revela a sociedade brasileira tal como ela é: racista e discriminadora. A democracia racial teria se tornado uma espécie de instrumento ideológico que legitima as desigualdades e impede a transformação”. (THOMAZ, 2003) A relação entre democracia racial e o preconceito é bem clara. Como já foi dito no trecho acima, tem-se consciência que a democracia racial é apenas uma tese, esta longe de ocorrer essa tão estimada situação, e mesmo assim, para que isso ocorra, seria necessário que as pessoas se desprendessem dos preconceitos, encarando-as realmente como iguais, porque a democracia racial entende todos os indivíduos dessa maneira. Essa condição de existência é realmente difícil de ocorrer, pois distanciar a idéia de mais de meio milênio sobre o preconceito racial requer uma evolução a qual o brasileiro não tem se mostrado interessado. 3. Miscigenação e democracia racial O caráter de caldeamento de raças teve inicio na época colonial do Brasil, onde segundo, Hebe Maria Mattos, neste período existia 3.500.000 habitantes no país, que se distribuíam nos seguintes percentuais: 38% escravos (negros), 6% de índios, 29% de brancos e 27% de pardos. Sendo assim, segundo os especialistas seria quase impossível não ocorrer uma miscigenação entre as raças. As teorias da supremacia racial surgem no Brasil no final do século XIX, onde Thomas Skidmore, (1976, p. 71), colocava em discussão o seguinte fragmento: “de que maneira chega a ser desse jeito? E, haverá em um mundo” civilizado “, um lugar pra um povo miscigenado?”. Após algumas décadas de debates e articulações o “multiculturalismo”, que funcionava sob o domínio marxista assumindo posturas de lutas e conflitos, dá espaço ao pluralismo social, que é legitimado por uma política oficial, onde assumem uma postura de consenso ou composição. No século XX, surge uma nova interpretação sócio-cultural no Brasil que é dividida em duas linhas de força. Uma que afirma que a miscigenação integra o homem na sociedade e outra que admiti o caráter racista do Brasil, na qual o negro esta nas subcamadas sociais e é descriminado, dificultando assim, a sua chance de mobilidade social. Na verdade, essa interpretação teve inicio com a apresentação da tese do “Democracia Racial” de Gilberto Freyre, que surgi na Europa e nos Estados Unidos. Logo se percebeu que a Democracia Racial não se encaixaria na realidade do Brasil, pois não teria como inibir a inter-relações entre as raças.  Roberto Damatta desenvolve a tese do branqueamento, baseada no moderno racismo europeu do final do século passado. Segundo ele, a mistura racial ocorre para que o negro passe a fazer parte do mundo do branco. Damatta ainda afirma, que por trás de uma estrutura jurídica liberal existe uma estrutura hierárquica racial bastante desigual. Ele se utiliza desse argumento para dizer que no Brasil os negros, índios e brancos não compõem o mesmo patamar, e que toda esse idéia em volta disso é pura ironia da sociedade. Para concluir sua tese, Damatta, diz que as três raças são construtoras de um Brasil miscigenado que permite a tolerância racial, mas alega que isso teria a função de tentar integrar e unir a população brasileira, após a abolição, mas acredita que com o branqueamento haverá uma sociedade homogenia e harmônica. (DAMATTA, 1998, p.97 a 99).  Faz-se necessário frisar que a Democracia racial em todo o mundo, no modelo defendido pelos estudiosos, não passa de mito. Segundo Guimarães, “o mito da democracia racial foi desenvolvido… nos anos de 1920 e 1930, quando se tenta superar o trauma da escravidão negra incorporando de modo positivo, os afrodescendentes ao imaginário nacional”. (GUIMARÃES, 2001.p.398) No entanto, a idéia de democracia racial é atribuída por muitos a Gilberto Freyre, que a apresenta como algo em formação, algo imperfeito, ainda em vias de se tornar realidade. Isso pode ser comprovado em trechos como: ”Comunidade inclinada voltada para a democracia étnica”. (FREYRE, 1947, p.131). Quando se propõe analisar o tema democracia racial, é pertinente explicitar que o mesmo subentende uma possível igualdade entre todos os indivíduos, independentemente de sua etnia, pois a palavra “Democracia”, indicando poder do povo, e “racial”, raça humana, vem justamente, com esse título, fazer analogia a essa questão. Falar de raça dessa maneira não vai de encontro ao conceito já enunciado por estar no singular e abarcar a todos de maneira uniforme, então, com base na analise do próprio nome do projeto, é possível perceber que não se aplica, fazendo-se necessária a sua desmistificação. Não se pode enganar toda uma população com vista em teses que são muito bem apresentadas, e que de certa forma, tem um lado positivo, mas não deixam de ser pura ideologia.  Essa falácia, que é a democracia racial, é encontrada nas estatísticas do IBGE (instituto brasileiro de geografia e estatística), pois, a maioria dos desempregados são negros, são os brancos que possuem maior facilidade de acesso as universidades, detêm os melhores empregos, e estão maximamente ativos no mercado de trabalho, possuem maior destaque em novelas, sobrando, para os negros, os papéis secundários. Quando já se viu um negro como protagonista de novelas? Na cidade de Salvador, 86% da população é de cor negra, entretanto, é possível perceber que essa democracia racial não passa de teoria. Ao entrar nas universidades, mais de 70% de seus alunos são brancos, e isso já é uma prova de que não há a igualdade que pretende essa democracia, além, de estar muito distante de existir. Mesmo admitindo que a democracia racial é um mito, é necessário apontar os motivos dessa teoria, proporcionadora de tantos benefícios, não atingir os objetivos positivos almejados. Para inicio de argumentação, é valido citar a questão de desorganização social. Os negros, em sua grande maioria, moram em favelas provenientes da invasão indevida de terras, por despreparo técnico e não se incerirem no mercado de trabalho, essas pessoas que fazem a invasão indevida, tem consciência da ilegalidade dos seus atos, desta maneira, se isolam do Estado e criam uma jurisprudência paralela à vigente com poder apenas onde vivem, é o caso de pluralismo jurídico, observado por Boaventura de Souza Santos, no seu trabalho antropológico na favela de jacarezinho, Rio de Janeiro, e em favelas de Recife, na década de 70. Outro ponto relevante e que contribui para que a democracia racial deixe de ser mito é o fato de que, a falta de consciência e omissão da população é, também, uma conseqüência histórica. É importante lembrar que, as principais falhas encontradas nesse país têm como plano de fundo a sua historia. Para que a democracia racial seja de fato igual para todos, proporcionando vantagens equivalentes, serão necessárias muitas e eficazes mudanças. “Você não pega uma pessoa que durante anos foi impedida por estar presa e a liberta, trazendo-a para o começo da linha de uma corrida e então diz: você está livre para competir com todos os outros, e ainda acredita que você foi completamente justo. Isto não é o bastante para abrir as portas da oportunidade. Todos os nossos cidadãos têm que ter capacidade para atravessar aquelas portas. Este é o próximo e mais profundo estágio da batalha pelos direitos civis. Nós não procuramos somente liberdade, mas oportunidades. Nós não procuramos somente por equidade legal, mas por capacidade humana. Não somente igualdade como uma teoria e um direito, mas igualdade como um fato e igualdade como um resultado”. (GOMES, 2001, p.444) As medidas para a inclusão social do negro, de fato, não são tão grandes, se comparado com o numero de habitantes negros que possui o país, a exemplo disso, temos o sistema de cotas, que foi aprovado no dia 6 de junho de 2003. Tratava-se de um Plano de Metas para a integração ética, racial e social, que instituiu cota de 20% das vagas de vestibular para negros, índios ou pardos provenientes de escolas públicas e com baixa renda, entrando em vigor em 2004 e tendo duração de dez anos. Para que esse plano fosse aprovado ocorreu um grande período de discussões e debates entre representantes das universidades, professores, movimentos negros e outros setores da vida civil, vindo também a pertencer aos temas polêmicos do país. O sistema de cotas por ter promovido amplo debate anterior a sua aprovação fez com que criasse a imagem de que é um plano democrático e participativo. Entretanto, não podemos deixar de ressaltar que se trata de um plano para a inclusão do negro na sociedade, que mesmo que possua o seu lado racista, como aponta FERREIRA, “Quando fui para a África do Sul, me perguntaram como nós brasileiros, fomos capazes de criar um modelo de racismo tão sofisticado que a vítima não sabe que agride. Por isso a discussão das cotas é legal. Porque expõe, o racismo embutido. (Palavras de Carlos Alberto Santos, professor de ética da UnB) (FERREIRA, 2002), apresenta uma chance para tentarem ingressar no competitivo mercado de trabalho, chance essa, que na grande maioria das vezes é tomada por pessoas brancas que possuem maior poder aquisitivo se preparando melhor para os vestibulares. Outro projeto de inclusão social é a questão de inserção dos negros no mercado de trabalho. Os empresários estão utilizando a inclusão social para preencher vagas de emprego, entretanto, a presença do negro ocupando uma vaga de emprego é pequena, e as de grande nível hierárquico é mais raro ainda. Os negros encontram-se empregados na medida em que decrescem no nível hierárquico. Além da lei que trata a respeito da disponibilidade de cotas, equivalente a 20% das vagas em universidades públicas, para etnias ditas excluídas, como meio de reparação das desigualdades sociais resultantes de séculos de escravização e, conseqüentemente, distanciamento dos benefícios oferecidos pelo Estado, a legislação brasileira também pune os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, como é disposto na lei complementar nº 7.716 de 05 de janeiro de 1989, e a própria Constituição Federal em seu art. 5º prevê igualdade perante a lei sem distinção de nenhuma natureza. Tramita no congresso nacional esperando votação nas duas casas, para posterior sanção presidencial, um projeto de lei de iniciativa do Senador Paulo Paim, o Estatuto da Igualdade Racial. Um projeto amplo que prevê em seus capítulos, entre outras, questões como formas de prevenção e combate a doenças prevalecentes na população negra, direito à liberdade de culto, especialmente no que diz respeito às chamadas religiões afro-brasileiras como o candomblé. Pode-se observar que, o Estatuto da Igualdade Racial dispõe sobre algumas questões já previstas em outras legislações, tais como a própria CF. Os seus defensores afirmam que a novidade deste projeto de lei, portanto, não reside naquilo que nele se reivindica como direito, mas na possibilidade da garantia desses direitos serem postos em prática. Desta maneira, fica nítido que além do Estado, que se encontra organizado de acordo com a separação dos poderes, dá ao povo a capacidade representativa através do voto, elegendo assim, seus representantes para administrar e compor as casas do Congresso Nacional criando leis que defendem os negros. No Brasil, ainda não é cabível uma democracia racial perfeita e sem fragmentos, pois, apesar de ser um país altamente miscigenado, não reconhece a sua condição aceitando as diferenças. Considerações finais Depois de ter sido trabalhado todo o tema, ficou claro que existe um mito em torno da democracia racial. É sabido que a herança cultural de um povo é o que determina no presente seus valores e costumes, no Brasil essa herança ficou por conta de fatos históricos desastrosos, a exemplo da abolição. Da maneira como se deu a abolição no Brasil, causa-nos uma falsa impressão de que a partir da assinatura da Lei Áurea em 1888, extingui-se todos os problemas dos negros. Torna-se fácil perceber que isso não retrata a nossa realidade, pois, casos não isolados de crime de preconceito ainda ilustram, em pleno século XXI, paginas de jornal. O preconceito herdado por tantas gerações não é a única barreira dos negros no Brasil, pois além de ter que amargar a dor de serem vistos por muitos como inferiores, ainda vivem, em sua grande maioria, a margem da sociedade no que diz respeito a garantia de seus direitos. O que vemos no Brasil é uma crescente positivação da democracia racial, porém, sua força não tem sido suficiente para garantir aos negros, na pratica, reparos pelos danos de séculos de escravização.  O mito da Democracia Racial no Brasil resumisse basicamente no fato de que muitas leis são criadas, porém, os direitos dispostos nelas são negados aos negros por uma parcela da sociedade que se julga branca, onde ainda resiste resquícios das idéias de hierarquia racial. Seria muito pessimismo afirmar que não è possível conseguir um estado de democracia racial no Brasil, já que a pouco mais de um século atrás éramos escravocratas, há cinqüenta anos não se imaginava negros com carreiras bem sucedidas na política ou em empresas privadas, a menos de vinte anos não existia crime de preconceito, a menos de cinco não havia por parte dos governantes, medidas políticas para inserir o negro na sociedade, Ou seja, no presente a democracia permanece um mito, mas, no futuro o que hoje è apenas sonho pode se tornar real.
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O enfraquecimento do Estado Social como forma de perpetuação da marginalização, da fome e da miséria humana
O que falta a nossa cultura é vontade de se unir, de ser um só corpo e mente ao beneficio de todos, independentemente de etnia, morfologia, sexualidade. É possível?
Direitos Humanos
I. Introdução Fome e pobreza têm suas gêneses por motivos diversos, desde que o homem se apropriou do solo (agricultura), pessoas ficaram ricas, e outras na miséria. Com o feudalismo, mais e mais pessoas passaram a ter escassez de recursos naturais. Depois, com a Revolução Industrial, milhões de seres humanos passaram a não só ficarem famintas, mas na condição deplorável de miseráveis. Farrapos humanos mendigavam, outros furtavam, ou roubavam, para mitigarem, por breves momentos, as dores cruciantes que percorriam seus sistemas digestivos e suas mentes. Fome e miséria sempre existiram, dependendo das condições topográficas e climáticas. Até aqui, são condições geradas pela natureza, e não pela ação do ser humano. Não é de se refutar a necessidade das tribos nômades, e dos exploradores no século XV, de percorrer quilômetros para suprir suas necessidades. As guerras humanas, por sua vez, se deflagraram para suprir necessidades básicas, ou para acúmulo [ganância] de recursos naturais. A escravidão surgiu, então, como oportunidade de manter certos grupos humanos na bonança (faraós, reis, religiosos), enquanto outros seres humanos eram subtraídos em suas vitalidades para manter essas regalias. II. O Poder O poder, então, passou a ser cobiçado por muitos; pois o poder garante a subsistência, ou até mesmo regalias, confortos, dominações sobre outros seres humanos. Novas teorias de superioridade surgiram, ao longo da jornada humana, para manterem as regalias de grupos humanos através da exploração cruel da mão de obra de outros seres humanos. As diferenças sociais são os resultados de dominações, de um povo ao outro, pela apropriação do solo, da escravidão da mão de obra. Já ouvi dizer que se faz necessário manter as desigualdades sociais, como fonte de perpetuar o desenvolvimento à humanidade.  Ou seja, ninguém desejaria trabalhar em pleno verão, com sol a pico, temperatura de 40° C, e sensação térmica de 55° C. Por condição normal [biológica] da espécie humana, à procura de condições climáticas favoráveis [amena] se torna um dos objetivos na busca de melhoria à qualidade de vida. Sim, o meio ambiente influenciando as escolhas dos seres humanos. Entretanto, quem quer se submeter ao sol escaldante? Assim, a desigualdade social se tornou um meio de manter o desenvolvimento humano. Ora, tal concepção de pensamento é nada mais que a busca de conforto por dominação de outro ser humano, mesmo que este venha a morrer – afinal, é um ser humano a menos. Aos adeptos de Thomas Robert Malthus, Francis Galthon, e outros, à “comprovação” das loucuras humanas. III. Revolução Industrial e segunda dimensão dos direitos humanos Mas foi com a Revolução Industrial que houve aperfeiçoamento à forma de escravidão mundial. No desejo de conforto, de proteção, milhões de seres humanos, nos quatro cantos do planeta, passaram a lutar, ferrenhamente, por um lugar nas estratificações sociais altas. O ato de estudar e, consequentemente, o alcançar das tarefas intelectuais, passou a ser o grande direcionador da vida humana. Mas nesse contexto, por teorias segregacionistas, e pela compostura de exploração da mão de obra alheia, o ato de estudar não se tornou objeto de fraternidade a humanidade, porém de conseguir fazer parte de uma parcela humana que detém boa parcela, ou maioria,  das riquezas geradas pelos proletariados. Somado ao desejo, de qualquer ser humano, de ter qualidade de vida – que tem a ver, por exemplo, com a adaptação favorável ao clima hostil; entre outras condições, como a topográfica etc. –,o ato de estudar passou a ser contemplado [diploma, medalhas, condecorações; ou seja, status social] como diferenciador entre “capacitados” e “incapacitados”. Aliás, é possível ver essa concepção seletiva ainda no século XXI. Quando grupos de pessoas exercem certas funções – independentemente de etnia, morfologia e sexualidade -, seja como balconista, gari, taxista, motorista de ônibus, mototaxista, motofretista, atendente de telemarketing etc., estas profissões são consideradas como subempregos, ou seja, funções de pessoas “incapacitadas” intelectualmente, e até emocionalmente, para trabalharem em funções que exigem mais capacidades. Essa “capacidade” é associada à condição de pessoas “superiores”, genética e/ou espiritualmente. IV. Deuses, mortais e discriminações Não muito diferente, há endeusamento entre profissionais da mesma área. Assim, técnicos [enfermagem, edificação, eletrotécnica etc.] são associados, também, à ideia de pessoas limitadas [incapacitadas] para  exercerem funções mais técnicas – estas conseguidas com a graduação universitária. E o que dizer, absurdamente, dos acontecimentos entre agentes públicos? A hierarquia, dos cargos, passa a ser um antro de complexados e traumatizados – possivelmente em suas infâncias. A frase esdrúxula “Sabe com quem está falando?” não desmente o complexo de endeusamento. Os cargos públicos também passam a ser o divisor supremo da rale [administrados]. Eis as consequências do complexo de inferioridade. A ascensão socioeconômica se torna uma expectativa de prazer aos sentidos físicos, e torpor às emoções. A segregação, por sua vez, propicia qualidade de vida através da exploração da mão de obra. Veja que segregação, aqui, não é genocídio, ou expulsar do território o “indesejável” ser humano. A segregação pode acontecer, sem a expulsão do “incapacitado” do território, ou do convívio como os “capacitados”. No Brasil, por exemplo, na Constituição de 1824, os cidadãos plenos eram os nobres, às mulheres, uma expectativa limitada de direitos, e aos negros, às chicotadas. Os Direitos Civis e Políticos dos cidadãos brasileiros, em 1824, são muitos diferentes quando se analisa a Constituição de 1988, onde homens e mulheres têm direitos iguais. Não se admite, ainda, qualquer diferença, ou privilégio, pela condição étnica, ou hereditária, aos direitos político e civil; não importa, por exemplo, respeitando os preceitos constitucionais, se é estrangeiro ou nacional à ocupar cargo político. E o que dizer da ascensão feminina? Muitos homens se incomodam com a ascensão do sexo “frágil”. O medo interior desses homens é o medo que as mulheres do passado sentiam dos homens: dominação. Os homens estão projetando seus medos, pois sabem o que causaram, ao longo da história humana, às mulheres. É o poder, dos homens, se fragmentando. Sempre o poder. V. Ações afirmativas e o Estado social As ações afirmativas, por exemplo, às cotas raciais, nas universidades federais, estas consideradas berços esplendorosos [Olimpo] das estratificações sociais alta e [antiga] classe média alta – atualmente existe a nova classe média – demonstraram o quanto de darwinismo social ainda existe em nosso país. Na extinta comunidade social Orkut, por exemplo, existiam comunidades exaltando à intelectualidade, à capacidade superior dos ingressos nessas comunidades, por terem sidos aprovados em alguma Universidade Federal – se Alfred Adler estivesse entre nós, mortais complexados, tais comunidades serviriam como amplo material de estudo para a teoria do complexo de inferioridade. Aliás, posso afirmar que as estratificações sociais – quando existe as diferenças sociais abissais, por políticas [absolutistas] dos administradores públicos – seus supersalários versus o piso salarial nacional, ou regional, dos proletariados -, ou ações de grupos oligárquicos, aristocrático, ou até eugenistas – é o combustível para inflamar o complexo de inferioridade em cada ser humano. Ou será o complexo de inferioridade o combustível? O Estado social [segunda dimensão dos direitos humanos] é uma necessidade para criar harmonia entre os seres humanos: aos iguais, o tratamento igual, aos desiguais, o tratamento desigual, conforme suas igualdades e desigualdades. Todavia, não basta somente as ações do Estado para criar harmonia social, isto é, tornar a sociedade fraterna. As leis forçam mudanças nos comportamentos – ou obedece, ou vai preso -, mas não nas ideologias que estão impregnadas nos âmagos dos seres humanos. No caso do Brasil, se verificarmos a Constituição de 1937, a educação eugênica fora institucionalizada e se tornara diretriz para o Estado construir uma sociedade “justa”, “equilibrada”, “saudável”. A própria educação física serviu, na época, como materializadora dos ideais eugenistas – em alguns artigos meus, já publicados, é possível constatar as ações dos eugenistas no Brasil, mas que, infelizmente, ainda se perpetua nas gerações deste século XXI. O Brasil, para mudar,  de forma consciente, isto é, de dentro para fora,  necessita aglutinar a atuação do Estado e da sociedade organizada universalista na divulgação dos direitos humanos. Não o simples divulgar dos artigos dos direitos humanos, mas divulgá-los e explicá-los o porquê de suas existências. Ou seja, elucidarem as causas que deram existências aos direitos humanos. Não são as leis frias, as imputações de deveres, que mudarão os comportamentos, entretanto, é através da educação fraternal – há, infelizmente, educação que imputa discriminações, sectarismo, preconceitos – que o Brasil concretizará os seus objetivos, estes expressos no artigo 3º, da Carta Política de 1988. Absurdamente, as ações afirmativas [Estado Social] estão sendo atacadas por ódios ideológicos. Há grupos sociais, por convicções políticas, se opondo ao Estado Social por ser “ação pérfida de comunista”. Sim, o Estado Social vem trazendo benefícios ao Brasil, desde a gestão do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso até a atual presidenta, Dilma Rousseff. O que não se pode confundir é o Estado Social com a corrupção: aquele é uma necessidade para concretizar o artigo 3º, da CF; esse é um mal, um vírus mortal, que se encontra nos âmagos de pessoas egocêntricas, sádicas. E o povo, sem a educação necessária para distinguir os dois, os associam como males às suas vidas. Na esteira da ignorância do povo, astutos e velhacos, dentro e fora da Administração Pública, se aproveitam da ignorância, e exaltam passeatas, ações físicas truculentas, condenações [especificamente direcionadas] contra à corrupção, porém com a maquiavelice de arruinar o Estado Social que tem proporcionado um pouco de dignidade aos “desiguais”. Em síntese, o Estado social está sendo associado à corrupção, como se aquele fosse o meio favorável à ações ímprobas. O Estado social teve sua gênese na Revolução Industrial. Nas mãos dos que detinham riquezas – essas, em muitos casos, conquistadas com a exploração da mão de obra escrava, de conquistas de terras indigências, ou por ações de oligárquicos, aristocráticos, mafiosos e seus capangas, que se perpetuam de gerações a gerações –, o poder proporcionava dominação, aquisições de riquezas e conforto material à custa da escravidão; modernamente se faz sem chicotadas, sem algemas, mas pela dominação econômica ao miserável – tudo possível "dentro das leis" e por leis científicas segregacionistas. Há, claro, acontecimentos inesperados, como o encontrar algum bem de valor comercial [petróleo, jazida etc.], que proporcionou acúmulo de riqueza, ou criação de alguma parafernália tecnológica, que também proporcionou acumulação de riqueza. Mas a mão de obra necessária para gerar e transformar riquezas sempre fora escrava. VI. Economia e dominação O poder econômico proporcionou, ainda mais, controle sobre os demais seres humanos desafortunados. Na luta pelo conforto material, pelo aparente poder, pois sempre se tem alguém para tomar à força este poder, políticas públicas criadas pelos gestores públicos, por intervenções de empresários, sempre criaram favorecimentos para ambos. O topo do poder, então, é o topo do privilégio, e este é conquistado pela escravização moderna. As diferenças sociais abissais servem para manter uma sociedade injusta, uma sociedade que criará pessoas com o intuito de sobreviver, seja qual for o modo de aquisição da qualidade de vida, mesmo que gere danos aos semelhantes. A corrupção, então, não é mais vista como anormal, mas uma necessidade de sobrevivência. As instituições públicas passam a ser centros de excelência das mais inimagináveis ações bestiais em favorecimento dos “afortunados” e “privilegiados”. O princípio da moralidade administrativa (artigo 37, da CF/1988) não passa de letras impressas em papel. O ímprobo agente público, assim age, pela força motriz perversa criada, alhures, no inconsciente coletivo. Um cargo comissionado passa a ser uma oportunidade de emprego e sobrevivência material, mesmo que o cidadão não seja servidor de carreira, o que é proibido por lei. As emergências, como inundações e proliferações de vetores transmissores de doenças, exigem atuações rápidas dos administradores públicos para a necessidade da coletividade; sem necessidade de licitação, ou licitação dispensável, se perpetuam os “contratados para sempre”, numa demonstração de que o comportamento cultural é embasado na trapaça, ou “jeitinho brasileiro”. Mas repito, tais atitudes se devem aos conceitos perpetuados no Brasil: absolutismo, aristocracia, oligarquia, escravidão, darwinismo social e eugenia. Nessa postura trapaceira, não há qualquer sentimento de solidariedade ao concidadão trabalhador, que acordas às 4h para tentar ser transportado pelos transportes públicos perigosos, que trabalha quarenta horas semanais para, no final de cada mês, receber míseros trocados para tentar sobreviver. Esses “contratados para sempre” se encontram na área de saúde, em caso de calamidade pública, licença-maternidade etc., e nos cargos comissionados [cargos de direção, chefia, assessoramento], que não se exige concurso público. Há uma verdadeira troca de favores entre partidos políticos. Mesmo que algum agente político não reocupe, pela reeleição, cargo público, o servidor público comissionado poderá continuar a prestar serviço de direção, assessoramento ou chefia, por indicação do ex-gestor público ao novo gestor público, quando aliados políticos. É a troca de favores criando os “contratados para sempre”. Em muitos casos, o servidor público comissionado serve como “caixa dois”, pois o que percebe de remuneração não condiz com a folha de pagamento. Isto é, o agente político abocanha uma parte da remuneração do comissionado. Em outros casos, os comissionados não aparecem em suas respectivas repartições públicas, porém o dinheiro de suas remunerações é garantido. Em outros casos, mais esdrúxulos, mesmo sendo servidor de carreira, que sempre será através de concurso público, também não comparece diariamente para exercer sua função. A “presença” laboral de comparecimento é feita, ou quando há biometria digital, pelo simples e rápido entrar e sair. Nenhum trabalho é executado, mas a remuneração é garantida. Eis uma perversidade. VII. Conclusão Este texto tem o propósito de elucidar o óbvio: o problema da corrupção, da discriminação e do preconceito é cultural. O Brasil foi colonizado para ser explorado economicamente, e não habitado. Por ironia do destino, o Brasil passou a servir como moradia, depois que D. João VI, sob ação de Napoleão, teve que se refugiar no Brasil. Mas dizer que a corrupção no Brasil se deve aos portugueses é absurdo. O Brasil fora habitado por vários povos, e até houve povos que fixaram moradias, como em Pernambuco. Então, de quem é a culpa pela corrupção, pelo racismo no Brasil? Se invocarmos precedente genético caímos na mesmice do erro dos eugenistas, que causaram horrores à humanidade, como, por exemplo, a Segunda Guerra Mundial. Os direitos humanos atuais é um compêndio de pensamentos de vários célebres homens e mulheres do passado na busca pela paz, harmonia, fraternidade e igualdade. Em alguns vislumbres, parecem que os direitos humanos foram concebidos por comunistas e socialistas, que há uma Nova Ordem Mundial a querer escravizar a humanidade. Há, ainda, absurdamente, quem diga que o demônio está agindo disfarçado nos direitos humanos – direitos humanos não faz discriminações à opção sexual. O Muro de Berlin foi destruído, a mentalidade da Guerra fria persiste. Os comunistas e socialistas radicais, remanescentes, querem tomar o poder do capitalismo, o mal do mundo. Os capitalistas, radicais, querem radicar do planeta os comunistas e socialistas remanescentes, pois são comedores de crianças e ateus. As religiões se digladiam para apresentarem e imputarem o “verdadeiro” deus aos “iludidos”, de outras religiões. A fé, diante do caos criado por ímprobos gestores públicos, se transformou no maior mercado capitalista, desde os primeiros passos do mercantilismo. As Cruzadas deixaram rastros de ódios, que ainda se perpetuam nas guerras religiosas. A Terceira Guerra Mundial, que quase aconteceu em 1962, com a Crise dos Mísseis Cubanos, parece mais presente do que nunca. Não se pode esquecer que guerra é o resultado de guerras íntimas. O expurgo [ação] é consequência de conflitos íntimos. Mas o íntimo humano não é sempre assombrado por questões ideológicas, o puro sadismo também contribui para deflagrar guerras. Na confusão de ideologias pretéritas, as gerações futuras são ensinadas a odiar o “desigual”. O ser humano “desigual”, então, se revolta contra as pessoas nas quais se dizem “superiores”. As belicosidades se perpetuam entre religiões, nas lutas de classes, entre países, nos lares, nas vias públicas, pelo status social. O que falta na cultura brasileira é a vontade de se unir, de ser um só corpo e mente ao beneficio de todos, independentemente de etnia, morfologia, sexualidade. É possível? Sim. Temos exemplos, e um deles se chama Suécia. O bem-estar deve ser proporcionado a todos os suecos. A vergonha não é o trabalho, seja qual for a atividade laboral, não é ser diferente [morfologia, etnia, sexualidade], e sim ser corrupto, violar o Estado de Direito. Como mudar? Hoje, agora, dizer “Não!” a qualquer ato que viole o Estado de Direito. Esperar que Deus, ou que algum líder, mude o Brasil é ter a certeza de que não há força de vontade em querer mudar. E a mudança começa de dentro para fora, a partir de cada brasileiro.
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O tráfico de pessoas e a correlação com a proteção internacional do princípio da dignidade da pessoa humana
O presente estudo almeja focar a ocorrência do tráfico de pessoas que vem se tornando uma constante hodiernamente. Chamados pelos noticiários veiculados na imprensa, a população fica estarrecida com os requintes de crueldade com que se revestem os atos praticados pelos traficantes, que camuflam o ilícito através de promessas de promoção social e oportunidade de emprego no exterior para os jovens e no caso das crianças, estas são arrancadas do seio familiar, muitas vezes mediante extorsão dos pais, que vivem em situação de miserabilidade extrema, são estes os aspectos sociais. Com isso, em fazendo uma sumária abordagem acerca da posição legal adotada pelo Brasil, signatário que é, de diversos Tratados, em sede de direito internacional, os quais versam sobre o tema, conclui que se torna necessária a busca pela efetivação dos desígnios traçados pelos Direitos Humanos, que estão a salvaguardar o princípio da dignidade humana.
Direitos Humanos
O presente trabalho tem como objetivo propor uma reflexão a respeito da proteção legal, que dispõe acerca do princípio da dignidade da pessoa humana, eis que revestido de amparo sob aspectos multifacetários, inclusive na órbita do direito internacional, quando contemplado o respeito ao ser humano, sob o espeque de direitos humanos. O tráfico de pessoas denota atitude de audaciosa torpeza, ao ser praticada por estrangeiros, que invariavelmente são auxiliados por nacionais, que detêm conhecimento de rotinas e de aspectos que demonstram vulnerabilidade do Brasil, no que pertine à segurança, para entrada e saída de seus cidadãos. Imbuídos no intuito de melhor condição de vida, a promessa destinada à facilitação da obtenção de riquezas no exterior torna-se fator decisivo preponderante à aceitação, entretanto ao se encontrarem em países estrangeiros, estes brasileiros deparam-se com uma realidade muito diversa da prometida, pois para não pagar com suas próprias vidas tem de se submeter à prostituição. De igual sentir, muitas crianças são vítimas de sequestro, para que quadrilhas procedam a entrega destas a famílias estrangeiras, constituindo-se um verdadeiro comércio; uma ilícita atividade mercantil, à qual o Brasil não pode se opor, sobretudo porque detém o dever de proteger os seus jurisdicionados, que nestas circunstâncias encontram-se à mercê do desrespeito à sua dignidade humana.       O tráfico de pessoas é um ranço presente na gama de crimes que sucumbe o sistema jurídico brasileiro, maior gravame circunda-o quando extravazadas as divisas do País. As causas que induzem os infratores são as mais diversificadas, desde o intuito de apoderamento de incapazes (burlando os preceitos legais, afetos ao instituto da adoção) até a de exploração da prostituição, a que são coagidos estes brasileiros, a se submeterem, seja mediante ameaça de lesão a si próprios, ou aos seus entes. Uma linha divisória há que ser apontada, para aquela primeira hipótese aventada: é certo que, exceto a usurpação do direito de os “adotados” manterem contato com sua família biológica, grandiosas são as chances de obterem condições de existência melhores, sob a seara financeira, caracterizando-se um método que abrevia o procedimento voltado à regularização da adoção por adotantes estrangeiros, muitas vezes, prejudicando ainda, “pais interessados”, constantes na lista de espera, há muito tempo (até mesmo em período superior ao aguardado pelos beneficiados), infere-se daí, a implementação de violação à legislação brasileira, mormente ao art. 50, §3º. da Lei 12.010/2009, “in verbis”: § 3o “A inscrição de postulantes à adoção será precedida de um período de preparação psicossocial e jurídica, orientado pela equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar.”  Já, no segundo eixo da citada linha divisória, assenta-se a extensa gama de outros crimes tergiversados e facultados pelo tráfico, destinados à exploração sexual, sendo o caso da coação, quer seja física ou moral, como previsto no art. 22 do Código Penal , o mesmo ocorrendo com o  estabelecido no art. 231 do referido diploma legal, que dispõe, nos seguintes termos: “Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro.” Por fim, enquadrando-se talvez, como sendo o mais grave, desditosamente o estupro (consignado no art. 213 do código penal) é igualmente, bastante comum a sua ocorrência. Além destes, há que se ressalvar que nalgumas circunstâncias, tais crimes são cometidos ainda, contra menores de idade, onde, pó consectário lógico,  outros crimes far-se-iam presentes. Logo, infere-se haver infringência expressa à legislação pátria, sobretudo a Penal, tanto que foram relacionados anteriormente, alguns dos dispositivos legais de maior notoriedade, entretanto, é de se ver que é a dignidade humana que está sendo violada, sendo esta a vertente abordada no item subsequente.   3- A dignidade humana e sua proteção na seara do direito internacional  A dignidade humana, ampla, irrestrita e incondicionadamente assegurada a todo jurisdicionado brasileiro, nato ou naturalizado (art. 12 da Constituição Federal) compõe o art. 1º., inciso III da Constituição Federal. Este princípio (SARLET, p. 97-98): […] “além de constituir o valor unificador de todos os direitos fundamentais, que, na verdade, são uma concretização daquele princípio, também cumpre função legitimatória do reconhecimento de direitos fundamentais implícitos, decorrentes ou previstos em tratados internacionais” […] Pois bem. É inolvidável que aludido princípio constitucional, nominado como sendo o alicerce dos demais princípios, é visceralmente violado a todo momento, dada a humilhação, desrespeito e desonra a que são submetidas as pessoas, vítimas de exploração sexual  e de sequestro, enfim, dos crimes praticados com o intuito de realização de promoção de prostituição. Aliás, é de se salientar que, com a concepção moderna do conceito de direitos fundamentrais, o direito à vida, salvaguardado no art. 5º. da Carta Magna, ostenta atualmente, nuance diversificada, posto que concebe, nas entrelinhas, o direito à existência digna, subsumindo o significado de que, ao Estado brasileiro compete, além da concessão de meios necessários à proteção da vida humana de seus jurisdicionados, também a outorga de todos os mecanismos que se demonstram hábeis à fruição de uma existência saudável, sem traumas e medos. Não se pode olvidar da preocupação com este cenário, que está a transcender a esfera nacional, retratando contumaz luta cravada por vários Países, instrumentalizada através de Tratados Internacionais, eis que é de salientar-se que a dignidade da pessoa humana constitui-se objetivo traçado por todas as constituições democráticas, de todo o mundo moderno. Nos termos do que se concebe como sendo a novel conceituação de dignidade humana, fincados na transformação do que se depreende como sendo as dimensões dos Direitos Fundamentais, mormente na 1ª. dimensão, em que se assentou a autonomia, a independência e esta invasão de privacidade, interferência na vontade daqueles que são enganados, protraídos, seja porque forçados a prostituírem-se, seja porque impedidos de conviverem com sua família e com estes manter qualquer espécie de contato, não restam dúvidas de que têm sua dignidade violada. Assola-se desta maneira, um profundo sentimento de invasão de privacidade, violação à intimidade, presente assim a afronta a vários outros direitos fundamentais, todos eles, sem dúvida alguma, enraizados na dignidade humana, que irradia aqueloutros. Este é o cenário de salvaguarda nacional, mas é de se ressalvar que, com a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45/04, os Tratados que já integravam o nosso ordenamento, permaneceram com o status de norma infraconstitucional e, aqueles que viessem a ser inseridos, após aquela data, deveriam observar aqueles requisitos do § 3º. do art. 5º., para que pudessem ser equiparados à emenda constitucional, para demonstrar a situação atual do nosso ordenamento, quanto à matéria: […] “após a vigência da Emenda nº 45, é possível a coexistência de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos com força de norma constitucional, tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos hierarquicamente equiparados à legislação ordinária e os demais tratados e convenções internacionais sempre com natureza infraconstitucional.” É possível afirmar que, após a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45, há dois patamares de tratados internacionais, cujos preceitos integram o nosso ordenamento, sendo eles: um, equiparado à lei ordinária, por ser anterior à entrada em vigor da mencionada emenda e; o outro, equiparado à emenda, se observadas as exigências para tanto. Diante disso, enfatiza-se que diversos tratados internacionais sobre direitos humanos, que já haviam sido ratificados pelo Brasil, em data anterior à entrada em vigor desta Emenda, permanecem intactos, apesar de terem o status de norma infraconstitucional. Nestes, incluem-se o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, de 1998, além dos pertencentes ao sistema interamericano de direitos humanos. Por tudo isso, as normas protetivas da dignidade humana, ou aquelas que se utilizava, por meio de interpretação extensiva, para fundamentar a sua proteção, permaneceram vigentes na ordem interna brasileira, já que inseridas através de tratados. Eis a salvaguarda internacional da dignidade humana. Logo, os direitos fundamentais são os direitos, destinados ao ser humano, reconhecidos e positivados por cada Estado; enquanto, direitos humanos transcende a órbita do direito interno de cada Estado, por serem reconhecidos universalmente, através de documentos de direito internacional. Dessa maneira, pode-se dizer que os direitos fundamentais são aqueles consagrados constitucionalmente, enquanto os direitos humanos são consagrados na esfera de abrangência internacional. Saliente-se que, com o advento da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, a qual acresceu, dentre outros, o § 3º ao Art. 5º da Constituição Federal, que estatui: Art. 5º: […]. § 3º – “Os Tratados e Convenções Internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.” Assim, pode-se afirmar veementemente que, de forma genérica a Constituição Federal previu a proteção dos direitos humanos. Em suma, o que se pretende chamar a atenção é para o fato de que, seria simplista demais atribuir aos direitos humanos o sinônimo de direitos consagrados internacionalmente; pois não obstante inexista previsão específica na Constituição Federal, acerca de sua proteção, é inolvidável que a contar da Emenda nº 45/04, há reconhecimento genérico, no âmbito constitucional, ao instituto dos direitos humanos, como verificado. Pode-se então dizer, que os direitos fundamentais encontram guarida protetiva, elencada no rol dos direitos e garantias da Constituição Federal, ressalve-se que não se refere tão-somente à epígrafe do Título II, mas a todos aqueles dispositivos que têm como cerne a salvaguarda dos direitos das pessoas e logo estão regulados na órbita interna. Já, os direitos humanos integram o ordenamento internacional e, no caso do Brasil, há ainda previsão genérica, no âmbito constitucional.  4- Conclusões  A dignidade da pessoa humana é princípio que se encontra consagrado na Constituição Federal, sendo inconteste que sua aplicação transcende as fronteiras nacionais, dado o respeito à novel significância de direitos humanos, que se torna viável pela interpretação atribuída aos tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário e que adentram no País, segundo os preceitos traçados pelo art. 5º., parágrafo 3º. da Constituição Federal, isto tudo com o anseio de proteger as vítimas de tráfico internacional, que engloba uma gama de crimes, que estão a assolar o nosso País, infortúnio para o qual não se pode “fechar os olhos”.
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As dimensões do trabalho decente como concretização dos Direitos Humanos Fundamentais
O presente artigo tem como objetivo analisar, em termos jurídicos, a importância das dimensões fixados pela Organização Internacional do Trabalho para o trabalho decente, reafirmando-o como elemento primordial na proteção dos direitos humanos fundamentais, sintetizados no princípio da dignidade da pessoa humana e valor social do trabalho no âmbito das relações de trabalho.
Direitos Humanos
Introdução O trabalho sempre foi descrito, no decorrer da história, como o desenvolvimento de uma atividade penosa, fatigante e dolorosa, todavia, a busca pela dignidade do homem, os avanços sociais e a instituição de um ente que estabelecesse patamares mínimos de direitos fundamentais, foram componentes que eclodiram no cenário do século XIX para garantir que esse quadro se transmutasse na busca pelo trabalho como desenvolvimento humano e plena liberdade. Nesse sentido, o valor fundante dos sistemas democráticos de direito, como o nosso e o da maioria dos países, são representados através dos direitos humanos fundamentais, que irradiam seus valores nas relações de trabalho via poder orientador dos princípios da dignidade humana e do valor social do trabalho. Assim, a relação intrínseca entre trabalho e dignidade humana se evidencia na garantia do equilíbrio entre os direitos à vida, liberdade, igualdade e todos os outros princípios corolários do Estado Democrático de Direito, elevando o trabalho decente como elemento integrante da efetiva concretização dos direitos fundamentais. É nesse diapasão que a Organização Internacional do Trabalho fixou metas e elementos essenciais para a garantia do trabalho decente, de forma a eliminar qualquer labor que se associe a ideia de trabalho degradante, forçado ou até mesmo escravo. 1. Trabalho Decente Nas palavras de Sachs (2004) trabalho decente é: “emprego (ocupação) assalariado e por conta própria, com proteção social básica (i.e. pelo menos a proteção de acidentes e doenças ocupacionais, aposentadoria e auxilio maternidade), com respeito aos princípios e direitos fundamentais no trabalho (i.e. em liberdade e igualdade entre homens e mulheres e raças, sem trabalho infantil, sem trabalho forçado, e com direitos de associação e de negociação), e com dialogo social – i.e. com representantes de governos e de organizações de empregadores e de trabalhadores (i.e. onde os governos e seus parceiros sociais julgarem adequado, de outras organizações não governamentais da sociedade civil)” Tal definição se consolida na fixação de parâmetros que estabeleçam condições mínimas de segurança e dignidade compatíveis com o atual estágio civilizatório das relações sociais, convergindo-se em marco comum de incidência dos direitos humanos e trabalhistas, partindo dessa premissa é que se evidencia o caráter absoluto dos direitos abarcados por esse conceito, na visão de Maurício Delgado (2007, p. 217-218): “Absoluta será a indisponibilidade, do ponto de vista do Direito Individual do Trabalho, quando o direito enfocado merecer uma tutela de nível de interesse público, por traduzir um patamar civilizatório mínimo firmado pela sociedade política em um dado momento histórico.” O trabalho exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, e adequadamente remunerado, é condição crucial na superação da pobreza, redução das desigualdades sócias, além de se propugnar a garantir a governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável. 2. O princípio da dignidade humana e do valor social do trabalho como alicerce ao conceito de trabalho decente É consentânea com a definição de dignidade da pessoa humana a asserção de que subsiste uma estreita relação entre esta e o atual contexto histórico mundial, conferindo autêntico processo evolutivo e dinâmico ao espírito deste princípio. Corrobora com esta ilação os inúmeros movimentos que perante situações negativas (escravidão, preconceito racial, racismo, perseguições, Inquisição, nazismo e genocídio) pleitearam direitos individuais ou sociais até que se alcançasse o sentido conjuntural atual. Miranda Carvalho define essa relação direta como “reconhecimento, (valoração) pelo homem, da sua existência em outros homens, animais e coisas” (2014) . A Declaração dos Direitos do Homem, regramento que alavancou a universalização dos direitos humanos, proclama o norte básico de conceituação do termo como valor que concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, inerentes à pessoa humana, afastando a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual, nas palavras de Ingo Sarlet (2011, p. 73): “ […] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.” Como instrumento de solidificação deste princípio encontra-se o trabalho decente, núcleo central e informador das relações laborais de um Estado Democrático de Direito. A dignidade laboral, por si só, configura-se em um pilar estrutural do contrato de trabalho, um super princípio que se designa a regular as relações dos homens com exigências para um mínimo de dignidade. Sussekind vai além e afirma que “o respeito à dignidade do trabalhador constitui um dos direitos superestatais inerentes ao ser humano, cuja observância independe da vigência de leis nacionais ou internacionais” (2000, p. 146). Diante do panorama de proteção ao trabalhador e garantia do trabalho digno como decorrência direta do princípio da dignidade humana em um Estado, é que surge o princípio do valor social do trabalho, interligado ao sentido deste integrar um direito social por excelência, um verdadeiro garantidor da liberdade social, não o associando exclusivamente apenas ao efeito de independência jurídica do indivíduo. Nessa esteira é que Moraes define os direitos sociais tanto como liberdades positivadas quanto como fundamento de um Estado Social de Direito, de modo a amparar e materializar a igualdade social, na tentativa de equiparar os hipossuficientes na busca pela melhoria de suas condições de vida (2003, p.61). A assepsia da expressão “valor social do trabalho” deve proporcionar a compreensão de trabalho juridicamente resguardado, imprimindo ao emprego em si uma relação de sinonímia como pressuposto de inserção do trabalhador no sistema capitalista globalizado, de modo que os imperativos principiológicos constitucionais harmonizem-se e garantam um patamar concreto de afirmação individual, familiar, social, ético e econômico (DELGADO, 2004, p. 36). Jungindo os princípios elencados desponta o trabalho decente como anseio às relações laborais, e o trabalho degradante e forçado como antíteses mais relevantes, tendo em vista a restrição à liberdade do trabalhador e a não observância dos direitos mínimos para o resguardo de sua dignidade. 3. Arcabouço normativo de tutela O arcabouço legislativo pátrio concernente a proteção do trabalho decente verte-se em diversas bases no ordenamento não se vinculando apenas ao mandamento constitucional dos artigos do capítulo II – Dos Direitos Sociais de nossa Carta Magna e na Consolidação das Leis do Trabalho, porém, estes direcionam todo o sistema jurídico de tutela ao difundir seus preceitos nos demais dispositivos esparsos na própria Lei Maior e demais leis esparsas. Cabe ao empresário o dever de manter o ambiente do trabalho saudável e garantir o respeito à condição moral do obreiro, salvaguardando, indiretamente, o direito do trabalhador à saúde e à dignidade do indivíduo. Embora a ótica fundamental, revelada pela previsão expressa constitucional de compensações e reparações para situações de exposição do trabalhador a um meio ambiente de trabalho inadequado, ou até mesmo por situações vexatórias que abalem sua moralidade, provoque a impressão de desconstituição de seu grau de eficácia, a Constituição, todavia, apenas enaltece a importância do vilipêndio ao seu equilíbrio sob o enfoque de duas medidas precípuas. Em um primeiro momento estabelece a prevenção das situações de risco sem, contudo, ignorar a realidade existente do frequente desplante das medidas preventivas, prevendo, em um segundo instante, compensações financeiras pelo empregador, como os adicionais de insalubridade e periculosidade, e as indenizações decorrentes de dano material ou moral ao trabalhador. Entretanto, as situações provenientes do meio ambiente de trabalho devem revelar seu caráter transitório na medida do possível, pois o que se almeja é a sua eliminação e substituição definitiva por condições salubres de labor. O mesmo pode se dizer da incidência do dano moral, com ele não se pretende apenas satisfazer a compensação monetária ao autor em substituição ao dano sofrido, mas também aplicar ato punitivo ao empregador com caráter pedagógico. Ressalta-se que a estrutura de proteção não se coaduna somente nos preceitos constitucionais e legais, a Constituição expressamente previu a hipótese de alargamento desses direitos por meio de convenções internacionais, tendo a doutrina e jurisprudência resguardado o status de tratado de direitos humanos às convenções que tratam sobre o tema (DELGADO, 2010, p. 55).      Destarte, cumprindo sua atribuição de sistematizar as garantias dos direitos fundamentais às relações de trabalho, a Organização Internacional do Trabalho, por meio de convenções e recomendações, sintetiza as metas e planos para seus Estados-membros, de forma a promover a expansão do conceito de trabalho decente. 4. Dimensões do trabalho decente como efetivação dos direitos humanos fundamentais Seguindo a dialética de redução pela metade da pobreza mundial até 2015 perpetuada pela Organização das Nações Unidas, a Organização Internacional do Trabalho estabeleceu como meta a promoção do trabalho decente, tal ideal foi asseverado na 87ª. Conferência Internacional do Trabalho: “(…) promover oportunidades para que os homens e as mulheres possam conseguir um trabalho decente e produtivo, em condições de equidade, segurança e dignidade humana.” Dessa forma, a OIT apoia-se em quatro eixos fundamentais para busca do trabalho decente (2006), que podem ser sintetizados como: a) respeito às normas internacionais do trabalho, em especial aos princípios e direitos fundamentais do trabalho (liberdade sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; eliminação de todas as formas de trabalho forçado; abolição efetiva do trabalho infantil; eliminação de todas as formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação); b) promoção do emprego e qualidade; c) extensão da proteção social; d) diálogo social. A base dessas premissas foi introduzida em oito convenções e recomendações que fazem parte da Declaração Relativa aos Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho, que, devido a importância do tema, foram definidas como essenciais na busca pelo trabalho digno, tendo suas normas sido estabelecidas como obrigatórias a todos os Estados-Membros, sem que houvesse a instituição de qualquer ratificação, para que o Estado reafirmasse, desta feita, o seu compromisso com o ente internacional. A Organização teve como fundamento para produção das dimensões do trabalho decente a compreensão de que o trabalho é uma fonte de dignidade humana, estabilidade familiar, paz social, democracia, e crescimento econômico que expande oportunidade para trabalhos produtivos e desenvolvimento de empresas (RODGERS, p. 222). Apesar das questões abarcadas não inovaram na ordem jurídica internacional, visto que tais aspirações já se encontravam positivadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, tais enunciações de direitos foram apenas renovadas e ratificadas como pretensão objetiva de efetivação de modo a orientar as políticas governamentais dos países integrantes da OIT. No Brasil, os eixos fundamentais foram assumidos como compromisso pelo então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em junho de 2013 através do Memorando de Entendimento, prevê este o estabelecimento de um Programa Especial de Cooperação Técnica para a Promoção de uma Agenda Nacional de Trabalho Decente, com consulta aos empregadores e trabalhadores organizados. Importante frisar que a garantia dessas premissas está diretamente vinculada a eficácia dos direitos fundamentais, não apenas contra o Estado, mas também contra particulares, contemplando, respectivamente, a eficácia vertical e horizontal desses direitos. Na busca pela justiça social e sua relação com os poderes constituídos, Bobbio elucida a convergência entre estes (2004, p. 70): “De qualquer modo, uma coisa é certa: os dois grandes blocos de poder descendente e hierárquico das sociedades complexas – a grande empresa e a administração pública – não foram até agora sequer tocados pelo processo de democratização. E enquanto estes dois blocos resistirem à agressão das forças que pressionam a partir de baixo, a transformação democrática da sociedade não pode ser dada por completa.” Desta feita, o Estado deve cumprir seu papel de garantidor, produzindo normas concernentes aos objetivos propostos pela OIT, ao mesmo tempo que o empregador, cumprindo seu papel social, respeita e aplica internamente as diretrizes fixadas, repudiando qualquer atividade que submeta o obreiro a situações atentatórias à sua dignidade. A articulação entre esses atores sociais na garantia ao trabalho decente, seja na produção legislativa ou no respeito e aplicação destas, assegura que a plenitude dos objetivos propostos seja alcançada com a fundamentalidade em sentido formal e material[1] da dignidade intrínseca ao obreiro. Conclusão Tanto o Poder Público como a própria sociedade não devem admitir afrontas ao direitos humanos fundamentais nas relações de trabalho, principalmente aos princípios da dignidade humana e do valor social do trabalho,  possuindo o dever social de coibir práticas como trabalho análogo à condição de escravo, trabalho forçado e trabalho degradante. Nesse contexto, a instituição de uma agenda é uma medida positiva na adequação e criação de políticas públicas que visem à melhoria dos direitos do trabalhador de forma a criar um programa de prioridades a serem seguidas possibilitando maiores avanços sociais. De modo a nortear todo o sistema jurídico de um Estado na garantia do trabalho decente, a Organização Internacional do Trabalho cumpre seu papel na elaboração de pesquisas globais e instituição de diretrizes basilares na busca pela efetivação do trabalho decente. O Brasil ainda engatinha em sua formulação completa, mas já adquire certos “avanços” em relação ao panorama global, como é o caso da implementação de medidas para inclusão no mercado de trabalho das pessoas portadoras de necessidades especiais (Instrução Normativa 20/2001), da lei do primeiro emprego (Lei 11.692/2008), lei do estágio (Lei 11.788/2008) e, mais recentemente, da inclusão do trabalho escravo como hipótese de expropriação de terras urbanas e rurais (Emenda Constitucional 81/2014). Portanto, a adoção de uma agenda que se propugne a garantia dos direitos fundamentais do obreiro, seguindo os moldes das diretrizes estabelecidas pelo ente internacional, cumpre seu papel na direção de políticas públicas que garantam a plenitude do trabalho decente, ao mesmo tempo que eleva os Direitos Sociais à condição de Direito Fundamental, cumprindo a meta de um real Estado Democrático de Direito.
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A dignidade da pessoa humana e o meio ambiente do trabalho
O presente artigo tem como objetivo ventilar a importância de um meio ambiente saudável, protegendo a dignidade da pessoa humana a fim de garantir uma vida saudável e digna. Também tem como proposta, o estudo da dignidade da pessoa humana como direito humano e princípio fundamental, também o conceito de meio ambiente em todas as suas formas, a além de analisar os danos causados a vida do trabalhador por um meio ambiente do trabalho lesado e se isso acomete o Princípio da Dignidade Humana.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A dignidade da pessoa humana juntamente com os valores sociais do trabalho são fundamentos da república, o direito ao trabalho e a um meio ambiente devidamente equilibrado e protegido são direitos fundamentais sociais, todos positivados na Constituição Federal de 1988. O homem como centro do universo e do direito tem como qualidade inerente a si a dignidade da pessoa humana, e por isso é receptor desses e de muitos outros direitos e garantias fundamentais.  O presente estudo tem como tema a Dignidade da Pessoa Humana e o Meio Ambiente do Trabalho e pretende analisar as condições de trabalho oferecidas pelo empregador como garantia de uma vida digna. E em razão disso o problema que se apresenta é o seguinte: O meio ambiente do trabalho prejudicado pelo descaso do empregador fere a dignidade da pessoa humana do empregado?  A justificativa da relevância se dá pela importância do exercício do trabalho como direito fundamental social como forma de subsistência do homem e de sua família. Também é importante observar a importância do presente estudo, tendo em vista o passado do país, a história da escravidão e trabalhos degradantes que comprometiam a vida do homem em todas as suas formas. Ressalta-se ainda que atualmente ainda existam trabalhos que não proporcionam condições saudáveis para o exercício das atividades laborativas. Sabe-se também da existência de condições análogas a escravidão que comprometem a saúde do trabalhador trazendo danos imensos a sua vida. O trabalho tem como objetivo geral demonstrar a importância de um meio ambiente do trabalho saudável para a construção de uma vida com dignidade. Para tanto, foram traçados os seguintes objetivos específicos, analisar a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental, definir e conceituar o meio ambiente, Demonstrar os danos causados a vida do trabalhador pela ausência de um meio ambiente do trabalho saudável e a importância dele para a construção de uma vida digna.  A teoria que embasou a presente pesquisa é o estudo crítico e argumentativo das condições saudáveis de trabalho como meio de proteger  o Principio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. A elaboração deste artigo dar-se-á através do método de abordagem é o dedutivo e os métodos de procedimento são o comparativo e funcionalista. Utilizar-se-á basicamente as pesquisas bibliográficas, através da análise de fontes secundárias, e documentais, através da análise legal e jurisprudencial. 1. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO DIREITO FUNDAMENTAL. A Dignidade da Pessoa Humana é Princípio Fundamental, expressa no artigo 1º, III, da CRFB/88. Essência dos direitos fundamentais, princípio de valor supremo da sociedade moderna. A dignidade, atributo inerente a todo e qualquer homem decorrente da própria condição humana, dado pela importância do homem na sociedade como centro do Direito e de todo e qualquer ordenamento existente. A etimologia da Palavra vem do latim dignitas, que significa tudo que merece ser respeitado, Na antiguidade o conceito de dignidade da pessoa humana estava ligado a condição social do individuo, tudo aquilo que lhe desse mérito de algum modo, méritos que poderiam ser conquistados pelo dinheiro, títulos de nobreza ou até pela capacidade intelectual. (AGRA, 2007, p. 100). Ou seja, as pessoas eram tituladas de mais dignas ou menos dignas de acordo com o lugar que ocupava na sociedade. Nem sempre existiu um conceito para dignidade da pessoa humana, este foi sendo construído ao longo dos anos decorrente de diversas circunstâncias históricas e se tornando um dos principais direitos do homem. Teve sua origem ideológica fundada no pensamento cristão, na teoria bíblica de que o homem é imagem e semelhança do próprio Deus, devendo ser respeitado e adquirindo assim uma dignidade intocável. Sarlet (2012, p. 33), expõe que “Ao pensamento cristão coube, fundados na fraternidade, provocar a mudança de mentalidade em direção à igualdade dos seres humanos”. Assim, sendo todos filhos amados de Deus criava-se um ideal de igualdade universal. Já para Comparato (2005, p.18), “[…] essa igualdade universal dos filhos de Deus só valia, efetivamente, no plano sobrenatural, pois o cristianismo continuou admitindo, durante muitos séculos, a legitimidade da escravidão, a inferioridade natural da mulher em relação ao homem, bem como a dos povos americanos, africanos e asiáticos colonizados, em relação aos colonizadores europeus.” Mesmo o cristianismo, submetendo-se a atitudes que banalizavam o ideal de igualdade da própria doutrina, o mesmo teve participação efetiva na construção do conceito de igualdade. A filosofia também teve sua participação na edificação desse conceito, no século XVIII com influencia do pensamento jusnaturalista, a dignidade da pessoa humana era um direito natural partindo do ideal de igualdade e liberdade para todos. Já Kant (2007, p. 77), afirma que no mundo tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando algo possui um preço, este pode ser substituído por algo equivalente, e quando alguma coisa está acima de todo e qualquer preço, não aceitando substituição, este tem dignidade. A teoria de Kant, fora a mais significativa do momento, pois desprezou a ideia do homem reduzido a condição de objeto, trazendo a dignidade como valor insubstituível da pessoa humana. Foi no final da segunda década do século XX, que a dignidade da pessoa humana passou a constar nos documentos jurídicos, inicialmente nas Constituições do México (1917) e da Alemanha de Weimar (1919). Também presente em textos, como o Projeto de Constituição do Marechal Pétain (1940), na França, durante o período de cooperação com os nazistas, e na Lei Constitucional ordenada por Francisco Franco (1945), durante a tirania espanhola. Após a Segunda Guerra Mundial, a dignidade humana foi incorporada aos principais documentos internacionais, como a Carta da ONU (1945), a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e outros tratados e pactos internacionais. (BARROSO, 2010, p.5) Em 1948, o conceito de dignidade ganhou ainda mais importância com o advento da Declaração dos Direitos do Homem, pois em seu preâmbulo, reconheceu a dignidade da pessoa humana como direito inerente ao homem, juntamente com direito de igualdade inalienável, tendo como fundamentos a liberdade, justiça e a paz mundial. Em seu artigo 1º, traz expressamente que “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.” A partir daí, a dignidade passa a ser reivindicada como direito, e considerado essência do sistema jurídico. E assim, além de todo campo alcançado, a dignidade da pessoa humana começa a ganhar também espaço nos textos constitucionais. “A primazia, no particular, tocou à Constituição alemã (Lei Fundamental de Bonn, 1949), que previu, em seu art. 1º, a inviolabilidade da dignidade humana, dando lugar a uma ampla jurisprudência, desenvolvida pelo Tribunal Constitucional Federal, que a alçou ao status de valor fundamental e centro axiológico de todo o sistema constitucional. Diversas outras Constituições contêm referência expressa à dignidade em seu texto – Japão, Itália, Portugal, Espanha, África do Sul, Brasil, Israel, Hungria e Suécia, em meio a muitas outras – ou em seu preâmbulo, como a do Canadá. E mesmo em países nos quais não há qualquer menção expressa à dignidade na Constituição, como Estados Unidos e França, a jurisprudência tem invocado sua força jurídica e argumentativa, em decisões importantes. (BARROSO, 2010, p. 5).” Assim, as cortes constitucionais de diversos países deram inicio a uma conversa transnacional, se valendo dos fundamentos utilizados pelas outras cortes, dividindo um sentido comum para a dignidade. Inicialmente, a concretização da dignidade, foi considerada tarefa privativa dos Poderes Legislativo e Executivo. Apenas no fim do século XX é que a dignidade se aproxima do Direito. Barroso (2010, p.247), afirma que a dignidade da pessoa humana “ao viajar da filosofia para o Direito, sem deixar de ser um valor moral fundamental, ganha também status de princípio jurídico”. A noção de dignidade da pessoa humana passa por constantes mudanças até os dias atuais, devido aos conflitos históricos e culturais de cada nação, e também devido a influências politicas e ideológicas. Os conceitos jurídicos de dignidade da pessoa humana são inúmeros, porém todos se direcionam para o mesmo destino. Como lembra-se, anteriormente, a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da nossa atual Constituição, porém seu significado ainda é muito discutido. Existe uma vasta lista sobre seu conceito e também sua abrangência. Nesse sentido Comparato (1998, p. 176.) afirma que: “A nossa Constituição de 1988, […], põe como um dos fundamentos da República ‘a dignidade da pessoa humana’ (art. 1º, inciso III). Na verdade, este deveria ser apresentado como o fundamento do Estado brasileiro e não apenas como um dos seus fundamentos. […] Se o direito é uma criação humana, o seu valor deriva, justamente, daquele que o criou. O que significa que esse fundamento não é outro, senão o próprio homem, considerando em sua dignidade substância da pessoa, cujas especificações individuais e grupais são sempre secundárias.” Assim, o autor traz a importância do referido fundamento, afirmando que a dignidade da pessoa humana vai além do que um dos fundamentos da República, sendo o fundamento maior do Estado, sendo o homem centro do direito e do Estado. Para Silva (2014, p.117) “a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do Homem, desde o direito à vida”. Já Hegel (apud SARLET, 2012, p.45), afirma que a Dignidade da pessoa humana é uma qualidade a ser conquistada, o ser humano não nasce digno e sim, torna-se, quando assume sua condição de cidadão. Seelmann (apud SARLET, 2012, p.45) afirma que o mais adequado seria ponderar que o pensamento de Hegel “encontra-se subjacente uma teoria da dignidade como viabilização de determinadas prestações”. Piovesan (2003 p.188) ao ponderar sobre a universalização dos direitos humanos afirma que o desenvolvimento de um sistema internacional composto por tratados, baseia-se na recepção da dignidade da pessoa humana como valor que norteia o universo dos direitos, a autora ainda conceitua que: “Todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano. O valor da dignidade humana se projeta, assim, por todo o sistema internacional de proteção. Todos os tratados internacionais, ainda que assumam a roupagem do Positivismo Jurídico, incorporam o valor da dignidade humana.” Mas uma vez a dignidade da pessoa humana é vista em valor máximo dentro do sistema jurídico, devendo estar presente inclusive dentro dos tratados internacionais. Para Bonavides (2011 p.422), “a dignidade do homem é o valor mais alto da Constituição”, Sarlet (2012, p. 22), parafraseando o pensamento supra de Bonavides, afirma que a dignidade da pessoa humana é “a norma das normas dos direitos fundamentais, elevada assim ao mais alto posto da hierarquia jurídica do sistema”. Ou seja, a dignidade da pessoa humana como princípio maior entre todos os princípios, tem valor insuperável diante da vida humana. Assim, passa-se a análise de alguns conceitos a fim de integrar a dignidade da pessoa humana com os direitos fundamentais. Esclareça-se que a dignidade da pessoa humana não é apenas uma qualidade inerente a condição humana e nem apenas um direito fundamental, mas deve estar presente na prestação e garantia de todos os direitos fundamentais, desde a vida em sua concepção. Silva (2014, p. 117) ainda conclui: “Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais, observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não qualquer uma ideia apriorística do Homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a quando se trate de direitos econômicos, sociais e culturais.” A ideia de que a dignidade da pessoa humana seja a garantia mínima de todos os direitos fundamentais é um pensamento que agrada a muitos doutrinadores. Para Sarlet e Figueiredo (2008, p.24) a garantia de uma vida minimamente digna é necessário o conteúdo de um mínimo existencial, e que o mesmo deve se “manter em harmonia com o entendimento constitucional apropriado do direito à vida e da dignidade da pessoa humana como principio constitucional fundamental.” Entre tantos posicionamentos e tentativas de conceituação de dignidade da pessoa humana, tendo em vista o extenso conteúdo que envolve o homem e seus valores, Sarlet (2012, p. 73), traz seu conceito afirmando ser uma proposta em reconstrução, tendo como intenção a maior afinidade possível com uma concepção multidimensional aberta e inclusiva de dignidade da pessoa humana. Veja-se: “Qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante os demais seres que integram a rede da vida.” O autor tenta ao máximo integralizar a dignidade da pessoa humana como qualidade inerente a condição de ser humano, como também trazer a importância de existir respeito por parte do estado e da sociedade, assim como condições mínimas necessárias, prestadas pelo Estado, para que o ser humano na condição de homem e cidadão viva de forma adequada. Desse modo, nota-se a imensidão das propostas de conceituação da dignidade da pessoa humana, e também sua importância, não apenas como fundamento de muitas Constituições, inclusive a do Brasil, mas também como núcleo essencial dos direitos fundamentais. 2. MEIO AMBIENTE E MEIO AMBIENTE DO TRABALHO. Com a evolução social acelerada, o homem passa a apresentar cada vez mais necessidades diversas, e uma dessas necessidades é a preocupação com a preservação do meio ambiente. Tal preocupação é decorrente do processo de industrialização, pelo qual o homem passou a utilizar-se de recursos naturais de maneira completamente irresponsável e desenfreada. Assim, surgiu o direito ambiental como instrumento de proteção do meio ambiente saudável, como meio de proteção a sociedade. O direito ao meio ambiente é direito fundamental, reconhecido dentro da terceira[1] dimensão dos direitos fundamentais, conhecida também como direitos de fraternidade, tem como objeto o direito à proteção ao meio ambiente equilibrado, proteção ao consumidor, direito à autodeterminação dos povos, direito à paz entre outros. A Constituição da Republica Federativa do Brasil promulgada em 1988, no título VIII, traz  no capitulo VI artigo 225, caput, que “todos tem direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial a sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e a coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Assim, sabe-se que há dispositivo legal que resguarde o meio ambiente como fator fundamental para uma vida com qualidade. O conceito de meio ambiente teve sua definição com a chegada da lei 6.938 de 1981, chamada Lei de Politica Nacional do Meio Ambiente, que dispõe em seu art. 3º, I “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. A definição trazida pela lei é bastante abrangente, e embora a lei tenha sido editada anterior a CRFB/88, foi devidamente recepcionada pela Lei Maior. Também em seu artigo 1º a lei traz que a Política Nacional do Meio Ambiente “tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana”. Mas uma vez o texto constitucional defende a qualidade de vida como requisito importante para a manutenção da dignidade do homem. Embora não haja controvérsias no conceito de meio ambiente, esse conceito tem sido classificado em quatro diferentes divisões, meio ambiente natural, cultural, artificial e do trabalho. Essas divisões tem o objetivo de facilitar o estudo do meio ambiente e rapidamente promover a identificação de toda e qualquer atividade ofensiva ao ambiente. O meio ambiente natural, conhecido também como ambiente físico, é constituído pela fauna, flora, solo e também pelas águas. Fiorillo (2013, p.50) conceitua meio ambiente natural como sendo constituído “pelos elementos da biosfera, pelas águas (inclusive pelo mar territorial), pelo solo, pelo subsolo (inclusive recursos minerais), pela fauna e flora. Concentra o fenômeno da homeostase, consistente no equilíbrio dinâmico entre os seres vivos e meio em que vivem”. Já o meio ambiente artificial é conceituado como todo o espaço urbano construído. Melo (2013, p.28) define o meio ambiente artificial como sendo: “É o espaço urbano habitável, constituído pelo conjunto de edificações feitas pelo homem, estando ligado ao conceito de cidade, embora não exclua os espaços rurais artificiais criados pelo homem. Diz respeito aos espaços fechados e equipamentos públicos, recebendo tratamento especial da nossa Constituição Federal nos arts. 5º, XXIII, 21, XX, 182 e 225, sendo seus principais valores a sadia qualidade de vida e a dignidade da pessoa humana.” O meio ambiente cultural trata-se da história, da cultura de um povo. Silva (2013, p.337) observa que meio ambiente cultural “é integrado pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico, turístico, que embora artificial em regra, como obra do homem, difere do anterior (que também é cultural) pelo sentido de valor especial”. Completa-se o conceito de meio ambiente cultural o pensamento de Fiorillo (2013, p.53), que afirma que: “O meio ambiente cultural por via de consequência manifesta-se no século XXI em nosso país exatamente em face de uma cultura que passa por diversos veículos reveladores de um novo processo civilizatório adaptado necessariamente à sociedade da informação, a saber, de uma nova forma de viver relacionada a uma cultura de convergência em que as emissoras de rádio, televisão, o cinema, os videogames, a internet, as comunicações por meio de ligações de telefones fixos e celulares etc. moldam uma “nova vida” reveladora de uma nova faceta do meio ambiente cultural, a saber, o meio ambiente digital.” Assim, devido ao processo de globalização acelerado que a sociedade se encontra, principalmente, se tratando de tecnologia, tudo aquilo que é produzido através dos veículos digitais, é considerado patrimônio cultural da humanidade. Encontrando proteção dentro do direito ambiental como meio ambiente digital. E por último, meio ambiente do trabalho, é aquele onde as pessoas exercem suas atividades laborativas. O conceito mais adequado sobre meio ambiente do trabalho é o trazido por Fiorillo (2013, p.53), pois não se restringe ao trabalhador convencional, aquele que trabalha registrado. Veja-se: “Constitui meio ambiente do trabalho o local onde as pessoas desempenham suas atividades laborais relacionadas à sua saúde, sejam remuneradas ou não, cujo equilíbrio está baseado na salubridade do meio e na ausência de agentes que comprometam a incolumidade físico-psíquica dos trabalhadores, independente da condição que ostentem (homens ou mulheres, maiores ou menores de idade, celetistas, servidores públicos, autônomos etc.).” É muito relevante o conceito abrangente trazido pelo autor, pois garante a efetividade do artigo 225, caput, da CRFB/88, assegurando a todos, sem distinção, um meio ambiente saudável, necessários para garantia de uma boa qualidade de vida. Assim, é importante ressaltar que o meio ambiente do trabalho não se limita apenas a um local de trabalho adequado ao trabalhador, tudo aquilo que o trabalhador está exposto dentro do exercício de suas funções é englobado dentro de um contexto de meio ambiente do trabalho.   Os instrumentos manuseados pelo trabalhador, a execução de tarefas, o tratamento que é destinado ao empregado pelo empregador ou até mesmo pelos colegas de trabalho são considerados meio ambiente do trabalho. Para melhor elucidação disso Melo (2013, p.29) explica que: “Em um ambiente onde os trabalhadores são maltratados, humilhados, perseguidos, ridicularizados, submetidos a exigências de tarefas abaixo ou acima de sua qualificação profissional, de tarefas inúteis ou ao cumprimento de metas impossíveis de atingimento, naturalmente haverá uma deterioração das condições de trabalho, com adoecimento do ambiente e das condições de trabalho, com extensão até para o ambiente familiar. Por tanto, o conceito de meio ambiente do trabalho deve levar em conta a pessoa do trabalhador e tudo que o cerca.” O meio ambiente de trabalho apropriado é um direito fundamental ao trabalhador, pois a agressão a esse direito provoca muitos danos à vida do trabalhador. Como se sabe, mesmo existindo legislação que regulamente essas relações, é cada vez maior o número de acidentes do trabalho e doenças ocupacionais causadas pelo descumprimento das normas. O Ministério do Trabalho e Emprego e um dos principais órgãos estatais responsável pela fiscalização e cumprimento da legislação, porém muitas vezes se mostram ineficazes. Sobre a legislação e a ineficiência dos órgãos de fiscalização, Melo (2013, p. 31), se posiciona da seguinte maneira: “Na prática, tais normas não são efetivamente cumpridas, como mostram as estatísticas de acidentes, porque, se, de um lado, existe a cultura atrasada e perversa de parte do empresariado, de outro, as multas aplicadas administrativamente pelos órgãos fiscalizadores são insuficientes para forçar os responsáveis a manter ambientes seguros e salubres. Isso se agrava mais ainda quando a soluções dependem da implementação de medidas coletivas, que são mais caras do que simples fornecimento de equipamentos individuais, embora mais eficientes na prevenção dos riscos ambientais.” Mas, o Estado quando não apresenta soluções na esfera administrativa, se faz necessário à busca por soluções através do Poder Judiciário, E essa intervenção judicial, se fará necessária até que se conscientizem todas as esferas sociais sobre a importância da prevenção dos riscos ambientais do trabalho, tendo em vista que se trata de direito fundamental à vida do trabalhador e não apenas direito trabalhista. Melo (2013, p.32) pondera que “não é um mero direito trabalhista vinculado ao contrato de trabalho, pois a proteção daquele é distinta da assegurada ao meio ambiente do trabalho, porquanto esta última busca salvaguardar a saúde e a segurança do trabalhador no ambiente em que desenvolve suas atividades”. Percebe-se que a proteção à saúde e a segurança nos remetem ao direito à vida, bem maior para o homem e para a sociedade. Novamente, Melo (2013, p.34) vem acrescentar que “o direito ambiental como ramo do Direito veio sedimentar a ideia da quebra de dicotomia direito privado e direito público, portanto esse novo ramo não pertence nem a uma nem à outra espécie do direito, mas uma nova categoria autônoma do direito.” Ou seja, o caráter interdisciplinar do meio ambiente do trabalho, quer seja para o direito ambiental ou direito do trabalho, não interfere na necessidade de uma vida com qualidade. É importante destacar que o direito ao meio ambiente do trabalho se difere dos direitos do trabalhador, o primeiro trata-se da pessoa do trabalhador, de sua saúde, proteção e segurança no exercício de sua atividade laborativa, para que não seja prejudicada a saudável qualidade de vida do trabalhador como pessoa humana, o segundo e ultimo, vem regular excepcionalmente as relações de trabalho com vínculos de subordinação. O meio ambiente do trabalho é direito difuso fundamental, bem de todos, por isso deve ser protegido pelo Estado e pelo povo. É importante lembrar que a degradação do meio ambiente e também do meio ambiente do trabalho, mesmo tendo resultados imediatos de forma individual, atinge principalmente a sociedade no todo, que sofre os prejuízos em curto ou em longo prazo. Fiorillo (2013, p.42) afirma que: “A Constituição Federal de 1988 consagrou de forma nova e importante a existência de um bem que não possui características de bem público e, muito menos, privado, voltado à realidade do século XXI, das sociedades de massa, caracterizada por um crescimento desordenado e brutal avanço tecnológico. Diante desse quadro, a nossa Carta Magna estruturou uma composição para a tutela dos valores ambientais, reconhecendo-lhes características próprias, desvinculadas do instituto da posse e da propriedade, consagrando uma nova concepção ligada a direitos que muitas vezes transcendem o próprio critério das nações: os chamados direitos difusos.” Assim, o meio ambiente do trabalho é uma das espécies mais importantes de meio ambiente, recebe proteção expressa na Constituição Federal, em leis infraconstitucionais e também em tratados internacionais, mesmo que sua proteção ainda possua deficiência, o meio ambiente do trabalho tem sido cada vez mais valorizado, e não resta dúvida que o meio ambiente e o meio ambiente do trabalho equilibrado é direito fundamental do homem, indispensável para a construção de uma vida com dignidade. 4. UM MEIO AMBIENTE DO TRABALHO DANIFICADO E OS PREJUIZOS CAUSADOS AO TRABALHADOR. O ambiente onde o trabalhador exerce suas atividades de labor deve ser protegido, e tal proteção é expressa no Art. 200, VIII da CRFB/88, traz que também é dever o SUS (Sistema Único de Saúde) “colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.” Lembra-se, como já mencionado anteriormente que o meio ambiente do trabalho tem vinculo direto com o trabalhador como pessoa humana, e não apenas como empregado como trata o direito do trabalho. Assim, passa-se a analisar os prejuízos causados a vida do trabalhador pelo meio ambiente do trabalho agredido em todas as suas formas. O Tribunal Regional do Trabalho julgou recentemente um Recurso Ordinário nº 10760720115010039, sobre trabalhadores portuários que trabalhavam em condições insalubres, tais como, cozinha, banheiros, alojamentos e sanitários em condições precárias de higiene. No Julgado, o Desembargador Federal Mário Sérgio M. Pinheiro descreve que: “O Meio Ambiente do Trabalho relaciona-se imediatamente com o trabalhador, na atividade laboral exercida em proveito de outrem. O equilíbrio desse local está baseado na salubridade do meio e na ausência de certos agentes que danificam a higidez físicopsíquica dos trabalhadores. Sujeitar um trabalhador a dormir no chão, em locais sem sanitários, sem instalações adequadas para alimentação, e tomar banho em locais indignos, sem qualquer condição de higiene, é expor o obreiro a uma situação degradante, o que é vedado pelo ordenamento jurídico e pelas normas internacionais do trabalho.” Os Desembargadores que compõem a 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região decidiram, sabiamente, por unanimidade, que a empresa portuária violou, sobretudo o Princípio da Dignidade da Pessoa humana. Submetendo o trabalhador a tratamento degradante, violando também a honra e a intimidade do trabalhador. A decisão foi fundamentada em dispositivos legais como o art.1º, III e 170 CRFB/88, e também outros dispositivos pertinentes ao caso. Observa-se que o meio ambiente do trabalho lesado no caso anteriormente descrito, é o meio ambiente físico, a higiene do local de trabalho não era  adequada, podendo este ambiente refletir diretamente na vida do trabalhador, podendo trazer sérios prejuízos à saúde do mesmo. Em outro julgado recente do Tribunal Regional da 1º Região, trata-se de dano ao meio ambiente do trabalho devido ao assédio moral sofrido por funcionária readaptada de doença ocupacional. A empresa direcionou a funcionária reabilitada tratamento discriminatória por não se enquadrar mais nos moldes que o Banco estabeleceu. Assim, observa-se a ementa: “AUXILIAR OPERACIONAL DE SUPORTE EMPREGADA READAPTADA. ASSÉDIO MORAL REVELADO – O silêncio e a indiferença do empregador às mazelas, que acometem seus funcionários, são verdadeiras armas que -matam- aqueles que são ignorados. Assim, em vez de o determinado obreiro conseguir ultrapassar as barreiras da requalificação, em decorrência de quadros clínicos patológicos, ele tende a sucumbir à depressão. Por tais considerações, restou comprovado o assédio moral estratégico por parte do banco, ou seja, a nítida exclusão dos funcionários que não mais se enquadravam no -perfil ideal- da instituição, notadamente os velhos, doentes – portadores de LER/DORT -, discriminados por meio do -esquecimento intencional- do réu, sem se importar em, substancialmente, tutelar o direito fundamental à saúde dos trabalhadores, – postura na contramão do princípio da dignidade humana. Posto isso, diante da comprovação quase integral da exordial, resta devida uma indenização por danos morais decorrente de práticas lesivas à integridade física e psíquica da autora. Tal ilícito não deve comportar indenização parca, pois deve recompor o bem que, apesar de protegido constitucionalmente, foi juridicamente ultrajado, tendo em vista que a política da instituição financeira não foi, efetivamente, aquela de reinclusão da autora satisfatória no meio ambiente de trabalho, mas a de degradar sua dignidade humana. RECURSO A QUE SE DÁ PROVIMENTO. I – RELATÓRIO (TRT-1 – RO: 00004947620115010501 RJ , Relator: Mario Sergio Medeiros Pinheiro, Data de Julgamento: 20/05/2014, Primeira Turma, Data de Publicação: 04/06/2014) (Grifo nosso)” Percebe-se, que a funcionária do banco foi tratada diversas vezes com indiferença pelo funcionário de hierarquia superior, a mesma estava sendo reabilitada de doença ocupacional, e foi obrigada a exercer função de estagiária, quando era esquecida e deixada de lado pelo seu superior. Sabe-se, que além da doença adquirida, que já é dano psicológico enorme, a funcionária ainda teve danos trazidos pelo desprezo profissional, sendo diminuída a condição de incapaz. O Tribunal Superior do Trabalho, em Recurso de Revista, trata-se de situação referente à segurança do trabalhador no exercício de suas funções. A falta de cuidados com o meio ambiente do trabalho trouxe claramente muitos prejuízos à vida do trabalhador. Prejuízos esses de ordem física, estética e também psicológica. “RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAL, MORAL E ESTÉTICO. ACIDENTE DE TRABALHO. FUNÇÃO DE -MECÂNICO DE VEÍCULOS- QUEDA DA ENGRENAGEM DA -CAIXA REDUTORA DE CORREIA- SOBRE AS MÃOS. NEGLIGÊNCIA COM O MEIO AMBIENTE DO TRABALHO. CULPA PRESUMIDA. RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAL, MORAL E ESTÉTICO. ACIDENTE DE TRABALHO. FUNÇÃO DE -MECÂNICO DE VEÍCULOS-. QUEDA DA ENGRENAGEM DA -CAIXA REDUTORA DE CORREIA- SOBRE AS MÃOS. NEGLIGÊNCIA COM O MEIO AMBIENTE DO TRABALHO. CULPA PRESUMIDA. A preocupação da sociedade, no que se refere às questões correlatas ao meio ambiente, às condições de trabalho, à responsabilidade social, aos valores éticos e morais, bem como a dignidade da pessoa humana, exige do empregador estrita observância do princípio da precaução. Presume-se a culpa do empregador em face das circunstâncias ambientais adversas que deram origem ao acidente de trabalho. A responsabilidade do empregador, no caso, configura-se ante o fato de que a reclamada se absteve de prover os meios necessários a um ambiente de trabalho seguro a seus empregados, a acarretar a exposição do empregado a risco potencial de acidente de trabalho. Esse quadro é ainda reforçado pela conduta de risco da reclamada, que permitiu a atuação do reclamante sem o devido treinamento ou equipamento de trabalho. Assim, sua abstenção ou omissão acarreta o reconhecimento da responsabilidade pelo evento danoso ocorrido. Recurso de revista conhecido e provido. (TST – RR: 18824720115120003  1882-47.2011.5.12.0003, Relator: Aloysio Corrêa da Veiga, Data de Julgamento: 11/06/2013, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 14/06/2013) (Grifo nosso)” Diante dos danos causados ao meio ambiente do trabalho não se pode deixar de mencionar o assédio sexual que traz prejuízos diretos à vida do trabalhador, trazendo danos morais e psicológicos e tornando o meio ambiente do trabalho insuportável.   “ASSÉDIO SEXUAL. PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO. CONSTATAÇÃO. O assédio sexual viola o direito das trabalhadoras e a igualdade de oportunidades. Não raro, pode criar condições prejudiciais físicas e psicológicas a modo de interferir no ambiente de trabalho ao criar uma sintonia que fragiliza e desmoraliza a mulher trabalhadora. Assim, demonstrado que a empregada resistia às investidas do assediador e sofreu agressões verbais, comprovadas por meio de correspondências eletrônicas, estão conjugandos elementos que demonstram o dever indenizatório, por agressão à esfera íntima feminina. (TRT-3, Relator: Convocado Carlos Roberto Barbosa, Quarta Turma) (Grifo nosso).” O julgado reconhece o assédio sexual praticado, sob a alegação que tal prática viola direito do trabalhador e ainda afirma que a Justiça do Trabalho não deve ignorar tal fato, pois é de sua competência zelar por um ambiente de trabalho sadio. Nesse mesmo julgado a empresa ainda é condenada pelo pagamento de adicional de insalubridade a Reclamante, que exercia atividade de auxiliar de estética e tinha acesso a procedimentos estéticos, tendo contato com material infecto-contagiante como reconhecido em perícia. As atividades perigosas e insalubres trazem danos à saúde do trabalhador. Esses danos tendem a serem maiores quando não tratados como devido pelo empregador, tais abusos também atingem a dignidade do trabalhador refletindo diretamente em danos reais a vida da vítima e de sua família. Analisa-se a jurisprudência que segue: “DOS ADICIONAIS DE INSALUBRIDADE E PERICULOSIDADE. CUMULAÇÃO. A norma do artigo 193, § 2º, da CLT não foi recepcionada na Ordem de 1988 e, de qualquer sorte, derrogada em razão da ratificação, pelo Brasil, da Convenção 155 da OIT. Devida a cumulação de ambos os adicionais, portanto DO DANO MORAL E "QUANTUM" ARBITRADO. Evidenciado abuso que atingia a dignidade do trabalhador, perpetrado no ambiente de trabalho e não coibido pela reclamada, impõe-se a condenação da empresa ao pagamento de indenização pelos danos morais por aquele sofridos. (TRT-4 – RO: 01086005320095040232 RS 0108600-53.2009.5.04.0232, Relator: RAUL ZORATTO SANVICENTE, Data de Julgamento: 25/10/2012, 2ª Vara do Trabalho de Gravataí) (Grifo nosso).” Deste modo, através dessa breve análise de jurisprudência, nota-se que os danos causados a vida do trabalhador, pelo meio ambiente do trabalho danificado são diversos. Tais danos afetam a vida do trabalhador em suas diversas fases, causando prejuízos direto à saúde física, moral e até mesmo prejuízos irreversíveis a saúde psicológica do homem. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir das considerações apresentadas neste trabalho, e da legislação e jurisprudência expostas, conclui-se que a dignidade da pessoa humana é, sem dúvida, núcleo essencial dos direitos fundamentais, direitos esses imprescindíveis para a construção de uma sociedade mais democrática e igualitária. A dignidade da pessoa humana é qualidade inerente à condição de ser humano, devendo ser respeitada pelos cidadãos e pelo Estado a fim de promover uma vida com qualidade. Atualmente, as relações de trabalho tem tido grande relevância na sociedade, e as discussões em torno dessas, tem sido cada vez maior. Por isso, o presente trabalho traz a importância de um meio ambiente saudável, como requisito essencial para a manutenção de uma vida com qualidade. O meio ambiente é direito fundamental garantido pela Constituição. Resta-se esclarecido que o meio ambiente do trabalhado está inserido dentro do conceito de meio ambiente, por isso deve ser amparado e protegido para que se garantam ao trabalhador condições saudáveis de trabalho e de vida. Os prejuízos causados ao meio ambiente do trabalho são diversos, desde a falta de higiene até tratamentos humilhantes, também a falta de equipamentos de proteção individual, locais sujos e não adequados à permanência de trabalhadores, trabalhos extremamente perigosos sem as devidas precauções, os quais trazem lesões à saúde dos mesmos. Também há perdas que vão além da saúde física do trabalhador, os famosos assédios. O assédio moral expõe o trabalhador a situações humilhantes, reduzindo a capacidade profissional do mesmo, sendo alvo de bulling e até expondo o trabalhador a situações vexatórias. Já o assédio sexual, conduta discriminatória a qual gera constrangimentos a intimidade, assim como prejuízos a saúde e bem-estar físico e psicológico. Portanto as condutas supra descritas, são nocivas a saúde do empregado. Importante lembrar-se das inúmeras e vergonhosas situações análogas à escravidão, que submete o trabalhador ao trabalho duro com jornada extensa, além do permitido em lei, a pagamento inferior ao constitucionalmente permitido, sendo tratado como de fato fossem escravos. Sem mencionar outros abusos que muitas vezes esses trabalhadores sofrem. Danos esses que trazem, sem dúvidas, sérios prejuízos à saúde do trabalhador, físicos, morais e psicológicos. Tendo em vista que a constituição coloca que o meio ambiente é direito de todos e bem de uso comum do povo, e tem como objetivo maior a proteção do direito à vida com qualidade e dignidade, garantindo com isso, a preservação do meio ambiente de trabalho equilibrado. Assim, vem corroborar a máxima de que o trabalho dignifica o homem, para concluir-se que qualquer atividade que contrarie direitos fundamentais do trabalhador, violando a honra, a intimidade, a moral, ou qualquer outro direito que resulte em algum dano ao trabalhador, viola não apenas a Constituição Federal, mas compromete o Princípio maior de Dignidade da Pessoa Humana como núcleo essencial dos direitos fundamentais.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-dignidade-da-pessoa-humana-e-o-meio-ambiente-do-trabalho/
A união homoafetiva como entidade familiar
O presente trabalho tem por objetivo demonstrar que toda pessoa tem o direito de se relacionar afetivamente com quem escolher, independentemente de opção sexual, uma vez que são direitos inerentes do ser humano a vida privada, dignidade, igualdade, liberdade, entre outros. Não é admissível que um Estado Democrático de Direito aceite, mesmo que de forma implícita, a discriminação por qualquer motivo. Conceitos morais, éticos e religiosos não devem interferir na aplicação da Justiça. No Brasil ainda não há regulamentação específica de forma a assegurar uma série de direitos às relações homoafetivas, bem como o seu reconhecimento como entidade familiar.[1]
Direitos Humanos
Introdução Este trabalho tem como objetivo a exposição da questão da união homoafetiva e o seu reconhecimento como entidade familiar, abordando especificamente alguns efeitos advindos dessa relação, como a questão da adoção e dupla filiação, citando um caso raro diante da justiça brasileira que é o direito ao registro civil da dupla maternidade. Atualmente, as famílias perderam o modelo original, antes formado pelo pai, mãe e filhos. As relações extramatrimoniais dispõem de assento constitucional, e as uniões homoafetivas, embora ainda não tenha regulamentação específica, vem sendo a ela atribuídos alguns efeitos jurídicos, que antes só eram reconhecidos as relações matrimoniais e a união estável. Com o movimento feminista, a disseminação dos métodos contraceptivos e os resultados da evolução da engenharia genética romperam o paradigma: casamento, sexo e procriação. Para ter filhos não se faz necessário o ato sexual, e o matrimônio não é mais um fator predominante para se ter família. A sacralização do casamento e a tentativa de sua mantença como única estrutura de convívio lícita e digna de aceitação fez com que os relacionamentos chamados de marginais ou ilegítimos, por fugirem do molde legal, não fossem reconhecidos, sujeitando seus atores a severas sanções. Basta lembrar as uniões extramatrimoniais que, durante muitos anos, não eram consideradas família, mas meras sociedades de fato. As uniões paralelas, que existem muito em face da ausência de responsabilização de quem mantêm núcleos familiares simultâneos, é outro exemplo. A visão pluralista das relações interpessoais levou à necessidade de buscar a identificação de um diferencial para definir família. Não se pode deixar de ver no afeto o elo que enlaça sentimentos, compromete vidas, transformando um vínculo afetivo em uma entidade familiar, gerando responsabilidades e compromissos mútuos, a merecer abrigo no Direito de Família. Busca–se tratar das relações homoafetivas, sob a nova concepção de família e as profundas transformações ocorridas, principalmente em relação à dupla filiação, o que levou a repensar as relações materno e paterno-filiais e os valores que as moldam. Dessa forma, tendo como princípio fundamental e finalidade a promoção da dignidade da pessoa humana, merece tutela jurídica e especial proteção do Estado e o seu reconhecimento jurídico como entidade familiar e o direito ao Registro Civil de pessoas advindas de uniões homoafetivas. Faz-se aqui um paralelo da antiga concepção de família e o reconhecimento jurídico das relações homoafetivas que reflete, por exemplo, no rompimento da unidade biológica, atentos para a renovação contínua do conceito de família e a relativização da família nuclear tradicional. Ao decorrer do artigo, analisaremos o conceito de família adotado após a Constituição Federal de 88, o reconhecimento como entidade familiar, merecedora de proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo e os efeitos jurídicos advindos dessa união e a constituição de famílias formadas por indivíduos homossexuais que adotam ou que se utilizam de reprodução assistida ou por meio de outras técnicas da medicina colocadas a disposição da sociedade, sendo abordado o direito ao registro civil de dupla maternidade ou paternidade desses filhos advindos de uniões homoafetivas. 1. A nova família no direito brasileiro após a constituição federal de 1988 A Constituição Federal de 88 garante nos princípios constitucionais da dignidade humana (art. 1º, III, CF), a igualdade substancial (arts. 3º e 5º, CF), a não discriminação – inclusive por opção sexual (art. 5º, CF), e o pluralismo familiar (art. 226, CF), o desrespeito ou prejuízo em função da orientação sexual da pessoa, que implica dispensar tratamento indigno a um ser humano e desobedecer sua honra. Nesse sentido, bem asseverou Maria Berenice Dias (2010, p. 194): “diante das garantias constitucionais que configuram o Estado Democrático de Direito, impositiva a inclusão de todos os cidadãos sob o manto da tutela jurídica”, implicando, outrossim, assegurar proteção ao indivíduo em suas estruturas de convívio Entende-se que a expressão “entidade familiar” deve definir a nova família que surgiu, e que não é mais aquela formada apenas por marido, mulher e seus filhos, também é aquela composta por somente um dos genitores e sua prole, tios ou avós que criam sobrinhos ou netos, dois pais ou duas mães, ou ainda aquela que já vem toda pronta. Segundo ROSENVALD (2010) os novos valores que inspiram a sociedade contemporânea rompem, definitivamente, com a concepção tradicional de família, que tem seu quadro evolutivo atrelado ao avanço do homem e da sociedade, mutável de acordo com as novas conquistas da humanidade e descobertas científicas, não sendo admissível que esteja presa a valores pertencentes a um passado distante, nem a suposições incertas de um futuro remoto. É realidade viva adaptada a valores vigentes. Dessa forma, tanto a união estável como a família monoparental perderam o caráter da ilegitimidade e agora são protegidas legalmente. Ao observar o artigo 226, parágrafos 1º e 2º da Constituição Federal verifica-se que não há disposição expressa à necessidade das pessoas terem sexos diferentes para se casar, porém constata-se que o Código Civil de 2002 embora não defina casamento, deixa evidenciado que é ato a ser consumado entre um homem e uma mulher, pois a todo instante faz referência a homem e mulher ou a marido e mulher (arts.1514, 1517, 1565, 1567). Com relação à união estável, a Lei Maior dispõe expressamente no §3º do artigo supra citado a exigência de diversidade de sexo. Para se configurar a união estável deve-se ter também convivência dos companheiros como se casados fossem de forma duradoura, contínua, pública com assistência moral e material recíproco. No Direito brasileiro, a convivência entre pessoas do mesmo sexo não tem nenhuma regulamentação. A jurisprudência brasileira tem procurado preencher o vazio normativo infraconstitucional, atribuindo efeitos às relações entre essas pessoas como uma legítima entidade familiar, como é reconhecido à união estável pela Carta Magna de 1988. Se para a união estável o texto constitucional passou a identificá-la como uma legítima entidade familiar (art. 226,§ 3º), somente por sentença, mesmo que homologatória, poderá a sociedade homoafetiva ser reconhecida de forma que os pares não possam mais discutir aquilo que ficar resolvido e homologado judicialmente. A norma do art. 226 da Constituição é de inclusão, diferentemente das normas de exclusão das Constituições pré 1988, abrigando generosamente todas as formas de convivência existentes na sociedade. As explicitações do casamento, da união estável e da família monoparental não excluem as demais que se constituem como comunhão de vida afetiva, de modo público e contínuo. Em momento algum a Constituição veda o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo. Ignorar essa realidade é negar direitos às minorias, incompatível com o Estado Democrático. Tratar essas relações como meras sociedades de fato, como se as pessoas fossem sócios de uma sociedade de fins lucrativos, é violência que se perpetra contra o princípio da dignidade das pessoas humanas, consagrado no art. 1º, inciso III da Constituição. Todavia, apesar da falta de previsão legal, os casais homossexuais têm alguns direitos assegurados pelo entendimento dos tribunais, visto que já é possível encontrar jurisprudência a respeito do tema. Destacamos a decisão proferida pela Suprema Corte na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132, a qual reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar, destacando, finalmente, os efeitos jurídicos (econômicos/patrimoniais e pessoais) decorrentes dessa deliberação. Até muito recentemente, a família era entendida como a união, por meio do casamento, de homem e mulher, com o objetivo de constituir uma prole e educar os filhos; mas não foram apenas essas mudanças em nível constitucional que marcaram a última década. No plano social, o tamanho das famílias e sua composição também vem sofrendo um rápido processo de transformação. Com a industrialização dos grandes centros urbanos, há a explosão do êxodo rural. As famílias antes numerosas, agora vivendo nas cidades, em pequenos espaços, começaram a diminuir de tamanho. Além disso, em decorrência dos problemas sociais, do desemprego, da violência urbana, da falta de segurança, grande é o número de pessoas que não constituiu família própria, nos moldes tradicionais. Essas pessoas vivem sozinhas, ou com parentes, com amigos, companheiros. A doutrina moderna conceitua família como o grupo de pessoas que se une pelo afeto, afinidade e solidariedade, com o objetivo de comunhão de vida e projetos comuns. 1.1. Garantias fundamentais norteadores das relações familiares É estabelecido pela Constituição Federal no art. 5º, caput, o princípio da igualdade, em que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Segundo MORAES (2007), de acordo com esse princípio, são vedadas as diferenciações arbitrárias, tornando-se indispensável uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, para que as diferenças normativas não sejam discriminatórias, devendo estar presente uma relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionais protegidos. O código civil no art. 1511 prevê a igualdade jurídica entre os cônjuges. Esse princípio acabou de vez com a autoridade do marido e trouxe para a mulher a igualdade de direitos e deveres na sociedade conjugal. A mulher também passou a ter o dever de sustento da família, dever de assistência material entre os cônjuges. O princípio de isonomia implica tratamento igualitário de todos os indivíduos, quer sejam heterossexuais ou homossexuais, isto é, como seres humanos têm o direito de se unir com quem desejarem, não importando a sua preferência sexual, pois os homossexuais possuem o mesmo direito que os heterossexuais de conviver com outro indivíduo afetivamente, e ter esta união juridicamente protegida. Nesta esteira, os homossexuais poderiam ter os mesmos direitos das uniões estáveis entre heterossexuais, bastando que cumpram os requisitos para a constituição e reconhecimento de uma união estável, quais sejam convivência, mútua assistência, notoriedade da relação, relação relativamente duradoura e estável. Diante tal princípio, os homossexuais, por serem minoria na população, devem ter até certo ponto tratamento desigual, diante o restante da sociedade, mas não se justifica que eles fiquem à margem do ordenamento jurídico. O princípio da legalidade, previsto no art. 5º, inciso II da Constituição Federal, assegura ao particular a prerrogativa de repelir eventuais proibições ou limitações que lhe sejam impostas por outra via que não seja a lei. O Direito Brasileiro não regulamentou a união entre pessoas do mesmo sexo, mas também não a proibiu, portanto nenhum homossexual poderá ser privado de unir-se a outro como o intuito de conviver afetivamente constituindo uma família ou de construir um patrimônio junto ao seu parceiro. Como não foi a união entre homossexuais expressamente vedada pelo constituinte, cumpre concluir pela possibilidade jurídica do reconhecimento deste tipo de união. 2. O reconhecimento da união homoafetiva como unidade familiar e suas consequências Atualmente, o relacionamento homoafetivo tem sido comum em nosso país e no mundo todo. A Dinamarca foi o primeiro país a reconhecer a união de homossexuais, em 1989. A Constituição da África do Sul, de 1996, foi a primeira a proibir, explicitamente, a discriminação em razão da orientação sexual. A Holanda foi o primeiro país a autorizar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, em 2001. A legislação pátria não trata dos relacionamentos entre homossexuais, os dispositivos legais são referentes ao casamento e a união estável e exigem que a sejam relações entre homem e mulher, porém a forma como os tribunais tem visto as questões homossexuais tem mudado ao longo dos anos. Inicialmente as relações homoafetivas eram vistas pelos nossos magistrados como inexistentes por não envolverem pessoas de sexos opostos. Com o aumento de demandas, versando acerca dos direitos dos casais homossexuais, os julgadores foram levados a rever seus posicionamentos. Os conflitos, em sua maioria, envolviam e ainda envolvem bens patrimoniais; a injustiça que cometiam não permitindo a partilha de bens, o direito a benefícios previdenciários, entre outros, apenas por falta de normas legais e passaram a analisar as relações homossexuais como “sociedade de fato”, ou seja, começaram a entender que se tratava de uma reunião de pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados (art. 981 do Código Civil). Tem ocorrido que, diante do caso em tela, tem se aplicado a súmula 380 do Supremo Tribunal Federal em decisões judiciais analogicamente aos casais homossexuais. Assim, entendida como uma sociedade de fato, deve haver a partilha dos bens adquiridos pelo esforço comum, quando dissolvida a sociedade, por separação ou por morte. Por ser entendida como sociedade de fato, que está prevista no Direito das Obrigações, mas por analogia, as disposições sobre ela passaram a ser aplicadas aos homossexuais, a competência para julgar as ações acerca de partilha de bens de homossexuais era das Varas Cíveis, sendo tratadas como relações estritamente comerciais. Assim, com o passar dos anos, a sociedade assim como os julgadores passaram a perceber que as relações homoafetivas envolviam sentimentos, assim como ocorre nas relações entre heterossexuais e que não poderiam ser tratadas como mera transação comercial, por isso começaram a entender que deveriam ser tratadas nas Varas de Família. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul passou a reconhecer alguns desses relacionamentos como união estável. É bem verdade que são decisões isoladas e proferidas pelo tribunal cujas decisões são de certo modo polêmicas e inovadoras, mas são decisões abrem precedentes e que vêm sendo adotadas pelos demais tribunais do país. A possibilidade do reconhecimento das relações homossexuais como união estável dá-se ante os princípios fundamentais consagrados na Constituição da República. A realidade social tem revelado a existência de pessoas do mesmo sexo convivendo na condição de companheiros, como se casados fossem. A evolução do direito deve acompanhar as transformações sociais, a partir de casos concretos que configurem novas realidades nas relações interpessoais. Um dos objetivos presentes na disciplina dos direitos fundamentais, dentre os mais acentuados pela doutrina, é o de assegurar a não discriminação, desta forma, o preceito constitucional se aplica a todos os direitos, abarcando, ainda, as liberdades e garantias pessoais. Com princípios de idêntica relevância, caminha a igualdade, não podendo estar dissociado do princípio da justiça, em seu sentido mais puro. Ao se negarem direitos fundamentais a pessoas, que se fossem de sexos diferentes, lograriam êxito em auferi-los, emerge um não direito, ferindo o sentido que o Poder Constituinte procurou proteger, com aigualdade, ao editar a Constituição Federal de 1988. Após a decisão – com efeito erga omnes – do STF reconhecendo que a união entre duas pessoas do mesmo sexo constituiu uma modalidade familiar, todos os Tribunais tiveram que se submeter a esta linha de raciocínio, e, dessa forma, foi amenizada a discriminação sofrida pelos homossexuais, embora ainda falte muito para que eles conquistem não só a igualdade formal, mas também a material. 3. Benefícios concedidos e a sucessão nas relações homossexuais Em relação à concessão de benefícios aos homossexuais os planos de saúde têm aceitado a inclusão dos parceiros como dependentes. Existe Resolução da Agência de Saúde Suplementar estabelecendo que podem ser incluídos no plano familiar os dependentes ou grupo familiar do contratante, entendendo por dependente aquele aceito pela Receita Federal e INSS como tal. Quanto à Receita Federal, para efeitos de declaração de imposto de renda, são considerados dependentes o cônjuge, o parceiro desde que mantenham vida comum por aproximadamente cinco anos, ou tempo inferior se tiverem filhos. Como existem decisões reconhecendo a existência de união estável entre homossexuais, passando a considerá-los companheiros, conclui-se que os parceiros homossexuais podem ser incluídos mediante determinação judicial, como dependentes do outro na declaração de imposto de renda. A portaria do INSS – Instrução Normativa do INSS nº 25/00 – concedeu aos homossexuais tanto o auxílio por morte, como o auxílio-reclusão. Por sua vez, a Resolução Normativa do Conselho Nacional de Imigração nº 77/08 assegurou a concessão de visto de permanência ao parceiro estrangeiro que vive em união homoafetiva com nacional. A Superintendência de Seguros Privados, em virtude da Circular da SUSEP nº 257/04, permitiu que os companheiros homossexuais configurassem como beneficiários do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre (Seguro DPVAT). A questão da sucessão entre casais homossexuais é de maior complexidade principalmente depois do Novo Código Civil, pois caso a união estável não seja reconhecida o direito sucessório não caberá para o parceiro sobrevivente e sendo a relação tratada como sociedade de fato, assim como ocorre na partilha de bens, seria uma parceria havida entre eles como uma sociedade comercial e em uma sociedade os sócios não são herdeiros um do outro, não existindo qualquer direito de herança. A Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal determina que comprovada a existência da sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum. A súmula mencionada deixou claro que para partilhar o patrimônio não basta apenas existência do relacionamento afetivo. A ideia predominante da súmula é a da sociedade de fato entre os parceiros, donde resulte um patrimônio ou aumento do mesmo já existente, que derivou do esforço de ambos. Por exemplo, havendo herdeiros necessários será reservada a eles metade dos bens da legítima e apenas a outra metade estará disponível para o parceiro. Falaremos um pouco sobre a guarda e o poder familiar. Em janeiro de 2002, com a morte da cantora Cássia Eller (2002), a imprensa nacional noticiou o processo judicial da guarda de seu filho Chicão, em que foi proferida sentença deferindo a guarda à Eugênia, ex-companheira da cantora, que era homossexual. Pode-se verificar que não foi na preferência sexual da guardiã que o juiz se fundou para atribuir a guarda e, sim, nas qualidades morais e nas condições materiais de quem a pretendia. Se Eugênia não tivesse condições adequadas para criar uma criança, Chicão teria de ser afastado de sua companhia. Ocorre que o menor vivia desde que nasceu com a mãe e sua companheira e aquele era o seu núcleo familiar e esse caso demonstra a real existência da família homossexual. Quanto à adoção por homossexuais alguns óbices que devem ser esclarecidos para que ela possa ser efetivamente aceita na sociedade brasileira, a respeito do tema ensina DIAS (2007) que como o registro traz a identificação dos genitores e o § 1º do artigo 47 do Estatuto da Criança e do Adolescente determina que, no assento de nascimento do adotado, sejam os adotantes inscritos como pai, conclui-se que o legislador supôs a diversidade de sexo do casal adotante. Segundo a autora, deve-se levar em conta as seguintes questões: o artigo do Estatuto da Criança e do Adolescente permite a colocação do menor no que chama de “família substituta”, não definindo qual a conformação dessa família. De acordo com o artigo 25 do ECA, a família natural que é a comunidade formada pelos pais, ou qualquer deles, e seus descendentes. Com essa definição, não se pode obrigar que a família substituta tenha a mesma estrutura da família natural; portanto, não há vedação para um casal homossexual ser reconhecido como uma família substituta apta a abrigar uma criança. A única oposição seria com relação ao artigo 29 do mesmo diploma legal, onde dispõe que não se dará a colocação em família substituta a pessoa que revele, por qualquer modo, incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar adequado. Contudo, não se pode declarar ser o ambiente familiar inadequado com a natureza da medida ou que a relação afetiva de duas pessoas do mesmo sexo seja incompatível, porque seria preconceito, pois as relações homo afetivas assemelham-se ao casamento e à união estável, inclusive com parceiro fixo e fidelidade, devendo os julgadores atribuir-lhes os mesmos direitos conferidos às relações heterossexuais, dentre eles o direito à guarda e à adoção de menores. Entende-se, ainda, que, ao decidir sobre uma possível adoção, o juiz deve levar em conta as reais vantagens para o menor, conforme o artigo 43 da Lei 8069/90, decidindo, sempre, pelo seu bem-estar. A nova lei de adoção, Lei 12.010/09, com a nova redação dada ao art. 42 do Estatuto da Criança e do adolescente não estabelece qualquer impedimento para o adotante homossexual, e sim apenas dispõe que maiores os de 18 (dezoito) anos, independentemente de estado civil, podem adotar. No §1º dispõe que não podem adotar os ascendentes e os irmãos do adotando e no §3º diz que adotante deverá ser, pelo menos, 16 (dezesseis) anos mais velho do que o adotando. Embora pareça inicialmente que a Lei 12.010/09 não dispôs de nenhum obstáculo para que seja feita a adoção por homossexuais, alguns dispositivos por ela alterados estabelecem algumas regras, que ensejam a sua proibição. Assim sendo, conclui- se que enquanto não reconhecida a união homossexual como entidade familiar, fica proibida a adoção conjunta por esses casais, o que contraria os ditames criados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente que tem como diretriz e base o princípio do melhor interesse do menor. Pelos fins sociais do Estatuto da Criança e do Adolescente e da própria Carta Magna, fica ainda mais clara a possibilidade da adoção por homossexuais, uma vez que a lei busca resguardar a dignidade da criança e do adolescente, procurando garantir-lhe um lar seguro, que lhe ofereça amor e carinho, independentemente da orientação sexual daqueles que a acolhem. Visando amenizar a discriminação a que os homossexuais estavam acometidos, haja vista que era minoritária a corrente doutrinária e jurisprudencial que reconheciam a união homoafetiva, a decisão da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132, interpostas na Suprema Corte, pela Procuradoria Geral da República e pelo Governador do Rio de Janeiro – Sérgio Cabral -, respectivamente, derruba as barreiras do preconceito, do tratamento discriminatório, das indignidades sofridas e conclama a todos que seja feita a justiça na concessão dos direitos daqueles que, até o presente momento, viviam à margem das diferenças sociais, das decisões díspares, das manifestações de homofobia sem precedentes, das omissões silenciosas e das escusas apoiadas na esteia da mera falta de uma legislação para amparar o pleito. Destacamos um caso raro na justiça brasileira das lésbicas que tiveram gêmeos por inseminação artificial. O primeiro passo foi buscar um doador anônimo no banco de sêmem. Posteriormente uma delas cedeu os óvulos que foram fecundados em laboratório e implantados por inseminação artificial no útero da companheira. Durante a gestação elas pleitearam na justiça para que houvesse uma mudança no preenchimento da certidão de nascimento. O campo reservado para o pai ficaria em branco e constaria o nome das duas mães. A Justiça já vem admitindo que, em caso de gestação por substituição, o registro seja feito em nome de quem forneceu o material genético. Ademais, crianças e adolescentes merecem, com prioridade absoluta, especial proteção do Estado. Para isso indispensável que os casais exerçam junto o poder familiar e assumam juntos todos os encargos decorrentes desse poder-dever, entre eles, o de criá-los, educá-los e tê-los em sua companhia (CC 1.634). Enfim, é de ambos o compromisso de torná-los cidadãos que se orgulhem de terem nascido em um país que sabe respeitar a dignidade de cada brasileiro. Por outro lado, no dia 12/12/2008, o juiz Cairo Roberto Rodrigues Madruga da 8ª Vara de família e sucessões de Porto Alegre, permitiu ao casal homossexual Michele e Carla, que alterassem o registro de nascimento do casal de gêmeos gerados por inseminação artificial, para que contasse o nome das duas mães. A sentença é histórica. Pela primeira vez foi reconhecido na justiça o direito de uma mulher sem vínculo biológico com seus filhos, ocupar o lugar parental. A justiça gaúcha, conhecida por decisões de vanguarda, reconheceu e legitimou um vinculou afetivo, amparado por um relacionamento de 11 anos entre duas mulheres comprovadas por vídeos, fotos, documentos e testemunhas. A legislação precisa estar antenada com a realidade da situação, pois está na hora de acabar com descabidas presunções e se privilegiar a realidade da vida. Em face da inércia do legislador, a responsabilidade, como sempre, precisa ser assumida pelo juiz que, ao arrostar com a situação que lhe é trazida, não pode escudar-se na omissão legal para negar direitos. Daí então podemos dizer que a relação de filiação se constrói com a atenção compartilhada que se intensifica no contato cotidiano. O amor é construído, o que legitima a parentalidade psicológica, social e afetiva. Portanto, o que deve ser estimulado são os compromissos e as responsabilidades de quem cotidianamente coopera nos cuidados de menores que se criam e se educam no seio desses novos núcleos de afeto e companheirismo para que não sejam excluídos da proteção Estatal. Conclusão O tema abordado ainda é considerado polêmico em nossa sociedade, porém não se pode negar sua relevância e os estudiosos do Direito devem ficar atentos às mudanças sociais para que o Direito possa suprir às carências da coletividade. Não é justo que após uma união duradoura da qual se adquiriu bens, no futuro havendo rompimento desta união ou falecimento de um dos parceiros que o outro que o auxiliou a construir um patrimônio não seja contemplado na partilha ou na sucessão que lhe pertence por direito, mesmo que não tinha lei que o estipule. A concessão de alguns direitos atualmente permitidos, como a inclusão do parceiro no plano de saúde, não traz nenhum malefício à sociedade ou ao Estado, e para eles representa um grande benefício, mesmo porque eles são cidadãos e devem ter todos os direitos e obrigações assegurados como qualquer outro. Outro aspecto importante é com relação à guarda de filhos e adoção, pois em alguns casos os juízes confundem homossexualismo com promiscuidade e concedem a guarda à pessoa com condições de educar uma criança inferiores a do homossexual, sejam essas condições afetivas, financeiras ou de caráter, apenas por sua opção sexual. Embora esteja expresso na Constituição Federal que a união estável é entre homem e mulher, nela também encontra-se uma série de princípios que devem ser respeitados e caso o Poder Legislativo não queira equiparar a união estável entre heterossexuais com uma possível união estável entre homossexuais caberia ao menos o reconhecimento da parceria civil registrada. Torna-se inevitável uma normatização da união entre pessoas do mesmo sexo e de nada adianta a parte conservadora da sociedade e os governantes tentarem ocultar a necessidade desta norma, pois assim as partes interessadas, no caso de uma lide, teriam seu direito declarado com fulcro na lei, o que facilitaria a prova processual ou diminuiria o grande número de demandas versando acerca do tema, aliviando o Poder Judiciário, pois tendo uma lei específica tudo o que nela estiver estabelecido deverá ser respeitado.
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A cobrança pelo uso da água e os comitês de bacias hidrográficas
O presente artigo abordou a cobrança pelo uso da água sob a perspectiva de um instrumento econômico da gestão dos recursos hídricos do Brasil. E teve como objetivo analisar os aspectos da cobrança do uso da água e suas implicações com os comitês das bacias hidrográficas. Utilizou-se métodos de pesquisas mistos, quantitativos e qualitativos, uma vez que se explorou, descreveu e explicou durante toda a pesquisa por meio de múltiplas formas de coleta de dados. Assim, verificou-se no estudo que a água é bem público dotado de valor econômico e sua cobrança deve ser utilizada para racionalização do seu uso e financiamento de atividades de sua recuperação e gestão. Ademais, observou-se que a cobrança pelo uso da água é um preço público, sugerido e administrado por um órgão consultivo e deliberativo de gestão dos recursos hídricos, o comitê de bacias hidrográficas. Destarte, concluiu-se que a água um recurso natural limitado e deve ser equilibradamente gerido para a preservação do meio ambiente à todas as gerações.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Ao longo dos anos o crescimento populacional e a intensificação das atividades produtivas promoveram um maior uso das águas, que resultaram em escassez e poluição de mananciais. Esse consumo excessivo da água transformou rivalidades em verdadeiros conflitos pela utilização desse bem, o que colocou em xeque a disponibilidade do recurso e determinou o reconhecimento da água como bem limitado. Diante desse contexto, uma nova forma de gerir a água fora consagrada pela Lei nº. 9433/97, conhecida como Lei das Águas, sob o entendimento de que a água não é bem particular e sim público, um insumo produtivo dotado de valor econômico. E por tal motivo, deverá ser cobrado o seu uso, a fim de incentivar a sua racionalização; obter recursos financeiros para o financiamento de programas e intervenções para recuperar baciais hidrográficas e arrecadar recursos para gestão administrativa dos recursos hídricos[1]. Asssim, até meados do século XX, a gestão dos recursos hídricos era feita principalmente pela intervenção estatal e suas ferramentas de controle (controle da poluição por meio da regulação de padrões de emissões ou lançamento de poluentes nos corpos d’agua e criação de unidades de conservação). Contudo, a partir da influência de uma Política Ambiental Internacional, que alertava para o conceito do desenvolvimento sustentável, novos instrumentos passaram a compor a gestão, os econômicos, que objetivam induzir determinado comportamento social por intermédio de incentivos. (NOGUEIRA & PEREIRA, 1999 e MENDES & MOTA, 1997) Dessa maneira, o emprego do instrumento da externalidade econômica, no qual os usuários são responsáveis pelos efeitos causados a terceiros, incorporando-os aos custos produtivos, aumenta as alternativas e possibilidades de consecução de metas para um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Bem como, trata a água como um recurso natural limitado, que deve ser gerido a fim de promulgar a preservação do meio ambiente à todas as gerações. (PINDYCK, 2005) 1. BREVE HISTÓRICO Até meados do século XX, a gestão dos recursos hídricos era feita principalmente pela intervenção estatal e suas ferramentas de controle, contudo, o Estado não conseguia estar presente em todas as demanadas, o que ensejou o aumento de conflitos e a necessidade de uma intervenção discricionária do Estado, a partir do poder de polícia e do judiciário. Essa práxis guiou a política ambiental durante a década de 1970, que teve como principais medidas, a criação de unidades de conservação ambiental e o controle da poulição por meio da regulação de padrões de emissão ou lançamento de poluentes nos corpos d’agua (ANA, 2013). Na segunda metade do século XX, verificou-se um aumento qualitativo da degradação do meio ambiente, que provocou uma maior intervenção estatal por meio de atividades policiais e instrumentos não somente de controle como também de comando das políticas ambientais. Coube, assim, à Administração Estatal dirimir os conflitos dos recursos hídricos. Nesse sentido, identificamos uma transformação das políticas ambientais ao longo dos anos, na década de 70 a política foi intervencionista e com forte presença de conflitos ambientais. Nos anos 80, o contexto internacional alertava para o conceito do desenvolvimento sustentável e influciou a política brasileira com novos instrumentos. Além disso, houve um aumento de alternativas e possibilidades para consecução de metas socialmente acordadas, e os padrões de poluentes não eram mais o meio e o fim da intervenção estatal, mas sim um dos instrumentos. (DENARDIN, 2012). Na década de 90, surgiu uma nova política para as águas no Brasil com a implatação da cobrança do uso da água[2] e a associação dos instrumentos econômicos[3] aos tradicionais de comando e controle[4]. E nos anos 2000, fora criada a Agência Nacional de Águas- ANA, entidade federal responsável pela implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, e o primeiro processo de implatanção da cobrança interestadual foi criado na Bacia do Rio Paraíba do Sul (MG, RJ,SP), com base na Lei nº9.233/97. 2. DEFINIÇÃO E CARACTERÍSTICAS DA COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA A cobrança pelo uso da água é um instrumento da Política Nacional de Recursos Hídricos, conforme estabelece o inciso IV, do artigo 5º da Lei nº. 9433/97. Tal instrumento é classificado como econômico, haja vista que reconhece a água como um bem econômico, cujo preço é fixado a partir de um pacto entre os usuários da água, as organizações civis e os poderes públicos presentes no Comitê de Bacias Hidrográficas, visando estimular o uso racional da água e arrecadar recursos para a sua gestão e recuperação. Trata-se, então, a cobrança de um preço público e não de um tributo como os tradicionais instrumentos utilizados pelas políticas públicas. Os mecanismos e valores são negociados a partir de debate público no ambito dos Comitês de Bacia e não por meio de decisões isoladas de instâncias governamentais. A cobrança é um pagamento pelo uso de um bem público e consiste em receita originária de um bem de Estado. E não receita derivada do patrimônio de particularidades, que é a origem dos tributos. (POMPEU, 2000) Dessa forma, cabe frisar que sendo a cobrança um preço público, e não se tratando de um tributo, e por natureza jurídica lógica não é taxa, não é imposto , não é contribuição e nem tarifa, conforme diferenciação no quadro acima. 3. A COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA E OS COMITÊS DE BACIAS HIDROGRÁFICAS A Lei nº 9433/97 criou a cobrança pelo uso da água no Brasil e determinou a sua implementação a partir da pactuação entre os representantes dos Comitês de Bacias Hidrográficas – CBH. Esses organismos, por sua vez, são órgãos consultivos e deliberativos de um Sistema Nacional de Gereciamento de Recursos Hídricos, no qual a população e os usuários, juntamente com os órgãos do governo, interagem para gerenciar a qualidade e a disponibilidade das águas em uma determinada bacia hidrográfica ( SANTOS, 2011).  Os comitês contam com as Agências de Águas, que exercem a função de secretaria executiva, conforme o art. 41 da Lei 9.433/97, para arrecadar e gerir os recursos obtidos na cobrança. Nesse sentido, para o eficiente funcionamento desse sistema gestor e o alcance dos objetivos da cobranca 7,5% dos recursos arrecadados[5] podem ser utilizados para o custeio administrativo do sistema, buscando garantir o apoio necessario para seu adequado funcionamento. Ademais, verifica-se que o instrumento econômico da gestão dos recursos hídricos, a cobrança pelo uso da água, tem sua implementação estritamente vinculada às atividades de um comitê de bacia, tendo em vista que a decisão de ter cobrança da água na bacia é feita pelo CBH, este que também deve sugerir mecanismos de incentivo e redução do valor a ser cobrado. Bem como, define o destino dos recursos arrecadados com a cobrança e define os usos da água que independente de autorização legal devem ter o seu uso garantido, além dos usos que deverão contribuir obrigatoriamente com a cobrança, conforme o artigo 37 do mesmo diploma legal em comento. Assim, as principais etapas da implementação da cobrança na bacia hidrográfica são feitas sob apreciação do respectivo comitê de bacia. Na etapa preliminar, a manifestação política dos comitês é fundametal para se decidir em relação ao se cobrar pelo uso dos recursos hídricos. Envolve intensas discussões uma vez que os segmentos que compoem o Comitê têm interesses, em geral, divergentes e entendimentos diversos sobre a real necessidade de implantar o instrumento Cobrança. Portanto, uma boa compreensão dos objetivos e do papel do Comitê quanto à Cobranca é importante para que as etapas posteriores possam ocorrer em ambiente colaborativo e integrado. O posicionamento favoravel do Comitê é, assim, essencial para que se possam iniciar as discussões e consolidar estudos sobre os mecanismos e valores a serem praticados. Como exemplo, tem-se o caso das bacias interestaduais descritas, abaixo: “Em bacias interestaduais, o ideal é que a Cobrança seja iniciada, simultaneamente, em todos os domínios. Para tanto, torna-se necessária a articulação entre os comitês de bacias de rios afluentes e o Comitê da Bacia do curso principal, bem como entre os organismos responsáveis pela outorga e pela operacionalização da cobrança nos diversos domínios. Buscando planejar essa integração, o artigo 4º da Resolução CNRH nº 109, de 2010, estabelece como condição para a criação de um novo Comitê acelebração de acordo entre a Uniao e estados, ouvidos os Comitês das bacias de rios afluentes, onde esteja presente a definição de atribuições compartilhadas, dentre elas, para a Cobrança. Tal acordo vem sendo denominado “Pacto de Gestão”e objetiva a gestão integrada na bacia, por meio da harmonização da aplicação dos instrumentos de gestão, de um arranjo institucional robusto e da definição de condições suficientes para o adequado funcionamento do Comitê.” (ANA, 2013). Nesse diapasão, após a etapa preliminar da cobrança, inicia-se as etapas de mecanismos de cobrança e proposta de valores, ambas também realizadas no âmbito de comitês de bacias. Somente após aprovada pelos Comitês, a Deliberação de Cobrança é, então, encaminhada aos respectivos Conselhos de Recursos Hidricos em função do domíinio sobre o qual sera aplicada[6] para ser efetivada. Na etapa de mecanismos de cobrança, usualmente, os Comitês de Bacias constituem grupos técnicos específicos, formados pelos representantes dos diversos segmentos do colegiado (usuários de água, organizações civis e poderes público) para realizar o de nivelamento conceitual e o planejamento das atividades a serem desenvolvidas no processo de discussão da Cobranca. Através de seminários, oficinas, reuniões de câmaras técnicas a fim a dirimir dúvidas e a estabelecer pontos de consenso. E na etapa de construção da proposta de cobrança é prevista a definição dos preços unitários, que constitue um dos componentes da fórmula da cobrança, qual seja: Desta feita, percebemos as implicações dos comitês de bacias com o instrumento econômico da cobrança da água, vez que as suas etapas de implementação são feitas a partir das decisões e manisfestações políticas daqule órgão colegiado de gereciamento dos recursos hídricos da bacia hidrográfica , conforme estabelece as respectivas políticas e sistemas nacionais. 4. COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA PARA FINS DE GERAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA E PARA OS DEMAIS USUÁRIOS A Lei nº 9.984/2000, que dispõe sobre a ANA, também aumentou o do valor da compensação financeira pela utilização de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica – CFURH[7] passando de 6% para 6,75% do valor da energia total produzida. O referido acréscimo de 0,75% foi destinado à implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos- SINGREH.  Passados dez anos de tal determinação, o Decreto nº 7.402, de 2010, considerou aquela parcela de acréscimo como pagamento pelo uso dos recursos hídricos, ou seja, interpretou como cobrança pelo uso para fins de geração de energia elétrica, e não compensação financeira. E assim, a partir de então, os 0,75% passaram a ser transferidos obrigatoriamente ao Ministério do Meio Ambiente – MMA e à ANA para implementação da citada política e apoio ao SINGREH, isentando-o da possibilidade de contingenciamento. Destarte, cabe ressaltar que Centrais Geradoras Hidrelétricas – CGH[8]e as Pequenas Centrais Hidrelétricas– PCH[9], são consideradas isentas do pagamento de compensação financeira e, consequentemente, da cobrança pelo uso. Assim, podemos verificar que a Cobrança pelo uso para fins de geração de energia elétrica se diferencia da Cobrança a que estão submetidos os demais usuários. Tendo em vista que a primeira cobrança tem o valor estabelecido por Lei e não por pactuação dos membros dos Comitês de Bacias, e o percentual não varia por empreendimento ou por bacia. Além disso, por ser uma definição legal, e instituída sem a participação dos Comitês de Bacia é sua aplicação estabelecida segundo prioridades aprovadas pelo Conselho Nacional de Recursos Hidricos- CNRH e não pelo consenso dos participante do colegiado. MÉTODOS E DADOS Durante o estudo deste artigo utilizou-se uma posição epistemológica interdisciplinar com métodos de pesquisas mistos, através de abordagens quantitativas e qualitativas. Uma vez que se explorou, descreveu e explicou a pesquisa por meio de múltiplas formas de coleta de dados.  Prevaleceu assim ferramentas de levantamento histórico, a coleta de informações em órgãos institucionais relevantes à temática, e o levantamento bibliográfico para compor esta pesquisa de cunho social. Ademais, fez- se uso do racícionio dedutivo ( do geral para o particular) e indutivo ( do particular para o geral), porquanto foi exploratório e focado. CONCLUSÃO Diante do exposto, verificamos que a água foi encarada como um recurso natural limitado necessário para o equilibrio e preservação do meio ambiente e das gerações futuras. Tendo em vista que o seu uso foi gerenciado através de um instrumento econômico, a cobrança. Acreditando-se que tal instrumento tem interferência no comportamento social de todos os usuários. Assim, a implatanção da cobrança teve como objetivo desmistificar o entendimento arcaico de que a água é bem particular e consolida-lo como público. Tratando-se de um insumo produtivo dotado de valor econômico. E por tal motivo, deverá ser gerido e cobrado o seu uso, a fim de incentivar a sua racionalização; obter recursos financeiros para o financiamento de programas e intervenções para recuperar baciais hidrográficas e arrecadar renda para gestão administrativa dos recursos hídricos. Para tanto, faz – se necessário a presença dos Comitês de Bacias Hidrográficas, responsável pelas etapas de implementação da cobrança, através de suas decisões e manifestações políticas. As atividades deste órgão colegiado propulsionam a efetivação do instrumento em comento, ao passo que discute e propõe os mecanismos e os valores da cobrança. Cabe ainda frisar que, a referida cobrança pelo uso da água se diferencia da cobrança para fins de geração de energia elétrica, haja vista que esta é determinada por normal legal, enquanto a outra, conforme narrado alhures, é oriunda de um consenso dos representantes dos Comitês de Bacias. Por fim, restou claro uma nítida relação dos Comitês de Bacias com o instrumento econômico de cobrança da água para o gerenciamento dos recursos hídricos do Brasil, com base em política nacional descentralizada e participativa.
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Da hostilidade lançada sobre o indígena detentor de direitos humanos face ao valores do direito ambiental
Extremamente importante e sempre atual é o tema das relações entre os indígenas e o meio ambiente. Mais fundamental ainda é a previsão da responsabilidade socioambiental diante dos seus pleitos e aspirações enquanto cidadãos de direitos. Sob este novo prisma decorrente deste século é que surgiu a noção de que “uma sociedade que não é una, não pode corresponder um único Direito”, ou seja, temos ciência que o Estado brasileiro é sim formado por povos de diferentes línguas, culturas, organização social e com certeza por um sistema interno próprio de resolver seus próprios conflitos. Nesse prisma é chegada a hora de aproveitar os indígenas e trazer esse debate para dentro do direito ambiental de máxima responsabilidade, aproximando também o direito dessas comunidades indígenas.
Direitos Humanos
1. Introdução As experiências de debates ao longo de nossas vidas por vezes nos motiva a escrever sobre temas antes inimagináveis outrora, isto posto, oportunidade ímpar foi o encontro temático de direito, promovido pelo Programa Rede de Saberes: Permanência de Indígenas no Ensino Superior, que teve por objetivo trazer à tona a discussão de relação de pertinência entre o direito positivo brasileiro e o direito consuetudinário indígena. Perceba que com a promulgação da Constituição de 1988, quebra-se o paradigma etnocentrista baseado na premissa da integração dos diversos grupos indígenas à cultura derivada de um único Etho. Sob a égide da nova carta magna, os povos indígenas tiveram no capítulo VIII intitulado “Dos Índios”, reconhecidos direitos específicos, complementando as garantias fundamentais a todos os cidadãos brasileiros dispostas no art. 5º da CF/88. A visão integracionista que antes permeava as concepções sobre o índio a partir de 1988 cedem lugar a uma nova concepção, desta feita como sujeito de direitos comuns e específicos que lhe garantem pleno exercício de cidadania. Assim, temos que a aplicabilidade do direito consuetudinário tornou-se possível graças ao assentamento da identidade pluriétnico do Brasil, conquistada com a CF/88 e o conseqüente reconhecimento do direito consuetudinário como parte integrante da cultura indígena e evolução do direito ambiental e, portanto, indispensável para preservação de sua organização social. Aqui são desenvolvidas algumas reflexões sobre o direito indigenista, dialogando sempre com o direito positivo e o direito costumeiro e, principalmente, sob a visão de operadores de direito indígena que ao longo dos tempos aumentou em quantidade e em ideias inovadoras. Segue a proposta de “vestir todo o Brasil de verde e amarelo” pois que este país é de todos brasileiros e muitos ainda precisam ser incluídos com verdade e justiça. 2. FIM DA INOCÊNCIA DOS INDÍGENAS Inicío por aqui já rompendo com a visão integracionista que o Estado brasileiro tinha, que visava à incorporação dos indígenas à sociedade nacional, já que a Constituição de 1988, em seu Art. 231, caput, reconheceu a existência de diferentes formas de sociedade, e assentou a identidade pluriétnic do Brasil. Observe ainda que há um capítulo específico denominado “Dos Índios”, no qual a carta magna assegurou aos índios, em complemento às garantias postas a todos no Art. 5º, sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições (Art. 231). Isto posto, é a partir desta lógica que podemos começar a fazer algumas ponderações no sentido de que existe um direito paralelo ao direito estatal. Também aprendemos que são fontes do direito as leis, os princípios gerais, a doutrina, a jurisprudência e os costumes. E, de plano temos que deixar assentado a diferença entre o direito indígena e o direito indigenista, pois ela de fato existe. Primeiramente, temos que o direito indigenista que é o conjunto das normas positivas que tratam das questões indígenas e vem sendo informado pelo princípio da autodeterminação dos povos indígenas, pelo princípio da diversidade cultural e pluriétnico e também pelo principio da inalienabilidade e imprescritibilidade dos seus direitos originais. Mas paralelo a este, temos o direito consuetudinário indígena que também foi reconhecido pela nossa constituição, pois sendo este integrante da forma de organização e da cultura da comunidade indígena. O que podemos concluir desse raciocínio é que, se o constituinte originário reconheceu as instituições próprias dos povos indígenas, este reconhecimento por extensão alcança a maneira tradicional como os povos indígenas lidam com suas terras, visto que essa posse tradicional é muito bem diferente que a que estávamos acostumados a ver no direito civil. Cumpre ainda, ressaltar que a Lei 6.001/73, em seu Art. 57, prevê que “será tolerada a aplicação pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infame, proibida em qualquer caso a pena de morte”. Entenda que o direito consuetudinário indígena pode ser reconhecido em sua plenitude, porque, como elemento integrante da cultura e da organização social das comunidades indígenas, é parte indispensável, está protegida e garantida sua aplicação. Aqui há que se estabelecer direitos típicos de direitos humanos. 3. INDÍGENA E O DIREITO AMBIENTAL ATUAL Entenda que o direito indigenista é como um ramo do direito que congrega o conjunto de leis, princípios e demais atos normativos que tem por objetivo regular questões que dizem respeito aos povos indígenas. Por isso podemos abordar alguns princípios que devem orientar esse direito positivo quando de sua regulação aos povos indígenas visto que estes já possuem também suas instituições próprias de resolver seus conflitos internos e formas próprias de se organizar. No que se refere ao princípio da autonomia dos povos indígenas, este pode ser abordado em duas acepções, primeiramente no sentido de estarem sempre presentes quando da decisão de assuntos que refletem diretamente sobre seus direitos e, segundo, no sentido que estes desenvolverem e caminharem autonomamente seguindo seus princípios, costumes e modo de ver o mundo, quando da formulação de alguma ação estatal que os atinge direta ou indiretamente. Compreenda que por vezes o princípio da autodeterminação dos povos indígenas parece se confundir com o da autonomia, mas são diretrizes diferentes e isto será demonstrado como muita clareza. Enquanto o princípio da autonomia visa assegurar que a participação e o desenvolvimento dos povos indígenas de acordo com suas cosmovisões, o princípio da autodeterminação informa que os povos indígenas podem eles mesmo gerir traçar suas metas e conduzir seus projetos sem nenhuma intervenção, política assistência ou ação indigenista por parte do Estado ou qualquer terceiro não índio. Não há que se esquecer que outro princípio é o da diversidade cultural e pluriétnico, quando a Constituição Federal reconheceu as formas de organização segundo usos, costumes e tradições. Aqui pretendia declarar que o Brasil reconhece todas essas realidades culturais que se traduz em realidade pluriétnicas. Ora pois, significa dizer que devem ser respeitadas todas as formas de expressões e organizações que se liga ao modo cultural de cada povo indígena. Quanto ao princípio da inalienabilidade e imprescritibilidade dos seus direitos originários, quer dizer que os direitos dos povos indígenas não podem ser negociados e tão pouco se prescrevem com o decurso do tempo, justamente por ter a Carta Magna havê-lo chamado de “originários”, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Ou seja, é um direito congênito e não cessa. 4. DA COMPLEXIDADE DO DIREITO INDÍGENA É sabido e consabido que estima-se que existe cerca de 215 povos indígenas no Brasil, cada um com sua língua própria e organização própria. E o direito consuetudinário indígena em casa comunidade se percebe na clareza com que estes diante de suas autoridades tradicionais constituídas resolvem suas questões e conflitos no que diz respeito à relação de troca, sucessão, crimes, casamentos, direitos e deveres em geral. O Brasil verde e amarelo, mediante seu Estado com todo o seu aparato, faz questão de ignorar essas constatação. Interessante trazer a baila à observação feita por Keppi no seguinte sentido: “Embora os povos indígenas formem sociedades complexas, com sistemas internos próprios de funcionamento e regulação de sua vida social, política, cultural e econômica, o Estado Brasileiro nunca deu o devido reconhecimento a essa forma particular que cada povo tem de se organizar. Isto se percebe claramente no não reconhecimento dos sistemas jurídicos internos que esses povos têm, que formam o seu direito, regendo suas vidas e sendo fator da regulação de uma vivência em comunidade de forma harmônica.” Observe ainda que no mesmo sentido, “as principais características dos sistemas jurídicos indígenas são a produção coletiva do direito e o controle social da comunidade sobre o mesmo. Acontece que o poder está dentro da comunidade e ela o exercita controlando o resultado social dos seus atos”. Faz-se mister mencionar que Francisco das C. Lima Filho faz uma abordagem muito interessante do direito indígena, que a partir de então passo a transcrever. O brilhante autor enfatiza que se pode afirmar que o direito indígena antes do período da colonização tinha como princípios básicos: a) da prioridade dos interesses coletivos sobre os interesses individuais; b) da responsabilidade coletiva; c) da solidariedade; e, d) da reciprocidade. Vejamos: “Com relação ao princípio da prioridade ou prevalência dos interesses coletivos sobre os individuais pode-se dizer que ele se revela na autoridade do chefe que tem como base os interesses da coletividade. O líder somente permanece no poder enquanto os seus subordinados se sentem beneficiados. Assim, os interesses da comunidade são mais importantes e se sobrepõem aos interesses ou direitos individuais. Por isso, os delitos considerados mais graves eram aqueles que ameaçavam ou atingiam aos sentimentos e aos interesses gerais merecendo, portanto, esse tipo de infração, maior atenção por parte dos lideres na forma da punição, caracterizando o direito penal público, enquanto os demais crimes que envolviam pessoas individualmente consideradas, sem causar transtornos aos interesses gerais eram solucionados no âmbito interpessoal ou interfamiliar caracterizando o direito penal privado. Como se vê, havia dois tipos de direito penal: a) o direito penal público, ligado à violação dos interesses ou direitos da coletividade e b) o direito penal privado, que dizia respeito ao interesse ou direito individual. Por isso, muitos dos delitos hoje considerados graves pelo direito penal moderno, como o infanticídio, o aborto, a morte, o abandono dos idosos e a eutanásia não eram considerados crimes, na medida em que eram praticados por interesse de sobrevivência de todo o grupo, portanto, no interesse coletivo, ao contrário do estupro que era tido como um delito grave porque ofendia a todo o grupo familiar e não a própria vitima, enquadrado, portanto, entre aqueles delitos de que se preocupava o direito penal público. Nas relações familiares, o casamento não se fundamentava na afetividade ou na vontade individual dos nubentes, mas nos interesses da tribo ou da família visando formar redes de compromissos, através de alianças políticas intergrupais ou mesmo internamente, pelos laços de família, na contraprestação de serviços entre os cunhados. A propriedade coletiva tinha maior importância e era bem mais abrangente do que a propriedade individual, e por isso, a maioria dos bens tangíveis produzidos individualmente pertencia ao grupo e não ao seu produtor. Vale dizer: a produção era destinada ao atendimento das necessidades de todos e não apenas de uma parcela da comunidade. Como decorrência do principio anterior, vem o principio da responsabilidade coletiva. Em razão desse principio, na guerra e no ritual da antropofagia, o prisioneiro representava a sua tribo e não apenas a sua pessoa, ou seja, a ofensa a um individuo da tribo contráriatem o significado de uma agressão a todos os elementos ou componentes da tribo representando motivo suficiente para a declaração da guerra na qual o conceito de responsabilidade coletiva é coligado ao de reciprocidade negativa ou agressiva, demonstrando a responsabilidade criminal coletiva, ou seja, a ofensa atinge a todos os indivíduos do grupo agressor, e cada membro se confunde com o grupo ao qual pertence, interna ou externamente, se estendendo a responsabilidade dos atos praticados por qualquer de seus componentes, o que justifica por outro lado, que os bens de família respondam, em forma de indenização pelos danos causados a outrem. Vale lembrar, aqui, que tanto os bens dos descendentes como dos ascendentes, porque estes são considerados co-responsáveis pelos danos, respondem pela indenização evidenciando, mais uma vez, os princípios da solidariedade e da responsabilidade coletiva que predominavam no direito indígena.” Entenda porquê a transcrição na íntegra desse ponto é importante e perceba que ela vai de encontro com o que se quer passar nesta obra. Nota-se que o autor começa tratando da prioridade que existe do coletivo sobre o individual, e somente esse ponto já faz um diferencial muito grande. Perceba de forma explícita que apenas o direito positivo vem despertando para os direitos difusos e coletivos, porque até então a máxima era a proteção individual dos direitos e não havia a amplitude que se expera dos direitos humanos. Basta olhar para os direitos de primeira ou segunda dimensão, somente agora, já na terceira dimensão, que foram contemplados os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Enquanto que essas características já marcam o direito indígena há séculos e de forma bastante contundente. E de forma brilhante, o autor continua em seu ensaio: “Por força do princípio da solidariedade se entende que para a manutenção da harmonia entre os integrantes da grande família, mister se faz que haja solidariedade entre os seus membros e com isso se evita a desagregação social. A propriedade coletiva e as relações de trabalho estão fundamentadas no principio da solidariedade. Para que o poder do chefe possa ser mantido ele deve ser solidário aos interesses e as necessidades de todos aqueles que integram a tribo. Por isso, a participação de um dos membros do grupo na guerra tem o significado de ato de solidariedade aos seus ancestrais que lutaram e morreram em defesa do interesse de todos os componentes da tribo. Como decorrência desse entendimento a participação no ritual antropofágico representa uma homenagem ao colega morto em combate e uma forma de vingança por ele, enquanto as festas promovidas pela comunidade têm um significado de oportunidade de renovação dos laços de solidariedade entre os membros do grupo ou entre as tribos amigas ou aliadas. Quanto ao principio da reciprocidade aparece especialmente no fato de que a liderança política se encontra fundamentada no prestigio do chefe e pela sua capacidade de ser generoso, necessitando para tanto, da retribuição da comunidade através do casamento com várias mulheres e na prestação de serviços através da corvéia, pois isso lhe proporciona acumular bens para que pudesse ser generoso com a doação de presentes e promover grandes festas para a comunidade e para as tribos amigas, aumentando, assim, o seu prestigio. Também a guerra e a paz se encontravam relacionadas com reciprocidade, na medida em que os tempos de paz têm o significado de equilíbrio na troca de favores e gentilezas entre as tribos, ao passo que nos tempos de guerra a idéia de reciprocidade era representada pelo aspecto negativo, ou seja, apenas uma tribo usurpa os benefícios de outra, sem nenhuma espécie de retribuição. A agressão ao direito de estranho ou inimigo não pode ser considerada crime, ao contrário, caracteriza reciprocidade negativa. A perda do direito da reciprocidade por individuo do grupo constitui sanção que corresponde à perda dos direitos civis. No campo do direito civil o respeito às normas tem como base o acordo da reciprocidade em que toda a comunidade se beneficia. Os graus de parentesco determinam as formas de reciprocidade, da mais intensa até a mais tênue. O intercâmbio de mulheres proporciona o fortalecimento dos vínculos de reciprocidade entre os cunhados, internamente, e entre as tribos, externamente. Por isso, o rapto de mulheres de outras tribos representa reciprocidade negativa. A produção inteira se destina à retribuição generosa. Por conseguinte, as pessoas avarentas e egoístas costumam ser rechaçadas socialmente porque não se enquadram no principio da reciprocidade. Com base nesse principio a mera vontade de obter um bem se mostra suficiente para recebê-lo, porém com o compromisso de retribuí-lo, existindo, assim, reciprocidade na posse dos bens por meio da rotatividade de sua posse. Todavia, com o processo da conquista, da colonização pelo chamado homem branco esse direito é violado e os próprios indígenas foram agredidos, na medida em que todos os aspectos de sua cultura foram desvalorizados e, em conseqüência, o direito pré-colonial desrespeitado e modificado, especialmente sob a tutela religiosa”. Enfim, nota-se que quanto à reciprocidade, ela sempre existiu nas relações indígenas, e não apenas do índio para com o índio, mas também com o índio para com o não índio e também com a natureza e seus elementos. Isto é marcante e traz reflexos no direito indigenista, quando falamos da pertinência entre o direito indigenista e o direito ambiental. Outro princípio abordado e também muito marcante é o da solidariedade que junto com a reciprocidade sempre marcaram as relações dos povos indígenas, é que há entre eles o interesse de sempre valorizar as relações humanas em prol da totalidade do seu povo. Virtude bonita que devia ser mais considerada pelos filhos do pobre capitalismo, pois que valores já não existem entre nós. Horrenda realidade. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Apresentei aqui um simples ensaio que abordou as ponderações sobre direito indigenista e o direito consuetudinário indígena, bem como demonstrou a importância da discussão do direito ambiental neste contexto. Resta demonstrado que o direito indigenista não está contemplado na grade do curso de direito, e o mínimo que se fala é na matéria de direito constitucional, isso quando pelo menos se lê o art. 231 da CF. Contraditório a amplitude deste direito que é um dever histórico de todo brasileiro e o descaso com que é tratado pelos bacharéis em direito. Como se não bastasse, ao mesmo tempo são muitos os operadores do direito que desconhecem totalmente os direitos dos povos indígenas, tanto em âmbito nacional quanto internacional. Aqui cabe nossa preocupação pois o pequeno número de profissionais que tratam o tema limita o debate e o exercício desses direitos diante do caso concreto. Não raro vemos no Poder Judiciário decisões contra disposição literal de lei e, quanto ao Poder Executivo ações que violam flagrantemente direitos das comunidades indígenas. Cabe aos operadores do direito indígena desconstruir certos conceitos e visões dogmáticas e ganhar espaços e adeptos à causa indígena. Esta é sim uma das principais tarefas para aqueles que defendem os direitos humanos e suas minorias, bem como para aqueles que levantam a bandeira do meio ambiente responsável. A abordagem do direito positivo sempre com vista ao direito consuetudinário dos povos indígenas é uma bandeira que levanto nessas poucas linhas e que merece o debate com urgência máxima pela sociedade brasileira. A hostilidade frequentemente lançada sobre os indígenas, sob o argumento que não há inocência nas relações com estes povos, não pode travar o debate. Os direitos humanos são agentes da paz e não da lei; aqui há uma escancarada anestesia moral ainda em tempo de ser corrigida pelo povo brasileiro.
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Os atores da justiça de transição no Brasil
A Anistia possível foi o primeiro passo para a redemocratização do Brasil após 15 anos de regime ditatorial, iniciando o período de efetivação da Justiça de Transição no país, que ainda não obteve o direito à verdade sobre seus mortos e desaparecidos do período. O presente trabalho tem por fito a busca pela caracterização de alguns dos principais atores da justiça de transição brasileira, e como as suas atuações influenciam na aplicabilidade dos passos transicionais e na democracia brasileira.[1]
Direitos Humanos
Introdução Surpreende que mesmo após passadas décadas do final do regime cívico-militar as manifestações, os debates acalorados, as acusações persistentes e mesmo manifestações pró e contra uma suposta volta do regime tomem conta da mídia e das redes sociais.  As violações legais ocorridas no período ditatorial, tanto o Estado ditatorial quanto da oposição, não se furtam de passar pelo crivo de uma análise acerca do direito penal, sobre punir ou não os envolvidos. Comissões, governamentais ou não, participam acaloradamente do debate, auxiliando na preservação da memória das partes envolvidas nos conflitos, utilizando como argumentos conceitos e fundamentos do direito penal, como fatores excludentes, legítima defesa, crimes permanentes, imprescritibilidade de crimes contra os direitos humanos. Fica evidente que ainda hoje há uma disputa político-ideiológica, hermeneutica, por trás dos fatos narrados nos capítulos anteriores. Neste capítulo, iremos discorer sobre alguns dos atores envolvidos na disputa da memória e consequentemente, na justiça de transição brasileira. 1. Comissões da Anistia, da Verdade e a Justiça Com o intuito de fomentar o direito à memória e enfrentar o legado do passado autoritário, as ações governamentais tem um importante papel na consolidação da transição brasileira. As ações do governo legitimam e reforçam as ações da sociedade civil organizada, como resposta de um Estado democrático às demandas da sociedade. A anistia possível materializou-se através da Lei n°6.683/79, marcando a redemocratização brasileira, permitindo o retorno dos exilados do regime. Nascida de uma intensa mobilização nacional, veio ainda na vigência do regime cívico-militar, trazendo no seu âmago toda  a carga de incoerências do período, embarcando na anistia todos os crimes interpretados como motivados politicamente ou correlatos, tendo sido recebida como um asceno ao esquecimento dos crimes cometidos. Esse exercício de esquecimento da sociedade brasileira foi fruto de uma anistia oriunda dos últimos atos de uma ditadura prestes a ceder espaço à reformulação política que apontava para os anos 80. Percebe-se que nos primeiros anos subsequentes à Lei de Anistia e a promulgação da Constituição de 1988 pouco ou nada foi feito no que se refere às políticas de memória e ações transicionais, não tornando público num primeiro momento as agressões cometidas pelos agentes do Estado. Dessa forma, a lei de anistia serviu como uma autoanistia dos militares momentos antes da passagem o poder, tendo passado anos sem que investigações fossem feitas sobre o período, dificultando o trabalho de reconhecimento e consequente memória do ocorrido. José Carlos Moreira da Silva Filho[2] discorre em seu livro: “Esta anistia acabou se firmando como uma outra etapa do processo de abertura lenta e gradual, iniciada pelo ex-ditador Ernesto Geisel, eclipsando o ingrediente de conquista e mobilização que possuía. Ela revelou-se, igualmente, uma autoanistia, pois serviu de pretexto para que não se realizasse nenhum tipo de investigação e apuração das responsabilidades dos agentes do regime ditatorial por seus atos ilegais aviltantes. E, por fim, ela representou uma barreira até hoje difiícil de ser transposta, para que se concretize o Direito à Memória e à Verdade.” Conforme o autor anteriormente citado, como legado deixado pela ditadura militar, além dos crimes contra a humanidade foi uma lei injusta, questionável quanto à validade, até hoje instransponível para que se faça um julgamento daqueles que cometeram crimes contra a humanidade sob o pretexto da defesa dos interesses nacionais. O governo brasileiro timidamente iniciou promulgando em 1995 a Lei n°9.140, reconhecendo como mortos as pessoas que participaram ou tenham sido acusadas de participar de atividades políticas, do período de 2 de setembro de 1961 à 5 de outubro de 1988 e que por este motivo tenham sido detidas por agentes públicos e desde então estejam desaparecidas, criando assim a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos, vinculada à Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, que reconheceu, representando o Estado brasileiro, a responsabilidade no desaparecimento forçado de 136 pessoas. Criada a Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça, em 2001, com a missão de analisar os pedidos de indenização das pessoas impedidas de de exercer atividades economicas por motivação política entre 1946 e 1988. A partir de 2007 a Comissão ampliou suas atividades, iniciando as Caravanas de Anistia, que tem por intuito a promoção da análise dos requerimentos no local em que ocorreram as perseguições políticas no regime militar. Ainda em 2007, complementarmente a Comissão da Anistia iniciou uma série de atividades com o objetivo de executar a atuação educacional por meio de ações para o desenvolvimento e implantação de políticas públicas de memória verdade e reparação. Além das atividades de reparação e educação para memória, a Comissão da Anistia integra o projeto Direito à Memória e à Verdade, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Além disso, fomenta as iniciativas realizadas pela sociedade civil, universidades, organizações não governamentais e de classe, na pesquisa e atividades do tema. Incentiva o debate público sobre os quatro temas da Justiça de Transição: reforma das intituições para a democracia; direito à memória e à verdade; direito à reparação; e o direto ao igual tratamento legal e à justiça. Já a Comisão da Verdade (CNV) é a comissão criada, em 2011, com a “finalidade de examinar e exlcarecer as graves violações de direitos humanos praticados no período de 1946 a 1988, afim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. Conforme anteriormente falado, não foi a primeira Comissão da América do Sul, sofrendo inlfuências das outras comissões no continente. Composta por sete membros nomeados pela Presidência da República, esta comissão elaborou relatórios e audiências públicas para esclarecer as violações aos direitos humanos, inclusive auxiliando a identificação de restos mortais dos desaparecidos do período. Conforme explica Hayner, 2001; Sikkink e Walling, 2007, sobre as Comissões da Verdade: “as “Comissões da Verdade” teoricamente objetivam o amplo esclarecimento das violações: aberturas de arquivos oficiais, oitiva de testemunhos de sobreviventes e familiares, investigação das circunstâncias da repressão, identificação dos agentes do Estado responsáveis direta e indiretamente pela repressão, assim como de suas ramificações civis, são algumas das formas para tanto. Como resultado, a Comissão produziria um relatório com suas conclusões para os dois próximos passos: processamento penal dos responsáveis e reconstrução história desse passado acompanhado de políticas públicas de memória das violações”. No artigo de Marcelo D. Torelly – Das comissões de reparação as comissões da Verdade – encontramos semelhante definição: “É relevante o destaque feito pelo autor de que, como regra, as comissões não tem poderes judiciais (dado que se repete no projeto de lei para a comissão brasileira), mas que isso não necessariamente significa que as informações por elas produzidas não possam ser posteriormente apresentadas ante ao judiciário. A natureza não-judicial das comissões da verdade atende, basicamente, a dois fins: primeiramente, o de garantir que a comissão não seja vista pelos perpetradores como uma instituição “contrária” a eles, o que inibiria sua participação; em segundo lugar, o de evitar que os comissários e seus agentes sejam obrigados a respeitar os parâmetros de devido processo legal estrito que caracterizam os atos de natureza judicial.” (TORELLY, 2012, p.4) Percebemos com o resultado final, que as comissões da verdade apresentam à sociedade a possiblidade de verificação da autoria dos fatos reconhecidos, o que não ocorre com a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão da Anistia. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) protocolou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fudamental (ADPF) em 2008, questionando a legitimidade da auto-anistia, que anistiou os representantes do Estado  que atuaram durante o regime cívico-militar praticando tortura.  Nominada de ADPF 153-6, com petição assinada pelos advogados Fábio Konder Comparato e Maurício Gentil Monteiro, a petição tinha como pedido que os crimes comuns cometidos contra os opositores do regime não fossem atingidos pela Lei de Anistia. A petição da OAB contestava o 1° artigo da Lei de Anistia, que considera anisitiados crimes de quaisquer natureza relacionados aos crimes políticos ou por ele motivados. De estarte, o Ministério da Justiça e a Advocacia-Geral da União antagonizaram-se nos seus pareceres. O Ministério da Justiça defendia a inconstitucionalidade do parágrafo 1°, e a Advocacia-Geral da União defendeu o não reconhecimento da arquição de descumprimento, dando sua improcedência. Em 2010, por sete votos a dois o Supremo Tribunal Federal, através do relator da arguição o Ministro Eros Grau, considerou improcedente o mérito da arguição, rejeitando os argumentos apresentados pela OAB, afirmando que somente o Poder Legislativo estaria autorizado a rever a Lei de Anistia.  No geral, na Justiça brasileira as sanções aos membros do Estado ditatorial são ainda hoje de caráter administrativo e civil, não tendo alcançado a esfera penal. Carlos Alberto Brilhante Ulstra foi reconhecido como torturador em sentença proferida pelo Juiz Gustavo Santini Teodoro,  como tendo responsabilidade civil por ter gerado danos morais decorrentes da prática da tortura. Entretanto, até hoje não houve condenação penal ou investigação criminal sobre a autoria das torturas, desaparecimentos forçados e mortes do período. 2. Organizações Não-Governamentais Embora a sociedade civil tenha sido parte considerável na ditadura, por isso a emblemática revisão do termo ditadura militar para ditadura civil-militar, grande parte da sociedade sentia-se ameaçada com o desenrolar dos governos militares. Desde o início do regime, grupos que antes eram favoráveis pela intervenção militar, como forma de salvar o país de uma provável ditadura comunista, perceberam que contribuíram para a criação de um monstro sem freios, que utilizava da força para fazer sua vontade e permanecer no poder. Trocaram uma suposta ditadura comunista por uma ditadura militar nacionalista. Setores da igreja, que no início eram favoráveis a intervenção militar, com passar dos primeiros anos do regime já tinham grande parte de seus clérigos apoiando direta ou indiretamente os opositores do regime, dada tamanha violência opressora empregada pelo Estado brasileiro naqueles anos de chumbo. Algumas das mais famosas demonstrações de oposição à repressão estatal foram apresentados na forma de relatórios, como o Brasil: nunca mais, da Arquidiocese de São Paulo; Outros foram os tantos relatórios, como Report on allegations of torture in Brazil, da Anistia Internacional ou o Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Os delitos praticados pelos agentes da repressão política acumulavam cada vez mais opositores ao método de controle social imposto pelo Estado brasileiro, mesmo entre seus apoiadores de início. No final da década de 70, os militares já não tinham uma oposição  armada em território nacional, tendo todos os grupos de esquerda sido presos, exilados ou mortos. A oposição que faltava era a oposição política, que cada vez mais aumentava devido aos meios desumanos empregados pelos militares. Nesta parte, fato interessante na história brasileira é de que, embora os militares tenham sido vitoriosos na luta armada contra a oposição, perante a opinião pública acusaram uma derrota moral sem precedentes na história nacional, tendo os grupos de oposição ao regime sido retratados, nos artigos acadêmicos e no cinema nacional como os verdadeiros heróis da resistência brasileira ante um regime ditatorial. Sobre o fato, discorre Lauro Joppert Swensson Junior: “Apesar dos militares terem saído vitoriosos na luta contra os seus “inimigos”, chamados “terroristas, comunistas e subversivos”, eles veem-se hoje obrigados a amargar uma derrota moral (de moral social) e a sofrer uma sanção social, devido principalmente aos meios empregados para alcançar os seus fins, como a tortura, os desaparecimentos forçados e as execuções sumárias.” Continua no mesmo tema o o cronista Zuenir Ventura (VENTURA, 2008): “Uma simples arqueologia dos fatos pode dar a impressão de que esta (a geração de 68) é uma geração falida, pois ambiciou uma revolução total e não conseguiu mais do que uma revolução cultural. Arriscando sua vida pela política, ela não sabia, porém, que estava sendo salva históricamente pela ética”.   Os opositores do regime militar ocupam hoje altos cargos no Estado Brasileiro, são homenageados como mártires, tendo seus nomes em escolas e avenidas, enquanto que com os membros do regime militar o ocorrido é um movimento contrário: não lhes são concedidas honras e aqueles que tinham seus nomes em Avenidas, ruas ou praças, tem seus nomes substituídos gradativamente. Sobre o tema, afirma Luciano Oliveira (OLIVEIRA, 2008): “O que se deu no Brasil mostra que os vencidos podem ter a ultima palavra, quando os vencedores ganham a guerra valendo-se de métodos que cobrem de vergonha aqueles que os empregam. Não há fim, por mais nobre que seja, que não seja manchado pela obscenidade suprema que é aplicar choques elétricos no corpo de um ser humano nu, imobilizado e trêmulio de medo e dor. Esse é o único capítulo dessa história dolorosa que está concluído.” Ao falar das ações de resgate e disputa da memória, é obrigatório falar das associações organizadas pelos familiares de mortos e desaparecidos dos militantes da resistência política, como o Grupo Tortura Nunca Mais que lutam para manter viva a memória do período ditatorial, através de denuncias e influência política institucional pelo resgate da memória, através do resgate dos restos mortais dos desaparecidos, como prova inequívoca da tortura, para fortalecer o reconhecimento público dos fatos ocorridos. Dentre suas atividades destaca-se o projeto de assistência clínica-médico-psicológica, de reabilitação física e social e de apoio jurídico gratuito – voltado para as pessoas atingidas pela violência do Estado. Contam com aproximadamente 100 filiados e suas reuniões são públicas. A partir da publicação da lei que estabeleceu a Comissão Nacional da Verdade (CNV), o grupo passou a reunir-se semanalmente para discutir como ponto único de pauta de suas reuniões a própria CNV. Nesse movimento de resgate e disputa pela memória, com os resultados mostrados acima, demonstram que mesmo havendo uma disputa pela memória, hoje o campo democrático contrário ao regime militar conta com mais apoio, organização e visibilidade na sociedade brasileira do que os defensores do regime militar, mas isso não quer dizer que os militares não contem ainda com defensores do regime e seus meios empregados. 3. Os Clubes Militares, militares e forças favoráveis ao regime cívico-militar No campo dos militares, não há uma representação de grupo formalmente instituída, com o propósito de representá-los nesta questão sobre a disputada ”verdade”. Devido aos anos de silêncio e esquecimento instituídos informalmente e principalmente as próprias regras e estatutos militares que não permitem associações de classe, pouco existe na academia sobre a opinião dos militares, institucionalmente falando, se não entrevistas espaçadas. PINTO, Igor (2013, monografia UFRJ) em seu trabalho entrevistou alguns militares sobre a Comissão Nacional da Verdade, colheu algumas informações valiosoas sobre o pensamento dos militares sobre esta questão. Um dos primeiros entrevistados, um oficial reformado do Exército Brasileiro, quando perguntado sobre o que achava da Comissão Nacional da Verdade, respondeu que a opinião dele é de que a Comisão é um pretexto para a revisão da Lei de Anistia. O pesquisador Igor Alves Pinto, em pesquisa realizada no Clube Militar do Rio de Janeiro tentou captar a opinião do Clube sobre a questão, no dia em que havia uma palestra sobre “ A Revolução de 31 de Março de 1964 – Com os olhos no futuro”. Suas percepções foram que, além da idade extremamente avançada do grupo, todos se conhecem ao menos pelo nome, como se amigos de longa data fossem. Na palestra acompanhada pelo pesquisador, a Professora Sandra Cavalcanti foi a primeira a apresentar, discorrendo sobre valores morais e a necessidade de se proteger “ a verdade, a família e o amor ao próximo”. O segundo palestrante, o General Coutinho, citou que as Forças Armadas não são a vanguarda da sociedade civil e sim as reservas cívicas e morais, sendo recebido com aplausos pelos ali presentes. O terceiro palestrante foi Ives Gandra, que em seu relato disse que sofreu em 1969 pedido de confisco de seus bens e abertura de Inquérito Policial Militar, tendo apresentado-se como tendo participado da Anistia Internacional. Quando perguntado pelos presentes sobre o que achava da Comissão Nacional da Verade, o terceiro palestrante disse que a Comissão seria uma “Comissão da Vingança”. Ainda em sua pesquisa, o pesquisador cita um inusitado fato: na entrada do Clube Militar do Rio de Janeiro há vários jornais da época, que exaltam o ocorrido. Seguindo seu ciclo de pesquisas e entrevistas, Igor Alves Pinto, numa segunda entrevista, com o oficial B, colhe a seguinte informação do entrevistado: De forma implícita, B diz que as pessoas participantes do Clube Militar do Rio de Janeiro são os mais radicais dentro do círculo militar, como pessoas de ideologia de “ultra direita”. Seguindo a entrevista, B diz que quanto a Comissão da Verdade não há problemas, desde que se levante os dois ladosque cometeram as violaçõesaos Direitos Humanos na época, e que se siga a Lei de Anistia. Que não se discute a Comissão da Verade nas Forças Armadas, que os comandantes das forças e o Ministro da Defesa, caso fosse necessário, pronunciariam-se através de nota oficial. Como podemos perceber no trabalho exposto, embora não organizado, há grupos da sociedade brasileira que ainda tem o entendimento de que o golpe cívico-militar além de necessário, foi um ato de bravura dos militares. Negam o fato de ter havido tortura. Sobre esse entendimento, cita José Carlos Moreira da Silva Filho[3]: “A sociedade brasileira encontra-se , portanto, ainda sob fortes efeitos das políticas de esquecimento que vieram com a ditadura e com a anistia. Parte expresiva da opinião pública, incluindo principoalmente os mais jovens, sabe pouco sobre esse período repressivo. As Forças Armadas brasileiras ainda ostentam em seu seio o entendimento de que o golpe não só foi necessário como constituiu um ato de heroísmo patriótico. Muitos até chegam a duvidar que a tortura tenha de fato ocorrido em larga escala durante o regime.” Nos clubes militares encontram-se, mesmo não organizados, um grupo ideológico que defende as ações no período, como ultima ratio contra uma ação comunista em território brasileiro, e defendendo o direito ao esquecimento do ocorrido, sucitando a Lei de Anistia como fundamento jurídico. Há resistência, nesse grupo em especial e entre os apoiadores do regime cívico-militar de admitir as torturas e os desaparecimentos, referindo-se ao golpe como uma revolução nacionalista, numa vã tentativa de legitimar os meios empregados. Há ainda neste campo de atuação o Deputado Jair Bolsonaro, político carioca eleito pelo Partido Progressista do Rio de Janeiro, um dos atores mais atuantes na disputa pela verdade na Justiça de Transição Brasileira. Tendo sido eleito em grande parte por votos dos militares, frequentemente ele se posiciona como se representasse os setores militares, embora esta informação não seja confirmada pelas Forças Armadas ou pelos Clubes Militares como instituição. Sobre as afirmações do Deputado, cita em sua pesquisa Igor Alves Pinto: “Em discurso no plenário o Dep. Ao falar sobre indenizações para presos políticos disse “Vamos acabar com essa idéia, com essa história, que esse pessoal era preso político. Ora, meu deus do céu, eram seqüestradores, assaltantes de banco, estupradores, terroristas e praticavam a corrupção em larga escala.”. Em discurso do dia 20 de abril de 2010  aonde se discutia o PNDH-3 e o Dep. falava sobre a Comissão da Verdade o Dep. discutia com o então Ministro Vannuchi ao dizer “Sobre isso eu volto sobre a confusão da Comissão, eu não posso permitir que latrocidas, torturadores, seqüestradores, assaltantes, terroristas se transformem em presos e desaparecidos políticos muito bem remunerados, eu não posso admitir isso. E essa Comissão vai levar para endeusar esse pessoal…” “Nós queremos saber sobre o carro bomba no aeroporto de Recife, ou melhor, a bomba no aeroporto de recife, que matou um jornalista e também um almirante, Quem foi o autor? Eu acho que eu sei o nome desse autor. Quer me pagar pra ver? Nós queremos abrir todos os arquivos também. O carro bomba que matou Mario Costa teve também a participação de uma mulher, vossa excelência não quer saber que mulher é essa?” – Ao que foi respondido por “Eu quero” – “Eu acho que não quer! Pra botar uma Comissão composta por pessoas desse naipe, indicada por gente ao teu lado, não quer a verdade. Assim sendo, seu Ministro, não vale essa idéia de que nós democraticamente vamos decidir a comissão, você está jogando pra platéia, está serviço desse seu governo. Por que o Zé Dirceu se refere a Dilma Roussef  como companheira em armas?” e depois continuou com “Nós militares não temos medo da Memória e da Verdade mas essa Comissão vai ser a Comissão da Calúnia composta por fascínoras. Eu perguntaria de novo, 6 traficantes pra julgar o Beiramar, ele será condenado ou absolvido? Ele será endeusado, glorificado, anistiado e ainda ganhará polpudas indenizações como os muitos dos seus companheiros ganham. Agora se sua excelência tem medo da verdade e não aceita incluir integrantes das forças Armadas, do Clube Militar, do Clube da Aeronáutica, do Clube Naval, do Grupo Terrorismo Nunca Mais. Assim você vai ficar a vontade pra dar as cartas.” e por fim disse “Então seu presidente, continuo batendo já que vossa excelência não vai ceder pra integrar a gente nossa na Comissão e de restante vai colocando aqui, na tribuna da Verdade, a Verdade que o povo tem que saber.”  O Deputado Jair Bolsonaro é contrário à Comissão da Verdade, ao seu ponto de vista, de que a comissão irá elaborar um relatório arbitrário, sob o ponto de vista revanchista de um dos lados da disputa – A esquerda, ou os comunistas, como citado pelo Deputado em seus discursos. Nas palavras do Deputado Jair Bolsonaro, em Audiência Pública na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, realizada em 9 de abril de 2013 na Câmara dos Deputados: “… o ocorrido nós temos de levar em conta desde antes de 31 de março de 1964, prezado Dallari, desde antes. Não se pode julgar um crime a partir de um corpo no chão, a partir daquele momento. Tem que se anteceder um pouquinho. Desde 1961, já se articulava um golpe de esquerda em nosso País(…) nós não temos medo da justiça não. Os senhores têm medo da verdade. Tanto é que nesta Comissão, Dr. Dallari, não tem ninguém do nosso lado. Todos os sete foram impostos, indicados por Dilma Rousseff, exatamente para esconder os seus atos terroristas.” Conforme o início do discurso do Deputado, constatamos nitidamente que: Primeiro, ele se coloca como representante dos militares; Segundo, que mesmo essa representação não sendo legítima, representa a palavra de um Deputado Federal, dos mais votados da última eleição pelo Rio de Janeiro; Terceiro, que é contrário ao espaço temporal que a Comissão se dispõe a esclarecer; Quarto, que o discurso de uma articulação de um golpe comunista ainda é sucitado quando lembrado dos motivos das Forças Armadas mobilizarem-se para a tomada do poder; Quinto, partindo da premissa de que ele fala em nome dos militares, o discurso rotula os militares como portadores da justiça, por isso não a temem, e que a “verdade” está ao seu lado; E por último, deslegitima a Comissão, pela forma como foram escolhidos e empossados, com a intenção de encobrir atos terroristas dos militantes de esquerda opositores ao regime. Continuando seu dircurso, ainda na mesma audiência: “(…) O Congresso, Dr. Belisário, que elegeu Castelo Branco foi feito em 1961. Que ampla maioria tinha os militares? Nenhuma. E V. Exa. deveria lembrar à sua igreja que os padres pregavam, antes de 1964, que os militares assumissem o Governo, porque estavam partindo para aditadura – indisciplinada, insubordinações, greves, corrupção generalizada. E quem disse isso, ali na bilioterca, foi o Dr. Roberto Marinho, em seu editorial de 7 de outubro de 1984. “Participamos da revolução”, e por aí vai. Disse também, em 2 de abril de 1964, e o título era “ Ressurge a democracia”.” Voltando à análise do discurso do Deputado Bolsonaro, podemos perceber a tentativa de legitimar o golpe cívico-militar como um produto da conjuntura do período, da vontade e mobilização nacional, incluindo aí a igreja católica e os grandes grupos de comunicação. A conclusão lógica, depois da análise dos relatos e discursos, é que que o Deputado reconhece uma disputa hermeneutica pelo sentido da “verdade e justiça”, reconhece também que, se há disputa, há dois lados, colocando-se ao lado dos militares e dos membros do regime cívico-militar. O grupo TERNUMA, grupo organizado em resposta as ações do Grupo Tortura Nunca Mais, em seu texto de descrição no sítio da internet apresenta-se como “um punhado de democratas civis e militares, inconformados com a omissão das autoridades legais e indignados com a desfaçatez dos esquerdistas revanchistas”. Continuam, declarando que tem como objetivo opor-se a todos aqueles que teimam em defender os referenciais comunistas. Ainda em seu site, o grupo conta, ainda na entrada do site, com a inscrição “Bem vindo! Aqui você conhecerá a história das ações terroristas praticadas por maus brasileiros”, associando a expressão “maus brasileiros” aos militantes de esquerda, os comunistas. Em seus arquivos, há o espaço Baú da Verdade, onde apresenta outras versões da verdade, com o intuito de se contrapor à Comissão da Verdade e suas conjecturas sobre a verdade desvelada em seus relatórios. A disputa pela “verdade e justiça” existe, é pública embora não declarada e os  atores da justiça de transição brasileira atuam na disputa dentro do campo formal, seja dentro do próprio governo, seja no legislativo ou no judiciário, representando a disputa que há na memória da sociedade brasileira. Conclusão O presente artigo destinou-se a revisar bibliograficamente atigos e livros na busca dos principais participantes da justiça transicional brasileira, logrando êxito na busca, conseguindo demonstrar os participantes e suas mobilizações/atuações. A política de resgate das memórias e mobilizações contra o esquecimento são hoje o único meio para a efetivação da Justiça de Transição no Brasil, pelo direito à verdade aos mortos, desaparecidos políticos e seus familiares. Quando os atores dessa disputa são reconhecidos, suas intenções não mais consideradas dúbias ou não orquestradas, podemos perceber que as movimentações de todos os atores demonstram uma disputa por esta rica memória ainda pouco explorada do passado ditatorial brasileiro.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/os-atores-da-justica-de-transicao-no-brasil/
Colisão entre a atuação do estado e a vida privada: limites do intervencionismo
Este trabalho apresenta o surgimento e evolução da sociedade, passando desde o período do estado natural aos dias atuais. Verifica-se que o ser humano trocou o estado de natureza onde a liberdade era total, mas também a guerra de todos contra todos era constante e o direito era do mais forte, para viver em coletividade de forma cooperada, outorgando parte de sua liberdade a um terceiro – o Estado – e em troca seria protegido por ele. Todavia, observa-se foi que, ao longo do tempo o Estado passou a intervir excessivamente na vida privada dos indivíduos. Então, o presente estudo, demonstra níveis de intervenção estatal diversos ao longo da história, enfocando no estado brasileiro atual, com o fito de contribuir como alicerce coadjuvante no posicionamento do Brasil na resolução de problemas sociais que só tem se agravado, em decorrência de uma intervenção inadequada do estado soberano na sociedade.
Direitos Humanos
Introdução Na história da humanidade observa-se que o ser humano vivia isoladamente, tendo contato limitado somente para fins de procriação. Seus interesses, naturalmente, diversos geravam graves conflitos que eram dirimidos entre os próprios envolvidos por meio de guerras, quase sempre mortais. Os principais motivos eram variados, como conquista de alimentos, posse territorial pelas fêmeas da espécie. Este período, denominado como estado natural, era dizimador da própria humanidade, pois era uma guerra constante de todos contra todos, na tentativa da satisfação dos interesses unicamente individuais, sendo a tutela do direto, pertencente ao mais forte (em sentido amplo). Destarte, com guerras constantes de todos contra todos, a humanidade não prosperava, não evoluía intelectualmente e, por conseguinte eram completamente a suscetíveis à extinção da espécie. Então, o homem em determinado momento, passa a viver em coletividade outorgando seus interesses a um terceiro, que tutelaria o direito de todos. Este advento ficou conhecido como Contrato ou Pacto Social. Cada individuo signatário deste pacto renunciaria parte de toda sua liberdade que possuía no estado natural ao Estado Soberano, para que todos pudessem viver coletivamente em paz, e em cooperação. Em qualquer momento em que se deflagrasse algum conflito entre os indivíduos, o Estado, único legitimo para tutelar os direito de todos, interviria concedendo o ganho da causa a quem julgasse ter a razão, pacificando-se assim o conflito. Hipoteticamente esta seria a condição ideal para humanidade, se não fosse distorções no processo de intervenção estatal que pode retroceder o estado social aos problemas do estado natural, acrescido de outros ônus. Verifica-se que o Estado detém todo o poder, é legítimo na tutela do direito de todos e portanto é soberano sobre seus governados. A sociedade é governada por um representante que na vigência desta posição toma todas as decisões como sendo o próprio Estado. Assim, este representante (monarca, presidente, primeiro ministro, etc.) revestido de poder pode intervir na população por interesse próprio ou de um grupo privilegiado; também, por imperícia, pode intervir demasiadamente na vida privada do indivíduo cerceando-lhe a liberdade, oprimindo, permitindo conflitos demasiados, o crescimento da desigualdade e a perda da dignidade humana. Este trabalho tem como fito identificar até que ponto a intervenção do Estado é de fato benéfica, e até mesmo vantajosa em relação à vida humana em seu estado natural; visando apresentar diversos pontos de vista adotados no mundo e ao longo da história sempre trançando um paralelo com a conjuntura brasileira. Assim, podendo ser útil para reflexão das políticas adotadas no Brasil até hoje e que sirva como um dos balizadores para problemas sociais atuais e projetos normativos que tramitam para o futuro. Objetivando a fundamentação da pesquisa, serão apresentados conceitos sobre, o período pré-social, gênese evolução da historia da sociedade, bem como o ponto de vista dos principais, filósofos, sociólogos e juristas sobre o tema. Também, serão expostas as diversas culturas mundiais e aplicações das respectivas intervenções estatais, como também dados estatísticos sobre os resultados de tais políticas. O trabalho está ordenado em sete capítulos. O Capítulo 2 conceitua o Estado de Direito pela ótica de pensadores renomados no tema, contextualiza e posiciona historicamente o assunto a ser abordado. No terceiro capítulo, discorre-se acerca do período de estado natural da humanidade, o surgimento do reconhecimento dos direitos naturais (jus-naturalismo), surgimento e definição do Contrato Social e o primeiro contraponto do trabalho: Estado Social ou estado natural. O Capítulo 4 explana sobre os limites estatais na intervenção social, apresentando os dois extremos: Estado Intervencionista e Estado Mínimo, e a indispensabilidade de intervenção. No Capítulo 5, serão apresentados os princípios da autonomia da vontade individual, apresentando exemplos reais. O sexto capítulo apresenta os resultados obtidos com o presente trabalho. Por fim, as conclusões serão apresentadas no Capítulo 7. 2. O Estado de Direito: Contextualização e Conceitos Este capítulo aduzirá historicamente o surgimento e evolução do Estado e seus conceitos sob a perspectiva dos principais referenciais advindos de filósofos, políticos, e escritores contemporâneos ao surgimento do conceito em comento. Outrossim, suas principais características, progresso do estado primitivo e exposição das etapas relevantes no lapso temporal do momento primário ao vigente. 2.1. Surgimento do Estado Anteriormente às famílias monogâmicas e à propriedade privada, a sociedade era composta por grupos matriarcais onde a paternidade era ignorada em face a impossibilidade de averiguação desta, promovendo a mãe à posição de autoridade suprema da família primitiva. A hierarquização destes grupos familiares era realizada pelos anciãos por intermédio dos conselhos tribais; a harmonização social era alicerçada em práticas religiosas, tendo relações sociais unicamente pessoais. Findando-se o nomadismo e iniciando as práticas da agropecuária, surge-se a necessidade das propriedades privadas que desperta o interesse de garantias sucessórias, nascendo, portanto, as famílias patriarcais com vínculo monogâmico (por parte da mulher), podendo, todavia, garantir a hereditariedade dos bens privados. Constatou-se que, a certeza da paternidade com o fito de acautelar a transmissão hereditária da propriedade privada não era o necessário para garantia da segurança dos bens. Portanto, objetivando o resguardo das posses, criou-se uma estrutura política rudimentar capaz de assegurar os direitos, ora ameaçados por ladrões ora por invasores; também foi possibilitado a criação de cooperativas para trabalhos conjuntos onde toda a sociedade ou grande parte dela se beneficiava, como pontes, barragens, estradas, canais, etc. Após essa união social institucionalizada, e liderada dentro de uma estrutura política, pode-se, todavia, identificar a gênese do Estado. Estes tinham como principal características o poder absoluto teocrático, constituído no monarca que era considerado divindade. O próximo relato histórico do Estado foi verificado na Grécia com as chamadas polis (comunidades organizadas) formadas pelos politikos (cidadãos); cabendo mencionar dentre elas, as cidades-estados, Atenas, Esparta e Corinto. 2.2. Evolução Histórica Ante a apresentação anterior do surgimento do estado em sua forma primitiva ainda no período da idade antiga, este tópico narrará o Estado Contemporâneo que é o enfoque do trabalho, entretanto, não omitindo que, do Estado Antigo ao Estado Moderno houveram etapas evolutivas. A primeira definição do Estado Moderno pode ser encontrada na obra de Nicolau Maquiavel, O Príncipe, onde ele defende, em dissonância com o pensamento medieval de sua época, a existência de um estado secular forte o bastante para fazer frente ao poder do papado. Segundo June Müller (1997), o pensamento medieval preponderava a concepção dualista cristã composta pela Cidade dos Homens (autoridade política) e a Cidade de Deus (autoridade divina), sendo esta soberana sobre aquela, pelo fato da total submissão do ser social aos designíos divino, demonstrada pelos objetivos de construir o reino de Deus na terra, conduzir à salvação por intermédio do castigo e remédio à natureza decaída humana, obedecer ao governo terreno até o limite do governo divino, por meio das ideias de justiça. Em contraponto, os pensamentos de Maquiavel que de fato solidificou a definição de Estado Moderno, aludidos por Müller, elencavam como características: – O cristianismo em decadência: início do conflite entre poderes divino (igreja) e temporal (Estado); – ascensão do capitalismo; – fortalecimento da monarquia e centralização das forças políticas, como exército, e cortes de justiça; e – Estado absoluto, onde o proletariado e fortemente dominado pela burguesia, garantindo somente aos aristocratas privilégios e direitos. Em síntese, a principal característica do Estado Moderno é a soberania, ou seja, ideia em que o soberano (governante) era legítimo para impor suas decisões arbitrárias perante seus súditos (governados) residentes em seu território de domínio (território estatal). Para tal, segundo Araújo (2006), alguns meios para controlar a política foram desenvolvidos, quais sejam: – território definido: foram estabelecidas fronteiras geográficas definindo os limites territoriais de cada governo; – idioma comum: um mesmo idioma era falado em cada território nacional valorizando a cultura e costumes, outrossim, a possibilidade de transmissão das ordens dos monarcas; – centralização da justiça: aplicação de uma legislação una para todo o Estado; e – poder militar: para garantir as decisões do governo soberano foi necessária a criação de um exército permanente controlado pelo rei. 2.2.1. O Estado Sob a Perspectiva Karl Marx Na visão de Marx (2007), o Estado não era uma imposição divina nem tampouco fruto de um contrato social, e sim, um meio de garantir a dominação de uma classe social sobre a outra, ou seja, a minoria burguesa que detinha a maioria das propriedades privadas carecia se salvaguardar. As principais ferramentas empregadas na dominação entre classes eram o aparato de ordem (jurídica) e da força pública (policial e militar). Assim, o liberalismo define o Estado como garantidor do direito de propriedade privada e, reduz a cidadania aos direitos dos proprietários privados (CHAUI, 2000). 2.2.2. O Estado Sob a Perspectiva de Max Weber Weber (1982) defendia a concepção de Estado como sendo uma entidade que possui o monopólio do uso legítimo da força coercitiva sobre seus governados. Destarte, um lado atuava ponderando direitos e consequentemente especializava os poderes Legislativo, Judiciário, sendo aquele – o Legislativo – o mais importante por representar o povo, objetivando assegurar a segurança de cada indivíduo e por conseguinte a ordem política, em outra ponta, é adepto da intervenção estatal em diversos âmbitos como: saúde, cultura, economia, para tal dispõe-se de força militar permanente. 2.2.3. O Leviatã de Thomas Hobbes Para Hobbes (1979), o Estado deveria ser uma instituição que precipuamente regulasse as relações entre os indivíduos pelo fato de o homem em seu estado natural na busca incessante de provimento de seus desejos de forma egoísta, violenta e vil, movido unicamente por suas paixões. Em sua obra Leviatã, Hobbes separa a humanidade em dois grupos: o estado natural e o político social. No estado natural o homem é completamente livre, dotado de toda sorte de direitos e nenhum dever, sendo um estado – considerado pelo filósofo – sórdido, pobre, solitário, tosco e curto (HOBBES, 1979). Entretanto, no estado político social haveria um governo que imporia suas ordens a fim de construir uma coletividade harmônica dotada não só de direitos (restringidos), como também deveres. “O homem, por natureza, é egoísta, pois quer fazer apenas o que é do seu interesse, sem levar em consideração os anseios dos outros. Devido a isso, quando há choques de interesses entre esses indivíduos, surgem os conflitos interpessoais, já que “os dois desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo, que é impossível ela ser gozada por ambos, eles se tornam inimigos”. (HOBBES, 1979, p.74). No pensamento de Hobbes, o soberano – estado – é quem garantiria a harmonia, paz e segurança outrora garantida de forma precária sob a autoridade de um senhor feudal. Em troca, era alienada ao soberano todas as liberdades individuais, sendo, então, o Estado, o senhor absoluto na vida dos seres humanos. Assim, Hobbes, cognomina o Estado como Leviatã, fazendo uma alusão a um monstro citado no livro de Jó no antigo testamento, que diz: “Ninguém é bastante ousado para provocá-lo; O seu coração é firme como uma pedra; Não há nada igual a ele na terra, pois foi feito para não ter medo de nada; Ele olha com desprezo tudo o que é alto; é rei sobre todos os animais orgulhosos”. (Jó in Bíblia, 1997). A despeito de essa descrição bíblica aludir uma besta assustadora, esse mesmo animal segundo Martins e Aranha, é o que defende os peixes menores (mais fracos) de serem devorados pelos peixes maiores (mais fortes). Outra analogia que cabe relevância é de que o Leviatã seria "um gigante cuja carne é a mesma de todos os que a ele delegaram o cuidado de os defender" (ARANHA e MARTINS, 2003), representando claramente a visão de Hobbes. Na Ilustração I, pode-se observar um ser enorme, com o corpo composto por vários indivíduos, à sua destra uma espada imponente em sua mão esquerda um cajado, velando sem pestanejar sobre seu território de domínio, aludindo respectivamente, a soberania, a formação pela coletividade, a onipotência e poder protetivo e coercitivo constante pelo seu exército. 2.2.4. O estado Sob a Perspectiva de John Locke Locke fazia críticas às ideias de Thomas Hobbes, em que este acreditava no direito divino dos reis. Para Locke, entretanto, a soberania se encontrava na população, não no Estado, e mesmo sendo soberano, deveria respeitar as leis naturais advindas dos seres humanos. John Locke também foi um dos defensores entre Estado e igreja, e apoiava a liberdade religiosa, em consequência teve suas ideias massivamente desaprovadas pela Igreja Católica. Não obstante a concepção da separação entre Estado e igreja, Locke, também afirmou que o poder estatal deveria ser dividido em três, sendo poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário, sendo aquele mais importante que os outros dois por representar a vontade do povo. A despeito de preconizar a igualdade entre os homens, ele também era a favor da escravidão, não por segregação racial, mas com um pensamento objetivo: homens capturados em guerras podem ser mortos, contudo, concedendo-lhes a possibilidade de viver, a liberdade deveria ser convertida em escravidão. 2.2.5 Liberalismo O Pensamento liberal teve origem no decorrer do século XVII, contido em escritos filosóficos do inglês John Locke (SOUSA, 2002), que agregado a outros pensamentos correlatos contemporâneos e posteriores concebeu-se o sistema sócio-político-econômico Liberal ou, como é mais difundido, Liberalismo, e objetivava melhorar a qualidade de vida das pessoas findando as guerras religiosas. O Liberalismo é um sistema alicerçado na liberdade do indivíduo – como elemento do Estado – nos mais diversos aspectos, como: político, intelectual, econômico, religioso, cultural e social. Neste corrente de pensamento, em suma, o indivíduo deve possuir liberdade de escolha sem a interferência do governo ou a mínima possível. Pode-se elencar como principais princípios do Liberalismo os seguintes: – mínima participação do estado na vida dos indivíduos, sobretudo nos aspectos econômicos; – direito e proteção da propriedade privada; – igualdade entre os homens perante as leis(Estado de Direito); e – liberdade econômica. 2.3. Estado Contemporâneo No decorrer dos anos, foi-se percebendo uma série de problemas sociais decorrentes das políticas liberais, ou pelo menos da má aplicação delas. Com a mínima interferência estatal as desigualdades se elevaram exponencialmente, gerando exploração de trabalho do mais forte sobre o mais fraco economicamente, redundando em muita pobreza e acesso desigual aos recursos existentes. Portanto, os Estados europeus, na década de setenta, com mais intensidade, começaram a aplicar os conceitos do que viria a ser o Estado de bem-estar social (do inglês: Welfare State) como alternativa ao modelo liberal que apresentava drástico declínio. No Estado de bem-estar, o Soberano troca o papel de mínima intervenção na vida dos indivíduos para atuar efetivamente no provimento dos serviços de saúde, educação, habitação, seguridade social, renda e controle social para erradicação entre as classes. Todavia, o modelo do bem-estar também veio a declinar na década de oitenta, com a eleição da Primeira Ministra inglesa Margareth Thatcher; ela, percebendo que o estado não era capaz de sustentar toda essa política, opta por sintetizar o estado, mantendo apenas uma estrutura mínima e privatizando empresas que não estivessem diretamente ligadas com a atividade governamental. Essa corrente inglesa espalhou por todo o mundo, inclusive o Brasil, como privatizações das empresas estatais no governo Fernando Henrique Cardoso, década de noventa. O Brasil, na verdade, nunca pode ser considerado um Estado de Bem-estar como os europeus, já que não foi capaz de implementar tais políticas nem tampouco reduzindo a desigualdade social e promovendo o bem-estar por intermédio de serviços de educação, saúde, segurança, etc., de qualidade. Em outra ponta, o país, nos dias de hoje, possui uma forte intervenção jurídica como tentativa de compensar, de forma não preventiva, os conflitos sociais. 3 Do Pacto Social O Contratualismo, como também é conhecido o Contrato Social, passou a ser difundido entre os séculos XVI e XVIII pelos filósofos Thomas Hobbes (1651), John Locke (1689), Jean-Jacques Rousseau (1762); que obviamente não foram os únicos, entretanto a História ocidental os evidenciam como os principais (RIBEIRO, 1999). Como será exposto em pormenores neste capítulo, o Contrato Social, é uma convenção que os indivíduos efetuam enquanto estão em seu estado natural (estado de natureza, isolados), a fim de que obtenha vantagens e garantias, para isso, passam a viver em sociedade, abdicando de sua total liberdade para a sujeição a um soberano (Estado) controlador e garantidor do bem-estar social. 3.1 O Homem Natural O homem em seu estado natural fora explanado por duas principais correntes, uma preconizada por Hobbes e a outra por Rousseau. Hobbes acreditava que o – homem como ser humano – era um ser egoísta e vivia em busca da satisfação dos seus desejos, não importando que para tanto fosse necessário anular a pretensão de outrem, e, por conseguinte todos viviam em guerra contra todos, dando origem ao conhecido bordão, “o homem é o lobo do homem”. Assim, a vida não havia garantias, as posses não eram legitimadas, prevalecendo tão somente a lei do mais forte; e este conquistaria e conservaria todos os objetos de seus anseios e que sua potencia não o limitasse. Rousseau, em consonância com Hobbes, também acreditava que o indivíduo em seu estado natural tinha liberdade para satisfazer seus instintos, objetivando a satisfação de suas vontades. Contudo, a harmonia entre os dois pensadores se encerra nos meios e consequências para realização de seus desejos humanos. Para Rousseau, no estado de natureza, os indivíduos viviam isolados em florestas, retirando para sobrevivência tão somente o que a natureza lhe provia, desconhecendo lutas. Ao aludindo o pensamento de Rousseau, SAHD (2005, p.101) aduz: “O homem realmente livre faz tudo que lhe agrada e convém, basta apenas deter os meios e adquirir força suficiente para realizar os seus desejos.” Contemplavam a felicidade original, descrita por ele como o “bom selvagem inocente”, que se encerra quando alguém cerca um terreno determinando sua propriedade privada, e estabelecendo o que é “meu” e o que é “seu”, originando o estado de sociedade. Estão, sob a ótica de Rousseau, inaugura-se o estado de natureza hobbesiano, da guerra de todos contra todos (CHAUÍ, 2000). 3.2 Jus-Naturalismo Também conhecido como Direito Natural, o Jusnaturalismo contempla os direitos do homem que lhes são inerentes desde o seu nascimento, portanto, presentes também, em seu estado natural. Tal direito é abstraído, posicionando-se acima dos direitos convencionados socialmente ou de pretensas normas positivadas que venham a existir; não se sujeitando ao tempo, pois é eterno, às autoridades estatais por ser universal, nem tampouco à cultura, região ou posição geográfica, porque é imutável (NADER, 2009). Além destes, o importante jurista africano naturalizado chileno – Eduardo N. Monreal (1967, apud NADER, 2009) – elenca mais amplamente características do Direito Natural, sejam elas: “1)  universalidade (comum a todos os povos); 2) perpetuidade (válido para todas as épocas); 3) imutabilidade (da mesma forma da natureza humana, o Direito Natural não se modifica); 4) indispensabilidade (é um direito irrenunciável); 5) indelebilidade (no sentido que não podem os direitos naturais ser esquecidos pelo coração e consciência dos homens); 6) unidade (porque é igual para todos os homens); 7) necessidade (nenhuma sociedade pode viver sem o Direito Natural); e 8) validez (seus princípios são válidos e podem ser impostos aos homens em qualquer situação em que se encontrem)”. Em suma, o Direito Natural é o direito que carrega as garantias da preservação e perpetuação da vida humana, podendo ser exemplificados nos direitos à vida, à liberdade e à propriedade. Assim sendo, a preocupação era que, se preservassem os direitos naturais do homem mesmo com advento da vida social, e que estes direitos venham ser alicerce para quaisquer outros que viessem a surgir. 3.3 Contrato Social Compulsório Como já apresentado, o homem, em seu estado de natureza desfrutava da completude de sua liberdade, entretanto, não possuía segurança no que tange a garantia de sua própria existência, haja vista que a consequência da total liberdade era uma guerra de todos contra todos. Assim, os indivíduos decidiram associar-se, perdendo sua liberdade individual na íntegra e, em troca teriam segurança e garantia de vida, por conseguinte evoluírem intelectualmente. O homem, como ser humano, entrega sua liberdade a um terceiro a quem lhe outorga total poder (o Estado) sobre sua vida, e este, em contraprestação garante a sobrevivência de forma pacífica e saudável aos que são signatários desta convenção, chamada por Rousseau de Contrato Social. Este pacto, em sua gênese, demandou que houvesse adesão de todos os indivíduos que formariam o grupo social, não bastando a maioria, mas a unanimidade, concedendo ao Estado o título de Soberano. Estabelecido – por espontânea convenção – o Estado Social Soberano, todo homem que convive neste meio não possui mais o arbítrio de desistir do pacto firmado, nem tampouco, os que neste convívio nascessem teriam a opção por aderir ou não ao contrato social. O homem que desejasse sua liberdade plena (ou escravidão dos seus desejos) só a alcançaria se perdesse seu contato com a sociedade, voltando ao seu estado de natureza, isolado; pois, o Pacto é compulsório, uma vez estabelecido o Estado, não há possibilidade de não sujeitar-se a ele, pouco importando a opinião individual. Desta maneira, como para a gênese do Contrato necessita a adesão da totalidade dos indivíduos, a sua revogação também assim se faz. 3.4. Contrato Social Vigente Nos dias atuais, o pacto social não tem como finalidade unicamente a criação da sociedade politica, mas também de mantê-la com suas dinâmicas evoluções e, outrossim, atuar na correção de deficiências sociais. Contemporaneamente, o Contrato é formalizado por intermédio de uma Constituição, e esta pode ser considerada uma cartilha com os ditames dos direitos e deveres fundamentais de todos os indivíduos e limitações aos poderes do Estado, não permitindo que esse se desvie de sua real finalidade. Logicamente, é sabido que os modelos apresentados por Hobbes, Locke e Rousseau do Contrato Social são meramente utópicos, não tendo sido possível observá-los na realidade no decorrer da história, todavia, o Pacto na prática possui alguns desvios que podem ser chamados de corrupção. A essência da convenção social é a igualdade entre todos os pactuantes e estes submetidos unicamente ao poder do Estado, que nada mais é que a junção dos anseios de todos. Atualmente, exatamente na essência emerge a corrupção; a igualdade não pode ser encontrada com facilidade nos meios sociais presentes. Alguns conquistaram mais poder e passam a atuar coadjuvantes ou em, não raras situações, coagentes do Estado. Destarte, a essência da igualdade (pressuposto do pacto) é ferida, voltando – obviamente que de forma mais sutil – a prevalecer a vontade do mais forte; e agora a guerra de todos contra todos agora é institucionalizada. O processo que desencadeia essas distorções acontece com o poder de legislar, que deveria emanar do povo, porém, é advindo de pequenos grupos que legislam em causa própria, e quando o processo legislativo corresponde aos desejos de todos, por vezes não é aplicado como deveria, assim, beneficiando uns e prejudicando outros. O que se infere, é que o Estado acaba por interferir indevidamente na vida do cidadão, privando-lhe da sua liberdade superiormente a que ele se dispôs ao ser signatário do Pacto Social, e na maioria das vezes não ter ao menos a sua contrapartida. 3.5 Contraponto Entre Estado Natural e o Contrato Social Indubitavelmente o objeto aqui a ser abordado é genuinamente ontológico, pois trata-se da perspectiva da natureza humana sob um aspecto comparativo entre o ser humano em seu estado natural e a sociedade formada por ele, ponderando se deveras foi facultativa a criação do estado social e se uma condição seria superior a outra. Segundo discorre a história, a natureza humana encontrava-se em estado primitivo, natural e posteriormente de maneira progressiva e facultativamente encontraria o estado social. Entretanto, neste estado natural em que se encontrava o homem, ele possuía completa liberdade, e era o único responsável por realizar seus desejos, todas as decisões acerca de sua vida eram tomadas por ele próprio, daí, surge o questionamento do motivo de trocar íntegra liberdade por uma servidão. A complexidade deste questionamento filosófico se elucida em dois pontos: sendo o primeiro, o fato de dois ou mais indivíduos com absoluta liberdade na realização de seus desejos em algum momento irão contrapor-se, gerando conflito, e, por conseguinte insegurança, colocando em risco até mesmo a continuidade da espécie; porém, o segundo motivo, seria para obtenção de vantagens, pois na vida em comunidade pode-se usufruir dos resultados da cooperação do trabalho, além de maior segurança – uma vez que na vida social o indivíduo não mais desfruta da liberdade plena, mas tem essa controlada pelo Soberano – e consequentemente garantias na perpetuação da espécie e transferência da propriedade por meio da hereditariedade. As informações aduzidas provam que a transição entre os estados natural e social sucederam em face da necessidade e não unicamente de forma facultativa. Pode ser observado que, na grande maioria das Constituições dos Estados Soberanos, o maior bem tutelado juntamente com a vida, é a liberdade, o que ratifica que a liberdade é superior à propriedade privada e outros bens que não a vida e a própria liberdade. Inegavelmente, foi necessária a instituição do estado social, todavia, o ônus advindo com este, foi abundante. Ao pactuarem todos os homens em cederam parte suas liberdades, entregando-as a um terceiro (estado) e fazendo este legítimo da vontade comum de todos, redundaria na frustração dos desejos individuais que não coincidissem com os da maioria. Nesta conjectura, haveriam indivíduos com níveis de satisfação de suas vontades bem diversos, gerando desigualdade, que desencadearia conflito, por consequência os percalços do Estado de Natureza. Outra pressuposição relevante é a possibilidade de um Estado corrupto, onde o interesse deste não corresponde nem mesmo aos da maioria e sim de uma minoria que detiver o poder. Situações como estas podem ser observadas em Estados governados por tiranos, opressores e injustos, instituindo uma escravidão aos seus governados, trazendo prejuízos maiores que os existentes no Estado de Natureza. 4. Limites do Intervencionismo Estatal Com efeito, o corrente trabalho discorreu até este ponto sobre a intervenção do Estado na sociedade em seus diversos níveis e também a necessidade, benefícios e ônus desta interferência, todavia, neste capítulo, serão apresentadas as referidas questões, porém sob um prisma mais minucioso, aproximando-se ainda mais do objetivo central do trabalho. 4.1 Estado Intervencionista Como já apresentado, o Estado nada mais é que a união dos interesses de todos os indivíduos outorgadas a ele que os representaria e os protegeria; de certo, os interesses individuais são divergentes, sendo o Estado – representante da vontade geral – legítimo para dirimir estes conflitos por intermédio da intervenção direta ou concedendo instrumentos para que os próprios cidadãos os façam da maneira que melhor os convierem, interferindo somente em situações extremas, ultima ratio. No Estado intervencionista sob a ótica do Direito, a política do Soberano é a de interferência máxima na regulamentação da vida social por intermédio sanções ao não cumprimento de seus ditames. O governo (Estado) adota posições radicais sob a égide de estar defendendo a precípua função da sociedade, que é a preservação da espécie por meio da cooperação e de uma vida pacífica, mas gera, em contrapartida mais insegurança, anomias, insatisfação e maiores possibilidades da promoção da injustiça. 4.2 Estado Mínimo Pela ótica do Direito, o Estado minimalista se opõe radicalmente do intervencionista, enquanto este, como descrito anteriormente, interfere ao máximo nas relações sociais, aquele tem por objetivo a liberdade dos cidadãos, interferindo em questões que julgar de extrema relevância. No minimalismo, o Estado desloca parte de suas atividades ao cidadão preconizando a não intervenção em prol da liberdade e, por conseguinte bem estar de todos. Todavia, a concessão de completa liberdade e delegação de suas próprias funções resultaria em um retorno do homem ao seu estado natural, dissolvendo a sociedade. Deste modo, o Estado atua basicamente como um guardião, que vigia as relações sociais de perto sem interferência, atuando somente em casos extremos para manter a igualdade, liberdade e bem estar de todos. A não interferência no Estado Mínimo de Direito contempla as diversas áreas de atuação do próprio Direito, como: nos relacionamentos sociais de qualquer espécie, nos relacionamentos civis de origem contratual e obrigacional, que resulta em uma liberdade e responsabilidade econômica e principalmente no âmbito do Direito Penal. 4.3 Indispensabilidade do Intervencionismo É indispensável que o Estado aja quando de seus ofícios precípuos, sob pena da dissolução do Estado Social e retorno ao estado natural do ser humano. Mesmo em um Estado radicalmente minimalista, a inexistência de intervenção é inaplicável. Os indivíduos componentes da sociedade com interesses diversos necessitam de um soberano que intervenha não permitindo que se transforme em conflitos, e uma vez que este já exista, aplique meios para pacificá-los. Deve haver também, interferências na área econômica, conduzindo a sociedade em uma direção que garanta maior condições de sobrevivência que teria cada indivíduo em direções antagônicas; um instrumento para alcançar isso seria a liberdade contratual desde que se aplique o princípio da função social. Como garantidor da paz, o Estado de Direito deve aplicar ainda que minimamente regras para erradicação de qualquer tipo de violência a outrem por intermédio de sanções que se adequarem à realidade e necessidade da cultura em questão e por outro lado respeitando a dignidade humana. 4.5 Intervencionismo e Interesse Político O Estado é governado por alguém que represente o povo, seja por eleição direta, indireta ou monarquia, garantindo a este, soberano, todo o poder outorgado pelo povo para que ele seja a literal figura de toda a sociedade. Porém isto é apenas em um plano ideal, havendo na pratica distorções que variam de sociedade em sociedade. O Estado atua no meio social por intermédio de suas intervenções, e este, é uma pessoa legitimada para figura-lo (monarcas, presidentes, premières, etc.), assim sendo, o interesse do legitimado poder deveras se distanciar dos interesses dos cidadãos, atendendo interesse próprio ou de um grupo pequeno selecionado, que na visão do filósofo Aristóteles chama-se, Aristocracia. A possibilidade de intervenção de um governo em uma sociedade é diretamente proporcional às oportunidades de distorções entre o real ímpeto da sociedade e o desejo de um limitado grupo privilegiado. Portanto, com politica de mínima intervenção, existe maior chance de êxito de bem estar, no sentido amplo, dos cidadãos, uma vez que terão seus anseios supridos e não o de apenas alguns. 5. Princípios da autonomia da vontade individual Neste capítulo serão abordados princípios e importância da autonomia da vontade privada dentro do sistema social, que quase sempre se contrapões com os interesses do Estado; quais são as vantagens e desvantagens da prevalência da autonomia individual e em quais níveis ela é salutar. 5.1 Relativização da Autonomia da Vontade É importante salientar que o Estado Social surgiu de uma necessidade de sobrevivência, perpetuação da espécie e bem estar coletivo, e que o Estado só é o que é porque é legítimo para intervir na sociedade com propósito de alcançar o objetivo para o qual foi criado; assim, não há possibilidade da incidência de um Estado em que exista somente a autonomia da vontade privada, logo, com efeito, essa é a definição de seu antagônico: estado natural. Em outra ponta, um Estado totalitário admite apenas os desígnios estatais, suprimindo completamente a liberdade individual, impondo paradigmas e ideologias do governo e/ou uma classe minoritária por meios de normas severas, como: – total censura dos meios de comunicação; – imposição de uma religião ou extinção dela; – abolição da propriedade privada; – repreensão à ideologias diversas; – interferência na vida familiar; – controle total dos meios de provimento de saúde; – intervenção em todo e qualquer tipo de relação contratual civil; e – tutela dos Estado nas relações trabalhistas. O que resulta em uma coletividade socialmente doente, onde os princípios que deram ensejo ao surgimento da sociedade não mais existe, restando ao homem somente o ônus de ter outorgado poderes ao que detém a soberania. Portanto, deve haver uma procura pelo equilíbrio entre o interesse estatal e privado, relativizando a autonomia individual, que é benéfica, desde que limitada a não trazer prejuízos aos demais indivíduos. O papel do Estado é interferir nas relações individuais que afetem negativamente o outro, e evitar ao extremo em intervir na vida intima e privada de cada cidadão. 5.2 Direito a própria Vida Ainda sob o gênero da relativização da vontade privada, não há nada mais digno que um indivíduo decida dignamente sobre sua vida, desde que não afete ninguém com essa decisão. O Estado Brasileiro de Direito intervém em significantes situações que dizem respeito à saúde do indivíduo sobrepondo à sua própria vontade sobre seu corpo e seu viver. Como exemplo, observa-se no Brasil, que um indivíduo não pode optar pelo desligamento dos aparelhos que mantém um ente querido vivo, mas que, entretanto, já possui diagnóstico de autoridade médica competente alegando não ser mais possível viver sem aparelhos, pois a doença é irreversível, nem tampouco o próprio paciente desenganado, a fim de abreviar seu sofrimento profundo e consentimento de familiares, pode optar pela morte (eutanásia), ficando esta decisão a cabo do Estado. Outro ponto, também no que tange a autonomia sobre a própria vida, está a decisão de o indivíduo receber sangue de outrem por intermédio de transfusão para sobrevivência. Na religião Testemunhas de Jeová, com representação significativa no Brasil – cerca de 742.725 seguidores (Watch Tower, 2012) – os fieis não podem receber sangue por transfusão nem por qualquer outro meio, pois estariam em desacordo com a fé. Entretanto, em uma situação em que a transfusão se faz imprescindível para a vida, o Estado obriga que a faça, sob a alegação de que os profissionais da saúde devem esgotar seus métodos e recursos – lícitos – para garantir a vida humana, resultando a recusa em sansão. Há diversas intervenções extremamente incisivas do Estado que minam a autonomia do individuo cerceando-lhe o poder de decisão, calcado muitas vezes em dogmas religiosos ou lentidão no acompanhamento das mudanças culturais ao longo dos anos. Como o crime de suicídio que já existiu, o crime de aborto, impedimento da escolha do melhor método para o tratamento da própria saúde, utilização de substancias entorpecentes, etc. Discorre-se acerca deste assunto adiante. 5.2.1 Crime de Suicídio Este crime na verdade não é tipificado pela legislação penal brasileira vigente, entretanto, em legislação estrangeira de outros tempos este crime não só existiu como era punido horrivelmente. De acordo com Capez (2005, p. 85) a conhecida legislação inglesa, comom law previa penas quais sejam, confisco dos bens do suicida, privação de honrarias fúnebres, sepultamento em estrada pública, exposição do corpo traspassado por pau, logo é perceptível que além do cadáver seus familiares também eram apenados. Na Grécia o suicida deveria ter a mão direita cortada e enterrada a parte, não obstante a punição do Estado, acreditava-se que era pecado contra Deus, logo não eram celebradas missas para a alma. No Direito Canônico, que se sobrepunha o poder do monarca, equiparou-se o suicídio ao homicídio, havendo julgamento do cadáver que cominava na aplicação de penas como as de confisco de todos seus bens e bens da família. Em outras culturas, com um maior requinte de crueldade, o suicida era amarrado pelos pés e arrastado por cavalos pelas ruas com o rosto virado para o chão. (CAPEZ, 2005) Atualmente, quem pratica o suicídio não mais é punido, sobretudo no Brasil, o que demonstra é que o estado consegue perceber que não há de intervir em uma decisão pessoal sobre a própria vida, e ainda mais, punir familiares, pois, o cadáver não mais tem consciência dos fatos. O importante demonstrado é que, a intervenção do Estado na vida intima é dinâmica quanto a tempo e espaço, o que é válido em uma cultura, em outra não é, o que tem eficácia em determinado período da história, em tempos contemporâneos pode não ter. É emitente que o Estado seja sensível para acompanhar a movimentação social no tempo e espaço a uma velocidade bem próxima da que ela se move. 5.2.2 Direito ao Próprio Corpo A maioria dos Estados de Direito intervêm na forma em que o individuo usa seu próprio corpo. Como forte exemplo, observa-se a prática da prostituição, que em regra é proibida direta ou indiretamente no mundo. Não se deve ignorar o fato de que esta atividade é popularmente conhecida como a “profissão mais antiga do mundo”, e de fato é tão antiga que não se tem data precisa da origem, e está tão disseminada que não se tem informações do local em que houve sua gênese. Se a atividade sempre existiu, nunca foi possível ou houve interesse em extingui-la, é praticada de maneira consensual (do contrário seria estupro), logo é imaturo por parte do governo interferir nessa relação. Em países como Portugal e Brasil, sendo tem a maioridade e sendo civilmente capaz, o individua pode realizar serviços sexuais em troca de favores, geralmente pecúnia, sem transgressão legal, a mesma regra se aplica ao cliente. Todavia, quem fomenta, emprega, agencia, ou de alguma forma obtém benefício com a prática da prostituição de outrem sofre sansão. É considerável que se releve os seguintes dispositivos do Código Penal Brasileiro (BRASIL, 1940) acerca do assunto: “Art. 227 – Induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem: Pena – reclusão, de um a três anos. Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração Art. 228. Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém a abandone. Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Casa de prostituição Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente. Pena – reclusão, de dois a cinco anos, e multa. Rufianismo Art. 230 – Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa. E em legislação Portuguesa: Artigo 170º Lenocínio 1 – Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.” Nestes dois países, como em muitos outros, descriminaliza-se a pratica da prostituição, porém veta agenciadores, proprietários de ambientes que lucram de alguma forma com esse tipo de trabalho. Fica evidente que essa intervenção desnecessária do Estado sobre a liberdade do indivíduo em cena, parece fomentar diversos outros problemas muito graves. A atividade sexual por dinheiro é notória, mas não legal, como consequência, pessoas são exploradas por agenciadores de má fé, e tem seus direitos trabalhistas ignorados, também abre margem para disseminação de doenças e maior suscetibilidade à violência. Se a atividade é reconhecida pelo Estado, tanto que a descriminalizou, então a forma de coibir estes males é regulamentando como qualquer outra profissão. Assim, as prostitutas teriam direitos e benefícios trabalhistas e previdenciários, as agencias não precisariam trabalhar na ilegalidade podendo e devendo ser fiscalizadas pelo Estado, e este arrecadaria com impostos. Com a legalidade da profissão os órgãos estatais poderiam monitorar a atividade mais de perto, investindo em informação e outros meios para o controle na transmissão de doenças sexualmente transmissíveis. Como exemplo, podem-se observar as reformas que a legislação holandesa e alemã passaram, legalizando e regulamentando a profissão de prostituta bem como dos prostíbulos e agenciadores (cafetões). Nos países baixos, o Ministro da Justiça divulgou a Reforma da Lei de Prostituição, regulamentando mas também fazendo restrições, como, a atividade e exposição só poderia acontecer em local fechado e agenciadores e proprietários das casas de prostituição deveriam ser regulamentado pelos municípios e ficando a cargo do próprio município se regulamentaria ou não em sua jurisdição; e o não cumprimento das regras pode redundar em severas punições. 5.2.2.1 Crime de Aborto No Brasil, a lei somente exclui a antijuridicidade do aborto voluntário nas seguintes hipóteses: “Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.” (Código Penal. BRASIL, 1940) Com exceção das hipóteses elencadas, o Brasil intervém no direito de liberdade da mulher ao próprio corpo punindo severamente a interrupção voluntária da gestação, também o faz com quem executa o procedimento ou de alguma forma induz ou propicia o ato. A questão do aborto é, sem duvida alguma, balizada por princípios religiosos, sobretudo o cristianismo romano, além de outras ideologias defensoras da vida como direito universal. Contudo, o Estado como representante dos interesses da coletividade, deve ter ciência de que esta prática – como na prostituição – é massiva independente da ilegalidade e de princípios religiosos, tornando-se dentre outros fatores um problema de saúde pública. No Brasil o Ministério da Saúde divulga os números dos abortos ilegais mencionados pela página eletrônica da Record Notícias (2009), aduz que 31% das gestações são interrompidas, chegando ao número estimado de 1,4 milhões de abortos realizados de forma precária; como consequência disso tudo esta prática clandestina já representa a quarta maior causa de morte no país, o que é muito grave. Esta interferência desnecessária na liberdade do corpo da mulher, além de resultar em graves problemas de saúde e muitas mortes também vitimiza pessoas com um histórico criminal. Não obstante todos os percalços já apresentados, o Estado ainda tem que lidar com outro revés que afeta até quem não tem nada a ver com isso, que são os cofres públicos. Somente no ano de 2008, 218.940 gestantes foram internadas no Sistema Único de Saúde (SUS), dessas, 801 morreram em decorrência do aborto ilegal, gerando um custo enorme para a nação. O diagnóstico feito é que ao contrário do Estado intervir em um direito de liberdade de um indivíduo é mais saudável que se conceda esta liberdade porém a regulamente e informe. No cenário mundial, a intervenção do Estado na liberdade de decisão da continuação ou não de uma gestação está intimamente ligada ao nível de instrução da população e desenvolvimento da nação. Os países mais evoluídos, em regra, não intervêm diretamente na liberdade, apenas regulamentam, enquanto os países subdesenvolvidos com baixo nível de instrução preferem ignorar uma prática nada latente, não regulamentando, porém, sancionando criminalmente. Como pode ser observado na Ilustração II. Do ponto de vista religioso e filosófico, com efeito, não sofre alguma afronta ou desrespeito com a legalização do aborto. A legalização não significa que a mulher é obrigada ou mesmo induzida a realizar tal prática, e sim, simplesmente permitir, caso ela opte, por um procedimento seguro, legal e menos custoso às reservas estatais. 5.3 Liberdade de União Civil A união civil existente desde a formação da sociedade é o alicerce da família monogâmica, trazendo a segurança na sucessão hereditária. Esta união adquiriu uma grande importância religiosa com o advento do casamento como um rito sagrado quase que unanime para todas as religiões. O padrão de casamento ocidental, salvo raras exceções, é a união de um homem e uma mulher de forma solene, com deveres e obrigações, dentre eles o de fidelidade e de perpetuidade. Por alguns séculos este padrão referido era uma imagem fiel da realidade social, todavia, com a metamorfose do coletivo, este paradigma não mais retratava a realidade. No Brasil, um país laico, porém de origem filosófica no cristianismo romano conservador, sofre com a morosidade da atualização de suas normatizações e a realidade vivida pelo coletivo. As modalidades de uniões civis reconhecidas no Brasil, são o casamento, a união estável e o concubinato, sendo apenas as duas primeiras reconhecidas pela – Constituição Brasileira em seu artigo 226 (1988) – como família e base da sociedade, recebendo proteção do Estado. Nas três possibilidades o Estado interfere, desconhecendo a união civil de pessoas do mesmo sexo, as relações homoafetivas, entretanto, já é uma realidade presente na maioria dos países. Em 2010, o censo realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apresentou o número de 60.002 pessoas que declararam ter cônjuge do mesmo sexo, entretanto, cabe ressaltar que o Brasil ainda discrimina intensamente homossexuais, e que esses números foram apenas dos que tiveram “coragem” de se declararem como. (VEJA, 2011) Sendo uma realidade explícita, questiona-se o porquê de o Estado agir de forma omissiva não reconhecendo a união entre pessoas do mesmo sexo. A corrente religiosa é absolutamente contra, mas o Estado deve se imparcial, até mesmo para respeitar o posicionamento de religiosos e não religiosos, já que a regulamentação não significa incentivo, fomento, ou ordem; muito pelo contrário, permite ao indivíduo a liberdade de escolha que melhor lhe convier. Atualmente, a insistência do país em não reconhecer a união homoafetiva tem acarretado graves problemas no âmbito de sucessões, partilhas de bens, provimento de alimentos, além de problemas em contratos civis onde há necessidade de comprovação de renda familiar, incentivos do governo para a família, contratos em que o cônjuge figura como dependente, dentre vários outros. E talvez o maior de todos os ônus, o fomento, ainda que indireto, da discriminação contra cidadãos como quaisquer outros perante o Estado. É irrefutável afirmar que o Brasil tem passado por grandes mudanças positivas neste sentido, tendo o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo pela suprema corte (STF), todavia não vinculantes às instancias inferiores, e ficando apenas na esfera jurisprudencial e não positivada. Existem também, projetos de criação de sumula vinculante e projeto de lei enviado para o Congresso Nacional para regulamentação. No mundo – como pode ser observado na Ilustração III – não é possível observar consonância no posicionamento das nações acerca da união de pessoas do mesmo sexo, verificando-se de um lado, o reconhecimento pleno e integral do casamento civil, na Espanha, Canadá, Bélgica, Holanda; e no outro extremo que prevê penas severas, como de prisão perpétua e pena de morte, a casais que manifestem expressões de homossexualismo, sobretudo relacionamentos homoafetivos. 5.4 Autonomia Familiar No âmago familiar é, certamente, o meio mais delicado e polemico da intervenção ou abstenção estatal. A família é um ambiente íntimo, privado; ambiente onde as relações, em regra, são informais e afetuosas; lugar onde decorre a transmissão de costumes hereditários e faz-se cumpri-los. Os costumes e tradições familiares, não raras as vezes, vão de encontro com as ideologias estatais, e por vezes, até contra a própria legislação positivada. Então, verifica-se neste momento a fragilidade da questão. É cerceador de liberdade e prejudicial à saúde social que o Estado interfira dentro do âmbito familiar, aplicando direcionamentos ou incluindo e/ ou excluindo costumes e tradições, redundando na perda de identidade de um povo. Pela outra vertente da questão, dentro do ambiente familiar pode haver atos que firam a dignidade, saúde psíquica e integridade física de membros grupo parental. Assim sendo, é inevitável a interferência estatal para resgatar e proteger o objetivo de garantia da dignidade e integridade física e mental do ser humano, ainda que sob o involucro familiar. 5.4.1 Autonomia na Educação Filosófica dos Filhos A maneira em que os pais educam os filhos são as mais diversas, obviamente por cada família possuir uma perspectiva singular sobre o tema e, por conseguinte, não havendo um referencial unanime sobre o modo educacional aplicado pelos genitores. Por se tratar de uma questão particular de cada família, o Estado, não deve intervir nesta relação entre pais e filhos, cabendo aos próprios definirem o que melhor lhe convirem. Entretanto, há criminosos, pessoas com patologias psíquicas, pessoas com atitudes cruéis, ou mesmo com credos macabros; em todos estes casos e muitos outros, os filhos são potenciais vitimas da violação dos direitos humanos. Neste momento, o Estado deve entrar como garantidor dos direitos mínimos à sobrevivência e a dignidade, mas não deve ir, além disso, apresentando metodologias educacionais, impondo ideologias ou induzindo ou privilegiando determinado credo. No Brasil, recentemente foi levantada uma polêmica, por intermédio do projeto de lei 7.672/ 2010 acerca da proibição dos castigos físicos que foi aprovado, alterando dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente que se omitiam sobre o assunto. Deve-se ponderar uma palmada branda, com fim pedagógico, arraigado na cultura brasileira, como agressões físicas traumáticas. Embora, conclua-se que existam métodos mais eficazes de educação, é traumático para uma nação, adentrar no âmbito familiar e intervir subitamente em costumes hereditários aplicando-lhes pena ao não cumprimento. É razoável que esta intervenção seja feita de forma educativa, sugestiva, explicativa, e não diretamente pela tutela estatal de punição. 5.4.2 Liberdade no Sistema de Educação Intelectual Sabe-se que existem diversos tipos de conhecimento, como, empírico, teológico, filosófico e científico, bem como diversas técnicas pedagógicas para transmissão deste conhecimento. Convive-se com essa universalidade de conhecimentos, porém, para maioria das pessoas eles se colidem, sendo conexos a tradição e costumes pessoais ao tipo de conhecimento que cada indivíduo opta por deter e enxergar o mundo. O mesmo pode-se afirmar quanto às técnicas pedagógicas por estarem intimamente ligadas ao tipo de conhecimento a ser transmitido. No mundo, cada país determina a sua forma de intervir na educação intelectual dos indivíduos no que tange ao conteúdo e meio a ser transmitidos os conhecimentos, outorgando mais, ou menos autonomia familiar para realização desta tarefa. Nos Estados Unidos da América, o ensino é regular e compulsório até o período intermediário high school (equivalente ao ensino médio brasileiro), e possui três canais oficiais para realização, o ensino público oferecido pelo Estado segundo suas normas, o ensino privado, onde é outorgada a responsabilidade do ensino a uma entidade particular e ao homeschooling (ensino domiciliar); a este último, será concedido maior enfoque. O ensino domiciliar é o símbolo da liberdade de uma sociedade intelectual, onde cada indivíduo foca sua aprendizagem no que julgar verdadeiramente útil para sua vida e de acordo com seus costumes e princípios familiares. Suponha-se a hipotética situação, onde, uma família brasileira, de ascendência francesa, com muitos amigos na França, muita admiração pela cultura, e grandes oportunidades por lá. Esta família possui um filho que é compulsoriamente matriculado no ensino regular brasileiro, e que há ensino obrigatório da língua estrangeira somente nas opções: inglês ou espanhol. O filho e a própria família, não possuem interesse nenhum que estudante absorva a língua inglesa ou espanhola, mas sim no idioma francês. Mesmo com interesse diverso do estatal, este prevalecerá. O ensino domiciliar é uma importante alternativa para resolução do problema referido anteriormente, onde o Estado interfere minimamente, aumentando a liberdade dos indivíduos decidirem o que melhor em suas vidas. Este método, nos Estados Unidos, surgiu com a classe protestante branca que era contraria à teoria evolucionista de Charles Darwin, e defendiam a teoria criacionista bíblica. O Estado não abrindo mão do ensino cientifico nas escolas regulares, permitiu que as famílias educasse seus filhos em casa segundo o credo de cada um. Atualmente, o ensino domiciliar é legalizado e amplamente utilizado nos Estados Unidos, e não só por uma determinada classe, mas pelas mais diversas, bem como pelos vários motivos. Não é só nos Estados Unidos que o ensino domiciliar é legal, mas em diversos países desenvolvidos como, Nova Zelândia, Austrália, Portugal, Cingapura (NADAI, 2011), sendo este ultimo, liberal ao ponto de o ensino não ser obrigatório, porém, ao contrário do senso comum as estatísticas são positivas, com 98% de participação escolar e índice de alfabetização próximo dos 100%. (SELBREDE, 2008) No Brasil a interferência na educação é elevada, sendo o ensino compulsório e vedada a prática do ensino domiciliar. O ensino de ser provido por instituições privadas ou públicas regulamentadas pelo MEC (Ministério da Educação), que controla carga horária, assiduidade, grau de formação dos educadores, metodologias, conteúdo e práticas dentro dos estabelecimentos escolares. Não concordando os pais, com o programa de ensino das escolas, não há alternativas senão segui-lo, uma vez que a legislação brasileira tipifica no Código Penal (BRASIL, 1940) a abstenção da criança na escola, punindo severamente os pais. Pode-se observar a legislação vigente acerca do assunto a seguir: “Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I – ensino fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria (Código Penal. BRASIL, 1940) Art. 5º […] § 3º Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola (Constituição. BRASIL, 1988). Art. 55. Os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino. Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) Art. 6º É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir do sete anos de idade, no ensino fundamental (Lei 9.394. BRASIL, 1996). Art. 246. Deixar, sem justa causa, de prover a instrução primária de filho em idade escolar. Pena – Detenção de 15 (quinze) dias a 01 mês, ou multa (Código Penal. BRASIL, 1940).’ 5.5 Estado Laico: Liberdade Religiosa Durante um longo período da história o poder estatal se confundia com o poder da igreja, não havendo separação clara entre as duas entidades, sendo o Estado obrigado, por muitas vezes, acatar dogmas da igreja e o contrário também é verificável; pois, a igreja precisava do Estado para se manter e este utilizava a igreja como meio de manipular a sociedade. Subsequente a este período identifica-se o surgimento do estado laico, que é quando igreja e estado se separam. O estado laico não possui ligação com a igreja, mas isto também não significa que há liberdade de credo, pois, igreja e Estado podem ser completamente independentes, mas este ser confessional, decretando ou determinando ideologias religiosas à sociedade. Portanto, o Estado religiosamente imparcial é aquele que é laico e não-confessional ao mesmo tempo. A interferência no credo de uma nação é fortemente prejudicial à identidade cultural de um povo, redundando opressão, tortura psicológica e por vezes física. A interferência do Estado no credo de um povo é algo tão drástico é a justificativa para guerras civis; guerras constantes no oriente médio há séculos (sem previsão de fim); e quando um Estado soberano ou um grupo extremista intervém no credo do outro, ataques terroristas, como os observado em 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque nos Estados Unidos. Este ataque teve a autoria atribuída ao grupo Al-Qaeda, que é um grupo fundamentalista islâmico que tem o fito de reduzir a influencia não-islâmica no mundo islâmico. Considerando os Estados Unidos a mais influente nação capitalista e não-islâmica, além de considerar que os imigrantes islâmicos são discriminados, o falecido líder da Al-Qaeda – Osama Bin Laden – tinha o país norte americano como o precípuo alvo desta guerra para imposição do islamismo. A Declaração Universal de Direitos Humanos adotada pelos 58 países membros das Nações Unidas, em dezembro de 1948, em Paris (França) preconizava a liberdade de religião e opinião em seu artigo 18: “Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular” (NAÇÕES UNIDAS, 1948). A Ilustração IV mostra a situação atual do mundo em relação à intervenção religiosa, dividida por países. O Brasil em sua Constituição Federal (BRASIL, 1988) reitera o disposto no Tratado realizado pelas Nações Unidas, não só adotando o dispositivo como constitucional, como elencando outro rol com diversos dispositivos, quais sejam: “Inciso VII do artigo 5º é assegurado, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva. Inciso VII do artigo 5º estipula que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei. Artigo 19, I, veda aos Estados, Municípios, à União e ao Distrito Federal o estabelecimento de cultos religiosos ou igrejas, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. Artigo 150, VI, "b", veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre templos de qualquer culto, salientando no parágrafo 4º do mesmo artigo que as vedações expressas no inciso VI, alíneas b e c, compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas. Artigo 210 assevera que serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar a formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais, salientando no parágrafo 1º que o ensino religioso, de matéria facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. Artigo 213 dispõe que os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação e assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades. Salientando ainda no parágrafo 1º que os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para os que demonstrarem insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando, ficando o Poder Público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade. Artigo 226, § 2º, assevera que o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.” O estado brasileiro cumpre proficuamente o papel de não intervenção na crença do povo, respeitando todos os tipos de credo e práticas religiosas, desde que lícitas, e também a abstenção da crença ou prática. 5.6 Liberdade no Uso de Entorpecentes O uso de entorpecentes é mais antigo que própria humanidade, a “hipótese do macaco bêbado” de 40 milhões de anos atrás afirma que macacos adultos comiam frutas maduras que desenvolvidas em regiões húmidas fermentavam transformando o açúcar contido em álcool. (SUPERINTERESSANTE, 2006). Na China, 2.700 A.C, verifica-se a utilização da cannabis (maconha) como alucinógeno; em 1.000 A.C registros do uso do ópio no Egito; na Grécia, 500 A.C o vinho; em 1492, Cristóvão Colombo traz as primeiras sementes de cannabis para a América; Sigmund Freud, em 1885 utiliza extrato de coca em seus pacientes; na Primeira Guerra Mundial os soldados usavam cocaína medicinal no alívio da dor. Em suma, independente do mérito de ser prejudicial ou não, o uso de entorpecentes sempre esteve presente na história da humanidade. Na década de 70, o presidente norte americano Richard Nixon declarara guerra contra as drogas, criminalizando severamente o uso, produção, comercio, transporte, armazenagem, e outras condutas relacionadas. Na década de 80 o presidente, também norte americano, Ronald Reagan preconiza a politica da “tolerância zero”, onde não seria admitida em hipóteses alguma a presença de drogas ilícitas no país. Estas atitudes influenciaram vários países na proibição do uso de drogas, inclusive o Brasil. É paradoxal a referida política norte americana, pois, a própria história mostra a presença das drogas em todos os estágios da humanidade. A chamada “guerra contra as drogas” se transformou em uma guerra real, porque o consumo nunca deixou de existir e a venda de forma ilegal em guetos e favelas fomentou a violência por meio da compra de armamentos com dinheiro arrecadado da venda rentável e indiscriminada das drogas. Não obstante os problemas com o aumento da violência urbana, muitas pessoas se tornaram dependentes química, física e psicologicamente destas substancias, caracterizando em um problema se saúde pública; que é agravado pelo fato de o estado ignorar os doentes e trata-los como criminosos. Ao contrário do senso comum, usuários de drogas nem sempre são criminosos, na verdade, a grande maioria não é. As drogas estão nas classes mais altas, nas universidades nos meios culturais, etc.; o estado ao não discernir isso, deixa sem tratamento dependentes doentes, ou os solta em centros de detenção junto a verdadeiros criminosos convertendo os ao crime. Alguns países no mundo começam a descriminalizar o uso de algumas drogas, como é o caso de Holanda, Suíça, Dinamarca e outros como Portugal liberaram o uso de todas as drogas. A Holanda resolveu encarar o problema das drogas não como uma guerra, como os Estados Unidos fizeram, mas sim como um meio de pacificar os conflitos com ela relacionados. O país resolveu descriminalizar o uso da maconha, permitindo a utilização apenas em locais credenciados, chamados coffeeshop; cada estabelecimento só pode ter em posse no máximo 500g e só pode ser vendido até 5g por pessoa por dia, sendo proibido fazer qualquer tipo de propaganda à maconha, perturbar a vizinhança, vender outro tipo de droga, vender para menores de 18 anos. Problemas causados a outrem que tenham nexo causal com o uso da droga são severamente punidos. O resultado desta política foi uma diminuição do consumo em relação a países onde há repressão, como Reino Unido e França. Também houve uma diminuição significativa da violência. A Suíça adotou um sistema onde, os dependentes químicos, sobretudo de drogas injetáveis, pudessem utilizar as substancias de forma legal e segura, com acompanhamento médico e de assistente social; também há o fornecimento de seringas e agulhas descartáveis e ambiente higiênico, seguro e distantes dos traficantes de entorpecentes. Os resultados são estatísticos: queda de mais de 50% dos usuários de drogas injetáveis e portadores do vírus HIV em 10 anos; taxa de mortalidade por overdose caiu em mais de 50% na última década. A conclusão é que, países que optaram pela intervenção opressora no combate ao consumo de drogas não obtiveram diminuição nem no uso nem da violência em relação aos países que optaram pela não intervenção direta, mas instrução e regulamentação para o uso ponderado, também, houve diminuição no tráfico de drogas e nas doenças relacionadas ao consumo. 6. Analise dos resultados Neste capítulo serão apresentados os pontos conclusivos deste trabalho, expondo os resultados, na prática da ponderação entre a intervenção e não intervenção do Estado na Sociedade. Também, o desfecho de onde a política minimalista foi empregada, casos onde houve diminuição da criminalidade; a Holanda considerada um Estado liberal sob o prisma das políticas não intervencionista, tem se tornado em exemplo mundial de organização social. E por ultimo, as consequências de um Estado intervencionista no que concerne a anomia exemplificado no Brasil. 6.1 Impactos da Politica Minimalista Como apresentado em todo o texto, as políticas minimalistas são típicas dos países desenvolvidos, e de fato a liberdade do indivíduo traz bem estar social e desenvolvimento intelectual, por conseguinte, atenuam diversos problemas sociais, como problema de saúde pública, violência, carência ética, dentre outros. Em outra via, é unanimidade a necessidade de intervenção estatal, e esta deve estar alinhada à cultura de uma nação e à contemporaneidade em questão. Os meios de conquistar o nível ideal de intervenção é algo muito inerente a cada cultura, não existindo um padrão para atingi-los, restando somente o método da tentativa e do erro, como a Suíça vem fazendo ao longos dos anos em sua politica de controle às drogas e atingindo resultados positivos. 6.2 Diminuição da Criminalidade A diminuição da criminalidade em Estados de descriminalizam determinadas atitudes dos cidadãos inicialmente é obvia, pois, se um ato delituoso que todos cometem é descriminalizado não mais que se falar em crime. Ignorando o aparente óbvio, Estados menos intervencionistas, que concederam maior liberdade aos cidadãos, demonstraram queda significativa nos índices delituosos. Onde a droga foi descriminalizada, paradoxalmente pode observar queda nos índices de criminalidade, a exemplo de Portugal e Holanda, onde oito prisões foram fechadas por redução dos crimes com liberação das drogas (REMOR, 2011). Quando se prende alguém com posse de droga, há grande possibilidade de mandar para cadeia um cidadão que não tem antecedentes, todavia, no sistema carcerário em contato com delinquentes de verdade e possibilidade do individuo aprender, de fato, atividades delituosas é majorada. Além disso, um jovem que não é criminoso, ao ser condenado criminalmente pelo simples fato de consumir ou portar pequena quantidade de droga, lhe acarreta em um fichamento criminal (passagem pela polícia), dificultando-o ou mesmo impedindo de conseguir determinados empregos, resultando na facilitação da pratica criminal. Países que liberaram a atividade da prostituição também tiveram índices de criminalidade reduzidos, o Estado regulamenta a atividade proporcionando maior igualdade e, pode ficar mais próximo da prática por não se tratar mais de ato ilícito.
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O aumento de denúncias de crime contra as mulheres: A necessidade de um novo olhar
Em uma reportagem à BBC Brasil, por Luis Kawaguti, é apresentado um número de 600 por cento de aumento nas denúncias pelo 180 (Central de Atendimento à Mulher) após a criação da Lei Maria da Penha em 2006. Nesse artigo, concentraremos nossos esforços para entender o que levou a esse aumento tão grande. Para tanto, a Lei Maria da Penha será o nosso elemento chave.
Direitos Humanos
Introdução Durante muito tempo, pesquisadores da Criminologia e do Direito trataram a vítima como um ser que não participa do processo histórico.  Afirmamos isso, porque pesquisadores anteriores, da Escola Clássica e Positivista, estavam centrados no crime, no criminoso e na pena. Ou seja, a vítima não era chave para o estudo do crime. Porém, após a Segunda Guerra Mundial (1940-1945) houve significativas mudanças nos estudos sobre a vítima. Pesquisadores como Benjamín Mendelsohn fez uma tipologia da vítima. Nessa Classificação, o pesquisador passou a considerar a vítima como um sujeito, à medida que também via a sua participação para a eclosão do crime. Entender o diálogo existente entre o ser social e a consciência social é entender a experiência de homens e mulheres. Segundo Edward Thompson, é através dessa experiência que: “se compreende a resposta mental, seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetições de um mesmo tipo de acontecimento” (THOMPSON, 1981: p.15).                                                     Sob essa ótica, consideramos que a mulher não pode ser vista a partir de uma visão de vitimização, onde ela é considerada um ser incapaz de reagir. Em um diálogo com o real, ou seja, com o contexto histórico, seremos capazes de entendermos por qual motivo as mulheres denunciam cada vez mais. Suas práticas e seus pensamentos são respostas das suas experiências. Fazendo assim, entenderemos a mulher como sujeito na história. Thompson traz sua concepção de homens e mulheres como sujeitos na história, que ele concebe:  “…não como sujeitos autônomos , ‘indivíduos livres’, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida ‘tratam’ essa experiência em sua consciência e sua cultura (…) e em seguida (…) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada” (THOMPSON, 1981: p. 182) No mapa da Violência 2012 e na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio ficou constatado que o número de violências contra mulher aumentou no Brasil. A pesquisa também apontou que maior parte dos casos de violência se dá geralmente no círculo doméstico e o agressor, em sua maioria, é o parceiro, ex-parceiro ou parente da mulher (CNJ, 2013). Sabe-se, também, que aumentou o número de denúncias de mulheres contra seus agressores. Fala-se de um aumento em 600%. Seria precipitado de nossa parte, constatar sem qualquer averiguação, que o aumento de delações indica um aumento no número de crimes contra a mulher. Esse também é um pensamento bastante comum. Por isso, se faz importante discutir e entender um pouco mais sobre outros elementos que envolvem a violência de gênero no Brasil.  É notável que existam outros elementos que devam ser considerados, como o aparato legal às vítimas de crime, confiança nas políticas públicas e sociais e acesso a informação. Relacionamos essa atitude feminina, em denunciar seu agressor, à importância que a Lei Maria da Penha assume como forma de coibir a violência contra as mulheres e as protegerem mesmo após atos de violência cometidos contra as mesmas. Em nosso artigo abordaremos de forma breve a importância da vítima para a eclosão do crime. No segundo momento apresentaremos a nossa concepção da mulher enquanto agente social. Em um estudo de Rosemary de Oliveira Almeida (2001) percebemos uma leitura que se distancia dessa visão de mulher vitimizada. No resultado de sua pesquisa, a autora entende que as mulheres que cometem crimes não o fazem para se livrarem do julgo masculino do esposo, mas como uma forma de resistência. Percebe-se, nessa análise, que a mulher é tratada como agente. Essa visão que expurga a mulher como um ser inerte é a base para o entendimento do nosso trabalho. Por último, indicaremos o contexto que envolve a mulher atual. Esse contexto será mostrado como fundamental para a atitude feminina em denunciar seu algoz. Para tanto, indicaremos tratados internacionais e políticas nacionais de combate à violência feminina e a promoção da igualdade entre homens e mulheres. A nossa “cereja do bolo” foi deixada para o final. A cereja a qual nos referimos é a Lei Maria da Penha de 2006. Sem desconsiderar o processo histórico que envolve a luta das mulheres por reconhecimento e respeito, abordaremos a Lei Maria da Penha como fundamental para o aumento das denuncias femininas contra esposos, companheiros, namorados, etc. Uma breve consideração sobre a vítima  Ao longo da História podemos perceber uma mudança em relação à vítima no Processo Penal. Na primeira fase a vítima tinha um papel fundamental, pois detinha o direito de escolher o tipo de pena que seria aplicada ao seu algoz. Punições físicas, perda de bens e a morte era uma das penas que a vítima poderia escolher para o seu agressor. Era o que muitos pesquisadores chamam de vingança privada contra o ofensor ou seu grupo social.  Na segunda fase o crime passa a ser concebido como uma ofensa à coletividade e, por isso, um dever do Estado. A pena passou a ser um pagamento em dinheiro, feito pelo ofensor à vítima. Nesse caso, o Estado percebe-se que há uma intervenção do Estado (AMARAL, 1991). Embora, na primeira fase, a vítima assumisse um papel importante, não se fala ou se vê estudos sobre a participação dela no delito. Já na segunda fase, percebe-se um que a vítima é colocada para o lado, tornando-a uma mera informante do crime. Em relação ao crime e ao estudo da eclosão do crime, a vítima é descartada nas duas fases. Mas esse quadro começou a mudar com a terceira fase da evolução nos estudos da vítima. Pareta (1995) aponta que os primeiros trabalhos sobre vítimas foram feitos por Hans Gross em 1901. No entanto, foi após a Segunda Guerra Mundial que a vítima toma o seu papel central efetivamente. O cenário provocado pela Guerra, quanto a violação dos Direitos Humanos e acontecimentos como o Holocausto, chamaram a atenção de pesquisadores e da própria comunidade internacional em torno da vítima. A partir desse momento a vítima passa a ser estudada como um sujeito do crime. Trabalhos, como o de Benjamín Mendelsohn, mostram essa mudança ao tratamento da vítima em relação ao crime e seu agressor. Esse momento é apontado como a terceira e atual fase da vítima por Calhau (2003). Portanto, consideramos uma virada muito grande sobre os estudos da vítima após a Segunda Guerra Mundial. É claro que não descartamos as contribuições dadas por estudos clássicos e positivistas em torno do crime. Mas entendemos que a Segunda Guerra Mundial e seus terríveis traços de ódio, xenofobia e racismo, promovidos pelo movimento nazista, foram intrínsecos para um estudo mais cuidadoso em torno da vítima. Foi o interesse de B. Mendelsohn pelas vítimas dos campos de concentração que modificou as pesquisas. Os estudos desse pesquisador consideram a vítima como agente para a eclosão do crime. A vítima não só passou a ser entendida como elemento fundamental para se entender o crime, mas, também, assumiu um papel de participação para o desenvolvimento do delito. I ATO: A mulher em cena Internacionalmente, no que concerne a proteção à vítima, podemos citar a criação da Declaração Universal dos Direitos das Vítimas de Crime e de Abuso de Poder pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1985. No Brasil, a mulher passou a ocupar discussões a partir de 1975, momento em que é desvinculada dos crimes cometidos pelo regime militar. Mas é entre 1979 e 1985 que a violência contra a mulher passa a ocupar o topo das discussões na ordem do dia (GROSSI, 1988).  Assim, o movimento feminista foi refletindo sua influência nas pesquisas sobre a mulher. Nesse sentido, foi produzida uma literatura em que a mulher assumia um papel de vitimizada tanto para o seu companheiro quanto para o Sistema Judiciário. Dizer que durante algum tempo a mulher assumiu um papel de vitimizada é dizer que ela era vista como um ser oprimido, explorado e sem possibilidades de resistência. Não podemos negar as contribuições desses estudos com influências dos movimentos feminista dos anos 70 no Brasil. Por outro lado, estudar crimes de gênero seguindo essa linha teórica é minimamente difícil. Há respostas que nunca serão encontradas. Por exemplo: como entender as mulheres que cometiam ou cometem crime? O fato de a mulher cometer um crime é um elemento que a torna agente e essas teorias são incapazes de compreender os crimes de gênero. Enfim, tentar entender um crime feminino nessa perspectiva é minimamente um caminho espinhoso, pois direciona a responsabilidade pelo crime exclusivamente para o homem e vitimiza a mulher. Em outras palavras, segundo Gregori (1992) a mulher torna-se um “não-sujeito”. Acima, apontamos as mulheres que cometem crimes como uma forma de reação que, a nosso ver, mostram o aspecto participativo dela na construção da história. Agora, podemos apontar outras formas de reação da mulher à violência doméstica, tais como: a denúncia formalizada, a fuga e até mesmo o silêncio. Sim, o silêncio. Esse tem sido um meio que muitas mulheres encontram de continuarem vivas e protegerem seus filhos. Segundo o Population Reports (1999) o silêncio pode ser interpretado como: “…falta de reação a uma vida onde reina violência” (p.7) E a revista continua dizendo que: “pode ser uma estratégia de sobrevivência no casamento e uma forma da mulher proteger-se e proteger seus filhos” (p.7) Essa visão é bastante comum. Pois, até mesmo a sociedade, de maneira geral, considera o silêncio como uma não reação. Nós pensamos que o fato de a mulher se calar, se deprimir e se entristecer são formas não só de defender a si e aos seus filhos, mas uma forma de não concordarem com a sua situação e atingirem o seu agressor de alguma maneira. Antes de continuarmos é importante fazermos um parêntese. O fato de mostrarmos a mulher não só como vítima, mas também como sujeito, à medida que também comete crimes, não nos distancia do que nos propomos discutir. Pelo contrário! É uma forma de reforçarmos a ideia de uma mudança na concepção da mulher, até mesmo na literatura. É importante ressaltarmos que entendemos que houve um avanço considerável no que toca aos estudos sobre a violência contra a mulher e de políticas de proteção da mulher por conta dos movimentos feministas. No entanto, essa literatura mostrou uma mulher incapaz de reagir. Já, a nosso ver, entendemos a mulher como um agente que resiste e tem um papel importante em nossa sociedade.  II ato: A resposta delas A mulher brasileira vive um momento muito favorável para poder abrir o seu peito e pôr para fora sua voz.  Cada vez mais, as mulheres denunciam seus algozes. Como colocamos anteriormente, as mulheres sempre tiveram a sua forma de reagir às violências contra elas. Reações que se deram de várias formas. No entanto, agora trataremos de mostrar outra reação: a denúncia. Antes mesmo da criação da Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, o Brasil ratificou tratados internacionais que combatiam especificamente a violência contra a mulher. Porém, entendemos que somente com a criação da referida lei esse combate pôde ser efetivo. Em 1984 o Brasil tornou-se signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW). Aprovada em 1789 pela Organização das Nações Unidas (ONU) passou a vigorar em 1981. O principal objetivo da Convenção é o de eliminar todas as formas de discriminação, provendo a igualdade entre homens e mulheres de forma a mudar o papel tradicional de ambos na sociedade e na família. Em 1994 o Brasil retirou as reservas que fazia a partes do documento da Convenção e o aceitou plenamente. Isso aconteceu depois que da Constituição de 1988, que passou a considerar a igualdade entre homens e mulheres (ALVES, 2006). Sobre o papel tradicional, a que ALVES (2006) se refere entendemos que é: “Importante destacar que a prática da violência de gênero é transmitida de geração a geração tanto por homens como por mulheres. Basicamente, tem sido o primeiro tipo de violência em que o ser humano é colocado em contato direto. A partir daí, as pessoas aprendem outras práticas violentas. E ela torna-se de tal forma arraigada no âmbito das relações humanas que é vista como se fosse natural, como se fizesse parte da natureza humana. A sociedade legitima tais condutas violentas e, ainda nos dias de hoje, é comum ouvir que as “mulheres gostam de apanhar”. Isso dificulta a denúncia e a implantação de processos preventivos que poderão desarraigar por fim a prática da violência de gênero. A erradicação da violência social e política passa necessariamente pelo fim da violência de gênero, que, sem dúvida, dá origem aos demais tipos de violência” (MELO, TELES: 2003, p. 24) Estados como o Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte criaram as SOS mulher. As citadas ONGs foram uma forma de combater a violência doméstica contra a mulher que, segundo Almeida (1998), essas organizações: “…representavam a primeira forma de prestação de serviços jurídicos, de abrigos e de práticas de conscientização junto a sobreviventes de violência”. Quanto a políticas nacionais foi criada a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) no ano de 2003 no governo de Luís Inácio Lula da Silva. O objetivo é combater a desigualdade de gêneros. Nesse programa, pode-se perceber uma participação do Estado. Os reflexos desse programa puderam ser sentidos com a instauração da I Conferência Nacional de Políticas para Mulheres (I CNPM). Já os frutos dessa conferência puderam ser colhidos com a elaboração do Plano Nacional de Políticas para Mulheres (PNPM) que trazia políticas fundamentais para promover a igualdade de gêneros. (MOREIRA, BORIS, VENANCIO: 2011) Ainda sobre as políticas públicas e a participação do Estado de combate à violência de gênero, podemos citar as delegacias especiais, os centros de referência e atendimento e casas abrigo. Sabemos que os serviços apontados anteriormente não estão distribuídos de forma igualitária no país. Há de se pensar em ampliar e assegurar para que não se restrinjam apenas a grandes centros. Outro compromisso assumido pelo Brasil foi ao assinar a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (1994) ou Convenção de Belém do Pará. Nessa convenção está contemplada uma série de direitos da mulher e o comprometimento que os países devem assumir no sentido de se esforçarem para colocarem em prática medidas que coíbam a violência contra a mulher (AGENDE, 2004). Percebemos que, no âmbito nacional e internacional, há uma preocupação de se combater a violência de gênero e possibilitar a igualdade entre homens e mulheres. No entanto, mesmo com a criação dessas políticas, a reação feminina contra seu algoz se restringia ao silêncio e à fuga, por exemplo. Após 8 anos da criação da Lei Maria da Penha percebemos, através de índices, que o número de denúncias de violência contra a mulher aumentou. De imediato somos tentados a uma análise muito simplista e comum. Ora, se o número de denúncias no Brasil aumentou, também aumentou o número de violência. Segundo a Secretaria da Mulher no Distrito Federal, Olgamir Amância, esse aumento nas denúncias está relacionado à maior informação e a própria lei que garante proteção às vítimas (G1 DISTRITO FEDERAL, 2014). Em 1983 Maria Maia da Penha Fernandes sofreu duas tentativas de assassinato pelo seu ex-marido. A primeira foi com arma de fogo que a deixou tetraplégica. Na segunda, o ex-marido tentou eletrocutá-la e afogá-la, sem sucesso. O caso repercutiu e a Comissão dos Direitos Humanos, coordenada pela Organização dos Estados Americanos (OEA), resolveu intervir. Depois de quase 20 anos o ex-marido foi preso por dois anos (COELHO, 2010).  Em 2006 foi criada a lei da Lei 11340/2006 que leva o nome de Lei Maria da Penha. A lei criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Para isso, foi mudado o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal. Antes da criação (Lei Maria da Penha) os crimes contra mulheres eram competência do Juizado Especial Criminal, o que permitia, por exemplo, a aplicação de penas como pagamento de cestas básicas ou prestação pecuniária. Além disso, o pagamento isolado de multa. Isso permitia que o homem agressor retornasse para o lar e submetesse a mulher à novas violências. A lei considera crime contra a mulher aquela que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Também engloba a violência fora da unidade doméstica (mesmo que a vítima não tenha vínculo com o agressor); também faz referencia a vivência no âmbito familiar e agrega agressores com qualquer relação íntima com a vítima. As mudanças no sistema judiciário também contemplaram a imediata concessão das medidas protetivas de urgência, que podem ser representadas pelo Ministério Público ou pela ofendida. Antes da implementação da Lei Maria da Penha, em casos que a mulher recorresse ao Juizado Especial, solicitando a saída do agressor do lar, o juiz podia indeferir e marcar uma audiência. Nesses casos, o agressor poderia voltar ao lar. Situações como essa poderia gerar novas agressões, inclusive a morte da mulher. Conclusão Com a implantação da lei Maria da Penha, percebe-se uma grande mudança no ordenamento jurídico brasileiro para se atender os casos de mulheres em situação de violência doméstica e familiar e se adequar às determinações da lei. Observamos que a Lei Maria da Penha trouxe mudanças fundamentais. Mudanças tão importantes, a ponto de gerar na mulher um sentimento de segurança e confiança frente ao Sistema Judiciário. Vimos que essa lei dá às mulheres a chance de sair do cinema mudo para o cinema falado, à medida que tenta inibir, por todos os lados, a possibilidade dela voltar a sofrer violência. Ou seja, antigas reações, como o silêncio e a fuga, são trocadas pela denúncia. Essa lei gera na mulher e na sociedade uma mudança de comportamento.  Portanto, entendemos que a mulher está inserida em um momento que a permite, por conta de todos os aspectos que expomos anteriormente, ter segurança para denunciar seu agressor.  A Lei dá às pobres ou ricas, negras ou brancas, homossexuais ou heterossexuais, o direito de serem reconhecidas como sujeitos históricos.  Conseguintemente, os números de denúncia contra as mulheres acabam sendo expressivos, assim como a vozes das Marias, das Joanas, das Fernandas, das Carolinas, das Anas, das Elizetes…
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Diversidade(s) de gênero e sexual: desenvolvimento e cidadania por meio da educação em direitos humanos
Resumo:A presente pesquisa é fruto de reflexões oriundas de revisão bibliográfica sobre o desenvolvimento humano encabeçado pela educação em direitos humanos, dando ênfase às questões relacionadas à diversidade ou diversidades de gênero e sexual na escola. Pretende-se, de uma forma inferencial, baseando-se no que se entende por desenvolvimento humano nas Declarações da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento, correlacionar o ensino dos direitos humanos e sexualidade em âmbito educacional como propulsores do desenvolvimento, tendo como figura central o protagonismo do professor na difusão da dignidade da pessoa humana. Ademais atribui-se a responsabilidade também ao Estado como entidade que tem o dever de proporcionar os meios técnicos para que o professor possa atuar dessa maneira, aliando-se à família do educando na quebra de paradigmas e pré-conceitos em relação as diversidades de gênero e sexual na escola, bem como a abordagem desses temas em âmbito escolar.
Direitos Humanos
A diversidade na escola sob as diversas óticas      Em tempos de amplas discussões acerca de temas sociais novos, trazidos principalmente pelos meios de comunicação em massa, é importante ressaltar uma visão favorável a esse fenômeno, em virtude do crescimento/amadurecimento que a vastidão de ideias e a repercussão social causam no seio da sociedade, a tal ponto que esses temas se tornam, não somente uma discussão entre pessoas intelectuais, mas também uma discussão entre cidadãos das mais variadas nações e de todas as classes sociais e níveis de conhecimento, como é o caso da formação cidadã e democrática dos alunos no âmbito escolar, com vistas à construção e/ou consolidação cultural de respeito às diversidades sociais, seja sob a ótica das mulheres, homossexuais, negros, indígenas, transexuais ou quaisquer outras minorias existentes. Por estas razões, debate-se a necessidade de incentivo dos educadores a abordar conteúdos escolares voltados para os assuntos mencionados, destacando-se, nesse momento, as questões de gênero, a fim de que crianças e adolescentes sejam estimulados, desde o período escolar, a desenvolver o respeito às diferenças, construindo relações de gênero igualitárias, como estratégia de combate ao preconceito e à violência nas escolas.       Pensar em educação no Brasil é praticamente impossível sem uma associação involuntária com a figura do professor. Nesse sentido, vale ressaltar que “a partir dos anos 80, o educador vem sendo definido no Brasil como aquele que tem sua identidade profissional calcada na docência” (SERBINO E GRANDE, 1995, p. 7), ou seja, quem educa é professor ou tão somente o professor. “Efetivamente, esse exercício constitui uma das mais importantes condições institucionais para a realização da proposta pedagógica da escola da qual faz parte um certo modelo ou ideal de homem a ser formado. Daí, então, afirmar-se, hoje em dia, que o ensino sob a responsabilidade do educador deve ser capaz de favorecer a educação para a cidadania e de transformar a realidade em que se inserem a própria educação, o educador e os educandos.” (SERBINO E GRANDE, 1995, p. 7). Importa dizer que o professor possui o dever implícito e intrínseco de driblar a realidade da estrutura educacional brasileira e assegurar um ensino que efetive a cidadania, através da inclusão e da concreta participação da generalidade de seus educandos. Desse modo, os educadores não devem ensinar apenas aquilo que entendem como “padrão”, mas, sobretudo, devem dar subsídio aos alunos para pensar e refletir sobre os temas contemporâneos que permeiam a sociedade atual, tal como ocorre com a homossexualidade. Como bem se sabe, o Brasil é um país multicultural e socialmente desigual. Não por acaso essas características se refletem também no âmbito escolar e, dessa forma, há de se mensurar a necessidade latente de ver uma educação justa, linear e igualitária que promova a inclusão e a cidadania. Esta é uma realidade. Nessa perspectiva, cumpre questionar-se se existe a real possibilidade de se fazer uma educação de qualidade, pautando-se na realidade educacional e social brasileira. Se a resposta for positiva, vale perguntar-se como fazê-lo? O educador brasileiro, principalmente o educador do setor público, infelizmente não dispõe do arsenal necessário para promover essa educação cidadã. Posto isto, salienta-se que, frente a esse multiculturalismo e a essa desigualdade social que estigma a educação pátria, o educador (leia-se professor) não é devidamente amparado pelo Estado para que possa ser ator desse processo, mas, de fato lhe é exigido que seja. Multiculturalismo e desigualdades asseguram uma terceira característica à sociedade brasileira que, de certa forma, agrupa estes dois conceitos numa nova conceitualização, mais genérica é verdade, porém, adequada, qual seja: diversidade. Essa diversidade deve ser levada em consideração pelos professores no momento de ensinar, no âmbito escolar, para que seja possível promover uma educação inclusiva e cidadã. Ademais, os educadores devem assegurar a identificação das particularidades e promover o tratamento desigual aos desiguais com o fim de se obter igualdade. “A construção de uma efetiva agenda social para o Brasil pressupõe a definição de estratégias políticas que contemplem não somente o setor da educação nas suas diversas dimensões e níveis, mas também os segmentos que compõem a sociedade brasileira, com as suas necessidades especificas de aprendizagem. Uma exigência substantiva e procedimental nesta estratégia é o reconhecimento da responsabilidade conjunta do Estado e das organizações sociais no atendimento às múltiplas demandas da sociedade. Nesta perspectiva, é fundamental a sinergia entre Estado e sociedade civil no caminho da desejada transformação da realidade de exclusão social, com base no reconhecimento do diferente e da diversidade como riquezas a serem  exploradas e não como o “exótico” a ser observado, negado ou marginalizado […].”(FÁVERO E IRELAND, 2007, p. 9). A escola deve ser ambiente que se propõe a contribuir para o desenvolvimento do aluno, desenvolvimento humano e social, fazendo-se necessário o respeito às diferenças e, sobretudo, a construção da cidadania, contribuindo para a concretização dos direitos básicos inerentes aos seres humanos. Em outras palavras, a escola é um dos agentes formadores dos indivíduos, ao lado da família e da própria sociedade, todos capazes de transformar os sujeitos durante a vida cotidiana. Tanto o preconceito, como a discriminação e a violência de gênero podem ser percebidos no ambiente escolar de diversas formas, sendo imprescindível uma postura firme dos educadores (as) no sentido de combater atitudes como essas. Sob esse prisma, insta salientar a importância da diversidade e para isso o educador deve ser ou estar preparado; e um dos melhores modos de se fazer essa preparação é através da educação continuada. Uma educação continuada que verse sobre as diversidades e sobre a importância de se estabelecer em âmbito educacional um clima inclusivo, em que todos sintam-se aceitos e bem quistos. Essas diversidades se afloram de distintas formas merecendo um estudo pormenorizado, o que se fará a seguir. Inobstante, vale ressaltar a diversidade dentro da própria diversidade, uma vez que existe um leque de vertentes em que se manifesta o diverso, o diferente. Inicialmente passeia-se pelo campo de antropologia cultural, onde se tem a diversidade como elemento da cultura. A diversidade aqui se manifesta em variedade de hábitos, de costumes, de comportamentos, de crenças e valores.  Algo que mereça ser destacado é a diversidade religiosa, pois, no Brasil se tem uma maioria cristã, porém, o próprio cristianismo é marcado por variações. Evangélicos e católicos, por exemplo, em âmbito escolar possuem opiniões distintas sobre uma infinidade de assuntos e em respeito a isso não se pode educar sem se atentar a tais peculiaridades; o mesmo pode-se dizer de ciganos, candomblés, espíritas, muçulmanos, budistas, etc. “[…] a despeito de suas divergências morais e religiosas, é legítimo identificar a contribuição da educação em promover relações pacíficas e a participação na realização do bem comum”. (MILOT, 2012, p. 357). A diversidade sexual ou de manifestações sexuais também deve ser destacada, pois, historicamente, homens e mulheres protagonizam uma série de atritos e lutas por direitos, reflexos de uma sociedade machista e patriarcal. Porém, há de esclarecer que a diversidade de gênero, que é atualmente um dos maiores problemas enfrentados nas escolas, merece um realce maior, pois a maioria do cidadão comum no Brasil não é capaz de diferenciar gênero de sexo, o que se reflete também na escola. Simploriamente: “Sexo” é um dado biológico e “gênero”, uma construção cultural. É preciso descolar o sexo do gênero para entender as questões culturais que envolvem os comportamentos e características femininas e masculinas nas mais diferentes sociedades e culturas. Considerar o gênero como uma contingência do sexo biológico é uma postura reducionista, pois, torna limitado o desenvolvimento total das pessoas, direcionando-as aos ditames da natureza, levando a interpretações universais que nos fatos próprios da cultura. Para Diniz; Vasconcelos e Miranda (2004, p. 27): “Diferentemente do sexo, o gênero é uma produção social, aprendido, representado, institucionalizado e transmitido ao longo de gerações”. (LUZ, CARVALHO E CASAGRANDE, 2009, p. 24). A diversidade de gêneros é ainda uma concepção cheia de tabus e de preconceitos. Como reflexo preconceituoso, em âmbito escolar não se têm ainda a cultura do esclarecimento sobre esse tema. Assim sendo, questões simples de se solucionarem tornam-se verdadeiros dramas como, por exemplo, o que fazer quando um aluno homem (sexo), mas transgênero solicita permissão para usar o banheiro feminino? A falta de apoio aos educadores nesse sentido impossibilita a efetivação da inclusão por intermédio da educação. Um exemplo apenas elucidativo seria de um adolescente Pedro, de 16 anos, estudante do ensino médio numa escola estadual de alguma cidade do país. Pedro é transgênero cujo nome social é Nellanne e protagoniza a situação acima descrita, tendo sido negada a permissão pelo diretor de sua escola para que usasse o banheiro feminino. Apesar de ser mulher transgênero (aquele que nasce do sexo masculino, porém, identifica-se como sendo do sexo feminino), Nellanne ainda não passou por cirurgia de mudança de sexo, ou seja, ainda possui pênis e este é o argumento usado pela direção da escola para embasar sua negativa.  Não se pretende julgar a conduta tomada pelo diretor, mas quer-se destacar a falta de preparo e de conhecimento que se insurge os educadores brasileiros sobre certas temáticas, provocando, consequentemente, violações de direitos e propagação de preconceitos e exclusão social. Muitos outros pontos merecem discussão, tais como as deficiências, doenças como AIDS, diferenças sociais, etc., mas, por questões de espaço, atenta-se no presente texto às diferenças relacionadas às sexualidades e identidades de gênero. Gênero e sexualidades: perspectivas para a educação em direitos humanos Muitos autores defendem a necessidade de se incluir os Direitos Humanos de alguma forma nos currículos escolares. Nesse sentido AMARAL, LEITE e MURTA apud MUSSI, CALARGE e GUTIERREZ (2013, p. 22) informam que a Educação em Direitos Humanos é uma missão complexa, pois colocar em prática o que se conhece na teoria não é algo simples. Ademais, quando o assunto é Direitos Humanos, há grandes barreiras de preconceitos e ignorância sobre a aplicação da matéria no dia-a-dia, o que leva a pouca eficácia das ideias e ações implementadas. Nesse sentido, segundo os autores retromencionados, Educar é uma ação muito mais ampla do que aparenta, pois objetiva não somente formar indivíduos, mas é por meio da educação que esses indivíduos aprendem a adquirir um nível de consciência crítica e, sobretudo, à formação humana, com parâmetros de Ética, valorização da vida e suas diferentes relações de reciprocidades, compartilhadas com outros indivíduos. Nessa perspectiva, leciona Benevides (2003, p. 309-310): “a educação em direitos humanos é essencialmente a formação de uma cultura de respeito à dignidade humana mediante a promoção e a vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz. Portanto, a formação desta cultura significa criar, influenciar, compartilhar e consolidar mentalidades, costumes, atitudes, hábitos e comportamentos que decorrem, todos, daqueles valores essenciais citados – os quais devem se transformar em práticas.” Assim sendo, quando se fala em gêneros e sexualidade na educação, cria-se inicialmente uma forte resistência social, pois, como salienta LOURO (2001, p.16) a diversidade sexual constitui-se como formas antinaturais, peculiares e anormais num contexto em que se tem por parâmetro a heterossexualidade, concebida como natural, universal e normal. Sob o olhar da autora, a classificação dos sujeitos provoca na sociedade um sentimento de divisões e atribui rotulagens que pré-fixam identidades, o que acaba por separar, distinguir e/ou discriminar pessoas que não se encaixam nas identidades tidas como “padrão”. Isso dito, instaura-se uma dicotomia de valores e ideologias que, do ponto de vista sociológico, jurídico e antropológico, significa dizer que há uma espécie de estereotipação do “homem certo”, desejável, o heterossexual, o rico, o branco, etc., bem como uma estereotipação do “homem errado”, indesejável, o homossexual, o pobre, o negro. Os rótulos já determinam a história de uma pessoa por conta da presença ou não de um órgão sexual avistado no exame de ultrassonografia. Se o médico perceber a existência de um pênis, todo o futuro daquela criança já é pré-concebido pela sociedade que a espera. Se menino: o quarto será azul, frequentará escolinhas de futebol, estudará engenharia e; se menina: o quarto será rosa, fará balé e piano, será professora ou enfermeira. Enfim, uma série de pré-conceitos negam de pronto o direito de escolha e de autodeterminação do ser que ainda é feto. Diante desse contexto, RIBEIRO (2012, p. 187-188) questiona se somos sujeitos de identidade única e imutável? Se não somos sujeitos interativos culturalmente e com isso estabelecemos relações de pertencimento, de associações com o diferente? Será que somos capturados o tempo todo no contato com as construções instituídas como normas? Ou somos seres capazes de subverter a lógica social? E como a escola participa da construção dos sujeitos?  Os valores ou “rótulos” são elementos aprendidos, socialmente construídos. Segundo LOURO (2001) a produção dos sujeitos é plural e permanente, mas não é um processo no qual os sujeitos participam apenas como meros receptores, manipulados. Os sujeitos são participantes ativos desse processo, pois nele são incluídos. Se as várias instâncias sociais, incluindo-se a escola, exercitam pedagogias de sexualidade e gênero, esses processos prosseguem e completam-se por tecnologias de autodisciplinamento e autogoverno que esses sujeitos exercerão sobre si mesmos.  Nesse sentido, RIOS (2004, p.35) leciona que a medida que determinada orientação sexual é colocada como padrão, um modelo a ser seguido, no caso o heterossexualismo, tanto do ponto de vista legal, quanto das práticas sociais e culturais, todas as demais manifestações sexuais devem se subordinar a ela, independentemente de serem aquelas vistas como meras práticas sexuais, como o sadomasoquismo, ou vistas como identidades sexuais, como é o caso do homossexualismo. É o que se pode chamar de heteronormatividade. O autor vai além e afirma que tal situação leva às violações de direitos humanos, levando a cabo situações como internações compulsórias de adolescentes, expulsões de casa e até crimes de violência física, a exemplo dos espancamentos. A escola possui um papel sumamente importante nesse contexto, pois, na maioria dos casos, é tida como “segunda casa” dos estudantes e o professor como modelo de pessoa a ser seguido. Dessa forma, o professor deve ser neutro e nunca reforçar a violência ou o preconceito vivenciado em casa pelo aluno. O estudante transgênero, transexual, homossexual, etc. padece, em muitos casos, de uma rajada de preconceito, insultos e violência de todos os lados: da família, dos amigos, dos colegas de escola, da igreja, etc. Assim, o professor não deve jamais ser mais um a contribuir para o sofrimento desse indivíduo. Ocorre que no Brasil não se tem a cultura de ensinar o diferente, o que é catastrófico, visto que a quebra de tabus e a eliminação do preconceito ignorante tornam-se quase uma utopia na atual sociedade em que se vive. A quebra desse paradigma é um papel de todos, do Estado, da família, e, porque não da escola? Assim sendo, o professor deve ser um dos protagonistas desse fenômeno. Desta feita, cumpre questionar-se como o professor pode contribuir para a promoção das diversidades e propagação da cidadania e desenvolvimento humano por meio da educação em direitos humanos? O professor como protagonista da promoção das diversidades e propagação da cidadania por meio da educação em direitos humanos  A educação em direitos humanos no contexto das sexualidades deve iniciar-se ainda na infância. Muito embora seja o assunto emanado de uma série de pré-conceitos, tem-se por certo que quanto mais cedo a criança tiver consciência da sexualidade, mais benéfico será para ela num futuro próximo. Isso porque: “ […] a sexualidade na infância, vista por educadoras e familiares, é um campo em que a vigilância é constante. Há uma intenção em não se incentivar a sexualidade e contê-la. Ao mesmo tempo em que a professora e a diretora tentam conter as expressões de sexualidade” (XAVIER FILHA, 2012, p. 20). “Em torno dos discursos sobre a sexualidade das crianças, promove-se uma limpeza, interditando, proibindo tal assunto no tocante a elas, construindo uma imagem de sujeito assexuado” (RIBEIRO, 2012, p. 185). Nessa ótica, a criança é enclausurada numa espécie de “redoma de vidro”, sendo “protegida” de tudo aquilo que se relaciona às formas de sexualidade. Diante dessas colocações, pode-se dizer que tal “proteção” tem em longo prazo um efeito fatalmente reverso, o qual promove a propagação do preconceito ignorante em relação às diversidades e, consequentemente, da violência gratuita, ou seja, aquela que não se tem motivo pessoal ensejador, apenas porque foi aprendido que ser gay é errado, ser negro é digno de vergonha, que o menino usar rosa é odioso, pois rosa é cor de mulher. O professor, no entanto, pode exercer um papel positivo nessa dinâmica através de uma educação humanizada. A educação voltada para os direitos humanos, como muito bem ressaltam AMARAL, LEITE e MURTA apud MUSSI, CALARGE e GUTIERREZ (2013, p. 45) visa a eficácia dos direitos humanos e faz com que a dignidade humana seja respeitada. A dignidade da pessoa humana é o princípio basilar da Constituição Federal de 1988, da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e do Desenvolvimento Humano, que é a vertente do Desenvolvimento que preconiza a qualidade da vida humana como fator mais relevante para o crescimento, deixando para segundo plano os fatores econômicos. Isso posto, para os retrocitados autores (p. 46) em muitas localidades sequer o termo democracia faz parte do cotidiano. O direito de escolher representantes, votar e ser votado, opinar nas decisões políticas, possuir liberdade de locomoção, de expressão, igualdade de direitos entre os sexos, entre homossexuais e heterossexuais, negros, brancos, índios, idosos, crianças, deficientes físicos e mentais são direitos que ainda estão longe de ser respeitados. Assim sendo, quanto mais cedo for concebida a clareza de direitos, menos traumática será a vida social de um indivíduo transgênero ou homossexual. Um discurso muito frequente na temática da educação humanizada no que tange às diversidades sexual e de gênero segundo XAVIER FILHA (2012, p. 21) é que há um temor em se discutir sobre sexualidade com crianças na escola. Um dos motivos mais apontados pelos professores é o temor da má interpretação por parte das famílias dos educandos. A autora ainda reflete que existem três perspectivas diferentes sobre o assunto (p. 22) e conclui que urge se pensar sobre os discursos que objetificam a criança e sua sexualidade. De um lado estão aqueles que consideram a criança sob uma ótica essencialista de matriz biológica. Esta é uma perspectiva que considera a sexualidade uma questão congênita, da essência do sujeito, acreditando-se que todos passarão por fases semelhantes e universais na constituição de sua respectiva sexualidade. Tal representação, albergada no discurso médico, resulta na afirmação que na infância não há sexualidade; que esta somente surgirá na adolescência, quando o corpo biológico “despertará” para o sexo. A segunda perspectiva é utilizada para pensar na constituição dos sujeitos e de sua sexualidade, admitindo que a sexualidade seja fruto do meio e das influências sociais. Aqui a criança é considerada inocente, sem malícia e necessitante de preservação das influências do mundo. LOURO (2000, p. 95) apud XAVIER FILHA (2013, p. 22-23) traz a terceira perspectiva, denominada construcionismo social. Aqui o foco é cultural, afirmando-se o caráter construído, histórico, particular e localizado da sexualidade. Destaca que práticas sexuais aparentemente idênticas podem ter, e de fato têm, significados distintos em culturas distintas, tanto coletivamente quanto subjetivamente. Seja qual for a perspectiva predominante num determinado contexto, as práticas pedagógicas são ancoradas no complexo de ideias e percepções de mundo do professor. Essas ideias e percepções são referenciadas certamente por discursos moralistas, religiosos, baseados na vivência do adulto educador, “[…] pretendendo-se verdade indiscutida sobre expressões e vivências da sexualidade para os/as pequenos/as” (XAVIER FILHA, 2013, p. 24). O professor deve despir-se de todas essas preconcepções e enxergar a manifestação da sexualidade do aluno sob uma perspectiva neutra, algo natural e não sob o prisma de um adulto que já vivenciou a sexualidade. “A educação em direitos humanos não se alcança, como já foi dito, apenas dentro das salas de aulas. É necessário acima de tudo fazer com que os direitos humanos façam parte da rotina das pessoas; todos devem conhecer seus direitos e deveres, principalmente os grupos mais vulneráveis […]” (MAIA, 2010, p. 85 apud GUTIERREZ E URQUIZA, 2013, p. 48). Assim sendo, no campo das diversidades sexuais e de gênero, o professor deve ser conhecedor dos direitos dessas pessoas e capaz de discernir os diversos grupos entre si. Mas, para tudo isso deve-se haver o amparo do Estado, visto que, como dito anteriormente, o despreparo dos educadores nessa seara é fator agravante na perpetuação do preconceito. Deve-se ter também, com fulcro em SILVA e ZENAIDE (2008, p. 103), uma sensibilização dos sujeitos envolvidos, aproximação com o contexto escolar e social da escola, conhecimento (técnico) da problemática relacionada aos direitos humanos no contexto escolar e comunitário, uma leitura crítica da realidade e sua articulação com os direitos humanos, a problematização das questões sociais que contribuem para violar a dignidade da pessoa humana, além de fundamentação teórico-metodológica para a compreensão da importância dos direitos humanos para a consolidação da democracia, construção coletiva de ações culturais e educativas que respondam às demandas sociais, o processo de avaliação e acompanhamento sistemático. Enfim, todo um aparato pedagógico e educativo que possibilite ao professor uma atuação efetiva na promoção da dignidade humana num contexto de diversidade de gênero e sexual na escola. Novamente defende-se que a melhor forma de proporcionar ao educador esse arsenal pedagógico é, sem dúvida, a formação continuada, além, é claro, da inclusão dessas pautas nos cursos de licenciatura por todo o país, para que o professor do futuro já tenha plena consciência do seu papel na questão dos direitos humanos em âmbito escolar. Tem-se o professor como um natural protagonista na disseminação do saber, da cultura, da cidadania e combatente às formas de preconceito e de ignorância no que digam respeito aos direitos humanos. Assim sendo, compete a ele não somente educar, mas educar de forma humanizada, proporcionando, na medida do possível, a capacidade crítica, a consciência dos direitos e a valorização da diversidade humana, seja ela de gênero, de orientação sexual, de cor, de etnias, etc., sendo promotor ativo do desenvolvimento humano e social. Considerações finais Conforme o exposto, tanto no âmbito familiar, como no social e educacional, a heteronormatividade e o binarismo sexual ainda são utilizados como “padrões de gênero e sexualidade” a serem seguidos pela coletividade, de modo que crianças e adolescentes são instruídos, desde a infância, a adotar tais moldes, tornando-se vítimas de rechaço, atos violentos e demais formas de exclusão social quando optam por “um padrão inverso” àqueles previa e socialmente estabelecidos. Cumpre observar também que, mesmo diante das conquistas homossexuais nos últimos anos, a escola ainda demonstra um despreparo no que se refere ao tema diversidade. O ambiente escolar desempenha um papel importante na formação dos indivíduos, tido, muitas vezes, como uma “segunda casa” para os educandos (as). Nesse aspecto, a escola pode servir de meio propagador de preconceito e discriminação ao disseminar as ideias de binarismo sexual e heterossexualidade, em detrimento à homossexualidade, transexualidade, bissexualidade, entre outras questões ligadas à diversidade de gênero e sexual. Dessa forma, é imprescindível que o ambiente educacional esteja alicerçado nos Direitos Humanos, com vistas a garantir que os princípios de liberdade, igualdade, solidariedade humana, justiça, tolerância e cooperação, por exemplo, sejam passados de professor para aluno e, posteriormente, de aluno para sociedade. Como dito anteriormente, a escola exerce uma função de desenvolvimento social dos educandos, razão pela qual deve prepará-los para o exercício da democracia e cidadania, tendo em vista uma vida digna. Para tanto, os educadores necessitam de licenciaturas que promovam uma formação continuada e incluam essas temáticas na graduação, para que os futuros professores não sejam apenas disseminadores do saber, da cultura e da cidadania, mas sejam também combatentes das mais variadas formas de preconceito e ignorância no que diga respeito aos direitos humanos. Assim sendo, compete à escola e aos seus educadores elaborar estratégias que estimulem os educandos a desenvolver a capacidade crítica, a consciência dos direitos e a valorização da diversidade humana, com o intuito de superar a realidade excludente e perpetuar o sonho social inclusivo, em que os seres humanos, todos, são considerados sujeitos de direitos humanos, sociais e civis em sua diversidade.
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Liberdade democrática e o direito de escolha
O direito à cidadania é imprescindível na construção da sociedade a prática de um ilícito é apenas um caso de polícia.
Direitos Humanos
Introdução Opressão severa no controlar os grandes redutos dos conglomerados urbanos, demonstra um cenário conturbado, quando as recentes manifestações de rua colocam em foco a questão da segurança pública, o alto índice dos chamados autos de resistência, de acordo com os dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP), órgão vinculado à Secretária do Estado do Rio de Janeiro, mais de dez mil pessoas foram mortas em confrontos com a polícia entre 2001 e 2011. Em uma democracia é inaceitável que a parcela da sociedade tenha que conviver com essa violência, é preciso meios de comportar uma polícia efetivamente cidadã a qual não gere esse impacto negativo de milhares de mortes sem solução ocasionando posteriori adesão ao Programa Nacional de Direitos Humanos, definido na Resolução nº 8 de 21 de dezembro de 2012, do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, ligado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Conforme a resolução, os termos “autos de resistência” e “resistência seguida de morte” devem ser trocadas, por “lesão corporal decorrente de intervenção policial” e “morte decorrente de intervenção policial”. Todo esse procedimento para dizer que deve cumprir o que está na Constituição, quando toda morte deve ser investigada, essa exclusão de ilicitude não pode ser estabelecida a priori, significaria conferir muita autoridade à versão oficial do policial envolvido. Essa soberania do agente em sua ação tem que ser colocada em dubiedade logo quando é a instituição soberana, ela tem o direito de morte e de vida sobre as pessoas, discutir essa soberania é um dos grandes desafios do mundo contemporâneo, onde historicamente a polícia não consegue se compor dentro de seu papel cidadão. O número dos autos de resistência não vem diminuindo tecnicamente, em razão das Unidades de Policia Pacificadoras (UPPs), mas devido uma política que é de planos de metas, isso não significa que esses números sejam aceitáveis, destacando-se localizados especialmente nos conglomerados urbanos e o público alvo dessa ação é delimitado, sendo comprovado pelos autos na sua maioria jovens pobres e moradores de comunidades vítimas de esquadrões, grupos de extermínio e milícias que se alimentam da mesma concepção que norteia a indiferença pela sorte de criminosos ou suspeitos de terem cometido crime, a “lógica da vingança” acaba por substituir a “lógica da pena legal”, gerando conflitos em que os policiais também são vítimas. O direito fundamental à vida é aviltado em nome da segurança da propriedade privada e do combate aos crimes que não levam à morte em nenhuma sociedade civilizada. No Brasil, o fenômeno da violência policial e a criminalização da pobreza são atos de uma mesma tragédia, tornando complexo do que uma simples reforma no modelo de gestão, aplicando – se grandes esforços de inclusão e de educação na cidadania colaborando na compensação do abandono histórico das camadas mais pobres. No dia 28 de setembro de 2012, deste ano a Lei nº. 12.720/2012 acrescentou o art. 288-A ao Código Penal, com a seguinte redação: “Constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código”. A pena cominada é de reclusão de quatro a oito anos. Ora, mais uma vez esqueceu-se o legislador de atentar para o princípio da legalidade estrita, absolutamente inafastável em um Estado Democrático de Direito, especialmente quando se trata de criar um novo tipo penal, de estabelecer uma nova norma penal incriminadora. Com efeito, o novo artigo, como era de rigor, não tratou de definir “organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão”.  Evidentemente que não desconhecemos nem negamos a existência de tais estruturas criminosas em nosso País, mas é preciso que, antes de qualquer coisa, dê-se um conceito legal para elas, tal como fez, por exemplo, o Código Penal, no art. 288, ao conceituar o crime de quadrilha ou bando, a Lei nº. 11.343/06, no art. 35 (Associação para o Tráfico – Lei de Drogas) e, mais recentemente, a Lei nº. 12.694/2012, definindo uma organização criminosa como “a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.” Aliás, esta última lei referida, com a definição legal (não isenta de reparos), ainda que tardiamente, uma lei anterior, promulgada há quase duas décadas (Lei nº. 9.034/95), que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas e que define e regula os meios de prova e os procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo. O próprio sistema carcerário brasileiro revela o quadro social reinante neste País, pois nele estão “guardados” os excluídos de toda ordem, basicamente aqueles indivíduos banidos pelo injusto e selvagem sistema econômico no qual vivemos; o nosso sistema carcerário está repleto de pobres e isto não é, evidentemente, uma “mera coincidência”. Ao contrário: o sistema penal, repressivo por sua própria natureza, atinge tão somente a classe pobre da sociedade. Sua eficácia se restringe, infelizmente, a ela. As exceções que conhecemos apenas confirmam a regra. esse quadro sócio econômico existente no Brasil, revelador de inúmeras injustiças sociais, leva a muitos outros questionamentos, como por exemplo: para que serve o nosso sistema penal? A quem são dirigidos os sistemas repressivo e punitivo brasileiros? E o sistema penitenciário é administrado para quem? E, por fim, a prática de um ilícito é, efetivamente, apenas um caso de polícia?  A nossa realidade carcerária é preocupante; os nossos presídios e as nossas penitenciárias, abarrotados, recebem a cada dia um sem número de indiciados, processados ou condenados, sem que se tenha a mínima estrutura para recebê-los; e há, ainda, milhares de mandados de prisão a serem cumpridos; ao invés de lugares de resocialização do homem, tornam-se, ao contrário, fábricas de criminosos, de revoltados, de desiludidos, de desesperados; por outro lado, a volta para a sociedade (através da liberdade), na contramão de uma solução, muitas das vezes, torna-se mais uma via crucis, pois são homens fisicamente libertos, porém, de tal forma estigmatizados que tornam-se reféns do seu próprio passado. O homem que cumpre uma pena ou de qualquer outra maneira deixa o cárcere encontra diante de sua triste realidade do desemprego, do descrédito, da desconfiança, do medo e do desprezo, restando-lhe poucas alternativas que não o acolhimento pelos seus antigos companheiros; este homem é, em verdade, um ser destinado ao retorno: retorno à fome, ao crime, ao cárcere (só não volta se morrer). DIREITO DO VOTO O direito a cidadania é imprescindível para a construção de uma sociedade justa e igualitária, principalmente dentro dos presídios brasileiros. A partir do momento que os presos começarem a votar, eles se sentirão incluídos à sociedade, reconhecendo os seus valores e requerendo, não mais através de rebeliões sangrentas, mas por meios legítimos, melhorias nas condições miseráveis que têm que suportar. Além disso, os presos terão seus próprios representantes, constituindo parlamentares que lutarão especificamente para humanizarem as cadeias públicas brasileiras. A resocialização nas cadeias deve começar pela extensão da cidadania para todos os brasileiros com restrições de liberdade, pois é com o voto que o cidadão se transforma, como lembra Clemérson Clève (2002, p.58), em “agente reivindicante, possibilitador da floração contínua de direitos novos”. O voto também fará com que a cidadania amplie o próprio conceito de direitos políticos, retirando todos os óbices para que os presos, após cumprirem as suas penas, possam voltar a viver em comunidade. A prisão só pode ser vista com meio que separa a liberdade física, e não a dignidade humana, elemento importantíssimo para a consecução de fins sociais e individuais da pessoa do presidiário. Agir de forma contrária é retroceder aos tempos que o Brasil adotava o regime escravocrata e elitista, que só trouxe prejuízos, que ainda assolam a sociedade atual: O voto é uma garantia individual que não se pode atingir de maneira alguma. Vê-se nesta atitude de proibição resquícios de um sistema colonialista aonde a classe dominante tenta afastar o homem comum de sua cidadania plena. Nada justifica a exclusão do presidiário com a suspensão de seus direitos políticos, e nada melhor do que reintegrar o preso politicamente para que ele se reintegre à vida em sociedade. Ou seja, como re-inserir, resocializar o infrator, tirando sua cidadania? (PUGGINA, 2005). A exclusão da cidadania, o que gera desigualdades e violações da dignidade da pessoa humana, principalmente nos presídios brasileiro, que hoje se transformaram em jaulas de pessoas marginalizadas completamente pela sociedade e que não podem fazer nada para reverter a situação. Quando parece que não há como discriminar ainda mais uma parcela da população já tão discriminada, conseguimos fazer com que esta discriminação seja positivada em nosso direito. Que direito é esse? Que justiça é essa? Justiça, como bem coloca Goffredo Telles Junior, “é a retribuição equivalente ao que foi dado ou feito”; ou seja, o preso pratica um crime, e recebe uma punição injusta, pois não lhe é retribuído somente a pena pelo crime praticado, mas a retribuição passa da pena, atinge mais do que somente seus direitos civis, atingem também, sem motivo justo, os direitos eleitorais. O que deveria ser justo, como, por exemplo, caluniar, difamar, furtar, roubar e pegar uma pena de X anos não ocorre. O que ocorre é que além da pena de X anos, ele ainda por cima tem seus direitos políticos suspensos, sofre uma pena desproporcional, existe, aí, uma dupla punição (nem que de forma disfarçada, como referido anteriormente), pois foi punido por algo que nada tem a ver com o crime praticado; perde, além da sua liberdade, a sua cidadania. Livro do Professor José Carlos Brandi Aleixo, ‘O voto do analfabeto’, serve-me de parâmetro em vários pontos no que me refiro ao voto do preso, principalmente pelo fato dele ter sido escrito antes da Constituição de 1988, quando não se permitia que os analfabetos votassem. Segundo Aleixo, através dos tempos critérios tão diversos como propriedade, residência, renda, mendicidade, etnia, religião, sexo, insanidade mental, deficiências físicas, ideologias, profissão, conhecimento de língua nacional, dependência hierárquica, cidadania, sentenças condenatórias, instrução, etc, limitaram o acesso ao sufrágio. No entanto durante os séculos XIX e XX muitas destas restrições foram sendo eliminadas de tal forma que a idéia de sufrágio universal passa a figurar na constituição de muitos países, inclusive o Brasil, assim como em documentos internacionais, o que comprova que as restrições são preconceituosas, e, continua: “Conforme nos ensina a história, governantes, mesmo bem intencionados, freqüentemente não deram atenção suficiente aos problemas daqueles privados dos direitos políticos em geral e do direito do voto em particular. No livro do Professor José Carlos Brandi Aleixo, ‘O voto do analfabeto’, serve-me de parâmetro em vários pontos no que me refiro ao voto do preso, principalmente pelo fato dele ter sido escrito antes da Constituição de 1988, quando não se permitia que os analfabetos votassem. Segundo Aleixo, através dos tempos critérios tão diversos como propriedade, residência, renda, mendicidade, etnia, religião, sexo, insanidade mental, deficiências físicas, ideologias, profissão, conhecimento de língua nacional, dependência hierárquica, cidadania, sentenças condenatórias, instrução, etc, limitaram o acesso ao sufrágio. No entanto durante os séculos XIX e XX muitas destas restrições foram sendo eliminadas de tal forma que a idéia de sufrágio universal passa a figurar na constituição de muitos países, inclusive o Brasil, assim como em documentos internacionais, o que comprova que as restrições são preconceituosas, e, continua: em seu livro uma passagem de Karl Deutsch, que fala que se só os alfabetizados têm direito a voto, porque votarão para melhores escolas aonde há um índice maior de analfabetismo? Isso cabe, certamente, aos presidiários. Porque as pessoas livres vão se interessar em melhorar os presídios? As pessoas mais interessadas são os próprios presidiários. Quanto mais ampliarmos a extensão do sufrágio, mais reivindicações sociais teremos, obviamente. Quando somente os proprietários votavam, era natural que as maiores reivindicações diziam respeito aos contratos e propriedades. Quando a população carente começou a votar, era natural que começassem os governantes a se preocupar com solicitações referente a trabalho, saúde, educação, etc. E se não permitirmos que os presos expressem suas vontades e opiniões através do voto, vamos esperar que eles se manifestem de que maneira? Através de rebeliões ou queimando colchões? Não podemos, de maneira alguma, ir além da restrição de liberdade do direito de ir e vir. O voto é o poder que temos de interferir na estrutura governamental, de manifestar qualquer descontentamento. Os presos já se encontram em desigualdade perante as pessoas livres, e se os proibirmos de votar, acaba aumentando ainda mais esta desigualdade e, assim, por conseguinte, enfraquece a democracia. Como podemos pensar em políticas públicas para o sistema prisional, se o preso é um invisível político? MILÍCIAS E O VOTO DE CABRESTO As milícias eram vistas como uma espécie de “segurança comunitária”, um “antídoto”, espécie de Substância que impede a ação nociva de um veneno sobre o organismo, dos conglomerados urbanos e áreas pobres para evitar o avanço do poder dos traficantes. Esse era, no entanto, o ‘cartão de visita’ dos grupos que disputavam o controle territorial de áreas desassistidas. E rapidamente a milícia mostrava sua verdadeira face: uma forma perversa de controlar tudo o que é capaz de render dinheiro, como venda de gás, água, transporte clandestino, roubo de sinal de TV a cabo e, claro, o “pedágio de candidatos”, negociando apoio para permitir que candidatos façam campanha. Aos poucos, o termo “milícia” passou a ser aplicado para quase todas as formas de se apropriar ou explorar, ilegalmente, funções de segurança pública ou de controle de território com uso da força. E nem as áreas nobres da cidade estão livres desse tipo de investida, às vezes com consentimento dos moradores. A Polícia Militar investiga o que pode ser uma nova milícia que pode ser um braço político muito mais visível e público do que o tráfico. “Tudo indica que existia naquele momento um projeto político por trás disso: autoridades defendem as milícias, os policiais milicianos nomeados em funções de confiança, como um projeto político que incluía várias pessoas do alto escalão da secretaria de segurança”, de acordo com o sociólogo Ignácio Cano, do Laboratório de Análise de Violência da UERJ.  “Alguns traficantes fazem acordos com alguns candidatos, mas a milícia tinha toda uma estruturação para colocar seus chefes no legislativo. O comportamento político da milícia é mais ambicioso do que o tráfico, desde as últimas duas eleições, para as câmaras municipal e estadual do Rio, vários milicianos foram presos, como o ex-vereador Deco e os irmãos Jerominho, ex-vereador, e Natalino, ex-deputado estadual. Desta vez, os nomes mais conhecidos não estão na linha de frente das eleições, e a atuação deles, um tanto mais discreta. Nem por isso o perigo é menor. O presidente do TRE-RJ, Luiz Zveiter, disse: “É o bandido institucionalizado, aquele que deveria representar o Estado do lado do cidadão, mas está do lado do bolso”.  Chegaram denúncias ao tribunal de que algumas áreas de milícia estavam impedindo a livre circulação de candidatos que não fossem os apoiados pelo grupo paramilitar. As eleições deste ano comprovam que, mesmo com os chefões presos, a população ainda paga a fatura do discurso das autoridades que, no passado recente, legitimavam os grupos paramilitares. O temor é que a ação dos grupos criminosos tenham influência no voto do eleitor.  A Justiça Eleitoral carioca avalia ainda vetar celulares nas cabines de votação. “Já soubemos de casos em que ele [eleitor] era obrigado a tirar foto do seu voto para provar que apoiou um determinado candidato. Queremos acabar com essa forma de coação”. Os locais onde as zonas de exclusão vão funcionar não foram definidos, mas Zveiter adianta que alguns bairros tradicionalmente ligados a grupos milicianos, receberam serviços de inteligência da policia. “O Disque Denúncia Eleitoral, inaugurado pelo TRE-RJ dia 14/05/2012 para receber informações sobre propaganda eleitoral antecipada e irregular, também é um canal para que a população denuncie candidatos ligados a milícias”, segundo Zveiter.  De acordo com uma lista divulgada pelo ex-deputado federal Fernando Gabeira, atualmente cerca de 160 comunidades cariocas são controladas por grupos milicianos, que além de impor seus candidatos, cobram taxas de TV a cabo (apelidada de "gatonet"), gás e transporte coletivo. LIBERDADE DEMOCRÁTICA NA HORA DO VOTO Temos a consciência de que vender o voto é vender-se. Sabe – se que trocar seu voto por algum benefício é abrir mão de sua consciência. Por outro lado, vê nas eleições uma oportunidade única de resolver algum de seus mais eminentes problemas ou dificuldades. Em grande medida, associa compra de votos a ações que envolvem transações de dinheiro, mas não à obtenção de utensílios, vantagens ou bens materiais como uma carga de pedra, um poste de luz, uma oportunidade de emprego, um rancho, uma dúzia de telhas ou de tábuas, uma consulta médica. Para muitos, o período eleitoral torna-se oportunidade de um décimo terceiro ou quarto salário, e que tem prazo para ser cobrado: até o dia da eleição. O descrédito dos políticos está na base das atividades que geram a corrupção. A facilidade com que os mesmos fazem política, sem levar em conta os interesses da coletividade, descaracterizou a atividade política, confundindo política e politicagem. Estranho é que, aqueles que condenam tais práticas, fazem uso dela para beneficiar-se, contribuindo assim para uma cultura em que o bem comum é relativizado, prevalecendo sempre a conquista sorrateira e indevida dos favores ou benefícios conseguidos em períodos eleitorais. É igualmente uma ilusão achar que temos liberdade se muitos de nós estão iludidos naquilo que tem de decidir. Muitos políticos não gostam nada das Campanhas de Voto Cidadão ou Voto Consciente. Muitos deles detestam os que pregam o voto consciente e cidadão. Mas como posicionar-se contra estes lhes custaria um alto preço, buscam desqualificá-los pessoalmente, saindo da esfera democrática e das ideais para a esfera da desconstituição moral, pública e política. A desmotivação e o desinteresse da população pela política também é originada pela pouca renovação das pessoas nos cargos do legislativo e do executivo. Eleição após eleição, quase sempre os mesmos é que se elegem, criando assim uma classe profissionalizada de políticos. As câmaras de vereadores acabam sendo pouco representativas pelo número de vereadores que podem ser eleitos, principalmente nas médias e grandes cidades. O verdadeiro compromisso da democracia deve ser a efetivação dos direitos já conquistados na legislação na vida prática e cotidiana de todos os cidadãos e cidadãs. É preciso revigorar a democracia para o atendimento das necessidades coletivas, orientando os agentes políticos para que suas decisões sejam feitas a favor das maiorias. Os direitos não são benefícios, mas resultado de conquistas da sociedade. Em nenhum lugar do mundo a Democracia tem como propósito igualar opinião de adultos com opinião de adolescentes, como tem acontecido ultimamente no Brasil. Colocar na mesma urna, o voto de um adolescente de 16 anos e o voto de um adulto de 50 anos, não é democracia, é insensatez e desrespeito à vivência e à experiência humana. A Democracia visa minimizar as diferenças sociais e não as diferenças de idade. Tais diferenças são imposições da natureza e consequentemente precisam ser respeitadas. Os próprios adolescentes não entendem esta insensatez brasileira de “cidadania precoce”; uma invenção perigosa que, infelizmente, facilita a eleição dos maus políticos e dos manipuladores da adolescência e da juventude. para que o regime democrático tenha defesas contra a própria democracia, que permite a eleição livre dos nossos representantes, é imperativo cultivar a liberdade de expressão na sua plenitude. Caso contrário, poderemos ter problemas, tais como aqueles que afligem alguns dos nossos vizinhos latino americanos. Uma vez no poder o governante, se vê que as regras são modificadas. O judiciário sofre com a falta de uma verdadeira autonomia . A voz do legislativo é sufocada. Os meios de comunicação são impedidos de exercer livremente a sua atividade. Não podem informar corretamente, pois sobre eles pende a constante ameaça de controle. Essa a receita para uma ditadura e para o desastre. A cada um de nós cumpre o dever de analisar cada candidato. Ver suas reais intenções. Analisar a sua firmeza de caráter e de propósitos, em prol dos interesses maiores da sociedade. CONCLUSÃO: No entendimento que democracia é um conjunto de princípios e práticas que protegem a liberdade humana e assegura a institucionalização da liberdade, obrigar alguém a votar pode abalar um dos pilares democráticos, que é o sufrágio universal. Ainda que o Brasil engatinhe como nação democrática, já passou da hora do voto ser facultativo, aliás, como acontece na maioria dos países americanos.  A casta política brasileira insiste em preservar a obrigatoriedade do voto porque sabe que ao tornar esse direito facultativo também perderá os currais eleitorais que são construídos nas comunidades mais carentes e, por consequência, menos politizada. Tanto é verdade que nada menos que 23 projetos que acabam com o voto obrigatório estão parados no Congresso Nacional, ou seja, os nobres representantes do povo não querem nem discutir o fim da obrigatoriedade desse instrumento basilar da democracia moderna, que é o voto. Nunca é demais lembrar que a quase totalidade dos países com democracia plena e tradições eleitorais consolidadas adotam o voto facultativo, de forma que o eleitor vai às urnas quando sente-se atraído por algum projeto ou proposta. No Brasil, o eleitor que deixar de votar e não justificar porque não votou, só recupera os direito civis políticos depois que regularizar sua situação com a Justiça Eleitoral, pagando a multa imposta pelo juiz eleitoral. O que existe de democrático nessa relação? O voto obrigatório é tão contraproducente que uma pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, um mês após as eleições gerais de 2012, revelou que 30% dos eleitores brasileiros já tinham esquecido o nome do candidato para o qual deram o voto. Os que ainda defendem que o voto seja obrigatório dizem que é para que a representatividade nas eleições seja garantida. Está na hora de acabar com a hipocrisia desse argumento, por que devo me deslocar até uma urna se posso perfeitamente demonstrar minha posição ficando em casa? Não comparecer às urnas, votar em branco ou anular o voto são, no final das contas, quase a mesma coisa. A diferença é que, para quem quer protestar, ficar em casa é mais prático, e não pago nada por isso ou alguém duvida de que o custo do processamento de votos em branco e nulos não é pago pelo consumidor? A liberdade de não votar é adotada como saudável procedimento democrático em muitos países.  A liberdade inclui o direito de escolher não ser livre? Pode parecer que sim. Porém, se considerarmos a liberdade e a democracia como valores fundamentais, algumas consequências se seguem. A primeira é que liberdade e democracia não são apenas meios ou instrumentos, mas também fins. A segunda é que, por isso mesmo, não podemos renunciar a elas. Se pudermos abrir mão da liberdade, ou se a maioria do povo puder votar o fim da democracia, será porque elas são de pequeno valor. Mas, se forem decisivas no perfil da sociedade que queremos, não poderemos desistir delas. É neste sentido que o voto, na democracia, não é somente um direito, porém igualmente uma obrigação. (Uma obrigação ética ou não uma obrigação legal, isso é outra realidade. Mas, como aqui a discussão é teórica, filosófica, o que era preciso demonstrar era que um direito pode ser também um dever).
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Trabalho prisional: uma nova feição do trabalho escravo contemporâneo à luz do princípio da dignidade da pessoa humana
Este trabalho busca inicialmente mostrar, de maneira breve, como ocorre o trabalho escravo urbano e rural nos dias atuais. Em seguida, conceitua o trabalho escravo à luz da Convenção sobre a Escravidão, de 1926 da Liga das Nações e o trabalho forçado segundo a Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho, sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório, de 1930. A partir desse ponto, demonstra que tais modalidades não se confundem, por possuírem elementos próprios e distintos. São também abordadas algumas modalidades de trabalho escravo contemporâneo, como a servidão, a jornada exaustiva e o trabalho em condições degradantes. Definidos tais pontos, a pesquisa procura analisar os tipos de atividade laboral realizados nas unidades prisionais, a fim de se verificar em quais modalidades tais atividades podem ser classificadas e se há a possibilidade de alguma delas ser caracterizada como trabalho escravo. Os resultados mostram que a maior parte do trabalho prisional é hoje realizada em detrimento da dignidade do trabalhador, que recebe uma remuneração abaixo do salário mínimo vigente e lhe são negados os direitos sociais constitucionalmente garantidos, caracterizando-se assim o trabalho escravo.
Direitos Humanos
1 INTRODUÇÃO O trabalho escravo é uma ocorrência quase tão antiga quanto é a história do homem vivendo em sociedade. É uma prática cruel, que reduz o ser humano à qualidade de mera propriedade de outrem, como se coisa fosse. Sua motivação sempre foi essencialmente econômica, embora muitos indivíduos já tenham sido escravizados em ambiente doméstico para atender a uma demanda social por status. É lamentável o fato de a evolução da humanidade não ter conseguido suprimir a escravidão, mesmo nos dias atuais. Ao longo dos milênios, o homem estruturou as religiões; instituiu os Estados; arquitetou diferentes sistemas políticos e econômicos; criou as artes; desenvolveu as ciências; vivenciou diversas mudanças na organização das estruturas sociais; edificou ordenamentos, constituições nacionais, tratados e convenções internacionais que priorizam os direitos fundamentais; desenvolveu as ciências humanas; entre inúmeros outros feitos, que mudaram o conhecimento, as relações de poder e o comportamento das pessoas no planeta. Entretanto, as grandes dificuldades econômicas e a luta pela sobrevivência por parte das vítimas – somadas à falta de informação e de qualificação profissional –, aspectos explorados pelos escravagistas em suas ações criminosas, ainda mantêm viva essa forma degradante de relação social. A escravidão contemporânea distingue-se em alguns pontos da escravidão tradicional, que foi praticada em outros tempos da história da humanidade. Um deles é a questão da ilegalidade. A escravidão nos tempos atuais tornou-se oficialmente ilícita por todo o mundo, deixando, portanto, de ser uma prática socialmente aceita e justificada para tornar-se proibida, repudiada, odiosa, ilegítima e criminalmente punível. No passado, o processo de libertação das pessoas legalmente escravizadas no Brasil foi gradual, lento e tardio, uma vez que o governo imperial da época temia desagradar internamente os latifundiários que utilizavam mão-de-obra escrava em suas fazendas. A escravidão foi oficialmente declarada extinta há mais de 125 anos. A decisão foi tomada devido a pressões internas e externas. No país, um grupo formado por escritores, intelectuais, jornalistas e políticos progressistas liderou o movimento abolicionista interno, enquanto no âmbito internacional, a Inglaterra exerceu decisiva influência, utilizando-se de um discurso fundamentalmente humanitário, enquanto seu real interesse estava na expansão do mercado consumidor para suas indústrias, a ser proporcionado pela criação de uma massa de trabalhadores assalariados aqui no país. Apesar disso, mesmo com o advento da lei extintiva, até os dias atuais o trabalho escravo resiste de forma persistente, com focos de ocorrência por todo o território brasileiro, principalmente no meio rural, embora sua ocorrência seja também registrada nos centros urbanos. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB-88), promulgada em 5 de outubro de 1988, ainda não conseguiu fazer com que os seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade alcancem a amplitude máxima de um Estado socialmente inclusivo e efetivamente democrático. O Estado Democrático de Direito, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão, na justa distribuição de renda, na erradicação da miséria, no respeito aos direitos e garantias fundamentais, ainda é um objetivo a ser alcançado. A denúncia e o combate ao trabalho escravo são, nesse sentido, formas de cooperar com a ampliação do alcance concreto das garantias fundamentais, de modo que elas transcendam o plano abstrato e estejam acessíveis na vida das pessoas. Um dos pilares do Estado Democrático de Direito é a dignidade da pessoa humana, inserida logo no artigo 1º do texto constitucional. Trata-se, portanto, de um dos fundamentos que sustentam e fundamentam esse ideal de Estado. Assim, sem que ocorra a promoção sistemática da dignidade humana em todos os níveis e a todas as pessoas, o Estado Democrático de Direito se desvirtua de sua concepção original e perde sua essência. O conceito de trabalho escravo será, portanto, analisado a partir da sua formulação original, internacionalmente estabelecida, mas com vinculação compulsória à questão da dignidade humana. Por meio desta abordagem, contemporaneamente adaptada, buscar-se-á detectar a manifestação da escravidão, ainda que devidamente disfarçada, nas relações de trabalho estabelecidas no país. Tendo-se como referência o conhecimento de que a prática escravagista atormenta a sociedade atual, atacando homens, mulheres e crianças originalmente livres, o que poderia se afirmar a respeito da escravidão em ambientes não alcançados pelo olhar da sociedade e em relação aos quais, a mídia pouco se interessa? Como é tratado o indivíduo preso do lado de dentro dos muros em relação ao seu trabalho? Partindo-se dessa perspectiva, este artigo abordará o seguinte tema-problema: Em que medida o trabalho da pessoa que cumpre pena privativa de liberdade pode ser considerado trabalho escravo? O trabalho escravo contemporâneo assume feições distintas e mais sutis que a sua forma clássica. É fato que a Lei de Execução Penal (LEP) obriga o indivíduo preso a trabalhar, retirando-lhe a proteção da CLT e permitindo que lhe seja paga uma remuneração bem abaixo do salário mínimo vigente. Também é fato que a dignidade humana relaciona-se, entre outras coisas, com a satisfação de necessidades materiais que permitam ao indivíduo condições mínimas de uma existência íntegra. Portanto, pode-se concluir que, de alguma forma, alguns dispositivos da LEP afetam a dignidade humana. Se a violação da dignidade humana for condição suficiente para a caracterização do trabalho escravo, poder-se-á dizer então, de forma precária, superficial e preliminar, que há grandes possibilidades de ocorrência de trabalho escravo no ambiente prisional. Este estudo verificará, então, se o trabalho da pessoa privada de liberdade enquadra-se no conceito de trabalho escravo contemporâneo. Para tanto, buscar-se-á conceituar o trabalho escravo à luz das legislações vigentes e identificar sua relação com o trabalho forçado, de forma a verificar se ambos os conceitos podem ser invocados para referirem-se a uma mesma prática. Posteriormente, serão abordadas algumas formas de trabalho escravo e as condições em que tais trabalhos são realizados. Por fim, o trabalho prisional será comparado com as modalidades de trabalho escravo identificadas neste estudo, a fim de se comprovar ou não a sua configuração como trabalho escravo. Considerando os objetivos propostos, a pesquisa adotará predominantemente a vertente metodológica juridico-sociológica, pois será verificado o alcance do princípio da dignidade da pessoa humana para a detecção de diferentes formas de trabalho escravo. Ainda assim, em determinados momentos será necessária uma abordagem juridico-filosófica, a fim de se discutir se a LEP, promove ou não a injustiça social ao afastar a proteção da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), do trabalho do indivíduo preso. Far-se-á uso de raciocínio dedutivo-indutivo, com a finalidade de discutir concepções teóricas referentes ao assunto estudado e examinar a realidade de trabalhadores submetidos à condição de escravos, a fim de se chegar a conclusões que confirmem – ou neguem – a hipótese. A pesquisa terá caráter interdisciplinar, utilizando-se de conhecimentos produzidos por distintas áreas do saber jurídico, como a Filosofia do Direito; Sociologia; Direitos Humanos e Fundamentais; Direito Constitucional; Direito do Trabalho; Direito Civil; Direito Penal e Processual Penal. A investigação será do tipo histórico, pois visa a investigar a evolução do trabalho escravo, assim como sua repercussão nos planos social e jurídico. O método a ser adotado é o bibliográfico. O referencial teórico será a teoria de aplicação do regime jurídico dos direitos humanos, aos direitos sociais (com sua lógica e principiologia próprias), de Flávia Piovesan (2010). Segundo a autora, os direitos sociais são exigíveis, acionáveis e justificáveis, demandando um instrumento adequado e efetivo para a sua proteção, sendo essencial sua aplicação progressiva e vedada sua não aplicação em qualquer momento. Para a autora, a ideia de normas programáticas destituídas de qualquer eficácia é equivocada e deve ser afastada. A perspectiva integral dos direitos humanos, que tem nos direitos sociais uma dimensão vital e inalienável, deve ser fortalecida, de modo a aprimorar os mecanismos de proteção e justiciabilidade desses direitos, dignificando assim, a emancipação dos direitos sociais como direitos humanos, garantidos no âmbito nacional e internacional. Dessa forma, os direitos sociais constitucionalmente garantidos não podem encontrar restrições, ainda mais quando impostas por dispositivos legais que antecedem a CRFB-88 e não se alinham ao seu conteúdo, como é o caso dos artigos 28 e 29 da LEP. 2 A ESCRAVIDÃO NO BRASIL: SUA DINÂMICA E BREVE NOÇÕES DE SUA CONFIGURAÇÃO NOS MEIOS URBANO E RURAL Antes de se investigar a situação do trabalho prisional no Brasil, é importante demonstrar como se configura o trabalho escravo contemporâneo nos meios rural e urbano. O trabalho escravo rural contemporâneo emerge na região amazônica oriental por volta dos anos 1960, durante o regime militar, época em que os militares queriam povoar a região, distribuindo incentivos a indústrias agropecuárias e a latifundiários que desejassem explorar aquelas terras. A servidão por dívida é a modalidade mais recorrente de escravidão contemporânea. Este tipo de escravidão no Brasil, segundo Davatz citado por Figueira (1980), existe pelo menos, desde meados do século XIX em fazendas do então senador Vergueiro, no estado de São Paulo, época em que trabalhadores rurais suíços se sentiram reduzidos à condição de escravos, que persiste até os dias atuais. Geralmente, o fazendeiro alicia pessoas de outros municípios ou de outros estados, diretamente ou por meio de “gatos” – empreiteiros contratados, responsáveis pelos serviços, incluindo o de vigilância e supervisão dos trabalhadores. Em geral são considerados violentos e muitas vezes são denunciados por diversos crimes, inclusive homicídios. Figueira, ao definir “gatos”, não atribui a eles a função de aliciamento, embora outros autores o façam (SENTO-SÉ, 2001, p. 53 e SILVA, 2010, p. 130). Uma vez que tenham sido transportados até as fazendas, os trabalhadores são informados de que só poderão sair após pagarem o adiantamento recebido no ato de recrutamento e os gastos com o transporte, hospedagem e a alimentação durante a viagem. A dívida aumenta progressivamente, pois o salário é baixo e eles devem adquirir sua alimentação e os instrumentos de trabalho de uma cantina instalada na própria fazenda, a preços exorbitantes. Os dormitórios são precários – muitas vezes feitos de lona -, não há colchões, não existem as mínimas condições sanitárias. Está então instaurada a servidão por dívida. No ambiente da propriedade rural as irregularidades são várias e vão desde violações à legislação trabalhista – para citar as mais evidentes: cobranças indevidas ou exageradas; não recolhimento das contribuições para a Previdência Social; não assinatura da Carteira de Trabalho e Previdência Social; retenção de salário; não pagamento de férias, gratificação natalina e indenização compensatória por despedida sem justa causa; condições insalubres de moradia, transporte e alimentação -, até ações criminosas, como constrangimento mediante violência ou grave ameaça; privação de liberdade; tortura; maus tratos; mortes e danos ao meio-ambiente. Mas o trabalho escravo não é exclusividade do meio rural. Ele ocorre também em grandes centros, como é o caso da indústria de vestuários em São Paulo. Se no campo as pessoas são recrutadas em municípios ou estados distantes e levados para trabalharem em fazendas remotas, na cidade elas são trazidas de outros países, geralmente com baixíssima renda per capta e índice de desenvolvimento humano (IDH), como a Bolívia. Enquanto no campo os escravos trabalham até a exaustão sob o sol, nos trabalhos realizados nas confecções clandestinas os escravizados mal veêm a luz solar (ROSSI, 2005). Segundo uma pesquisa feita pela autora, há milhares de trabalhadores escravos urbanos laborando em porões de prédios de bairros de São Paulo. Os locais não têm janela, para ajudar a manter a atividade clandestina despercebida pelos vizinhos e pela fiscalização. O ar natural não circula. Músicas de sua terra natal são tocadas durante todo o tempo, em intensidade elevada, para camuflar o barulho dos motores das máquinas de costura. Cada trabalhador fica virado para uma parede de compensado, para evitar que converse com seus colegas durante o trabalho. A posição de trabalho, juntamente com a música alta, impede que conversem entre si e discutam sua situação. Acordam por volta das cinco horas da manhã e dormem por volta de meia-noite. Ali mesmo as pessoas dormem. São cerca de dezoito horas de trabalho por dia, de segunda a sexta-feira, além da manhã de sábado. Eles têm apenas a tarde dos sábados e os domingos de folga. Seus passaportes ficam retidos pelos donos do estabelecimento. Como esses trabalhadores em regra são imigrantes clandestinos no país, eles são constantemente ameaçados pelos seus escravizadores de serem denunciados à Polícia Federal – e consequentemente deportados -, caso denunciem as condições precárias de trabalho às autoridades brasileiras. O escravo urbano também é recrutado pelo intermédio de “gatos”, que agem tanto na cidade de origem dos trabalhadores, quanto nos centros urbanos onde o serviço é prestado. Propagandas são veiculadas em rádios ou jornais locais onde vivem as vítimas, com promessas de bom emprego e vida digna. Há aqueles que saem do país de origem já com uma promessa de emprego feita pelo “gato”, enquanto outros decidem vir para o Brasil por conta própria e são aliciados quando chegam. Há locais onde os trabalhadores se concentram nos fins de semana – principalmente algumas praças -, para ouvir músicas, dançarem, verem seus compatriotas e jogar futebol. Ali também agem os “gatos”. Há uma rede com estrutura hierárquica no esquema escravagista das confecções de São Paulo. No topo da cadeia, estão os coreanos, donos de lojas de roupas, que compram as peças produzidas nas confecções. Eles chegaram ao Brasil a partir do ano de 1963, por meio de um acordo firmado entre o Brasil e a Coreia do Sul, que precisava diminuir o desemprego causado pelo grande fluxo migratório de refugiados do regime comunista da Coreia do Norte. Ao longo dos anos, outros grupos de coreanos chegaram ao país – a maioria de forma clandestina, cujas situações foram sendo regularizadas ao longo do tempo. O seu destino mais comum foi o trabalho como vendedores em lojas cujos proprietários eram na maioria judeus. Além do trabalho nas lojas, as famílias de coreanos começaram a investir na compra de máquinas de costuras e produção de peças de vestuário. Em poucos anos, eles passaram a dominar a produção familiar de peças de roupas e começaram a comprar as lojas dos judeus, que por sua vez investiram em outros segmentos econômicos, deixando esse setor do comércio para os coreanos. Com a ascensão dos coreanos, começou a faltar mão-de-obra disponível, lacuna essa que passou a ser ocupada pelos bolivianos e outros imigrantes sul-americanos. Esses novos imigrantes começaram a chegar a São Paulo a partir da década de 1980. Desempregados, começaram a ser recrutados pelos coreanos a fim de se tornar uma mão-de-obra barata que permitisse aos coreanos a sobrevivência no mercado competitivo de São Paulo. Com o tempo, os primeiros bolivianos compraram suas máquinas de costura e passaram a ser donos de confecções, que entregam suas produções aos coreanos. Antes escravizados pelos coreanos, os bolivianos passaram a repetir o modelo escravagista, explorando novos imigrantes bolivianos. Muitas vezes, a exploração ocorre dentro das próprias famílias: os primeiros parentes que chegaram passam a explorar aqueles que chegam anos depois. Mas além de explorarem os trabalhadores, os donos de confecções ainda continuam sendo explorados pelo sistema criado em São Paulo. Os costureiros bolivianos recebem entre trinta a quarenta centavos por peça de roupa produzida; os donos de confecções bolivianos vendem as mesmas peças por dois ou três reais aos coreanos; que por sua vez as vendem por trinta ou quarenta reais nas lojas. No início da linha de produção, se um costureiro estraga uma peça por acidente, não deve indenizar ao patrão o mesmo valor que recebe, mas sim o valor que o coreano receberia pela venda da peça na loja. Em linhas gerais, esse é o perfil do trabalho escravo rural e urbano no Brasil. O objetivo de expor tal panorama não é um aprofundamento nesse assunto específico, mas mostrar em linhas gerais que o trabalho escravo no país é uma realidade viva, combatida pelas autoridades, mas ainda assim persistente. Portanto, uma vez observada tal prática no seio de uma sociedade livre, onde o trabalho também deveria ser sempre livre – nos preceitos do art. 5º, XIII da CRFB-88 -, torna-se especialmente importante investigar em que circunstâncias se desenvolve o trabalho executado pelos presos nas unidades prisionais. 3 A DIFERENÇA ENTRE TRABALHO FORÇADO E TRABALHO ESCRAVO 3.1 Conceitos de trabalho forçado e trabalho escravo A referência à escravidão nos tempos atuais é feita pelo uso de diferentes termos, como “trabalho escravo”; “semiescravidão”; “escravidão branca”; “escravidão contemporânea”; “escravidão por dívida”; “servidão por dívida” (estes dois para casos específicos em que se cobra uma suposta dívida do trabalhador); “trabalho em condições análogas à de escravo”; “super exploração do trabalho” (SENTO-SÉ, 2001, página 17), entre outros. As vítimas do trabalho escravo rural e seus parentes muitas vezes usam o termo “trabalho humilhado” ou “trabalho cativo” (que não é livre) enquanto o termo “escravo” só aparece após a ação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho (GEFM), ou após ser utilizado nas abordagens feitas pelos entrevistadores que investigam a ocorrência de trabalho escravo (FIGUEIRA, 2004, p.34). GEFM é um grupo formado por auditores fiscais do trabalho – que coordenam as operações de campo –, policiais federais e procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT), criado em 1995 para o combate ao trabalho escravo no Brasil. Ao longo deste estudo, optar-se-á predominantemente pelo uso da expressão “trabalho escravo” ao se referir à atividade realizada pelo trabalhador submetido à escravidão atualmente considerada, cujos contornos serão discutidos adiante. Em contrapartida, usar-se-á o termo “trabalho forçado” para determinar a atividade laboral imposta ao indivíduo de forma obrigatória. As expressões “trabalho forçado” ou “trabalho obrigatório” dizem respeito a um único instituto. Em que pese o fato de alguns autores diferenciarem estes dois termos, conceituando o trabalho forçado como aquele executado mediante castigos físicos ao indivíduo (NUCCI, 2010) – ou como o trabalho realizado até a exaustão física -, será demonstrado adiante que todo trabalho sob tais circunstâncias deve ser classificado como trabalho escravo e não trabalho forçado. Há grande divergência entre diversos autores brasileiros que já enfrentaram o tema, sobre a relação entre trabalho forçado e trabalho escravo. Alguns tratam as expressões como sinônimas (FÁVERO FILHO, 2010; AUDI, 2006; MELO, 2003). Entretanto, há aqueles que defendem a ideia de que trabalho escravo é gênero do qual trabalho forçado é espécie (SILVA, 2009; BRITO FILHO, 2006). Finalmente, há ainda os autores que defendem uma posição justamente contrária a esta última, ou seja, a ideia de que o gênero é trabalho forçado, enquanto a espécie é trabalho escravo (ANDRADE, 2006; CARVALHO, 2011; SENTO-SÉ, 2001). Nota-se, portanto, que não há consenso na diferenciação entre trabalho escravo e trabalho forçado na literatura, razão pela qual se faz necessário verificar como tais nomenclaturas são tratadas pela legislação brasileira e pelas normas internacionais que regulamentam a problemática do escravagismo, a fim de se buscar um esclarecimento acerca do correto uso de tais denominações. Utilizando-se como referência a Convenção sobre a Escravidão, de 1926, da Liga das Nações – antecessora da Organização das Nações Unidas (ONU) –, tem-se a seguinte disposição no caput do seu art. 5º: “As Altas Partes Contratantes reconhecem que o recurso ao trabalho forçado ou obrigatório pode ter graves consequências e se comprometem – cada um no que diz respeito aos territórios alocados sob a sua soberania, jurisdição, proteção, suserania ou tutela – a tomar todas as medidas necessárias para prevenir que o trabalho forçado ou obrigatório produza condições análogas à escravidão.” (SLAVERY CONVENTION, 1926, tradução nossa).[1] Verifica-se no trecho acima a preocupação com a adoção do trabalho forçado como modo de produção e, além disso, com a possibilidade de – uma vez não tomadas as devidas precauções -, que este se converta em trabalho escravo. Tal texto admite, portanto, a existência de trabalho forçado, sem que ocorra necessariamente o trabalho escravo. O mesmo documento dá a seguinte definição de escravidão em seu art. 1º: “Para os fins da presente Convenção, as seguintes definições ficam acordadas: (1) A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual alguns ou todos os poderes inerentes ao direito de propriedade são exercidos.” (SLAVERY CONVENTION, 1926, tradução nossa).[2] Tomando-se como premissa que o trabalho escravo é aquele realizado sob o estado (ou condição) de escravidão, tem-se então que o conceito de trabalho escravo é todo labor executado por um indivíduo sobre o qual alguém exerce alguns ou todos os poderes inerentes ao direito de propriedade. Usar-se-á como ponto de partida nesta pesquisa, o conceito de trabalho escravo acima fixado, primeiramente, por ser adotado internacionalmente e em segundo lugar, pelo seu conteúdo sucinto, porém esclarecedor – e, portanto, objetivo. Ao se explorar esse conceito, tem-se que propriedade consiste na titularidade de um bem e relaciona-se com a ideia de domínio. Um existe em decorrência do outro e o domínio pode ser entendido como “a relação material de submissão direta e imediata da coisa ao poder de seu titular, através (sic) do exercício das faculdades de uso, gozo e disposição.” (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 264). Já tendo conceituado escravidão e trabalho escravo, conclui-se que o escravo é um indivíduo sobre o qual se exerce “alguns ou todos os poderes inerentes ao direito de propriedade”. Consequentemente, é uma pessoa reduzida à condição de coisa e sobre a qual alguém impõe o seu domínio. Esta situação se perpetuará no tempo, pois o indivíduo submetido ao trabalho escravo, dificilmente consegue, por meios próprios, desfazer o vínculo que o une ao escravizador. Para fins deste trabalho, eventualmente utilizar-se-á o termo “escravidão” ora como a condição ou estado sob a qual se realiza trabalho escravo, ora como o próprio sinônimo de trabalho escravo. Isso será feito a fim de se adequar à prática existente, onde os conceitos se misturam – por haver grande relação entre um e outro -, sem que, entretanto, haja comprometimento da compreensão. Resta agora conceituar trabalho forçado. Ainda em relação à Convenção sobre a Escravidão de 1926, tem-se na continuação do seu art. 5º a seguinte disposição: “Fica acordado que: (1) Sem prejuízo das disposições transitórias previstas no parágrafo (2) abaixo, o trabalho compulsório ou forçado só pode ser exigido para fins públicos. (2) Nos territórios em que o trabalho forçado ou obrigatório ainda existe para outros fins que não os públicos, as Altas Partes Contratantes devem se esforçar progressivamente e tão logo quanto possível para pôr fim à prática. Enquanto existir o trabalho forçado ou obrigatório, este trabalho deve ser sempre de carácter excepcional, deve sempre receber uma remuneração adequada, e não deve implicar a retirada dos trabalhadores do seu local de residência habitual. […]” (SLAVERY CONVENTION, 1926, tradução nossa). Da leitura do item (1) acima, confirma-se que trabalho forçado ou trabalho obrigatório são sinônimos e referem-se a uma mesma prática. Do item (2) verifica-se a intenção – ainda que não muito determinada – de acabar com o trabalho forçado para fins privados. Tal Convenção, porém, não determinou o que seria trabalho forçado. Este conceito foi trazido pelo art. 2º, 1, da Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) Sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório, de 1930; como segue:  “Para fins desta Convenção, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.” (CONVENÇÃO nº 29…, 1930). Todavia, o entendimento contemporâneo é que, mesmo que uma pessoa tenha se oferecido voluntariamente para trabalhar, mas seja posteriormente impedida de deixar o trabalho de acordo com a sua autodeterminação, está já caracterizado o trabalho forçado. Assim, para que ocorra o trabalho forçado, não é necessário que a pessoa não se ofereça espontaneamente, bastando tão somente que haja o cerceamento da vontade do indivíduo – a qualquer tempo – por meio da ameaça de sanção. Portanto, a fim de se determinar o que seja trabalho forçado ou obrigatório, é suficiente conceituá-lo inicialmente como todo trabalho exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção. O cerceamento de vontade – que pode ocorrer em qualquer momento da relação de trabalho -, está implícito, devido ao emprego de meio coercitivo. Tomando-se como referência os conceitos acima fixados de trabalho escravo e de trabalho forçado – ambos decorrentes originalmente de Convenções internacionais -, tem-se uma diferença notória entre ambos. Enquanto o trabalho forçado limita a liberdade do indivíduo – cerceando sua vontade -, o trabalho escravo limita o próprio indivíduo, reduzindo sua humanidade, transformando-o em coisa que se submete ao domínio de outra pessoa. Percebe-se, de pronto, que tais conceitos não se confundem e, consequentemente, não podem ser utilizados como sinônimos. Após ter-se definido a primeira diferença entre trabalho forçado e trabalho escravo, buscar-se-á agora estabelecer como os dois termos se relacionam. 3.2 A diferença fundamental entre trabalho forçado e trabalho escravo: a questão da dignidade humana A privação de um direito fundamental como a liberdade de escolha, pode conduzir a outros atos arbitrários e restritivos, razão pela qual existia grande preocupação de que o trabalho forçado não se descaracterizasse de tal forma, que pudesse se transformar em trabalho escravo. Em razão disso, a Convenção nº 29 da OIT determinou em seu art. 1º – de forma mais enfática que a Convenção sobre a Escravidão de 1926 -, a necessidade de se extinguir o trabalho forçado no menor tempo possível, em todas as suas formas, admitindo-o excepcionalmente para fins públicos durante o período de transição até a sua erradicação: “1. Todo País-membro da Organização Internacional do Trabalho que ratificar esta Convenção compromete-se a abolir a utilização do trabalho forçado ou obrigatório, em todas as suas formas, no menor tempo possível. 2. Com vista a essa abolição total, só se admite o recurso a trabalho forçado ou obrigatório, no período de transição, unicamente para fins públicos e como medida excepcional, nas condições e garantias providas nesta Convenção. 3. Decorridos cinco anos, contados da data de entrada em vigor desta Convenção e por ocasião do relatório ao Conselho de Administração do Secretariado da Organização Internacional do Trabalho, nos termos do Artigo 31, o mencionado Conselho de Administração examinará a possibilidade de ser extinto, sem novo período de transição o trabalho forçado ou obrigatório em todas as suas formas e deliberará sobre a conveniência de incluir a questão na ordem do dia da Conferência.” (CONVENÇÃO nº 29…, 1930, tradução nossa). Já os artigos 12 a 21 dessa mesma Convenção trazem uma série de regras, de forma a regulamentar o trabalho forçado antes de sua erradicação, a fim de se evitar que sua prática cause um dano ao trabalhador, que vá além do cerceamento de sua vontade. Tais preceitos limitam o trabalho forçado a um período máximo de sessenta dias a cada doze meses; estabelecem jornada de trabalho igual àquela do trabalho voluntário; horas extras devidamente remuneradas também conforme o trabalho voluntário; repouso semanal de acordo com o costume local; remuneração em espécie, em valores não inferiores à média daqueles pagos na região em que o trabalhador foi recrutado ou em que presta serviços, prevalecendo a que for maior; vedação de desconto salarial pelo fornecimento de vestuário, ferramentas e alojamento; indenização por acidente ou doença do trabalho; pagamento de aposentadoria causada por invalidez durante o trabalho; habitação e alimentação adequadas; proteção à higiene e saúde no trabalho; adaptação ao trabalho; intervalos intrajornada; vedação do trabalho em minas, entre outros. Conclui-se assim, que enquanto o trabalho forçado foi permitido, exigiu-se dos Estados signatários da Convenção nº 29 da OIT uma série de obrigações a serem satisfeitas em relação aos trabalhadores, todas elas no sentido de manter a dignidade humana, ainda que sob a restrição da liberdade individual de escolha do próprio trabalho. Surge então um elemento que reforça a diferenciação entre trabalho forçado e trabalho escravo: a questão da dignidade humana. Na aplicação e supervisão do trabalho forçado, ainda que o indivíduo seja obrigado a realizar determinado trabalho de forma não voluntária, há grande preocupação com a manutenção da sua integridade, por meio da proteção aos direitos sociais do trabalho. No trabalho escravo, o trabalhador é desrespeitado em seus direitos fundamentais e a dignidade humana é frontalmente atacada. A imposição dessa forma de trabalho caracteriza-se justamente por atentar contra a integridade do indivíduo. Ressalta-se que, obviamente, grande parte dos trabalhos escravos é realizada também mediante o cerceamento da liberdade, mas como já foi estabelecido, esse não é o seu aspecto caracterizador. Como a maioria dos trabalhadores escravizados são pessoas analfabetas ou com baixo grau de escolaridade; não possuem qualquer qualificação profissional e têm grande necessidade de manterem-se empregadas (THÉRY et al, 2009), não resta a um indivíduo nessa situação outra escolha, senão prosseguir trabalhando. Afinal, a demanda cada vez maior por mão-de-obra qualificada, torna-se um grande obstáculo para que esse empregado insatisfeito consiga novo emprego, embora seja, em contrapartida, fácil para o empregador substituí-lo. A liberdade formal está presente, mas o indivíduo está preso à falta de alternativas para sua vida laboral. Nessa situação, a pessoa luta pela sua própria sobrevivência, para não sucumbir à falta de emprego e literalmente correr o risco de morrer de fome. Portanto, “enquanto o indivíduo se sujeita ao trabalho forçado para livrar-se de uma sanção estatal, a pessoa que se submete ao trabalho escravo está protegendo a sua própria vida.” (Marcelo Matos de Oliveira).[3] Para que haja a ocorrência do trabalho escravo – modernamente considerado -, é necessário que se identifique a falta de um tratamento digno ao ser humano. Na maioria das vezes, o vínculo laboral não poderá ser rompido pelo trabalhador. Isso ocorrerá por meio de ameaça ou violência do escravizador – situações nas quais o indivíduo escravizado estará aprisionado e sob a vigilância de alguém -; ou por necessidade de sobrevivência do trabalhador, caso em que a pessoa tratada como escrava terá liberdade para ir e vir, mas não rompe o vínculo empregatício por não ter condições de se recolocar no mercado de trabalho. Em ambas as situações o trabalhador submete-se ao trabalho escravo como forma de autopreservação da própria vida. A autopreservação é evidente quando o escravizador cerceia a liberdade do trabalhador e este se submete àquele para se livrar das ameaças ou da violência que lhe são impostas. Entretanto, também está presente a autopreservação – de forma muitas vezes negligenciada até mesmo por aqueles que combatem o trabalho escravo –, quando o indivíduo se submete a condições subumanas de trabalho para evitar uma situação de desemprego que ameace a sua sobrevivência, já que sua condição social é bastante frágil. Para muitos, a pessoa não é escrava, pois apesar da jornada exaustiva ou das condições degradantes, ela é livre para romper o vínculo laboral. Ora, tal conclusão é o resultado de uma análise superficial, presa a formalismos conceituais e sem um mínimo de percepção multidisciplinar, pois a situação fática deve ser observada sob um ponto de vista crítico que a contemple sob todas as ópticas diferentes e não apenas por meio de conceitos que envelhecem ao longo do tempo. Romper um vínculo laboral é um ato muito mais complexo que um mero pedido de demissão. É uma decisão que implica na perda da remuneração com a qual o indivíduo mantém a sobrevivência de sua família; no retorno à disputa por uma vaga no mercado de trabalho; e na insegurança e frustração causadas pela situação de desemprego. Para muitos, pode resultar, por exemplo, em não ter o que comer, ou o despejo da moradia em que habitava, por não ter mais como pagar um aluguel. Para Kant citado por Piovesan (2010, p.6), as pessoas são dotadas de dignidade, na medida em que têm um valor intrínseco absoluto, são insubstituíveis e únicos. Ou seja, o indivíduo é um fim em si mesmo e não um meio para se chegar a algo, não é um objeto ou coisa. Afirma ainda que a autonomia é a base da dignidade humana e lembra que a ideia de liberdade é intimamente conectada com a concepção de autonomia. Poder-se-ia pensar então que, uma vez que o trabalho forçado retira a liberdade de escolha do indivíduo em relação a realizar ou não determinado empenho, uma vez que este é imposto, ele restringiria a autonomia do sujeito e, portanto, atacaria a dignidade humana. Mas essa análise superficial possui uma fragilidade falaciosa. Longe de se querer fazer aqui uma apologia ao positivismo – que justifica quaisquer sanções, desde que sejam legalmente postas, independentemente de serem justas ou não -, o que se pretende é estabelecer, como ponto de partida para uma análise imparcial, que o indivíduo se obriga a imposições sociais e estatais a partir do momento em que opta por viver em sociedade, mesmo no grupo mais tolerante ou na mais aberta das democracias. Afinal, o homem contemporâneo não goza de uma liberdade natural, absoluta, plena e incondicional, mas de uma liberdade civil, limitada por um conjunto de regras sociais e normas jurídicas. Uma vez que a liberdade civil implica, entre outras coisas, na obediência às leis, e o trabalho forçado – realizado conforme as convenções anteriormente mencionadas – configura-se como uma imposição legal cuidadosamente limitada por direitos fundamentais, além de critérios pré-determinados (quando executado pelo Estado e para fins públicos), não se pode considerar o trabalho forçado como supressor da dignidade humana. A suspensão da liberdade de escolha, desde que limitada e controlada, terá o caráter de ônus cívico, sem que, entretanto, seja desrespeitada a integridade da pessoa humana. Um exemplo que corrobora essa opinião, é que se fosse verdadeira a assertiva de que o cerceamento de qualquer forma de liberdade aniquila de modo contundente a dignidade, não haveria qualquer propósito nas discussões acerca de como reformular o sistema prisional, a fim de que os indivíduos presos possam ter uma vida digna, enquanto durar o seu período de encarceramento. Tampouco haveria indivíduos presos vivendo com dignidade em presídios-modelo que respeitam sua integridade como seres humanos. Tem-se, portanto, que em determinados casos a dignidade humana do trabalhador é capaz de transcender a questão da privação da liberdade, quando outros fatores fundamentais são satisfeitos, como a valorização da individualidade; o respeito à integridade física, moral, mental e religiosa do indivíduo; o cuidado com a higiene, alojamento, saúde e alimentação; o convívio social; a segurança; a justiça e os direitos sociais do trabalho, entre outros. 3.3 A luta pelo fim do trabalho forçado como medida profilática para se evitar o trabalho escravo. Já foi discutido acima, que embora trabalho forçado e trabalho escravo sejam conceitos distintos, o primeiro pode se transmutar no segundo, caso não sejam respeitadas condições que garantam a manutenção da dignidade humana. Em 1957, a Convenção 105 da OIT proibiu expressamente a utilização do trabalho forçado, por meio dos seguintes dispositivos: “Artigo 1º Todo País-membro da Organização Internacional do Trabalho que ratificar esta Convenção compromete-se a abolir toda forma de trabalho forçado ou obrigatório e dele não fazer uso: a) como medida de coerção ou de educação política ou como punição por ter ou expressar opiniões políticas ou pontos de vista ideologicamente opostos ao sistema político, social e econômico vigente; b) como método de mobilização e de utilização da mão-de-obra para fins de desenvolvimento econômico; c) como meio de disciplinar a mão-de-obra; d) como punição por participação em greves; e) como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa. Artigo 2º Todo País-membro da Organização Internacional do Trabalho que ratificar esta Convenção compromete-se a adotar medidas para assegurar a imediata e completa abolição do trabalho forçado ou obrigatório, conforme estabelecido no Artigo 1º desta Convenção.” (CONVENÇÃO nº 105…, 1957) A vedação ao trabalho forçado foi reiterada no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966 da Organização das Nações Unidas, juntamente com a proibição expressa à escravidão:  “Artigo 8º 1. Ninguém será submetido à escravidão; a escravidão e o tráfico de escravos, sob todas as suas formas, são interditos. 2. Ninguém será mantido em servidão. 3. a. Ninguém será constrangido a realizar trabalho forçado ou obrigatório; […]” (PACTO…, 1966). Servidão, de acordo com a Convenção Suplementar sobre Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, de 1956 é a condição de alguém obrigado por lei, costume ou acordo a viver e trabalhar em terra de terceiros e fornecer a essa pessoa serviços (gratuita ou onerosamente), sem que possa mudar sua condição; ou ainda aquela situação originada por dívida, na qual se encontra um devedor comprometido a prestar serviços pessoais ao credor, nos casos em que o serviço prestado não é equitativamente avaliado no ato de liquidação da dívida, ou em que a duração desses serviços não for limitada. A primeira variação é a mesma daquela observada em regimes feudais na idade média, estabelecida vitaliciamente entre o servo e o senhor feudal. Em que pese a diferenciação histórica que se faz entre escravidão e servidão, não há diversidade significativa entre uma e outra, tendo-se como referência a atual tônica da afetação da dignidade humana, razão pela qual a servidão, sob a conceituação aqui adotada, é uma tipo de escravidão. A segunda modalidade de servidão é aquela denominada “servidão por dívida”, que nada mais é que “escravidão por dívida”, forma predominante de trabalho escravo rural no Brasil. A Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969 da OEA – também conhecida como Pacto de San José de Costa Rica -, assim deliberou sobre a escravidão e o trabalho forçado:  “Artigo 6. Proibição da escravidão e da servidão  1. Ninguém pode ser submetido a escravidão ou a servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas.  2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório […]” (CONVENÇÃO…, 1969) Em 1998, a Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, firma mais uma vez a posição da entidade de repúdio ao trabalho forçado, conforme segue: “A Conferência Internacional do Trabalho[…] 2. Declara que todos os Membros, ainda que não tenham ratificado as convenções aludidas, têm um compromisso derivado do fato de pertencer à Organização de respeitar, promover e tornar realidade, de boa fé e de conformidade com a Constituição, os princípios relativos aos direitos fundamentais que são objeto dessas convenções, isto é:[…] b) a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; […] “ (DECLARAÇÃO…, 1998) Percebe-se, portanto, que, salvo algumas exceções que serão vistas adiante, não há qualquer interesse da Sociedade Internacional na manutenção do trabalho forçado, pois a sua deformação pode transmutá-lo em trabalho escravo. 3.4 O trabalho escravo não é espécie de trabalho forçado A Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho e seu Seguimento – Sumário Relatório Global 2005 – Uma Aliança Global Contra o Trabalho Forçado, ao relacionar o trabalho escravo com o trabalho forçado colocou este como gênero, do qual aquele é espécie, como se percebe na leitura do seguinte trecho: “[…] A escravidão é uma forma de trabalho forçado. Constitui-se no absoluto controle de uma pessoa sobre a outra, ou de um grupo de pessoas sobre outro grupo social.” (DECLARAÇÃO…, 2005). O método de verificação aqui realizado partirá da análise da espécie em relação ao gênero. Analisando-se esta assertiva do Documento da OIT de 2005, percebe-se o seu equívoco ao afirmar que trabalho escravo (ou escravidão) é uma forma de trabalho forçado, afinal, há formas de trabalho escravo que não se encaixam no conceito de trabalho forçado. Trata-se das situações em que o indivíduo não é privado da sua liberdade, mas em contrapartida, é impedido de condições dignas de trabalho, como ocorre no trabalho degradante e na jornada exaustiva, em que o trabalhador muitas vezes é livre para ir e vir, assim como é livre para encerrar o vínculo de trabalho ou emprego, mas não consegue fazê-lo. Assim, não se pode considerar o trabalho escravo (com ausência de dignidade) como uma forma de trabalho forçado (com privação de liberdade de escolha), pois se trabalho forçado fosse gênero, as suas espécies (incluindo o trabalho escravo) deveriam possuir todas as características desse gênero, mais aquelas que as especificam. Como discutido no parágrafo anterior, nem sempre o trabalho escravo requer privação de liberdade para se configurar. Portanto, a espécie “trabalho escravo” não cabe no gênero “trabalho forçado”. 3.4.1 A jornada exaustiva e o trabalho degradante como espécies de trabalho escravo Por que a jornada exaustiva e o trabalho degradante são considerados trabalho escravo? Ao retomar-se o conceito dado pela Convenção Sobre a Escravidão, de 1926 – “A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual alguns ou todos os poderes inerentes ao direito de propriedade são exercidos” -, vêr-se-á que nos dois casos acima o indivíduo é tratado como um objeto, um meio de produção que visa à mais valia daquele que lhe explora e não como um fim em si mesmo. Silva informa que: “Embora a lei não defina trabalho degradante, a revisão doutrinária permite concluir que o trabalho em condições degradantes pode ser entendido como aquele que, mesmo realizado voluntariamente, é prestado sob condições subumanas, com inobservância das mais elementares normas de proteção ao trabalho e de segurança e saúde laborais, mediante retenção salarial Dolosa, com submissão dos trabalhadores a tratamentos cruéis, desumanos ou desrespeitosos, ou mediante jornada exaustiva, tanto na duração quanto na intensidade, em flagrante desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana e com prejuízos à integridade física e/ou psíquica dos trabalhadores.” (SILVA, 2010, p. 242). Viana, por sua vez estabelece que condições degradantes de trabalho referem-se a cinco hipóteses distintas:  “1. A primeira categoria de condições degradantes se relaciona com o próprio trabalho escravo stricto sensu. Pressupõe, portanto, a falta explícita de liberdade. Mesmo nesse caso, porém, a idéia de constrição deve ser relativizada. Não é preciso que haja um fiscal armado ou outra ameaça de violência. Como veremos melhor adiante, a simples existência de uma dívida crescente e impagável pode ser suficiente para tolher a liberdade. A submissão do trabalhador à lógica do fiscal não o torna menos fiscalizado. 2. A segunda categoria se liga com o trabalho. Nesse contexto entram não só a própria jornada exaustiva de que nos fala o CP – seja ela extensa ou intensa – como o poder diretivo exacerbado, o assédio moral e situações análogas. Note-se que, embora também o operário de fábrica possa sofrer essas mesmas violações, as circunstâncias que cercam o trabalho escravo – como a falta de opções, o clima opressivo e o grau de ignorância dos trabalhadores – tornam-nas mais graves ainda. 3. A terceira categoria se relaciona com o salário. Se este não for pelo menos o mínimo, ou se sofrer descontos não previstos na lei, já se justifica a inserção na lista. 4. A quarta categoria se liga à saúde do trabalhador que vive no acampamento da empresa – seja ele dentro ou fora da fazenda. Como exemplos de condições degradantes teríamos a água insalubre, a barraca de plástico, a falta de colchões ou lençóis, a comida estragada ou insuficiente. 5. Mas mesmo quando o trabalhador é deslocado para uma periferia qualquer, e de lá transportado todos os dias para o local de trabalho, parece-nos que a solução não deverá ser diferente. Basta que a empresa repita os caminhos da escravidão, desenraizando o trabalhador e não lhe dando outra opção que a de viver daquela maneira. Esta seria a quinta categoria de condições degradantes.” (VIANA, 2007, p.200). Ambos os autores incluíram a jornada exaustiva como forma de trabalho degradante. Entretanto, os dois institutos são diferentes. Por isso, parece que o legislador, ao separar intencionalmente as duas expressões no art. 149, caput do Código Penal Brasileiro (CPB), quis dar-lhes um tratamento mais específico, em vez de invocar um sentido amplo para a expressão “condições degradantes de trabalho”. Ao separá-las, tentou enfatizar cada uma distintamente, tratando por um lado uma jornada extensa e cruel, e de outro, condições do ambiente de trabalho tão ruins que sejam capazes de deteriorar a integridade física, psicológica e moral da pessoa. As condições do ambiente de trabalho dizem respeito tanto ao ambiente de convivência interno, quanto às questões ambientais do trabalho propriamente ditas. Em relação a estas últimas, Fernandes (2010), afirma que “em decorrência de sua estreita ligação com o direito à vida humana digna, seria lógico alçar o direito ao meio ambiente saudável também ao patamar de Direito Humano.” Segundo o autor, em função de o direito ao meio ambiente equilibrado – no que diz respeito ao ambiente de trabalho -, estar protegido na CRFB-88 de forma específica pelo art. 7º, XXII e pelo art. 200, VIII; e de forma genérica pelo art. 225, caput; não há como negar sua condição de direito fundamental humano. Citando Melo, Fernandes transcreve o entendimento deste sobre o Direito Ambiental do Trabalho:  “[…] constitui direito difuso fundamental inerente às normas sanitárias e de saúde do trabalhador (CF, art. 196), que, por isso, merece a proteção dos Poderes Públicos e da sociedade organizada, conforme estabelece o art. 225 da Constituição Federal. É difusa a sua natureza, ainda, porque as consequências decorrentes da sua degradação, como por exemplo, os acidentes de trabalho, embora com repercussão imediata no campo individual, atingem, finalmente, toda a sociedade, que paga a conta final.” (Fernandes, 2010, p. 308). A dignidade humana, no que diz respeito à saúde, é afetada diretamente por questões ambientais. Um trabalho digno sob o aspecto ambiental diz respeito à manutenção da saúde física e psíquica ao longo da vida laboral. A questão do pagamento de adicionais de periculosidade ou insalubridade são o reconhecimento de que a saúde e a vida são bens permanentemente ameaçados. Ninguém nega o risco perene no ambiente de trabalho presente em algumas atividades. Entretanto, não se questiona o fato de que, mesmo que os empregadores tenham tomado todas as providências legais referentes à segurança no trabalho, ainda assim persiste a ameaça constante à dignidade humana. Afinal, tais providências não são suficientes para suprimir os perigos ali existentes. Mas o que dizer então dos ambientes que apresentam vários riscos e condições de deterioração da saúde, sem que os cuidados necessários sejam tomados? A contaminação do meio ambiente do trabalho por elementos como gases, vapores e poeira é um sério problema na indústria (BARROS, 2008). Pode-se citar ainda a poluição da água; o excesso de calor; a fraca iluminação, o excesso de ruídos e a baixa umidade do ar, são exemplos de fatores que podem afetar de maneira significativamente severa a saúde do trabalhador, causando sofrimento, doenças, sequelas vitalícias ou mesmo resultando em morte. Há questões de segurança muitas vezes desrespeitadas, seja pela falta de treinamento; pelo não fornecimento de equipamentos de proteção individual; pela exposição a agentes químicos; pelo trabalho em lugares inóspitos, entre outros, que geram condições subumanas de trabalho. Barros (2008) afirma que o “dano à saúde deverá ser considerado como a diminuição da integridade psicofísica do trabalhador, em toda a sua dimensão humana concreta, provocada pelo empregador, por meio de uma conduta dolosa, culposa ou por um risco criado.” Entretanto, entende-se aqui, que não há mera culpa do empregador, pois ele sabe que tal ambiente faz mal à saúde e inclusive evita frequentá-lo, mas admite o sacrifício do trabalhador, pois dele depende o resultado que a sociedade empresária precisa. Tal sacrifício, portanto – sob a óptica do empregador -, produzirá um bem coletivo, mantendo a atividade empresarial e os empregos de todos que ali trabalham. Os conservadores diriam se tratar de trabalho em condições irregulares. Mas mais uma vez discordar-se-á aqui, de um posicionamento doutrinário quase que pacífico. Ora, a diminuição da integridade psicofísica atinge de forma contundente a dignidade humana e o consequente dano à saúde advém como consequência de o empregado não ser visto como um ser humano que trabalha para o sustento da sua vida e da sua família, mas sim como um recurso de produção (mão-de-obra) necessário à geração do lucro. Este trabalhador é percebido pelo empregador como mera engrenagem integrante do processo produtivo, é reduzido ao estado de “coisa”, tendo assim a sua dimensão humana apagada e torna-se, portanto, um escravo contemporâneo. A degradação nesses casos afeta predominantemente a fisiologia do indivíduo. O empregador age no mínimo com dolo eventual – assumindo o risco de produzir como resultado o dano à saúde do trabalhador. Em relação ao ambiente de convivência, também este é essencial à dignidade do trabalhador. Um local onde é constante a retenção dolosa do salário e vários direitos trabalhistas são descumpridos; onde são frequentes o assédio moral; as repreensões abusivas; o tratamento desrespeitoso; as difamações e injúrias contra trabalhadores – muitas vezes pessoas humildes que não conseguem se defender de agressões verbais contínuas e sistemáticas -, torna evidente que os indivíduos que ali trabalham são seres escravizados, embora possam optar por encerrar o vínculo de emprego, mas não o façam por apresentarem uma condição de vida fragilizada que os mantêm inertes, como já foi visto anteriormente. Esse tipo de tratamento indigno atingirá a moral e a dignidade psicológica do trabalhador afetado. Já a jornada exaustiva implica em trabalhar por um tempo além daquele que é legalmente fixado. A primeira convenção da OIT estabeleceu uma jornada na indústria de oito horas diárias e quarenta e oito horas semanais. A Convenção nº 116 manteve as quarenta e oito horas semanais com a recomendação de redução progressiva para quarenta horas. Antes dela, a Convenção nº 30 havia estendido a jornada de oito horas diárias e quarenta e oito horas semanais aos trabalhadores do comércio (BARROS, 2008). O trabalho excessivo gera grande desgaste ao organismo, podendo causar cardiopatias e outras doenças graves. Além disso, o excesso de trabalho leva à perda do poder de concentração, sendo responsável por várias ocorrências de acidentes do trabalho. Finalmente, impede que a pessoa goze de tempo livre para fazer outras atividades fora do ambiente de trabalho, lembrando que também o lazer é um direito social constitucionalmente assegurado. Em grandes cidades, onde as pessoas gastam em média duas horas para chegar ao trabalho e o mesmo período para retornar às suas casas, perde-se em média quatro horas diárias de deslocamento. Soma-se a este tempo um mínimo necessário de oito horas diárias de descanso e restam doze horas diárias, sendo que um mínimo de nove horas é consumido pela jornada de oito horas com uma hora de intervalo intrajornada para refeição. A pessoa teria livre cerca de três horas diárias para resolver todos os demais assuntos pertinentes à sua vida, que são inúmeros e incompatíveis com um tempo tão reduzido. Não fosse já uma carga diária estressante de trabalho, muitos empregadores ainda exigem o cumprimento constante de horas-extras, que por se tornarem frequentes, transformam o trabalho no propósito da vida humana, ou em outras palavras, tornam a vida humana não um fim em si, mas um meio de produção. Viver para o trabalho é uma forma notória de vida indigna e escravizada. Não há lazer, prazer, sentimento de realização profissional, não há tempo para uma vida em família e entre amigos, não há tempo sequer para reflexões pessoais, pois tudo é tomado por um automatismo perverso que anula a humanidade do trabalhador, gerando o vazio de uma vida sem perspectivas. Obviamente que as circunstâncias do caso concreto devem ser observadas para se analisar se estavam presentes ou não condições mínimas de resguardo da dignidade humana e se esta chegou a ser afetada. Dessa forma, deve-se verificar o número de horas extras diárias exigidas pelo empregador; a frequência com que essas horas são requeridas; se há um acúmulo frequente de horas extras com horas noturnas; se o indivíduo está gozando efetivamente do descanso semanal remunerado e das férias; se as horas extras são pagas na forma correta e se as horas extras são realizadas com sacrifício pessoal do empregado em relação à sua vida particular. Este último ponto merece um destaque especial, pois muitas vezes o empregado é privado do convívio com a sua própria família, pois sai muito cedo e chega tarde à sua casa, momentos nos quais encontra seus familiares dormindo. Outras vezes, a título de exemplo, o indivíduo não consegue fazer um curso que lhe daria melhores perspectivas de vida, pois as demandas extraordinárias do trabalho não o permitem. Há também as situações em que o trabalhador não tem tempo para tratar da saúde, seja por meio da prática de atividade física, ou porque não consegue ir com a frequência necessária a médicos para se submeter a exames preventivos regulares, o que pode fazer inclusive com que doenças não sejam identificadas a tempo de um tratamento eficaz. Embora o indivíduo esteja livre para ir e vir, ele pode realmente prescindir de seu trabalho ao sentir-se privado de sua vida pessoal, usado como coisa, escravizado? O empregador – consciente do pouco tempo que sobra ao empregado para cuidar de assuntos particulares –, preocupou-se em diminuir as horas de trabalho constantemente exigidas, ou assumiu para si que o seu negócio deveria ser prioritário, ainda que em prejuízo da dignidade do trabalhador? Todas essas questões devem ser verificadas para se determinar se a dignidade da pessoa foi afetada, em vez de se ficar preso a parâmetros ultrapassados construídos à época de um estado autoritário. A falta de visão social de alguns doutrinadores para essa situação – ao não enxergarem o trabalho em condições degradantes ou com jornada excessiva como uma labuta escravizadora -, presos a um formalismo histórico, limitados ao conceito de escravidão tal qual ocorreu no passado, é lamentável e demonstra falta de sintonia com os novos tempos. Portanto, embora tais autores ainda defendam a ideia de que o trabalho escravo requer privação de liberdade e a impossibilidade de rompimento do vínculo laboral (CARVALHO, 2011), não é esse o entendimento aqui alcançado. Essa visão ultrapassada é aqui criticada por ser restritiva e prejudicar o combate aos tipos de trabalho escravo em que a privação de liberdade não é ostensiva. Antes de se prosseguir neste trabalho, esclareça-se aqui que, obviamente, existem outras formas de trabalho escravo, como a prostituição involuntária e a exploração de crianças. As modalidades tratadas com ênfase nesta pesquisa não pretendem exaurir o assunto, mas foram usadas a fim de se alertar para o fato de que nem sempre é tarefa fácil a identificação de uma manifestação de trabalho escravo, devido às suas sutis nuances. 3.4.2 O perigo do retrocesso da legislação Ressalta-se que enquanto firma-se aqui posição favorável à ampliação do entendimento acerca dos aspectos caracterizadores do trabalho escravo, acontece atualmente no Brasil uma disputa política que pode provocar um efeito justamente oposto, por influência de grandes fazendeiros que compõem a ala ruralista e que visam à limitação do conceito de trabalho escravo no Congresso Nacional. O embate ocorre acerca da aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 438/2001 (referência na Câmara dos Deputados), que tramita no Senado Federal sob o nº 57-A/1999, apelidada de PEC do Trabalho Escravo. No dia 05 de novembro de 2013, a matéria tramitava na Subseção de Coordenação Legislativa do Senado, tendo sido incluída na Ordem do Dia da sessão deliberativa ordinária de 06 de novembro de 2013. A explicação da Ementa tem o seguinte conteúdo: “PEC do trabalho escravo – Altera a redação do art. 243 da Constituição Federal, para determinar que as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do país onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. E altera o parágrafo único do mesmo artigo para dispor que todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com a destinação específica, na forma da lei” (PEC…, 1999). De um lado, os ruralistas, cuja representatividade no Congresso Nacional extrapola as bandeiras partidárias e, de outro, os demais setores da sociedade brasileira, que não têm qualquer interesse em ver negligenciada a perpetuação da escravidão no país. Os ruralistas querem – à parte da “PEC do Trabalho Escravo” -, alterar o art. 149 do CPB, retirando a jornada exaustiva e o trabalho degradante do rol de ilicitudes ali tipificadas, fazendo valer o conceito arcaico de escravidão, tal como existe desde a antiguidade. Segundo Santini: “Argumentando que jornada exaustiva e condições degradantes são conceitos subjetivos, os ruralistas defendem que o conceito seja revisto e volte a vigorar a definição que prevê como escravidão apenas os casos em que a submissão se dá com base em violência física direta.” (SANTINI, 2012) A luta empreendida pelos ruralistas é a mesma que no século XIX mobilizou os latifundiários “donos de escravos” pela manutenção de um regime escravocrata que favorecia a produção agrária a baixo custo, sem qualquer preocupação humanitária. Paralelamente à tramitação da PEC do trabalho escravo, no dia 17 de outubro de 2013, a Comissão Mista Especial para Consolidação de Leis e de Dispositivos Constitucionais do Congresso Nacional aprovou o anteprojeto de lei que regula a expropriação de propriedades urbanas e rurais nas quais fique comprovada a exploração de trabalho escravo. Tal anteprojeto visa a dar nova redação à lei 8.527/1991 – que trata da expropriação de terras utilizadas no plantio ilegal de plantas psicotrópicas –, ou mesmo revogá-la. A proposta deverá ser encaminhada ao Senado, já que a última sugestão da comissão foi enviada à Câmara. O periódico on-line do Senado Federal noticiou a tramitação do mencionado anteprojeto. Em um trecho da notícia, percebe-se a vitória parcial do legislador empenhado em defender os interesses dos empregadores que descumprem a lei, em detrimento da proteção à hipossuficiência do trabalhador, como segue: “A proposta define como trabalho escravo, entre outras coisas, a submissão ao trabalho forçado, exigido sob ameaça de punição, com uso de coação. O texto ressalva que “o mero descumprimento da legislação trabalhista” não se enquadra nas definições de trabalho escravo.” (APROVADO…, 2013, grifos nossos). Para ilustrar a fragilidade e limitação do conceito estabelecido no trecho acima, basta imaginar o caso em que o trabalho seja realizado em localidade remota, sem acesso a transporte público e o trabalhador para lá levado não tenha como se retirar, mesmo assim não estará caracterizada a restrição de liberdade, a menos que haja coação expressa. Ainda, se o empregador retém os documentos do trabalhador, não lhe paga salário sob a escusa de que este tem uma dívida em relação a ele; não lhe permite gozar de horas mínimas de descanso interjornadas; não lhe proporciona descanso semanal remunerado; não paga horas noturnas e nem tampouco horas extras, e tal situação se perpetua no tempo, não haverá a caracterização de trabalho escravo, mas mero descumprimento da legislação trabalhista, a não ser que haja coação. Ambas as situações são um disfarce absurdo para encobrir o trabalho escravo. O relator do anteprojeto, senador Romero Jucá (PMDB-RR), disse ter “descartado outra sugestão do governo, que pretendia qualificar como trabalho escravo a submissão a jornada exaustiva. Para o relator, a expressão é genérica demais, possibilitando interpretações variadas.” (APROVADO…, 2013). Ângela de Castro Gomes, citada por Santini, rejeita a ideia de falta de objetividade nos critérios estabelecidos, ao afirmar que:  “Tirar a ideia da jornada exaustiva e do trabalho degradante seria uma perda absolutamente fatal. O trabalho escravo é desumano, e jornadas exaustivas e condições degradantes envolvem uma profunda humilhação que pode levar até à morte. Estamos falando de uma superexploração que põe em risco a vida do trabalhador. A reforma [de 2003] (sic) permitiu uma ação da Justiça do Trabalho e da Justiça Federal muito mais efetiva no que diz respeito a defender as condições de trabalho dignas e decentes que a Constituição garante.” (SANTINI, 2012). Diante das articulações iniciadas pela bancada ruralista, vislumbra-se a possibilidade de também a PEC do Trabalho Escravo trazer retrocessos, caso influencie, por exemplo, a posterior inclusão de dispositivo que altere o art. 149 do CPB, retirando da abrangência do conceito de trabalho escravo o trabalho degradante e a jornada exaustiva. Lembra-se aqui da constante luta dos organismos internacionais para evitar o retrocesso das conquistas sociais, fato que pode acometer o ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que prevaleçam os interesses ruralistas. Ainda que o tipo penal não traga qualquer vantagem social direta, a sua força punitiva inibe diretamente a prática de atos escravagistas, o que se traduz em importante apoio na erradicação do trabalho escravo, constituindo-se, assim, em um passo reacionário o seu estreitamento. 3.5 A problemática acerca do conceito de trabalho escravo A convenção nº 29 da OIT sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório de 1930, estabeleceu que trabalho forçado ou obrigatório, é “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente”. Já foi discutido anteriormente que, mesmo que tenha havido espontaneidade no início, mas posteriormente o indivíduo tenha sido proibido de deixar o trabalho por ameaça de sanção, também estará caracterizado o trabalho forçado.  Portanto, também já foi estabelecido nesta pesquisa que, para a conceituação de trabalho forçado, basta determiná-lo como o trabalho exigido de uma pessoa, sob a ameaça de sanção. Dessa forma, tendo-se como premissa este conceito (que serve de parâmetro ao estudo aqui desenvolvido), outras definições que surjam – mesmo no âmbito de convenções internacionais –, e sejam com ele incompatíveis (sem que o revoguem expressamente, tornando-o mais abrangente e adequado ao modelo de Estado Democrático de Direito), serão consideradas como elaboradas sem a correta técnica, pois não se vinculam à significação originalmente elaborada pela OIT e ainda válida internacionalmente – observados os preceitos de respeito aos direitos humanos. Embora a Convenção nº 29 da OIT de 1930; o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966 da ONU; e a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 da OEA tenham visado à abolição do trabalho forçado, todas elas fizeram as mesmas ressalvas, ao definirem que, para os fins de tais convenções, não poderiam ser considerados trabalho forçado ou obrigatório, os seguintes tipos de trabalho exigidos pelo Estado (em linhas gerais): a) O pequeno serviço considerado obrigação cívica, seja o prestado a uma comunidade, ou ao próprio Estado; b) O trabalho militar obrigatório, ou aquele que o substitua, quando for requerida sua isenção por motivo de consciência; c) O trabalho exigido em casos de urgência, como guerra ou calamidade pública que ameace a existência ou o bem estar da comunidade; d) O trabalho exigido do indivíduo encarcerado por decisão judicial, desde que executado sob a vigilância e a fiscalização do Poder Público. Ora, percebe-se que as ressalvas promovidas em relação a tais tipos de trabalho não querem significar que esses não sejam considerados forçados ou obrigatórios. Por isso se usa as expressões relativizantes “para fins desta convenção”, “no sentido deste parágrafo” e “para os efeitos deste artigo”. Ou seja: são trabalhos forçados, mas que não integram o rol de proibições das respectivas convenções. O real sentido de tais ressalvas é suprimir a proibição em relação aos tipos de trabalho forçado ali listados – quando requeridos pelo Estado -, uma vez que são necessários ao exercício da cidadania e manutenção da soberania estatal. Verifica-se, portanto, que, enquanto qualquer tipo de recurso ao trabalho forçado é vedado aos particulares, há trabalhos forçados que são legitimados aos Estados e não foi objetivo das convenções da OIT, OEA e ONU aboli-los. Mais do que isso, ao defenderem a preservação da dignidade humana enquanto o trabalho forçado fosse exigido, tais convenções acabaram por determinar tacitamente, que deve ser lícita a exigência feita para se forçar o indivíduo ao trabalho, assim como deve também ser lícita a sanção aplicável ao indivíduo. Afinal, o Estado deve se sujeitar ao princípio da legalidade, mesmo quando estiver na posição de supremacia em relação ao particular, pois a defesa do interesse público não autoriza a ilicitude dos atos estatais. Em decorrência desses desdobramentos, percebe-se que não há nenhuma possibilidade de uma pessoa (física ou jurídica) de direito privado exigir trabalho forçado de uma pessoa física, sob a ameaça de uma sanção lícita. Afinal, cabe ao Estado o monopólio do uso da força para aplicar sanções. Sempre que houver submissão de um indivíduo para realizar trabalho por meio de coação que não seja de origem estatal, estará presente a modalidade “trabalho escravo”. Apenas o Estado tem legitimidade para forçar uma pessoa dentro dos limites da lei, preservando sua dignidade, mantendo-a no mesmo nível de igualdade entre os demais indivíduos. 3.6 O trabalho forçado não é espécie de trabalho escravo O CPB dá um tratamento oposto em relação ao aspecto taxonômico, quando a sua classificação de trabalho forçado e trabalho escravo é comparada com aquela adotada pela Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho e seu Seguimento – Sumário Relatório Global 2005 – Uma Aliança Global Contra o Trabalho Forçado. Para o legislador nacional, trabalho forçado é uma das formas de trabalho escravo, conforme se percebe da leitura do art. 149, caput do CPB: “Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.” (BRASIL, 2013b) Mais uma vez far-se-á a análise da espécie em relação ao gênero. Como este estudo adota como conceito de trabalho forçado aquele definido pela Convenção nº 29 da OIT, devidamente limitado pelas imposições que resguardam a dignidade do trabalhador, não há a possibilidade de classificar o trabalho forçado como espécie de um gênero (trabalho escravo) que se caracteriza precipuamente pelo ataque frontal à dignidade humana. Portanto, a espécie “trabalho forçado” não cabe no gênero “trabalho escravo”. Conclui-se, dessa forma, que trabalho forçado e trabalho escravo são dois institutos distintos, que não devem ser confundidos, além de um não ser espécie do outro, uma vez que ambos possuem traços específicos distintos. Ressalta-se, porém, que a falta de precisão técnica com que os dois termos foram e continuam sendo utilizados gera várias dificuldades de interpretação. A maior delas é distinguir entre a denominação oficial dada a uma ocorrência de trabalho forçado ou trabalho escravo e a investigação sobre qual dos dois institutos realmente ocorre em um caso concreto analisado. 3.7 A punição penal contra o trabalho escravo Prado (2010) afirma que para a caracterização do tipo penal “redução a condição análoga a de escravo” o agente pode se utilizar de ameaça, violência ou fraude, desde que sejam idôneos à sujeição do sujeito passivo ao seu domínio. A fraude ocorre no início da ação escravagista, quando os indivíduos iniciam a execução de um trabalho sob as seguintes falsas promessas: salário digno, boas condições de trabalho e prosperidade. A ameaça e a violência são usadas para manter o indivíduo preso ao local de trabalho, uma vez que este já tenha descoberto a fraude pela qual foi enganado.  Entretanto, o tipo penal não determina, muito menos limita os meios pelo qual o agente pode atuar a fim de estabelecer a sujeição do sujeito passivo, podendo esta se dar também por ardil, artifício, imposição de poder econômico, entre outros. Portanto, nada impede que o agir do opressor, impondo-se pelo poder econômico e submetendo o trabalhador ao trabalho degradante ou à jornada exaustiva – sob o argumento de que caso esteja insatisfeito pode pedir demissão -, seja meio idôneo para caracterizar o trabalho escravo. Cabe aqui afastar a questão da negligência, pois se poderia alegar que o sujeito atuaria com mera culpa e haveria o afastamento da tipicidade da conduta, uma vez que o tipo penal contido no art. 149 não prevê a modalidade culposa. No entanto, ainda que não se admita o dolo direto na modalidade em que não há fraude, violência ou ameaça, aquela pessoa que submete outro indivíduo pelo poder econômico, age no mínimo com dolo eventual, pois está totalmente ciente das situações subumanas em que o trabalho é realizado – assumindo, portanto, os riscos de causar danos à saúde do trabalhador –, além de conhecer a condição de fragilidade social do empregado explorado, aproveitando-a como forma de persuasão para manutenção da situação de exploração. Felizmente já há posicionamento recente da Suprema Corte brasileira, alinhado à contemporaneidade e às exigências do Estado Democrático de Direito. Uma denúncia originariamente aceita pela justiça federal de Alagoas foi encaminhada ao STF, devido à diplomação do réu – João José Pereira de Lyra -, como Deputado Federal. O texto abaixo mostra trechos do voto da ministra Rosa Weber, favorável ao recebimento da denúncia contra o acusado, demonstrando um entendimento bastante similar àquele adotado neste trabalho, como segue: “EMENTA PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA. A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. (BRASIL, 2012, p. 26). Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo.” (BRASIL, 2012, p. 27). Portanto, concluo que, para a configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessária a coação física da liberdade de ir e vir, ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas cuja presença deve ser avaliada caso a caso.” (BRASIL, 2012, p. 28). Ao reconhecer que, para a configuração do trabalho escravo basta a submissão da vítima a jornada exaustiva, a condições degradantes de trabalho ou a trabalhos forçados – termo mais uma vez usado inapropriadamente, uma vez que este estudo já determinou a diferença entre trabalho forçado e trabalho escravo -, o STF de algum modo reconhece o dolo do agente escravizador na sua conduta, uma vez que o Direito Penal brasileiro não admite a responsabilidade objetiva. No mesmo acórdão acima, assim iniciou o seu voto – também favorável ao recebimento da denúncia -, o ministro Cezar Peluzo: “Eu vou pedir vênia, então, ao eminente Relator e aos votos que o acompanharam, para receber a denúncia, entendendo, também com vênia ao Ministro Celso de Mello, pois acho que, neste caso aqui, ambos os denunciados tinham o domínio dos fatos. Eles não podiam deixar de conhecer as condições em que os trabalhadores eram postos e, portanto, tinham condições de haver tolhido a prática desse delito, tanto que se comprometeram e, depois, acabaram adotando providências adequadas, segundo o acordo a que fez referência o eminente Relator.” (BRASIL, 2012, p. 60, grifo nosso). Mas o debate a respeito dessa questão ainda parece ser longo, pois ainda há limitações de entendimento que tratam o trabalho escravo contemporâneo de maneira restritiva, ou seja, nos moldes do que foi a escravidão clássica. 4 O TRABALHO PRISIONAL Segundo Foucault (2002, p. 119), “a disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência).” Em que pese a relevância do assunto, este estudo não entrará na discussão sobre o nível de condicionamento da subjetividade humana que o sistema prisional efetua na pessoa presa, afetando a sua consciência. Não é o interesse, neste trabalho, de se pesquisar como o Estado acaba por interferir na esfera de autodeterminação do indivíduo, moldando-o para se tornar alguém a ser socialmente aceito e economicamente produtivo por meio do trabalho. A intenção aqui é verificar em que medida tal trabalho permite ou não que a pessoa viva com dignidade durante o seu período de cumprimento de pena. O Trabalho prisional é regulado pela Lei de Execução Penal – LEP (lei nº 7.210/1984). A importância do trabalho realizado pelas pessoas em cumprimento de pena é que este deveria servir principalmente como função educativa, uma vez que o preso tem a oportunidade de aprender um ofício – “em nível de iniciação ou de aperfeiçoamento técnico” (art. 19 da LEP) – e regressar ao convívio social com uma qualificação profissional. Entretanto, a realidade mostra um horizonte diferente, em que o ideal de recuperação do preso foi trocado pela busca de sociedades empresárias pelo lucro fácil com a mão-de-obra barata e desonerada de encargos sociais. 4.1 Um breve panorama sobre a realidade prisional no Brasil Por força do art. 24 da CRFB-88, “compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico” (BRASIL, 1988). A situação dos presídios estaduais em geral é precária, sendo pior nos estados mais pobres da federação. Com diversas despesas com folha de pagamento dos funcionários públicos; saúde; educação; segurança; infraestrutura; organização dos poderes; entre outras – além do problema crônico da corrupção institucionalizada, que consome um montante representativo de verbas públicas –, a questão carcerária torna-se constantemente negligenciada pelo Poder Público. O retrato dos presídios é o de uma realidade desmotivadora. Exemplo concreto é o Presídio Feminino de Florianópolis, de acordo com Lema (2011) em sua monografia: falta espaço físico e as celas são superlotadas. As mulheres dormem nos corredores do alojamento – pois não há camas para todas. Algumas dividem suas camas. No interior das celas, a quantidade de ratos, baratas e outros insetos é assustadora. Não há ventilação suficiente, o que acarreta em umidade e calor excessivo em determinadas épocas do ano. Não há alojamento individual para a gestante e parturiente. A mãe que amamenta divide uma cama com o bebê no alojamento coletivo e muitas dessas camas são beliches, o que aumenta o risco de acidentes. O mais próximo de um atendimento médico especializado na unidade é a presença de uma técnica de enfermagem que faz a triagem dos casos. As mulheres presas são tratadas aos gritos pelas agentes prisionais, que lhes exigem uma postura de submissão na qual as internas devem andar permanentemente com as mãos para trás e a cabeça baixa. Não podem encarar as funcionárias nos olhos, não podem conversar enquanto passa algum funcionário. Há que se respeitar na prisão, as condições mínimas que protejam a dignidade aos indivíduos encarcerados. A superlotação; as péssimas condições de higiene; a falta de ventilação adequada; a presença de insetos e outras pragas; as doenças contagiosas; as situações de violência iminente e outros fatores degradantes; fragilizam de forma brutal a vida humana. O indivíduo preso sob tais condições não é escravo, mas vive uma situação ainda pior, pois é o próprio homo sacer do antigo Direito Romano, conceito resgatado e difundido por Giorgio Agamben e explicado por Ruiz:  “O homo sacer é a vida desprovida do direito: excluída da lei que a proteja, encontra-se abandonada. Fora do direito a vida perambula na condição de abandono o que a condena a viver na condição de bando. O direito não pode condenar a vida abandonada, mas também não a protege. O homo sacer não pode ser legalmente condenado, mas pode ser impunemente morto. Por isso é pura vida nua. Uma vida que pode ser sacrificada, morta, explorada, sem que nenhum direito a proteja.” (RUIZ, 2011). O Estado em um primeiro momento condena um indivíduo – que considera dotado de autonomia – por ter cometido um crime e depois tenta castrar essa autonomia, como forma de domesticá-lo. Por isso o ambiente prisional é opressor e em geral tenta forçar o indivíduo a agir como um autômato. Obviamente que há indivíduos que resistem a essa sistemática supressora e também há locais em que as facções criminosas se organizam de modo a serem ativas no ambiente prisional, fazendo com que sua atuação seja mais marcante que a opressão estatal, inclusive a ponto de inibí-la. Em geral, a pessoa presa no Brasil não é tratada com respeito à sua integridade física, mental e moral. Por isso, esse indivíduo não consegue retornar algo que seja diferente do descaso, da ira, da violência. A sociedade contemporânea segue promovendo enormes discrepâncias, pois as conquistas sociais não são acessíveis a todas as classes de pessoas. O Estado Democrático de Direito ainda é um conceito que necessita ser fortalecido até o ponto em que seus fundamentos tornem-se mandatórios não somente nos discursos, mas também nas práticas, a ponto de eliminar o Estado de Exceção que ainda prevalece em alguns submundos formados à margem da sociedade pouco inclusiva. O quadro do sistema prisional torna-se ainda pior, devido ao vultoso crescimento da quantidade de pessoas condenadas à pena privativa de liberdade. Os dados acerca do aumento da população carcerária no Brasil são impressionantes. Segundo Wassermann:  “O número de pessoas presas no Brasil cresceu 6% somente nos seis primeiros meses deste ano, intensificando uma tendência que fez do Brasil um dos três países do mundo com maior aumento da população carcerária nas últimas duas décadas. Segundo dados recém-divulgados pelo Ministério da Justiça, o número total de presos em penitenciárias e delegacias brasileiras subiu de 514.582 em dezembro de 2011 para 549.577 em julho deste ano. Uma das principais consequências desse aumento é a superlotação das prisões, já que novas vagas não são criadas na mesma velocidade que o aumento do número de presos. Em julho, havia um déficit de 250.504 vagas nas prisões do país, segundo os dados oficiais. Em 1992, o Brasil tinha um total de 114.377 presos, o equivalente a 74 presos por 100 mil habitantes. Em julho de 2012, essa proporção chegou a 288 presos por 100 mil habitantes. No período, houve um aumento de 380,5% no número total de presos e de 289,2% na proporção por 100 mil habitantes, enquanto a população total do país cresceu 28%.” (Wassermann, 2012, Grifo nosso). Ao se verificar a questão da superlotação carcerária, percebe-se que grande parte do problema tem como causa primária um sistema econômico que promove a distribuição de renda de forma bastante desigual, gerando populações miseráveis e violência. Entretanto, como as políticas de promoção do desenvolvimento social são de complexa implantação, requerem grandes investimentos e demandam muito tempo para mostrarem seus primeiros resultados, torna-se mais fácil para o Estado atacar algumas consequências. Porém, nenhuma solução é alcançada sem um mínimo de vontade política e gasto público. A falta de investimento estatal na construção e manutenção de unidades prisionais apropriadas é um fator que contribui para a superlotação dos presídios. Todavia, o crescimento exagerado da população carcerária também favorece a desorganização, precariedade e superlotação do sistema. Ainda em relação à questão da superlotação dos presídios, essa também se deve, em parte, ao pouco número de indivíduos presos empregados. Afinal, o indivíduo que não trabalha prolonga o seu tempo de cumprimento de pena e de livramento condicional. Portanto, o trabalho do indivíduo preso não é somente uma obrigação imposta a este pelo sistema penitenciário, que decide onde, como e quando cobrar tal trabalho. Mais que isso, é obrigação do sistema penitenciário abandonar seu estado letárgico e tornar-se mais dinâmico, a fim de propiciar trabalho a uma parcela maior da população carcerária, tirando assim os indivíduos da ociosidade para dar-lhes possibilidades concretas de reinserção social, fazendo com que esta expressão não seja apenas um ideal teórico previsto no papel. De acordo com Gomes: “Segundo levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, com dados do InfoPen, apenas 17% do total presos brasileiros exerciam algum tipo de atividade laboral dentro do sistema penitenciário, em 2012. Dos quase 550.000 presos, cerca de 92.000 trabalhavam em atividades dentro dos presídios, 167 para cada grupo de 1.000 presos. Nos últimos 5 anos, o número de presos que trabalham dentro das prisões cresceu 6%, mas a média ainda é baixa: 164 presos cada 1.000 recolhidos.[…] As mulheres, respeitando as proporções dos números, geralmente trabalham mais que os homens: 25% do total de presas estão desenvolvendo alguma atividade laboral dentro dos presídios, enquanto entre os homens a taxa é de 16%. As atividades internas que mais foram desenvolvidas pelos presos em 2012 foram: apoio ao estabelecimento penal (42%), parceria com a iniciativa privada (32%), artesanato (16%), atividade industrial (4%), parceria com órgãos do Estado (4%), parceria com paraestatais (ONGs e Sistema S) (1%) e atividade rural (0,9%).” (GOMES, 2013). Verifica-se assim que, não obstante o fato de a LEP impor à pessoa presa a atividade laboral – como será visto mais adiante -, na prática a grande maioria dos indivíduos presos não trabalha, pois o sistema prisional não consegue gerar emprego para sua população carcerária. Exemplos dessa ineficácia do sistema podem ser vistos em qualquer estado da federação, como é o caso do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, em Goiás:  “O Complexo é formado pela Penitenciária Odenir Guimarães (POG) com 1.600 presos sendo que apenas 149 trabalham, a Penitenciária Feminina Consuelo Nasser com 55 mulheres, das quais 30 trabalham, o Núcleo de Custódia com 71 detentos onde 2 trabalham, o Semi Aberto com 404 presos sendo que 133 trabalham e a Casa de Prisão Provisória (CPP) que abriga 1.303 presos sendo que, destes, 123 exercem atividades.” (RABELO, 2012). Mas os problemas não param na inércia estatal. Muitas vezes, quando há o trabalho prisional, este se resume a tarefas muito simples, que não estimulam os indivíduos ao trabalho, além de não servirem como aprendizado profissionalizante para uma vida após o cumprimento da pena privativa de liberdade. De acordo com Zackseski:  “O trabalho prisional desenvolvido no Presídio Feminino de Florianópolis, à época da pesquisa, limitava-se a duas atividades: colagem de alças de cordas em sacos de carvão da marca “Boi na Brasa” e a confecção de cabos telefônicos para a Telebrás. As sacolas de carvão chegavam vazias e prontas da gráfica, cabendo às detentas confeccionarem as cordas feitas de sisal e as colarem nas sacolas. Quanto a confecção dos cabos telefônicos, as peças já chegavam prontas, bastando apenas encaixá-las, com algum instrumento que servisse como um martelo. O trabalho era invariavelmente manual e não oferecia qualquer atrativo, sendo caracterizado pela monotonia e repetição. Como se nota, nada profissionalizante, como na teoria propõe o sistema penitenciário, para reintegrar o preso à sociedade. Para a pesquisadora a presa continua a reproduzir na prisão um estilo de vida ligado a um tipo de trabalho caracteristicamente feminino o que, de fato, não lhe permite disputar melhores colocações no mercado de trabalho, ao reencontrar a liberdade. As presas que possuíam uma condição financeira um pouco melhor costumavam não trabalhar. Seus comentários, registrados pela pesquisadora, transmitiam o preconceito de que trabalho braçal é para pobre, reproduzindo as noções de classe social presentes na sociedade extramuros, herança do sistema escravista18. Para outras o trabalho prisional servia como uma forma de “ajudar a passar o tempo”. Não há o menor interesse em ensinar aos detentos, em geral, ofícios que lhes possam valer no mundo livre, não há qualquer empenho em estimular o gosto pelo trabalho, consideradas as tarefas oferecidas. Ocorre, por exemplo, o treinamento de internos para a utilização de equipamentos que não são mais usados na indústria, o que acaba por desperdiçar este tipo de aprendizagem prática.” (Zackseski, 2001, p. 5). Portanto, ainda que colocado em prática, muitas vezes o trabalho prisional não corresponde ao interesse social de profissionalizar o indivíduo encarcerado para que este tenha condições de se ressocializar após o cumprimento da sua pena. As aptidões e a capacidade de trabalho do indivíduo preso são determinadas por uma Comissão Técnica de Classificação multidisciplinar (CTC). Em toda unidade prisional deve existir uma CTC, cujas atribuições e composição são estabelecidas pela LEP, nos seus artigos 5º a 9º, 96 e 87. A classificação visa à orientação da individualização da execução penal e constará de exames gerais, além de um criminológico, a fim de se traçar um perfil do indivíduo. Nas palavras de Nucci (2010, p. 471), “desvenda-se a aptidão e conhece-se a capacitação do condenado para o exercício de atividades no estabelecimento prisional.”  Portanto, é o resultado da avaliação analisada pela CTC que vai determinar a possibilidade de o indivíduo preso vir a trabalhar e o tipo de trabalho a ser realizado durante o cumprimento de sua pena. Segundo Pelegrino e Santos (2008), a análise da experiência profissional pregressa e dos interesses do sentenciado, o tempo da pena, a conduta carcerária, o perfil psicológico, a vida social, o grau de instrução e outras informações, é que permitem o melhor encaminhamento do indivíduo para o trabalho mais adequado, conforme determina o art. 31 da LEP. 4.2 O trabalho da pessoa presa: trabalho forçado, escravo ou decente? Em síntese, o trabalho forçado (ou obrigatório) é aquele exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção. Neste, a dignidade humana deve ser respeitada, ao mesmo tempo em que a sanção deve ser lícita. Portanto, ao tornar obrigatório o trabalho do indivíduo preso, impondo-lhe sanções pelo seu não cumprimento, a LEP aparentemente está ordenando a esta pessoa que realize um trabalho prisional forçado. Entretanto, para que o trabalho seja forçado, requer-se que seja preservada a dignidade do trabalhador. A LEP, ao estabelecer que o trabalho do preso não será alcançado pelo regime da CLT, além de fixar um salário mínimo mensal abaixo daquele que é praticado em todo o território nacional, simplesmente ignora a dignidade do trabalhador, negando-lhe os direitos sociais do trabalho constitucionalmente garantidos. Conclui-se então, que o trabalho prisional, uma vez que seja organizado nos moldes da LEP não será forçado, mas escravo. Apesar de ser lícita a sanção imposta, o Estado estará permitindo que o preso seja atingido por condições degradantes de trabalho, devido à perda de direitos sociais constitucionalmente estabelecidos e à percepção de um salário abaixo do valor mínimo necessário ao sustento de sua família. Nos regimes semiaberto e fechado, o consentimento do indivíduo será sempre necessário quando houver intermediação do Estado para disponibilizar uma vaga de trabalho junto ao setor privado, por força do art. 36, § 3º da LEP. Haverá também consentimento, quando o estabelecimento prisional, frente a poucas ofertas de vagas de trabalho e um grande contingente de mão-de-obra em potencial, não usar meios de coação (pela desnecessidade), mas selecionar trabalhadores dentro daquele universo de pessoas presas, predispostas a trabalhar. Entretanto, ainda que haja consentimento, mas não sejam atendidas as condições mínimas de garantia da dignidade humana, estará configurado o trabalho escravo. Isso porque o consentimento, conforme já estudado anteriormente, não afasta a caracterização do trabalho escravo. Muitas vezes, a concordância do indivíduo dá-se pela falta de opções frente à sua realidade de vida, fazendo com que ele se submeta às condições de trabalho existentes, por uma questão de sobrevivência. É um desafio sobreviver no ambiente prisional, que atenta contra a integridade física e mental do indivíduo. A distância da família; o confinamento; a falta de liberdade e de vida privada; as doenças e a violência iminente são fatores que fazem com que o indivíduo realize sacrifícios para deixar aquele ambiente hostil o mais rapidamente possível. O trabalho é o modo mais rápido para se atingir esse fim, já que a remição permite que a cada três dias trabalhados, seja reduzido um dia na pena. O trabalho, entretanto, não será considerado escravo nas situações em que o contrato é negociado diretamente entre empregado e empregador – como em geral acontece no regime aberto. Neste caso, o indivíduo atua no exercício da sua autonomia de vontade. A sua atividade será considerada um trabalho decente, sempre que não atentar contra a sua dignidade. O trabalho dos presos colabora com a luta contra o ócio prisional e com a consequente manutenção da saúde mental do indivíduo encarcerado, evitando que ele fique em total inatividade durante várias horas diárias em um ambiente fechado. É, portanto, atividade salutar, desde que preservada a dignidade humana. Mesmo assim, há quem critique esse trabalho, afirmando tratar-se de mero instrumento a serviço do capitalismo. Neste sentido, Nicoli apresenta uma crítica contundente e irônica do trabalho prisional:  “Também através (sic) do discurso de manutenção e atualização da capacidade produtiva do condenado, ganha força a faceta utilitária do trabalho prisional. Nesse sentido, o desempenho de atividades similares àquelas exercidas no mercado de trabalho além muros, durante o período da execução penal, mantém mais altas as chances de o interno ser reintegrado à estrutura produtiva quando regressar à liberdade. A criação de redutos produtivos assemelhados àqueles da realidade social externa teria, assim, função de extrema valia. E, para desempenhar tal mister de capacitação e atualização da força produtiva, o capital privado tenta se vender como a solução por excelência. Afinal, dirão os partidários, quem melhor do que aquele que define rumos do mercado externo para manter a realidade do trabalho carcerário em estado de compatibilidade? Por fim, a lógica da defesa do trabalho prisional encontra na necessidade de manutenção da família do preso e na indenização das vítimas outro ponto de apoio. Tal argumento pode ser extremamente persuasivo, por ter forte carga moral.” (NICOLI, 2008, p. 12). Em que pesem as críticas – que tampouco oferecem soluções alternativas –, o trabalho prisional é capaz de promover a ressocialização do indivíduo, mas requer, para isso, que a dignidade humana seja sistematicamente preservada. O texto constitucional, em seu art. 5º, inciso XLVII, proíbe penas de trabalho forçado, o que aparentemente tornaria o trabalho prisional forçado, uma prática inconstitucional, ainda que fosse mantida a dignidade do indivíduo que realiza tal atividade laboral. Cabe então aqui, uma discussão acerca do que é entendido pelo legislador constituinte como trabalho forçado. Forçar é constranger alguém a algo, obrigar, compelir. Portanto, trabalho forçado nada mais é que trabalho obrigatório. Entretanto, uma vez que várias nações em épocas passadas – e ainda algumas nos dias atuais, como é o caso da China (GOUVÊA, 2013) -, fizeram ou fazem uso de trabalho exaustivo e degradante, que inflige sofrimento, dor física e cansaço aos indivíduos condenados, sob a denominação de trabalho forçado, quis-se evitar a repetição desse modelo de perversidade por parte do Estado Brasileiro. Na verdade, o termo “trabalho forçado” está equivocado, pois se trata de trabalho escravo, uma vez que a integridade do indivíduo preso é brutalmente atingida. As pessoas encarceradas sob esse regime são tratadas como simples fonte de mão-de-obra, pois visam aos fins estatais. Em regra, ou era imposto um trabalho improdutivo – sem sentido, com o objetivo único de gerar sofrimento ao indivíduo -, ou então um trabalho que atendesse às necessidades de desenvolvimento do Estado. As pessoas não eram tratadas como tais, mas como um elemento de um meio de produção extremamente cruel. Nesses países ocorria na prática, o trabalho escravo em sua forma extrema, pois em geral o escravizador privado tem o interesse de manter o escravo vivo para lhe gerar resultado, apesar de toda a crueldade existente contra este. Já em relação ao indivíduo condenado e escravizado pelo Estado não existia essa preocupação, pois caso ele viesse a morrer nos campos de trabalho, poderia ser facilmente substituído, além de ser considerado um estorvo a menos para o país. Assim, entende-se que a CRFB-88 não vedou o trabalho forçado no sentido que foi adotado neste trabalho – com privação da liberdade de escolha em relação ao trabalho, e manutenção de todos os demais fundamentos da dignidade humana. Um argumento que corrobora tal opinião é o fato de a legislação nacional impor algumas formas de trabalho forçado ao cidadão livre, como é o caso dos mesários, dos jurados involuntários e dos jovens recrutados para o serviço militar obrigatório. Portanto, não faria sentido a existência de qualquer óbice de se impor ao indivíduo preso, um trabalho forçado nesses moldes. Outro fator que respalda essa tese é o fato de que a própria ONU estabeleceu nas “Regras Mínimas para o Tratamento dos Prisioneiros” – adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinquentes, realizado em Genebra, em 1955 -, a obrigatoriedade do trabalho aplicável a presos condenados na regra número 71, 2, segundo a qual “Todos os presos condenados deverão trabalhar, em conformidade com as suas aptidões física e mental, de acordo com a determinação do médico.” Lembra-se aqui que a ONU é a organização internacional máxima de referência na defesa da dignidade humana, desde a proclamação pela sua Assembleia Geral em 10 de dezembro de 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos – documento que serve de referência a todos os tratados que o sucederam e a constituições nacionais recentes (inclusive a brasileira). Portanto, o que a CRFB-88 quis realmente impedir, foi uma punição com características de trabalho escravo. Sempre que esse tipo de punição foi aplicado, a pena principal foi o sofrimento físico, enquanto o encarceramento era apenas um meio de impedir a fuga do indivíduo condenado, de modo a garantir assim a aplicação da pena física. O trabalho forçado tal qual se admite aqui, é aquele trabalho inserido na pena privativa de liberdade, acessório desta, que serve à capacitação profissional da pessoa, assim como à sua ressocialização. Assim, conclui-se que o trabalho prisional forçado não seria um problema constitucional. O problema é que a LEP transformou o que deveria ser trabalho forçado, em trabalho escravo, por meio das disposições contidas nos seus artigos 28 e 29. Duas são as dificuldades para que o trabalho do preso ocorra em condições dignas: o texto da LEP, em total falta de sintonia com a questão de preservação dignidade humana, e a degeneração do sistema prisional. Esta última diz respeito à falta de empenho dos poderes; à má estruturação do sistema carcerário; à questão da superlotação das celas; ao ambiente deteriorado, à falta de padronização sistemática do sistema penal; ao baixo salário pago aos agentes penitenciários e ao seu pouco preparo. Esses problemas, entre outros, transformam as prisões em ambientes de constante tensão e bastante fecundos à propagação de doenças, do descaso, da tirania, do terror e da corrupção, dificultando assim a coordenação eficaz e educadora do trabalho do preso. Nas palavras de Maturana: “Ocorre que, em face da notória falência do sistema carcerário nacional, o Estado tem deixado de lado o propósito educativo-regenerativo, para – sob o pálio de combater o ócio -, apenas oferecer mão-de-obra carcerária barata a terceiros, o que o faz em desobediência às normas de regência e em detrimento dos direitos dos próprios encarcerados e dos trabalhadores que compõem a sociedade livre.” (MATURANA, p. 376, 2001). Tais desvios promovidos pelo sistema mal estruturado, sem padronização, arcaico e deteriorado, também reforçam o ataque à dignidade humana. 4.2.1 A recusa ao trabalho Além de ocupar parte do tempo ocioso do indivíduo preso e lhe ensinar um determinado ofício, possibilitando-lhe a promoção da ressocialização, outro benefício do trabalho prisional – uma vez que seja realizado em condições dignas -, é a possibilidade de redução da pena. De acordo com o art. 126 da LEP, parte do tempo de execução da pena poderá ser remido por meio do trabalho, pela pessoa condenada que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto. Nos termos do art. 126, § 1º, II da LEP, a cada três dias de trabalho o indivíduo preso reduz um dia da sua pena privativa de liberdade. Tal contagem somente leva em consideração os dias efetivamente trabalhados. É necessário lembrar que a remição não é um direito produzido automaticamente pelo trabalho. Para que haja o desconto no tempo de pena, é preciso a declaração expressa do juiz da execução, por força do art. 66, III, “c” da LEP. Ressalta-se que o tempo remido pode ser revogado em parte, conforme fixado no art. 127 da LEP (em casos de falta grave), também somente por força de decisão judicial. Segundo Cardoso (2011, p. 92), “o fato de optar por não trabalhar não importará em falta disciplinar ou no aumento de pena”. Em relação à falta disciplinar, não é esse o entendimento que se tem neste trabalho, pelo disposto nos artigos 39, V e 50, VI; ambos da LEP:  “Art. 39. Constituem deveres do condenado:[…] V – execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas; (BRASIL, 1984). Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que:[…] VI – inobservar os deveres previstos nos incisos II e V, do artigo 39, desta.” (BRASIL, 1984). Portanto, negar-se a trabalhar é falta definida pela LEP como grave. Ressalta-se, entretanto, que tal obrigação alcança somente o trabalho realizado em benefício do Estado. O trabalho para uma entidade privada específica não é obrigatório, devendo o preso consentir em relação a esse (art. 36, § 3º da LEP). As formas de punição são fixadas pelo art. 53 da LEP, entre as quais consta que: “Art. 53. Constituem sanções disciplinares:[…] III – suspensão ou restrição de direitos (artigo 41, parágrafo único);” (BRASIL, 1984). A punição prevista no inciso III do art. 53 acima permite ao diretor do presídio a suspensão ou restrição dos seguintes direitos aos indivíduos presos: “Art. 41 – Constituem direitos do preso:[…] V – proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação;[…] X – visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados;[…] XV – contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.[…] Parágrafo único. Os direitos previstos nos incisos V, X e XV poderão ser suspensos ou restringidos mediante ato motivado do diretor do estabelecimento.” (BRASIL, 1984). Dessa forma, percebe-se claramente que a pessoa presa é obrigada à atividade laboral, caso contrário poderá ter restrito ou suspenso o seu tempo de recreação; a visita do seu cônjuge, companheiro (a), familiares ou amigos; o direito a enviar e receber correspondências; além do o acesso a jornais, revistas e livros. Nucci afirma que:  “O Estado não pode forçá-lo a cumprir qualquer atividade, tarefa ou ordem, mediante punição (como, por exemplo, a inserção em solitária), mas tem o direito de considerar sua atitude inercial como falta grave […] assim ocorrendo, deixará o preso, no futuro, de receber benefícios, v.g., a progressão para regime menos gravoso.” (NUCCI, 2010, p. 478). Conclui-se assim, que o trabalho prisional em prol do Estado é hoje um dever, requerendo a imposição de penalidades pelo seu não cumprimento. Será também um direito, no sentido amplo, quando alcançar a proteção à dignidade do trabalhador. Outras consequências alcançam o indivíduo encarcerado que se nega ao trabalho. O art. 112 da LEP estabelece o seguinte:  “Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. […] § 2o Idêntico procedimento será adotado na concessão de livramento condicional, indulto e comutação de penas, respeitados os prazos previstos nas normas vigentes.” (BRASIL, 1984, Grifos nossos). Portanto, a recusa ao trabalho também poderá ser considerada mau comportamento e levar à perda dos seguintes direitos: progressão do regime, livramento condicional, indulto e comutação da pena. No mesmo sentido, corrobora Nucci (2010, p. 468), citando ainda a possibilidade de perda dos dias remidos pelo trabalho. 4.3 Os diferentes regimes de cumprimento de pena Antes de seguir com a análise aqui desenvolvida, faz-se necessário diferenciar em linhas gerais, os regimes penais. Regime fechado é aquele em que o indivíduo condenado cumpre a pena em estabelecimento de segurança máxima ou média, conforme o art. 33, § 1º, “a” do CPB. Tal regime obriga à pessoa presa o trabalho em comum dentro do estabelecimento penal, levando-se em conta suas aptidões ou ocupações anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena. O indivíduo deveria ficar sujeito ao isolamento durante o período noturno, o que na prática é impossível, devido à superlotação dos presídios. As pessoas que cumprem pena sob este regime não têm direito a frequentar cursos de instrução ou profissionalizantes. De acordo com o art. 33, § 1º, “b” do CPB considera-se “regime semiaberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar”. No regime semiaberto não há a previsão original de isolamento durante o repouso noturno. O condenado tem direito de frequentar cursos profissionalizantes, de instrução de 2º grau ou superior. A distinção entre os trabalhos realizados externamente nos regimes semiaberto e fechado, é que não há necessidade de vigilância direta em relação aos trabalhadores, no caso do regime semiaberto (PELEGRINO; SANTOS, 2008, p. 105). O regime aberto é regulado pelo art. 36 do CPB. De acordo com o art. 33, § 1º, “c” do CPB, considera-se “regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado”, locais onde o indivíduo deve passar a noite, após retornar da atividade laboral. 4.4 O trabalho externo A LEP estabelece dois tipos de trabalho: o trabalho externo e o interno. De acordo com o art. 31, parágrafo único da LEP, ao preso provisório é vedado o trabalho externo. O indivíduo precisa trabalhar para se manter no regime aberto, conforme preceitua o art. 114 da LEP: “Art. 114. Somente poderá ingressar no regime aberto o condenado que: I – estiver trabalhando ou comprovar a possibilidade de fazê-lo imediatamente;” (BRASIL, 1984).  Assim, para permanecer no regime aberto o indivíduo deve estar trabalhando – no caso em que ingressa já empregado no regime aberto -, ou deve demonstrar que tem a capacidade de fazê-lo – situação na qual está desempregado, mas demonstra dedicação para conseguir novo emprego. Portanto, se o indivíduo simplesmente não quiser trabalhar, não poderá gozar do regime aberto. Entretanto, de acordo com o art. 117 da LEP, a pessoa condenada maior de setenta anos; o condenado acometido de doença grave; a condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental; e a condenada gestante; podem cumprir o regime aberto em residência particular. Leal (2004a) afirma que o trabalho externo, seja em atividade pública ou privada (desvinculada da administração penitenciária), constitui-se no fundamento do regime aberto. Nos regimes semiaberto e fechado, o trabalho externo também é permitido em caráter de exceção, uma vez que a regra é o trabalho interno. Ainda assim, o trabalho externo é exigido do preso, sempre que for requisitado em benefício da Administração Pública. Mediante consentimento, o indivíduo pode prestar serviços externos também para a iniciativa privada. A pessoa presa em regime semiaberto deve realizar trabalho externo somente quando não existir um estabelecimento penal adequado ao cumprimento da sua pena, que possibilite o trabalho interno conforme o art. 33, § 1º, “b” do CPB e o art. 91 da LEP. No regime fechado, tratando-se de trabalho externo, o número máximo de indivíduos presos trabalhando em um local deve corresponder a dez por cento do total de empregados naquela obra. O art. 37 da LEP afirma que a “prestação de trabalho externo, a ser autorizada pela direção do estabelecimento, dependerá de aptidão, disciplina e responsabilidade; além do cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena.” (BRASIL, 1984). Há consenso na doutrina a respeito da necessidade de cumprimento prévio de um sexto da pena para que se tenha o direito ao trabalho externo no regime fechado. Entretanto, no que diz respeito ao regime semiaberto, há quem defenda a ideia de que não há sentido em se cumprir previamente o prazo mínimo de um sexto da pena, para que se tenha direito ao trabalho externo. Afinal, se a pessoa tiver que esperar tal prazo – quando este for autorizado -, já fará jus à transferência para o regime aberto. 4.5 O trabalho interno O trabalho interno é obrigatório para o preso condenado e opcional para o preso provisório, por força do art. 31, caput da LEP. É uma atividade típica dos regimes semiaberto e fechado. No regime semiaberto, o estabelecimento apropriado ao cumprimento da pena deve ser uma colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar. Essa é a regra. Entretanto, devido à falta de estrutura do sistema penal no país, não há disponibilidade suficiente deste tipo de unidade prisional. Assim, muitos indivíduos condenados ao regime semiaberto cumprem suas penas em penitenciárias, o que é criticado por alguns autores, como é o caso de Leal, segundo o qual: “[…] no caso de inexistência de Colônia Penal (sic), fato comum na práxis da execução penal brasileira, cabe ressaltar que o regime semi-aberto (sic) não pode ser cumprido em penitenciária, que é o estabelecimento penal adequado para o cumprimento de pena reclusiva em regime fechado.” (LEAL, 2004b, p. 59). Ainda segundo Leal: “O que não é admissível é denominar “pavilhões”, espaços anexos ou “alas” de penitenciárias com o rótulo oficial de Colônia Penal Agrícola ou Industrial (sic), para ali improvisar um espaço penal destinado aos condenados em regime semiaberto. Lamentavelmente, é o que vem ocorrendo em muitos Estados (sic) brasileiros, o que representa um verdadeiro “desvio de execução” (art. 185 da LEP), institucionalizado com a chancela de muitos juízes da execução penal.” (LEAL, 2004a, p. 51). Entretanto, o art. 34 da LEP, § 2º, afirma que “os governos federal, estadual e municipal poderão celebrar convênio com a iniciativa privada, para implantação de oficinas de trabalho referentes a setores de apoio dos presídios.” (BRASIL, 1984). Assim, entende-se serem permitidas tais oficinas. Em relação ao assunto Pelegrino e Santos informam que: “Apesar de haver a previsão sobre a possibilidade do (sic) Poder Público celebrar convênios com a iniciativa privada, para a implantação de oficinas de trabalho, há a necessidade de que o assunto seja regulamentado, constando todas as diretrizes para o procedimento desses convênios.” (PELEGRINO; SANTOS, 2008, p. 106). Nucci (2010, p. 473), por sua vez, restringe-se a um breve comentário, segundo o qual “a responsabilidade pelo trabalho do preso é do Poder Público, que pode até se valer da iniciativa privada, por convênios, para tanto, remunerando-se o preso e arrecadando-se valores ao próprio ente estatal.” Com a adoção dessa modalidade de trabalho interno para a iniciativa privada, percebe-se na prática, que os presos em regime semiaberto e fechado têm sido tratados quase que sem diferenciação pelo sistema carcerário brasileiro. Afinal, devido à falta de unidades prisionais específicas para o regime semiaberto, o indivíduo condenado a este regime não tem onde cumprir sua pena, senão em uma penitenciária, que, todavia, é o local de cumprimento de pena no regime fechado. Consequentemente, o indivíduo que pertence ao regime semiaberto deveria ser então liberado para o trabalho externo; mas em vez disso, a direção do presídio instala estabelecimentos privados em seus domínios, a fim de fazer com que esse indivíduo realize um trabalho interno. Um exemplo disso ocorre em Aparecida de Goiânia, conforme informação de Rabelo:  “Incapaz de oferecer oportunidade de trabalho para o total de 3.433 presos que integram o Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, a Agência Goiana do Sistema de Execução Penal (Agsep) tenta avançar gradativamente com projetos que levam indústrias para dentro do complexo. […] No Complexo estão instaladas indústrias de embalagens, de feitura de orelhões, roupas, cadeiras de rodas, bolas, redes, blocos de cimento e peças plásticas.” (RABELO, 2012). A solução de trazer instalações industriais privadas para o interior dos presídios gera indesejáveis consequências. Atraídos pelo alto corte de custos que o trabalho prisional pode proporcionar – em virtude da não percepção de qualquer benefício trabalhista, além do pagamento de um salário abaixo do mínimo -, as sociedades empresárias buscam a maximização de seus lucros. O trabalho prisional desvirtua-se assim, de seu ideal nobre de reeducação e do seu papel de reinserção social do indivíduo encarcerado, passando a ser mero meio de produção para o sistema capitalista e tendo como efeito colateral um trabalhador desprovido de direitos sociais. Pela pouca complexidade dos trabalhos desenvolvidos nessas oficinas, percebe-se que não há qualquer preocupação com a capacitação profissional do preso, a fim de que esse possa desenvolver atividades mais elaboradas e qualificadas, com chances reais de ser competitivo no mercado de trabalho, em sua vida pós-cárcere. 4.6 O trabalho do preso e a Consolidação das Leis Trabalhistas Muitas são as vozes que se manifestam contra a falta de proteção dada ao trabalho do preso pela LEP. O dispositivo mais criticado é o art. 28, § 2º, segundo o qual, o trabalho do preso não está sujeito ao regime da CLT. O art. 29, caput, também é polêmico, ao permitir que o indivíduo preso receba um salário correspondente a apenas setenta e cinco por cento do salário mínimo nacional. A principal alegação é de que tais dispositivos são inconstitucionais, por não terem sido recepcionados pela CRFB-88. De fato, há que se ter algum estímulo às entidades privadas, a fim de que estas aceitem o trabalho de um indivíduo que teve sérios problemas com a lei, a ponto de ter sido condenado a uma sentença privativa de liberdade. Existe um preconceito natural em relação à pessoa condenada, uma vez que esta rompeu com regras de um ordenamento jurídico, causando um distúrbio social momentâneo, para o qual houve a necessidade de acionamento do Direito Penal como ultima ratio para restaurar a paz coletiva. Demonstra-se, com isso, que o indivíduo condenado praticou uma ação e obteve um resultado cujos valores são percebidos pela sociedade como negativos em relação ao comportamento que se espera das pessoas. É o que parte da doutrina chama de desvalor da ação e desvalor do resultado. Como a relação entre empregado e empregador é intuitu personae – em que a prestação de serviços, portanto, deve ser pessoal -, obrigatoriamente há um vínculo mínimo de confiança inicial entre ambos, que se desenvolverá ainda mais ao longo da relação empregatícia. O indivíduo condenado traz em seu histórico um antecedente penal, não inspirando assim, a confiança imediata do empregador e de seus possíveis colegas de trabalho. Por tal razão, poucas são as oportunidades de trabalho dadas aos indivíduos que cumprem pena privativa de liberdade. Entretanto, não pode o indivíduo ser maculado eternamente por uma ação pela qual já responde com duras consequências para a sua vida. Afinal, ainda que a justificativa seja meramente pragmática, livre de qualquer intenção humanitária ou de solidariedade, as chances profissionais dadas à pessoa presa apresentam um risco social infinitamente menor do que a indiferença. Esta sim faz com que tal pessoa desamparada e sem perspectivas, retorne ao crime tão logo ganhe a liberdade. A reincidência criminal é grande e a sociedade, ainda que não seja movida por ideais de bondade e altruísmo, deve começar a ter em mente que um indivíduo a menos no crime, corresponde a alguns crimes a menos contra essa mesma sociedade. Enquanto essa reflexão não ganha alcance amplo, continua havendo grande dificuldade em se inserir um indivíduo preso em um ambiente com trabalhadores livres. Há o medo, a preocupação e o preconceito destes em relação àquele. Some-se a isso a dificuldade logística e o custo para o estabelecimento prisional fornecer o transporte diário de ida e volta dos trabalhadores presos e garantir a segurança no estabelecimento empresarial durante a jornada de trabalho. Surge então a LEP em 1984 – talvez considerando a dificuldade de reinserção da pessoa encarcerada no mundo do trabalho e tentando gerar incentivos à iniciativa privada –, afastando o alcance da CLT aos indivíduos em cumprimento de pena privativa de liberdade. O resultado foi o surgimento de uma forma de trabalho ainda mais hipossuficiente que aquela existente entre o empregador e o empregado livre. A grande discrepância entre o regime da CLT e aquele previsto na LEP cria dois problemas: primeiramente, os trabalhadores livres tornam-se, comparativamente, muito mais onerosos que os indivíduos encarcerados, o que faz com que ocorra uma concorrência desleal destes em relação àqueles – uma vez levadas a cabo as disposições sobre o trabalho constantes na LEP. Em segundo lugar, o trabalhador preso não recebe nenhum dos benefícios trabalhistas que são frutos de conquistas sociais ao longo dos anos, o que torna a sua situação social muito mais frágil que aquela do trabalhador em liberdade. A LEP permite assim, o surgimento do trabalho escravo prisional – assim considerado tendo-se como fundamento as convenções aqui estudadas, seus desdobramentos lógicos e o princípio da dignidade da pessoa humana. É válido que sejam criados incentivos a fim de se tornar atraente o investimento em mão-de-obra encarcerada. O que é equivocado, entretanto – tendo-se como parâmetro o Estado Democrático de Direito e o princípio da dignidade da pessoa humana -, é afastar qualquer tipo de trabalho da proteção dos direitos sociais do trabalho, constitucionalmente garantidos. De acordo com Gomes e Santos:  “O trabalho, para ser digno e compatibilizado com a ordem constitucional, precisa contar com todos aqueles mecanismos de proteção ao sujeito hipossuficiente da relação de emprego, garantindo-se a observância de todos os direitos que são dedicados aos trabalhadores urbanos e rurais.” (GOMES; SANTOS, 2011, p. 205). No mesmo sentido, Boness já afirmava que:  “Eleitos hoje, nos termos da vigente Carta Magna, como fundamento da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, os dispositivos da lei de Execuções Penais (sic), estabelecendo que o trabalho do preso não se sujeita ao regime celetista, não tem mais guarida em nosso ordenamento jurídico.” (BONESS, 1998). Portanto, caso o Estado queira conceder incentivos às sociedades empresárias para aceitarem o emprego de mão-de-obra carcerária, a melhor forma de fazê-lo seria por meio de incentivos fiscais. No regime aberto, é notória a aplicabilidade da CLT. Existe uma relação de emprego clara entre o trabalhador e o empregador. Não há qualquer intermediação do Poder Público para que o indivíduo tenha acesso a um trabalho remunerado. Inclusive, o indivíduo que já trabalhava à época do início de cumprimento de pena, sequer tem qualquer razão para romper o vínculo empregatício, podendo dar continuidade ao seu trabalho. A posição adotada neste trabalho segue a corrente doutrinária que considera o art. 28, § 2º e art. 29, caput da LEP não recepcionados pela CRFB-88. Além disso, o STF já determinou que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, que não sejam referendados pelo Congresso Nacional na forma prevista no art. 5º, § 3º da CRFB-88, terão status de norma supralegal. Em caso de conflito com normas infraconstitucionais que não gozem de tal status, os tratados devem prevalecer, tornando tal legislação inaplicável. Portanto, ainda que se considere que a LEP tenha sido plenamente recepcionada pela CRFB-88, seus artigos acima mencionados serão inaplicáveis, por conflitarem com o art. 14, 1 da Convenção nº 29 da OIT sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório; com o art. 6º, 2, parte final, do Pacto de San José de Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969); e do art. 7º, “a” do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, que dispõem o seguinte:  “Artigo 14 1. Com a exceção do trabalho forçado ou obrigatório a que se refere o Artigo 10º desta Convenção, o trabalho forçado ou obrigatório, em todas as suas formas, será remunerado em espécie, em base não-inferior á (sic) que prevalece para espécies similares de trabalho na região onde a mão-de-obra é empregada ou na região onde é recrutada, prevalecendo a que for maior.” (CONVENÇÃO nº 29…, 1930, grifo nosso). “Artigo 6º – Proibição da escravidão e da servidão 1. Ninguém poderá ser submetido a escravidão ou servidão e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas. 2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Nos países em que se prescreve, para certos delitos, pena privativa de liberdade acompanhada de trabalhos forçados, esta disposição não pode ser interpretada no sentido de proibir o cumprimento da dita pena, imposta por um juiz ou tribunal competente. O trabalho forçado não deve afetar a dignidade, nem a capacidade física e intelectual do recluso.” (CONVENÇÃO…, 1969, grifos nossos). “Artigo 7.º Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem em especial: a) Uma remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os trabalhadores; i) Um salário equitativo e uma remuneração igual para um trabalho de valor igual, sem nenhuma distinção, devendo […] (PACTO…, 1966) ii) Uma existência decente para eles próprios e para as suas famílias, em conformidade com as disposições do presente Pacto;” (PACTO…, 1966, grifos nossos). Assim, nos regimes semiaberto e fechado, o correto seria que, sempre que houvesse disponibilidade de trabalho, a intermediação da mão-de-obra devesse ser feita por meio da iniciativa privada, que manteria com o trabalhador preso uma relação de emprego ou análoga, garantindo-lhe os direitos sociais do trabalho. As verbas às quais o empregado tem direito – descontadas as eventuais indenizações impostas pela sentença condenatória -, seriam depositadas na sua conta-poupança, ou destinadas à sua família. Os serviços poderiam ser prestados tanto à iniciativa privada, quanto à Administração Pública. Após analisar a questão do afastamento da CLT nas relações de trabalho prisional, em um de seus julgados o Tribunal Superior do Trabalho (TST) asseverou: “O pedido de reconhecimento de relação empregatícia, em que o prestador de serviços é réu-preso, encontra óbice intransponível na normatização legal em vigor. A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210 /84), ao cuidar do trabalho do réu-preso e suas consequências jurídicas, deixa explicitado que não se sujeita à CLT e Legislação Complr (sic) (art. 28, § 2º), mas que objetiva, dentre outros, possibilitar sua recuperação, através de processo socioeducativo e produtivo, para que possa ser reintegrado à sociedade. Por isso mesmo, a contraprestação remuneratória pelo trabalho que executa não possui o significado técnico-jurídico de salário, daí a impossibilidade de se reconhecer, em relação ao tomador de seus serviços, um contrato de trabalho com suas consequências trabalhistas.” (BRASIL, 2011a). Segundo Santos (2011, p. 103), os tribunais precisam adotar uma concepção de direitos humanos que seja contrária à posição hegemônica e liberal, praticando a indivisibilidade desses direitos. Devem evitar o direito que se autocontempla em proclamações exaltantes de direitos fundamentais, mas que vazias de conteúdo prático, são de pouco uso àqueles que vivem na margem da sobrevivência em contato permanente com a […] violência. Continuando, o autor decreta: “uma concepção contra-hegemônica dos direitos humanos tem de enfrentar a situação dos desempregados e dos trabalhadores precários”. Não há trabalhador mais precário, que o indivíduo em cumprimento de pena privativa de liberdade, realizando trabalho escravo. Apesar de se respeitar a posição do TST em relação ao assunto, esta pode ser considerada bastante retrógrada, comparada à decisão proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, no Rio Grande do Sul (TRT-RS), enfrentando o mesmo tema: “Nessa senda, resta evidenciado que na exclusão do regime celetista encontram-se aqueles que cumprem pena de restrição de liberdade – caso do autor – na hipótese de trabalho interno, tão somente, e os presos em regime fechado que trabalham externamente. O reclamante, cabe destacar, sofre pena restritiva de liberdade em regime semiaberto (nos moldes do parágrafo único do artigo 8º da referida Lei), ou seja, não é preso em sentido estrito, mas apenas condenado. E o trabalho externo em prol de empreendedor privado tem finalidade lucrativa, ainda que paralelamente tenha a função ressocializadora. E para que tenha o cunho social e garanta a dignidade da pessoa humana, como disposto no artigo 28 supra citado, o trabalhador-condenado deve ter a mesma proteção de qualquer trabalhador, pois são vinculadas aos direitos sociais constitucionalmente protegidos.” (Rio Grande do Sul, 2011, grifos nossos). Embora louvável, a justificação acima deu a entender que a decisão foi favorável ao trabalhador pelo fato de ele não cumprir pena em regime fechado e não realizar trabalho interno. Ora, ainda que o trabalho fosse realizado em tais circunstâncias, os artigos 28 e 29 da LEP deveriam ser afastados e se reconhecer a relação de emprego. E esta deve prevalecer mesmo que o trabalho seja realizado para entidade que não vise ao lucro. Assim, uma vez reconhecido que a CLT deve alcançar o trabalho do indivíduo preso, este reconhecimento deve compreender todo tipo de atividade laboral. Não se pode admitir que, em um mesmo local de cumprimento de pena, um indivíduo que realiza trabalho externo tenha reconhecida a relação de emprego, enquanto esse reconhecimento não alcança seu colega que trabalha em prol da unidade prisional. Além disso, a eventual interpretação de que o trabalho do indivíduo preso deva ser realizado sem remuneração ou sem benefícios trabalhistas porque a entidade tomadora do serviço não visa ao lucro é totalmente insustentável no Direito do Trabalho, pois acaba por promover o trabalho escravo. O art. 2º, § 1º da CLT é claro: “§ 1º – Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados.” (BRASIL, 1943). E o art. 3º completa: “Art. 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.” (BRASIL, 1943). Percebe-se então, que não é a natureza do trabalho realizado – se visa ou não ao lucro – que irá determinar a condição de empregado. Exemplos disso são os trabalhadores não voluntários de instituições beneficentes e recreativas mencionados no dispositivo acima – além de, mais recentemente, os empregados domésticos -, terem garantidos todos os seus direitos sociais. Registra-se, como curiosidade, que, ao denegar o pedido de um autor que prestou serviços na unidade prisional onde cumpriu pena e requereu o pagamento da remuneração não paga, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) usou a seguinte tese:  “O autor afirmou nos autos que foi condenado ao cumprimento de pena de reclusão de 22 anos e 8 meses, em regime inicial fechado. No período em que esteve preso, foi alocado em várias unidades prisionais nas quais trabalhou por 11 meses e 16 dias, das 8h30 às 17h, não tendo recebido qualquer remuneração. Requereu a condenação do DF ao pagamento de remuneração mensal no valor equivalente a ¾ do salário mínimo por mês trabalhado. Fundamentou o pedido no artigo 41 inc. II da Lei de Execuções Penais (LEP) (sic) e no artigo 39 do Código Penal.  Em contestação, o Distrito Federal alegou absoluta impossibilidade jurídica do pedido. Afirmou que o trabalho realizado pelo autor é voluntário e que o valor a ser recebido pelo Estado como ressarcimento das despesas realizadas com a manutenção do condenado supera em inúmeras vezes aquele que ele diz ter direito. O Subsecretário do Sistema Penitenciário do DF prestou informações nos autos, esclarecendo que no DF os presos trabalham internamente ou através (sic) de convênios firmados pela Fundação de Amparo ao Preso Trabalhador – Funap (sic). No primeiro caso, a Administração do presídio classifica os internos que voluntariamente se predispõem à trabalhar, com vistas à remição da pena, observando as aptidões e capacidades dos presos, bem como a necessidade de atividades que visem à conservação e manutenção do estabelecimento. Na segunda hipótese, a Funap celebra convênios com entes públicos e com a iniciativa privada, e, por meio desses, os presos que preencherem os requisitos legais passam a exercer atividades externas, conforme as necessidades de mercado, sendo, sempre, remunerados e filiados à Previdência Social. No segundo caso, a remuneração serve para custear as despesas do Estado com o preso, bem como outras despesas, conf. art. 29 da LEP.” (DISTRITO FEDERAL, 2011, grifos nossos). Ora, tal trabalho não é voluntário. A voluntariedade existe quando há espontaneidade e liberdade de escolha. A maioria dos indivíduos encarcerados trabalha visando à remição da pena, como se percebe na leitura do trecho abaixo, de Shikida e Brogliatto:  “A Tabela 2 mostra a principal idéia (sic) de benefício apontada pelos presos com o trabalho dentro da prisão. Contatou-se que a remissão (sic) da pena foi o destaque ímpar (40,3%), seguido dos itens ocupação de tempo e da mente (34,3%), perspectiva de profissionalização e regeneração (11,9%), e oportunidade de sair da cela (6,0%). Os outros itens obtiveram percentuais poucos expressivos.” (SHIKIDA; BROGLIATTO, 2007). Trata-se, pois, de ato motivado por um objetivo claro: reduzir o tempo de cumprimento de pena, por meio do trabalho. Não há, portanto, liberdade de escolha, pois a pessoa é motivada por uma circunstância social que não lhe deixa alternativas igualmente razoáveis, já que a única outra decisão possível é não trabalhar e cumprir a pena sem redução; além de que – caso se negue a um trabalho quando convocado -, sofrerá sanções. Tem-se também, que o trabalho voluntário, tal qual existe no mundo, tem caráter altruísta: a pessoa age em benefício do outro – seja ele outro indivíduo, um grupo de pessoas, uma comunidade ou um povo. O indivíduo preso, por sua vez, atua buscando satisfazer suas próprias necessidades de se ver em liberdade o mais rápido possível. Além disso, não é a disponibilidade do indivíduo que vai determinar sua investidura em uma vaga de trabalho, mas a determinação da direção do estabelecimento prisional. Na prisão o indivíduo é recrutado mediante avaliação prévia e análise das informações levantadas pela CTC, não dependendo, portanto, da sua livre escolha. Ou seja, o indivíduo é investido naquela vaga de trabalho não por que se oferece, mas porque é considerado habilitado para tal trabalho. A pessoa não escolhe, mas é escolhida para trabalhar – ainda que haja mais indivíduos dispostos a se submeter ao trabalho do que disponibilidade de vagas. Portanto, não há que se falar em trabalho voluntário, pois esse trabalho será nada mais que um trabalho consentido pelo indivíduo, tal qual acontece em relação ao trabalho do indivíduo preso para a iniciativa privada. E sendo trabalho consentido, deverá haver remuneração justa, pagamento dos direitos sociais e respeito à dignidade do preso, caso contrário será trabalho escravo, conforme já foi anteriormente estudado. Da mesma forma, o argumento de que o trabalho do indivíduo preso seja uma contribuição à manutenção da unidade prisional e um modo de reduzir as despesas estatais com a sua permanência ali, é um verdadeiro disparate. Caso tal argumento fosse plausível, o indivíduo que recorre ao atendimento médico gratuito deveria posteriormente trabalhar para a unidade hospitalar na qual foi atendido, a fim de reduzir os gastos que o Estado teve com ele. O mesmo aconteceria com o aluno da escola pública, entre outros exemplos possíveis, que demonstram o total descabimento de tal raciocínio que, caso prevalecesse, estaria instaurando a servidão por dívida contraída junto ao Estado. Surge então o seguinte questionamento: usando-se como exemplo os trabalhos dos mesários e do júri não voluntário, por não serem pagos, pode-se afirmar que são trabalhos escravos? A resposta é simples: não. Conforme já foi tratado na seção 3.2 desta pesquisa, tais exemplos se tratam de trabalhos forçados, uma vez que não há dano à dignidade do indivíduo. O trabalhador continua vinculado ao seu emprego, sem qualquer prejuízo à sua remuneração ou aos seus benefícios trabalhistas, mantendo sua capacidade de aquisição material, como indicam os dispositivos abaixo:  “Art. 98. Os eleitores nomeados para compor as Mesas Receptoras ou Juntas Eleitorais e os requisitados para auxiliar seus trabalhos serão dispensados do serviço, mediante declaração expedida pela Justiça Eleitoral, sem prejuízo do salário, vencimento ou qualquer outra vantagem, pelo dobro dos dias de convocação.” (BRASIL, 1997). “Art. 441. Nenhum desconto será feito nos vencimentos ou salário do jurado sorteado que comparecer à sessão do júri.” (BRASIL, 2013a, p. 645). Acredita-se que a LEP poderá ser revista e levemente modificada no que diz respeito à regulamentação do trabalho do indivíduo preso. Tramita atualmente no Congresso Nacional um substitutivo do projeto de lei nº 3392/2012 que visa à alteração da LEP justamente no que diz respeito à possibilidade de contratação do indivíduo preso na forma da CLT, a critério do empregador, como segue: “SUBSTITUTIVO AO PROJETO DE LEI Nº 3392 DE 2012 Altera o art. 28 da Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984, que institui a Lei (sic) de Execução Penal. O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. Esta Lei altera a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, que institui a Execução Penal, nos termos que especifica. Art. 2º. A Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 28. O trabalho do condenado e do preso provisório, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa, produtiva e de inclusão no mercado de trabalho. §1º ………………………………………………………. §2º Faculta-se ao empregador a contratação do condenado e do preso provisório na forma da Consolidação das Leis do Trabalho. (NR) Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.” (BRASIL, 2012). Perceba-se que o mencionado substitutivo não faz qualquer menção ao tipo de regime prisional, se aberto ou semiaberto, portanto, ambos poderão ser contemplados com tais benefícios, a exemplo do que já acontece com o trabalho em regime aberto. Os primeiros passos estão sendo dados em direção à correção da injustiça social promovida pela LEP. Entretanto, ainda que venham a vigorar, tais mudanças são muito tímidas e ainda não são suficientes para resguardar todas as modalidades de trabalho prisional. 4.7 Outras formas de trabalho escravo impostas ao indivíduo que cumpre pena privativa de liberdade 4.7.1 O castigo físico por meio do trabalho improdutivo A LEP estabelece em seu art. 28, caput, que “o trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva.” (BRASIL, 1984). A importância deste dispositivo legal está primeiramente em lembrar que o preso é ser humano que merece a devida proteção à sua dignidade por meio de um trabalho que o permita perceber-se como tal; e em segundo lugar, em determinar que o trabalho deva ser produtivo e não apenas um esforço físico sem sentido, estabelecido apenas como forma de gerar castigo físico ao indivíduo. As prisões da Inglaterra – no final do século XVIII e durante o século XIX -usaram bastante o artifício do trabalho improdutivo nas prisões sujeitas ao regime erroneamente chamado de “trabalhos forçados”. Técnicas de submissão do indivíduo a este tipo de punição usavam principalmente a esteira rotativa com degraus (treadmills) e a máquina de manivela (crank machine), entre outros. Na figura 1 abaixo, pode-se ver o mecanismo de funcionamento de uma esteira rotativa com degraus (LIENHARD, 2013), usada na punição de pessoas presas. Esse mecanismo chegou às prisões inglesas após um ato de reforma de 1779. O indivíduo devia ficar em pé, tronco ereto, enquanto movimentava as pernas e simulava uma escalada de degraus. Nas palavras de Lienhard:  “Um turno típico na esteira durava oito horas. Trabalhadores passavam 40 por cento desse tempo descansando. Isso é muito pior do que parece. Significava elevar a metade inferior do corpo cerca de 3.350 metros por dia. E, no entanto, por mais árduo que fosse o trabalho, 200 homens e mulheres dificilmente poderiam atingir o resultado produzido por um moinho de água.” (LIENHARD, 2003, tradução nossa)[4]. Em 1838 foram introduzidos separadores, para que a punição ficasse ainda mais severa: as pessoas ficavam em cubículos individuais, sem que pudessem ver umas às outras enquanto trabalhavam, vigiados de perto por guardas penitenciários. Era algo semelhante a ficar em uma solitária, com a agravante de ser obrigado a realizar o esforço físico contínuo. A figura 2 abaixo (SOMETHING…, 2010) mostra claramente a situação.   Outro mecanismo usado nesse tipo de punição física era a máquina de manivela. Este aparelho consistia em girar um braço de manivela preso a uma parede, cujas engrenagens se ligavam do outro lado da parede a um mecanismo que continha pás que giravam em movimento cíclico, passando por uma caixa de areia, com o objetivo único de tornar-se um esforço físico para o preso, sem qualquer finalidade produtiva. A pá arrastava um pouco de areia, carregava-a e a soltava quando se virava para retornar e novamente tocar a areia. Se o preso diminuísse o ritmo, ou se o guarda achasse que o ritmo tinha sido diminuído, ele ajustava o aperto da manivela, tornando-a mais resistente ao esforço humano. Uma variante da manivela presa à parede, era um modelo com caixa de areia própria, fixado ao chão da cela. As figuras 3 a 5 dão uma ideia de como era feito o trabalho. Pelo que já foi visto até aqui, conclui-se que um trabalho improdutivo, com o único propósito de trazer sofrimento ao preso, caracterizar-se-ia como trabalho escravo, sendo tal possibilidade repudiada pela República Federativa do Brasil. 4.7.2 O trabalho exaustivo e as condições degradantes de trabalho Trabalho escravo é aquele em que uma pessoa é reduzida ao estado de coisa ou de meio pelo domínio de outrem, tendo sua dignidade devastada. Sob o comando de Stalin, a antiga União Soviética adotou o sistema prisional Gulag de campos de “trabalhos forçados” (na verdade, trabalho escravo), por onde passaram, durante sua existência, cerca de dezoito milhões de pessoas, entre presos comuns, presos políticos e presos de guerra. Milhões de prisioneiros desses campos de trabalho soviéticos trabalharam até a morte, devido às jornadas exaustivas, à brutalidade estatal, à fome, ao frio e por outros fatores (GULAG…, 2013). Essas pessoas eram humilhadas e castigadas constantemente, tratadas como números dentro de um sistema de supressão da individualidade. De acordo com o citado site da Internet, resultante da parceria entre a National Park Service, o Museu Gulag, o Centro de História e Novas Mídias da Universidade George Mason, e o Centro Davis para Estudos da Rússia e Eurásia da Universidade de Harvard:  “O Gulag soviético era um gigantesco sistema de campos de trabalhos forçados. Ao longo de sua história, cerca de 18 milhões passaram pelas prisões e campos do Gulag. Sob o comando de Stalin, prisioneiros de campos de trabalho tornaram-se um importante recurso para a construção de muitas indústrias, incluindo as ferrovias e estradas do país, operações de mineração e a indústria madeireira. Milhões sofreram nos campos, muitos não eram culpados de crime algum. Aos olhos das autoridades, um prisioneiro não tinha quase nenhum valor. Um número desconhecido, algo entre milhões de pessoas morreram nos campos do Gulag. Aqueles que morreram de fome, frio e trabalho forçado foram facilmente substituídos por novos prisioneiros.” [5] (GULAG…, 2013). O exemplo acima mostra a importância de se proibir sistematicamente qualquer forma de trabalho escravo, não importando a denominação que este receba, nem o disfarce que ele use. Essa forma abominável de trabalho deve ser devidamente banida e não cabe na sociedade contemporânea, sendo totalmente repulsivo em um Estado Democrático de Direito, não importa a quem seja aplicado. Em relação aos direitos trabalhistas, é condição degradante a negação sistemática ao pagamento correto de todas as verbas salariais. Conclui-se, pelo que foi discutido neste trabalho, que uma pessoa que realiza as mesmas atividades que seu paradigma livre e não tem direito ao salário mínimo; ao descanso semanal remunerado; às férias do trabalho; às horas extras pelo eventual incremento da jornada de trabalho – entre tantos outros benefícios -, é um escravo contemporâneo. 5 CONCLUSÕES Partindo-se da Convenção sobre a Escravidão, de 1926, da Liga das Nações, na qual foi definida a escravidão (da qual decorre o conceito de trabalho escravo) e da Convenção nº 29 da OIT sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório, de 1930, que elaborou o conceito de trabalho forçado, conclui-se que as duas formas de trabalho são distintas entre si e não se confundem. Apesar disso, o trabalho forçado pode se transformar em trabalho escravo, caso se assevere de tal forma que retire a dignidade do ser humano. O trabalho forçado dá-se com o cerceamento da liberdade de escolha, que ocorre por meio de imposição de coação lícita. As denominações “trabalho forçado” e “trabalho obrigatório” são sinônimos usados para designar o mesmo instituto. A diferenciação conceitual que eventualmente venha a ser feita em relação às duas denominações é resultado de falta de técnica.  O trabalho escravo contemporâneo dá-se pela redução de um indivíduo ao estado de coisa, ou pela sua transformação em meio para se atingir um resultado, em vez de esse próprio indivíduo ser um fim em si próprio. O trabalho escravo não exige cerceamento da liberdade do indivíduo em ir e vir. Exige sim, para caracterizar-se, que a dignidade humana seja suprimida, que haja falta de respeito à integridade do indivíduo. Não há que se falar em dignidade parcialmente afetada, pois ela é um todo que não admite fragmentação. Somente o Estado consegue impor ao indivíduo uma sanção lícita pela não realização do trabalho. Uma pessoa de direito privado não consegue submeter um indivíduo ao trabalho forçado por meio de sanção lícita, já que apenas o Estado pode exercer a tutela dos direitos individuais. O trabalho prisional, por ser obrigatório e cujo descumprimento gera sanções lícitas por parte do sistema prisional, seria por definição um trabalho forçado, caso fosse respeitada a dignidade humana. Entretanto, uma vez que a LEP afasta tal atividade laboral da proteção da CLT e permite o pagamento de uma remuneração abaixo do salário mínimo, viabiliza-se, portanto, o surgimento do trabalho escravo prisional – assim considerado tendo-se como referência as convenções internacionais aqui estudadas e o princípio da dignidade da pessoa humana. Já o trabalho realizado pela pessoa que cumpre pena privativa de liberdade em regime aberto – que pode, portanto, negociar diretamente suas condições de trabalho e à qual não é imposta nenhuma restrição que afete a sua dignidade -, é um trabalho decente. Também haverá trabalho escravo prisional sempre que o trabalhador for submetido a quaisquer outras condições degradantes de trabalho, ou ao trabalho exaustivo, como aconteceu no Gulag Soviético. Finalmente, será trabalho escravo aquela atividade sem sentido, que não produz resultado, imposta ao preso como pena corporal, a fim de lhe infringir sofrimento físico, como foi o caso da Inglaterra nos séculos XVIII e XIX. Felizmente, todas as formas tratadas neste parágrafo são proibidas no Brasil. Defende-se aqui, a ideia de que não se pode negar ao trabalhador preso os direitos assegurados ao trabalhador livre. Afinal, a CLT regula os direitos sociais do trabalho, garantidos pela CRFB-88. Como norma infraconstitucional, a LEP não tem força para afastar tais direitos. Portanto, estes continuam existindo para todos os trabalhadores. Ao criar o óbice que impede a CLT de regulá-los, negando aos trabalhadores o seu acesso, a LEP incorre em evidente inconstitucionalidade. Mesmo porque, os direitos sociais do trabalho são, além de constitucionais, fundamentais. Conclui-se, portanto, que o art. 28, § 2º e o art. 29, caput da LEP – ao afastarem o trabalhador preso dos direitos sociais do trabalho -, não foram recepcionados pela CRFB-88. Além disso, o STF já reconheceu a hierarquia supralegal de tratados e convenções internacionais que tratem de direitos humanos, ainda que não sejam submetidos ao processo legislativo previsto no art. 5º, § 3º da CRFB-88. Isso torna inaplicável a legislação infraconstitucional que seja conflitante com as convenções internacionais. Portanto, ainda que se considere que a LEP foi plenamente recepcionada pela CRFB-88, tal lei é, pois, inaplicável naquilo que conflita com dispositivos da Convenção nº 29 da OIT sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório; do Pacto de San José de Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969); e do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966. Se o Estado quiser incentivar a participação da iniciativa privada na contratação de mão-de-obra carcerária, deverá lançar mão de outros recursos que não prejudiquem o trabalhador preso, como por exemplo, os incentivos fiscais. Não é o fato de o indivíduo ter cometido um ou mais crimes e estar impedido de sua liberdade –, mediante uma sentença decorrente de um devido processo legal que transitou em julgado –, que constitui razão para que se lhe ampute a dignidade. As Associações de Proteção e Assistência aos Condenados, já existentes em alguns estados da federação, trazem soluções interessantes e uma filosofia de trabalho bem intencionada em relação à questão do universo do indivíduo privado de liberdade. Uma vez que suas administrações sejam bem fiscalizadas, de modo a se evitar a corrupção e o desvirtuamento de seus ideais com o passar do tempo; e que mostrem resultados efetivamente satisfatórios, podem deixar de ser apenas modelos de referência e se tornarem um padrão obrigatório a ser adotado pelo Estado, permitindo que – entre outras coisas -, o indivíduo preso reconquiste a sua dignidade por meio do trabalho. A sociedade ainda comporta-se como se as consequências da degradação do ambiente prisional ficassem restritas intramuros e como se os problemas dela advindos fossem responsabilidade unicamente de um sistema prisional mal estruturado, indevidamente equipado, despreparado e por consequência, incompetente para lidar com o quadro da realidade prisional que hoje se apresenta no país. O fato é que, enquanto o Estado trava uma difícil batalha contra o trabalho escravo do lado de fora das unidades prisionais, pouco é feito em relação ao trabalho do indivíduo que cumpre pena privativa de liberdade. Não importa à sociedade, se o indivíduo encarcerado é tratado como lixo, se sua vida é miserável, ou se ele sofre, desde que seja contido do lado de dentro dos muros das prisões e não volte a causar turbulência na paz social. Entretanto, não é isso que acontece. Haverá um dia no qual a pessoa presa será liberada para retornar ao convívio social. O período prisional deveria ser um tempo de aprendizagem, ressocialização, arrependimento e reflexões. Mas na prática, é o momento de viver de acordo com regras escusas e cruéis; de afiliar-se a facções criminosas como meio de se proteger; de desenvolver projetos criminais; de encrudescer a natureza humana, tornando-se uma pessoa mais dura, fria e perversa. Contra esse determinismo, o trabalho apresenta-se como uma alternativa que não seja o caminho óbvio da reincidência criminal. Mas para ser uma opção efetiva, tal trabalho dever promover a dignidade da pessoa, deve ser reeducador e não exploratório; deve fortalecer a mente e não enfraquecer o corpo; deve trazer orgulho ao trabalhador e não humilhação. A promoção da dignidade humana não pode mais constar apenas na agenda de entidades de defesa dos direitos humanos. Deve ser uma prática patrocinada principalmente pelo Estado, que carrega a designação de
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Justiça de transição como evento global – convergências e particularidades de um fenômeno político-jurídico do século XX
O presente artigo trata da Justiça transicional, como evento global, um fenômeno político-jurídico do século XX. As experiências em alguns países, discorrendo sobre suas diferenças, similaridades e fundamentos para a consecução da transição para um futuro democrático e pacífico, fundamentado na reconciliação nacional. Esta transição nem sempre se dá de forma linear, havendo períodos de estagnação e de progresso nas ações para reorganizar Estados em períodos pós-regimes ditatoriais/autoritários, não havendo método concreto para a transição completa nas diversas nações, sendo esta adaptada à história e cultura de um país, com seus atores favoráveis e contrários à memória, reparação, reformas estatais e a mais difícil de todas, o tratamento jurídico aos atos de violação aos direitos humanos.[1]
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Quando iniciados os estudos sobre a justiça de transicional no mundo, depara-se com uma triste característica: a grande maioria, se não todas as nações, já passaram por regimes de exceção ou guerras fratricidas em suas próprias terras. Terminado o conflito, como seguir a diante? É possível dar justiça aos mortos, desaparecidos, torturados e familiares que sofrem de uma violência continuada, a violência do sentimento de impunidade e esquecimento? A justiça de transição tramita no estreito terreno entre a ciência política e o direito, como um bálsamo de esperança para aqueles que esperam pela verdade, a justiça e a verdade sobre os fatos históricos dos períodos de luta por democracia e igualdade. De todas as formas, o grande legado nos países que se reorganizaram depois de períodos pós-regime de violações aos direitos humanos, é de que democracia e Estado de Direito tornam-se valores inegociáveis na construção de um futuro sem violações aos direitos humanos. 1. JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO MUNDO O termo Justiça de Transição, também chamado de Justiça Transicional, é convencionado como  área de atividade e pesquisa focada no período em que as sociedades se reorganizam pós-períodos ditatoriais/totalitários, lidando com as violações aos direitos humanos visando um futuro democrático e pacífico. Surgida no limite entre o direito e a ciência política,  conceito aplicado pelo Conselho de Segurança da ONU, que tem como prática quatro formas de lidar com o legado dos regimes ditatoriais: reforma/reconstrução das instituições democráticas, direito à memória à verdade, direito à reparação e o tratamento jurídico aos crimes cometidos no período. Conforme BICKFORD relata em sua obra: “O conceito é comumente entendido como uma estrutura para confrontar um passadode abuso como um componente de uma importante política de transformação. Isso geralmente envolve uma combinação de estratégias complementares de justiça e ‘quase justiça’, tais como a persecução de perpetradores, estabelecimento de comissões de verdade e outras formas de investigação do passado; envidando esforços na busca de reconciliação em sociedades divididas, desenvolvendo um conjunto de reparações para aqueles que foram mais afetados pelas violações ou abusos; memorizando e relembrando as vítimas; e reformando um largo espectro de instituições arbitrárias do Estado (tais como as de segurança pública, polícia ou forças armadas) numa tentativa de prevenir futuras violações.”[2] Esse “acerto de contas” com o passado marca a ruptura do modelo atual com o modelo anterior, que não compactuam com os mesmos princípios, dicotômicos, de modo que o novo venha a suprir as incoerências e delitos do antigo regime, e desta forma, garanta a estabilidade do novo através daqueles que ambicionam um novo regime e não compactuam mais com o antigo. CAMPOS dita: “A época de transição é precisamente aquela em que o passado continua a interpretaro presente; em que o presente ainda não encontrou as suas formas espirituais, e as formas espirituais do passado, com que continuamos a vestir a imagem do mundo, se revelam inadequadas, obsoletas ou desconformes, pela rigidez, com um corpo de linhas ainda indefinidas ou cuja substância ainda não fixou os seus polos de condensação. Nós fomos educados pelo passado para um mundo que se supunha continuar a modelar-se pela sua imagem. O nosso sistema de referências continuou a ser o que fora calculado para um mundo de relações definidas ou constantes, mas nós nos vemos confrontados com uma realidade em que as posições não correspondem às fixadas na carta topográfica. O que chamamos de época de transição é exatamente esta época profundamente trágica, em que se torna agudo o conflito entre as formas tradicionais do nosso espírito, aquelas em que fomos educados e de cujo ângulo tomamos a nossa perspectiva sobre o mundo, e as formas inéditas sob as quais os acontecimentos apresentam a sua configuração desconcertante.[3]” Gerações foram marcadas pelos períodos antidemocráticos no mundo, regimes de conflitos que cometeram as mais diversas atrocidades contra a humanidade, necessitando uma divisão entre os posicionamentos políticos, buscar responsabilizar culpados e encontrar formas de punir os responsáveis, dentro de uma sociedade em transição. Adicione ao problema o fato do novo poder Estatal ter que demonstrar à sociedade de que é diferente do último regime e que esse não é um ajuste de contas ou vingança, mas sim o custo para combater que a cultura da impunidade se estabeleça na história da nação. A mudança de regime nos remete à uma série de problemas que não podem ser tratados meramente como uma ação de revanchismo contra os ex-detentores do poder. DIMITRI DIMIULIS exemplifica: “São operações difíceis e controvertidas que obrigam os detentores do novo poder a explicar perante a sociedade, que inclui muitos adeptos do anterior regime por convicção e/ou interesse, porque pessoas ligadas ao poder anterior devem ser responsabilizadas. Dessa maneira, um problema eminentemente político (garantir a estabilidade do novo regime) torna-se jurídico (como sancionar de maneira juridicamente correta?) e filosófico (como justificar a responsabilização e punição de ex-detentores do poder?).[4]” As finalidades da Justiça de Transição são de satisfazer as vítimas da atuação arbitrária do Estado, através de reparações morais e materiais; pacificar a sociedade, através de medidas como anistia e indulto coletivo, eliminando conflitos, reconhecendo as ilicitudes do regime anterior, quando o Estado prefere abster as sanções baseado em compromisso; tomar medidas políticas de forma que os acontecimentos não mais se repitam, através de mudanças na estrutura do Estado e políticas de memória aos acontecimentos do passado, como forma de não deixar que os acontecimentos caiam no esquecimento e que venha à tona todos os acontecimentos do período e seus responsáveis, finalizando com pedido de desculpas formal por representantes do Estado. Assim segundo PAUL VAN ZYL[5]: “É importante aceitar que há tensões entre paz e justiça no curto prazo e que em alguns casos difíceis é prudente e justificável adiar demandas da justiça visando obter o término das hostilidades ou a transição a uma ordem democrática. No entanto, esses reclamos da justiça não devem diferir indefinidamente, não só pelo efeito corrosivo que isso poderia ser sobre os esforços por construir uma paz sustentável, mas também porque fazê-lo significaria aumentar a grave injustiça que as vítimas já padeceram. As estratégias da justiça transicional devem fazer parte integral de qualquer esforço por construir uma paz sustentável, mas em algumas circunstâncias, é possível que a paz e que a justiça não sejam completamente compatíveis em curto prazo. No caso em que a justiça difira, devem fazer-se grandes esforços para assegurar que se mantenha a possibilidade de conseguir uma prestação de contas em médio ou longo prazo e que se implemente grande parte da agenda da justiça transicional em curto prazo.” A reconstrução do modelo democrático em vários países foi uma reconstrução do século XX, tendo o conceito de justiça de Transição vindo do período de transição pós-Segunda Guerra Mundial, experiências autoritárias de países latinos, queda de regimes comunistas e o pós-colonialismo na Ásia e Africa, sendo desenvolvidas metodologias para tratar das lembranças de um passado de violência, na construção de nações democráticas, cada qual com seu tipo e sua especificidade, respeitando sua história e cultura. A maior vitória dessas transições em cada uma das nações foi de que hoje democracia e o Estado de Direito são valores indiscutíveis nesses países, talvez pela recente lembrança de que a ausência deses valores torna o Estado num poderoso inimigo contra campos da sociedade. Nos diversos países que passaram pelos regimes autoritários, a justiça de transição foi implementada, cada qual em seu ritmo, tendo a flexibilidade necessária para garantir uma reconciliação nacional, objetivando um futuro democrático. 2. JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: EXPERIÊNCIAS NA EUROPA, ÁFRICA E ORIENTE MÉDIO Houve três ondas de justiça transicional e verdade na Europa: Na primeira, no período pós-Segunda Guerra, servindo como precedente das atividades de justiça transicional e verdade o Tribunal de Nuremberg, que julgou os crimes cometidos pelos nazistas durante a guerra. Na segunda onda, Grécia, Portugal e Espanha, cada qual com seu método. A Grécia julgou os militares do “regime dos coronéis”. Portugal adotou o saneamento em massa, tendo seus efeitos revistos posteriormente. Já a Espanha institucionalizou o esquecimento para a guerra civil e a ditadura de Franco como forma de reconciliação, visando a redemocratização nacional. Na década de 90 veio a terceira onda, na Albânia, Eslováquia, Irlanda do Norte, Romênia, Polônia, Hungria, Bulgária e República Tcheca, com abertura de arquivos do Estado e julgamentos de militares e membros dos antigos regimes comunistas. Na Alemanha, iniciou a abertura dos arquivos da polícia secreta alemã (Stasi) para o público, iniciando a onda de busca pela verdade através da Comissão de Estudo Alemã e a Autoridade Gauck. As políticas de compensação, memória e verdade foram do período comunista à Segunda Guerra. Na África, na Etiópia, Burundi, Serra Leoa,, Ruanda, Gana, República da África Central, Quênia, Chade, Costa do Marfim, Congo, Libéria, Sudão, Uganda, Zimbague, Nigéria e África do Sul foram estabelecidas comissões de inquérito, também contaram com a participação fundamental de organizações de direitos humanos e organismos internacionais na busca pela verdade, pacificação nacional e penalização de violadores de direitos humanos, sendo usado em alguns casos o artificio das anistias para pacificar seja por falta de vontade politica ou por debilidades conjunturais da política nacional. Na África do Sul em especial, com o término do regime de segregação racial que privava os negros da cidadania plena, foi instituído pelos Poderes Executivo e Legislativo comissões reparadoras, tendo papel decisivo junto à organizações internacionais de direitos humanos na reconciliação nacional e construção de um novo Estado. Para o arcebispo anglicano Desmond Tutu, uma justiça na forma de Nuremberg não seria possível na África do Sul, pois colocaria em risco a transição pacífica e negociada[6]. Nas palavras de SIMONE MARTINS: “A ideia da comissão de verdade começou, ironicamente, com as acusações de abusos aos direitos humanos cometidos pelo Congresso Nacional Africano em alguns campos no exílio. A resposta do Congresso foi instaurar uma comissão de inquérito. Em março de 1992, o presidente Nelson Mandela criou a Comissão de Inquérito sobre as Reclamações feitas por Antigos Prisioneiros e Detidos pelo Congresso Nacional Africano.[7]” Continuando, pode-se perceber que não há fórmula ou receita de passo a passo para estabelecer metas e fases da justiça transicional. Nas palavras de DESMOND TUTU[8]: “Enquanto os aliados puderam fazer suas malas e voltar para casa depois de Nuremberg, nós, na África do Sul, tínhamos que viver uns com os outros.” Diferente de Nuremberg ou dos países da América do Sul, a reconstrução da sociedade civil na Africa do Sul foi no sentido da reconciliação longo e gradual das comunidades oposicionistas, através da reparação, disponibilização e reabertura de arquivos, com os esforços voltados para tal, sendo a busca pela igualdade social a base para a construção da reconciliação social. A anistia foi concedida em troca da verdade, não havendo punição. Já na Ásia, no Timor-Leste, Filipinas, Cambódia, Indonésia, Sri Lanka e Coreia do Sul foram estabelecidas comissões da verdade e julgamentos por violações de direitos humanos. Conforme percebemos ao longo do capítulo, a Justiça Transicional é um fenômeno global pós-guerras e regimes ditatoriais, em que onde houve acontecimentos similares rumando para futuros democráticos, os ideias de justiça, reparação e memória foram estabelecidos como forma de reconciliação do passado com o futuro. 3. JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: EXPERIÊNCIAS NA AMÉRICA Na América do Sul temos exemplos da Argentina, Chile Uruguai, países que em as ditaduras apoiavam-se mutuamente, formando um “eixo do terror” na busca e tratamento aos costumes dos opositores de seus respectivos regimes. Aderiram às anistias, sendo que em fase posterior, essas anistias foram e continuam sendo questionadas. As políticas de memória e verdade iniciaram nas décadas de 80 e 90 após a queda dos regimes militares nos países da América do Sul. No Chile e Argentina, foram criadas comissões da verdade oficiais criadas pelos governos, com publicação de relatórios de grande impacto público, como forma de oficializar os crimes cometidos pelos agentes do Estado. No Uruguai, Bolívia e Paraguai foram criadas comissões de investigação; Organizações não-governamentais elaboraram relatórios da verdade no Uruguai, Bolívia, Peru e Brasil. Sobre a Justiça, houve julgamentos na Argentina e Bolívia, iniciados pelos governos. Organizações de direitos humanos e indivíduos também levaram suas queixas ao juri no Equador, Argentina, Chile e Paraguai. Brasil, Argentina, Chile e Uruguai optaram por anistia gerais ou seletivas. No Uruguai, iniciou-se em 2006 os julgamentos dos agentes da ditadura, tendo a justiça comum condenado o ex-presidente Juan Maria Bordaberry e o ex-Ministro das relações Exteriores Juan Carlo Blanco por autoria intelectual no desaparecimento e homicídio  de parlamentares opositores e ex-militantes tupamaros. No Chile o ex-presidente Pinochet foi indiciado por tortura e sequestro pouco antes de falecer. Na Argentina, que teve o período ditatorial entre 1976 e 1983, relativamente curto comparado ao Brasil, os julgamentos dos agentes da ditadura encontraram dificuldades nas Leis de Anistia, tendo sido concedido entre 1989 e 1990 o indulto aos comandantes condenados pelo então presidente Menem. De pronto, houve reação da sociedade, que apresentou a demanda no Suprema Corte Argentina[9], que em sua decisão, resumidamente proferiu: “AMNISTÍA. Ref. : Punto final. Obediência devida. Derechos humanos. Tratados internacionales. Convención Americana sobre Derechos Humanos. Pacto internacional de Derechos Civiles y Políticos. Si bien el art. 75, inc. 20 de la Constitución Nacional mantiene la potestad del Poder Legislativo para dictar amnistías generales, tal facultad ha sufrido importantes limitaciones en cuanto a sus alcances. Las leyes 23.492 y 23.521 que, como toda amnistía, se orientan al "olvido" de graves violaciones a los derechos humanos, se oponen a las disposiciones de la Convención Americana sobre Derechos Humanos y el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos, y resultan constitucionalmente intolerables (arg. art. 75, inc. 22, Constitución Nacional).” Contrariamente à decisão da corte brasileira, foi anulada a legislação argentina anistiante, voltando a promover julgamento contra os agentes da ditadura, fundamentado na incoerência fundamental entre os preceitos constitucionais e dos direitos humanos. Indo além, os arquivos da ditadura argentina foram abertos, demonstrando a realização do Estado Argentino na busca pela verdade como fundamental para a reconciliação nacional. No Mercosul a identidade é um fator de destaque, tendo a semelhança histórica dos países em sua formação, do colonialismo até as experiências autoritárias, passando pelas dificuldades sociais, tendo a cooperação dos Estados ditatoriais e a cooperação também entre os grupos de oposição, criando uma forte ligação entre os regimes e os atores envolvidos, numa sinergia regional que influencia até hoje os trabalhos dos atores envolvidos na justiça de transição na região.  Embora o destaque desta cooperação seja geralmente traduzida na Operação Condor, sem dúvida a grande cooperação na região do Mercosul foi a redemocratização da região. A origem do Mercosul remonta , com efeito, à aproximação levada a cabo pelos primeiros presidentes da transição democrática da Argentina e do Brasil, Raúl Afonsín e José Sarney, na década de 80 (CERVO; BENO, 2002). Diferente do que sucedeu na Europa, em que o andamento do processo de integração regional catalizou movimentos de redemocratização, no Cone Sul foi a simultaneidade dos movimentos de redemocratização de detonou o processo de integração regional (LINZ; STEPAN, 1996). A redemocratização no continente Sul-Americano e as vitórias eleitorais da esquerda trouxeram novamente iniciativas de memória e confronto com o passado, através das comissões da verdade. Na Argentina, a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) investigou crimes da ditadura, ocorridos entre 1976 e 1983, iniciando as experiências de resgate à memória e busca da verdade. O desenvolvimento das instituições e sistemas regionais de proteção dos Direitos Humanos não se deu de forma progressiva, obtendo avanços e entraves, mas que a cada avanço estimulava expectativas e demandas de justiça da sociedade civil em toda a região. Da mesma forma, ações não governamentais mobilizam-se, reivindicando os direitos daqueles que vivenciaram o horror e resistiram aos atos desumanos, em defesa da dignidade, dos direitos humanos, da democracia. Juliana Cardoso Benedetti e André Vereta Nahoum[10]. Dados válidos para 03/2009. Conforme o quadro acima, ao final do ano de 2008, todos os países do Mercosul contavam com comissões da verdade, tendo promovido julgamentos das violações aos direitos humanos, exceto o Brasil, devido a interpretação que o Supremo Tribunal Federal confere à lei da Anistia, tendo fracassadas as últimas tentativas. 4. JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL A promulgação da Lei de Anistia em 1979 foi fruto da mobilização dos movimentos sociais, sendo conduzida e aprovada porém pelo próprio regime. Atores políticos que estavam afastados da legalidade voltaram para a vida política brasileira, sob o preço da materialização da impunidade dos agentes da ditadura, que participaram de assassinatos, torturas e desaparecimentos forçados, diferente do ocorrido na Argentina e Chile, que iniciaram os processos penais e condenação por crimes contra a humanidade em face dos agentes e governantes. Há desde essa época no Brasil polos de tensão na construção do processo de redemocratização, tornando visível uma batalha hermenêutica no campo político pela significação do passado. O silêncio inicial do Estado era confrontado por iniciativas de familiares e amigos de desaparecidos e mortos do regime. Nas palavras de Dalmo Dallari: “A tortura de presos políticos era praticada por pessoas degeneradas, que se aproveitavam do posto que ocupavam para praticar este crime. As próprias leis da ditadura jamais colocaram a tortura de prisioneiros como objeto da ação do regime. Se em algum país perdoa-se torturadores, a interpretação é de que estaria ocorrendo autoanistia, que não teria nenhum valor jurídico. Os próprios torturadores não podem se perdoar, o que seria um absurdo.” Vários foram os projetos e iniciativas que davam voz aos anseios dos injustiçados perante o silêncio do Estado. O projeto Brasil nunca Mais, o Dossiê de Mortos e Desaparecidos a partir de 1964, a publicação Dos filhos deste Solo, todos atribuindo ao Estado a responsabilidade pelos feitos de seus representantes, cobrando informações e a verdade por trás dos acontecimentos. Finalizado o regime cívico-militar em 1985 e com a consequente redemocratização do Estado, a sociedade brasileira criou grandes expectativas, gerando pressão política exigindo eleições diretas, tendo em 1984 se materializado em manifestações que mobilizaram milhões de pessoas em todo o país, porém, não obtendo êxito nas eleições diretas na primeira eleição pós-regime. Editada a lei n° 10559/02, foi regulamentado o direito à indenização aos perseguidos políticos pela ditadura cívico-militar, atribuindo a função de decisor sobre as indenizações à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Esta Comissão tem atuado no resgate à memória e a reparação, através da realização de Caravanas da Anistia e da construção do Memorial da Anistia. Nesse sentido, outra movimentação do Governo Federal foi a decisão de centralizar os documentos da ditadura civil militar no Arquivo Nacional, colocando-os à disposição da sociedade através de um banco de dados na internet, sendo batizado de “Memórias Reveladas”. Em 2008 a Lei de Anistia foi questionada, através de ação promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil perante o Supremo Tribunal Federal, sob  o argumento de que a lei de anistia não abarcava os crimes policiais e militares cometidos durante o regime militar. Porém, em 2010 o Supremo Tribunal Federal decidiu pela improcedência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, sob o argumento de que nem mesmo do Supremo Tribunal Federal tem poderes para reescrever leis de Anistia. O Supremo Tribunal Federal interpretou a Lei de Anistia sem novidades, conforme já feito até então, como anistiados os agentes do Estado que efetuaram perseguições a opositores motivados politicamente. Ainda em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou a responsabilidade do Estado Brasileiro no caso Gomes Lind e outros, pelo desaparecimento de membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses nas operações do Exército Brasileiro na erradicação da Guerrilha do Araguaia. A Corte sentenciou que a Lei de Anistia brasileira inibe a investigação e punição dos agentes do Estado, assim, não sendo compatíveis com a Convenção Americana. Sendo assim, a Lei não poderia constituir-se de empecilho à investigação dos fatos, identificação e punição dos culpados. Como recomendação ao Estado brasileiro, de que fosse criada uma comissão da verdade para apurar as violações cometidas durante o regime militar. A presidente Dilma Rousseff sancionou em 2011 a criação de uma Comissão da Verdade, com a missão de esclarecer as violações aos Direitos Humanos, identificar e tornar públicos as estruturas, locais, autoria, enviar aos órgãos públicos informações sobre a localização de corpos, identificação de restos mortais dos desaparecidos e tudo relacionado às práticas de violações de tais direitos. Reconstruir a história, dando aos cidadãos do país a verdade como meio para uma efetiva reconciliação nacional, prestando assistência às vítimas dos crimes cometidos. Há porém, ainda possibilidade de mudança, através de iniciativas para reinterpretação da Lei de Anistia, como o projeto de lei n° 7430/2010 que tem como objetivo excluir da anistia os crimes conexos praticados por agentes públicos, militares e civis contra opositores políticos. Até o presente momento, as tentativas aceitas pela Justiça brasileira para sancionar os agentes envolvidos no regime são de caráter administrativo e civil, tendo como exemplo o reconhecimento de Carlos Alberto Brilhante Ulstra como torturador[11] e consequente responsabilidade civil por danos morais pela Justiça de São Paulo ou a ação movida pelo Ministério Público Federal contra os comandantes Carlos Alberto Brilhante Ulstra e Audir Santos Maciel, tendo como pedidos reparar os custos das indenizações ao Tesouro Nacional às famílias das vítimas através da Lei n° 9.140/95, perderem suas funções públicas e não mais serem investidos em função pública[12]. Por fim, a busca pela memória, além da reparação dos perseguidos, torturados e suas famílias são passos concretos, ainda que vacilantes na direção da reconciliação nacional, ainda que tardia, para a inacabada transição democrática brasileira. CONCLUSÃO Nos países citados, em cada caso, percebe-se que a conjuntura política nacional é diretamente ligada às capacidades e limites da transição. Quando os regimes são derrotados, cabe ao vitorioso a construção dos pilares da nação pós-conflito. Causa um mal estar a sensação de que nem sempre a memória e o direito à verdade são respeitados, sendo aplicadas verdadeiras perversões para acomodar o velho regime para um futuro democrático, em nome de uma reconciliação nacional. As políticas de resgate das memórias e mobilizações contra o esquecimento são o meio para a uma futura efetivação da justiça de transição no Brasil e em vários outros países, pelo direito à verdade aos mortos, desaparecidos políticos e seus familiares, como forma de não deixar que o legado da impunidade torne-se um dos pilares de uma democracia que se esquiva de julgar seus agentes.
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Direitos fundamentais: a inserção do cooperativismo em seu contexto
O cooperativismo é um sistema associativo no qual pessoas livres se unem, somando suas forças de produção, sua capacidade de consumo e suas economias, no intuito de evoluírem econômica e socialmente, elevando seu padrão de vida e, igualmente, beneficiando a sociedade por meio do aumento e barateamento da produção, do consumo e do crédito. Constitucionalmente, o cooperativismo nunca esteve tão fortalecido, basta verificar o disposto no art. 5º, XVIII da Constituição Federal de 1988 que elevou o ideal cooperativista a um patamar nunca antes reconhecido, tratando-o como fundamento básico na esfera econômico-social. Esse reconhecimento constitucional do cooperativismo coincidiu com um momento histórico, de âmbito nacional e internacional, de inegável avanço no tocante à liberdade, à democracia e à justiça social, valores estes de caráter genuinamente coletivo e que culminaram igualmente com os ideais de cooperação, elemento essencial para o desenvolvimento nacional nos termos do que prescreve a Constituição Federal. Vê-se, pois, que o cooperativismo é um instrumental capaz de assegurar esse desenvolvimento, porquanto possui em seu ideário, principiologia baseada primordialmente nos direitos humanos.
Direitos Humanos
1. Introdução A inserção de dispositivos específicos ao cooperativismo na redação da Carta Constitucional advém de influências da doutrina cooperativista. A intenção dos constituintes foi utilizar as cooperativas como instrumento eficaz para melhorar a condição socioeconômica da população. Dessa forma, as cooperativas não poderiam deixar de ser inseridas no Título II, Capítulo I da Constituição da República Federativa do Brasil, por se tratarem de instrumentos aptos para a consecução dos direitos fundamentais. 2. Discussão e Resultados A noção de direitos fundamentais está interligada à ideia de Estado de Direito e Constituição desde o século XVIII, com as revoluções burguesas e os novos paradigmas lançados por documentos, como a histórica Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão[1]. Entretanto, a doutrina que deu origem aos direitos do Homem, que representa importante aspecto do Constitucionalismo, não surgiu no século XVIII como se acredita, pois ela, na realidade, é uma versão aprimorada da doutrina do direito natural que se deflagrou ainda na Antiguidade. Ferreira Filho apresenta tais considerações: “Remoto ancestral da doutrina dos direitos fundamentais é, na Antiguidade, a referência a um Direito superior, não estabelecido pelos homens nas dado a estes pelos deuses. Neste passo cabe a citação habitual à Antígona, de Sófocles, em que isso é, literalmente, exposto, em termos inolvidáveis. A mesma ideia, com tratamento sistemático, acha-se no diálogo De legibus, de Cícero”.[2] A partir dessa época, desenvolveu-se a concepção de um Direito independente da vontade humana e tal ideia perdurou por muito tempo, prevalecendo até o final do século XVIII. Este entendimento só foi substituído pela doutrina desenvolvida pela Escola do Direito Natural e das Gentes, guiada pelo pensamento Iluminista e, posteriormente, expresso nas Declarações. Ferreira Filho traz apontamentos salutares: “Deve-se a Grócio a laicização do direito natural. O jurista holandês entende decorrerem da natureza humana determinados direitos. Estes, portanto, não são criados, muito menos outorgados pelo legislador. Tais direitos são identificados pela “reta razão” que a eles chega, avaliando a “conveniência ou a inconveniência” dos mesmos em face da natureza razoável e sociável do ser humano. […]. Deste jusnaturalismo racionalista a doutrina dos direitos do Homem é um aspecto. Mas é o que o pensamento político iluminista imortalizou.”[3] A doutrina dos direitos do Homem já estava consolidada desde o século XVII, contudo, tomou maior proporção no século seguinte, ao se tornar elemento básico da reformulação das instituições políticas. Tal doutrina substituiu sua denominação por uma terminologia mais correta, “direitos humanos fundamentais”, abreviada como “direitos fundamentais”.  A respeito do assunto Bonavides tece o seguinte comentário: “[…]. Temos visto nesse tocante o uso promíscuo de tais denominações na literatura jurídica, ocorrendo, porém o emprego mais frequente de direitos humanos e direitos do homem entre autores anglo-americanos e latinos, em coerência, aliás com a tradição e a história, enquanto a expressão direitos fundamentais parece ficar circunscrita à preferência dos publicistas alemães.”[4] A denominação “direitos do homem” ficou encharcada de uma conotação histórica, contudo o feminismo conseguiu o repúdio dela, restando apenas o reconhecimento de sua utilização em documentos internacionais importantes, que trouxeram o conteúdo declaratório dessa doutrina, tal como a já mencionada Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789), e, ainda, a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia (EUA, 1776) ou a Declaração Universal de Direitos do Homem, editada em 1948 pela ONU[5]. Os direitos do homem são tidos como direitos naturais, inalienáveis e sagrados, e também tidos como imprescritíveis, compreendendo a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão como valores inerentes. Já a expressão “direitos fundamentais” possui maior precisão, até mesmo por sua abrangência, e será nessa concepção que se aterá a conceituação proposta neste trabalho. Quanto aos vocábulos, Araújo e Nunes Júnior comentam: “[…] O vocábulo direito serve para indicar tanto a situação em que se pretende a defesa do cidadão perante o Estado como os interesses jurídicos de caráter social, político ou difuso protegidos pela Constituição. De outro lado, o termo fundamental destaca a imprescindibilidade desses direitos à condição humana”.[6] Os direitos fundamentais podem ser conceituados como: “Normas jurídicas, intimamente ligadas a ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivadas no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitima todo o ordenamento jurídico”.[7] Por essa perspectiva de normas constitucionais fundantes do ordenamento jurídico, tem-se que os direitos fundamentais devem ser utilizados também para a solução de conflitos privados, não impondo limitações apenas às ações estatais. Por essa razão é que as cooperativas têm espaço neste contexto quando se trata da norma constitucional brasileira. Os direitos fundamentais, no sentido material, são aqueles considerados indispensáveis à pessoa humana, necessários para assegurar a todos uma existência digna, livre e igual. Desta forma, não basta ao Estado reconhecê-los formalmente, deve-se buscar concretizá-los, incorporá-los no contexto social e na vida de seus cidadãos e este é o papel do cooperativismo, porquanto é capaz de outorgar ao cidadão uma vida digna através da renda advinda do trabalho como cooperado e ainda,  o fortalecendo com os valores éticos inerentes a toda principiologia cooperativista. Interessa observar, que a Constituição Federal origina-se em um período marcado pelo fim de longa restrição à participação popular nas decisões políticas do país e isto colaborou para que possuísse características históricas relevantes, assumindo importância sem precedentes dentre as constituições brasileiras. Não bastando, o atual texto constitucional também recebeu diversas influências doutrinárias no sentido de ampliar sua abrangência e sua capacidade e isso fez com que a Constituição de 1988 apresentasse diversas inovações: “Dentre as inovações, assume destaque a situação topográfica dos direitos fundamentais, o que, além de traduzir maior rigor lógico, na medida em que os direitos fundamentais constituem parâmetro hermenêutico e valores superiores de toda a ordem constitucional e jurídica, também vai ao encontro da melhor tradição do constitucionalismo na esfera dos direitos fundamentais”.[8] Ao enumerar as inovações da Constituição Federal de 1988, no que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais, Coelho constata algumas modificações importantes no que tange ao direito de associação, reconhecendo que tais direitos também foram estendidos às cooperativas, como segue: “O direito de associação foi estendido às cooperativas, quanto a estar sujeito à legislação. Trata-se de um desafio interessante, já que o sistema cooperativo era controlado pelo Estado, através de autorizações, fiscalizações e intervenção. Aliás, no campo do cooperativismo a preocupação da Constituição é grande, recebendo ele tratamento em vários pontos do texto.[9] Consta da Carta Constitucional: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]; XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;” O conteúdo desse dispositivo é fundamental para o cooperativismo brasileiro, haja vista o impedimento que se criou ao Estado, não permitindo mais que este interfira na criação e no funcionamento das cooperativas. Há aqueles que exaltam a conquista dessa liberdade institucional concedida às cooperativas. Bulgarelli representa a doutrina que parabeniza o marco liberalizatório caracterizado no art. 5º, da Constituição Federal em relação ao cooperativismo: “Conforme já foi visto, com a Constituição Federal de 1988, pode-se dizer que se iniciou um novo período no ciclo legislativo do regime jurídico das sociedades cooperativas até então presas e submetidas às imposições estatais decorrentes do regime autoritário. Vários artigos da Constituição referem-se às cooperativas no sentido não só de reconhecê-las, de livrá-las das peias estatais como também para apoiá-las. De todos esses dispositivos sem desmerecer os demais, destaca-se o art. 5º, XVIII.”[10] O referido artigo assegura então a livre criação e permanência de cooperativas, materializando-se no plano constitucional o princípio da auto-organização ou da autogestão, ou ainda, da autonomia cooperativa[11]. Entretanto, persistem dúvidas quanto à extensão do livre exercício associativo. Na realidade, como já exposto, ainda há posições que entendem por resistir a qualquer tipo de interferência. No entanto, trata-se de setor que integra a ordem econômica nacional, sujeito, portanto, a regramentos específicos para o bom e fiel desenvolvimento econômico da nação. Importante clarear que os atos internos da cooperativa, seu funcionamento e outros devem ser respeitados e não devem estar sujeitos a qualquer espécie de interferência de terceiros, sejam estes entes estatais ou não. Mesmo porque tal entendimento segue, como já visto, o 4º princípio do cooperativismo de acordo com a ACI: princípio da autonomia e da independência, que, em suma, estabelece que a organização e a administração das cooperativas devem ser exercidas com independência por seus membros, não se acatando qualquer interferência externa. No entanto, frisa-se que o setor cooperativo integra a ordem econômica nacional, estando sujeito a atos de intervenção estatal, dado o modelo seguido pela Constituição Federal de 1988. “Como agente ‘normativo’, cabe ao Estado fixar diretrizes para a economia. Igualmente, realizar aquilo que os economistas denominam de ‘intervenção conforme’. Ou seja, a que orienta os agentes econômicos e os influencia por meio de uma política global. Financeira, monetária, social, sem lhes eliminar a livre determinação. É a que atua sobre as grandes linhas da atividade econômica – nível de demanda, condições de repartição etc”.[12] Verifica-se que dentro dessas atribuições intervencionistas, cabe ao Estado atuar como agente regulador da economia, sendo-lhe outorgado constitucionalmente o poder-dever de fiscalizar o respeito às normas da economia de mercado, por parte dos agentes econômicos que podem vir a lesar a sociedade[13]. Aliás, basta analisar o que prevê o art. 174, § 2º da Constituição Federal, para se verificar que as cooperativas, como entes que executam atividades econômicas, estão sob a égide da ação intervencionista do Estado. No entanto, a fiscalização exercida com base no referido dispositivo constitucional, poderia suscitar a hipótese de certa tensão dialética com o que dispõe o art. 5º, VI da mesma Carta, dado o fato de que o caput do art. 174 determina a submissão ao agente normativo e regulador que é o Estado, enquanto que o art. 5º, VI outorga autonomia às cooperativas. Verifica-se que a pretensa tensão dialética na realidade é mera retórica, pois que a interpretação do art. 5º, VI da Constituição Federal, abrange a autonomia quanto à criação e ao funcionamento das cooperativas, sem lhes retirar o dever de como entes que integram o sistema econômico, se sujeitarem ao cumprimento das regras impostas a todos que integram esse sistema. Nesse sentido, a lição de Meinen é incisiva: “O livre exercício da cooperação, todavia, não quer dizer que as cooperativas nascem e fazem o que bem entenderem, sem respeitar os parâmetros mínimos do que se designa uma conduta digna. Não se pode perder de vista que a Constituição, especialmente pela combinação dos arts. 174 e 173, parag. 3º., outorga ao estado o poder de monitoramento da atividade econômica e lhe impõe o dever de reprimir eventuais abusos. O permanente equilíbrio nas relações econômico-sociais e a elevação do interesse público são valores ou fundamentos que se sobrepõem à livre iniciativa, inclusive a materializada na forma cooperativa. Há de se ter, portanto, um controle oficial mínimo (sem prejuízo da autogestão) de modo a evitar a criação descontrolada de cooperativas, sem objeto preciso e sem preocupação com a viabilidade econômico financeira, muitas vezes gerida por administradores sem os mínimos atributos profissionais; sem a menor consciência de suas responsabilidades, quando, não raro, também inescrupulosos. Nesta dimensão, em nada acrescentará, para a sociedade (cujos interesses públicos estão sempre acima de qualquer organização ou iniciativa particular) e para o próprio setor, a festejada (e bem vinda) liberdade de criação, organização e funcionamento. O abuso do direito, como é concebido, costuma trazer inconvenientes irreversíveis.”[14] Este papel interventivo do Estado não pode ser visto de outro modo que não o de contribuir para o Estado do Bem-Estar Social, porquanto, por meio desse dirigismo em relação às questões econômicas, é que assegura ao individuo um melhor viver, o exercício de todas as suas prerrogativas como cidadão, mormente porque dá ao Estado o poder de, quando necessário, obstar atitudes danosas à sociedade, efetuadas por quem detém um maior poder econômico, ou mesmo por atitudes fraudulentas, como por exemplo as quem vêm ocorrendo em relação às cooperativas de trabalho, apesar do advento de recente diploma legal visando refrear tal situação . 3. Considerações Finais Percebe-se que o legislador constituinte fez inserir no texto constitucional em vários momentos o cooperativismo, na expectativa de que este sistema venha a colaborar na outorga dos direitos fundamentais aos cidadãos, porquanto toda a sua história e ideário convergem nesse  sentido. Em vários países o cooperativismo é importante referencial socioeconômico, pois é elemento capaz de outorgar vida digna ao cidadão. Nesse sentido, reconhecidamente, há uma forte movimentação no sentido de viabilizar as cooperativas em todo mundo. Como visto, o cooperativismo foi contemplado pela Constituição Federal com a proposta de liberdade para a sua criação e independência para seu funcionamento, mas sujeito a certa intervenção estatal dado integrar o sistema econômico nacional. Mas, acima de tudo o cooperativismo tem garantida previsão constitucional em razão de sua essência e principalmente por se adequar aos Objetivos da República, considerando-se principalmente o ideário defendido pela doutrina cooperativa desde o seu surgimento e que se coaduna com toda principiologia da Constituição da República Federativa do Brasil.
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Dignidade humana: fundamento de um estado democrático de direito
A dignidade humana está elencada no artigo 1º, III, no texto maior, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil traz pela primeira vez a dignidade humana como preceito constitucional. Efetivar a dignidade humana é garantir acesso pleno aos direitos fundamentais e sociais previstos nos artigos 5º e seguintes da Constituição Federal. Há alguns anos ou mesmo séculos atrás pensar em dignidade humana era algo utópico, muitas vezes condenado, ridicularizado como algo impossível. A dignidade humana advém como um dos requisitos para que se efetive os direitos humanos, internacionalizados no século XX após o fim da II Grande Guerra. Sem a efetivação da dignidade humana é impossível se falar em um Estado Democrático de Direito realmente eficaz.
Direitos Humanos
1 Dignidade humana: conceitos e significados Com a evolução da religião para crenças monoteístas e o surgimento da filosofia na Grécia Antiga, a necessidade de se explicar a pessoa humana foram os primeiros passos rumo a uma doutrina universal de direitos inerentes ao ser humano, a dignidade humana não era para todos, uma vez que nessa época o conceito de dignidade se relacionava com o status social ocupado pelo indivíduo, o que começou a mudar a partir de Cícero, em Roma. Com a constante presença de escravos ao longo da história humana, embora a dignidade humana já tivesse sido pensada desde épocas remotas, apenas na atualidade se positivou em alguns textos constitucionais, é princípio universal e cabível realmente a todos os indivíduos. O cristianismo, em especial com Paulo de Tarso, que possuía o entendimento que todos os homens são filhos de Deus e iguais e deveriam ter sua dignidade respeitada também contribuiu para a universalização da dignidade. São Tomás de Aquino trouxe em seu pensamento o significado de pessoa, que era aquele que possuía corpo e espírito, independentemente de classe social ou outra questão (BITENCOURT NETO, 2010, p. 63-64). Durante o Renascimento surgem os ideais do humanismo e o direito natural, este último foi desenvolvido no século XVII por Hugo Grótius. A natureza, segundo os jusnaturalistas, deriva de Deus, entretanto, existe ainda uma natureza humana, inerente a todos os homens que possuem direitos pelo simples fato de serem humanos (PEREIRA, 2012, p. 68). Immanuel Kant (2011, p. 58-59) trouxe sua contribuição quanto ao conceito de dignidade humana ao afirmar que o ser humano tem dignidade e não preço. Todo ser humano é único, assim não devem ser explorados pela escravidão, trabalhos forçados entre outros, “os seres cuja existência não assenta em nossa vontade, mas na natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, um valor meramente relativo, como meios, e por isso denominam-se coisas, ao passo que os seres racionais denominam-se pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, ou seja, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, portanto, nessa medida, limita todo o arbítrio (e é um objeto de respeito).” Assim, objetos tem preço e seres humanos possuem dignidade, e não podem ser medidos, muito menos invertidos tais valores. O precursor do discurso acerca da dignidade humana foi Giovanni Pico dela Mirandola, datado de 1457 a obra “A dignidade do homem”. Segundo Bitencourt Neto (2010, p. 24-25), é obra de importância singular, uma vez que aponta as raízes fundamentais para que fosse possível o desenvolvimento da ideia contemporânea de dignidade da pessoa humana, embora os resquícios de tal fundamento possam ser, conforme dito, muito mais antigos. Assim, a dignidade humana é algo inerente a todo e a cada ser humano, não podendo ser restringida ou alienada, cabendo ao ente público e a cada cidadão respeitá-la e efetivá-la. Ainda existem muitas discussões quanto à efetividade da dignidade humana quando esta entra em conflito com algumas culturas e crenças, entretanto, Häberle, (2009, p. 79) acredita que nesses casos, os direitos de personalidade humana devem prevalecer em desatenção às crendices. Ressalte-se que a dignidade humana está em constante modificação, tendo em vista seu caráter de ser inerente a todo ser humano que evolui todos os dias, assim, seu conceito modifica e se aprimora a todo o momento. 1.1 Dignidade humana no século XX e XXI No decorrer do século XX vieram duas Grandes Guerras, sendo que com a II Guerra Mundial, os ditames kantianos foram aniquilados, principalmente no que diz respeito a dignidade humana, assim, “as pessoas eram transformadas em coisas e usadas como meio de tomada e manutenção do poder” (DIAS, 2012, p. 89). Nesse período, o que ocorreu deixou marcas terríveis na história humana, a dignidade humana foi simplesmente esquecida em nome do poder, “paz sem justiça é opressão, espoliação e violação da dignidade. A dignidade sem justiça promove guerras pelo que é devido por direito e pela liberdade. Somente a justiça permite o reino da paz e da dignidade” (KOLM, 2000, p. 592). Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, datada de 1948, após o final da II Grande Guerra e a criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, houve o retorno da proteção da dignidade humana e dos direitos humanos em instância internacional. Porém levou um bom tempo para que os preceitos de tal Declaração começasse a ser incorporado nos textos nacionais e para começarem a ser aplicados num mundo traumatizado e em boa parte, destruído pela violência dos conflitos. Nos dizeres de Bitencourt Neto, (2010, p. 66), “Pode-se hoje dizer que a dignidade da pessoa humana, ideia-força do mundo contemporâneo, é uma qualidade inata de cada ser humano, cuja obrigação de respeito se pode qualificar como uma das mais relevantes conquistas históricas, independentemente de instituição formal pelo Direito, que reconhece pelo equivalente princípio fundamental”. A dignidade humana advém da evolução humana e continua evoluindo, e com sua positivação no texto constitucional se completa e se altera a cada nova interpretação e aplicação. O Tribunal Constitucional Federal Alemão reconheceu em 1975 ser dever do Estado assistir os necessitados, principalmente daqueles que estejam incapacitados de promover o próprio sustento de forma que haja condições mínimas de subsistência e de vida com dignidade, assim, tal decisão foi pioneira quanto a existência de um mínimo necessário, condecorando o princípio da dignidade humana. Tal fato ocorreu em Portugal em 1976 e no Brasil em 1988, com a nova Constituição (Bitencourt Neto, 2010, p. 55-57). Nos dizeres de Häberle, (2009, p. 101), “A dignidade humana constitui a “base” do Estado constitucional como tipo, expressando as suas premissas antropológico-culturais. Os Poderes Constituintes, “de mãos dadas” com a jurisprudência e a ciência, e mediante uma atuação também criativa, desenvolveram e construíram estes fundamentos. Acompanhar e seguir as fases do crescimento cultural e, com isso, também as dimensões da dignidade humana em permanente processo de evolução, é tarefa de todos: do Poder Constituinte até o cidadão, resultando no direito do cidadão à democracia”. A dignidade humana está vinculada aos direitos fundamentais, uma vez que a efetivação de tais direitos evitará a degradação do ser humano, assim, a dignidade humana, conforme já dito, é inerente a todo e a cada ser humano, deve ser reconhecida e não atribuída, sendo que, conforme Ricci, (2012, p. 01). “a primeira e mais imediata exigência da dignidade humana é o respeito à vida, levando a se reconhecer o direito à vida, entendido como princípio fundamental e anterior aos demais: significa nascer, viver e morrer com dignidade”. Ressalte-se que apenas após a II Guerra Mundial que a dignidade humana foi inserida em textos constitucionais de diversos países de todo o planeta, sendo, portanto, algo recente na história humana. 1.2 Direitos humanos, direitos fundamentais e o biodireito Após a DUDH, foi aprovada no continente, em 1965 a Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, que busca a efetivação de direitos humanos através de normas internas de cada membro. A população pobre é sempre associada aos problemas enfrentados em nível mundial e regional, tais como doenças, escravidão, trabalho infantil, dentre muitos outros. Para Bobbio (2006, p. 43) “(…) o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político”. Ressalte-se, assim, que, “a constitucionalização dos direitos humanos não significa mera enunciação formal de princípios, mas a plena positivação de direitos, a partir dos quais qualquer indivíduo poderá exigir sua tutela perante o Poder Judiciário para a concretização da democracia” (MORAES, 2006, p. 03). Os direitos fundamentais possuem diversas definições, tais direitos visam assegurar ao ser humano um mínimo de dignidade na sua sobrevivência e na de sua família. Não é recente a luta para a positivação e o reconhecimento desses direitos, que “(…) compreendem verdadeiros anseios das sociedades já que, pelas circunstancias temporais, reivindicaram seu poder perante o Estado” (VENDRAME et al, 2011, p. 02). Os direitos humanos, assim são a positivação nos textos internacionais de direitos básicos a sobrevivência de cada ser humano e os direitos fundamentais seriam a constitucionalização e a inserção dos direitos humanos em cada um dos textos normativos espalhados pelo mundo afora, entrementes, “os direitos humanos fundamentais, portanto, colocam-se como uma das previsões absolutamente necessárias a todas as Constituições, no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação de poder e visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana” (MORAES, 2006, p. 02). Para Canotilho, ao lecionar acerca dos citados direitos, (1998, p. 1124) “(…) fala-se de uma fundamentação objectiva de uma norma consagradora de um direito fundamental quando se tem em vista o seu significado para a colectividade, para o interesse público, para a vida comunitária”. Lima Neto (2014, p. 03) aponta que direitos fundamentais são conjunto de normas, princípios e outros deveres inerentes à soberania popular que são responsáveis por garantir uma convivência pacífica, digna, livre e igualitária. O intérprete deverá ponderar e tentar harmonizar os direitos fundamentais conflitantes, visto que não há hierarquia entre eles, visa-se, acima de tudo evitar o sacrifício total de um direito fundamental sobre outro. Resumindo, a atualidade dos direitos fundamentais se mescla com a evolução normativa nacional e consequentemente universal, diversos são os fatores que irão contribuir para que sejam de fato eficazes, como por exemplo, a situação econômica de cada Estado, suas políticas públicas e ações sociais e culturais. Foram concretizados inúmeros passos em direção a uma maior eficácia de tudo o que se falou até então, porém, ainda são longos e árduos os caminhos em direção a normas mais eficazes e aplicáveis. Não se trata apenas de lutas de governos, todos devem contribuir para um bem que também será da coletividade. 2 Dignidade humana e os direitos sociais Os direitos sociais estão previstos na Constituição Federal no artigo 6º, logo após os direitos fundamentais, sendo eles: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” Nos dias de hoje o Estado, após a constitucionalização dos direitos sociais ocorrida no século XX, assumiu a responsabilidade em fornecer, juntamente com toda a sociedade igualdade e as mesmas condições de vida e oportunidade, sendo a principal forma de garantia de que um número cada vez maior de pessoas atinja a excelência mínima garantida pelas leis. De acordo com Figueiredo (2007, p. 22), os direitos sociais são essenciais, pois “[…] a pretensão ao reconhecimento de direitos sociais pode ser hoje identificada como o passo subseqüente à luta iniciada pela generalização dos direitos políticos para a classe operária”. Desde 2007 o Brasil se encontra entre os países de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) alto, “[…] a notícia é boa por indicar que, independentemente de classificação, o Brasil esta melhorando, de forma geral, as condições de vida de sua população” (TACIRO, 2008, p. 17). Maior aplicação das normas constitucionais, principalmente relativas aos direitos fundamentais e sociais contribui para tanto, conforme Silva (2010, p. 467) “[…] a garantia das garantias consiste na eficácia e aplicabilidade imediata das normas constitucionais”. Para Venturoli (2008, p. 122), “(…) uma criança brasileira nascida em 2006 provavelmente passará a maior parte da vida morando na cidade, e não no campo. Se nada se alterar nas tendências atuais, ela deverá se alfabetizar e completar o ensino fundamental na idade adequada. Terá um filho e relutará em ter o segundo. Morrerá com cerca de 72 anos, mas o filho viverá bem mais. Isso não é um jogo de previsão do futuro. É uma projeção da vida de um brasileiro médio, construída pelos últimos dados levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).” A desigualdade social ainda é fator que contribui para os níveis de desenvolvimento do país e consequente acesso ao trabalho e outros direitos sociais, nas palavras de Taciro (2008, p. 20) “(…) dinheiro serve para garantir vida digna, e não para produzir milionários”. O trabalho é uma das formas que dignificam o homem e possibilita que tenha acesso a direitos mínimos e consequentemente dignidade. Embora em seu início, o trabalho fosse tido como sinônimo de rebaixamento, pois as classes mais baixas serviam as abastadas. Os direitos fundamentais e sociais são essenciais para a manutenção da dignidade humana e garantidores de um Estado Democrático de Direito realmente eficaz e justo. Conclusão A dignidade humana é fundamento do Estado Brasileiro, e como tal precisa da efetivação dos direitos fundamentais e sociais, a fim de que se concretize. Direitos de liberdade, igualdade e fraternidade são alguns exemplos de direitos que precisam ser concretizados para que a dignidade humana possa ser realidade para um número cada vez maior de pessoas. Não há que se falar em um Estado justo sem que haja direitos efetivos para a sua população, com acesso à Justiça, com a defesa de seus direitos e com a manutenção da plena qualidade de vida. A dignidade humana é a base de toda a sociedade e, é dever de todos preserva-la.
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Trabalho, Direito e Políticas Públicas: Desafios da educação em São Paulo na contemporaneidade
Resumo. A educação no âmbito da rede pública de São Paulo se transformou nos últimos anos numa grande “caixa de pandora”, em que a sabor de governos e partidos se adotam políticas que visam mais interesses eleitoreiros que uma política de Estado para a educação no século XXI como direito fundamental previsto no artigo 6º da Constituição Federal.
Direitos Humanos
1. AS POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO: DO DISCURSO À PRÁTICA DO TRABALHO NAS ESCOLAS Governos ditos acima do bem e do mal ditam o “direito fundamental à educação” a partir de valores de classe abastada, sem atentar para um plano nacional de educação que promova a dignidade a todos os envolvidos no processo ensino-aprendizagem. As escolas se transformaram em laboratórios de experiências mal sucedidas no que tange a disciplina de professores e alunos pelo panóptico, instalado para o controle e normalização de pessoas e espaços da escola como poder constituído pela gestão como tradição de “vigiar e punir” similar às prisões e aos manicômios. (FOUCAULT, 2008) Ao mesmo tempo em que as responsabilidades pela mudança educacional é de via única, ou seja, recai sobre a escola e os professores o “sacerdócio” em salvar as crianças dos abismos sociais e da precariedade nas políticas públicas e nas condições de vida digna com renda, habitação, saúde, emprego, e mesmo a garantia de matrícula do aluno da escola pública na universidade pública, conforme entendimento da política de cotas julgada pelo STF com repercussão geral (Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=207003>. Acesso em 20/05/2012). 2. A BUROCRACIA EDUCACIONAL E O ENGESSAMENTO DA PROFISSÃO DOCENTE: DA VIOLÊNCIA SIMBÓLICA E FÍSICA AO ADOECIMENTO No entanto, governos resistem à implantação das políticas afirmativas criando entraves burocráticos a sua implementação pela velha política elitista que aposta na manutenção de desigualdades sociais, na certeza que os filhos dos mais abastados financeiramente têm o direito a continuar estudando nas melhores universidades públicas, enquanto a maioria deve continuar à margem da sociedade enchendo presídios. Por outro lado os governos passam a repressão aos movimentos sociais que lutam por melhores condições de vida e trabalho, profissionais da educação, se veem engessados pelo não atendimento às suas reivindicações e pelo tratamento dispensado por administrações ditas de direita, centro e esquerda. O que resulta no adoecimento dos professores que lidam com a violência cotidiana nas escolas, que começa pelos baixos salários pagos aos professores pelos governos locais, o que resulta na precarização da profissão já desvalorizada pela mídia que utiliza do discurso competente (CHAUÍ, 2001) e por especialista que não conhecem a realidade educacional. Traduz-se o dilema docente do adoecimento e abandono da profissão por não vislumbrarem a possibilidade de melhorias salariais e a normalização disciplinar a que são submetidos, além da violência cotidiana, sem garantias de uma carreira com dignidade. Finalizando alguns fatores devem ser considerados em a partir da nossa análise: melhoria nas condições de trabalho e salário na educação e a aprovação do plano nacional de educação; a regulamentação legal do assédio moral na educação (que começa com a violência institucional desde as condições de agressão verbal e física na sala de aula até as relações aluno-docente-equipe gestora), bem como a criação do adicional insalubridade no magistério pelos Poderes Legislativos local; um referencial ético mínimo da gestão passa pela realização de concurso público para todos os cargos da equipe gestora. CONCLUSÃO Entre o discurso e às práticas dos governos em seu conjunto resulta a precarização das condições de trabalho e no fracasso do processo ensino-aprendizagem. Associado a um ambiente insalubre em que se convive com a violência todos os dias, seja pela pressão exercida sobre os profissionais de educação, em especial pelo panóptico que se transformou a escola como local de reificação de pessoas. Conferem-se poderes a pessoas desqualificadas para gerir a coisa pública, quase sempre ocupando funções de liderança sem concurso público e sem as competências e habilidades necessárias ao exercício da profissão.
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Direitos humanos e direitos fundamentais: conceito, genese e algumas notas históricas para a contribuição do surgimento dos novos direitos
Os direitos humanos representam uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana e correspondem ao conjunto de faculdades e instituições que em cada momento histórico, concretizam as exigências de dignidade, liberdade e igualdade humanas, as quais devem e são reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional. Esses direitos são considerados fundamentais porque sem eles a pessoa humana não consegue existir ou não é capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida social e política. Este artigo tem por escopo trazer o conceito, a gênese e alguns aspectos gerais e históricos dos direitos humanos e direitos fundamentais com objetivo de contribuir para a reflexão sobre a importância do direito na organização da vida social e o surgimento dos chamados ‘novos direitos’. Em termos de metodologia, foi usado o método dedutivo, com auxílio das técnicas do referente, dos conceitos operacionais e da revisão bibliográfica.
Direitos Humanos
Abstract: Human rights represent a shorthand way to mention the fundamental rights of the human person and correspond to the number of colleges and institutions in each historical moment, embodying the requirements of dignity, freedom and human equality, which should positively and are recognized by jurisdictions at national and international level. These rights are considered fundamental because without them the human person cannot exist or is not able to develop and to participate fully in social and political life. This article has the purpose to bring the concept of the genesis and some general and historical human rights and fundamental rights in order to contribute to the reflection on the importance of law in the organization of social life and the emergence of so-called 'new rights' aspects. In terms of methodology, we used the deductive method, using the techniques of the referent, the operational concepts and literature review. For discussion the paper is structured as follows: 1. Initial considerations: Some historical notes on human rights; 2. The concept of human rights; 3. Genesis of human rights; 4. Classification of the list of fundamental rights; 5.  Liberty, equality and solidarity as fundamental rights; 6. New rights: the fourth and fifth generation of fundamental rights. Keywords: Human Rights, Fundamental Rights, New Rights. Sumário: 1. Considerações iniciais: algumas notas históricas sobre os direitos humanos; 2. O conceito de direitos humanos; 3. Gênese dos direitos humanos; 4. A classificação do rol de direitos fundamentais; 5. Liberdade, igualdade e solidariedade como direitos fundamentais; 6. Os novos direitos: a quarta e a quinta geração dos direitos fundamentais.  1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS: ALGUMAS NOTAS HISTÓRICAS SOBRE OS DIREITOS HUMANOS A consagração dos direitos humanos ou direitos fundamentais[1] é fruto de mudanças ocorridas ao longo do tempo em relação à estrutura da sociedade, bem como de diversas lutas e revoluções. Ferrajoli (1999) diz que os direitos fundamentais surgem na história sempre como reivindicações dos mais débeis, dos mais fracos. Já Arendt (1997) considera que os direitos humanos não são um dado, mas sim um construído. É nessa lógica que Garcia (2008) esteando-se em Peces-Barba (1982) afirma que os direitos fundamentais são um conceito histórico do mundo moderno que surge progressivamente a partir do ‘trânsito a modernidade’[2]. É no período do transito a modernidade que nasceu uma nova mentalidade, que preparou o caminho para o surgimento de um novo homem e de uma nova sociedade que brotou progressivamente até a positivação das demandas jusnaturalistas dos direitos do homem nos documentos das chamadas revoluções burguesas[3]. O presente artigo tem por objetivo trazer alguns aspectos gerais e históricos dos direitos humanos e direitos fundamentais com o intuito de contribuir para a reflexão sobre a importância do direito na organização da vida social e o surgimento dos chamados “novos direitos”. 2. CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS De acordo com Peres Luño (1995, p. 22), há três tipos de definição dos direitos humanos: a primeira é a definição tautológica, que não aporta nenhum elemento novo que permite caracterizar tais direitos. Como exemplo, temos a definição segundo a qual os direitos humanos são todos aqueles que correspondem ao homem pelo fato de ser homem. Todavia, diz Carvalho Ramos (2005) que como se sabe, todos os direitos são titularizados pelo homem ou por pessoas jurídicas, de modo que a definição acima citada encerra uma certa repetição de princípio. A segunda definição é a formal, que, ao não especificar o conteúdo dos direitos humanos, limita-se a alguma indicação sobre o seu regime jurídico especial. Esse tipo de definição consiste em estabelecer que os direitos humanos são aqueles que pertencem a todos os homens e que não podem ser deles privado, em virtude de seu regime indisponível e sui generis. Para Miranda (1993, p. 9), tal definição formal estabelece que “direitos humanos é toda posição jurídica subjetiva das pessoas enquanto consagradas na lei fundamental”. A terceira e última definição é a finalística ou teleológica, na qual se utiliza o objetivo ou fim para definir o conjunto de direitos humanos. Tal definição diz que os direitos humanos são aqueles essenciais para o desenvolvimento digno da pessoa humana. Para essa definição, Dallari (1998, p. 7) considera que os direitos humanos representam uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana. Esses direitos são fundamentais porque sem eles o ser humano não conseguirá existir ou não será capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida social e política.    Na mesma esfera temos a definição de Peces-Barba (1982, p. 7) que consideramos mais completa, e, por conseguinte, adotamos para este artigo. Essa definição diz que, direitos humanos “são faculdades que o direito atribui a pessoa e aos grupos sociais, expressão de suas necessidades relativas à vida, liberdade, igualdade, participação política ou social, ou a qualquer outro aspecto fundamental que afete o desenvolvimento integral das pessoas em uma comunidade de homens livres, exigindo o respeito ou a atuação dos demais homens, dos grupos sociais e do Estado, e com garantia dos poderes públicos para restabelecer seu exercício em caso de violação ou para realizar sua prestação”. Com o mesmo intuito, Peres Luño (1995, p. 48) compatibilizando a evolução histórica dos direitos humanos com a necessidade de definição de seu conteúdo, considera direitos humanos como o conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências de dignidade, liberdade e igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional.  3. GENESE DOS DIREITOS HUMANOS A pergunta que se coloca é: qual é a gênese dos direitos humanos? Esta é uma questão bastante complexa, cujo debate é adjacente ao surgimento do próprio direito. Porém, Spieler (2010) diz que alguns autores vêem nas primeiras instituições democráticas em Atenas o princípio da primazia da lei, isto é, do nomos, (que constitui a regra que emana da prudência da razão, e não da simples vontade do povo ou dos governantes) e da participação ativa do cidadão nas funções do governo – o primórdio dos direitos políticos. Ainda na idade antiga, a República Romana, por sua vez instituiu um complexo sistema de controles recíprocos entre órgãos políticos e um complexo mecanismo que visava à proteção dos direitos individuais.  Convém salientar como ressalta Spieler (2010) que na passagem do séc. XI ao séc. XII, ou seja, da baixa idade média para a alta idade média, voltava a tomar força à idéia de limitação do poder dos governantes, pressuposto do reconhecimento, séculos depois, da consagração de direitos comuns a todos os indivíduos, do clero, da nobreza e do povo. A partir do séc. XI há um movimento de reconstrução da unidade política perdida com o feudalismo. O imperador e o papa disputavam a hegemonia suprema em relação a todo o território europeu, enquanto que os reis – até então considerados nobres – reivindicavam os direitos pertencentes à nobreza e ao clero. Nesse sentido, a elaboração da Carta Magna em 1215[4] foi uma resposta a essa tentativa de reconcentração do poder (limitou a atuação do Estado). Alguns autores tratam esse momento como o embrionário dos direitos humanos. Outros asseveram sua natureza como meramente contratual, acordado entre determinados atores sociais e, referente exclusivamente aos limites aos limites do poder real em tributar. É importante salientar, que durante a idade média, a noção de direito subjetivo estava ligada ao conceito de privilégios, uma vez que, até a Revolução Francesa, a sociedade européia se organizava em ordens ou estamentos. (SPIELER, 2010). A reforma protestante é vista como a passagem das prerrogativas estamentais para os direitos do homem, uma vez que a ruptura da unidade religiosa fez surgir um dos primeiros direitos individuais: o da tolerância e liberdade de opção religiosa[5]. Dentre as conseqüências da reforma, destaque-se: a laicização do direito natural a partir de Grócio e o apelo à razão como fundamento do Direito. Como resultado da difusão do direito natural e no contexto das revoluções burguesas, são impostos limites ao poder real por meio da linguagem dos direitos. Destacam-se aqui: na Inglaterra, o Habeas Corpus Act de 1679[6] e o Bill of Rights de 1689[7]; nos Estados Unidos, a Declaração de Independência[8] e a Declaração de Virgínia de 1776; e na França, a Declaração dos Direitos dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, todas inspiradas no direito natural. (SPIELER, 2010).   É importante ressaltar que ambas as Declarações consagraram os direitos de primeira geração, ao passo que os direitos de segunda geração (embora a Constituição francesa de 1791 já estipulasse deveres sociais do Estado, não dispunha sobre os direitos correlativos dos cidadãos) só tiveram sua plena afirmação com a elaboração da Constituição mexicana, em decorrência da Revolução Mexicana em 1917, e da Constituição de Weimar em 1919. Entre essas, atende-se para o ponto comum: a insuficiência da abstenção estatal como forma de garantia de direitos (SPIELER, 2010). Em face de alguns direitos, como é o caso do direito ao trabalho, à educação e à saúde, somente a intervenção estatal é capaz de garanti-los. Já os direitos de terceira geração só foram consagrados após a Segunda Guerra Mundial, com base na idéia de que existem direitos baseados na coletividade. Quanto ao momento histórico em que os direitos humanos foram galgados ao patamar internacional, embora o direito humanitário e a Organização Internacional do Trabalho – OIT, já indicassem a necessidade de uma proteção de direitos que se sobrepusesse aos ordenamentos internos, as atrocidades cometidas durantes as Guerras Mundiais, notadamente na Segunda, deixou transparente a necessidade de se estabelecerem marcos inderrogáveis de direitos a serem obedecidos por todos Estados na concertação estabelecida no pós-guerra. Nesse contexto, a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH, em 1948, significou um marco da consagração da universalidade dos direitos humanos. Por sua vez, o final da década de 80 foi marcado pela derrocada do socialismo real. No decorrer da década de 90, ganha força o discurso de que os direitos humanos não eram mais discursos dos blocos, mas tema que deveria compor a agenda global. É nesse contexto que se desenvolveram as grandes conferências da década de 90, destacando-se a Conferência de Viena de 1993, a qual consagrou os paradigmas da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. (CANÇADO TRINDADE, 1997). 4. A CLASSIFICAÇÃO DO ROL DE DIREITOS FUNDAMENTAIS Sempre que se pretende falar da classificação do rol de direitos humanos, é importante referir-se a uma das principais discussões, que é quanto ao uso do termo geração ou dimensão. Alguns autores preferem o uso do termo geração, outros consideram correto o termo dimensão. Neste trabalho, não é importante discutir essas denominações, porém optamos por utilizar o termo geração, não significando, no entanto, que olvidamos o uso do outro termo, até porque levamos em conta a lição de Flávia Piovesan (1998), quando ensina que uma geração não substitui a outra, mas com ela interage, estando em constante e dinâmica relação. No mesmo diapasão, Garcia (2008) ressalta que uma geração não supera a outra como querem alguns críticos, uma geração traz novos elementos aos direitos fundamentais e complementa a anterior geração. Alguns autores classificam os direitos fundamentais em três gerações, outros adotam quatro gerações de direitos humanos e, outros ainda defendem a existência de cinco gerações. Quanto a nós, apesar de sermos de preferência da divisão mais tradicional, lançada por Karel Vasak em Conferência proferida no Instituto Internacional de Direitos Humanos no ano de 1979 que classificou os direitos humanos em três gerações, reconhecemos também a importância das outras gerações de direitos fundamentais (portanto, a quarta e a quinta) para o surgimento dos chamados novos direitos, que apresentaremos posteriormente, ainda neste trabalho.   Assim, de acordo com Carvalho Ramos (2005, p. 82-83), a primeira geração engloba os chamados direitos de liberdade, que são direitos as chamadas prestações negativas, nas quais o Estado deve proteger a esfera de autonomia do indivíduo. Diz Canotilho (1993, p. 505), que estes são os direitos de defesa e possuem o caráter de distribuição de competências (limitação) entre o Estado e o ser Humano, sendo denominados direitos civis e políticos. Por isso são conhecidos como direitos ou liberdades individuais que têm como marco as revoluções liberais do séc. XVIII na Europa e Estados Unidos, que visavam restringir o poder absoluto do monarca, impingindo limites à ação estatal. São entre outros o direito à liberdade, igualdade perante a lei, propriedade, intimidade e segurança, traduzindo o valor da liberdade. Bonavides (1993, p. 475) assevera que “os direitos de primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico”; em fim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado.    A segunda geração dos direitos humanos são os direitos sociais nos quais o sujeito de direito é visto enquanto inserido no contexto social, isto quando analisado em uma situação concreta. Trata-se da passagem das liberdades negativas de religião e opinião, por exemplo, para os direitos políticos e sociais, que requerem uma intervenção direta do Estado, representando, portanto, a modificação do papel do Estado, exigindo-lhe um vigoroso papel ativo, além do mero fiscal das regras jurídicas. Esse papel ativo diz Carvalho Ramos (2005, p. 84) embora necessário para proteger os direitos de primeira geração, era visto, anteriormente com desconfiança, por se considerar uma ameaça aos direitos do individuo. Contudo, sob influencia das doutrinas socialistas, constatou-se que as inserções formais de liberdade e igualdade em declarações de direitos não garantiam a sua efetiva concretização, o que gerou movimentos sociais de reivindicação de um papel ativo do Estado para realizar aquilo que Lafer (1991, p. 127) chamou de “direito de participar do bem estar social”. Cabe frisar que, tal como os direitos da primeira geração, os direitos sociais são também titularizados pelo indivíduo contra o Estado. Nesse momento, são reconhecidos os chamados direitos sociais como o direito à saúde, educação, previdência social, habitação, entre outros que demandam prestações positivas do Estado para seu atendimento e são denominados “direitos de igualdade” por garantirem, justamente às camadas mais miseráveis da sociedade, a concretização das liberdades abstratas reconhecidas nas primeiras declarações de direitos.   Os direitos humanos de segunda geração são frutos das chamas lutas sócias da Europa e Américas, sendo seus marcos a Constituição mexicana de 1917, que regulou o direito ao trabalho e à previdência social; A Constituição alemã de Weimar de 1919, que em sua parte II estabeleceu os deveres do Estado na proteção dos direitos sociais e; no Direito Internacional, o Tratado de Versailles, criou a Organização Internacional do Trabalho, reconhecendo direitos dos trabalhadores. Já os direitos de terceira geração são os trans-individuais, também conhecidos por direitos coletivos e difusos, aqueles que de acordo com Sarlet (1998, p. 50) trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos.   Tratam-se daqueles direitos de titularidade da comunidade, como o direito ao desenvolvimento, o direito do consumidor, o direito à paz, o direito a autodeterminação, principalmente o direito ligado as questões ecológicas, o que Carvalho Ramos (2005, p. 84) denomina de “direitos de solidariedade” por resultarem da descoberta do homem vinculado ao planeta Terra, com recursos finitos, divisão absolutamente desigual de riquezas em verdadeiros círculos viciosos de miséria e ameaças cada vez mais concretas à sobrevivência da espécie humana. 5. LIBERDADE, IGUALDADE, E SOLIDARIEDADE COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS A Revolução Francesa de 1789 trouxe a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão sob a tríade Liberdade, Igualdade e Fraternidade ou Solidariedade, que marcou a primeira vitória pelo reconhecimento dos Direitos Humanos. Assim o séc. XIX pode ser designado como o século da Liberdade. Ainda que a história da luta pela liberdade seja adjacente a própria história humana, será nessa quadra civilizatória que o ideal libertário se materializará. Como exemplo disso, cai os grilhões da escravidão. (ABREU, 2011, p. 142). Esta liberdade corporal – revelada no direito de ir e vir e de permanecer – é a mais primária de todas as suas formas de expressão e a mais fundamental, já que todas as outras nela se amparam.  Entretanto, acrescenta Abreu (2011, p.142): “a Liberdade tem sentidos muito mais amplos do que apenas os direitos de locomoção, de liberdade de pensamento, de expressão, de consciência, de crença, de informação, de decisão, de reunião, de associação, em fim, todas estas e outras que afiançam uma vida digna a pessoa humana. Para que a pessoa seja de fato livre, é imperioso, inicialmente, que seja ela liberta da miséria, do analfabetismo, do subemprego, da subalimentação, da submoradia, etc”. Assim, a luta pela liberdade continua não só para manter os direitos já conquistados, mas, sobretudo, para afirmar a liberdade àqueles que ainda a perseguem. Se o séc. XIX foi denominado o século da liberdade, o séc. XX foi cognominado como o séc. da igualdade, pois, desde os seus primórdios, houve movimentos pelo reconhecimento da igualdade política entre homens e mulheres, brancos e negros. No seu transcurso se desenvolverá todo o ideário contra a discriminação fundada em sexo, raça, cor, origem, credo religioso, estado civil, condição social ou orientação sexual, chegando-se assim, portanto, à igualdade como uma medida de discriminação positiva, ou seja, a proibição de agravamento de desigualdades ou diferenças já existentes. (Alexy, 1997). Daí a luta contínua contra outras formas de injustiça marcadas pela desigualdade entre os indivíduos. Do mesmo modo Hobsbown (2007) cognominou o séc. XX como ‘a era dos extremos’, pretendendo denominar a época mais extraordinária da humanidade, uma era caracterizada por grandes avanços de ordem científica, tecnológica, conquistas materiais expressivas, além da capacidade de transformar e quiçá de destruir o planeta e uma combinação de exclusão social, criminalidade violenta e calamidades humanas de dimensões sem precedentes. Já o séc. XXI inaugura um novo milênio e levanta a última bandeira da Revolução Francesa: a Fraternidade ou Solidariedade. Nesse novo pórtico civilizatório, impõe-se a Solidariedade como uma ferramenta para as ações governamentais, empresariais e interpessoais. Portanto a proteção dos direitos parte do âmbito individual para o coletivo, impondo-se a consciência de que os direitos fundamentais (especificamente os de liberdade e igualdade) só serão efetivamente assegurados se forem garantidos a todos. É a época de concretização do bem comum onde se sobrelevam os direitos inerentes a pessoa humana não considerada particularmente, mas como coletividade, tais como: o direito ao meio ambiente, a paz, a segurança, a moradia, ao desenvolvimento e outros. (ABREU, 2011). 6. OS NOVOS DIREITOS: A QUARTA E A QUINTA GERAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS Conforme dito anteriormente, o séc. XXI inaugura um novo milênio e nele abre-se espaço para a realização do último signo da Revolução Francesa: a Fraternidade ou Solidariedade. Trata-se de um tempo de mudança ou época da informação, conforme prefere Manuel Castells (2003), uma época em que a globalização e a revolução da informação transformaram os homens na sua forma de viver, de produzir, de consumir, de negociar e de se comunicar. Esses fatores propiciaram novas formas de ser e estar do ser humano, que por sua vez, propiciou o surgimento de novos direitos como resultado da judicialização das relações sociais. De acordo com Werneck Vianna (1999), a judicialização das relações sociais corresponde justamente à crescente difusão do direito na organização da vida social.  O Estado regula as relações, ditando normas de conduta com o objetivo de proteger desde as mulheres vitimizadas, os pobres, o meio ambiente, passando pelas crianças e pelos adolescentes em situação de risco, pelos dependentes de drogas e pelos consumidores inadvertidos. Trata-se de novos objetos sobre os quais se debruça o Poder Judiciário, levando a que as sociedades contemporâneas se vejam, cada vez mais, enredadas na semântica da justiça. Para entendermos o que são esses nos novos direitos, bem como para compreender a condição de direito e de cidadão é importante se debruçarmos sobre a quarta e a quinta geração de direitos humanos. Assim, a quarta geração dos direitos humanos seriam os chamados direitos de manipulação genética, relacionados à biotecnologia e a bioengenharia, e que tratam de questões sobre a vida e a morte e que requerem uma discussão ética prévia. (OLIVEIRA JÚNIOR, 2000, p. 85-86). Bonavides (1997, p. 527) apoiando-se nas lições de Karel Vasak diz que esses direitos de quarta geração resultam da globalização dos direitos humanos, correspondendo aos direitos de participação democrática, informação, direito ao pluralismo, bem como ao direito de comunicação. Acrescenta ele que há também o reconhecimento de novos direitos, como os nascidos da chamada bioética e limites à manipulação genética, fundados na defesa da dignidade da pessoa humana contra intervenções abusivas de particulares ou do Estado (direitos de defesa, associados à primeira geração de direitos humanos). Finalmente os direitos de quinta geração, surgem como resultado da realidade virtual, que correspondem ao grande desenvolvimento da cibernética, implicando o rompimento de fronteiras, estabelecendo conflitos entre países com realidades distintas [9].  Como exemplo de novos direitos agregados ao rol de direitos humanos, menciona Celso Lafer (1991, p. 131) que “O direito ao desenvolvimento, reivindicado pelos países em subdesenvolvimento nas negociações no âmbito do diálogo Norte/Sul sobre uma nova ordem econômica internacional; o direito a paz, pleiteado nas negociações sobre desarmamento; o direito ao meio ambiente argüido no debate ecológico; e o reconhecimento dos fundos oceânicos como patrimônio comum da humanidade, a ser administrado por uma autoridade internacional e em benefício da humanidade em geral”.  Comenta Oliveira Júnior (2000), que nos últimos anos tem-se acelerado o processo de multiplicação dos direitos, por três razões principais, a saber: “a) Pelo aumento de bens a serem tutelados; b) Pelo crescimento do número de sujeitos de direito e; c) Pela ampliação do tipo de status dos sujeitos.” A titularidade de alguns desses direitos foi estendida dos sujeitos individuais aos grupos, conforme foi dito anteriormente e o homem passa a ser encarado na sua especificidade ou na sua concretude em sociedade, não mais como ser abstrato ou sujeito genérico, mas como trabalhador, idoso, criança ou mulher, e nesse enfoque ampliaram-se os status a serem protegidos pelo direito.  Esses novos direitos revelam, portanto o aumento da complexidade social. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os direitos humanos constituem uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais do ser humano e correspondem ao conjunto de faculdades e instituições que em cada momento histórico, concretizam as exigências de dignidade, liberdade e igualdade humanas, as quais devem e são reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos nível nacionais e internacionais. Esses direitos são fundamentais é através deles que o individuo se desenvolve e participa plenamente da vida social e política. Esses direitos nascem em certas circunstâncias históricas, de modo gradual, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades que somente foram possíveis a partir de acontecimentos marcantes que levaram a uma mudança na estrutura da sociedade e na mentalidade do ser humano. A globalização, os avanços da ciência, principalmente a medicina, as conquistas materiais e a revolução da informação transformaram os homens na sua forma de viver, propiciando o surgimento de novos direitos que vêm se difundindo nas relações sociais, incluindo aquelas de natureza puramente privadas.
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Os direitos fundamentais e sua nova dimensão contemporânea
O presente trabalho discorre sobre a trajetória histórica do reconhecimento dos direitos fundamentais até o presente momento quando se percebe um espaço negro entre o avanço científico e a produção jurídica acerca das repercussões das biotecnologias. A necessidade de estudo e regulamentação dos efeitos que o avanço científico repercute no ser humano atrai o estudo acerca dos direitos fundamentais e a dignidade humana, como diretriz norteadora. O princípio da dignidade humana dentro deste contexto exerce uma importante função em decorrência de sua característica atrativa, central e unificadora do sistema jurídico, sendo inclusive o núcleo finalístico de todo e qualquer Estado Democrático de Direito.
Direitos Humanos
Introdução O desenvolvimento das ciências faz parte do progresso da humanidade, que se empenha na busca da criação de melhores condições de vida, na melhor comodidade urbana, na extirpação de pragas, doenças e anomalias, entre tantos anseios sociais. Acontece, no entanto, que muitas vezes esse desenvolvimento científico não é acompanhado pelo desenvolvimento moral, ético e jurídico da sociedade, promovendo muitas vezes violações à dignidade humana, através de ofensas à intimidade, liberdade e na própria integridade física e psíquica humana. O desenvolvimento científico não deve ser obstaculizado, pois constitui importante instrumento transformador e protetor da sociedade, que cada vez mais possui novas e prementes necessidades. Essas novas exigências sociais demandam novas reflexões acerca de valores morais e éticos que entram em conflito diante do avanço científico. O princípio da dignidade humana constitui importante direito fundamental de um Estado de Direito e o seu reconhecimento e a sua aplicação constitui apontador do progresso histórico da sociedade. Não por outra razão no presente estudo se estudará a trajetória histórica dos direitos fundamentais, nele incluído o princípio da dignidade humana, para que possamos, assim, compreender a evolução dos direitos fundamentais diante das novas necessidades sociais decorrentes do avanço tecnológico. Não se ambiciona nesse trabalho exaurir as hipóteses de avanço científico que acabam por ferir a dignidade humana, mas sim descortinar as nuances que se manifestam o princípio da dignidade humana e seus reflexos na busca de  reflexões em busca de soluções para o enfrentamento de questões complexas que envolvem o desenvolvimento científico e que ainda não possuem um posicionamento jurídico pacífico. 2. Direitos Fundamentais 2.1 Conceito e  diferenciação  Necessária se faz a prévia distinção entre Direitos Naturais, Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. A distinção entre direitos naturais, direitos humanos e direitos fundamentais não constitui ponto pacífico na doutrina, no entanto neste estudo utilizar-se-á da classificação advogada pelo professor Sarlet(2012), que entende que Direitos Naturais ou Direitos do Homem são todos aqueles outorgados a todos os homens(universalidade) pela sua mera condição humana em qualquer tempo, inclusive em período pré-estatal(perene). Entende-se que o direito natural seria um conjunto de princípios e não de normas escritas (não positivado), que nasceu com o próprio homem e derivou-se da conjugação da experiência e da razão, cuja titularidade é exclusiva do ser humano, sendo, portanto, imutável, universal e eterno. Os adeptos desta teoria são denominados de jusnaturalistas. De forma diversa pensava Bobbio(1909[2004]), para quem os direitos do homem ou naturais não são decorrentes pura e simplesmente da natureza humana como defende a corrente jusnaturalista, mas sim decorrem de lutas, sendo produto cultural e histórico da humanidade. Vejamos trecho de sua obra acerca desse tema: “os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas (pg. 5)”  Neste ponto específico, comungo do entendimento de Bobbio, haja vista que percebe-se que o reconhecimento de novos direitos do homem acontece na medida em que se apresentam novas necessidades. Direitos fundamentais de um período, modificam-se e complementam-se em outro período. O avanço tecnológico e as modificações culturais marcantes do século XXI, por exemplo, exigem o reconhecimento de novos direitos fundamentais que antes sequer eram cogitados. Para Sarlet(p. 29/30, 2012) a distinção entre direitos naturais e direitos humanos constitui no fato de que o segundo são direitos naturais positivados em um plano internacional ou ultra estatal. Já os direitos fundamentais são direitos naturais positivados em âmbito constitucional de um determinado Estado. Em razão dessa ligação entre direitos fundamentais e a Constituição pode-se afirmar que a presença de direitos fundamentais em uma Constituição constitui seu núcleo finalístico maior e pressupõe a existência de um Estado de Direito, com a devida separação de poderes. Nesse sentido o art. 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do cidadão, de 26 de agosto de 1789, segundo a qual “toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes determinada não possui Constituição”. Diante das premissas acima expostas, conceituamos Direitos fundamentais como normas principiológicas nucleares de uma Constituição de um Estado de Direito, tendo o o princípio da dignidade humana o seu alicerce fundamental. Nesse sentido José Afonso da Silva(2006): “A dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.” Ressalta-se que a nossa Constituição Federal de 1988 destacou o princípio da dignidade humana não apenas como um direito fundamental, mas também como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme se depreende do inciso IV do art. 1º da Carta Magna, razão pela qual esse princípio deve se irradiar seus efeitos por todo o corpo da Constituição. Piovesan(2014) enfatiza o poder unificador e centralizador do sistema jurídico que o princípio da dignidade exerce: “Assim, deitando seus próprios fundamentos no ser humano em si mesmo, como ente final, e não como meio, em reação à sucessão de horrores praticados pelo próprio ser humano, lastreado no próprio direito positivo, é esse princípio, imperante nos documentos constitucionais democráticos, que unifica e centraliza todo o sistema; e que, com prioridade, reforça a necessária doutrina da força normativa dos princípios constitucionais fundamentais. A dignidade humana simboliza, deste modo, um verdadeiro superprincípio constitucional, a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo, dotando-lhe especial racionalidade, unidade e sentido”(p. 539) 2.2 Fases históricas dos Direitos Fundamentais A evolução histórica do reconhecimento dos direitos fundamentais se fragmenta em três fases, segundo  K. Stern, citado por Sarlet (2012, pg. 37): a)uma pré-história, que se estende até o século XVI;  b)uma fase intermediária, que corresponde ao período de elaboração da doutrina    Jusnaturalista e da afirmação dos direitos naturais do homem; c) a fase da constitucionalização, iniciada em 1776, com as sucessivas declarações de direitos dos novos Estados americanos.” Neste trabalho nos deteremos na terceira fase, no entanto não poderíamos deixar de citar de forma pontual alguns fatos relevantes da primeira e da segunda fase que influenciaram a fundamentação teórica da positivação dos direitos fundamentais. Acerca da fase pré-história dos direitos fundamentais, Sarlet (2012) afirma a importância da religião e da filosofia para a formação da ideologia jusnaturalista, senão vejamos: “De modo especial, os valores de da dignidade pessoal humana, da liberdade e da igualdade dos homens encontram suas raízes na filosofia clássica, especialmente na greco-romana, e no pensamento cristão. Saliente-se aqui, a circunstância de que a democracia ateniense constituía um modelo político fundado na figura do homem livre e dotado de individualidade. Do antigo testamento, herdamos a ideia de que o ser humano representa o ponto culminante da criação divina, tendo sido feito à imagem e semelhança de Deus. Da doutrina estoica greco-romana e do cristianismo, advieram, por sua vez, a tese da unidade da humanidade e da igualdade de todos os homens em dignidade (para os cristãos, perante Deus)”(p. 38) Sobre a fase intermediária,  C. Lafer apud Sarlet destaca o apogeu da doutrina jusnaturalista a partir do século XVI até início do século XVIII, através da colaboração doutrinária das teorias contratualistas, iniciada por Thomas Hobbes(1588-1679) e desenvolvida por Jonh Locke(1632-1704), que resumidamente afirmava: “de que os homens têm o poder de organizar o Estado e a sociedade de acordo com sua razão e vontade, demonstrando que a relação autoridade-liberdade se funda na autovinculação dos governados, lançando, assim, as bases do pensamento individualista e do jusnaturalismo iluminista do século XVIII, que por sua vez desaguou no constitucionalismo e no reconhecimento de direitos de liberdade dos indivíduos considerados como limites ao poder estatal.”[1](p. 40) Movidos e contagiados por tais ideais, surgiram diversas declarações antecedentes aos denominados Direitos Fundamentais que se entende conceitualmente hoje, que previam direitos, liberdades e deveres individuais, tais como as declarações inglesas Petition of Rights (1628), o Habeas Corpus Act (1679) e o Bill of Rights (1689), o Establishment Act (1701).  Ressalta-se que bem antes, durante o século XIII, especificamente em 1215, já despontava na Inglaterra a Magna Charta Libertatum, uma declaração que se tornou referência para alguns direitos civis clássicos, tais como o habeas corpus, o devido processo legal e a garantia da propriedade[2]. 2.3  Positivação dos direitos fundamentais O terreno fértil para a proclamação dos primeiros direitos fundamentais tinha os  abusos e as arbitrariedades desmedidas dos Estados absolutistas e da Igreja como adubos, que começaram a incomodar a crescente classe burguesa na Europa do século XVIII. A sociedade burguesa precisava de instrumentos hábeis a resguardar sua liberdade e propriedade diante do autoritarismo da Coroa e dos abusos do Clero, encontrando na doutrina iluminista e jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII a sua força de argumentação teórica. A doutrina não é pacífica acerca da paternidade dos direitos fundamentais, dividindo-se entre a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia (1776) e a Declaração Francesa (1789), esta última decorrente da célebre revolução burguesa na França. No entanto, o que mais nos interessa neste ponto é o fato de que ambas declarações reconheciam a existência de direitos naturais do homem, direitos estes eram inalienáveis, invioláveis e universais (não restrito a apenas uma casta estatal), como o direito à vida, à liberdade e à igualdade formal. 2.4 Dimensões dos Direitos Fundamentais A moderna doutrina classifica em três dimensões os direitos fundamentais, sendo que a primeira dimensão trata desse apogeu burguês-iluminista acima descrito, que marcou o início do constitucionalismo ocidental (final do século XVIII). Essa fase foi marcada pelo cunho individualista e formalista, que se caracterizava pela finalidade precípua de proteger o indivíduo frente ao Estado. Em razão disso os direitos nessa fase exaltados são chamados de direito de defesa ou de resistência, denotando uma necessidade de uma conduta negativa/omissiva do Estado(Laissez-faire), o que se justificava diante das circunstâncias sociais acima relatadas (arbitrariedades estatais). A palavra-chave desse período era o direito à liberdade, que se desdobrava em direitos civis e políticos. Resume bem essa fase histórica o Ingo Sarlet(2012): “os direitos fundamentais de primeira dimensão encontram suas raízes especialmente na doutrina iluminista e jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII(nomes como Hobbes, Locke, Rousseau e Kant), segundo a qual, a finalidade precípua do Estado consiste na realização da liberdade do indivíduo, bem como nas revoluções políticas do final do século XVIII, que marcaram o início da positivação das reivindicações burguesas nas primeiras Constituições escritas do mundo ocidental.”(p. 46) No decorrer do século XIX a sociedade[3] sentiu (ainda sente até hoje) os efeitos maléficos da industrialização, em especial a grande desigualdade social entre classes, inclusive da classe operária. Esse período foi marcado por reivindicações operárias por melhorias de condições de trabalho e sociais. Percebeu-se falhas de efetividade dos direitos proclamados pelo Estado abstencionista. A igualdade formal proclamada nos Estados liberais não estava satisfazendo os mínimos anseios desta nova sociedade industrializada e urbana. Necessitava-se de uma igualdade material e concreta, sendo a busca por esta igualdade material uma das marcas do Estado do bem-estar social ou Welfare state no decorrer do século XIX.  Percebeu-se que para a fruição plena dos direitos de primeira dimensão (civis e políticos) se fazia necessária a intervenção estatal na economia e na sociedade, através de direitos de caráter prestacional, como por exemplo o direito ao salário mínimo, à educação, à saúde, habitação, e assim por diante. Tais direitos são denominados pela doutrina de direitos fundamentais de segunda dimensão, que se tipificam em direitos sociais, econômicos e culturais. Não se pode perder de vista que os direitos típicos e característicos de cada geração não possuem caráter absoluto e inflexível, sempre passível de atualização e adaptação ante as mudanças sociais. Há direitos de cunho negativo, que determina uma abstenção estatal, mas pelo seu cunho social são enquadrados como de segunda dimensão, como por exemplo as chamadas liberdades sociais – exemplo a liberdade de sindicalização e de greve.  Neste sentido, Bezerra Leite(2008) alertava que “a positivação desses direitos deu origem ao que se convencionou chamar de “constitucionalismo social”, a demonstrar que os direitos humanos de primeira geração, quando do seu exercício, têm que cumprir uma função social.” (pg. 34) Não obstante a positivação dos direitos sociais, por algum tempo havia a ideia de que os referidos direitos tinham caráter meramente programático, haja vista a necessidade da atuação estatal para a sua completa concretização, nesse sentido Bobbio(1909[2004]): “Deve-se recordar que o mais forte argumento adotado pelos reacionários de todos os países contra os direitos do homem, particularmente contra os direitos sociais, não é a sua falta de fundamento, mas a sua inexequibilidade. Quando se trata de enunciá-los, o acordo é obtido com relativa facilidade, independentemente do maior ou menor poder de convicção de seu  fundamento absoluto; quando se trata de passar á ação, ainda que o fundamento seja inquestionável, começam as reservas e as oposições.” (Bobbio, p. 23) Essa argumentação está sendo cada vez mais rebatida em razão do comando de aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais em várias constituições recentes, inclusive no Brasil. Alerta nesse sentido Paulo Bonavides(2015): “Com efeito, até então, em quase todos os sistemas jurídicos, prevalecia a noção de que apenas os direitos de liberdade eram de aplicabilidade imediata, ao passo que os direitos sociais tinham aplicabilidade, por via do legislador”. (pg. 579) Da mesma forma Flávia Piovesan(2014) preconiza que:  “Sob a ótica normativa internacional, está definitivamente superada a concepção de que os direitos sociais, econômicos e culturais não são direitos legais. A ideia da não acionabilidade dos direitos sociais é meramente ideológica e não científica. São eles autênticos e verdadeiros direitos fundamentais, acionáveis, exigíveis e demandam séria e responsável observância. Por isso, devem ser reivindicados como direitos e não como caridade, generosidade ou compaixão.”(pg.173) Os direitos fundamentais de terceira dimensão surge no final do século XX, quando se tornou mais evidente a pulverização de interesses pela sociedade e a coletivização de conflitos. As inovações tecnológicas, a globalização econômica e o consumismo desenfreado tornaram mais complexas as relações sociais, criando blocos de interesses anônimos ou no máximo determináveis na sociedade. Percebeu-se a necessidade de se afastar, por um momento, a visão individualista do conflito e criar instrumentos processuais de proteção dessa massa de interesses pulverizados na sociedade que frequentemente são lesados em seus direitos fundamentais. Dentre os direitos de fraternidade, destacam-se o direito ao meio ambiente, ao patrimônio comum da humanidade, direito do consumidor, direito do contribuinte, e assim por diante. Nesse sentido Bezerra Leite(2008): “A teoria dos interesses metaindividuais surge, assim, em decorrência da preocupação da sociedade ocidental com a chamada “questão social”, fruto da “sociedade de massa”, na qual se verifica a coexistirem inúmeras relações sociais, econômicas e políticas marcadas pelo desaparecimento da individualidade do ser humano, diante da padronização dos comportamentos e das regras correspondentes.”(pg. 46/47) Paulo Bonavides(2015) destaca o caráter de humanismo e universalidade dos direitos da terceira dimensão, bem como a sua titularidade humana. Vejamos: “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.”(pg. 583/584) Já na visão de Ingo Sarlet(2012), a distinção dos direitos de terceira dimensão reside na sua titularidade coletiva, muitas vezes indefinida e indeterminável, como por exemplo o direito ao meio ambiente e à qualidade de vida, direitos que reclamam novas técnicas de garantia e proteção. Destaca-se, também, o conceito de Pérez Luño, que resta abaixo transcrito: “os direitos fundamentais de terceira dimensão são uma resposta da degradação dos direitos e liberdades fundamentais em face do uso de novas tecnologias, destacando-se, neste aspecto, o direito à informática ou liberdade de informática, em decorrência de frequentes lesões à intimidade e à imagem que os meios eletrônicos ocasionam na sociedade”. (Pérez Luño apud Sarlet, 2012, pg. 49) Diante da cronologia das dimensões dos direitos fundamentais, a doutrina percebeu que a Revolução Francesa, por pura coincidência ou por intuição profética, tem como lema ou slogan de sua revolução os direitos que marcam as dimensões dos direitos fundamentais: Liberté, Egalité e Fraternité (Liberdade, igualdade, fraternidade), reconstituindo os direitos característicos de cada dimensão dos direitos fundamentais. A liberdade foi o marco da primeira dimensão dos direitos fundamentais, a busca pela igualdade(material) marcou a segunda dimensão de direitos fundamentais e a fraternidade/solidariedade consiste a base de fundamentação teórica da terceira dimensões de direitos fundamentais. Nesse sentido Bezerra Leite (2008): “A concepção contemporânea dos direitos humanos imbrica, portanto, a liberdade (direitos civis e políticos), a igualdade (direitos sociais, econômicos e culturais) e a fraternidade ou solidariedade (direitos ou interesses meta individuais) como valores indissociáveis, o que implica, por consequência, as características da universalidade, indivisibilidade, interdependência e complementariedade, que esses direitos assumem no âmbito do nosso ordenamento jurídico e do direito internacional.”(pg. 37) Desta feita, ressalta-se que a classificação em dimensões dos direitos fundamentais não possui a capacidade de explicar, por si só, a complexidade da formação e assimilação dos direitos fundamentais pela sociedade. São, na verdade, direitos históricos, nascidos de forma gradual e decorrentes de lutas em defesa de novos direitos.  Como ressalta Noberto Bobbio(2004): “Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstãncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. (pg. 05)  Muito sangue e suor foram derramados e muitas revoltas e reivindicações sociais eclodiram ante agressões à dignidade humana para que ocorressem as transformações do Estado absolutista para o Estado Liberal e deste para o Estado Democrático social. Dentro deste contexto complexo e dinâmico desenvolveu-se e vai continuar a desenvolver o reconhecimento e a proteção dos direitos fundamentais pela sociedade. Destaca-se que a tipologia em dimensões de direitos fundamentais não possui caráter absoluto, haja vista que o conceito dos direitos fundamentais de cada dimensão possui conceito mutável, complementar e progressivo. O direito à propriedade, por mera exemplificação, conforme inicialmente exposto na primeira dimensão, possui outra conotação no Estado Social (função social), como também exerce outra função diante da terceira dimensão dos direitos fundamentais (preocupação ambiental). Da mesma forma, o direito da igualdade e liberdade possuem outra roupagem diante da sociedade de massas e tecnológica. Os novos direitos da sociedade contemporânea e tecnológica não são originariamente novos direitos, mas “velhos” direitos com nova roupagem decorrentes das mutações sociais, sempre originários dos direitos clássicos da vida, liberdade, dignidade humana, igualdade, e assim por diante.   Nesse sentido Bobbio(1909[2004]): “O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses , das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc. direitos que foram declarados absolutos no final do século XVIII, como a propriedade sacre et inviolable , foram submetidos a radicais limitações nas declarações contemporâneas;(…) Não é difícil prever que, no futuro, poderão emergir novas pretensões que no momento nem sequer podemos imaginar, como o direito a não portar armas contra a própria vontade, ou o direito de respeitar a vida também dos animais e não só dos homens. O que prova que não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outra s épocas e em outras culturas”(Bobbio, pg 18) Após o fim da segunda guerra mundial e as consequências degradantes que o ser humano se submeteu, necessitou-se de um diploma normativo internacional que coibisse ou tentasse prevenir essas tragédias humanas. Com esse intuito que foi proclamada a  Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, onde fortaleceu-se o caráter universal e indivisível dos direitos humanos, possuindo como titularidade o homem, independente da sua nacionalidade, raça ou qualquer outra distinção. Percebe-se que as dimensões de direitos fundamentais se complementam e não se esgotam entre si, sendo que a violação a um direito de uma dimensão interfere na concretização das demais dimensões dos direitos fundamentais, sendo necessária para a completude da dignidade humana a garantia e efetividade de todos os direitos fundamentais em todas as suas dimensões. Apenas dessa forma, a sociedade estará apta a resolver as intrigantes questões que se apresentam diante das novas tecnologias e do avanço científico. Acerca do caráter universal e indivisível, respectivamente, Piovesan(2014) e Bezerra Leite(2008):  “Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. (pg. 169) e  “Os direitos nascidos em uma geração, quando surgem em um dado ordenamento jurídico, assumem uma outra dimensão, pois os direitos da geração mais recentes tornam-se um pressuposto para entendê-los de forma mais adequada, o que propicia a sua melhor realização”. (pg. 36) Não obstante a doutrina dominante não reconheça a existência dos direitos fundamentais de quarta e quinta dimensões, faz-se necessário conhecer a posição do notável jurista Paulo Bonavides(2015), que propõe a existência de uma quarta dimensão de direitos. Esse autor defende a existência de uma quarta dimensão de direitos fundamentais, decorrente da globalização política e econômica, correspondendo à derradeira fase de institucionalização do Estado social. São exemplos desses direitos o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. O referido autor afirma que a concretização da sociedade aberta do futuro dependeria do reconhecimento e efetivação desses direitos de quarta geração (dimensão máxima da universalidade). A quinta dimensão consiste no reconhecimento da paz como direito fundamental independente dos direitos fundamentais da terceira dimensão. Essa abertura de uma nova dimensão e a inclusão da paz nessa esfera tem como motivação elevar a importância ao direito à paz tão esquecido na comunidade jurídica, segundo o autor. Vejamos: “A dignidade jurídica da paz deriva do reconhecimento universal que se lhe deve enquanto pressuposto qualitativo da convivência humana, elemento de conservação da espécie, reino de segurança dos direitos. Tal dignidade unicamente se logra, em termos constitucionais, mediante a elevação autônoma e paradigmática da paz a direito da quinta geração.”(p. 598) A possibilidade de uma quarta dimensão de direitos, não é idéia recente, pois em 1909 Noberto Bobbio já cogitava essa possibilidade: “Mas já se apresentam novas exigências que só poderiam chamar-se de direitos de quarta geração, referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo. Quais são os limites dessa possível (e cada vez mais certa no futuro) manipulação? Mais uma prova, se isso ainda fosse necessário, de que os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem – que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens.”(Bobbio, p. 5/6) Destaca-se, contudo, que a doutrina dominante não reconhece a existência de quarta e quinta dimensões de direitos fundamentais, pois segundo a referida corrente os direitos à informação, à paz, à democracia, entre outros decorrentes das novas tecnologias e necessidades sociais estariam incluídos nos direitos da terceira dimensão. Neste ponto, ouso a discordar da corrente doutrinária majoritária, haja vista que os direitos à informação, à paz, democracia não se resumem na problemática da titularidade coletiva típica da terceira dimensão. Esses valores possuem questões mais profundas que didaticamente e historicamente não se enquadram na linha evolutiva da terceira dimensão de direitos fundamentais. Partindo-se da ideia inicial de Noberto Bobbio, bem como da sugestão de Paulo Bonavides acerca da quarta dimensão dos direitos fundamentais acima transcrito, compreendo que os direitos humanos decorrentes do desenvolvimento tecnológico e científico devem ser erigidos a uma dimensão própria de direitos fundamentais, pois a sua característica principal não se relaciona com a titularidade metaindividual, mas sim com os valores basilares da dignidade humana diante do avanço tecnológico e científico. Ressalta-se, contudo, que os referidos direitos elencados para a quarta dimensão, assim como a maioria direitos de caráter individual, têm a possibilidade de serem tutelados coletivamente, a depender da situação concreta, como ocorre com os direitos individuais homogêneos. A problemática dos efeitos das novas tecnologias no ser humano, inclusive biotecnologias, e tecnologia de informação e comunicação não se encerra na titularidade coletiva, mas sim na própria individualidade humana, aprofundando em seu valor mais íntimo de ser humano. Percebe-se uma trajetória circular dos direitos fundamentais, que inicialmente foi reconhecido de forma individual, tendo o homem em abstrato como núcleo finalístico dos direitos da primeira dimensão. Já a segunda dimensão abriu-se os horizontes para a visão social, e na terceira dimensão, afastou-se a visão individualista do ser humano, passando-se a tutelar interesses metaindividuais. Agora, através da quarta dimensão de direitos ora proposto, retomam-se os valores intrínsecos à singularidade, à individualidade e à liberdade  humana, não da mesma forma que foi reconhecido os direitos fundamentais de primeira dimensão, mas com uma nova roupagem trazida pelo avanço tecnológico e as mudanças culturais, sem perder de vista o avanço histórico e jurídico trazidos com o reconhecimento progressivos dos direitos fundamentais em todas as suas dimensões.  Não se pode ceifar o progresso científico, haja vista a sua imprescindibilidade para a própria manutenção da vida humana na Terra, no entanto esse avanço científico e tecnológico muitas vezes acaba por massificar pessoas, generalizar individualidades, tentando retirar do ser humano a sua singularidade e em algumas circunstâncias chegam a ferir o direito à própria vida, seja humana ou animal,  merecendo, portanto, limitações morais e éticas. Neste ponto,  Bobbio(1909) conceitua de liberdade científica como sendo o direito a não sofrer empecilhos  no processo de investigação científica. Vejamos a transcrição: “Reflita-se sobre a profunda diferença que existe entre o direito à liberdade religiosa e o direito à liberdade científica. O direito à liberdade religiosa consiste no direito de professar qualquer religião ou a não professar nenhuma. O direito à liberdade científica  consiste não no direito a professar qualquer verdade científica ou a não professar nenhuma, mas essencialmente no direito a não sofrer empecilhos no processo de investigação científica.” Alerta-se, entretanto, que essa nova dimensão de direito consiste em uma de suas faces, essencialmente, a imposição de limites morais e éticos exatamente no processo de investigação científica. A liberdade científica, portanto, não pode ter caráter absoluto, pois deve está limitada aos contornos trazidos pelo princípio da dignidade humana e da dignidade da vida. A quarta dimensão de direitos fundamentais busca o resgate dessa individualidade humana, valorizando os valores mais primários do ser humano, como o direito de ser único, de ser diferente(biodiversidade), da dignidade da vida e não apenas a dignidade humana, esteja a vida em estado intrauterino ou in vitro, seja a vida humana ou animal,  bem como resgata o respeito à imagem, à honra, à intimidade e à verdade diante dos novos meios tecnológicos de informação e comunicação, que nas últimas décadas tiveram papel central na massificação de pessoas, padronização de comportamentos e na exposição do ser humano coisificado. Essa quarta dimensão também retoma a valorização da liberdade, direito tão mitigado contemporaneamente, especialmente no viés da autonomia da vontade, que por óbvio não retoma o caráter absoluto que já obteve no início do século XVIII, no entanto a sua relativização deve possuir limites mais estreitos à luz do princípio da dignidade humana e da dignidade da vida. Esse novo modelo de autonomia da vontade proposto na quarta dimensão de direitos o denomino de liberdade qualificada. A quarta geração de direitos fundamentais possui como característica principal: a busca dos valores mais caros da vida diante dos avanços tecnológicos, preservando a vida em sua singularidade, pluralidade(biodiversidade), liberdade qualificada e a sua integridade física e moral.    Feitas tais considerações, abordaremos a seguir alguns problemas contemporâneos que a sociedade vem enfrentado, em decorrência dos avanços científicos e que acabam por colocar em conflito direitos fundamentais. Muitos desses conflitos, no entanto, a doutrina jurídica e a jurisprudência ainda não entraram em consenso, provocando grandes divergências de entendimentos. 3. Avanço científico e Conflitos Principiológicos Nos tempos modernos, com o avanço científico, abriu-se novas possibilidades, antes apenas imaginadas em filmes de ficção científica, como ocorre hodiernamente com a clonagem animal, alimentos transgênicos, fertilização humana in vitro, entre tantos avanços. Notadamente na biotecnologia, observou-se também um avanço na busca pela cura de enfermidades e anomalias, através da utilização de células embrionárias – células tronco, bem como proporcionou-se terapias de doenças incuráveis ou de difícil recuperação, prolongando-se consideravelmente a expectativa de vida e a expectava de sobrevida de muitos pacientes enfermos, em decorrência de técnicas avançadas de manutenção de vida através de aparelhos hospitalares. Esses procedimentos produzem diversos efeitos jurídicos e extrajurídicos, que acabam por levar em questionamento a questão da biodiversidade humana, como no caso da clonagem; no valor da vida humana e a sua dignidade diante da utilização de embriões humanos em pesquisas científicas e o seu descarte; nos limites da autonomia da vontade diante da possibilidade de eutanásia, entre tantos temas polêmicos que ainda no Brasil não possuem uniformidade de entendimento, nem tampouco a devida regulamentação legal. De certo que um dos pontos centrais deste problema é a delimitação do início e o fim da vida humana.  Na Ação Direta de Inconstitucionalidade de n. 3510/DF foi reconhecida a constitucionalidade da lei. 11105/05 que trata sobre a utilização de células embrionárias – células tronco – na utilização da pesquisa científica. No entanto no referido julgamento não ficou pacificado o entendimento acerca do momento do início da vida para a justiça brasileira, restando aguardar próximos julgamentos marcados, como por exemplo o julgamento acerca da possibilidade de abortos fora dos casos previstos em lei, para que a suprema corte se manifeste acerca deste ponto tão controvertido. Ocorre, entretanto, que o direito não vem acompanhando adequadamente a velocidade desses avanços científicos, especialmente na biotecnologia, já que em sua maioria desses procedimentos científicos acima citados estão pendentes da devida regulamentação. Observa-se que em cada país se regulamenta de uma maneira, não obstante tais procedimentos afetem diretamente a dignidade humana, que possui a característica da universalidade, conforme proclamado da Declaração dos Direitos do  Homem de 1948. Assim, entendo que o ideal seria uma normatização internacional acerca dessa nova  dimensão de direitos fundamentais de quarta dimensão, a fim de delimitar os valores morais, éticos e jurídicos que devem prevalecer diante desse avanço científico que afeta em cheio a dignidade humana, como por exemplo, a delimitação do momento inicial e final da vida, possibilidades ou não de interrupção da vida humana e animal, limites ou não da autonomia da vontade diante de doenças penosas e irreversíveis, limites para as mutações genéticas, dentre tantas questões polêmicas.  O estudo da bioética constitui medida indispensável para o tratamento adequado destas questões, inclusive para uma adequada normatização internacional. Esse intento visa encontrar um consenso universal sobre os temas de biotecnologia à luz da filosofia, da ciência médica, sociologia e da ciência jurídica. Não entendo que esse consenso seja utópico, mas apenas distante ainda diante da limitação moral que ainda predomina na sociedade, onde a vaidade intelectual é colocada à frente da grandeza do propósito social e utilitário. Acerca da bioética, destaco a conceituação da professora  Maria Celeste cordeiro Leite dos Santos(1999): “A experimentação humana e as técnicas de engenharia genética configuram um novo domínio peculiar do conhecimento sobre o qual versa uma nova ciência: a Bioética. Seu objetivo é trazer critérios éticos e morais à investigadores e profissionais, propondo limites ao técnico e científico no sentido de que a dignidade e a vida humana seja um prius sobre qualquer outro valor.” A eminente professora ressalta a necessidade de um instrumento de controle social e institucional dessas relações jurídicas decorrentes dos efeitos do avanço biocientífico. Para isso propõe a institucionalização de um novo ramo do Direito, o Biodireito (Biojuris), cujo objeto de estudo é o homem, compreendendo a regulamentação da Biotecnologia e de seus resultados: reprodução assistida, manipulação de gens, embriões e fetos humanos, as intervenções que afetam ao direito à liberdade e identidade do indivíduo e da espécie humana, como clonagem e  questões como a eutanásia, transplante de órgãos, entre outras questões polêmicas. Dentre deste contexto, deve-se analisar a disponibilidade ou não dos direitos fundamentais do homem, analisando-se a nova roupagem trazida com o avanço biocientífico, destacando-se dentre eles a análise da relativização ou não do direito à vida , à liberdade e à dignidade humana. Nesse estudo, faz-se imprescindível diante do progresso histórico trazido pelo reconhecimento dos direitos fundamentais, reconhecer a importância da dignidade humana, como princípio fundamental e  unificador valorativo do nosso sistema jurídico,  devendo-se, prevalecer  concepção personalista kantiana, onde o homem deve ser um fim em si mesmo e nunca um objeto ou meio para outros fins.  Nesse sentido, Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos(1999): “Na verdade, todas as várias posições reconduzem, em última análise, àquelas fundamentais e contrapostas concepções do próprio homem, a utilitarista e a personalista. Pela concepção utilitarista o homem é considerado como homem-coisa, mera entidade bio-socio-econômica, como homem meio e, portanto, instrumentalizáveis. Pela concepção personalista se afirma, ao contrário, o primado do homem como valor ético em si: do homem-pessoa, do homem-fim, com a categórica proibição de qualquer instrumentalização: "bem pessoa" e "bem comum" não-colidem, mas coincidem, constituindo o respeito da pessoa o próprio fim de toda a sociedade.” 4. Conclusão O descompasso temporal entre os avanços na biotecnologia e a sua devida regulamentação jurídica, através do aprofundamento filosófico, sociológico, médico e jurídico trouxe diversos malefícios sociais, dentre eles a insegurança jurídica e ofensas frequentes a dignidade humana e à dignidade da vida, muitas vezes amparadas pelo próprio Estado.  Os direitos fundamentais que devem ser tutelados frente às referidas inovações científicas devem ser inseridos na quarta dimensão de direitos fundamentais, pois suas características não se adequam ao seu enquadramento na terceira dimensão, conforme proposto pela doutrina dominante. A quarta geração de direitos fundamentais possui como característica principal: a busca dos valores mais caros da vida diante dos avanços tecnológicos, preservando a vida em sua singularidade, pluralidade(biodiversidade), liberdade qualificada e a sua integridade física e moral.    O progresso histórico de reconhecimento de direitos fundamentais, bem como o reconhecimento do princípio da dignidade humana como valor mais importante de nosso ordenamento jurídico deve irradiar seus contornos e implicações no estudo do biodireito e da bioética a fim de aclarar os conflitos principiológicos decorrentes. A caraterística universal dos direitos humanos, ou seja, que todo ser humano, independente de raça, religião, cor, sexo, ou cidadania, tem o direito a ser único e de ser  titular de todos os direitos fundamentais, faz com que se exija uma proteção internacional desses direitos. O caráter indivisível e complementar dos direitos fundamentais pressupõe que a efetividade dos direitos fundamentais apenas será completa e perfeita caso todas as dimensões dos direitos fundamentais sejam tutelados, pois a violação a uma dimensão de direitos necessariamente afetará na efetividade de tutela dos demais direitos fundamentais. Por fim, registra-se a trajetória circular, e não linear, dos direitos fundamentais, que inicialmente nasceu do reconhecimento de direitos individuais, tendo o homem em abstrato como núcleo finalístico dos direitos da primeira dimensão. Já a segunda dimensão abriu-se os horizontes para a visão social, onde percebeu-se a necessidade de se buscar uma igualdade material entre os homens como forma de efetivar os direitos contemplados da primeira dimensão; Já na terceira dimensão, afastou-se a visão individualista do ser humano, passando-se a tutelar interesses metaindividuais, que antes não eram tutelados não obstante frequentes violações a interesses. Agora, através da quarta dimensão de direitos ora proposto, retomam-se os valores intrínsecos à singularidade, à individualidade e a liberdade  humana, não da mesma forma que foi reconhecido os direitos fundamentais de primeira dimensão, mas com uma nova roupagem trazida pelo avanço tecnológico e as mudanças culturais, sem perder de vista o avanço histórico e jurídico trazidos com o reconhecimento progressivos dos direitos fundamentais em todas as suas dimensões.
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Direitos humanos e cidadania no trânsito brasileiro
Este artigo discorre sobre a importância da educação para o trânsito e do exercicio da cidadania, tendo-se em vista o direito fundamental dos cidadãos a um trânsito seguro. Enfatiza-se o papel do motorista na  prevenção de acidentes e melhoria das condições de tráfego nas vias públicas. Os acidentes de trânsito acarretam vítimas, diretas e indiretas, com lesões graves, incapacidades físicas permanentes e mortes, trazendo diversos prejuízos à sociedade. Apesar das normas vigentes, ainda é muito observada a ideia de impunidade dos motoristas, que apenas respeitam as leis se houver uma fiscalização efetiva, como é o caso da Lei Seca. Conclui-se pela necessidade de mudanças sociais, através da valorização dos direitos humanos, tendo-se em vista a necessidade de um trânsito seguro, primordial para a preservação da vida, como direito fundamental de primeira dimensão.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Atualmente, o trânsito representa um dos maiores problemas sociais e econômicos, contribuindo para a deterioração da qualidade de vida, principalmente nos grandes centros urbanos.  O número de veículos nas ruas vem crescendo progressivamente, em detrimento da oferta de vias para o tráfego, provocando conflitos para a ocupação de espaços, congestionamentos  e acidentes. Como agravante, há uma cultura arraigada de desrespeito às leis de trânsito e falta de civilidade por parte dos motoristas, e até mesmo dos pedestres, principalmente nos locais onde não há fiscalização intensificada. Por outro lado, os direitos de trânsito são bem diferentes do que eram originalmente, quando se limitavam a um conjunto de regras mínimas para a utilização da estrada. Porém, pela gravidade da situação atual, no Brasil, tornou-se um conjunto de regras para proteger a vida humana. Inicialmente as poucas regras existentes eram suficientes para manter a segurança tanto aos motoristas quanto aos pedestres. Hoje, apesar de haver uma legislação bem mais desenvolvida, o que se observa é a insegurança e total desrespeito dos motoristas pela sua própria vida e a dos outros. A respeito, observa Roberto da Matta et al. (2010, p. 20) “A imprudência, o descaso e a mais chocante e irreconhecível incivilidade brasileira no trânsito decorre da ausência de uma visão igualitária do mundo, justamente num espaço inevitavelmente marcado e desenhado pela igualdade mais absoluta entre seus usuários, como ocorre com as ruas e avenidas, as estradas e viadutos.” No cotidiano das vias urbanas as questões relacionadas ao trânsito não se esgotam com o estudo de uma norma geral. As infrações e os meios de controle são temas polêmicos, principalmente pelo crescente número de acidentes e suas motivações, na maioria das vezes causados por negligência dos motoristas às normas de trânsito. O grande desafio da sociedade atual é encontrar formas de tornar o trânsito menos violento, o que está bastante relacionado com  o respeito à Lei Seca, dentre outras normas que visam a segurança de motoristas e pedestres nas vias públicas. Apesar das intensas campanhas preventivas e punição aos infratores que se envolvem em acidentes relacionados ao consumo de bebidas alcoólicas por parte dos motoristas, tal comportamente ainda é muito recorrente, acarretando graves prejuízos direitos e indiretos às pessoas envolvidas e à coletividade.  1   ACIDENTES DE TRÂNSITO Os fatores determinantes dos acidentes de trânsito são muitos, com consequências econômicas variadas, pois, na maioria dos casos, atingem  a população economicamente ativa. Os acidentes de trânsito trazem consequências diretas e indiretas, ao se considerar que um trabalhador acidentado, por exemplo, pode sofrer perda temporária ou e estadual, não há uma estatística confiável, que demonstre a fatídica realidade das definitiva de sua capacidade laboriosa, acarretando em dificuldades para manter o próprio sustento e de sua família. Para a família, as consequências dos acidentes de trânsito envolvem aspectos emocionais e econômicos, com a perda de renda de membro ativo, despesas médicas, funeral, sequelas duradouras que retirem a capacidade laboral e redução da qualidade de vida do acidentado, colocando em risco até mesmo sua dignidade. As consequências dos acidentes de trânsito são bastante graves e extensos, representando um grande desafio a busca de intervenções que modifiquem o comportamento dos motoristas e pedestres nas vias públicas. Cabe ao legislador estabelecer punições para aqueles que descumprem as leis vigentes, mas a maior responsabilidade na prevenção de acidentes de trânsito cabe aos motoristas e pedestres. Os acidentes de trânsito constituem uma das maiores causas de mortes violentas. Infelizmente, no Brasil, a nível federal vítimas do trânsito. Segundo  a Organização Mundial da Saúde, o número de acidentes de trânsito nas vias públicas de todo o mundo é semelhante a uma epidemia letal. Em 2010, ocorreram 1,24 milhão de mortes por acidente de trânsito em 182 países, dentre os quais 20 a 50 milhões de pessoas sofrem com ferimentos e traumatismos. Estes acidentes representam a terceira causa de mortes de pessoas entre 30 a 44 anos; a segunda para a faixa de 5 a 14 anos e a primeira, para pessoas com idades entre 15 e 29 anos. (WAISELFISZ, 2013) Além disso, o Relatório de Status Global da OMS sobre Segurança Rodoviária estima, a nível mundial, que mais de 90% de mortes nas estradas ocorrem em países de baixa e média renda, embora esses países só tenham cerca de 48% dos veículos registrados. Segundo a OMS, se  não houver medidas imediatas ao longo dos próximos 15 anos, o número de pessoas que morrem anualmente em acidentes de trânsito pode aumentar para 2.400.000, principalmente nos países de baixa e média renda, sendo que os acidentes de trânsito estarão entre uma das três causas principais de morte. A nível global, atualmente, os acidentes de trânsito estão entre as três principais causas de morte para a faixa etária de 5 a 44 anos (WHO, 2009). De acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP-SP), de janeiro a novembro de 2013 foram registradas 13 mortes na capital por homicídio doloso causado por embriaguez, contra 23 referentes ao mesmo período de 2012. (PINHONI, 2014). Estes números foram menores, em relação a 2012, o que pode estar relacionado à mudança na Lei Seca, que endureceu as punições para quem bebe antes de dirigir.[1] Este fato somente reforça as estatísticas sobre a relação entre acidentes de trânsito e desobediência às leis de trânsito vigentes, ou seja, com a aplicação mais severa da lei, bem como maior fiscalização, houve um decréscimo nas ocorrências relacionadas a bebida e direção. O aumento das estatísticas de mortes e acidentes no trânsito estão muito relacionadas à falta de consciência do motorista, além dos gastos aos cofres públicos. No estado de São Paulo, a estimativa do SUS é que são dispendidos mais de 57 milhões de reais no tratamento de vítimas graves de acidentes. Quando alguém morre no trânsito, este fato gera uma pensão, ou, se o indivíduo fica inválido, gera-se uma aposentadoria por invalidez. Se necessitar de hospitalização ou tratamento por muito tempo, será necessário um auxílio-doença. Conforme o Ministério da Saúde, um paciente internado durante 6 meses em um hospital significa uma despesa de mais de 300 mil reais. (BRASIL, 2012) Entretanto, os problemas e os gastos decorrentes dos acidentes de trânsito, muitas vezes poderiam ser evitados se o motorista respeitasse a legislação, como, por exemplo, se usasse o cinto de segurança. De acordo com a Polícia Civil em São Paulo, foram registrados  25.560 acidentes de trânsito no ano de 2013 envolvendo vítimas, dentre os quais se encontram 6.590 (25,8%) atropelamentos e 18.970 (74,2%) acidentes de outros tipos. (PORTAL CET, 2014) Em 2013, as mortes no trânsito em São Paulo diminuíram em 6,4%, comparando-se aos números de 2012, que registrou 1.152 mortes, contra 1.231 em 2012. As mortes em acidentes no trânsito envolvendo ciclistas também caíram em 32%, no ano de 2013. (PORTAL CET, 2014) A principal causa de mortes no trânsito foram as colisões. Porém, em termos gerais, os índices caíram, segundo a CET (PORTAL CET, 2014), em decorrência do aumento da fiscalização eletrônica de velocidades e da intensa fiscalização da alcoolemia dos condutores. De maneira geral, houve queda no número de acidentes fatais, porém a incidência ainda é bastante grande, se considerarmos que estes índices refletem apenas os acidentes fatais. Muitas vezes, os motociclistas se envolvem em acidentes, tanto por excesso de velocidade, quanto pela falta de respeito que sofrem por parte dos motoristas. Nesse sentido, também os pedestres se colocam em situação de risco, quando não atravessam nos sinais, passarelas e faixas de segurança. De forma geral, pode-se afirmar que as falhas mecânicas podem ocorrer, porém, na maioria das vezes, os acidentes ocorrem pelo desrespeito de pedestres, motoristas ou motociclistas às leis de trânsito e, mais, a falta de educação para o trânsito. O Ministério da Saúde, através do DATASUS, apresenta as estatísticas sobre mortes no trânsito tendo como base a documentação do SUS, que soma as mortes de pessoas atendidas nas instituições de saúde. Porém, esses dados não são precisos, já que muitos casos não são identificados como acidentes de trânsito, mas apenas como acidentes comuns, refletindo-se em números abaixo dos reais. Há ainda a base de dados dos seguros DPVAT, referente ao seguro obrigatório vigente desde 1974, que visa amparar as vítimas de acidentes de trânsito. Assim, as estatísticas decorrem da apuração dos seguros pagos às vítimas de acidentes de trânsito. Entretanto, como ocorre nos demais casos, também esses números se apresentam abaixo do real, uma vez que a maioria da população sequer tem conhecimento do direito a esse seguro, em caso de acidente de trânsito de que resulte em  morte, invalidez permanente, ou despesas médicas e hospitalares. Porém, esta é a base de dados que apresenta dados mais próxima da realidade. 2 LEGISLAÇÃO DE TRÂNSITO Apesar das leis de trânsito vigentes, ainda são muito grandes os números de acidentes decorrentes de desrespeito às normas, acarretando em lesões e mortes. Esta é uma realidade que tem afetado diversos países, inclusive o Brasil, onde o Código de Trânsito Brasileiro – CTB, tem se aperfeiçoado e buscado punir de maneira exemplar os infratores, inclusive com uma justiça mais rápida. Os crimes de trânsito, sobretudo após as mudanças advindas com a Lei n. 11.275/06 que deu nova redação aos arts. 165 e 302 do CTB (Lei n. 9503/97), a Lei n. 10.259/01 e as modificações quanto à competência dos Juizados Especiais Criminais, tanto no âmbito da Justiça Estadual como na Federal trazidas pela Lei n. 11.313/06. O objetivo do CTB foi disciplinar as infrações mais graves de trânsitos, algumas anteriormente já previstas como crimes (homicídio e lesão corporal culposos e omissão de socorro), transformando determinadas contravenções em crimes. Desta forma, as disposições penais do Código de Trânsito referem-se unicamente aos chamados “crimes de trânsito”, o que não significa que outras condutas não possam ser punidas na forma de contravenção. A Lei n. 9.099/95 trata dos crimes de pequeno potencial ofensivo e limites de sua aplicação no CTB e suas alterações. 2.1CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO – CTB A lei nº 9503, de 23 de setembro de 1.997, instituiu um novo ordenamento jurídico, sobre o assunto trânsito, agora denominado Código de Trânsito Brasileiro (CTB), entrando em vigor a partir de 22 de janeiro de 1.998, que foi conclamado pelas autoridades executivas, legislativas, imprensa e representantes de significativos segmentos formadores de opinião pública como o grande remédio para diminuir o número de mortos e feridos em acidentes de trânsito. O CTB apresentou inovações e alterações, com relação à antiga legislação, muitas delas necessárias, convenientes e oportunas para a realidade social atual, porém também foram inseridos dispositivos com dificuldade de interpretação e outras de difícil aplicação e execução, chegando até ser questionadas a inconstitucionalidade de alguns de seus artigos, além de dispositivos e definições que levam a interpretações diversas. Entre as principais inovações, resumidamente destacam-se: –   a composição do Sistema Nacional de Trânsito inclui o órgão de trânsito da União, do Estado e Município, sendo este último contemplado com grande número de atribuições; –   o reconhecimento do direito da cidadania no trânsito, contida no Art. 1.° § 3.° e nos Art. 72 e 73 e 281, consagra o disposto no Art. 5.°, XXXIII da Constituição Federal; –   a educação para o trânsito é tratada no Capítulo VI, estabelecendo que deverá ser promovida desde a pré-escola até a Universidade, devendo também funcionar escolas públicas de trânsito; –   alteração no processo de habilitação, tornando mais rígidas as regras para obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), incluindo no currículo para formação de condutores, às matérias de noções de primeiros socorros e direção defensiva, surgindo também a situação da Permissão para Conduzir Veículos, valida por 1 (um) ano, concedido ao candidato aprovado, havendo nesse período, um rigoroso controle de seu comportamento para a obtenção em definitivo da sua CNH; –   o aumento considerável do valor das multas, atrelado a um sistema de pontuação, acarretando até a cassação da CNH; –   a definição como Crimes de Trânsito, de alguns comportamentos dos condutores que antes eram considerados contravenções penais ou infrações administrativas. 3 DIREITO AO TRÂNSITO SEGURO No direito de trânsito, o direito legalmente protegido é o direito à vida e o direito constitucional de ir e vir assegurado a todos os cidadãos (motoristas e pedestres), e da importância em se respeitar tal direito. A segurança é indispensável ao exercício da Liberdade de Circulação em condições seguras, ou Segurança Viária, como leciona Tomás Cano Campos (1999), o El ejercicio de los derechos, entre ellos la libertad de circulación, no puede poner en peligro la seguridad y la libertad de los demás […]. Por consiguiente, el derecho a circular con vehículos a motor debe estar sometido a una serie de normas al objeto de hacer posible un ejercicio seguro del mismo, de modo que la vida y la integridad física del que lo ejerce y de los demás usuarios de las vías no sufra menoscabo alguno (art. 15 CE). La relevancia e importancia en el fenómeno de este derecho es fundamental […]. Ello ha dado lugar a que la denominda seguridad vial, que en último término no persigue más que la indemnidad de tales derechos, se erija en el objetivo prioritario y esencial de la toda la normativa reguladora del tráfico, desplazando incluso a un segundo plano a la propia libertad de circulación. Segundo Basileu Garcia (apud BITTENCOURT, 1994), é dever do motorista ser cauteloso e respeitar a integridade física alheia. Nesse sentido, as sanções retiram do trânsito os autores de delitos culposos, que demonstram, no mínimo, serem descuidados. A culpa fica comprovada quando o agente atuar movido pela imprudência, negligência ou imperícia. O direito do cidadão ao trânsito seguro constitui-se num direito fundamental de segunda dimensão, por servir de instrumento de proteção à vida, como afirma Cássio Mattos Honorato (2011, p. 1): “O Trânsito Seguro como um Direito Humano e Fundamental de Segunda Dimensão, ou seja, uma garantia essencial à proteção da vida e da incolumidade física de todos os usuários das vias terrestres, prevista em nível constitucional; a ser promovida pelo Estado, declarando não apenas a Liberdade de Circulação (como espécie de direito individual), e sim o Trânsito Seguro como um conjunto de deveres coletivos (a todos imposto, sob o manto da igualdade de todos perante a lei e com arrimo nas “justas exigências do bem comum, em uma sociedade democrática”), para assegurar a segurança viária e proteger os usuários das vias terrestres.” O Trânsito Seguro é um dever da coletividade, relacionado a necessidade de “defesa do Estado e das instituições democráticas",[2] o que requer uma nova maneira de percepção sobre a circulação em vias terrestres, ou seja, na prática, isso se refere a uma mudança de atitude, com a adoção de comportamentos  mais seguros e comprometidos com esta visão. A efetivação de tais mudanças não dependem apenas do Estado, mas na conduta dos cidadãos, como observa Cássio M. Honorato (2009, p. 8): “O trânsito em condições seguras não consiste em uma filosofia vertical, imposta de soberano a súdito, mas de comportamentos de concidadãos, como usuários das mesmas vias terrestres”. Nas vias públicas, os motoristas devem compartilhar o mesmo espaço, em igualdade de condições e mediante respeito às normas gerais de circulação e de segurança. Na verdade, o que ocorre é que, mesmo em se tratando daqueles considerados “bons motoristas”, há uma cultura arraigada que, se não houver uma fiscalização efetiva, a infração pode ser cometida sem preocupação. Tanto é que até mesmo os aparelhos de GPS, já bastante acessíveis e utilizados pelos motoristas, costumam indicar os locais onde há radares, para que o mesmo possa trafegar acima da velocidade, mesmo que haja placas indicativas dos limites permitidos. Os comportamentos apontados são apenas algumas das condutas gerais relacionadas ao descumprimento das normas de trânsito, mesmo mediante a evidência de que se essas fossem respeitadas por todos, o que, inclusive, seria de fácil implementação, geraria um impacto positivo para a coletividade, favorecendo uma convivência social mais amigável e segura. A postura da sociedade atual demonstra uma excessiva falta de valores, agressividade, imprudência e indiferença social. O Estado, como administrador das vias de circulação, não pode nem deve esperar uma troca ou remissão espontânea da situação, porque a mortalidade nos últimos cinco anos dobrou e ainda vem crescendo assustadoramente. Segundo Juliano Viali dos Santos, o trânsito em condições seguras é direito de todos, “não fazendo nenhuma restrição ou  condição para os titulares do direito fundamental, inclusive sobre a nacionalidade, religião, idade, raça, papel ou função no trânsito, classe social” (SANTOS, 2009, p. 38). Alexandre de Moraes (2003, p. 63) afirma que: “inclusive o estrangeiro em trânsito pelo país pode gozar de direitos fundamentais do ser humano”. A proteção desse direito fundamental também é assegurado pelos trâmites legislativos do normativo de trânsito. Assim, com a norma de trânsito foi elaborado um direito fundamental específico relacionado à segurança, como se extrai do artigo 225 da Constituição Federal: “§ 2º O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito”. Nesse sentido, também se insere a educação para o trânsito, como item essencial para assegurar o cumprimento do preceito constitucional, relativo à educação (Art. 205), acolhido no Código de Trânsito Brasileiro, como segue: “Art. 74. A educação para o trânsito é direito de todos e constitui dever prioritário para os componentes do Sistema nacional de Trânsito.” O direito ao trânsito seguro como um direito fundamental abrange tamtém todos os demais seres vivos, como os animais, como se deduz da afirmação de Norberto Bobbio (1992, p. 18-19): ‘Não é difícil prever que, no futuro, poderão emergir novas pretensões que no momento nem sequer podemos imaginar como o direito a não portar armas contra a própria vontade, ou o direito de respeitar a vida também dos animais e não só dos homens.” Segundo Mitidiero (2005), é coerente considerar que os animais também compõem o trânsito, especialmente quando as estradas são abertas dentro de reservas ecológicas. Tal entendimento é compartilhado por Montenegro (2005, p. 86), ao comentar a Lei n. 6.938/1981: “a preocupação do legislador não se restringiu ao homem, mas a todas as formas de vida”. E, ainda, segundo Santos (2009, p. 45): “(…) o direito ao trânsito em condições seguras é essencial à sadia qualidade de vida, representando um valor indispensável à personalidade humana, característico direito fundamental de 3ª dimensão (ou geração), com caracteres individuais e coletivos, sendo que o Código de Trânsito Brasileiro erigiu o direito em condições seguras coo um valor jurídico autônomo, específico daqueles constitucionalmente assegurado pelo genérido da segurança., com direito subjetivo de todos e também de cada um, ou seja, um direito denominado metaindividual”. Dessa forma, é dever dos órgãos e entidades que compõem o Sistema Nacional de Trânsito (SNT), conforme suas competências, a adotarem as medidas necessárias para assegurar tal direito. Por sua vez, as indústrias automotivas têm disponibilizado mais dispositivos de segurança ativa e passiva, o que, teoricamente, deveria reduzir as lesões e mortes por acidentes. Quando há certeza sobre as condutas gerais relacionadas com o descumprimento das normas de trânsito, e de que tudo o que se estabeleceu fracassou – já que os acidentes nas vias públicas são os que mais matam pessoas menores de 30 anos e a média estatística com acidentes fatais é de mais de 20 mortes por dia – é hora de fazer mudanças urgentes. (LORENCES, 2007) A situação de crise descrita requer ações por parte do Estado, que deve se materializar em três linhas diretas de ação: educação viária solidária, atuação preventiva e sancionadora. (LORENCES, 2007) Uma sociedade que pensa e age assim, não está interessada em questões "menores", como direitos humanos, meio ambiente, direito, trânsito, saúde, idosos etc. Ela está clamando por novos valores aos quais respeitar. (LORENCES, 2007) As questões relacionadas apontam para a falta de valores, falta de educação e, em última instância, a uma proposta séria e definitiva para colocar o trânsito como uma política de Estado, a ser realizada por todos os meios legais disponíveis. A coisa mais importante é que a problemática do trânsito tem solução e que todas as mortes que diariamente ocorrem como resultado da falta de respeito às regras estabelecidas poderiam ser evitadas. Portanto, a proposta é realizar o caminho  inverso, tentando criar uma consciência solidária e levar adiante uma educação para o trânsito adequada. 3.1 EDUCAÇÃO PARA O TRÂNSITO A gravidade da situação torna imprescindível a atuação do Estado, que deve levar adiante políticas proativas, tais como, a criação de uma disciplina relativa ao direito de trânsito no currículo escolar, ministrada por professores treinados, com conteúdos compatíveis com a idade dos alunos. (LORENCES, 2007) A polícia de trânsito deve receber formação também para a prevenção e controle adequado à área em que são criadas, não enfatizando os meios de repressão. Os sistemas de verificação devem se transformar e servir para prevenir e conter violações. (LORENCES, 2007) Outro fator importante é que acusação e julgamento das infrações sejam rápidas, por meio de procedimentos que resguardem todas as garantias, para que se resolvam de maneira ágil e em função dos princípios da oralidade e economia processual. E, por fim, para que as sanções sejam cumpridas. O estudo da disposições contidas no Código Nacional de Trânsito, quanto aos requisitos para circulação e obtenção de uma licença, a documentação necessária, as condições dos veículos, as prioridades, as responsabilidades etc. tendem a dar um tratamento formativo à questão com a altíssima pretensão de proporcionar um alto grau de certeza sobre as regras e conseguir pelo menos a mudança de alguns maus hábitos. As vias de circulação e os veículos são bens inofensivos, e que sua maior ou menor perigosidade, salvo uma pequena parte relacionada a problemas mecânicos,  relacionados a erros mecânicos, corresponde à imprudência, negligência ou falta de obediência aos regulamentos e aos sinais de trânsito para motoristas e pedestres. Finalmente, o entendimento de que a principal solução para a problemática do trânsito se relaciona com uma deficiente formação e falta de compromisso social. Para isso, esta modesta contribuição que resulta do grande esforço que será plenamente justificado se, ao menos, contribuir para que algum leitor possa reformular o seu uso das vias públicas e começar as cumprir as disposições legais. 3.2 ÉTICA E RESPEITO ÀS NORMAS DE TRÂNSITO O cumprimento das normas viárias representa uma questão importantíssima, asseguram a segurança da coletividade. Dos motoristas espera-se, ao menos, o cumprimento da legislação, não realizando determinados atos proibidos, assim como ter uma conduta de bom senso em relação ao comportamento no trânsito. O trânsito estará fadado em converter-se em um verdadeiro caos, se cada um fizer o que quer sem se importar com as regras nem com os sinais de trânsito. Como exemplo ilustrativo para demonstrar a improcedência e gravidade das condutas, pode-se comparar o cumprimento das regras de futebo com as vias e suas consequências. No futebol aquele que pretende dar um chute sem a ordem, no trânsito poderia assemelhar-se a um avanço de sinal vermelho, ou seja, executou uma ação quando deveria esperar uma ordem; e sua reiteração traz consequências. É a mesma situação do jogador, que deve sofrer a detenção do jogo, que prosseguirá sem ele. Se o sinal de pare não for acatado, ou o veículo não for estacionado no local adequado etc., ou seja, se todas as situações que estão proibidas não são válidas, acarretam consequências para a equipe e pessoais ao autor, devendo ser punidas de imediato. (LORENCES, 2007) No exemplo do futebol, quando a conduta indevida se reitera, a equipe infratora ficará sem jogadores, que serão excluídos do jogo, e perderão os pontos. Em matéria de trânsito, o resultado é a morte, e as lesões, gravíssimas para os intervenientes em ações proibidas e para terceiros absolutamente inocentes. Do exemplo comparativo pode-se entender-se que as infrações do futebol, na maioria dos casos, não permanecem impunes, enquanto que as leis de trânsito são, e, quando são punidas, a pena é ineficaz, tardia e insignificante. Se esse mesmo exemplo fosse transferido para outros níveis das relações sociais, a resposta deveria ser a mesma. (LORENCES, 2007) Tal situação exige a efetiva atuação por parte do Estado, enfatizando três linhas de ação: a) educação viária solidária; b) atuação disuasiva da autoridade, e c) atuação sancionatória. (LORENCES, 2007) O Estado não deve esperar uma mudança espontânea, mas tomar as medidas necessárias para que o cenário mude. Segundo Lorences (2007), a educação viária solidária representa um conjunto de valores que incluem não apenas o ensino das regras gerais de trânsito de cumprimento obrigatório dentro do currículo escolar, mas também a inserção dessas regras em um conceito geral, referindo-se a convivência harmônica na sociedade, com a completa revisão das garantias constitucionais, os direitos do pedestre, as consequências psicofísicas da acidentologia, como se deve atuar em caso de acidentes, o auxílio a vítima e o castigo pelos usos abusivos dos espaços comuns. Estes devem ser valores que devem ser incutidos no ambiente familiar, os quais depois devem ser reforçados com informação e formação especial na escola. Assim, a criança será preparada para ser um cidadão melhor e, dessa forma, cumprirá as normas de trânsito. A atuação disuasiva da autoridade deverá partir de uma decisão do órgão administrador destinado a revalorizar seu papel preventivo e não necessariamente sancionador. A administração pública, muitas vezes, supreende os cidadãos com reavaliações impositivas e aumento dos impostos, quando também deveria realizar uma contribuição formativa, revalorizando a função, os planos de formação e criar corporações de policiais de trânsito a serviço da comunidade, que se dediquem  a prevenir as infrações, assumindo uma atividade determinada de advertência geral e não de meros aplicadores de autuações de infrações. (LORENCES, 2007) A sociedade tem convivido com situações consideradas inaceitáveis, como o agente escondido atrás de uma árvore para sancionar os incautos, ou seja, de pouco adianta montar armadilhas para caçar os incautos, nem a instalação de radares, nem multas fotográficas de mal estacionamento em lugares onde não há placas de proibição, nem agentes que utilizam um guindaste como uma espécie de navio pirata que anda à caça dos infratores, e tampouco aceita mais a corrupção.A importância das regras de trânsito dependem de sua razoabilidade e da seriedade que emana da autoridade de aplicação. (LORENCES, 2007) Se o Estado não cumpre com os parâmetros anteriores, que são, a atividade educacional e a atividade preventiva, não deve surpreender-se com as consequências, para que lhes sejam imputáveis como excludente. Se cumpridas essas duas etapas estará devidamente legitimada para executar a atividade sancionadora. A sanção por infrações de trânsito devem ser consequência de um procedimento ágil, veloz, dotado de formalidades mínimas e com penas cujo cumprimento seja eficazmente controlado. (LORENCES, 2007) O direito de trânsito, longe do que foi em suas orígens – um conjunto de pequenas regras para o uso de calçadas -, pela regra de gravidade da situação que existe em nosso país, se converteu em um conjunto de normas destinadas a proteger a vida humana. (LORENCES, 2007) Antigamente, havia poucas regras para conduzir, mas que traziam seguridade e certezas, enquanto hoje passou-se para a mais absoluta incerteza e ao mais absoluto desprezo pela vida própria e dos semelhantes. (LORENCES, 2007) O bem atual juridicamente tutelado é o direito a vida, passando pelo direito constitucional a um segundo lugar, em função da importância daquele. A transcendência da matéria, os bens envolvidos, especialmente o direito a vida, a lierdade, a saúde e o trânsito, entre muitos outros, o grande valor econômico dos bens utilizados, os usos privados ou públicos etc., acarretam o entrecruzamento de questões altamente relevantes para o mundo jurídico. Coincidentemente, deste entrecruzamento, surgem questões que devem ser analisadas pelo prisma legal, que parte, segundo os casos, de procedimentos administrativos básicos, contravencionais, de faltas, contenciosos, podendo converterem-se em reclamações civis, comerciais, até chegar, inclusive, a processos penais. (LORENCES, 2007) Nas grandes megalópolis, os acidentes de trânsito provocam mais incapacidades laborais e mortes em jovens do que provoca qualquer outra enfermidade, o que representa um verdadeiro flagelo. Neste contexto, se evidencia a necessidade da educação para o trânsito, que se insere na formação para a cidadania, sem a qual, nenhuma lei ou norma vigente será capaz de deter o desenfreado crescimento da violência em suas mais diversas formas, inclusive no trânsito. CONCLUSÃO O direito de trânsito compreende uma complexa e a mais completa matéria de ordem jurídica. Isso porque na matéria trãnsito coexistem normas de caráter constitucional e disposições contídas em leis nacionais, sociais e municipais, existindo, ainda, alguns aspectos de caráter administrativo, inclusive alguns com ampla regulação como consequência de regras que se remetem a costumes locais de origens desconhecidas. Em princípio, o direito de trânsito apresenta a temática do trânsito como uma questão muito complexa devido ao número de veículos e pessoas envolvidas, o que é facilmente compreendido, e com regras básicas bastante claras. Além disso, para um melhor cumprimento das normas, o direito de trânsito deve materializar-se em uma linguagem expressa e que se refere a sinalização da via, de caráter imperativo, de advertência geral e que praticamente não deixa lugar a dúvidas. Mas a realidade é outra, e essas regras básicas são, em muitos lugares do mundo, de difícil cumprimento. A diferença do que ocorre em muitos centros urbanos em que se cumprem cabalmente as normas de trânsito, isso não ocorre, e as diferenças tão notórias de acatamento são, nada mais e nada menos, as que se observam nas estatísticas de mortalidade e acidentes nas vias. Diante desse cenário, cabe ao Estado, através dos órgãos competentes, cumprir seu papel, mas também cabe ao cidadão fazer a sua parte. Porém, a falta de consciência cidadã é o que se torna notório quando se observa o que acontece na sociedade em relação ao trânsito e nas relações sociais em geral. Por isso, a educação que enfatize a formação para a cidadania se mostra como o caminho viável para conter a gama de violência que assola as cidades, inclusive no trânsito.
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Direitos humanos, movimentos sociais e mídia
A presente discussão tem por escopo tecer comentários acerca da relação existente entre a tríade formada a partir dos Direitos Humanos, dos Movimentos Sociais e da Mídia, esta nas suas mais variadas formas de representação e inserção na sociedade. Assim, realizamos um sucinto levante histórico de como podemos traçar o panorama dos Direitos Humanos no Brasil em três momentos particulares: os anos 80, 90 e a realidade vivida na contemporaneidade, precisamente no ano de 2013. No segundo momento, passamos para o destaque da presença e função da mídia nos anos 80 e 90, bem como a sua influência sócio-política para o Brasil da época. E, por fim, nos detemos a apresentar algumas das ‘conquistas’ e as respostas do Governo Federal obtidas pelas sucessivas manifestações ocorridas no ano de 2013.
Direitos Humanos
Introdução O trabalho que se segue tem por objetivo traçar a relação existente entre a luta em prol dos Direitos Humanos no Brasil dos últimos trinta anos, a sua mídia e os movimentos sociais que eclodiram no seio social a partir da necessidade observada de mudanças nas mais variadas esferas das realidades de nosso país. Assim, o histórico dos três principais eixos de nosso trabalho serão explorados. A compreensão dos tais momentos e da intima relação entre os mesmos se faz de singular importância para que possamos traçar um paralelo do ontem e do hoje no Brasil. 1. Breve histórico dos Direitos Humanos no Brasil – Anos 1980-1990-2013 Como podemos visualizar nos manuais de história, os movimentos sociais surgiram ao longo da vivência humana como ferramenta de busca no garantir do real cumprimento, por parte do Estado e seus componentes, da observância dos direitos humanos e garantias fundamentais. Vemos também que a formação de tais grupos sociais não foi inicialmente bem aceita pelo Estado. A repressão foi ato presente em boa parte da história dos direitos humanos. O Estado via nos movimentos sociais uma espécie de monstro que necessitava ser combatido, pois trazia para o seio da sociedade e anarquia e a baderna. Com o passar dos anos e com a ampliação dos regramentos internacionais a respeito dos direitos humanos e garantias fundamentais, o Estado brasileiro passou a tolerar mais o surgimento e a atividades dos movimentos sociais. O mesmo se apresentava como ramificado, muitas eram as suas facetas, os instrumentos de luta e as necessidades coletivas colocadas em pauta. Vemos que o período de maior proliferação, aqui como ampliação, dos movimentos sociais se deu nos anos de 1980. A luta por melhores condições de trabalhos, direito à terra e direito à liberdade nas suas mais variadas formas foram as temáticas que mais ressoaram nesse período. Nesse momento o Brasil encontrava-se imerso na Ditadura Militar, analisamos que esse cenário de opressão fez com que todas as manifestações ganhassem corpo e rua. As lutas passaram a buscar uma unificação, para assim combater um inimigo comum: o governo central. Foi nesse mesmo momento que surge o PT, UNE, MST, citamos os três para não nos delongarmos nas exemplificações. O PT, Partido dos Trabalhadores, no setor partidário. A UNE, União Nacional dos Estudantes, no setor estudantil. O MST, Movimento dos Sem-Terra, no setor de luta reforma agrária. Todos três surgem no auge da Ditadura Militar e, cada um no seu seguimento, passa a questionar de forma veemente os feitos e defeitos do regime vigente à época. Após o fim da política do bipartidarismo, ARENA e MDB, o PT surge como um dos primeiros partidos políticos legalizados e, desde sempre, demonstrou-se como ferrenho opositor ao regime de opressão que outrora foi instalado. Na figura do seu grande líder, o Lula, trabalhou junto às bases sindicais, difundindo as lutas trabalhistas em prol dos operários. Na primeira disputa presidencial por voto direto, lançou Lula como candidato, mas o mesmo esbarrou na figura de Fernando Collor de Mello. Nesse mesmo entendimento trabalharam a UNE e o MST liderando grandes marchas contra as políticas desenvolvidas e defendidas pelos militares. O papel desenvolvido pela juventude estudantil foi de muita relevância para o despertar das Diretas Já. Aqui, nas Diretas Já, surge um novo elemento que deu pujança as lutas dos movimentos sociais organizados: a adesão da imprensa. Sentindo a perda de fôlego do governo militar, as ruas passam a gritar pela liberdade e, com o advento do movimento conhecido por Diretas Já, a mídia não pôde se omitir. Vários foram os líderes políticos, movimentos da sociedade civil organizada, líderes religiosos e intelectuais da época que deram corpo as Diretas Já. Inúmeras foram as reuniões públicas, em praças, avenidas que congregavam a população para lutar pelas suas liberdades. Ouvindo o ecoar das ruas, os militares passam a realizar a transição rumo a Democracia. Foi por meio de uma eleição indireta que o Brasil viu ser eleito o seu primeiro presidente após 21 anos de Ditadura Militar. O eleito foi o mineiro Tancredo Neves, mas por complicações de saúde que resultaram em sua morte, quem tomou posse foi o maranhense José Sarney. Com a transição democrática, os movimentos sociais viam uma vitória alcançada. Surgia uma nova Constituição, a de 1998, e com ela uma série de garantias fundamentais e direitos sociais, políticos, de expressão, de culto e assim por diante. A Constituição Brasileira ganhou o título de Constituição Cidadã, isso devido a sua contribuição social. A redação traz direitos contemplados nas mais variadas esferas da sociedade. Agora o papel dos movimentos sociais alterava um pouco: de luta por direitos e garantias para luta por efetivação dos direitos e garantias expressos na nova constituição. Nossa constituição é compreendida como sendo a mais garantista e protetiva dos estados democráticos, entretanto, o que padece é a real observância dos dispositivos lá impressos, de uma efetivação dos direitos já contemplados na mesma norma maior.Assim, devemos sair do papel e implementar na prática o que está escrito. Após o Governo Sarney, este vítima frequente da troca de moeda e da inflação, houve a sucessão presidencial via a figura do voto direto. O eleito é o alagoano Fernando Collor de Mello, o intitulado caçador de Marajás, que logo apresentou o seu modo ímpar de governar a nação. Devido a erros de governança, se isolou dos demais poderes e acabou pagando por seu erro. Facilmente lembrado pelo confisco das poupanças, passou de idolatrado para odiado pela população em geral. Reanimou o sentimento de mudança idealizado pelos movimentos sociais, e o povo foi as ruas. Conhecidos por Caras Pintadas, os populares pintaram nos seus rostos as cores da bandeira do Brasil e gritavam a queda do primeiro presidente eleito pelo voto direto em mais de 21 anos. A UNE é um dos movimentos sociais mais presentes nesse período e, juntamente com os partidos de esquerda, consegue inflamar a população contra o presidente. Ressalta-se ainda a figura da mídia televisionada, principalmente grande mídia frente a essa luta pela derrubada de Collor. O processo de impeachment foi instaurado e em 02 de outubro de 1992. Collor renunciou em 29 de dezembro de 1992, mas mesmo assim não escapou do processo de impeachment, fato que ocorreu no mesmo dia e rendeu-lhe oito anos de inelegibilidade. O seu sucessor foi o seu então vice, o mineiro Itamar Franco. Agora damos um salto na história democrática recente do Brasil e chegamos ao ano de 2013. Os movimentos sociais se reanimaram e devido, primordialmente, aos casos de corrupção, a população foi as ruas. Em todos os estados da federação houve levante da população que gritava e pleiteava por maiores e melhores prestações dos serviços públicos e por menos corrupção. O início foi devido ao aumento de R$ 0,20 na passagem do transporte público em São Paulo. Com o passar dos dias, diversas cidades aderiram ao movimento e em pouco tempo o Brasil estava diante da maior manifestação popular desde os Caras Pintadas. A luta das manifestações mudaram de temática e logo foi nomeada de ‘Não é por 20 centavos, é por direitos’. Vários segmentos da sociedade elencavam em seus cartazes e gritos os seus anseios. Muitas formas as pautas levadas em discussão: a PEC 37, a renúncia de Calheiros da Presidência do Senado, os investimentos em estádio para a Copa do Mundo, a corrupção e foro privilegiado dos políticos. Observando a impossibilidade de isenção, a mídia televisiva passou a reportar o que ocorria nas ruas do Brasil. Devido a forte adesão nacional, logo se viu manifestações de brasileiros e não brasileiros em importantes cidades do mundo. Os nacionais e estrangeiros que se encontravam fora do Brasil externavam a necessidade de mudança política. Faziam um levante para que os países e os organismos internacionais vissem a realidade vivida pelo Brasil: uma Constituição que prega garantias e direitos, mas governos sucessivos que pouco fazem para implementar tais direitos. Com isso, a Copa do Mundo 2014 foi um dos alvos preferidos dos manifestantes. Em plena Copa das Confederações 2013 era visível o confronto entre manifestantes e policiais enquanto que o jogo rolava no campo. Pessoas que foram aos estádios testemunham que enquanto o jogo corria era possível escutar tiros de balas de borracha e o grito dos manifestantes contra a Copa do Mundo 2014, a FIFA e o Governo Dilma. Um momento muito interessante foi no jogo de estréia da Copa das Confederações, durante a fala da presidente Dilma Rousseff. A vaia ecoou no estádio e de imediato o presidente da FIFA, o Joseph Blatter, interferiu pedindo calma e educação, dizendo que o esporte une os povos. 2. A Presença da Mídia – Anos 1980-1990 Como já ventilado no tópico anterior, a mídia foi instrumento presente nas três manifestações populares aqui destacadas: Diretas Já, Caras Pintadas e Manifestações de Junho de 2013. Em cada momento, em particular, a mídia teve um alcance significativo, entretanto, a sua participação teve variações por ‘n motivos’, inclusive devido ao alcance da tecnologia. No Brasil dos anos 1980, o rádio ainda era o meio de comunicação de massa. A televisão aos poucos estava adentrando aos lares brasileiros e, nesse momento, os telejornais exerciam o papel de informar os populares a respeito da real situação vivenciada pelo país. Os comícios em prol das Diretas Já passaram a ser televisionados e os discursos mais inflamados dos opositores ao regime militar. Nos anos 1990, durante o Governo Collor e as movimentações geradas pelos Caras Pintadas, a mídia televisiva também inflamou a população contra o Caçador de Marajás. As grande mídia bombardeava o governo com sucessivas denuncias que colocavam em dúvida a idoneidade do chefe do executivo. Alguns estudiosos apontam a manipulação da imprensa contra Collor, afirmando que o presidente estava contrariando interesses de grandes empresários do setor das comunicações, entretanto até o momento, nada foi provado. Nos anos 2013, a televisão também se constituiu como elemento de mídia bastante importante para a difusão dos movimentos sociais envolvidos, mas apenas num segundo momento. De início, a televisão mostrou-se afastada de qualquer divulgação dos movimentos que estavam correndo. Apresentava-se inerte aos sons que vinham das ruas. Assim, a difusão foi feita pelas novas mídias, a partir da internet. Com esse evento, a internet se mostra como uma mídia não apenas de informação, lazer e interação social sem qualquer compromisso com a realidade vivida pela sociedade, pelo contrário, a internet apresentou o seu poder, uma força de congregar milhões de pessoas que estavam dispostas de lutar pela melhoria da sua realidade. Destarte, Facebook, Twitter e Youtube foram os nomes da vez, a partir deles a aglomeração rápida e eficiente foi possível, através de comunicações instantâneas, em tempo real. Com tais aplicativos a população se unia e marcava os seus encontros nas mais diversas cidades e em horários simultâneos, ato que atrapalhava a logística da polícia estatal para tentar controlar os levantes. Os programas televisivos, principalmente os policiais, tratavam os manifestantes, a princípio, como baderneiros e marginais, entretanto, após perceber que as manifestações a cada dia ganhavam mais corpo, mudaram o discurso. Os manifestantes, de um dia para o outro, passaram de baderneiros e marginais para lutadores por direitos e igualdades. A luta social passou a ser legitimada, como num passe de mágica, pela imprensa televisiva nacional. Programações foram alteradas e as manifestações passaram a ser transmitidas ao vivo, pelos canais da televisão aberta, pela televisão fechada, internet, rádio e demais mídias disponíveis na atualidade. Assim, as manifestações podiam ser acompanhadas em quaisquer países do mundo. Devido a curiosidade do que estava ocorrendo no Brasil, muitas foram as emissoras que enviaram correspondentes internacionais para acompanhar o passo a passo das manifestações. Até aqui, em João Pessoa, teve correspondente de emissora estrangeira, a CNN enviou o repórter Greg Batla[1]. Todavia, esse mudar de lado da imprensa nacional em relação as manifestações só fez piorar a visão que os manifestantes tinham em relação a ela. Com a presença de jornalistas e empresas do segmento jornalístico nas manifestações, as mesmas também foram alvo das manifestações. Constantemente apresentadas como elitistas e inertes aos gritos populares, também foram recriminadas. Vários carros de transmissão ao vivo foram incendiados, como foram os casos do SBT[2] e RECORD[3]. 3. Conquistas oriundas pelas Manifestações de Junho de 2013 Muitos foram os pleitos, mas poucos foram os sucessos, ao nosso ver. Dos cinco pontos chave das manifestações de junho de 2013 que elencamos ainda no primeiro tópico de nossa discussão, apenas o ponto um, o que se refere a PEC 37, foi acatado. O Ministério Público foi as ruas, juntamente com a população, para pleitear que o seu poder de investigação não fosse diminuído. Observando a relevância da participação do Ministério Público nas investigações, a população abraçou a causa e fortificou o grito de não à PEC. O Congresso Nacional votou contra a proposta da PEC 37, na redação da mesma o teor vetava a participação do Ministério Público nas diligências e investigações no âmbito criminal. Como esse foi um dos pleitos mais cobrados e o Congresso Nacional estava se sentindo um pouco acuado, votou a referida proposta de emenda constitucional e a derrubou[4]. Os demais pleitos até agora não foram analisados. Muito se bateu a respeito da renúncia de Renan Calheiros da Presidência do Senado Federal, mas na verdade dos fatos, como o partido do senador, o PMDB, corresponde a maior parte da bancada de sustentação do Governo Dilma junto ao Senado Federal e à Câmara dos Deputados, o governo federal não realizou grandes pressões contra a figura do senador Renan Calheiros. No fim, a articulação prevaleceu. A Copa do Mundo 2014 está para ser realizada daqui a três meses aproximadamente, as manifestações não abalaram o ritmo de construção dos estádios, tampouco a relação firmada entre o Estado Brasileiro e a FIFA, então, nova tentativa frustrada. Resta observar se novas manifestações surgirão durante a Copa do Mundo 2014 ou se a amnésia atingirá a memória dos brasileiros. A corrupção, entendemos ser algo complexo a ser combatido e que necessita de inúmeras medidas, de simples a mais complexas, e que atinjam todos os setores da sociedade brasileira, seja na classe política ou na sociedade civil em geral. Outro pleito, que ao nosso ver, não foi atingido. E, por fim, o foro privilegiado que constitui-se como uma prerrogativa de função, mas que muitas vezes é distorcida pelos próprios políticos. O foro privilegiado surge como instituto de defesa do parlamentar ou do chefe de governo para que o mesmo exerça seu cargo sem temerosidades e em busca constante pela satisfação do bem coletivo. Seu escopo não é alongar julgamentos em que o político é réu, dar a ele privilégios em relação a sociedade comum ou tornar seus crimes impuníveis. Todas essas são distorções do referido instituto. As propostas de extinção do foro privilegiado são muitas. Emergem com frequência nos noticiários, mas mais rápidos submergem. Destacamos que esses cinco pontos – que fomentaram as manifestações de junho de 2013 – por nós elencados, em nenhum momento detém a capacidade de sintetizar os pleitos surgidos nas manifestações. Devido ao expressivo número de adeptos, muitos foram os pedidos, muitos forma os grupos de minorias que foram as ruas pedir respeito e dignidade. O segmento de luta em prol dos negros, o segmento feminista, o segmento LGBT, se fizeram presente, além de tantos outros. Outro embate frequentemente ventilado na mídia foi a luta pela derrubada do Deputado Federal Pastor Marco Feliciano[5], do PSC-SP, da presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Membros da própria casa legislativa se mostravam contrários a tal indicação, como foi o Deputado Federal Jean Wyllys PSOL-RJ. Grupos de minoria como os da causa dos negros e dos LGBT’s criticavam a indicação afirmando que o deputado federal era incompatível com a comissão, por ser o mesmo racista e homofóbico. A luta também não obteve êxito, o Marco Feliciano permaneceu na presidência. O referido deputado federal apenas abandonou o cargo após a vigência do prazo estabelecido em seu mandato como componente da comissão. 4. Resposta do Governo Federal às Manifestações de Junho de 2013 Em contrapartida a esse fechar de olhos aos pleitos dos manifestantes, o Governo Federal, por meio do pronunciamento da presidente Dilma Rousseff[6] anunciou cinco pactos e uma proposta de plebiscito. Os cinco pactos consistiam em medidas a serem adotadas pelo Governo Federal para fortificar alguns segmentos dos serviços públicos que são prestados a população. O primeiro eixo do pacto versa a respeito do transporte público, fato iniciador das manifestações. A medida principal para esse serviço foi a desoneração de PIS e COFINS. O segundo eixo do pacto foi a reforma política e o fim da corrupção. A medida principal para essa área foi a rápida implementação da Lei de Acesso à Informação e a proposta de concepção da corrupção como crime hediondo. O terceiro eixo do pacto foi a saúde. A medida foi o anúncio de maiores investimentos públicos para a construção de UPA’s, UBS’s e hospitais, além do Programa Mais Médicos, que trouxe médicos estrangeiros para atender as áreas remotas do país que não tinham médicos. O quarto eixo foi a educação. A medida principal foi o repasse de todo o valor alcançado com os royalties do petróleo para programas relativos a educação, além de metade dos valores obtidos com o pré-sal. O quinto eixo trata de responsabilidade fiscal. A medida principal foi a estabilidade econômica e o controle da inflação. Já o plebiscito girava inicialmente a respeito de uma eleição de uma assembléia constituinte exclusiva para promover uma reforma política. No dia seguinte essa idéia foi refutada pela própria base de sustentação do governo. Surgiu a formação de um grupo de parlamentares com o fito de gerirem uma reforma política e, ao fim, enviarem a proposta para uma análise popular, via referendo. Considerações Finais Destarte, vemos que a principal contribuição das mídias sociais, assim como das manifestações ocorridas a partir de junho de 2013 no Brasil é o reanimar da sociedade civil brasileira em prol dos seus direitos. O questionar o Estado, as suas condutas, as suas aplicações financeiras e os seus servidores públicos, nas mais diversas esferas da formação do Estado. Não devemos observar políticos como senhores de nós, mas sim como servidores públicos. E como servidores públicos, servidores do povo, que tem por obrigação gerir o dinheiro e os bens públicos para o melhor bem estar de seu povo e não em prol dos seus interesses particulares. Resta-nos então a vigilância, o cobrar, o fiscalizar para que assim surjam gestores qualificados e que saibam o real sentido do termo público. Desse modo, que a internet, o Facebook, o Twitter, o Youtube, os Blogs e demais ferramentas midiáticas se tornem cada vez mais interativas, proporcionando a cada cidadão ter em suas mãos um meio adequado de se organizar e de questionar as hierarquias do Estado.
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Conceituação transnacional dos direitos humanos e sua garantia
O Artigo científico tem como objetivo abordar o caráter evolutivo dos Direitos Humanos mostrando sua evolução dinâmica, mais especificamente no âmbito internacional quando então definiremos e precisaremos com autores a noção transnacional de humanidade. É somente definindo com clareza a noção de humanidade que se pode cogitar a criação de um direito positivo aplicável em sentido universal e respectivos instrumentos de garantia. A que exatamente nos referimos quando falamos de Diretos Humanos? Como melhor definir a condição humana? É realmente possível uma definição universal? Existe garantia transnacional dos Direitos Humanos? Qual a dinâmica desses instrumentos de garantia? Trataremos dos instrumentos políticos, sociais e econômicos de alcance transnacional que fornecem soluções eficazes (sempre?) nos casos de lesão aos direitos humanos, mostrando que a tutela e a aplicabilidade desses instrumentos implicam em uma reconstrução da imagem do mundo atual e as relações entre os estados soberanos. Procuraremos mostrar quais são esses instrumentos e como eles se inserem no ordenamento jurídico pátrio, relativizando assim (ou não) a soberania estatal e o princípio da autodeterminação dos povos.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO: O tema proposto é de fundamental importância no contexto atual, pois é imperiosa a discussão acerca da característica de universalidade dos Direitos Humanos posto que “universalidade” pertence ao próprio conceito de “Direitos Humanos”. Dita característica é a origem de toda discussão acerca da efetividade de uma garantia transnacional dos Direitos Humanos e dos instrumentos que possibilitam sua eficácia global. É importante entender o conceito de humanidade, que este trabalho se propõe também a precisar, e para isto é preciso desconsiderar todo e qualquer ponto de vista isolado para entender seu verdadeiro conceito universal. É fundamental o uso de uma visão macro-sistêmica capaz de abranger ao mesmo tempo todas as essências sócio-culturais sem, contudo, vincular-se a nenhuma delas. O conceito de humanidade nasce de uma análise pontual do multicentrismo social e cultural capaz de criar um conceito universal de humanidade, ou seja, “humanidade” como fruto de toda sociedade que persiste em existir de forma isolada. É de suma importância entender também o verdadeiro conceito de Direitos Humanos, sua evolução histórica e seu caráter não estático, bem como demais características e abrangência. É necessário ainda compreender se é legítima a dúvida acerca da concreta existência de instrumentos garantidores dos Direitos Humanos de alcance transnacional como direito positivo. Seria pura ideologia ou utopia? É possível que um direito positivo possa ser universal (transnacional)? Por fim, resta-nos destacar a grandeza da necessidade de compreensão acerca dos verdadeiros instrumentos de garantia dos Direitos Humanos e como tais instrumentos adquirem eficácia transnacional e como se inserem no ordenamento jurídico pátrio. Devemos ainda compreender a importância da distinção de uma inserção equalizada como “pontes de transição”, onde conflito entre norma constitucional interna e norma transnacional seria apenas aparente e a relativização da soberania estatal imposta por normas transnacionais dotadas do princípio geral jus cogens, forma menos harmoniosa e não equalizada de resolução de eventuais conflitos normativos (efeito vertical). 2. PROBLEMA E DESENVOLVIMENTO A problemática é dupla: conceituação e garantia. Antes de examinar o conceito de universalidade, é necessária a conscientização do substantivo ao qual o aplicamos. Os direitos em questão são direitos positivos, mesmo o grau de positivação podendo ser de várias intensidades, daquele muito fraco como uma declaração internacional àquele forte, próprio das normativas estatais. Entende-se por positivação todo e qualquer reconhecimento jurídico de autoridade (internacional, nacional ou local) capaz de produzir direito positivo. Os direitos humanos nascem como tais somente quando começam a ser reconhecidos em sentido jurídico. Até então, têm caráter meramente ético, justas pretensões morais, direitos naturais e até “moral rights”, mas não em sentido próprio e completo “direitos humanos”. Para que existam os direitos humanos, é preciso também fatos, ou melhor, atos de reconhecimento. Próprio destes direitos positivos que são universais: Os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, se desenvolvem como direitos positivos particulares para depois achar a plena atuação como direitos positivos universais. Relembrar não é supérfluo, pois é a causa direta do problema: pode um direito positivo ser universal? Não seria preciso, talvez, reconhecer na positivação um efeito inevitável e a particularização e contextualização histórica? Os direitos positivos parecem ser inevitavelmente particulares, fixam condições para sua aplicação. Pode-se conceber que os “legal rights” sejam universais, mas porque não são positivos. Os “legal rights” são sempre direitos particulares, ainda que específicos e/ou genéricos. É possível até mesmo conceber que existam elementos de universalidade nos direitos positivos no sentido que estes são justificados por considerações universais que se referem à dignidade humana, ao respeito de valores como a liberdade, ao bem estar, à solidariedade, à justiça. Mas por si só estes valores universais não são certamente direitos, deveríamos dizer corretamente que existe algo de universal nos direitos humanos, mas não que este, enquanto direito positivo, seja universal. A universalidade está presente nele assim como uma justificação moral está presente em uma ação, que é, por definição, sempre particular. Então poderíamos chegar à conclusão que os direitos humanos são aqueles direitos fornidos de uma justificativa axiológica universal. Consideramos isto como um dos modos plausíveis de entender o significado da expressão “universalidade dos direitos humanos”. A garantia é uma condição essencial para assegurar a efetividade de um direito, não se pode falar em direitos se as posições subjetivas não são protegidas com eficácia. Consequentemente, para verificar a relevância das declarações constitucionais e convencionais em matéria de direitos fundamentais, é necessário considerar as formas de tutela, os instrumentos e as instituições que consentem um efetivo exercício. A tutela dos direitos humanos pode ser autuada em mais de um nível e os mecanismos de proteção podem ser analisados por três pontos de vista diferentes: nacional, regional e universal. Importante compreender a relação entre as diversas jurisdições, hoje necessário para verificar a efetividade da tutela dos direitos fundamentais e individuar as regras procedimentais dos diversos âmbitos de intervenção jurisdicional. Central é o estudo sobre a ligação entre a tutela dos direitos fundamentais, à luz destas “precisões” externas, provenientes de outros níveis. Logo podemos dizer que existe garantia transnacional dos Direitos Humanos e instrumentos capazes de assegurá-la, assim como é também possível falar em direito positivo universal(?!) A afirmação da garantia dos Direitos Humanos em um cenário global é também um modo de controle do poder estatal e devemos considerar os Direitos Humanos como direitos universais, capazes de transcender quaisquer barreiras, sejam elas geográficas, sociais, econômicas ou culturais. É necessário reconhecer os instrumentos garantidores dos direitos humanos em um plano metanacional, bem como a criação de novos Instrumentos capazes de garantir eficácia universal de normas (direito positivo) garantidoras dos Direitos Humanos em perene evolução. É verdade que os direitos, para que possam se impor, precisam de dentes para morder, mas todo cuidado é pouco para decidir quando e como é lícito interferir nas escolhas políticas dos Estados independentes, em que momento se configura uma situação de emergência humanitária e ainda quem está autorizado a intervir. Os instrumentos de garantia transnacional dos Diretos Humanos podem ter o poder de relativizar a soberania estatal, mitigando o princípio da autodeterminação dos povos e têm ainda a capacidade de penetrar em ordenamentos jurídicos das mais variadas nações e especificamente, no ordenamento jurídico pátrio, as convenções e tratados de Direitos Humanos dos quais o Brasil faz parte têm aptidão de se estabelecerem como norma supra legal ou constitucional. Como sabido, segundo a Constituição Federal do Brasil, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas e aqueles que, versando sobre assuntos relacionados a direitos humanos, não passarem pela aprovação por quórum de Emenda Constitucional, já decidiu o Supremo Tribunal Federal, têm status supralegal e infraconstitucional. Indiscutível a prevalência do caráter universal, posto que representa a própria essência dos Direitos Humanos, contudo a garantia transnacional dos Direitos Humanos não pode ser incoerente, deve ser autônoma e aquilatada com isonomia, caso contrário, corre-se o sério risco de serem desvirtuadas e seus instrumentos poderiam então servir como mais uma ferramenta de autoritarismo dos países “fortes” em relação aos países “fracos”. Preâmbulo da Carta das Nações Unidas: “Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade do homem e da mulher, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla.” É inegável que no período atual a tutela dos direitos fundamentais não se limita a uma questão meramente interna, a um singular ordenamento jurídico, em verdade, exprime uma dimensão metanacional da experiência jurídica dos últimos cinquenta anos. De algum modo os institutos da globalização aceleraram a maturação do processo de superação dos confins nacionais. Evolutivamente, os direitos humanos passaram de ato de atribuição estatal a ato de reconhecimento por parte do estado, representando uma forma de limitação da sua soberania/autoridade, de certa forma, mitigando alguns princípios basilares como o princípio da autodeterminação dos povos e o princípio da soberania estatal. Portanto, a relação hierárquica normativa da constituição em relação a outras normas inferiores e entre estas e as leis, de alguma maneira inverte a relação existente entre lei e direitos. O Direito passa a ser mais abrangente do que a lei. Ocorre hoje uma “troca de conhecimentos” entre as várias ordens jurídicas do mundo globalizado, uma transformação de Direitos Humanos em diretos fundamentais, que por sua vez, passam então a romper barreiras geopolíticas criando o conceito de direitos fundamentais universais ou tecnicamente falando, transnacionais. É verdade que esta nova fase de vertiginoso crescimento sócio econômico estimula o nascimento de novos direitos fundamentais, inclusive de alcance transnacional, mas em contrapartida também novos deveres fundamentais surgem, onde o local e o global se fundem para criarem o transnacional, seguido por seus instrumentos de garantia, num verdadeiro processo de positivação transnacional/global. Entende-se por positivação todo reconhecimento jurídico oriundo de autoridade internacional, nacional ou local capaz de produzir direito positivo. O objetivo nuclear do artigo científico, como já exposto, é a conceituação da transnacionalidade dos direitos humanos, bem como analise dos instrumentos de garantia transnacional dos Direitos Humanos e mostrar que tais instrumentos, provenientes de uma política humana global, têm a capacidade efetiva de realizar a tarefa para a qual se propõem.  É também mostrar a evolução histórica e o caráter universal dos Direitos Humanos. Revelar que a tutela dos Direitos Humanos no ordenamento jurídico internacional existe e que os Direitos Humanos são garantidos por um ordenamento jurídico transnacional e tudo isso ocorre através de instrumentos (direito positivo) não vinculantes (que em alguns casos, passam a vinculante por transformação em direito internacional consuetudinário) e outras convenções internacionais que, uma vez em vigor, inserem-se ao ordenamento jurídico do estado que aderiu à convenção ou a ratificou, além de outros instrumentos/institutos de aplicabilidade prática e suas respectivas naturezas. Além das normas de garantia transnacional de direitos humanos não vinculantes, verifica-se ainda a existência de normas e instrumentos de garantia jus cogens, ou seja, aquelas que têm capacidade de atuar com efeito vertical, relativizando a soberania estatal, em casos de violações escandalosas à dignidade humana. A ideia é indagar sobre a natureza do direito internacional, mostrando e ratificando a concreta possibilidade de se construir uma nação de justiça glocal realmente funcional. Um direito humano fundamental é fruto de uma conexão entre direito moral e um processo de positivação. Com isso queremos dizer tanto que a positivação é indispensável, tanto que a ela não se poderá jamais atribuir um papel autônomo e constitutivo dos direitos humanos. Alguns desdobramentos são de suma importância e devem ser analisados e considerados como vitais para darem suporte ao objetivo principal: Analisar a evolução histórica dos Direitos Humanos, enfatizando os aspectos evolutivos do próprio conceito de Direitos Humanos e sua abrangência “glocal” (local/global), bem como esclarecer a distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais.  Os direitos humanos são os direitos inerentes à condição humana e não encontram barreiras, pois, como dito, são próprios de todo ser humano. É a mais cristalina materialização do direito natural. Já os direitos fundamentais, são direitos positivos, são aqueles que saíram da abstração e hoje integram ordenamentos jurídicos das mais variadas nações. São estes direitos que, em muitos casos, encontram barreiras geopolíticas. É necessária uma digressão a fim de entender a evolução histórica do conceito de direitos humanos e ainda sua definição e classificação além da hierarquia dos próprios direitos humanos. O conceito de direitos humanos tem sua origem na filosofia grego-romana, mas começou a ganhar autonomia e relevância no plano jurídico somente com as codificações europeias dos séculos XIII e XIV, em particular com a Magna Charta Liberatium inglesa de 1215, a Erik Klippungs Handfaesting dinamarquesa de 1282 e da Joyeuse Entrée de 1356 às quais se uniram a Union of Utrecht olandesa de 1579 e o Bill of rights inglês de 1689. Tais atos se limitavam a conceder algumas liberdades a determinados sujeitos ou grupos em virtude de seu estado social, circunscrevendo contextualmente o poder absoluto do soberano. Somente nos séculos sucessivos o conceito de liberdade individual foi progressivamente desvinculado dos grupos sociais e, no curso dos séculos XVIII e XIX, se firmou a convicção de que os súditos de um estado tinham direito de esperar um empenho pelo melhoramento de suas condições de vida. Por este motivo, diversas constituições na Europa entre o fim do século XIX e início do século XX previam, ao lado dos direitos clássicos, precisas responsabilidades dos governos no campo do trabalho, da segurança social, da saúde e da educação. Paralelamente a evolução histórico-jurídica, o conceito de direitos humanos foi desenvolvido e interpretado também no plano teórico-filosófico, principalmente por duas teorias: O Jusnaturalismo, que defende a origem dos direitos humanos na própria natureza do homem, na sua razão ou em Deus. O Positivismo, que põe como fundamento dos direitos humanos o ordenamento jurídico, ou seja, a lei positivada. No “approach” jusnaturalista, a positivação dos direitos representa uma consequência natural da existência dos próprios direitos, enquanto naquele positivista é pressuposto necessário e imprescindível. De qualquer maneira, o titular do direito é sempre a pessoa e, ainda que se possa distinguir uma concepção individualista, que atribui a titularidade do direito ao particular e uma coletivista, que identifica essa titularidade no grupo, é com base na segunda orientação que, sobretudo nos últimos tempos, foram individuados os direitos dos trabalhadores, das mulheres, das crianças etc. Seja qual for a teoria a ser seguida, é possível afirmar que os direitos do homem são: -Imprescritíveis, pois o sujeito permanece titular mesmo quando não os exercita concretamente; -Inalienáveis, não podendo ser vendidos, cedidos ou transferidos; -Irrenunciáveis; -Universais, inerentes a cada ser humano enquanto tal; Os direitos e as liberdades são situações jurídicas subjetivas consistentes na atribuição, na modificação ou na extinção de poderes, obrigações e direitos sobre um sujeito, que se distinguem em: –Situação ativa (ou de vantagem), voltada a garantir resultados favoráveis para os titulares. –Situação passiva (ou de desvantagem), que impõem ao titular comportamentos para a satisfação de interesses de outros. O termo liberdade indica geralmente uma posição na qual se pede a outros sujeitos que não interfiram em sua própria escolha subjetiva, enquanto o direito consiste em exigir que outro sujeito ative-se a fim de que sua própria situação jurídica de vantagem possa ser plenamente satisfeita. Por direitos do homem, mais especificamente, se entendem aqueles direitos conexos à natureza da pessoa humana, que nos remete ao conceito de identidade universal do homem, onde a pessoa humana tem os mesmos direitos e aspira às mesmas liberdades qualquer que seja a raça, a etnia, o sexo, as opiniões, a nacionalidade. Ainda que numa linha principiológica os direitos humanos devam ser considerados indivisíveis (como acenado na Conferencia Internacional das Nações Unidas de 1968), razões de ordem prática sugerem que seja oportuna uma divisão. Os estudiosos distinguem os direitos e liberdades em “gerações”, fazendo referencia ao período histórico em que foram consolidados e aos documentos que os sancionaram e tutelaram. Portanto fala-se em: –Diretos e liberdades de primeira geração, que compreendem prevalentemente, liberdade de caráter individual, subdividida em liberdade civil (liberdade de agir) e liberdade política (participação no governo do próprio país). Trata-se, inicialmente, do direito à vida e a integridade física, das liberdades de pensamento, religião, expressão, imprensa, associação, dos direitos a participação política e ao eleitorado ativo e passivo; –Direitos e liberdades de segunda geração, nas quais geralmente estão incluídos os direitos econômicos, sociais, culturais (entre os quais, o direito a um trabalho equamente retribuído e tutelado, ao descanso e ao lazer, a moradia, a uma qualidade de vida capaz de garantir a saúde, educação e o bem estar de sua própria família); –Direitos e liberdades de terceira geração, direitos de solidariedade, não para destinatários singulares, mas para inteiros grupos sociais (o povo). Aqui se fala de direito de autodeterminação dos povos, de paz, de desenvolvimento, equilíbrio ecológico, defesa do ambiente. A estes se agregam aqueles destinados a tutela de determinadas categorias de pessoas (como os menores, os idosos e as mulheres) particularmente expostas a perigos de violações das próprias situações jurídicas e por isso merecedores de uma ainda mais eficaz tutela interna e internacional. Enfim, – Direitos e liberdades de quarta geração, ou seja, direitos ainda em fase de reconhecimento relativos ao campo das manipulações genéticas e da bioética, das novas tecnologias de comunicação, do mundo animal etc. Um segundo método de classificação se baseia ao conteúdo material e os distingue entre: Direitos individuais, que se referem diretamente à pessoa humana. Trata-se, essencialmente, dos direitos e das liberdades de primeira e segunda geração; Direitos coletivos, inerentes ao indivíduo enquanto parte de um grupo. A maior parte esta relacionada como direitos de terceira geração, cujo reconhecimento recebeu grande impulso a partir do processo de descolonização e o nascimento das constituições dos países em desenvolvimento. Hierarquia dos direitos humanos: Na doutrina se discute acerca da necessidade, e da correteza do ponto de vista ético, de se individuar uma hierarquia entre os direitos humanos. Por mais a princípio questionável, é preciso entender que nem todos os direitos humanos recebem o mesmo reconhecimento.  Não há duvida acerca da existência de direitos fundamentais do homem elencados até mesmo no preâmbulo do estatuto das nações unidas, aos quais se garante uma maior tutela em relação a outros. Pode-se afirmar – com a doutrina que prevalece – que esse reconhecimento é hoje uma obrigação imprescindível por parte da inteira comunidade internacional, derivante do direito consuetudinário cogente, o jus cogens. Direta consequência de tal assunto é que eles não podem ser derrogados nem por consuetudes internacionais sucessivas nem por acordos entre estados. As normas internacionais jus cogens existem atualmente para tutelar os direitos fundamentais do homem e vetar as “Gross Violations” que são violações consubstanciadas nos seguintes atos: –genocídio; -discriminação racial; -tortura; -execução em massa; -tratamento desumano e degradante dos prisioneiros políticos; -violação do princípio da autodeterminação dos povos; -escravidão; O reconhecimento de um “corpus” de direitos humanos fundamentais onde as normas são impostas de caráter cogente levou ao nascimento de um novo e importante setor de direito internacional, o direito penal internacional, que define as “Gross Violations” como verdadeiros crimes internacionais, hoje puníveis internacionalmente. São instrumentos e normas de garantia transnacional dos Direitos Humanos, dentre outros, a Carta da ONU, a Declaração universal dos direitos do homem, a Convenção americana de direitos humanos de1969 (Pacto de São José da Costa Rica), a Declaração americana dos direitos e deveres do homem, a Corte interamericana de direitos humanos, o Tribunal Internacional de Justiça, bem como o poder de influência das decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos que, apesar de não possuir autoridade formal (fora da UE) tem um grande “poder simbólico” e, consequentemente, alta capacidade de persuasão. Por fim, observa-se que a relação entre o princípio da não intervenção, a caução da identidade cultural e a garantia transnacional dos Direitos Humanos deve sempre ser equalizada a fim de encontrar a melhor forma de harmonização. 3. CONCLUSÃO: Confirma-se o jusnaturalismo que defende a existência de direitos humanos preexistentes em relação ao Estado. Segundo a visão de Hobbes, o mundo é dos mais fortes e à base do poder existe uma espécie de acordo entre o soberano e o povo: Estado natural pessimista. Já Locke, individua um Estado natural mais otimista (ou menos pessimista) e com base nisso os homens são favoráveis a solidariedade e segundo sua consciência, para sair do Estado natural é necessário um pacto social que vise a proteção dos três direitos fundamentais: Direito à vida, à propriedade e à liberdade. O Liberalismo de Locke se desenvolve na França e nos Estados Unidos e tem uma importante participação no apoio à Revolução Francesa e Americana, tanto que emerge na “Declaração de independência americana” de Thomas Jefferson (1776), no “Bill os Rights” de 1779 os direitos civis e políticos fundamentais. Os direitos humanos são inalienáveis e fundamentam a dignidade do ser humano e o Estado por sua vez, é obrigado a garantir. A garantia de tais direitos está prevista não só no ordenamento jurídico nacional, mas também no ordenamento jurídico internacional que prevê inúmeros instrumentos e mecanismos de tutela a fim de assegurar o respeito e a garantia dos direitos humanos em escala transnacional. Todo Estado que ratifica um tratado internacional sobre direitos humanos está automaticamente ( ou pelo menos deveria ) comprometido com os próprios cidadãos a respeitar e garantir os respectivos direitos fundamentais. É bem verdade que os direitos humanos (que uma vez positivados passam a ser fundamentais) dizem respeito principalmente à relação entre Estado e cidadão, mas isso não quer dizer que os privados possam lesar os direitos alheios, pois neste caso o Estado tem a obrigação de garantir proteção aos privados quando têm seus direitos achacados por outros privados e neste caso também a violência doméstica deve ser considerada, além de violação à ordem constitucional, como violação dos direitos de um privado. É a garantia horizontal dos direitos humanos.  A Dignidade humana é, sem dúvidas, um valor universal, mas não é universal o modo de respeitá-la e protegê-la, sendo condicionado pelas diversidades culturais.  Não precisa identificar a dignidade humana com os direitos, que são somente uma forma cultural de proteção dela mesma. Sustenta-se que todas as culturas sejam de algum modo sensível aos valores humanos fundamentais, mas têm os seus modos de perseguir e praticar o respeito pelo homem. Mas a universalidade do juízo de valor não quer dizer universalidade dos direitos humanos. Trata-se de coisas diferentes que não podem ser confundidas.  Quando se sustenta que, para superar a contraposição entre universalismo e relativismo, é preciso reconhecer que os valores fundamentais são defesos também das culturas não ocidentais (como aquelas africanas), isso não quer dizer necessariamente que estes defendam “direitos”. É uma refinada técnica jurídica inventada pelo ocidente, mas não sempre aplicável a todas as culturas do mundo.  Certamente podemos dizer que existe uma relação necessária entre meio e fim, no sentido de que os direitos são objetivamente o melhor modo, mais adequado, mais eficaz para realizar os valores humanos universais.  Os direitos não são mera técnica ou instrumento, é um único corpo de práticas ético-jurídico e ético-político (as mais importantes das quais, como se sabe, são o constitucionalismo e a democracia) que pretende, não sem razão, colocar-se como universal.  Os direitos são universais enquanto fazem parte constitutiva e essencial deste complexo histórico político de instituições, doutrinas, normas, princípios, tradições e práticas. Mas muita coisa ainda seria preciso ilustrar àqueles que vociferam publicamente que “os direitos humanos são para humanos direitos” para explicar-lhes que os direitos humanos são universais.
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Dignidade da pessoa humana: o trabalho dignificando e ressocializando
O presente artigo é oriundo de um estudo iniciado ainda na época da minha graduação em direito, fruto de uma mazela social que se perdura por décadas em meio a nossa sociedade, onde se prende, se encarcera, tirando de circulação sem a mínima preocupação do resultado futuro daquela ação, tratando o individuo com total arbitrariedade sem qualquer dignidade. O estudo consistirá em demonstrar o resgate da dignidade da pessoa humana e será dividido em três partes, uma direcionada à dignidade da pessoa humana, que será interligada diretamente a atividade do trabalho exercida no devido cumprimento da pena por parte do indivíduo apenado, onde se buscará ressaltar a sua grande importância como um meio digno ressocializador e de reinserção social. O objetivo é dar ampla visão ao processo de ressocialização do apenado, demonstrando a importância da aplicação do trabalho de forma integral, em um sistema igual, padronizado de norte a sul no País. Será demonstrada a doutrina referente ao assunto abordado, com a linha de pensamento de diversos doutrinadores, suas devidas críticas e sugestões. O artigo no seu fim trará uma narrativa com o intuito de gerar uma visão realista do que ocorre na prática, consistindo assim tal narrativa em um relato real e pessoal, direcionado a uma sociedade cansada que não aguenta mais e clama por paz.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO A escolha da temática cujo objeto dessa pesquisa se deu em face das mazelas do sistema carcerário brasileiro, são problemas que se arrastam por décadas e que influenciam diretamente em nosso cotidiano. É notório que esse sistema não recupera quase ninguém, trata-se de um sistema falho, e por esse motivo deve ser reformulado por inteiro, um novo programa aplicado em todo o Brasil de forma igualitária, gerido apenas pela União, proporcionado trabalho para toda a população carcerária a fim de restabelecer a dignidade dessas pessoas e assim reinseridas de maneira humanizada em meio a nossa sociedade. Trata-se de uma pesquisa de caráter exploratório e de cunho bibliográfico, buscando identificar as distintas concepções e os fundamentos da problemática de maneira aprofundada. O objetivo geral é repassar um novo entendimento a esse tão importante instituto que é a ressocialização, demonstrando os benefícios da aplicação do trabalho de maneira uniforme em face ao cumprimento da pena por parte dos apenados, aplicando a atividade laborativa de forma integral, em um sistema igual, padronizado de norte a sul, pois a sua imposição tem o propósito de evitar o ócio, gerar aptidões e profissões àqueles que nunca sequer exerceram alguma atividade de forma digna, sua importância não só para quem está submetido, mas também para toda a sociedade num modo geral. A atividade laborativa a ser exercida pelo preso está disciplinada na lei 7.210 de 11 de julho de 1984, esta lei trata da fase executória da pena num todo, estabelecendo diretrizes e regras com relação à execução. A citada lei tem por objetivo não só fazer com que o condenado cumpra sua pena, como também propiciar a reinserção social do condenado de forma humana após o cumprimento de sua sanção, podendo-se dizer que tal lei possui um “espírito humanitário”, pois reconhece a atividade do trabalho como condição favorecedora à dignidade da pessoa humana. Primeiramente será demonstrado o conceito relacionado ao presente estudo, o surgimento do trabalho em face ao cumprimento da pena com a sua devida evolução histórica, no mundo e no Brasil. Com relação às legislações, o presente artigo trará o regramento pertinente ao estudo abordado, iniciando assim com a Legislação Internacional, passando pela Constitucional e por fim a Infraconstitucional. No tocante aos aspectos doutrinários, será demonstrada a visão e o posicionamento de doutrinadores renomados com relação ao caso, ressaltando a importância do trabalho não só como meio ressocializador, mas também como meio propiciador e restabelecedor da dignidade da pessoa humana. Por fim as considerações finais deste artigo, reforçando o entendimento de que o trabalho é o maior e o melhor meio capaz de gerar a devida ressocialização do indivíduo, tornando-o sociável e apto a retornar ao convívio em meio ao núcleo social. Porém, será que somente o emprego deste meio ressocializador é capaz de gerar o fenômeno da ressocialização, ou seja, será que haverá a necessidade da união de outros elementos para que tal processo se concretize a fim de evitar um futuro retorno do indivíduo ao sistema, pois um novo retorno significará uma nova reincidência por parte deste indivíduo que consequentemente voltará à estaca zero, sendo então aquele árduo processo ressocializador desprendido em vão.  2. CONCEITO Hodiernamente existe uma grande preocupação por grande parte do mundo em tutelar a dignidade da pessoa humana, é um tema que ganha relevante destaque por ser um direito fundamental e de comando estruturante à organização do Estado, encontrando-se hoje no epicentro jurídico dos Estados respeitadores e garantidores dos direitos fundamentais em prol da valorização da pessoa humana (AFONSO DA SILVA, 2000). Seu significado está ligado intrinsecamente ao ser humano, se traduz em respeito e proteção que ganham contornos universais, podendo seu conceito ser visto de uma forma mais técnica nas palavras do Constitucionalista Alexandre de Moraes, que assim dispõe: “A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos” (MORAES, 2005, p.16). O conceito dado por Moraes encaixa-se perfeitamente ao assunto que será abordado mais a frente, pelo fato de que realmente há uma diminuição no exercício dos direitos fundamentais do indivíduo que se encontra na custódia do Estado e não a sua total retirada. Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gonet Branco, reforçam ainda mais o entendimento acima ao acrescentar um plus a temática da seguinte forma: “Respeita-se a dignidade da pessoa quando o indivíduo é tratado como sujeito com valor intrínseco, posto acima de todas as coisas criadas e em patamar de igualdade de direitos com os seus semelhantes. Há o desrespeito ao princípio, quando a pessoa é tratada como objeto […]” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p.418). O indivíduo jamais pode ser visto ou tratado como um objeto, não podendo ser atingido por qualquer ato de caráter degradante ou desumano, mesmo estando privado de sua liberdade. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet: “Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos” (SARLET, 2001, p.60). É tamanha a importância da dignidade na vida do ser, a sua falta causa prejuízos imensuráveis, tanto na vida daqueles que a nunca tiveram e, portanto não sabem seu real significado, quanto daqueles também que a jogaram fora. Dignificar e ressocializar a pessoa humana não é uma tarefa fácil, necessita de meios eficazes e capazes de realizar tal feito, todavia, o trabalho por sua vez, é visto como um elo por grande parte da doutrina à concretização desse feito. O conceito abrangente de trabalho surgiu na antiguidade precisamente na idade média, Amauri Mascaro Nascimento nos traz diversas concepções remotas acerca do trabalho, cada uma buscava através de suas ideologias atribuir um significado ao trabalho conforme fez a corrente filosófica. Sendo assim, Nascimento (2001) relata a visão de Aristóteles, visão esta de caráter negativo que buscava conceituar o trabalho como uma escravidão, porém necessária, ou seja, um regime social que o homem se sujeitava, utilizando-se de seu suor e de sua força, para que outros homens pudessem lograr fins econômicos e consequentemente tornarem-se homens virtuosos. O pensamento de Aristóteles significa dizer que o homem deve ser livre para se dedicar a própria perfeição, ou seja, o trabalho impede o homem de a consegui-la. Percebe-se que para o pensamento clássico grego o trabalho é tido como um castigo oriundo dos deuses, sendo algo que humilha o homem e por isso deve ser evitado. O Renascimento nos traz uma nova concepção acerca do trabalho, um novo desenvolvimento, elevando a consciência em relação ao trabalho como um valor. O valor do trabalho passa a ser então o fundamento de todas as concepções segundo Amauri Mascaro Nascimento, varias contribuições surgiram ao longo do tempo no sentido de valorizar ainda mais o conceito de trabalho. Amauri em suas palavras nos traz o pensamento exposto de Giambatista Vicco, expondo o seu conceito em relação ao trabalho como o conhecimento e realização da cultura, dos produtos históricos e morais dos homens, e não termina por aí, preceitua ainda que: “o espírito, como atividade e objetivação, faz do trabalho o próprio meio de o homem encontrar-se” (NASCIMENTO, 2001, p.160). Há de se perceber a mudança radical na concepção do significado de trabalho, a valoração e a visão positiva faz com que o trabalho seja visto como um bem útil e necessário ao homem, pois trabalho é, em conclusão, nada mais nada menos que a vida do ser propriamente dita. A ressocialização por seu fim, é uma palavra que diversos autores costumam utilizar para abordar temas voltados ao sistema prisional. Alguns doutrinadores procuram utilizar-se de outras denominações como reeducação social, recuperação ou reinserção social, sendo que ambas estarão voltadas à mesma finalidade, que nada mais é, do que o ato ou efeito de tornar-se sociável (MICHAELIS, 2013). O cumpridor da pena devidamente ressocializado, torna-se uma pessoa sociável que consequentemente estará apto ao convívio em meio ao núcleo social, em seu centro, e não as margens da sociedade como vivia anteriormente. Para Bitencourt (2003, p.90), o fenômeno da ressocialização implica em um processo comunicacional de profunda interação entre indivíduo e sociedade. Já para Damásio (1999, p.26), a ressocialização é a aplicação de um conjunto de medidas voltadas à recuperação do apenado, cujo objetivo é a sua reinserção de forma humanitária ao meio social. A forma humanitária que Damásio se refere, é aquela que vem a conceber ao individuo o respeito mínimo e o tratamento digno que um ser humano há de fazer jus. 3. ORIGEM HISTÓRICA O trabalho prisional teve seu surgimento segundo relatos históricos a partir do século XVI, em estabelecimentos prisionais holandeses e ingleses. A concepção de trabalho penitenciário seguiu historicamente o desenvolvimento progressivo da pena privativa de liberdade, sendo que, inicialmente a atividade laboral estava ligada a idéia de vingança por parte da sociedade, coadunada com o castigo ao individuo cumpridor da pena. Com o passar do tempo houve inúmeras mudanças, dentre elas a visão do Estado em obter lucros com a mão de obra que detinha, “encontrando-se na atividade laborativa do preso uma fonte de produção para o Estado, o trabalho foi utilizado nesse sentido, dentro das tendências utilitárias dos sistemas penais e penitenciários” (MIRABETE, 2000, p.87). O trabalho praticado pelos presos à época era exercido em regime similar ao da escravidão, não havia qualquer reconhecimento do preso como um ser humano, sem falar nas situações deploráveis que se encontravam as prisões, principalmente as da Inglaterra. As leis que vigoravam idealizavam excessivos procedimentos cruéis, permitindo aos juízes arbitrar da forma que lhe conviesse, sem qualquer tipo de tratamento isonômico, ou seja, o julgamento era feito de acordo com as condições sociais dos homens, não havendo assim qualquer tipo de equidade. Tais situações lastimáveis perduraram até meados do século XVIII, onde houve então o surgimento e a propagação de idéias liberais voltadas à humanização e a reforma das leis, sendo esse período conhecido como o século das luzes, onde os idealistas buscavam resgatar as correntes iluministas e humanitárias de Rousseau, Montesquieu, Locke e Voltaire, pelo fato destes filósofos terem sido os grandes defensores da liberdade, da igualdade e da justiça como afirma Bitencourt (2003). O grande apogeu veio com o advento da Revolução Francesa, a partir daí então começou a haver o reconhecimento do preso por parte das autoridades como um ser humano, sendo Cesare de Beccaria, John Howard e Jeremias Bentham os grandes causadores de tal conquista ocorrida na seara penal (BITENCOURT, 2003). Cesare Bonessana mais conhecido como o Marquês de Baccaria, marcou sem dúvida o inicio definitivo do direito penal moderno, suas idéias voltadas à defesa social propiciaram através de sua obra – Dos delitos e das penas – o amadurecimento da trajetória da reforma penal dos últimos séculos. Beccaria em sua obra menciona o contrato social, cuja teoria prega o respeito mútuo entre os homens, contribuindo assim para a humanização e racionalização da pena privativa de liberdade com a adoção da concepção utilitarista da pena (BECCARIA, 2005). Outro nome importante e de peso que contribuiu em especial para o processo de humanização e racionalização da pena foi o de John Howard, suas idéias foram de grande contribuição na seara penal, inspirando a corrente penitenciarista na construção de estabelecimentos adequados para o devido cumprimento da pena (BITENCOURT, 2003). Howard nunca aceitou as condições desumanas que se encontravam as prisões inglesas, pois a Inglaterra diferentemente da Holanda, passou a não dar mais importância ao trabalho exercido dentro das casas de correição, sendo assim, deixou de realizar investimentos nesse setor que consequentemente se transformou num caos total, em completa situação de abandono, deixando os presos sem qualquer amparo, ou seja, sem nenhum respeito à dignidade da pessoa humana (BITENCOURT, 2003). Por fim Jeremias Bentham, outro ícone que marcou muito o campo da penologia, sendo suas idéias marcadas por terem sido expostas de forma sistemática, onde era defendido um princípio ético, havendo um sistema de controle social, ou seja, um controle do comportamento humano. Bentham se importava muito com a prevenção social, considerando que o fim objetivo da pena era o da prevenção delituosa, mas também admitia a pena com seu fim correcional. “O negócio passado não é mais o problema, mas o futuro é infinito: o delito passado não afeta mais que a um indivíduo, mas os delitos futuros podem afetar a todos. Em muitos casos é impossível remediar o mal cometido, mas sempre se pode tirar a vontade de fazer mal, porque por maior que seja o proveito de um delito sempre pode ser maior o mal da pena” (BENTHAN, apud BITENCOURT, 2003, p.38). Bentham realmente tinha uma visão nociva da pena, aceitava reconhecer que o castigo era um mal, porém um mal utilizado como um meio de prevenção de danos maiores a toda a sociedade. Para ele, as prisões que não oferecessem condições adequadas para o devido cumprimento da pena privativa de liberdade, acabavam por si só gerando a não reabilitação do indivíduo, e por conseqüência disto o seu retorno, ou melhor, a sua reincidência. No Brasil, o trabalho prisional surgiu na época do Império, seu marco nas cadeias brasileiras se deu com o propósito de mudar o conceito de prisão até então vigente à época. O modelo adotado pelo Brasil trazia o trabalho em sua essência, coadunando assim a atividade laboral com a pena a ser cumprida pelo apenado. Tal regime implantado no Brasil era tido como um modelo ressocializador bastante avançado à época, seu dogma era o trabalho, com isso acreditava-se que o apenado só alcançaria a sua recuperação através da disciplina do trabalho (CABRINI, 2013). O Brasil utilizou-se da aplicação do trabalho no cumprimento da pena de duas formas distintas, ou seja, em determinado momento de caráter obrigatório, e em um segundo momento de caráter opcional, que predominou da época do Império e se extinguiu por volta de 1937. A partir daí passou-se então a haver uma certa preocupação por parte de autoridades e juristas à época em criar e instituir uma lei especial voltada à execução penal, contudo, a criação da lei se deu somente em 11 de julho de 1984, lei esta n.º 7.210 conhecida então como LEP, ou seja, Lei de Execuções Penais. 4. LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL Durante muitos séculos foram relatados casos de desrespeito a integridade e a dignidade do ser humano, relacionados não só a acontecimentos ocorridos na esfera penal, mas em todos os outros seguimentos sociais. A história voltada ao direito penal, traz inúmeros relatos de tratamentos desumanos e degradantes que eram submetidos não só os indivíduos condenados, mas também àqueles que aguardavam a sua condenação, que em alguns casos sequer tinham acometido algum ilícito e acabavam assim por sofrer tais danos que eram direcionados à sua integridade física e moral (SOUZA, 2008). Não havia por parte do Estado nenhuma garantia ou regra de tratamento ao preso, sequer falava-se em democracia ou direitos, quanto mais em garantia. Sendo assim, houve uma grande preocupação de se fazer leis voltadas à proteção do homem num contexto geral, para que se pudesse dar um fim a tantas barbáries ocorridas ao longo da história, gerando assim o surgimento e o reconhecimento da dignidade como característica intrínseca ao ser humano (BITENCOURT, 2003). Em 1948, surge a Declaração Americana de Direitos e Deveres dos Homens através da conferência internacional americana realizada em Bogotá na Colômbia, surgindo também no mesmo ano a então Declaração Universal dos Direitos Humanos, através de uma assembléia realizada em Paris na França. Tal declaração aprovada na assembléia geral da ONU “Organização das Nações Unidas” concebeu em seus trinta artigos vários direitos e garantias, reconhecendo a dignidade como característica inerente e própria ao ser humano (ONU, 1948). Alguns Países conseguiram reduzir em muito o tratamento desumano que era aplicado aos seus presos, contudo perduravam ainda por grande parte do mundo tais condições desumanas. A ONU muito apreensiva com os acontecimentos lastimáveis ocorridos em estabelecimentos prisionais de diversos Países, resolve assim por criar regras mínimas a serem cumpridas para o tratamento dos reclusos, adotadas através do 1º Congresso das Nações Unidas sobre prevenção e tratamento de delinqüentes realizado em 1955 em Genebra na Suíça, sendo que parte das regras citadas estão voltadas diretamente ao trabalho prisional (GENEBRA, 1955). Não há como se falar nesse assunto sem abordar direitos humanos, pelo fato de que a atividade do trabalho só pode ser digna, se os referidos direitos humanos forem exercidos, garantidos e respeitados. Vale ressaltar também o surgimento de várias outras declarações com o intuito de salvaguardar e garantir a aplicação dos direitos humanos, dentre elas podemos citar a Convenção Européia para a Garantia dos Direitos Humanos de 1950, e a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 – Pacto de San José da Costa Rica (BITENCOURT, 2003). Diante do exposto, há de se perceber ao longo da história o forte desejo por grande parte das Nações de se fazer valer o respeito aos direitos humanos, respeito este que vem se consolidando ao longo do tempo como ressalta Souza: “Embora tenhamos notícias do passado acerca das várias barbáries praticadas em detrimento da dignidade das pessoas submetidas à ação estatal, nos dias de hoje pelo menos no Ocidente, podemos constatar a tendência dos ordenamentos jurídicos em reconhecer o ser humano como o fim do Estado e do Direito e, consequentemente, em reconhecer a dignidade como fundamento de todo o ordenamento jurídico” (SOUZA, 2008, p.109). As palavras de Marcelo de Souza resumem e reforçam o que fora ressaltado alhures, mencionando que nos dias atuais prevalece em grande parte do mundo o respeito a dignidade da pessoa humana, porém faz a ressalva de que tal respeito é exercido e mantido pelo menos no Ocidente. Souza se refere a política adotada em pleno século XXI em Guantánamo, cidade do sudeste de Cuba, onde os Estados Unidos da América através de sua pseudo democracia, mantêm uma base militar destinada a manter prisioneiros supostamente ligados ao terrorismo, onde os mesmos além de serem tratados de forma desumana, são também submetidos a prática de tortura, inclusive impedindo que haja qualquer tipo de controle externo, ou seja, que seja realizada qualquer interferência internacional, a fim de se valer cumprir o mínimo exigido de tratamento digno que um ser humano há de fazer jus (SOUZA, 2008).      4.1. LEGISLAÇÃO CONSTITUCIONAL A Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 05 de outubro de 1988, não trata especificamente e nem expressamente do trabalho exercido pelo individuo cumpridor da pena privativa de liberdade, mas trouxe as devidas garantias a fim de que esse direito seja protegido e exercido, deixando assim o tratamento específico de tal assunto a cargo de legislações infraconstitucionais. Os direitos e garantias individuais e coletivos estão consagrados no artigo 5º da Magna Carta, sendo eles reconhecidos como direitos humanos fundamentais destinados a todos, inclusive ao indivíduo que se encontra privado de alguns de seus direitos (MORAES, 2005). A Constituição Federal veda expressamente a imposição de qualquer tipo de pena consubstanciada em trabalhos forçados ou de caráter cruel, conforme dispõe as alíneas ‘c’ e ‘d’ do inciso XLVII do art. 5º. A Lei Fundamental não traz somente esta garantia no artigo citado, como traz também implicitamente em seu texto o reconhecimento à prática da atividade laborativa a ser exercida pelo preso (OLIVEIRA, 2006). Na parte reservada aos Direitos Sociais, a CRFB/88 traz expressamente em seu artigo 6º o trabalho como direito social dentre outros ali elencados. O trabalho como direito social, engloba todo tipo lícito de atividade laborativa, inclusive as praticadas no cumprimento da pena em estabelecimentos prisionais impostas pelo Estado, sendo assim, adita Mirabete: “se o Estado tem o direito de exigir que o condenado trabalhe, conforme os termos legais, tem o preso o ‘direito social’ ao trabalho” (2000, p.88). Todavia sendo o trabalho um direito social, dispõe Mirabete (2000) que o indivíduo cumpridor da pena privativa de liberdade ou de medida de segurança detentiva, possui o status de condenado, sendo assim, não pode vir a exercer tal atividade laborativa por livre e espontânea vontade devido a retirada temporária de alguns de seus direitos, cabendo então ao Estado conceder-lhe a atribuição do trabalho como um dever. 4.2. LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL O ordenamento jurídico vigente de um País é composto por normas superiores e inferiores, há um escalonamento a ser respeitado e seguido, podendo-se afirmar assim que as normas de um ordenamento não se encontram em um mesmo plano (BOBBIO, 2006). A legislação infraconstitucional é aquela lei que pela hierarquia das normas está abaixo da Constituição, suas diretrizes estão voltadas a tratar do assunto pertinente de forma específica, que nesse caso vem a ser disciplinado pela Lei n.º 7.210 de 1984, ou seja, a Lei de Execuções Penais “LEP”, que assim dispõe em seu artigo 1º: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (VADE MECUM, 2012). A citada Lei ao tratar da matéria em estudo, faz a devida menção sobre a dignidade da pessoa humana em seu art. 28, que assim dispõe: “O trabalho do condenado como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva” (VADE MECUM, 2012). A LEP regula e disciplina de forma específica o exercício da atividade laboral a ser desempenhada pelo condenado, englobando tudo que esteja relacionado a essa atividade, tais como direitos, deveres e sanções. A Lei não só exauri o assunto relativo ao trabalho prisional, como também o faz no que tange ao processo de execução num todo, tratando-se, portanto, de uma Lei completa, onde há o reconhecimento do trabalho como condição de dignidade do ser humano que ali se encontra. 5. DIGNIDADE HUMANA E O LABOR RESSOCIALIZADOR A execução da pena atualmente segundo a moderna concepção acerca do processo de execução, pode ser analisada como um conjunto de métodos e medidas voltados à dignidade da pessoa humana e a devida reinserção social, contendo assim uma finalidade reabilitadora. São vários os métodos ou meios utilizados pelo Estado com o intuito de atingir esse determinado fim, porém o trabalho, segundo grande parte da doutrina é o meio mais promissor de se alcançar tal objetivo almejado, ou seja, o da ressocialização (MIRABETE, 2000). Pode-se dizer que o trabalho prisional possui caráter pedagógico, fazendo com que o preso que esteja ali submetido passe também a se educar ou em alguns casos a se reeducar, com relação ao cumprimento de ordens emanadas, horários a cumprir e muito mais. Segundo Mirabete: “O trabalho prisional não constitui, portanto, per se, uma agravação da pena, nem deve ser doloroso e mortificante, mas um mecanismo de complemento do processo de reinserção social para prover a readaptação do preso, prepará-lo para uma profissão, inculcar-lhe hábitos de trabalho e evitar a ociosidade” (MIRABETE, 2000, p.87). O trabalho deixou de ser um meio de castigo e, sendo assim, passou a ser utilizado como uma atividade de caráter pedagógico através de sua atuação como fator ressocializador, voltado a restabelecer a dignidade, ou a trazê-la em alguns casos a quem nunca sequer soube o que é tê-la. Prossegue assim a linha de pensamento de Mirabete, que assim dispõe: “Exalta-se seu papel de fator ressocializador, afirmando-se serem notórios os benefícios que da atividade laborativa decorrem para a conservação da personalidade do delinqüente e para a promoção do “autodomínio físico” e moral de que necessita e que lhe será imprescindível para seu futuro na vida em liberdade (MIRABETE, 2000, p.87). O trabalho do preso “é imprescindível por uma série de razões: do ponto de vista disciplinar evita os efeitos corruptores do ócio e contribui para manter a ordem; do ponto de vista sanitário é necessário que o homem trabalhe para conservar seu equilíbrio orgânico e psíquico; do ponto de vista educativo o trabalho contribui para a formação da personalidade do indivíduo; do ponto de vista econômico, permite ao recluso dispor de algum dinheiro para suas necessidades e para subvencionar sua família; do ponto de vista da ressocialização, o homem que conhece um ofício tem mais possibilidades de fazer vida honrada ao sair em liberdade” (ARUS, apud MIRABETE, 2000, p.88).   Por fim a despeito de trabalho penitenciário, Mirabete ressaltou as palavras de Francisco Bueno Arus, que numa síntese bem sucedida, não só afirma, como também engloba todos os benefícios concernentes a este meio ressocializador, e, sem dúvida o mais promissor. 6. DA ATIVIDADE LABORATIVA Não restam dúvidas que o labor analisado através deste estudo, está genuinamente voltado à dignidade da pessoa humana, seja ele exercido internamente, externamente ou na modalidade de prestação de serviços à comunidade, conforme prevê a Lei de Execuções Penais. Sendo assim, trata-se de trabalho interno aquele exercido nas dependências do estabelecimento prisional, podendo ser de caráter industrial, agrícola ou intelectual, correlacionado assim com a profissão ou o ofício desempenhado pelo individuo antes de sua condenação. Pode-se utilizar o Estado da mão-de-obra carcerária no que tange à reforma, construção e conservação dos estabelecimentos penitenciários, também com relação a serviços auxiliares como cozinha, lavanderia, enfermaria, ou seja, em todos os setores em prol da administração, todavia, é uma maneira de evitar gastos públicos, entretanto, deverá o Estado suportar a remuneração devida aos presos submetidos a esta forma de labor (MIRABETE, 2000). O trabalho externo ou extramuros por sua vez, é executado por presos que se encontram no regime semi-aberto, sendo desempenhado em estabelecimentos industriais, colônias agrícolas ou em estabelecimentos similares, podendo assim ser prestado também a empresas privadas conforme previsto na LEP. Há também a utilização dessa mão-de-obra em serviços públicos e em obras públicas, realizados pelo governo ou por empresas privadas, sempre na modalidade regida pelo direito público e não pelo direito privado (MIRABETE, 2000). Com relação às obras públicas, só poderá haver o contingente de presos na proporção de 10% do total de empregados da obra, sendo tal restrição comentada da devida forma por Mirabete: “A finalidade do dispositivo é diluir o grupo de presos entre os trabalhadores livres, de modo que se possa efetuar melhor integração do preso a esse meio social e, por outro lado, evitar problemas que poderiam ser criados com a manutenção e o desenvolvimento, extramuros, da “subcultura” característica dos presídios. Facilita-se assim a reintegração social e permitem-se melhores condições de controle e vigilância a fim de se impedir ou ao menos dificultar os atos de indisciplina e a fuga” (MIRABETE, 2000, p.103). Esta forma de trabalho prestado em obras públicas às empresas privadas, depende de consentimento do apenado, ou seja, não pode ser submetido a esta forma de labor sem a sua devida outorga, conforme dispõe o parágrafo 3º do artigo 36 da LEP. A administração penitenciária ao atribuir o trabalho externo aos presos, deve levar em conta as suas aptidões através de uma seleção muito bem apurada, focando inclusive o grau de responsabilidade que cada condenado possui a fim de evitar problemas disciplinares (MIRABETE, 2000) A lei exige que o preso cumpra no mínimo 1/6 da pena (um sexto) para que lhe seja atribuído tal labor extramuros, tal requisito contribui para que a administração faça o devido aferimento do grau de responsabilidade e disciplina do apenado. Vale ressaltar que cumprido esse lapso, estaria o preso do regime fechado automaticamente apto ao regime semi-aberto, porém tal progressão não se daria de forma automática, devido a falta de alguns outros requisitos impostos pela Lei como por exemplo os exames criminológicos (MIRABETE, 2000). O STJ entende não haver a necessidade de tais exames para a concessão do trabalho externo através de seu enunciado de número 40, que assim dispõe: “Para a obtenção dos benefícios da saída temporária e trabalho externo, considera-se o tempo de cumprimento da pena no regime fechado” (VADE MECUM, 2012). Vale ressaltar que o indivíduo condenado ao cumprimento da pena em regime inicial semi-aberto, deve também cumprir o requisito de um sexto do cumprimento da pena para que possa ter direito a concessão do benefício extramuros, conforme entendimento da maioria dos Tribunais. Sendo assim, vigora o entendimento jurisprudencial pela falta do preceito legal.  Outra forma de trabalho que é também imposta ao indivíduo apenado a fim de ressocializá-lo é a prestação de serviços à comunidade, tal imposição está relacionada a algum tipo de acometimento ilícito de menor potencial ofensivo por parte do indivíduo, que nesse caso tem sua pena substituída por uma espécie de pena conhecida então como “pena alternativa”. Na prestação de serviços à comunidade, o trabalho é imposto como uma sanção, ou seja, é a pena propriamente dita (MIRABETE, 2000).  Tal modalidade de cumprimento de pena vem a evitar o confinamento carcerário e a convivência com indivíduos que cometeram crimes de maior potencial ofensivo, além também de permitir a continuidade da vida em família e a prática habitual do seu trabalho diário. A pena alternativa tem por objetivo a realização de atividades em prol do bem comum, fazendo assim com que haja uma certa reflexão por parte do indivíduo infrator. 6.1. DIREITOS E DEVERES A remuneração é um dos direito que o indivíduo condenado há de fazer jus, não podendo ter sua remuneração um caráter simbólico, tratando-se assim de uma remuneração eqüitativa conforme regras da ONU, segundo a Lei, uma quantia nunca inferior a três quartos do salário mínimo. Caberá a legislação local fixar a forma e os parâmetros da efetuação do pagamento, que poderá ser por hora trabalhada ou tarefa executada. Sua remuneração segundo dispõe o artigo 29 § 1º da LEP, poderá ser destinada à indenização “ex-delicto”, ou seja, aos danos causados pelo crime, sendo indispensável que nesse caso haja determinação judicial oriunda do processo de execução da indenização do dano, para que se possa realizar a efetuação de tal desconto (MIRABETE, 2000). Outro desconto segundo a LEP refere-se ao encaminhamento de parte da remuneração à assistência da família do indivíduo, tal contribuição à família do preso é de suma importância, pelo fato de reduzir também as chances da prole seguir o mesmo caminho, ou seja, de seus filhos passarem a viver às margens da lei (MIRABETE, 2000). Além da remuneração há também o direito a remição, que é outro fator incentivador à prática da atividade laborativa. A remição é um instituto que não só proporciona incentivos ao preso, como também lhe concede o direito de abonar ou extinguir parte de sua pena através do trabalho por ele realizado na proporção de 3×1, ou seja, a cada três dias trabalhados se abona um. É um meio pelo qual se busca a redução da pena privativa de liberdade cumprida pelo preso em regime fechado ou semi-aberto segundo Mirabete, que complementa com as palavras de Maria da Graça Morais Dias: “Trata-se de um instituto completo, “pois reeduca o delinqüente, prepara-o para sua reincorporação à sociedade, proporciona-lhe meios para reabilitar-se diante de si mesmo e da sociedade, disciplina sua vontade, favorece a sua família e sobretudo abrevia a condenação, condicionando esta ao próprio esforço do penado” (DIAS, apud MIRABETE, 2000, p.426). O instituto da remição, não alcança presos que se encontrem em regime aberto e os que estiverem cumprindo pena de prestação de serviços à comunidade, todavia o trabalho nessa modalidade de penalidade já constitui a própria sanção. Já em relação ao preso provisório, segundo expõe Mirabete (2000), nada impede que ele tenha sua pena remida enquanto estiver cumprindo a pena cautelar, pois poderá desde que queira remir sua pena com o trabalho exercido no período de acautelamento caso venha a ser condenado. Parte dos direitos citados que o indivíduo condenado há de fazer jus, são apenas parte de uma gama de direitos que lhe são garantidos por lei, porém, há também deveres a serem cumpridos e respeitados por sua parte no devido desempenho de sua pena. Seus deveres que são estipulados por lei, fazem parte não só do fiel cumprimento da pena imposta, mas integram principalmente o processo de ressocialização, fazendo com que haja por parte do preso uma visão ampla e lúcida de que a vida em sociedade não constitui apenas direitos, e sim deveres que deverão ser acatados e respeitados, tais deveres contribuirão para que o egresso do sistema não só passe a ser reconhecido, como também passe a ocupar o status de um verdadeiro cidadão. 7. CONTROLE E GESTÃO A administração e a gerência do trabalho exercido no sistema penitenciário é organizado de três formas, podendo ser através do sistema conhecido como monopólio, que é aquele organizado e gerenciado pela própria Administração Pública; podendo também ser gerenciado pelo setor privado através de contratos com empresas privadas, e por último podendo haver a junção das duas formas apresentadas, ou seja, através das parcerias público-privadas, sendo conhecidas hoje como PPP (CNJ, 2013). Ultimamente, tem havido uma grande preocupação principalmente por parte do Governo Federal em dar ênfase ao assunto em questão, reconhecendo tratar-se de um problema social que deve ser cuidado e resolvido o mais rápido possível, porém, no estado do Rio de Janeiro já há essa preocupação a mais de duas décadas, tal atenção se deu não só devido ao aumento da população carcerária, mas também com relação ao aumento excessivo da criminalidade no presente Estado. Fundou-se em 1977 um órgão estadual que ficaria responsável pela gestão e promoção da atividade laborativa remunerada, realizada por presos de dentro e de fora do sistema penitenciário do Estado, tal órgão recebeu o nome de Fundação Santa Cabrini (CABRINI, 2013). A Fundação tem como meta buscar a profissionalização para que haja a devida reinserção ao mercado de trabalho, através de convênios firmados com empresas públicas, privadas e também com outros órgãos do governo estadual, proporcionando assim ao indivíduo que se encontra no regime semi-aberto e aberto uma oportunidade digna de conduzir a sua vida com cidadania. As empresas que firmaram parceria com o governo, comprometeram-se não só a patrocinar, como também contribuir para o devido processo de ressocialização, na oferta de empregos e cursos de capacitação profissional. Nesta parceria estão a Itaipu (binacional), Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN), Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), Light Serviços de Eletricidade S/A, CEDAE e outras mais. (CABRINI, 2013). O citado projeto não focará apenas a questão do trabalho como fator de ressocialização, mas buscará reunir demais meios a fim de que se consiga mudar tal situação que se encontra não só a população carcerária, mas também os que saem do sistema, evitando assim por parte desses indivíduos uma possível reincidência. Há de se convir que tal iniciativa é de suma importância para tentar amenizar esse problema que se perdura por décadas, porém como dito, “ameniza” e não resolve. A possível solução em contrapartida, viria com a mudança no controle e na gestão dos estabelecimentos prisionais, padronizando-os de norte a sul do Brasil como ocorre em presídios federais. Seu controle e gestão se daria apenas pela União, não se fala aqui em privatização, e sim em unificação. A atividade fim não pode ser executada pelo particular, mas a meio sim, pois o Estado não daria conta e nem suportaria os gastos com o setor. O particular poderia realizar inúmeras tarefas em conjunto com a administração pública, dentre elas a do trabalho exercido pelo apenado como ressaltado alhures. Deve se ter em mente que não se pode querer lucrar com esse tipo de atividade, haja vista a sua tão importante função social (REALE JÚNIOR, 1983). 8. O FENÔMENO DA RESSOCIALIZAÇÃO Fazer acontecer algo de relevante valor social no mundo em que vivemos atualmente não é uma tarefa das mais fáceis, podendo até se tornar na maioria das vezes uma tarefa bastante árdua. Um acontecimento capaz de transformar uma sociedade em seu todo não depende só da vontade e do querer de alguns membros que integram esse agrupamento, pois nem sempre o querer é poder realizar algo. Sendo assim, há a necessidade não só da colaboração como da participação de toda a sociedade no que tange o processo de ressocialização, segundo Bitencourt (2003) é imprescindível que haja uma interação comunicacional entre a sociedade e o indivíduo recém saído do sistema. O fenômeno da ressocialização é sem dúvida um acontecimento capaz de transformar uma sociedade, todavia para que este grande fato de relevante valor social se concretize, é mister que se comece uma transformação geral, ou seja, uma espécie de mudança social. Pode-se afirmar com clareza que nos dias atuais parte de nossa sociedade se encontra corrompida, os valores se inverteram, ou seja, o ser humano só é respeitado e valorizado por aquilo que possui, sem falar também na banalização da vida. Há de se perguntar como um indivíduo recém saído do sistema, com sua devida pena cumprida em consonância com o trabalho desempenhado que lhe proporcionara uma profissão, fará para conduzir sua vida como um cidadão em meio a essa sociedade? Com relação a este questionamento, Bitencourt traz as palavras de Francisco Conde Muñoz: “Não se pode ressocializar o delinqüente sem colocar em dúvida, ao mesmo tempo, o conjunto social normativo ao qual se pretende integrá-lo. Caso contrário, estaríamos admitindo, equivocadamente, que a ordem social é perfeita, o que, no mínimo, é discutível” (MUÑOZ apud BITENCOURT, 2003, p.90). Realmente fica difícil pensar que um indivíduo egresso do sistema conseguirá conduzir a sua vida da maneira almejada durante o processo de ressocialização, ainda mais em meio à sociedade em que vivemos, porém pode-se dizer que ainda há esperança, pois a maior parte dessa sociedade ainda possui o que uma grande nação democrática necessita para a devida convivência harmônica entre seus integrantes, ou seja, o respeito mútuo, para isso deverá não só recebê-lo, como acolhê-lo sem qualquer tipo de preconceito, gerando-lhe oportunidades para que possa assim desempenhar com orgulho o seu devido labor. A socialização é o elemento final, ou melhor, o elemento principal de sustentação, “o pilar sustentador” desse processo ressocializador, que, pode ser mais bem traduzido pelo sociólogo Pérsio Santos de Oliveira: “A vida em grupo é uma exigência da natureza humana. O homem necessita de seus semelhantes para sobreviver, perpetuar a espécie e também para se realizar plenamente como pessoa” (OLIVEIRA, 2001, p.24). A socialização trazida por Pérsio, interliga-se perfeitamente com o objetivo almejado neste estudo, sendo assim, Pérsio ressalta a importância da sociedade na vida do ser: “Participando da vida em sociedade, aprendendo suas normas, seus valores e costumes, o indivíduo está se socializando. Quanto mais adequada a socialização do indivíduo, mais sociável ele poderá se tornar” (OLIVEIRA, 2001, p.24). Contudo, será de suma importância no momento da reinserção social que tenhamos uma sociedade não só justa, mas também solidária, tornando o indivíduo cada vez mais sociável como o real significado que possui a palavra ressocialização. Sendo assim, o fenômeno da ressocialização se concretizará através da vontade e da contribuição de todos nós, sem deixar de mencionar que tal transformação dependerá também do empenho do indivíduo, através do esforço e do suor derramado em face de sua luta diária, sendo assim, encerro o presente estudo com as palavras de Rudolf Von Ihering: “Esta é a conclusão final da sabedoria: Só merece a liberdade e a vida aquele que tem de conquistá-las diariamente” (IHERING, 2003, p.101).  CONSIDERAÇÕES FINAIS Em análise ao estudo exposto há de se perceber a importância da prática do trabalho no desempenho da pena, sua aplicação remonta à antiguidade como relatado na parte histórica, podendo assim ser notada sua mudança, ou melhor, sua evolução, de um meio castigador para um meio digno ressocializador. A evolução do trabalho foi devida à eclosão dos direitos humanos por grande parte do mundo, sendo assim, passou-se então a haver não só as devidas garantias, como também o devido reconhecimento da dignidade da pessoa humana como parte inerente ao ser, independente de como ou onde ele estivesse.  O trabalho exercido em face ao cumprimento da pena não se encontra regido pela CLT, tal percepção se deu pelo fato de sua natureza ser administrativa e de direito público, porém, isso não significa dizer que o condenado trabalhador fique desamparado, concluindo-se portanto, fazer ele jus a uma gama de direitos que podem ser classificados como um conjunto de fatores reunidos, a fim de propiciar uma favorável condição digna ao preso trabalhador que ali se encontra sob a custódia do Estado. Pode-se concluir que tais direitos são assegurados e resguardados por uma série de legislações, indo da Legislação Internacional até a Infraconstitucional. A Legislação Infraconstitucional específica ao caso é a LEP, ela não só assegura direitos como também prevê uma série de deveres a serem cumpridos por parte do apenado, podendo-se dizer que tais direitos e deveres aplicados em conjunto com demais regras, proporcionam o objetivo fim da lei, que é a reinserção do indivíduo ao meio social de maneira, ou melhor, de forma humanizada. Cabe ressaltar a importância da legislação internacional não só no que tange aos direitos humanos, como também no que diz respeito às regras mínimas de tratamento de presos criadas pela ONU. Percebe-se que grande parte do mundo segue ou procura seguir tais normas editadas pela ONU, a fim de propiciar uma condição mais digna aos seus prisioneiros, porém há um caso específico bastante conhecido que gerou grande repercussão por toda comunidade internacional, abordado na página 11, que relata o tratamento desumano direcionado pelos Estados Unidos aos prisioneiros sob sua custódia em uma de suas prisões situada em Cuba, sua forma de tratamento torna-se inadmissível, ainda mais quando praticado em pleno século XXI por uma nação reconhecida mundialmente pela sua democracia. Todavia, o caso está interligado diretamente ao estudo em questão, pois não há como se falar em ressocializar sem abordar os direitos humanos, pelo fato de que a atividade do trabalho só poderá ser digna, se os referidos direitos humanos forem exercidos, garantidos e respeitados. No tocante as suas vantagens, já havia por minha parte um certo conhecimento devido ao fato de tê-lo presenciado em determinada época de minha vida. Tinha por volta de 14 anos quando minha amada mãe foi retirada de meu convívio em virtude da acusação de ter ela sido mandante de um crime de homicídio. Tal acusação depois veio a se confirmar, e com isso gerou sua condenação em 18 anos de reclusão. No começo minha mãe não aceitava tal imposição da lei por não se tratar de uma pessoa que vivia às margens da lei. Tratava-se de uma mãe, dona de casa, e não de uma criminosa habitual, tendo então a infelicidade de cometer um ilícito devido a uma injustiça que a vida lhe proporcionara. Passou-se então assim a dedicar-se no primeiro ano do cumprimento de sua pena à realização de alguns afazeres no âmbito do estabelecimento prisional, com o intuito de fazer com que o tempo transcorresse da forma mais breve possível, em virtude disso, passou a exercer determinadas atividades reconhecidas como trabalho pela Lei de Execuções Penais. Seu labor se deu em relação a atividades de cozinha e faxinas em geral, proporcionando a ela o instituto da remição, ou seja, ter parte de sua pena remida em virtude da atividade laborativa desempenhada no cumprimento de sua pena. Tal situação perdurou-se até que eu completasse meus 20 anos de idade, diante disso, posso dizer que presenciei por toda minha adolescência a luta incansável de minha mãe, tal lembrança fez com que eu pudesse perceber a importância do desempenho dessa atividade em face do cumprimento da pena, pois seus benefícios são sem dúvida extraordinários. O trabalho praticado por minha mãe não foi direcionado para fins ressocializadores, como ressaltado alhures tratava-se de um caso esporádico, e por esse fator não havia motivos para fazê-la tornar-se sociável no seu retorno em meio ao convívio social, pois já se tratava de um ser completamente sociável. O trabalho por sua vez, entrou em sua vida proporcionando-lhe grande ocupação, gerando remuneração, remição, e sem dúvida o principal, evitou o ócio, ou seja, o surgimento da ociosidade que costuma trazer diversos malefícios às pessoas que ali se encontram, como o contato direto com demais presas consideradas então criminosas habituais.  No tocante a receptividade da sociedade, também havia certo preconceito por parte de uma minoria por se tratar de uma ex-presidiária, o olhar das pessoas mudavam e muitas portas se fechavam. Graças a Deus portas se abriram e a situação com relação a ela foi se consolidando, porém, hoje, em seu íntimo ainda há uma certa timidez com relação às pessoas que estão a sua volta, devido a isto, creio que seja assim que as pessoas oriundas do sistema venham a se sentir, sem dúvida esse é o principal problema a ser enfrentado pelas autoridades competentes para que haja a devida conscientização por parte de toda a sociedade, independente de suas classes, cor ou religião. Haja vista que, um grande passo já foi dado por parte das autoridades governamentais a fim de conscientizar a sociedade através de campanhas como o projeto “começar de novo” do Conselho Nacional de Justiça, todavia há de se fazer mais como o faz a empresária Gisela MacLaren, que emprega grande mão-de-obra oriunda do sistema através de seu convênio firmado com o Governo do Estado do Rio de Janeiro, tal convênio gera em seu estaleiro grandes oportunidades tanto para homens quanto para mulheres. Há de se concluir que o processo de ressocialização engloba várias fases, sendo uma dependente da outra, ou seja, interligadas e direcionadas ao mesmo fim para que possamos resolver esse “problema social” que se arrasta durante décadas, digo isto porque faço parte dessa sociedade que não agüenta mais e clama por paz.  O grande e saudoso jurista alemão Rudolf Von Ihering, através de sua grande obra “A Luta Pelo Direito” datada em 1872, menciona uma grande passagem bíblica que condiz e muito com essa temática abordada: “Na luta hás de encontrar o teu direito”. “No suor do teu rosto hás de comer o teu pão”. A conclusão que se pode tirar desse estudo é a de que tudo nessa vida inicia-se e encerra-se com muito trabalho, com suor, com luta, e assim sempre será não só para aquelas pessoas, mas para todos nós.
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Dignidade da pessoa humana: o trabalho dignificando e ressocializando
O presente artigo é oriundo de um estudo iniciado ainda na época da minha graduação em direito, fruto de uma mazela social que se perdura por décadas em meio a nossa sociedade, onde se prende, se encarcera, tirando de circulação sem a mínima preocupação do resultado futuro daquela ação, tratando o individuo com total arbitrariedade sem qualquer dignidade. O estudo consistirá em demonstrar o resgate da dignidade da pessoa humana e será dividido em três partes, uma direcionada à dignidade da pessoa humana, que será interligada diretamente a atividade do trabalho exercida no devido cumprimento da pena por parte do indivíduo apenado, onde se buscará ressaltar a sua grande importância como um meio digno ressocializador e de reinserção social. O objetivo é dar ampla visão ao processo de ressocialização do apenado, demonstrando a importância da aplicação do trabalho de forma integral, em um sistema igual, padronizado de norte a sul no País. Será demonstrada a doutrina referente ao assunto abordado, com a linha de pensamento de diversos doutrinadores, suas devidas críticas e sugestões. O artigo no seu fim trará uma narrativa com o intuito de gerar uma visão realista do que ocorre na prática, consistindo assim tal narrativa em um relato real e pessoal, direcionado a uma sociedade cansada que não aguenta mais e clama por paz.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO A escolha da temática cujo objeto dessa pesquisa se deu em face das mazelas do sistema carcerário brasileiro, são problemas que se arrastam por décadas e que influenciam diretamente em nosso cotidiano. É notório que esse sistema não recupera quase ninguém, trata-se de um sistema falho, e por esse motivo deve ser reformulado por inteiro, um novo programa aplicado em todo o Brasil de forma igualitária, gerido apenas pela União, proporcionado trabalho para toda a população carcerária a fim de restabelecer a dignidade dessas pessoas e assim reinseridas de maneira humanizada em meio a nossa sociedade. Trata-se de uma pesquisa de caráter exploratório e de cunho bibliográfico, buscando identificar as distintas concepções e os fundamentos da problemática de maneira aprofundada. O objetivo geral é repassar um novo entendimento a esse tão importante instituto que é a ressocialização, demonstrando os benefícios da aplicação do trabalho de maneira uniforme em face ao cumprimento da pena por parte dos apenados, aplicando a atividade laborativa de forma integral, em um sistema igual, padronizado de norte a sul, pois a sua imposição tem o propósito de evitar o ócio, gerar aptidões e profissões àqueles que nunca sequer exerceram alguma atividade de forma digna, sua importância não só para quem está submetido, mas também para toda a sociedade num modo geral. A atividade laborativa a ser exercida pelo preso está disciplinada na lei 7.210 de 11 de julho de 1984, esta lei trata da fase executória da pena num todo, estabelecendo diretrizes e regras com relação à execução. A citada lei tem por objetivo não só fazer com que o condenado cumpra sua pena, como também propiciar a reinserção social do condenado de forma humana após o cumprimento de sua sanção, podendo-se dizer que tal lei possui um “espírito humanitário”, pois reconhece a atividade do trabalho como condição favorecedora à dignidade da pessoa humana. Primeiramente será demonstrado o conceito relacionado ao presente estudo, o surgimento do trabalho em face ao cumprimento da pena com a sua devida evolução histórica, no mundo e no Brasil. Com relação às legislações, o presente artigo trará o regramento pertinente ao estudo abordado, iniciando assim com a Legislação Internacional, passando pela Constitucional e por fim a Infraconstitucional. No tocante aos aspectos doutrinários, será demonstrada a visão e o posicionamento de doutrinadores renomados com relação ao caso, ressaltando a importância do trabalho não só como meio ressocializador, mas também como meio propiciador e restabelecedor da dignidade da pessoa humana. Por fim as considerações finais deste artigo, reforçando o entendimento de que o trabalho é o maior e o melhor meio capaz de gerar a devida ressocialização do indivíduo, tornando-o sociável e apto a retornar ao convívio em meio ao núcleo social. Porém, será que somente o emprego deste meio ressocializador é capaz de gerar o fenômeno da ressocialização, ou seja, será que haverá a necessidade da união de outros elementos para que tal processo se concretize a fim de evitar um futuro retorno do indivíduo ao sistema, pois um novo retorno significará uma nova reincidência por parte deste indivíduo que consequentemente voltará à estaca zero, sendo então aquele árduo processo ressocializador desprendido em vão.  2. CONCEITO Hodiernamente existe uma grande preocupação por grande parte do mundo em tutelar a dignidade da pessoa humana, é um tema que ganha relevante destaque por ser um direito fundamental e de comando estruturante à organização do Estado, encontrando-se hoje no epicentro jurídico dos Estados respeitadores e garantidores dos direitos fundamentais em prol da valorização da pessoa humana (AFONSO DA SILVA, 2000). Seu significado está ligado intrinsecamente ao ser humano, se traduz em respeito e proteção que ganham contornos universais, podendo seu conceito ser visto de uma forma mais técnica nas palavras do Constitucionalista Alexandre de Moraes, que assim dispõe: “A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos” (MORAES, 2005, p.16). O conceito dado por Moraes encaixa-se perfeitamente ao assunto que será abordado mais a frente, pelo fato de que realmente há uma diminuição no exercício dos direitos fundamentais do indivíduo que se encontra na custódia do Estado e não a sua total retirada. Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gonet Branco, reforçam ainda mais o entendimento acima ao acrescentar um plus a temática da seguinte forma: “Respeita-se a dignidade da pessoa quando o indivíduo é tratado como sujeito com valor intrínseco, posto acima de todas as coisas criadas e em patamar de igualdade de direitos com os seus semelhantes. Há o desrespeito ao princípio, quando a pessoa é tratada como objeto […]” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p.418). O indivíduo jamais pode ser visto ou tratado como um objeto, não podendo ser atingido por qualquer ato de caráter degradante ou desumano, mesmo estando privado de sua liberdade. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet: “Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos” (SARLET, 2001, p.60). É tamanha a importância da dignidade na vida do ser, a sua falta causa prejuízos imensuráveis, tanto na vida daqueles que a nunca tiveram e, portanto não sabem seu real significado, quanto daqueles também que a jogaram fora. Dignificar e ressocializar a pessoa humana não é uma tarefa fácil, necessita de meios eficazes e capazes de realizar tal feito, todavia, o trabalho por sua vez, é visto como um elo por grande parte da doutrina à concretização desse feito. O conceito abrangente de trabalho surgiu na antiguidade precisamente na idade média, Amauri Mascaro Nascimento nos traz diversas concepções remotas acerca do trabalho, cada uma buscava através de suas ideologias atribuir um significado ao trabalho conforme fez a corrente filosófica. Sendo assim, Nascimento (2001) relata a visão de Aristóteles, visão esta de caráter negativo que buscava conceituar o trabalho como uma escravidão, porém necessária, ou seja, um regime social que o homem se sujeitava, utilizando-se de seu suor e de sua força, para que outros homens pudessem lograr fins econômicos e consequentemente tornarem-se homens virtuosos. O pensamento de Aristóteles significa dizer que o homem deve ser livre para se dedicar a própria perfeição, ou seja, o trabalho impede o homem de a consegui-la. Percebe-se que para o pensamento clássico grego o trabalho é tido como um castigo oriundo dos deuses, sendo algo que humilha o homem e por isso deve ser evitado. O Renascimento nos traz uma nova concepção acerca do trabalho, um novo desenvolvimento, elevando a consciência em relação ao trabalho como um valor. O valor do trabalho passa a ser então o fundamento de todas as concepções segundo Amauri Mascaro Nascimento, varias contribuições surgiram ao longo do tempo no sentido de valorizar ainda mais o conceito de trabalho. Amauri em suas palavras nos traz o pensamento exposto de Giambatista Vicco, expondo o seu conceito em relação ao trabalho como o conhecimento e realização da cultura, dos produtos históricos e morais dos homens, e não termina por aí, preceitua ainda que: “o espírito, como atividade e objetivação, faz do trabalho o próprio meio de o homem encontrar-se” (NASCIMENTO, 2001, p.160). Há de se perceber a mudança radical na concepção do significado de trabalho, a valoração e a visão positiva faz com que o trabalho seja visto como um bem útil e necessário ao homem, pois trabalho é, em conclusão, nada mais nada menos que a vida do ser propriamente dita. A ressocialização por seu fim, é uma palavra que diversos autores costumam utilizar para abordar temas voltados ao sistema prisional. Alguns doutrinadores procuram utilizar-se de outras denominações como reeducação social, recuperação ou reinserção social, sendo que ambas estarão voltadas à mesma finalidade, que nada mais é, do que o ato ou efeito de tornar-se sociável (MICHAELIS, 2013). O cumpridor da pena devidamente ressocializado, torna-se uma pessoa sociável que consequentemente estará apto ao convívio em meio ao núcleo social, em seu centro, e não as margens da sociedade como vivia anteriormente. Para Bitencourt (2003, p.90), o fenômeno da ressocialização implica em um processo comunicacional de profunda interação entre indivíduo e sociedade. Já para Damásio (1999, p.26), a ressocialização é a aplicação de um conjunto de medidas voltadas à recuperação do apenado, cujo objetivo é a sua reinserção de forma humanitária ao meio social. A forma humanitária que Damásio se refere, é aquela que vem a conceber ao individuo o respeito mínimo e o tratamento digno que um ser humano há de fazer jus. 3. ORIGEM HISTÓRICA O trabalho prisional teve seu surgimento segundo relatos históricos a partir do século XVI, em estabelecimentos prisionais holandeses e ingleses. A concepção de trabalho penitenciário seguiu historicamente o desenvolvimento progressivo da pena privativa de liberdade, sendo que, inicialmente a atividade laboral estava ligada a idéia de vingança por parte da sociedade, coadunada com o castigo ao individuo cumpridor da pena. Com o passar do tempo houve inúmeras mudanças, dentre elas a visão do Estado em obter lucros com a mão de obra que detinha, “encontrando-se na atividade laborativa do preso uma fonte de produção para o Estado, o trabalho foi utilizado nesse sentido, dentro das tendências utilitárias dos sistemas penais e penitenciários” (MIRABETE, 2000, p.87). O trabalho praticado pelos presos à época era exercido em regime similar ao da escravidão, não havia qualquer reconhecimento do preso como um ser humano, sem falar nas situações deploráveis que se encontravam as prisões, principalmente as da Inglaterra. As leis que vigoravam idealizavam excessivos procedimentos cruéis, permitindo aos juízes arbitrar da forma que lhe conviesse, sem qualquer tipo de tratamento isonômico, ou seja, o julgamento era feito de acordo com as condições sociais dos homens, não havendo assim qualquer tipo de equidade. Tais situações lastimáveis perduraram até meados do século XVIII, onde houve então o surgimento e a propagação de idéias liberais voltadas à humanização e a reforma das leis, sendo esse período conhecido como o século das luzes, onde os idealistas buscavam resgatar as correntes iluministas e humanitárias de Rousseau, Montesquieu, Locke e Voltaire, pelo fato destes filósofos terem sido os grandes defensores da liberdade, da igualdade e da justiça como afirma Bitencourt (2003). O grande apogeu veio com o advento da Revolução Francesa, a partir daí então começou a haver o reconhecimento do preso por parte das autoridades como um ser humano, sendo Cesare de Beccaria, John Howard e Jeremias Bentham os grandes causadores de tal conquista ocorrida na seara penal (BITENCOURT, 2003). Cesare Bonessana mais conhecido como o Marquês de Baccaria, marcou sem dúvida o inicio definitivo do direito penal moderno, suas idéias voltadas à defesa social propiciaram através de sua obra – Dos delitos e das penas – o amadurecimento da trajetória da reforma penal dos últimos séculos. Beccaria em sua obra menciona o contrato social, cuja teoria prega o respeito mútuo entre os homens, contribuindo assim para a humanização e racionalização da pena privativa de liberdade com a adoção da concepção utilitarista da pena (BECCARIA, 2005). Outro nome importante e de peso que contribuiu em especial para o processo de humanização e racionalização da pena foi o de John Howard, suas idéias foram de grande contribuição na seara penal, inspirando a corrente penitenciarista na construção de estabelecimentos adequados para o devido cumprimento da pena (BITENCOURT, 2003). Howard nunca aceitou as condições desumanas que se encontravam as prisões inglesas, pois a Inglaterra diferentemente da Holanda, passou a não dar mais importância ao trabalho exercido dentro das casas de correição, sendo assim, deixou de realizar investimentos nesse setor que consequentemente se transformou num caos total, em completa situação de abandono, deixando os presos sem qualquer amparo, ou seja, sem nenhum respeito à dignidade da pessoa humana (BITENCOURT, 2003). Por fim Jeremias Bentham, outro ícone que marcou muito o campo da penologia, sendo suas idéias marcadas por terem sido expostas de forma sistemática, onde era defendido um princípio ético, havendo um sistema de controle social, ou seja, um controle do comportamento humano. Bentham se importava muito com a prevenção social, considerando que o fim objetivo da pena era o da prevenção delituosa, mas também admitia a pena com seu fim correcional. “O negócio passado não é mais o problema, mas o futuro é infinito: o delito passado não afeta mais que a um indivíduo, mas os delitos futuros podem afetar a todos. Em muitos casos é impossível remediar o mal cometido, mas sempre se pode tirar a vontade de fazer mal, porque por maior que seja o proveito de um delito sempre pode ser maior o mal da pena” (BENTHAN, apud BITENCOURT, 2003, p.38). Bentham realmente tinha uma visão nociva da pena, aceitava reconhecer que o castigo era um mal, porém um mal utilizado como um meio de prevenção de danos maiores a toda a sociedade. Para ele, as prisões que não oferecessem condições adequadas para o devido cumprimento da pena privativa de liberdade, acabavam por si só gerando a não reabilitação do indivíduo, e por conseqüência disto o seu retorno, ou melhor, a sua reincidência. No Brasil, o trabalho prisional surgiu na época do Império, seu marco nas cadeias brasileiras se deu com o propósito de mudar o conceito de prisão até então vigente à época. O modelo adotado pelo Brasil trazia o trabalho em sua essência, coadunando assim a atividade laboral com a pena a ser cumprida pelo apenado. Tal regime implantado no Brasil era tido como um modelo ressocializador bastante avançado à época, seu dogma era o trabalho, com isso acreditava-se que o apenado só alcançaria a sua recuperação através da disciplina do trabalho (CABRINI, 2013). O Brasil utilizou-se da aplicação do trabalho no cumprimento da pena de duas formas distintas, ou seja, em determinado momento de caráter obrigatório, e em um segundo momento de caráter opcional, que predominou da época do Império e se extinguiu por volta de 1937. A partir daí passou-se então a haver uma certa preocupação por parte de autoridades e juristas à época em criar e instituir uma lei especial voltada à execução penal, contudo, a criação da lei se deu somente em 11 de julho de 1984, lei esta n.º 7.210 conhecida então como LEP, ou seja, Lei de Execuções Penais. 4. LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL Durante muitos séculos foram relatados casos de desrespeito a integridade e a dignidade do ser humano, relacionados não só a acontecimentos ocorridos na esfera penal, mas em todos os outros seguimentos sociais. A história voltada ao direito penal, traz inúmeros relatos de tratamentos desumanos e degradantes que eram submetidos não só os indivíduos condenados, mas também àqueles que aguardavam a sua condenação, que em alguns casos sequer tinham acometido algum ilícito e acabavam assim por sofrer tais danos que eram direcionados à sua integridade física e moral (SOUZA, 2008). Não havia por parte do Estado nenhuma garantia ou regra de tratamento ao preso, sequer falava-se em democracia ou direitos, quanto mais em garantia. Sendo assim, houve uma grande preocupação de se fazer leis voltadas à proteção do homem num contexto geral, para que se pudesse dar um fim a tantas barbáries ocorridas ao longo da história, gerando assim o surgimento e o reconhecimento da dignidade como característica intrínseca ao ser humano (BITENCOURT, 2003). Em 1948, surge a Declaração Americana de Direitos e Deveres dos Homens através da conferência internacional americana realizada em Bogotá na Colômbia, surgindo também no mesmo ano a então Declaração Universal dos Direitos Humanos, através de uma assembléia realizada em Paris na França. Tal declaração aprovada na assembléia geral da ONU “Organização das Nações Unidas” concebeu em seus trinta artigos vários direitos e garantias, reconhecendo a dignidade como característica inerente e própria ao ser humano (ONU, 1948). Alguns Países conseguiram reduzir em muito o tratamento desumano que era aplicado aos seus presos, contudo perduravam ainda por grande parte do mundo tais condições desumanas. A ONU muito apreensiva com os acontecimentos lastimáveis ocorridos em estabelecimentos prisionais de diversos Países, resolve assim por criar regras mínimas a serem cumpridas para o tratamento dos reclusos, adotadas através do 1º Congresso das Nações Unidas sobre prevenção e tratamento de delinqüentes realizado em 1955 em Genebra na Suíça, sendo que parte das regras citadas estão voltadas diretamente ao trabalho prisional (GENEBRA, 1955). Não há como se falar nesse assunto sem abordar direitos humanos, pelo fato de que a atividade do trabalho só pode ser digna, se os referidos direitos humanos forem exercidos, garantidos e respeitados. Vale ressaltar também o surgimento de várias outras declarações com o intuito de salvaguardar e garantir a aplicação dos direitos humanos, dentre elas podemos citar a Convenção Européia para a Garantia dos Direitos Humanos de 1950, e a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 – Pacto de San José da Costa Rica (BITENCOURT, 2003). Diante do exposto, há de se perceber ao longo da história o forte desejo por grande parte das Nações de se fazer valer o respeito aos direitos humanos, respeito este que vem se consolidando ao longo do tempo como ressalta Souza: “Embora tenhamos notícias do passado acerca das várias barbáries praticadas em detrimento da dignidade das pessoas submetidas à ação estatal, nos dias de hoje pelo menos no Ocidente, podemos constatar a tendência dos ordenamentos jurídicos em reconhecer o ser humano como o fim do Estado e do Direito e, consequentemente, em reconhecer a dignidade como fundamento de todo o ordenamento jurídico” (SOUZA, 2008, p.109). As palavras de Marcelo de Souza resumem e reforçam o que fora ressaltado alhures, mencionando que nos dias atuais prevalece em grande parte do mundo o respeito a dignidade da pessoa humana, porém faz a ressalva de que tal respeito é exercido e mantido pelo menos no Ocidente. Souza se refere a política adotada em pleno século XXI em Guantánamo, cidade do sudeste de Cuba, onde os Estados Unidos da América através de sua pseudo democracia, mantêm uma base militar destinada a manter prisioneiros supostamente ligados ao terrorismo, onde os mesmos além de serem tratados de forma desumana, são também submetidos a prática de tortura, inclusive impedindo que haja qualquer tipo de controle externo, ou seja, que seja realizada qualquer interferência internacional, a fim de se valer cumprir o mínimo exigido de tratamento digno que um ser humano há de fazer jus (SOUZA, 2008).      4.1. LEGISLAÇÃO CONSTITUCIONAL A Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 05 de outubro de 1988, não trata especificamente e nem expressamente do trabalho exercido pelo individuo cumpridor da pena privativa de liberdade, mas trouxe as devidas garantias a fim de que esse direito seja protegido e exercido, deixando assim o tratamento específico de tal assunto a cargo de legislações infraconstitucionais. Os direitos e garantias individuais e coletivos estão consagrados no artigo 5º da Magna Carta, sendo eles reconhecidos como direitos humanos fundamentais destinados a todos, inclusive ao indivíduo que se encontra privado de alguns de seus direitos (MORAES, 2005). A Constituição Federal veda expressamente a imposição de qualquer tipo de pena consubstanciada em trabalhos forçados ou de caráter cruel, conforme dispõe as alíneas ‘c’ e ‘d’ do inciso XLVII do art. 5º. A Lei Fundamental não traz somente esta garantia no artigo citado, como traz também implicitamente em seu texto o reconhecimento à prática da atividade laborativa a ser exercida pelo preso (OLIVEIRA, 2006). Na parte reservada aos Direitos Sociais, a CRFB/88 traz expressamente em seu artigo 6º o trabalho como direito social dentre outros ali elencados. O trabalho como direito social, engloba todo tipo lícito de atividade laborativa, inclusive as praticadas no cumprimento da pena em estabelecimentos prisionais impostas pelo Estado, sendo assim, adita Mirabete: “se o Estado tem o direito de exigir que o condenado trabalhe, conforme os termos legais, tem o preso o ‘direito social’ ao trabalho” (2000, p.88). Todavia sendo o trabalho um direito social, dispõe Mirabete (2000) que o indivíduo cumpridor da pena privativa de liberdade ou de medida de segurança detentiva, possui o status de condenado, sendo assim, não pode vir a exercer tal atividade laborativa por livre e espontânea vontade devido a retirada temporária de alguns de seus direitos, cabendo então ao Estado conceder-lhe a atribuição do trabalho como um dever. 4.2. LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL O ordenamento jurídico vigente de um País é composto por normas superiores e inferiores, há um escalonamento a ser respeitado e seguido, podendo-se afirmar assim que as normas de um ordenamento não se encontram em um mesmo plano (BOBBIO, 2006). A legislação infraconstitucional é aquela lei que pela hierarquia das normas está abaixo da Constituição, suas diretrizes estão voltadas a tratar do assunto pertinente de forma específica, que nesse caso vem a ser disciplinado pela Lei n.º 7.210 de 1984, ou seja, a Lei de Execuções Penais “LEP”, que assim dispõe em seu artigo 1º: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (VADE MECUM, 2012). A citada Lei ao tratar da matéria em estudo, faz a devida menção sobre a dignidade da pessoa humana em seu art. 28, que assim dispõe: “O trabalho do condenado como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva” (VADE MECUM, 2012). A LEP regula e disciplina de forma específica o exercício da atividade laboral a ser desempenhada pelo condenado, englobando tudo que esteja relacionado a essa atividade, tais como direitos, deveres e sanções. A Lei não só exauri o assunto relativo ao trabalho prisional, como também o faz no que tange ao processo de execução num todo, tratando-se, portanto, de uma Lei completa, onde há o reconhecimento do trabalho como condição de dignidade do ser humano que ali se encontra. 5. DIGNIDADE HUMANA E O LABOR RESSOCIALIZADOR A execução da pena atualmente segundo a moderna concepção acerca do processo de execução, pode ser analisada como um conjunto de métodos e medidas voltados à dignidade da pessoa humana e a devida reinserção social, contendo assim uma finalidade reabilitadora. São vários os métodos ou meios utilizados pelo Estado com o intuito de atingir esse determinado fim, porém o trabalho, segundo grande parte da doutrina é o meio mais promissor de se alcançar tal objetivo almejado, ou seja, o da ressocialização (MIRABETE, 2000). Pode-se dizer que o trabalho prisional possui caráter pedagógico, fazendo com que o preso que esteja ali submetido passe também a se educar ou em alguns casos a se reeducar, com relação ao cumprimento de ordens emanadas, horários a cumprir e muito mais. Segundo Mirabete: “O trabalho prisional não constitui, portanto, per se, uma agravação da pena, nem deve ser doloroso e mortificante, mas um mecanismo de complemento do processo de reinserção social para prover a readaptação do preso, prepará-lo para uma profissão, inculcar-lhe hábitos de trabalho e evitar a ociosidade” (MIRABETE, 2000, p.87). O trabalho deixou de ser um meio de castigo e, sendo assim, passou a ser utilizado como uma atividade de caráter pedagógico através de sua atuação como fator ressocializador, voltado a restabelecer a dignidade, ou a trazê-la em alguns casos a quem nunca sequer soube o que é tê-la. Prossegue assim a linha de pensamento de Mirabete, que assim dispõe: “Exalta-se seu papel de fator ressocializador, afirmando-se serem notórios os benefícios que da atividade laborativa decorrem para a conservação da personalidade do delinqüente e para a promoção do “autodomínio físico” e moral de que necessita e que lhe será imprescindível para seu futuro na vida em liberdade (MIRABETE, 2000, p.87). O trabalho do preso “é imprescindível por uma série de razões: do ponto de vista disciplinar evita os efeitos corruptores do ócio e contribui para manter a ordem; do ponto de vista sanitário é necessário que o homem trabalhe para conservar seu equilíbrio orgânico e psíquico; do ponto de vista educativo o trabalho contribui para a formação da personalidade do indivíduo; do ponto de vista econômico, permite ao recluso dispor de algum dinheiro para suas necessidades e para subvencionar sua família; do ponto de vista da ressocialização, o homem que conhece um ofício tem mais possibilidades de fazer vida honrada ao sair em liberdade” (ARUS, apud MIRABETE, 2000, p.88).   Por fim a despeito de trabalho penitenciário, Mirabete ressaltou as palavras de Francisco Bueno Arus, que numa síntese bem sucedida, não só afirma, como também engloba todos os benefícios concernentes a este meio ressocializador, e, sem dúvida o mais promissor. 6. DA ATIVIDADE LABORATIVA Não restam dúvidas que o labor analisado através deste estudo, está genuinamente voltado à dignidade da pessoa humana, seja ele exercido internamente, externamente ou na modalidade de prestação de serviços à comunidade, conforme prevê a Lei de Execuções Penais. Sendo assim, trata-se de trabalho interno aquele exercido nas dependências do estabelecimento prisional, podendo ser de caráter industrial, agrícola ou intelectual, correlacionado assim com a profissão ou o ofício desempenhado pelo individuo antes de sua condenação. Pode-se utilizar o Estado da mão-de-obra carcerária no que tange à reforma, construção e conservação dos estabelecimentos penitenciários, também com relação a serviços auxiliares como cozinha, lavanderia, enfermaria, ou seja, em todos os setores em prol da administração, todavia, é uma maneira de evitar gastos públicos, entretanto, deverá o Estado suportar a remuneração devida aos presos submetidos a esta forma de labor (MIRABETE, 2000). O trabalho externo ou extramuros por sua vez, é executado por presos que se encontram no regime semi-aberto, sendo desempenhado em estabelecimentos industriais, colônias agrícolas ou em estabelecimentos similares, podendo assim ser prestado também a empresas privadas conforme previsto na LEP. Há também a utilização dessa mão-de-obra em serviços públicos e em obras públicas, realizados pelo governo ou por empresas privadas, sempre na modalidade regida pelo direito público e não pelo direito privado (MIRABETE, 2000). Com relação às obras públicas, só poderá haver o contingente de presos na proporção de 10% do total de empregados da obra, sendo tal restrição comentada da devida forma por Mirabete: “A finalidade do dispositivo é diluir o grupo de presos entre os trabalhadores livres, de modo que se possa efetuar melhor integração do preso a esse meio social e, por outro lado, evitar problemas que poderiam ser criados com a manutenção e o desenvolvimento, extramuros, da “subcultura” característica dos presídios. Facilita-se assim a reintegração social e permitem-se melhores condições de controle e vigilância a fim de se impedir ou ao menos dificultar os atos de indisciplina e a fuga” (MIRABETE, 2000, p.103). Esta forma de trabalho prestado em obras públicas às empresas privadas, depende de consentimento do apenado, ou seja, não pode ser submetido a esta forma de labor sem a sua devida outorga, conforme dispõe o parágrafo 3º do artigo 36 da LEP. A administração penitenciária ao atribuir o trabalho externo aos presos, deve levar em conta as suas aptidões através de uma seleção muito bem apurada, focando inclusive o grau de responsabilidade que cada condenado possui a fim de evitar problemas disciplinares (MIRABETE, 2000) A lei exige que o preso cumpra no mínimo 1/6 da pena (um sexto) para que lhe seja atribuído tal labor extramuros, tal requisito contribui para que a administração faça o devido aferimento do grau de responsabilidade e disciplina do apenado. Vale ressaltar que cumprido esse lapso, estaria o preso do regime fechado automaticamente apto ao regime semi-aberto, porém tal progressão não se daria de forma automática, devido a falta de alguns outros requisitos impostos pela Lei como por exemplo os exames criminológicos (MIRABETE, 2000). O STJ entende não haver a necessidade de tais exames para a concessão do trabalho externo através de seu enunciado de número 40, que assim dispõe: “Para a obtenção dos benefícios da saída temporária e trabalho externo, considera-se o tempo de cumprimento da pena no regime fechado” (VADE MECUM, 2012). Vale ressaltar que o indivíduo condenado ao cumprimento da pena em regime inicial semi-aberto, deve também cumprir o requisito de um sexto do cumprimento da pena para que possa ter direito a concessão do benefício extramuros, conforme entendimento da maioria dos Tribunais. Sendo assim, vigora o entendimento jurisprudencial pela falta do preceito legal.  Outra forma de trabalho que é também imposta ao indivíduo apenado a fim de ressocializá-lo é a prestação de serviços à comunidade, tal imposição está relacionada a algum tipo de acometimento ilícito de menor potencial ofensivo por parte do indivíduo, que nesse caso tem sua pena substituída por uma espécie de pena conhecida então como “pena alternativa”. Na prestação de serviços à comunidade, o trabalho é imposto como uma sanção, ou seja, é a pena propriamente dita (MIRABETE, 2000).  Tal modalidade de cumprimento de pena vem a evitar o confinamento carcerário e a convivência com indivíduos que cometeram crimes de maior potencial ofensivo, além também de permitir a continuidade da vida em família e a prática habitual do seu trabalho diário. A pena alternativa tem por objetivo a realização de atividades em prol do bem comum, fazendo assim com que haja uma certa reflexão por parte do indivíduo infrator. 6.1. DIREITOS E DEVERES A remuneração é um dos direito que o indivíduo condenado há de fazer jus, não podendo ter sua remuneração um caráter simbólico, tratando-se assim de uma remuneração eqüitativa conforme regras da ONU, segundo a Lei, uma quantia nunca inferior a três quartos do salário mínimo. Caberá a legislação local fixar a forma e os parâmetros da efetuação do pagamento, que poderá ser por hora trabalhada ou tarefa executada. Sua remuneração segundo dispõe o artigo 29 § 1º da LEP, poderá ser destinada à indenização “ex-delicto”, ou seja, aos danos causados pelo crime, sendo indispensável que nesse caso haja determinação judicial oriunda do processo de execução da indenização do dano, para que se possa realizar a efetuação de tal desconto (MIRABETE, 2000). Outro desconto segundo a LEP refere-se ao encaminhamento de parte da remuneração à assistência da família do indivíduo, tal contribuição à família do preso é de suma importância, pelo fato de reduzir também as chances da prole seguir o mesmo caminho, ou seja, de seus filhos passarem a viver às margens da lei (MIRABETE, 2000). Além da remuneração há também o direito a remição, que é outro fator incentivador à prática da atividade laborativa. A remição é um instituto que não só proporciona incentivos ao preso, como também lhe concede o direito de abonar ou extinguir parte de sua pena através do trabalho por ele realizado na proporção de 3×1, ou seja, a cada três dias trabalhados se abona um. É um meio pelo qual se busca a redução da pena privativa de liberdade cumprida pelo preso em regime fechado ou semi-aberto segundo Mirabete, que complementa com as palavras de Maria da Graça Morais Dias: “Trata-se de um instituto completo, “pois reeduca o delinqüente, prepara-o para sua reincorporação à sociedade, proporciona-lhe meios para reabilitar-se diante de si mesmo e da sociedade, disciplina sua vontade, favorece a sua família e sobretudo abrevia a condenação, condicionando esta ao próprio esforço do penado” (DIAS, apud MIRABETE, 2000, p.426). O instituto da remição, não alcança presos que se encontrem em regime aberto e os que estiverem cumprindo pena de prestação de serviços à comunidade, todavia o trabalho nessa modalidade de penalidade já constitui a própria sanção. Já em relação ao preso provisório, segundo expõe Mirabete (2000), nada impede que ele tenha sua pena remida enquanto estiver cumprindo a pena cautelar, pois poderá desde que queira remir sua pena com o trabalho exercido no período de acautelamento caso venha a ser condenado. Parte dos direitos citados que o indivíduo condenado há de fazer jus, são apenas parte de uma gama de direitos que lhe são garantidos por lei, porém, há também deveres a serem cumpridos e respeitados por sua parte no devido desempenho de sua pena. Seus deveres que são estipulados por lei, fazem parte não só do fiel cumprimento da pena imposta, mas integram principalmente o processo de ressocialização, fazendo com que haja por parte do preso uma visão ampla e lúcida de que a vida em sociedade não constitui apenas direitos, e sim deveres que deverão ser acatados e respeitados, tais deveres contribuirão para que o egresso do sistema não só passe a ser reconhecido, como também passe a ocupar o status de um verdadeiro cidadão. 7. CONTROLE E GESTÃO A administração e a gerência do trabalho exercido no sistema penitenciário é organizado de três formas, podendo ser através do sistema conhecido como monopólio, que é aquele organizado e gerenciado pela própria Administração Pública; podendo também ser gerenciado pelo setor privado através de contratos com empresas privadas, e por último podendo haver a junção das duas formas apresentadas, ou seja, através das parcerias público-privadas, sendo conhecidas hoje como PPP (CNJ, 2013). Ultimamente, tem havido uma grande preocupação principalmente por parte do Governo Federal em dar ênfase ao assunto em questão, reconhecendo tratar-se de um problema social que deve ser cuidado e resolvido o mais rápido possível, porém, no estado do Rio de Janeiro já há essa preocupação a mais de duas décadas, tal atenção se deu não só devido ao aumento da população carcerária, mas também com relação ao aumento excessivo da criminalidade no presente Estado. Fundou-se em 1977 um órgão estadual que ficaria responsável pela gestão e promoção da atividade laborativa remunerada, realizada por presos de dentro e de fora do sistema penitenciário do Estado, tal órgão recebeu o nome de Fundação Santa Cabrini (CABRINI, 2013). A Fundação tem como meta buscar a profissionalização para que haja a devida reinserção ao mercado de trabalho, através de convênios firmados com empresas públicas, privadas e também com outros órgãos do governo estadual, proporcionando assim ao indivíduo que se encontra no regime semi-aberto e aberto uma oportunidade digna de conduzir a sua vida com cidadania. As empresas que firmaram parceria com o governo, comprometeram-se não só a patrocinar, como também contribuir para o devido processo de ressocialização, na oferta de empregos e cursos de capacitação profissional. Nesta parceria estão a Itaipu (binacional), Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN), Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), Light Serviços de Eletricidade S/A, CEDAE e outras mais. (CABRINI, 2013). O citado projeto não focará apenas a questão do trabalho como fator de ressocialização, mas buscará reunir demais meios a fim de que se consiga mudar tal situação que se encontra não só a população carcerária, mas também os que saem do sistema, evitando assim por parte desses indivíduos uma possível reincidência. Há de se convir que tal iniciativa é de suma importância para tentar amenizar esse problema que se perdura por décadas, porém como dito, “ameniza” e não resolve. A possível solução em contrapartida, viria com a mudança no controle e na gestão dos estabelecimentos prisionais, padronizando-os de norte a sul do Brasil como ocorre em presídios federais. Seu controle e gestão se daria apenas pela União, não se fala aqui em privatização, e sim em unificação. A atividade fim não pode ser executada pelo particular, mas a meio sim, pois o Estado não daria conta e nem suportaria os gastos com o setor. O particular poderia realizar inúmeras tarefas em conjunto com a administração pública, dentre elas a do trabalho exercido pelo apenado como ressaltado alhures. Deve se ter em mente que não se pode querer lucrar com esse tipo de atividade, haja vista a sua tão importante função social (REALE JÚNIOR, 1983). 8. O FENÔMENO DA RESSOCIALIZAÇÃO Fazer acontecer algo de relevante valor social no mundo em que vivemos atualmente não é uma tarefa das mais fáceis, podendo até se tornar na maioria das vezes uma tarefa bastante árdua. Um acontecimento capaz de transformar uma sociedade em seu todo não depende só da vontade e do querer de alguns membros que integram esse agrupamento, pois nem sempre o querer é poder realizar algo. Sendo assim, há a necessidade não só da colaboração como da participação de toda a sociedade no que tange o processo de ressocialização, segundo Bitencourt (2003) é imprescindível que haja uma interação comunicacional entre a sociedade e o indivíduo recém saído do sistema. O fenômeno da ressocialização é sem dúvida um acontecimento capaz de transformar uma sociedade, todavia para que este grande fato de relevante valor social se concretize, é mister que se comece uma transformação geral, ou seja, uma espécie de mudança social. Pode-se afirmar com clareza que nos dias atuais parte de nossa sociedade se encontra corrompida, os valores se inverteram, ou seja, o ser humano só é respeitado e valorizado por aquilo que possui, sem falar também na banalização da vida. Há de se perguntar como um indivíduo recém saído do sistema, com sua devida pena cumprida em consonância com o trabalho desempenhado que lhe proporcionara uma profissão, fará para conduzir sua vida como um cidadão em meio a essa sociedade? Com relação a este questionamento, Bitencourt traz as palavras de Francisco Conde Muñoz: “Não se pode ressocializar o delinqüente sem colocar em dúvida, ao mesmo tempo, o conjunto social normativo ao qual se pretende integrá-lo. Caso contrário, estaríamos admitindo, equivocadamente, que a ordem social é perfeita, o que, no mínimo, é discutível” (MUÑOZ apud BITENCOURT, 2003, p.90). Realmente fica difícil pensar que um indivíduo egresso do sistema conseguirá conduzir a sua vida da maneira almejada durante o processo de ressocialização, ainda mais em meio à sociedade em que vivemos, porém pode-se dizer que ainda há esperança, pois a maior parte dessa sociedade ainda possui o que uma grande nação democrática necessita para a devida convivência harmônica entre seus integrantes, ou seja, o respeito mútuo, para isso deverá não só recebê-lo, como acolhê-lo sem qualquer tipo de preconceito, gerando-lhe oportunidades para que possa assim desempenhar com orgulho o seu devido labor. A socialização é o elemento final, ou melhor, o elemento principal de sustentação, “o pilar sustentador” desse processo ressocializador, que, pode ser mais bem traduzido pelo sociólogo Pérsio Santos de Oliveira: “A vida em grupo é uma exigência da natureza humana. O homem necessita de seus semelhantes para sobreviver, perpetuar a espécie e também para se realizar plenamente como pessoa” (OLIVEIRA, 2001, p.24). A socialização trazida por Pérsio, interliga-se perfeitamente com o objetivo almejado neste estudo, sendo assim, Pérsio ressalta a importância da sociedade na vida do ser: “Participando da vida em sociedade, aprendendo suas normas, seus valores e costumes, o indivíduo está se socializando. Quanto mais adequada a socialização do indivíduo, mais sociável ele poderá se tornar” (OLIVEIRA, 2001, p.24). Contudo, será de suma importância no momento da reinserção social que tenhamos uma sociedade não só justa, mas também solidária, tornando o indivíduo cada vez mais sociável como o real significado que possui a palavra ressocialização. Sendo assim, o fenômeno da ressocialização se concretizará através da vontade e da contribuição de todos nós, sem deixar de mencionar que tal transformação dependerá também do empenho do indivíduo, através do esforço e do suor derramado em face de sua luta diária, sendo assim, encerro o presente estudo com as palavras de Rudolf Von Ihering: “Esta é a conclusão final da sabedoria: Só merece a liberdade e a vida aquele que tem de conquistá-las diariamente” (IHERING, 2003, p.101).  CONSIDERAÇÕES FINAIS Em análise ao estudo exposto há de se perceber a importância da prática do trabalho no desempenho da pena, sua aplicação remonta à antiguidade como relatado na parte histórica, podendo assim ser notada sua mudança, ou melhor, sua evolução, de um meio castigador para um meio digno ressocializador. A evolução do trabalho foi devida à eclosão dos direitos humanos por grande parte do mundo, sendo assim, passou-se então a haver não só as devidas garantias, como também o devido reconhecimento da dignidade da pessoa humana como parte inerente ao ser, independente de como ou onde ele estivesse.  O trabalho exercido em face ao cumprimento da pena não se encontra regido pela CLT, tal percepção se deu pelo fato de sua natureza ser administrativa e de direito público, porém, isso não significa dizer que o condenado trabalhador fique desamparado, concluindo-se portanto, fazer ele jus a uma gama de direitos que podem ser classificados como um conjunto de fatores reunidos, a fim de propiciar uma favorável condição digna ao preso trabalhador que ali se encontra sob a custódia do Estado. Pode-se concluir que tais direitos são assegurados e resguardados por uma série de legislações, indo da Legislação Internacional até a Infraconstitucional. A Legislação Infraconstitucional específica ao caso é a LEP, ela não só assegura direitos como também prevê uma série de deveres a serem cumpridos por parte do apenado, podendo-se dizer que tais direitos e deveres aplicados em conjunto com demais regras, proporcionam o objetivo fim da lei, que é a reinserção do indivíduo ao meio social de maneira, ou melhor, de forma humanizada. Cabe ressaltar a importância da legislação internacional não só no que tange aos direitos humanos, como também no que diz respeito às regras mínimas de tratamento de presos criadas pela ONU. Percebe-se que grande parte do mundo segue ou procura seguir tais normas editadas pela ONU, a fim de propiciar uma condição mais digna aos seus prisioneiros, porém há um caso específico bastante conhecido que gerou grande repercussão por toda comunidade internacional, abordado na página 11, que relata o tratamento desumano direcionado pelos Estados Unidos aos prisioneiros sob sua custódia em uma de suas prisões situada em Cuba, sua forma de tratamento torna-se inadmissível, ainda mais quando praticado em pleno século XXI por uma nação reconhecida mundialmente pela sua democracia. Todavia, o caso está interligado diretamente ao estudo em questão, pois não há como se falar em ressocializar sem abordar os direitos humanos, pelo fato de que a atividade do trabalho só poderá ser digna, se os referidos direitos humanos forem exercidos, garantidos e respeitados. No tocante as suas vantagens, já havia por minha parte um certo conhecimento devido ao fato de tê-lo presenciado em determinada época de minha vida. Tinha por volta de 14 anos quando minha amada mãe foi retirada de meu convívio em virtude da acusação de ter ela sido mandante de um crime de homicídio. Tal acusação depois veio a se confirmar, e com isso gerou sua condenação em 18 anos de reclusão. No começo minha mãe não aceitava tal imposição da lei por não se tratar de uma pessoa que vivia às margens da lei. Tratava-se de uma mãe, dona de casa, e não de uma criminosa habitual, tendo então a infelicidade de cometer um ilícito devido a uma injustiça que a vida lhe proporcionara. Passou-se então assim a dedicar-se no primeiro ano do cumprimento de sua pena à realização de alguns afazeres no âmbito do estabelecimento prisional, com o intuito de fazer com que o tempo transcorresse da forma mais breve possível, em virtude disso, passou a exercer determinadas atividades reconhecidas como trabalho pela Lei de Execuções Penais. Seu labor se deu em relação a atividades de cozinha e faxinas em geral, proporcionando a ela o instituto da remição, ou seja, ter parte de sua pena remida em virtude da atividade laborativa desempenhada no cumprimento de sua pena. Tal situação perdurou-se até que eu completasse meus 20 anos de idade, diante disso, posso dizer que presenciei por toda minha adolescência a luta incansável de minha mãe, tal lembrança fez com que eu pudesse perceber a importância do desempenho dessa atividade em face do cumprimento da pena, pois seus benefícios são sem dúvida extraordinários. O trabalho praticado por minha mãe não foi direcionado para fins ressocializadores, como ressaltado alhures tratava-se de um caso esporádico, e por esse fator não havia motivos para fazê-la tornar-se sociável no seu retorno em meio ao convívio social, pois já se tratava de um ser completamente sociável. O trabalho por sua vez, entrou em sua vida proporcionando-lhe grande ocupação, gerando remuneração, remição, e sem dúvida o principal, evitou o ócio, ou seja, o surgimento da ociosidade que costuma trazer diversos malefícios às pessoas que ali se encontram, como o contato direto com demais presas consideradas então criminosas habituais.  No tocante a receptividade da sociedade, também havia certo preconceito por parte de uma minoria por se tratar de uma ex-presidiária, o olhar das pessoas mudavam e muitas portas se fechavam. Graças a Deus portas se abriram e a situação com relação a ela foi se consolidando, porém, hoje, em seu íntimo ainda há uma certa timidez com relação às pessoas que estão a sua volta, devido a isto, creio que seja assim que as pessoas oriundas do sistema venham a se sentir, sem dúvida esse é o principal problema a ser enfrentado pelas autoridades competentes para que haja a devida conscientização por parte de toda a sociedade, independente de suas classes, cor ou religião. Haja vista que, um grande passo já foi dado por parte das autoridades governamentais a fim de conscientizar a sociedade através de campanhas como o projeto “começar de novo” do Conselho Nacional de Justiça, todavia há de se fazer mais como o faz a empresária Gisela MacLaren, que emprega grande mão-de-obra oriunda do sistema através de seu convênio firmado com o Governo do Estado do Rio de Janeiro, tal convênio gera em seu estaleiro grandes oportunidades tanto para homens quanto para mulheres. Há de se concluir que o processo de ressocialização engloba várias fases, sendo uma dependente da outra, ou seja, interligadas e direcionadas ao mesmo fim para que possamos resolver esse “problema social” que se arrasta durante décadas, digo isto porque faço parte dessa sociedade que não agüenta mais e clama por paz.  O grande e saudoso jurista alemão Rudolf Von Ihering, através de sua grande obra “A Luta Pelo Direito” datada em 1872, menciona uma grande passagem bíblica que condiz e muito com essa temática abordada: “Na luta hás de encontrar o teu direito”. “No suor do teu rosto hás de comer o teu pão”. A conclusão que se pode tirar desse estudo é a de que tudo nessa vida inicia-se e encerra-se com muito trabalho, com suor, com luta, e assim sempre será não só para aquelas pessoas, mas para todos nós.
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O acesso à saúde no sistema penitenciário: a (in)observância da lei de execuções penais
O presente estudo tem por escopo fazer uma análise da Lei de Execuções Penais no que diz respeito à saúde dentro do sistema penitenciário brasileiro. Para tanto, realizou-se uma análise dos direitos que os apenados possuem no tocante a Lei de Execuções Penais combinada com a Constituição Federal, traçando um paralelo com sua aplicabilidade no cenário local.
Direitos Humanos
Introdução A Lei de Execuções Penais (LEP) ao sair da teoria e ser trazida para a prática, com o fim de cumprir seu fim maior, deveria promover a ressocialização dos apenados. Contudo, para que esse almejado fim seja alcançado, em primeiro lugar, se torna imprescindível a observância de princípios constitucionais que norteiam esta legislação. Outrossim, para que um condenado possa ser devolvido à sociedade – intuito da lei – ele deve ser exposto a uma execução penal progressiva, que possibilite que o detento desenvolva atividades no interior do cárcere, promovidas pelo Estado, e no momento posterior, da sua liberdade, que tenha um certo acompanhamento por parte das autoridades. Tais premissas são diariamente esquecidas e, a inobservância à LEP afeta diversos setores. Contudo, o tema deste trabalho tem o cerne na saúde dos apenados. Para tanto, será apresentada análise, em consonância com a Constituição Federal, com as previsões encontradas na LEP de forma direta e indireta, em seus artigos 10, 14, 41, 88 e 120. Importante é ressaltar que apesar de algumas mudanças encorajadoras terem ocorrido nos últimos anos no âmbito da fiscalização das condições carcerárias no Brasil, o cenário da saúde no geral tem sido pessimista. São várias as problemáticas relacionadas à saúde no sistema penitenciário, sendo que as principais advêm principalmente da superlotação das celas, sua preca­riedade e insalubridade, que tornam as prisões um ambiente propício à proliferação de epidemias e ao contágio de doenças. Os fatores estruturais são agravados pela má-alimentação dos detentos, seu sedentarismo, o uso de drogas, a falta de higiene e toda a lugubridade da prisão fazem com que o preso que ali adentrou numa condição sadia, de lá não saia sem ser acometido de uma doença ou com sua resistência física e saúde fragilizadas. Estes fatores quando somados, geram uma dupla penali­zação do condenado: a pena de prisão propriamente dita e o lamentável estado de saúde que o preso adquire durante a sua permanência no cárcere. Com a utilização do método de abordagem hipotético-dedutivo, busca-se a confirmação da hipótese de que a não observância da legislação específica gera problemas de ordem pública, induzindo inegavelmente a um bis in idem para o apenado. 1 DO DIREITO À SAÚDE Em 1988, com o advento da Constituição Federal (CF/88), o direito à saúde passou a fazer parte do rol dos direitos fundamentais sociais, a partir da compreensão de que liberdade e igualdade, isoladamente, nada representam a um indivíduo, ocasião em que se passou a buscar complementos necessários para o sujeito de direitos. Nesse sentido: “Em virtude de sua vinculação com a concepção de um Estado social e democrático de Direito, como garante da justiça material, os direitos fundamentais sociais reclamam uma postura ativa do Estado, visto que a igualdade material e a liberdade real não se estabelecem por si só, carecendo de uma realização. Os direitos sociais estão vinculados com a necessidade de se assegurar as condições materiais mínimas para a sobrevivência e, além disso, para a garantia de uma existência com dignidade”.[1] Contudo, os apenados necessitam de um olhar diferenciado no que diz respeito a saúde, uma vez que se encontram em um ambiente propício à proliferação de diversos tipos de enfermidades e epidemias, e, ao mesmo tempo, com limitação de atendimento médico e acesso a medicamentos. Posteriormente à promulgação da Carta Magna, foi promulgada em setembro de 1990, a Lei Orgânica da Saúde, que espelhada no texto constitucional, considerou a saúde novamente como direito fundamental. Já em dezembro do mesmo ano, foi criada para complementar a Lei Orgânica, a Lei 8.142 que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde, e sobre transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde. Ao transformar o direito à saúde em uma obrigação do Estado, para que todas as pessoas sejam abrangidas por políticas de atendimento às diversas problemáticas que envolvem a questão da saúde, criou-se um sistema único de saúde (SUS), referido no artigo 198 da CF/88, apresentando-se como um sistema norteado por princípios que auxiliam no entendimento sobre suas atribuições, a exemplo do princípio da universalidade e da equidade. De outra banda, na CF/88, o direito à saúde está previsto no artigo 60, no Capítulo II, Título II. Cabe ressaltar o disposto no artigo 196 do mesmo texto que de forma mais clara e explícita trata desta questão, aportando a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças. Nesse âmbito, o Estado tem um papel de garantidor positivo de uma política que abrange a todos, inclusive que alcance os indivíduos que estão  sistema penitenciário. Nesse sentido, ensina José Afonso da Silva: “A Constituição de 1988 abre as perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais que ela inscreve e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana”[2]. Como acima referido, o princípio da dignidade da pessoa humana é de suma relevância para os demais princípios, uma vez que possui amplitude geral, pois centraliza os demais princípios. Neste contexto que Maria Thereza Rocha de Assis Moura conclui que “a falta de consideração pela dignidade dos presos é notória[3].” Assim, a dignidade da pessoa humana, de acordo com Alexandre de Moraes, pode ser conceituada da seguinte forma: “A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos”.[4] Pode-se ver claramente que não se trata de tarefa árdua ou complexa incluir o direito a saúde na esfera da dignidade da pessoa humana, uma vez que não há como viver dignamente sem o pleno acesso à saúde. A preocupação com a dignidade do recluso é antiga, precedendo a Constituição Brasileira. O precursor do tratamento igualitário foi Manuel Montesinos, e de acordo com os ensinamentos de Cezar Roberto Bittencourt, Montesinos defendeu a principal idéia do respeito à dignidade do preso: “Montesinos tinha a firme convicção de que a prisão deveria buscar a recuperação do recluso. A função do presídio deveria ser devolver à sociedade homens honrados e cidadãos trabalhadores. Ele não acreditava que a prisão devesse servir somente para modificar o recluso. Embora esta idéia pareça lógica e evidente, ainda hoje, em muitos setores sociais, encontra-se enraizado o conceito de que a prisão é um lugar onde se deve propiciar o sofrimento e a mortificação do delinquente.”[5] Depois de consolidado o posicionamento da CF/88 e da Lei Orgânica, outro marco foi importante neste sentido, que foi a elaboração da Política de Atenção à Saúde à População Penitenciária, que se trata de Portaria de número 1.777, de setembro de 2003. Entretanto, de nada adianta previsões amplas como as acima, se as penitenciárias não possuem suporte arquitetônico, bem como de recursos humanos e materiais para colocar em prática as determinações que foram criadas sob um olhar voltado aos direitos previstos na Lei de Execuções Penais. É sabido que os apenados possuem restrições em seus direitos fundamentais, pois ao estarem cumprindo pena privativa de liberdade, possuem o direito à liberdade limitado. Porém, na contramão do que disciplinam as legislações sobre o tema, por via reflexa, o direito à saúde ao mesmo tempo recebe sérias privações. Nesse sentido: “Populações carcerárias em toda parte tendem a requerer mais assistência médica do que a população como um todo. Não apenas os presídios mantém uma grande proporção de pessoas com maior risco de adoecer, como usuários de drogas injetáveis, mas também o próprio ambiente prisional contribui para a proliferação de doenças”.[6] O Estado, ao retirar a autotutela do indivíduo, tomou para si a responsabilidade de punir quem violasse suas regras. Contudo, essa responsabilidade carrega consigo outros fatores intrínsecos a sua natureza, garantias individuais, que podem ser de natureza material ou processual.       Nesse diapasão, a punição dos apenados recai sobre direitos políticos, civis, e ainda na liberdade de locomoção, não cabendo ao Estado punir estes indivíduos com a supressão de outros direitos fundamentais, como a saúde. Michel Foucault, em Vigiar e Punir[7], vislumbrou esta ideia ao salientar que os apenados ao  estarem expostos a sofrimentos que a lei não ordenou e nem a sentença fez menção, alimenta um sentimento de revolta e para tudo culpa a própria justiça. “O ambiente carcerário é, na verdade, a grande arena onde são vivenciadas as cenas mais aviltantes e grotescas, tendo como protagonista um ser humano segregado provisoriamente do convívio social, que trouxe do submundo do crime, como uma herança, uma estranha cultura que será implantada em seu novo habitat. (…) A privação da liberdade neste ambiente revoltoso gera inclusive mudança de personalidade”.[8] A vontade de ressocializar é que impulsiona a pena de prisão. Acredita-se que o apenado ao ficar recluso terá tempo para pensar sobre a sua prática delituosa, e ao mesmo tempo terá certo convívio social, como por exemplo, com as visitas da família. Nesse sentido, vislumbrou Mirabete[9], que embora a esperança de alcançar a ressocialização tenha penetrado formalmente nos sistemas normativos, questiona-se muito a intervenção estatal na esfera da consciência do presidiário, para se apurar se tem o Estado o direito de oprimir a liberdade interna do condenado, impondo-lhe concepções de vida e comportamento. 2 DOS DIREITOS E GARANTIAS DO APENADO Em um primeiro plano, ao tratar das garantias do apenado, há que se abordar alguns aspectos do princípio da humanidade das penas ressalvado nos incisos XLIX e L do já mencionado artigo 50, e que possui respaldo jurídico maior, com a aprovação pelo Brasil do Decreto Legislativo número 27 de 1992, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969. O precursor do principio da humanidade é John Howard, que teve inspiração em Cesare Beccaria. Howard impulsionou a humanização com um movimento de reforma na Inglaterra e calabouços da Europa. Nesta linha, para melhor abordar o princípio supracitado, é preciso trazer à baila o princípio da individualização da pena, que determina que a atividade estatal considere os indivíduos como tal, em suas peculiaridades, e é nesse contexto que a individualização da pena se aproxima ao principio da igualdade, pois sua função é a de tratar os diferentes na medida de suas desigualdades. O princípio da individualização leva em consideração basilarmente unicamente o fato criminoso e a personalidade do agente. A teoria da individualização da pena iniciou com Emil Wahlberg, no ano de 1869, mas foi difundida por Raymond Saleilles: “Portanto cada pena deve ser apropriada ao seu fim, para que produza maior efeito possível. Não cabe fixá-la de antemão de um modo estrito e rígido, nem regulá-la legalmente de um modo invariável, já que no fim da pena é individual e deve ser obtido pelo emprego de uma policia especial adequada às circunstâncias, mais que pela aplicação de uma lei puramente abstrata, ignorante com relação às espécies e casos que lhe forem submetidos. (…) Se, pois, olharmos assim para a pena, em seu fim, considerando o futuro e realização de um fim, é preciso que essa pena se adapte à natureza de quem ela recairá. Se o criminoso não está de todo pervertido, é necessário que a pena não contribua para pervertê-lo mais; é necessário que o levante e o ajude a reabilitar-se, e se o criminoso é incorrigível é necessário que a pena seja contra ele, e em proveito da sociedade, uma medida de defesa e preservação radicais”[10]. A CF/88 trouxe a previsão legal de que as penas serão cumpridas em estabelecimentos distintos, e em razão da individualização da pena, incluiu ainda que seja considerada a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado. De acordo com o artigo 50 da LEP, inspirado na CF, artigo 50, inciso XLVI, a individualização da pena, observará os antecedentes e a personalidade do agente. Nesse sentido, de acordo com os ensinamentos de Julio Fabrinni Mirabete[11], “a individualização é uma garantia repressiva, e constitui preceito básico da justiça”. A LEP dispõe essa classificação, pois se chegou à conclusão que a execução penal não pode ser igual para todos os presos justamente porque nem todos são iguais, mas sumamente diferentes. Esta individualização é de competência da Comissão Técnica de Classificação, que possui missão de elaborar um programa individualizador adequada ao agente transgressor. Contudo, o descaso a esta normativa fere indubitavelmente o artigo 10 da LEP: “Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” A única individualização efetivamente observada diz respeito à separação de sexo e maiores e menores de idade. De acordo com Luiz Ricardo Centurião[12], a falta de separação dentro do sistema carcerário, faz com que os apenados venham a aprimorar a prática da conduta delitiva, dentre outras barbáries que nascem da aglomeração de apenados. O linguajar, a maneira de andar, agir, tornam-se únicos, e desta forma o preso perde a sua personalidade inicial, absorvendo aquela que existe no sistema prisional, uma vez que  o encarceramento possibilita esse fenômeno, onde a identidade do preso se perde dentro de um sistema onde todos adquirem o mesmo rótulo por não possuírem outra opção. Além da personalidade que lhe é de certa forma imposta, o apenado é exposto a um ambiente que lhe facilita adquirir enfermidades, ocasionadas e agravadas justamente por essa falta de separação, onde  os apenados são colocados em celas sem qualquer critério, uma vez que os detentos dividem a mesma unidade celular, o que constitui mais uma violação legislativa. Contudo, não são apenas fatores que protegem os presos legalmente. Cabe salientar, que a nível mundial a proteção advém da Declaração Universal de Direitos Humanos, da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, e de uma resolução da ONU que prevê regras mínimas para o Tratamento dos Presos, que devido ao objeto do trabalho não poderão ser estudadas de forma exaustiva. Nesse sentido: “Os mais importantes instrumentos internacionais e regionais comprometendo o Brasil claramente afirmaram que os direitos humanos se estendem às pessoas que estão encarceradas. O Pacto Internacional sobre direitos civis e políticos, a Convenção contra tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, todos ratificados pelo Brasil proíbem a tortura, tratamentos e punições cruéis, desumanos ou degradantes, sem exceção ou derrogação. Tanto o Pacto Internacional sobre direitos Civis e Políticos quanto a Convenção Americana requerem que “a reforma e a readaptação dos condenados é a finalidade essencial do encarceramento”. E também determinam que “toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com respeito devido a dignidade inerente ao ser humano”.[13] No Brasil, os direitos e garantias dos apenados não estão previstos apenas pelo texto constitucional, mas também de forma genérica no Código Penal, e de forma específica na Lei de Execuções Penais. Neste sentido, de acordo com Farias Junior: “A Lei de Execução Penal trouxe grande euforia aos penalistas mais humanos e menos radicais, por acharem que esta lei era uma peça importante que estava faltando na máquina da sistemática penal e que viria a satisfazer os anseios do objetivo maior, que era a recuperação do delinquente.”[14] A ressocialização integra o rol de direitos fundamentais do preso e está vinculada ao welfare state, que se empenha por assegurar o bem-estar material a todos os indivíduos. O preso, por se tratar de individuo que se encontra em situação peculiar, possui como cidadão o direito a retornar reabilitado à sociedade. A não observância de todos estes fatores acaba por funcionar como um bis in idem da execução penal. Esta prática é indubitavelmente inconstitucional, contudo, é uma constante na realidade do sistema penitenciário 3 A SAÚDE NO PRISMA DA LEI DE EXECUÇÕES PENAIS A LEP possui relevante valia na teoria, pois assegura os direitos do apenado, fazendo com que este se encontre amparado na legislação. Significa dizer, que sua dignidade, perante a lei, é preservada, uma vez que o que o ambiente prisional serve para a sua ressocialização e não para fazer com que este venha a sofrer devido a sua desobediência a lei. João Farias Junior, citou ainda, na mesma obra uma passagem de Maurício Kuehne que traduz de forma precisa a situação carcerária de forma geral, aduzindo que “não há como negar que se trata de criminosos, desviados da conduta ética social, praticamente de crimes perversos e hediondos, contudo são seres humanos, que não podem ser tratados como animais.” [15] Ainda nesse sentido, segundo Paulo Lucio Correia: “A execução é a mais importante fase do direito punitivo, pois de nada adianta a condenação sem a qual haja a respectiva execução da pena imposta. Daí o objetivo da execução penal, que é justamente tomar exeqüível ou efetiva sentença criminal que impôs ao condenado determinada sanção pelo crime praticado”.[16] Uma inovação que adveio com esta lei, é o termo “assistência”, que anteriormente era denominado “tratamento” ao apenado. Essa assistência é concedida ao apenado durante a sua permanência no cárcere. Tal assistência sugere a prestação de serviços, contudo essa prestação envolve ação de profissionais devidamente qualificados, para que estes possam repassar aos detentos as políticas criadas para preservação de seus direitos. O termo assistência tem por objetivo a prevenção do crime e a orientação do preso para o retorno à sociedade, sempre buscando a ressocialização. De acordo com Julio Fabbrini Mirabete[17], a Lei no artigo primeiro, toma para si duas finalidades: a da correta aplicação dos mandamentos existentes na sentença ou em outra decisão criminal; e a segunda, de propiciar condições para a integração do condenado, através da oferta de meios pelos quais os apenados possam participar construtivamente da comunhão social. Procura-se no dispositivo legal acima citado, cuidar não só do sujeito passivo da execução, mas também da defesa social. A integração do condenado, a suposta reinserção social, pretendida pela lei, possui o sentido de assistência e ajuda na obtenção dos meios capazes de permitir o retorno do apenado ao meio social, em condições favoráveis para a sua integração. A LEP, ainda no início do texto, em seu artigo 10, aponta a assistência aos presos, onde aduz a necessidade de serem desenvolvidos no interior das penitenciárias, serviços sociais que possibilitem desenvolvimento “harmônico” dos apenados. Este desenvolvimento harmônico, é no sentido de que o apenado tenha as mesmas condições que o individuo que se encontra do lado de fora das penitenciárias. Contudo, para o jurista Julio Fabbrini Mirabete [18], é fácil verificar a não observância na Lei de Execuções Penais, bem como na Constituição Federal no que tange aos direitos previsto no artigo 50, e novamente a não observância legal gera outra espécie de punição. Já a assistência à saúde especificadamente, em um primeiro momento, encontra-se em seu inciso II, apenas de forma exemplificativa. Cabe ressaltar ainda, que todos os direitos do artigo supracitado são previstos também na Resolução nº. 14 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciaria (CNPCP) de 11 de novembro de 1994, órgão vinculado diretamente ao Ministério da Justiça. E em seguida, o artigo 14 da LEP trata da matéria da saúde assim dispondo: “Art. 14. A assistência à saúde do preso e do internado de caráter preventivo e curativo compreenderá atendimento médico, farmacêutico e odontológico. § 1º (Vetado). § 2º Quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado para prover a assistência médica necessária, esta será prestada em outro local, mediante autorização da direção do estabelecimento.” Neste artigo, a saúde tem previsão na forma preventiva e curativa, uma vez que compreende atendimento médico, farmacêutico e odontológico. Contudo, tal previsão legal tem caráter meramente utópico, pois as condições no sistema penitenciário não permitem tal efetivação, tendo em vista que os presídios possuem demasiada deficiência no que tange aos recursos materiais para que se possa manter um ambulatório digno que possa atender a demanda dos presos, demanda esta que agravada por fatores como brigas entre presos, aglomeração, sedentarismo, agrupamento de presos saudáveis com os não saudáveis na mesma cela, má alimentação, higiene precária, uso de drogas, dentre outros. De outra sorte, a não observância nos recursos humanos é tão grave quanto à encontrada nos recursos materiais. Isso porque existe falta de médicos e enfermeiros para o atendimento médico aos presos. Nesse sentido: “Faltam médicos e enfermeiros nos presídios. Também há falta de remédios, inclusive medicamentos básicos como analgésicos. Essa precariedade tem feito as doenças se proliferarem, como por exemplo, a Tuberculose e a AIDS, em detrimento dos detentos, funcionários e da própria população. Por isso, podemos considerar os presídios como incubadoras de doenças”[19]. Na atual conjuntura, “é preciso ter presente que as pessoas presas não foram condenadas a passar fome, frio, viverem aglomeradas, a virar pasto sexual, contrair AIDS e tuberculose, dentre outras doenças nos estabelecimentos penais[20]”, pois, no momento que o réu recebe a sentença que o priva da liberdade, é como se estivessem implícitas diversas outras punições. A previsão legal da saúde não se esgota no artigo 10 e 14, uma vez que o artigo 41 da LEP novamente atenta para a questão da saúde, constituindo-a como direito do preso. E nova referencia ligada a esta mesma questão pode ser retirada do texto do artigo 88, que prevê que “o condenado será alojado em cela individual, que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório”. E a letra a do Parágrafo Único atenta para a “salubridade do ambiente, pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana.” Se tais prerrogativas fossem observadas parte dos problemas relacionados à questão da saúde seriam solucionados, uma vez que em nossa estrutura carcerária, dada a defasagem de vagas frente a demanda, os apenados restam agrupados em celas coletivamente, não sendo observados fatores como, por exemplo, a presença de doença contagiosa em um dos apenados, o que ocasiona uma rápida disseminação da enfermidade. Não obstante, cabe ressaltar o artigo 88 da Lei de Execução Penal, que traz um dos aspectos que envolvem o já retratado princípio da individualização da pena. O referido artigo aduz que “o condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório”, ainda faz referência aos requisitos básicos de uma unidade celular, onde reza que “a salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana”, e por derradeiro o artigo trata do tamanho ideal para a cela, que corresponde a no mínimo 6,00 m2 (seis metros quadrados). Estes aspectos não foram positivados sem um motivo relevante. Assim como todos os outros artigos, este, está atento à questão da ressocialização, que é a grande preocupação e objetivo da LEP. Contudo, este dispositivo também não possui aplicabilidade direta, uma vez que o sistema carcerário brasileiro, em sua maioria, apresentam celas maiores mas com um numero razoável de leitos para possibilitar a convivência dos apenados. Essa mudança não seria prejudicial, se ao separar os detentos fossem observadas condições legais. Porém além de não serem observados fatores como por exemplo, o tipo do delito, também não são observadas condições de saúde dos apenados. E esta prática faz com que doenças transmissíveis sejam facilmente proliferadas dentro dos ambientes prisionais. Tais conseqüências sofrem uma agravante ao mencionar que a superlotação nestas celas, faz com que os apenas tenham de revesar as camas, dormindo por diversas vezes no chão, sem as menos condições de salubridade, uma vez que se alojam próximos ao sanitário, que é de uso comum. Por fim, e não menos importante, de acordo com o artigo 120 da LEP, que faz referencia ao artigo 14 parágrafo único, as situações mais complexas deverão ser encaminhadas a hospitais após indicação médica, que for autorizada pelo diretor do presídio, contudo o SUS não atende a demanda da população que não se encontra em privação de liberdade, o que significa dizer, que o apenado quando consegue o deslocamento para uma unidade de saúde nem sempre consegue ser atendido de forma correta e digna. Pois além da falta de recursos, o apenado se depara também com o preconceito. CONSIDERAÇÕES FINAIS A Lei de Execuções Penais tem como objetivo proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado e tal intuito não é observado no sistema penitenciário brasileiro. Para sanar a crise do sistema carcerário, deve haver uma verdadeira vontade política, com políticas públicas efetivas nesse sentido, com pessoal devidamente qualificado e habilitado. Pois com a atual conjuntura do sistema, se pode concluir que a validade do cumprimento da pena está ameaçada e sem credibilidade, devido ao crescente e exacerbado índice de reincidência demonstra que a ressocialização por meio do cárcere, dos parâmetros de hoje, é ineficaz. A ressocialização não depende apenas da vontade do apenado, mas sim, é necessário que seja reconhecida a falência do sistema prisional, para que seja feito um acompanhamento efetivo ao apenado e ao egresso, e nessa esfera importante se faz a participação da sociedade, para que entenda que os egressos necessitam de uma nova oportunidade que os faça abandonar a criminalidade.
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A desmistificação dos direitos humanos numa sociedade cansada de injustiça
Quando se fala de direitos humanos em nossos dias, parece que se evocam os chamados direitos dos “bandidos”, e isso por quê? A ênfase que se atribui ao direito, e a questão, “bandido” estão no sonido errado. Há de se perscrutar quando se fala de um e de outro.
Direitos Humanos
Introdução Quando se fala de direitos humanos em nossos dias, parece que se evocam os chamados direitos dos “bandidos”, e isso por quê? A ênfase que se atribui ao direito, e a questão, “bandido” estão no sonido errado. Há de se perscrutar quando se fala de um e de outro. Direito é o conjunto de normas, leis, ou até garantias que o Estado provê para as pessoas que vivem sob sua tutela. Em síntese, há de se entender que estas pessoas são universais como o próprio texto legal assim exprime: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. CFB art. 5, caput. “Bandido” pode se dizer de forma grosseira que é o transgressor da lei, normas e preceitos estabelecidos pelo Estado. Aparentemente este conceito apriori, subleva a discussão apontando que se esse personagem transgride a lei que existe para proteger e garantir, seu destino não deve ser outro se não sofrer as consequências de seus atos. Nada mais correto, quem transgride deve arcar com as consequências de seus atos. O problema é que presenciamos um período terrível onde a opinião está dividida. De um lado encontrasse os defensores da justiça pelas próprias mãos, do outros, aqueles que se dizem defensores dos “direitos humanos”, mas que mais parecem defensores do caos do que de qualquer direito que o valha. Não há, no entanto a menor pretensão de se filiar a este ou aquele grupo e nem tampouco, apontar quem está ou não errado, a proposta é de fazer uma análise, trazendo os dois lados, na tentativa de somar esforços para compreender melhor o que de fato se passa numa sociedade que alcançou tantas conquistas e, que hoje está num impasse, para assumir novos e maiores desafios. Esta separação de cidadãos bons e “bandidos” é funesto e prejudicial para qualquer sistema judiciário decente. A maior lei, a Constituição Federal do Brasil, assim não preceitua, ao contrário, a exposição do texto legal é clara, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Não há o que se discutir. Todavia, o que presenciamos é uma enxurrada na mídia supervalorizando, ou dando mais espaço, aos chamados “bandidos”, do que suas vítimas, ou vice versa. Situação esta que por si só já inspira cuidados, pois, assumir posição seja ela qual for é por demais perigoso e temerário. Diante deste quadro, não está sendo raro ver, a população tomando a justiça com as próprias mãos. Qual deve ser a postura nestes casos?  Como deve se portar o cidadão de bem? O que de fato são direitos humanos? Qual seu papel na sociedade? O que não são direitos humanos? 1. Conceitos e um pouco da história dos direitos humanos Na esteira de uma compreensão coerente do tema, encontra-se Canotilho, apresentando uma diferença posta na própria Constituição Federal do Brasil, entre direitos do homem e direitos fundamentais, comecemos por esta sintonia: “As expressões direitos do homem e direitos fundamentais são frequentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos; direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intertemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.” (Canotilho, 1998: 259).   Desta feita não é incorreto entender que embora haja uma sintonia fina entre as expressões “direitos do homem” e “direitos fundamentais”, há uma distinção a ser observada: “os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana, daí seu caráter inviolável”, exato, espasmódico e por fim, inefável. Enquanto “os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta”, compreensível, atuante e por fim, objetivo. Pontualmente, esta distinção necessária postula o entendimento mais claro das duas vertentes existentes em nossa codificação. Sua importância transpassa a ideia universal dos direitos humanos amplamente divulgada e erroneamente entendida. Na esteira da discussão, Bobbio amplia esta já calcada demarcação: “Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.” (Bobbio, 1992: 5).  Norberto Bobbio retoma o tema histórico dando a devida vênia a estes aspectos, demonstrando toda luta que houve para geração destes direitos e a garantia da sua manutenção está em não se perder de vista todas as batalhas enfrentadas para se alcançar a tão sonhada liberdade. Cumpre notar o que ocorreu na história para se haver necessidade da Declaração dos Direitos do Homem: “Nesta esteira surge a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948 . Com intuito de proteger a pessoa humana diante da máquina de guerra, da sociedade com um aumento crescente da violência em profusão pela influência ainda da Segunda Guerra Mundial, necessitava, portanto, de freios e contrapesos para não se permitir o avanço descontrolado de mais violência social. A Declaração dos Direitos visava alcançar a possibilidade de frear e combater toda e qualquer atrocidade ocorrida contra a pessoa humana, seu princípio norteador era de entender que o ser humano não tem como assumir em caso de guerra ou de violência urbana; sua proteção, segurança e sobrevivência; uma vez nestes casos ser parte passiva, estando a mercê de qualquer ato violento sem conseguir se debelar. Pode se perceber que ainda com a sombra desta guerra atroz, muitas coisas mudaram e tendiam a continuar em evolução transformadora, trazendo um limite histórico antes da Segunda Guerra e depois dela. Então cumpria as autoridades mundiais pensar na fragilidade humana e as consequências de não se ter o cuidado necessário para proteger e prosseguir em forma de sociedade.” (Silva, 2012) Urge entender a necessidade de estabelecer uma nova ordem de postura com relação a sociedade e a convivência entre todos, após esta grande demonstração de horror e de carnificina que tinha de ser impedida de surgir novamente. José Afonso da Silva assim amplia a ideia transposta: “Direitos Humanos é a expressão preferida nos documentos internacionais. Contra ela, assim como contra a terminologia direitos do homem,objeta-se que não há direito que não seja humano ou do homem, afirmando-se que só o ser humano pode ser titular de direitos.Direitos fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este estudo, porque, além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informa a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas”. (Silva, 2009:176). Em síntese, Direitos Humanos constitui “as garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas”. É poder se estar numa sociedade onde se preze pela igualdade sem distinções, e o exercício da plena liberdade. 2. Direitos humanos e os perigos mais comuns Os Direitos Humanos surgiu de uma necessidade premente após a segunda guerra mundial, com o objetivo maior de assegurar a possibilidade de não haver tanta violência urbana. Infelizmente como tudo que possa surgir com objetivo nobre, este também foi sendo afetado por distorções radicais em dois aspectos básicos: ou primasse pelo excesso de Direitos Humanos, ou então, na outra ponta, quase nenhum direito dependendo de quem precise dele. Já na década de 80 surgia no cenário mundial uma Teoria para implementar esta discussão: “Em 1985, surge no cenário mundial a Teoria do Direito Penal do Inimigo, ancorada pelo Professor Günter Jakobs. Suas linhas gerais trazem um novo prisma ao Direito, nela cidadãos que se envolvessem ou participassem de algum tipo de organização criminosa, perderiam o status de cidadãos, passando a serem considerados inimigos do Estado, tendo seus direitos fundamentais congelados, retidos até que, sem julgamento e nem direito ao contraditório pudessem ser liberados. Esta teoria em seus primórdios causou espanto e vários artigos protestando contra a dura cerviz imposta por ela. O tempo se encarregou de trazer a lume a discussão desta teoria olhando-a por outro espectro e assumindo o risco de em certos casos extremos ser ela, uma vez adaptada, uma forte força para o combate de um mal que renasceu: organizações criminosas altamente preparadas e articuladas para alcançarem seus objetivos. No Brasil, casos de organizações de norte a sul têm esquentado este debate, com menos força, mas inspirados em países que usaram dessa teoria com algumas mudanças e aparentemente debelaram tais organizações, o debate continua”. (Silva, 2009). Esta teoria exposta em 1985, pelo professor Jakobs, tem uma proposta radical, a de em caso de transgressão da lei, e uma conduta já declarada criminosa, a pessoa que a prática se considerada Inimigo do Estado, e serem tolhidos todos os direitos e garantias, sendo levada sumariamente a julgamento. Para melhor entender, leiamos: “Só esta forma sugere o impacto de uma sociedade paralela, onde normas e leis seriam usadas apenas para este que se tornariam párias da sociedade, surgindo uma terceira via do Direito, tratamentos diferenciados e não usuais, para resgatar o Estado pleno de Direito. Pode-se dizer diante do quadro menor formado, que estaríamos numa guerra (ou guerrilha urbana), contra o terror, formando assim frentes de combates com pleno poder para determinar através de escutas sem o devido processo legal para tal, busca de informações em banco de dados, uma verdadeira devassa na vida da pessoa a ser considerada inimiga do Estado. Assim preleciona Jesús María Silva Sánchez: “Se nos restringirmos à definição desse autor, o inimigo é um indivíduo que, mediante seu comportamento, sua ocupação profissional ou principalmente, mediante sua vinculação a uma organização, abandonou o direito de modo supostamente duradouro e não somente de maneira incidental. Em todo caso, é alguém que não garante a mínima segurança cognitiva de seu comportamento pessoal e manifesta esse déficit por meio de sua conduta”. (Silva, 2009). Não são raras as vezes que no afã de se minimizar, ou desejar que uma situação avultosa se encerre, pensamos que se pode trazer a lume uma alternativa que resolva o caso, pondo fim a determinados dilemas. Mas veja que esta teoria, traz aspectos discutíveis quanto a manutenção de certos direitos que são mais do que fundamentais para manutenção de uma sociedade vigorosa e pujante. Na certeza ainda de aprimorar o debate avancemos ainda mais nesta teoria. Assim cumpre apontar em que base, essa Teoria é desenvolvida: “Os três pilares que fundamentam a teoria de Jakobs, que são: 1) Antecipação da punição do inimigo; 2) A desproporcionalidade das penas; 3) E relativização e/ou supressão de certas garantias processuais. A criação de leis severas direcionadas à clientela dessa específica engenharia de controle social (terroristas, supostos líderes de facções criminosas, traficantes, sem-terra, homem-bomba, etc.), poderia funcionar perfeitamente em uma sociedade que tivesse condições e capacidades especiais para distinguir entre os que mereceriam serem chamados de cidadãos e os que deveria ser considerados os inimigos que se atrevessem a ultrapassar. Em Jakobs, sente-se a perseguição do problema crime organizado, milícias e qualquer grupo que participe ou desconsidere o contrato social, que em sua teoria tem valor maior, pois, trata de proteger a sociedade, os cidadãos e a paz social. É nesta base que ele constrói sua teoria”. (Silva, 2009). (Grifos nossos). O ponto central desta base piramidal é: qualquer pessoa que descumprisse a lei, ou estivesse em franca transgressão das normas poderia ser classificado como Inimigo do Estado? Os pilares que alinham esta teoria são: a) Antecipação da punição do inimigo: como velocidade entenda extinção dos requisitos mínimos de um processo, ou seja, sem direito ao contraditório, nem ao grupo grau de jurisdição; b) A desproporcionalidade das penas: entenda que haverá aumento substancial de pena, e sem critérios previamente definidos; e por fim, c) Relativização e/ou supressão de certas garantias processuais: certas não todas! Não haverá de se falar em garantias e direitos, uma vez serem estes aplicados a apenas aqueles que ainda são considerados cidadãos, não inimigos do Estado. Para se perceber uma demonstração do que uma teoria com esta pode proporcionar criar, vejamos o exemplo de um país que assumiu esta postura dando apenas um nome rebuscado para impressionar até os mais incrédulos de plantão.  Após os ataques de 11 de setembro de 2001, os EUA, entrou em neurose coletiva e nessa frenesi criou o chamado Ato Patriótico, aprovado pelo senado americano, em 11 de outubro de 2001. “Em nome da segurança nacional, o governo americano criou um "tribunal secreto" com a função de "legalizar", por meio de ordens judiciais, ações dos órgãos de segurança que, de outra forma, seriam uma violação clara das garantias constitucionais dos americanos. Isso explica a notícia da semana: o "tribunal secreto, chamado "Foreign Intelligence Surveillance Court", ordenou à companhia de telecomunicações Verizon a entrega à NSA [National Security Agency, a Agência de Segurança Nacional] e ao FBI (Federal Bureau of Investigations) registros telefônicos de todos os seus clientes. A NSA, criada depois dos atentados às torres gêmeas de Nova York, em 2001, tornou-se a maior agência de espionagem do mundo. Nasceu sob a égide do "Patriot Act" (Ato Patriota), lei que foi aprovada pelo Congresso americano em 11 de outubro de 2001 — exatamente um mês depois dos atentados — e sancionada pelo ex-presidente Bush em 26 de outubro de 2001”. ( Melo,  2013). Em nome da chamada segurança nacional, se desenvolveu uma rede de informações, prisões, pseudos julgamentos (pois, o que se notícia serem estes sumários, não oferecendo ao acusado: direito ao contraditório, duplo grau de jurisdição, entre outros direitos balizadores), sem precedentes na história daquele país, com a desculpa de se manter a sociedade segura. Mas é isto que os americanos estão sentindo, segurança? Ou, quando se afronta, os direitos mínimos de convivência social, mesmo assim se pode viver em segurança? Ou, a retirada dos direitos como se pode ver na sociedade americana, traz algum ônus pesado demais para se carregar? Verificar esta situação é passar um marco em nossa própria sociedade que nos dias atuais clama por “leis mais rigorosas”, “penas mais pesadas”, e “rapidez nos julgamentos”, será que este clamor não bate exatamente nesta Teoria tão apregoada e que na prática, destrói séculos de conquistas? “[…]sob a "legalidade" instituída pelo Ato Patriota, qualquer pessoa no mundo pode ser mantida presa por tempo ilimitado, sem uma acusação formal, sem o devido processo, sem julgamento. Com base na mesma lei, o governo americano propõe a criação de mais um tribunal secreto, que terá a atribuição de "legalizar", por meio de ordens judiciais, ataques por drones a "inimigos dos EUA" em qualquer parte do mundo. As prisões "informais" e os ataques por drones no Paquistão e no Iêmen, sem a devida "legalização", têm criado constrangimentos para o governo americano, diante de protestos esparsos. Os EUA têm uma explicação que é genericamente aceita pelos governos chamados "aliados" e, aparentemente, pelas Nações Unidas: o país está em guerra contra o terrorismo e tem o direito de se defender. A condenação mais forte, até agora, veio da Corte Europeia de Direitos Humanos, que reconheceu formalmente que os americanos torturaram prisioneiros em sua luta contra o terrorismo, conforme publicou a Conjur. O Ato Patriota e suas leis filhotes têm se voltado contra os americanos, no que se refere principalmente às questões de privacidade e ao direito constitucional de não sofrer buscas e apreensões sem mandado judicial. Registros telefônicos, e-mails e sites visitados na internet são regularmente monitorados pelos órgãos de segurança. A Polícia e o FBI são acusados de rastrear pessoas e as vigiar por meio do GPS de seus carros e dos sinais de telefones celulares. O último projeto, já em curso, é o lançamento de milhares de drones no espaço aéreo do país, que servem tanto para cumprir tarefas comerciais, por exemplo, como para vigiar pessoas suspeitas de envolvimento com terrorismo ou com crimes comuns”. (Melo, 2013). A apreciação mesmo a distância se mostra aterradora, para não dizer desesperadora. Como se pode ainda falar em um Estado Democrático de Direito, sem se ter o mínimo de direito garantido a todos que moram num mesmo país? Será que a chamada segurança nacional tem um preço tão alto, a ponto de se privar a todos do direito mínimo de privacidade? Ou ainda, serem cumpridos verdadeiras invasões a domicílios  sem mandados judiciais? Num momento de clamor social, onde se é fácil se revoltar com uma série de desmandos praticados com os poderes estabelecidos, com a ausência de uma apuração maior de fatos envolvendo dirigentes do alto poder Estatal, pode se até imaginar que seria melhor esta ou aquela medida, mas ponderar é preciso. Outrossim, para ampliar o horizonte quanto a este Ato Patriótico, cumpre ainda apontar: “Até essa semana, uma parte da população americana — não a maioria — sabia ou suspeitava que as companhias telefônicas eram obrigadas a passar informações sobre telefonemas aos órgãos de segurança. Mas pensavam que isso era um problema da população muçulmana ou, de uma maneira geral, de imigrantes de origem árabe ou de outras nações estrangeiras. Desconfiavam que americanos também pudessem ser monitorados, em alguns casos isolados. Mas, na quarta-feira (5/6), o site do jornal The Guardian publicou a ordem judicial do "tribunal secreto", que apresentou a realidade aos americanos. Basicamente, todos os clientes de companhias telefônicas do país passaram a fazer parte de um banco de dados da NSA e do FBI. A ordem judicial conseguida e publicada pelo The Guardian se refere apenas aos mais de 10 milhões de clientes da Verizon. Mas não há razão para as demais companhias não estarem recebendo o mesmo tipo de ordem judicial, de acordo com organizações de defesa dos direitos individuais do país. O "tribunal secreto" ordenou à Verizon que forneça ao NSA e ao FBI alguns dados de todos os telefonemas feitos dentro dos Estados Unidos, sejam interurbanos ou locais. E de todas as chamadas feitas e recebidas do exterior. Elas devem fornecer, por exemplo, os números dos telefones que fizeram e receberam chamadas, incluindo do exterior. Com relação às chamadas internacionais, a companhia tem de fornecer aos órgãos de segurança, além do número de telefone do outro país, o número "Identidade do Assinante Móvel Internacional (IMSI – International Mobile Subscriber Identity), o número da "Identidade do Equipamento da Estação Móvel Internacional (IMEI – International Mobile Station Equipment), identificador do tronco, número do cartão de chamada telefônica e horário e duração da chamada”. (Melo, 2013). Como é possível entender, não há limites onde se pode chegar, ou atingir, quando os direitos básicos são retirados. Muito embora, aparentemente se possa até dizer que houve uma melhora, no aspecto sensação de segurança, isso logo é sobrepujado pela realidade dos fatos, de ninguém ter mais direito algum, e pior, não se ter onde recorrer quando este falta. Por mais que se possa ver com bons olhos o que ali está a acontecer (imagino que um estudioso sério do direito terá um pouco mais de dificuldade para compreender toda esta questão), cumpre perceber que quando se abre mão de direitos humanos conquistados há séculos, após inúmeras lutas e batalhas, a sensação de desalento e abandono é muito grande, e o desânimo de se começar tudo de novo deve ser imperioso. Com muita estranheza nestes últimos dias nas redes sociais, e nos meios de comunicação de massa já se tem visto aqui e ali, manifestações fortes quanto ao emprego de qualquer meio para conter a violência. A surpresa tem sido desnorteante, afinal, a qualquer custo, se paga agora mais não vai se querer pagar a conta desta mentalidade para todo sempre. São atitudes imediatistas mais que certamente, nas mãos de quem exerce o poder não será tão rápido assim. Ponderar nestas horas, ser razoável é de suma importância para não se entrar num terreno perigoso e onde a volta pode não ser tão rápido quanto o desejo de se sanar o problema. 3. O que não são direitos humanos Para se perceber os exageros compostos nos dias atuais quanto aos chamados Direitos Humanos, se faz necessário buscar de uma fonte isenta e insuspeita o que são: “Direitos humanos são direitos e liberdades a que todos têm direito, não importa quem sejam nem onde vivam. Para viver com dignidade, os seres humanos têm o direito de viver com liberdade, segurança e um padrão de vida decente. Os direitos humanos não precisam ser conquistados – eles já pertencem a cada um de nós, simplesmente por sermos seres humanos. Não podem ser retirados de nós – ninguém tem o direito de privar qualquer pessoa de seus direitos. Os direitos humanos são protegidos sob o direito internacional, fundamentados na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A Declaração expressa a busca pela dignidade humana e faz os governos se comprometerem com a defesa dos direitos humanos de todos. Nos mais diferentes lugares do planeta, as pessoas seguem lutando para que essa promessa se torne realidade. (http://anistia.org.br/direitos-humanos/o-que-sao-direitos-humanos).”  No texto acima se coloca como primeiro direito é liberdade. O que vem a ser liberdade? A Constituição assim preceitua que é direito de “ir e vir”, de ser ouvido, de se associar livremente, entre outros. Dignidade, esta expressão quase que obrigatória quando se fala de direitos humanos, remetem as condições de vida, de trabalho, escola, moradia, transporte, entre outros. Veja que a própria Anistia Internacional, não vai além de um texto pra lá de subjetivo, sem muita clareza, sem muita profundidade. Para que não pese dúvidas, e ainda na tentativa de melhor embasamento, outro texto: “Quais são os seus direitos humanos?  Comecemos com algumas definições básicas: Humano: substantivo Um membro da espécie Homo sapiens; um homem, mulher ou criança; uma pessoa. Direitos: substantivo Coisas às quais você tem direito ou que lhe são permitidas; liberdades que são garantidas. Direitos Humanos: substantivo Os direitos que você tem simplesmente porque é humano.Se perguntasse às pessoas na rua: “O que são os direitos humanos?” obteria muitas respostas diferentes. Elas dir–lhe–iam os direitos que conhecem, mas muito poucas conhecem os seus direitos. Como se trata nas definições acima, um direito é uma liberdade de algum tipo. É algo ao qual você tem direito por ser humano. Os direitos humanos estão baseados no princípio de respeito em relação ao indivíduo. A sua suposição fundamental é que cada pessoa é um ser moral e racional que merece ser tratado com dignidade. Estes são chamados direitos humanos porque são universais. Enquanto as nações ou grupos especializados usufruem dos direitos específicos que se aplicam só a eles, os direitos humanos são os direitos aos quais todas as pessoas têm direito, não importa quem sejam ou onde morem, simplesmente porque estão vivos. (http://www.humanrights.com/pt/what-are-human-rights.html)” Da mesma forma que o texto anterior, o site de Human Rights, não oferece subsidio ampliando a ideia destes Direitos. Então o que se pode concluir, é que se fala muito sobre estes direitos mais na hora de elenca-los a ponto de fornecer amplitude de compreensão pouco se pode aludir. O caminho mais acertado é verificar o que se está preceituado na lei. A Declaração de Direitos Humanos é mais clara, expondo os seguintes pontos a serem salientados: Afirma o artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.” No artigo I, a Declaração de Direitos Humanos, vai ao cerne importante de serem estes direitos um […]“ideal comum a ser atingido por todos os povos” […], ou seja, como ideal, tem que se moldar de forma a se estabelecer em cada nação respeitando sua cultura, língua e costumes, avançando demonstrando como empregar esta célula mater: “ através do ensino e da educação, por promover a esses direitos e liberdades, e peã adoção de medidas progressivas de caráter nacional”[…]. A educação e o ensino assumem caráter norteador, neste processo de se tratar de direitos humanos. É perceptível que se depreende do texto a ideia fulgurante de ser a educação e o ensino fundamentais para se compreender em toda sua extensão o que vem a ser Direitos Humanos. Um país que não implementa estes valores a sociedade, requerer que se entenda o caráter principiológico desses direitos, e nem tão pouco se possa pratica-lo em toda sua plenitude. Este é sem dúvida o maior problema enfrentado nos dias atuais, a falta da compreensão que leva a se usar estes direitos de forma equivocada o tempo todo. E pior cobrar das autoridades da segurança pública a aplicação efetiva. A dificuldade é perceptível e inodora. Os artigos IX, X, XI deste mesmo diploma legal, acentua a necessidade se tratar em caso de acusação criminal, de forma especial, com todos os direitos para que a pessoa assim acusada possa ter respeitado seu amplo direito de defesa. E aqui repousa todo problema nos dias atuais suscitados, por grupos, jornalistas, através dos meios de comunicação e dos sites de relacionamentos. A ideia cravada de haver mais direitos para os “bandidos”, do que para o cidadão de bem. Que se pese todo argumento a favor ou contra, os direitos é para todos sem exceção e quando se retira, o que a história recente e antiga mostra é que todos perdem. Não é possível, criar direitos paralelos, exclusivos, sem ferir o direito de todos. A unidade exigida do Direito impede tal construção. Então quando se fala do direito do bandido e do cidadão comum, se comete o primeiro atentado contra dos Direito Humanos, pois, simplesmente não há esta separação, não há o bom e o mal. Há a pessoa, pura e simples. Outro atentado contra os direitos humanos se comete quando se fala de celeridade processual. Ora, como se pode ser célere sem a devida apuração? Tem que se ser cuidadoso a acusar, a levar as raias da justiça quem quer que seja, há inúmeros casos hoje registrados motivado por esta pressa desenfreada. Com isto se evolui para a pressa de se condenar e se retirar de circulação, aqueles que praticam crimes. Voltamos a questão basilar, o direito é para todos, não para uns poucos. E por fim, todos estes argumentos de se separar o direito, ter celeridade processual, condenar rápido, deságua numa fonte comum, a tese da pena de morte e a prisão perpétua, sabiamente impedida na nossa Constituição Federal. Infelizmente, quase que na totalidade dos defensores desta atrocidade ao direito, no fim querem mesmo é defender sua tese de pena de morte e prisão perpétua. O que se pode falar a este respeito? Se há processos que são cometidos erros grosseiros desde sua nascente, até sua consecução, e pessoas são presas, e cumprem penas vítimas de problemas nestas instâncias, o que dizer da pena de morte? Como reabilitar uma pessoa que condenada já foi executada e depois se descobre não era este o caso? Como se faz neste caso? Ou, os países detentores destas penas, não cometem erros crassos? Conclusão Sem a pretensão de polemizar ou, virar um arauto desta o daquela corrente, procurou-se desobstruir a visão, muitas vezes obstaculizada por situações caóticas como estas que vivenciamos todos. Mas no bom intuito de sempre propor um debate com outros argumentos se não só estes oferecidos costumeiramente, outros aqui apresentados, e muitos outros não postos. Percebeu-se na pesquisa, que os sites Anistia Internacional e do Human Rights, pouco ou nada tem feito para possibilitar a compreensão de tema que eles devem defender com voracidade. Causou estranheza tal falta, palavras vagas, subjetividade e falta de caráter mais didático com tema tão portentoso. Destarte, é importante salientar a clareza do texto legal da Declaração onde não se deixa dúvida de seu caráter e motivação. Bem formulada, direcionada sem abuso de devaneio. Por fim, se espera suscitar a pesquisa para poder ampliar de verdade este tema que tem ocupado de forma, muitas vezes errônea as nossas conversas e todos os meios de comunicação. O desafio está lançado!
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-desmistificacao-dos-direitos-humanos-numa-sociedade-cansada-de-injustica/
A Violação do Princípio da Intranscendencia da Pena na Forma do Artigo 5º inciso XLV, em razão da aplicação da lei 11.671/08 que versa sobre transferência de presos para presídios federais de outras comarcas
trata-se de um artigo que objetiva mostrar de uma crítica que há um desrespeito por parte do Estado em cumprir o princípio da transcendência da pena com a aplicação da lei 11.671/08.
Direitos Humanos
Introdução O tema em questão demonstra tamanha repercussão na sociedade, pois observamos que a criminalidade vem crescendo abundantemente, pois na verdade há um caos na sociedade, em razão de haver um desequilíbrio na sociedade no que versa o desequilíbrio educacional e o desequilíbrio financeiro. Quando mencionamos o desequilíbrio educacional, não mencionamos apenas a questão da educação escolar, na verdade adentramos na esfera da educação familiar, pois vemos todos os dias crianças e adolescentes, se portando de maneira mais escusas que trazem uma revolta por toda a sociedade. Na verdade, é bem certo que alguns responsáveis pelos filhos ensinam (educam) os mesmos para enfrentar os detentores de poder que existem na sociedade, começando assim a desrespeitar seus professores junto ao memento educacional nas escolas. Invertendo valores, e ainda esses responsáveis estão em confronto com a forma de educação aplicada pelos professores quando punem seus filhos, daí observamos que esse é o marco principal para o aumento da criminalidade. Agora a questão do desequilíbrio financeiro, já adentra em outra questão, na verdade, o salário mínimo no país é uma miséria, e tem como esboço esse miserável salário mínimo suprir as necessidades básicas, sendo apenas uma balela, mas estar incluído na Constituição Federal de 1988 artigo 7º inciso IV. “In verbis: ”salário-mínimo, fixado em lei nacionalmente unificado capaz de atender as suas necessidades vitais básicas e as de sua família com moradia alimentação educação esporte e lazer vestuário higiene transporte e previdência social” Pois bem quando um trabalhador que se vê acordando de madrugada, para cumprir seu expediente, chega ao final do mês recebe aquele miserável salário mínimo, e observa que com esse salário mínimo não deu para suprir nada que manda a Constituição federal de 1988, o que faz esse trabalhador é ficar revoltado. Chega esse trabalhador a noite em sua humilde residência e observa que vários políticos sejam eles: senadores, deputados federais, deputados estaduais, prefeitos e vereadores etc, aparecem na mídia ostentando belos automóveis bem como belas roupas e jóias daí esse trabalhador se revolta e começa a cometer alguns crimes que entende ser a saída certa para a miséria que se encontra. Mais esquece, esse trabalhador que um dia freqüentou as aulas, mas por uma falta de educação, não quis saber de aprender, e,se qualificar para o mundo do trabalho e obter um maior salário e viver de uma forma tranqüila e digna financeiramente, e evitasse que se inclinasse para o mundo do crime. Como ocorre essa falência por parte da educação e faz com que a criminalidade venha a crescer cada vez mais, e o Estado não mostrar qualquer competência para fazer com que a sociedade venha a dar os devidos créditos. Esse Estado cria várias Leis para esconder as falhas na forma de política, mesmo que essas Leis venham violar direitos básicos fundamentais contidos na Constituição federal de 1988, como é o caso da lei 11.671/08 que viola o princípio da intranscendencia da pena contido no artigo 5º da CF/88 inciso XLV. Do desenvolvimento: O princípio da intranscendência da pena violado pela lei 11.671/08: Trata-se de um princípio básico contido na Constituição Federal de 1988 inciso LXV , em que proíbe o Estado de fazer com que pessoas vinculadas ao infrator de uma norma penal venham a ser penalizadas penalmente por ser meros parentes desse agente infrator. Na verdade trata-se de um direito fundamental contido nos direitos de 2ª dimensão da constituição federal de 1988, trata-se de uma ordem contra o Estado de cunho Negativo, mas o Estado nunca segue os ditames da lei fazendo que haja uma grande demanda no judiciário por meio de habeas corpus para fazer valer a aplicação dos direitos fundamentais com referido principio como é o caso do Habeas corpus: “In verbis:”habeas corpus nº100.87 de são Paulo Relatora Hellen Gracie, Habeas corpus execução penal remoção de presos analise do caso concreto art 86 da LEP estabelecimento prisional similares não demonstrado da falta de segurança. Não caracterização da periculosidade sem dados objetivos e concretos vinculo familiar comprovado. Vaga existente concessão do WRIT”. Quando Observando o julgado acima podemos ver que o Supremo Tribunal Federal teve que e manifestar para impedir que o preso ficasse longe de seu famíliar e essa família não fosse penalizada pela transferência do preso para presídio federal, pois a transferência de presos para presídio federal viola de forma taxativa do princípio da instranscendencia da pena. Onde sem o mínimo de duvida quando o preso é transferido para outro lugar sob a aplicação da lei 11.671/08, faz com que a família também seja penalizada por uma questão simples, as esposas dos presos sempre perdem seus empregos, seus filhos são obrigados a largar os Estudos para residir para o local em que seu Pai foi transferido para efetiva visitação. Na verdade, é um manto jogado pelo Estado para tentar incutir na mente da sociedade que estar trabalhando em prol da diminuição da criminalidade quando na verdade foi a própria falta de competência que fez com que esse fato viesse a tona. Na verdade o sistema carcerário do País estar falido, os presídios nos Estados estão super lotados, além de ser meros calabouços do SECULO XXI, nos temos uma constituição federal denominada cidadã, mas de cidadã nada vemos, começando pelo que foi tido acima na introdução quando mencionamos a miséria do salário mínimo, em verdade estamos vivendo uma catástrofe jurídica, quando observamos que direitos fundamentais vem sendo violados por questões políticas sem o mínimo de respeito a dignidade da pessoa humana. Outra questão que merece tem total atenção é o fato de que a Lei de execuções Penais em seu artigo 1º lei 7210/84, diz que a execução penal tem como fim a integração social do internado ou preso, porém não isso que ocorre no dia a dia. A aplicação da lei penal possui função hibrida na verdade tem a função de punir e função prevenir que o agente venha a voltar-se cometer a infração penal, tem o fim ressociliativo. Porém com o advento da lei 11.671/08, o que nos observamos na qualidade operador de direito e mais revolta do preso quando são transferidos para presídio federais, pois as autoridade espera acontecer catástrofes na cidade como queima de ônibus etc, e pena meia dúzia de presos inclusive com comportamentos excepcionais em suas fichas carcerárias e os transferem para presídio federais e deixam os mesmos por lá por tempo superior determinado pela própria lei 11.671/08. Pois o artigo o artigo 10 da lei 11.671/08 diz o seguinte: “ artigo 10 da lei 11.671/08, a inclusão de presos em estabelecimento penal federal de segurança máxima será excepcional e por prazo determinado” “ parágrafo único primeiro período de permanência não poderá ser superior de 360 dias, renovável excepcionalmente quando solicitado motivadamente pelo juízo de origem observados os requisitos da transferência”. Pois, a bem da verdade há vários presos do Rio de Janeiro a mais de 6 anos cumprindo pena em presídio federal de outro Estado, por questões de políticas, para fazer com que a sociedade acredite nesse governo autoritário e falido que viola direitos fundamentais, como é o caso do princípio da intranscendencia da pena previsto no artigo 5º da Constituição Federal de 88 inciso LXV Quando mencionamos o fato de existirem presos do Rio de janeiro cumprindo pena a mais de 6 anos em presídio federal de outro Estado podemos nos ater ao caso do traficante “Fernadinho Beira Mar”. Que na verdade sofre na pele o autoritarismo do Estado, independente ser o mesmo um traficante a lei tem que ser cumprida. Comprovando o fato temos como fonte a informação do O GLOBO Online “In verbis: “O Globo e Globo Online Publicado: 12/12/06 – 0h00 Atualizado: 12/12/06 – 0h00 RIO – O traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, foi transferido onze vezes desde a sua prisão, em 2001. Em todas as mudanças de carceragem houve pressão de políticos locais contra a presença de Beira-Mar, além de manobras de advogados para tentar trazê-lo de volta para o Rio. O traficante está preso desde o dia 25 de julho no presídio federal de segurança máxima de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul.” 1- COLÔMBIA-BRASÍLIA (25/04/2001) Depois de muito suspense com relação ao destino do traficante, Beira-Mar chegou ao Brasil no dia 25 de abril de 2001. Ele ficou na carceragem da Polícia Federal em Brasília, aguardando decisão do STJ sobre seu destino final. O traficante poderia cumprir pena em Belo Horizonte, de onde fugiu, ou no Rio de Janeiro, onde também já está condenado por tráfico.Chegou a se cogitar a hipótese dele cumprir pena na Colômbia ou até mesmo nos EUA, uma vez que era procurado nos dois países. Em abril de 2001, no entanto, surgiram, em Bogotá, rumores de que as Farc estariam preparando um plano para matar Beira-Mar na prisão. Por causa dessa ameaça, o governo colombiano teria apressado a deportação do traficante. 2- BRASÍLIA – BANGU I (26/04/2002) Beira-Mar foi transferido de Brasília para o presídio de segurança máxima de Bangu I, no Rio, no dia 26 de abril de 2002. Após ter entrado no avião em Brasília, Beira- Mar fez um comentário com o policial federal que o acompanharia durante a viagem. O policial respondeu e o traficante deu algumas gargalhadas. Ao chegar ao Rio, Beira-Mar comemorou: "Estou em casa". A estadia dele em Bangu I foi um caos. Em menos de dois meses foi acusado de negociar 22 fuzis, cem granadas e até um míssil Stinger, de fabricação americana, além de comandar o massacre de seis pessoas no Morro dos Macacos, em Vila Isabel, no dia 24 de maio. As acusações levaram i presídio de Bangu I, que deveria ser de segurança máxima, a ser chamado de 'escritório do crime'. Em vistoria realizada no dia 5 de agosto de 2002 foram apreendidos 114 celulares e 135 carregadores escondidos nos nove presídios do complexo penitenciário de Bangu. No dia 11 de setembro de 2002, Beira-Mar comandou uma rebelião que terminou com a morte de Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, e Robertinho do Adeus, seus inimigos declarados. Celsinho da Vila Vintém sobreviveu, mas foi obrigado a jurar lealdade à facção de Beira-Mar. 3- BANGU I – PRESIDENTE BERNARDES (SP) (27/02/2003) Fernandinho Beira-Mar chegou à Penitenciária Presidente Bernardes, em Presidente Prudente, no interior de São Paulo, em 27 de fevereiro de 2003, depois de comandar diversas ações criminosas no Rio, onde ficou preso por dez meses. 4 e 5 – PRESIDENTE BERNARDES – MACEIÓ – PRESIDENTE BERNARDES Em 27 de março de 2003, foi levado para a sede da Polícia Federal em Maceió, porém, em 5 de maio retornou a São Paulo, onde permaneceu detido em rígidas condições disciplinares, o que desrespeitava a legislação. O tempo máximo que um preso pode ficar em Regime Disciplinar Diferenciado é de 360 dias. 6- PRESIDENTE BERNARDES – BRASÍLIA (23/07/2005) Beira-Mar foi transferido no dia 23 de julho de 2005 da Penitenciária de Presidente Bernardes, interior de São Paulo, para a Superintendência da Polícia Federal (PF) em Brasília. Um comboio com cinco carros da polícia deixou o presídio às 11h27m rumo ao aeroporto de Presidente Prudente. Às 11h55m, Beira-Mar embarcou num avião da PF, com quatro agentes armados de metralhadoras e pistolas. Do aeroporto de Brasília, ele seguiu de helicóptero até a sede da PF. 7- BRASÍLIA – FLORIANÓPOLIS (08/10/2005) O traficante Fernandinho Beira-Mar foi transferido na noite do dia 8 de outubro de 2005 para a sede da Superintendência Regional da Polícia Federal, em Florianópolis. O bandido estava em Brasília e sua ida para Florianópolis foi providenciada em segredo, num avião da própria PF. Segundo o Ministério da Justiça, uma facção do Rio de Janeiro rival à de Beira-Mar pretendia matá-lo em Brasília e isso motivou a transferência do traficante. Segundo o delegado Ildo Rosa, chefe da Comunicação Social da PF, alguns detentos tiveram que ir para outros presídios. Esta foi a forma encontrada para abrir espaço para Beira-Mar, que está sozinho em uma cela. Ainda de acordo com o delegado, o bandido não terá qualquer regalia no local. 8- FLORIANÓPOLIS – MACEIÓ (26/11/2005) Beira-Mar foi transferido no dia 26 de novembro de 2005 de Florianópolis (SC), onde ficou preso por quase dois meses, para a sede da Polícia Federal em Maceió, Alagoas. De acordo com a assessoria de imprensa da PF, a mudança teve caráter técnico, mas fontes informaram que houve negociação política. O governo catarinense chegou a pedir ao Supremo Tribunal Federal a transferência do traficante. O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, também participou das negociações em conversas com o governador de Alagoas, Ronaldo Lessa (PSB). O governo e a Polícia negaram na época que tenha sido identificado um plano para o resgate de Beira-Mar de Florianopólis. No Natal de 2005, o traficante gastou R$ 500 para preparar uma ceia dentro da carceragem, que foi dividida com seus seis colegas de cela. No cardápio servido ao bandido por agentes federais, havia pernil de seis quilos, um peru de sete quilos, bolos, arroz à grega, farofa, pudins, salgadinhos, sorvete e refrigerante. 9- MACEIÓ – BRASÍLIA (24/03/2006) Fernandinho Beira-Mar, foi transferido de Maceió para Brasília no dia 24 de março de 2006, onde está preso na carceragem da Superintendência regional da Polícia Federal. A transferência do bandido, segundo a PF, já estava prevista, pois o plano de custódia inclui o rodízio de prisões. O superintendente da PF no Distrito Federal, Daniel Sampaio, negou que tenha havido pressão de autoridades políticas para tirar Beira-Mar de Maceió. Na carceragem da PF estão presos 37 pessoas, incluindo Beira-Mar, que ficou numa cela com outros quatro presos. 10 BRASÍLIA-CATANDUVAS (18/07/2006) Beira-Mar foi a primeira pessoa a ficar no Presídio Federal de Catanduvas, que foi inaugurado um mês antes de sua chegada. O traficante foi levado do Distrito Federal a Cascavel (PR) em um avião cargueiro da Polícia Federal e de lá seguiu em um comboio de carros descaracterizados da polícia até o presídio. Beira-Mar foi escoltado por agentes da Superintendência da Polícia Federal do Distrito Federal durante toda a transferência. Com capacidade para 208 presos em celas individuais, a penitenciária possui 200 câmeras que monitoram os presos 24 horas por dia. 11 – CATANDUVAS – CAMPO GRANDE (25/07/2007) O traficante saiu da Penitenciária Federal de Catanduvas, no oeste do Paraná, por volta das 11h50m do dia 25 de julho e seguiu de carro até Foz do Iguaçu, onde embarcou em um jato da Polícia Federal para o transporte até Campo Grande. O prazo-limite para a permanência de um detento em cada presídio federal é de um ano. Na ocasião, a transferência de Beira-Mar irritou o governador do Mato Grosso do Sul, André Puccinelli, que afirmou pretender "devolvê-lo" para o Rio de Janeiro "o mais cedo possível". O presídio federal é tido como mais seguro do país. Beira-Mar fica em cela individual e é monitorado 24 horas por dia, segundo informa a direção do presídio” É triste sabermos que em pleno século XXI, não vermos que a vontade do legislador infraconstitucional e do legislador constitucional não vem sendo cumprida, pois a lei maior do Estado democrático que é a Constituição Federal que se mostra nas mãos dos detentores do poder é uma mera carta sociológica como mencionava FERDINAND LASSALLE, infelizmente, não passando de uma folha de papel. Da conclusão: Assim concluímos que há realmente a violação do principio da intranscendencia da pena a luz da lei 11.671/08, quando faz com que pessoas ligadas aos presos sofrem penas reflexas quando no momento da transferência de presos. Penas reflexas já demonstradas acima, na verdade qualquer forma fazer com que pessoas envolvidas com o apenado venha sofrer violações que atinjam a sua dignidade de pessoa humana na verdade são penalidade. Fato esse que não poderia acontecer em razão de haver um direito fundamental esculpido no artigo 5º inciso XLV que versa o seguinte: “Nenhuma pena passará da pessoa do condenado” estar aí o grande princípio da intranscendencia da pena violado por questões políticas aplicada pela lei 11.671/08. Fato esse mencionado sobre a questão política no GLOBO ONLINE, não sendo mera criação aleatória deque a uma grande interferência política no assunto que viola a constituição federal de 1988.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-violacao-do-principio-da-intranscendencia-da-pena-na-forma-do-artigo-5-inciso-xlv-em-razao-da-aplicacao-da-lei-11-671-08-que-versa-sobre-transferencia-de-presos-para-presidios-federais-de-outras-com/
A sociedade tecnocientífica e os limites éticos: uma análise pontual da lei brasileira de inovação
O presente artigo pretende, inicialmente, expor o avançado estado da técnica na sociedade tecnocientífica, que, ao mesmo tempo, supera obstáculos postos ao homem no presente e gera riscos ao futuro da humanidade. Ainda, neste cenário, o estudo tem a intenção de verificar os limites éticos existentes e ventilar a possibilidade de uma nova reflexão ética em relação ao processo de inovação científica e tecnológica. Ao final, será realizada uma avaliação em relação à Lei nº 10.973, de 02 de dezembro de 2004 – Lei Federal de Inovação -, evidenciando a (des)preocupação do legislador em relação aos limites éticos do processo de inovação brasileiro.
Direitos Humanos
1  INTRODUÇÃO A sociedade tecnocientífica, formada no século XX e confirmada no século XXI, é um reflexo do avançado estágio da técnica atingida pelo homem. Num período muito curto da história, o homem atingiu superpoderes capazes de demonstrar sua própria vulnerabilidade. A humanidade conseguiu curar e extinguir doenças, encurtar distâncias, aumentar a expectativa de vida, há conforto, conhecimento e lazer disponíveis. No entanto, ao mesmo tempo, na mesma sociedade, viu-se um poder de autodestruição sem precedentes, com bombas atômicas que varrem cidades inteiras, uma poluição que aquece o planeta e derrete as geleiras, a contaminação da essência da vida – a água. O problema e a solução – ou seria a solução e o problema, ou, talvez, o bem e o mal – são reflexos dos riscos assumidos pelo homem na sociedade tecnocientífica. A técnica tem viabilizado a superação de muitos desafios lançados à humanidade, sendo que o homem também não mede esforços na busca destas soluções, gerando resultados positivos impressionantes e que auxiliam na manutenção do planeta. Entretanto, ao mesmo tempo, em diversas situações, ao lado do resultado positivo, temos um resultado negativo, um efeito colateral gerado pela inovação, também conhecido como risco. Na sociedade atual, o risco vem sendo minimizado e, diante dos benefícios da evolução tecnológica, muitas vezes, ofuscado. Na realidade, o homem, para atingir o desenvolvimento econômico, o poder, entre outras finalidades, utiliza-se da técnica sem qualquer limite.  No presente artigo, pretende-se justamente expor a necessidade de uma reflexão ética sobre os limites da técnica na sociedade tecnocientífica, na qual o homem não mede esforços (nem consequências) para atingir seus objetivos, negligenciando todo e qualquer limite ético, pondo em risco toda a humanidade. Além disso, será objeto de estudo o marco legal da inovação no Brasil – Lei nº 10.973, de 02 de dezembro de 2004 – e a (des)preocupação do legislador em relação aos limites éticos do processo de inovação brasileiro. 2  A TÉCNICA SEM LIMITES NA SOCIEDADE TECNOCIENTÍFICA Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional vivenciou o tenso período da Guerra Fria, marcada por uma luta travada entre dois blocos econômicos, que mediam forças para conquistar adeptos ao redor do Mundo. Neste período, os dois principais representantes destes blocos, Estados Unidos e União Soviética, também travavam uma intensa luta tecnológica. Ambos queriam saber e demonstrar até onde o ser humano podia chegar? Pergunta clássica e repetida por muitas vezes na história, mas que nesta época, em especial, tinha um objetivo: a corrida ao espaço era o limite desejado. Neste sentido, ao longo da história da humanidade, foram os fatores sociais, como a disputa pelo poder, os conflitos armados, a política, as epidemias, etc., os responsáveis por moldarem e desencadearem o processo de evolução e desenvolvimento da inovação tecnológica. Conforme referem FREEMAN e SOETE (2008), os investimentos em inovação foram mudando ao longo da história. Nas décadas de 1940 e 1950, os objetivos militares predominavam nos maiores países; durante as décadas de 1960 e 1970, predominaram objetivos de política econômica, quando o aumento da produtividade começou a adquirir prioridade, mesmo em países com fortes compromissos militares; nas décadas de 1980 e 1990, a maior parte dos gastos foi orientada para promover o desenvolvimento e a difusão das tecnologias da informação e das comunicações; cada período teve suas peculariedades e a inovação necessitou atender a situação pontual, adaptando-se a realidade premente. Atualmente, neste início de século, qual seria o objetivo a ser alcançado pela nossa sociedade? Há tantas necessidades e prioridades universais – como o clima, o combate à poluição, a produção de alimentos, a escassez de água, entre outros –, ao mesmo tempo, há tantos outros problemas locais, que cada nação precisa priorizar e tentar solucionar. Na realidade, vive-se o mundo globalizado, onde todos tem o seu objetivo, mas dividem as angústias dos demais, numa mistura heterogênea, que expõe universos antagônicos espelhados e totalmente dependentes e em constante mudança, invertendo os pesos na balança com uma dinâmica inesperada e sem qualquer aviso. Nesta sociedade global, um tanto confusa, mas totalmente interdependente, os objetivos, além de inúmeros, são dinâmicos, sendo superados diariamente pelo espetacular desenvolvimento científico e tecnológico. A técnica atingiu parâmetros inimagináveis há poucos anos, superando obstáculos e gerando soluções para o desenvolvimento do ser humano e do planeta, não tendo, aparentemente, limites. “No entanto, mesmo hoje a humanidade não está à altura do evento técnico por ela mesma produzindo e, quem sabe pela primeira vez na história, a sua sensação, a sua percepção, a sua imaginação, o seu sentimento se revelam inadequados ao que está ocorrendo. De fato, a capacidade de produção, que é ilimitada, superou a capacidade de imaginação, que é limitada, de modo a não nos permitir mais compreender e, no limite, de considerar como “nossos” os efeitos que o irreversível desenvolvimento técnico é capaz de produzir” (GALIMBERTI, 2006, p. 23). Assim, apesar do atual estágio da técnica da inovação gerada pela comunidade científica e tecnológica, a humanidade ainda encontra muitos obstáculos no seu desenvolvimento pleno. Problemas básicos, como a falta de alimentos, a escassez de água potável, problemas de saneamento, entre tantos outros, assolam a comunidade internacional. Conforme refere ZUBEN (2006, p. 21), a transcendência dos limites por meio da operatividade das tecnociências, da técnica, não encontra correspondência, em igual efetividade, na transcendência simbólica. Assiste-se, assim, a um período paradoxal: em virtude da inédita operatividade das tecnociências o homem é contemplado com superpoderes, o que lhe propicia intenso sentimento de euforia pela conquista, levando ao paroxismo a ideia moderna do progresso. Como resultado surge a crença ingênua de que as tecnociências resolverão os problemas que assolam a humanidade. O enfrentamento dos desafios lançados à comunidade científica, essenciais para o desenvolvimento da inovação, agregam, muitas vezes, além dos resultados positivos, consequências ou reflexos negativos, chamados por muitos doutrinadores como riscos. A palavra “risco”, no sentido de perigo, vem do francês do século XVIII, quando passou a significar “perigo com algum elemento de azar ou acaso”. O risco relativo a inovações tecnológicas, mais precisamente o risco à saúde, à vida e ao meio ambiente, parece ter surgido com a Revolução Industrial, ou seja, com a invenção da máquina a vapor, que tinham um potencial de causar um número maior de acidentes do que outras invenções humanas criadas até o final do século XVIII (SCHULTZ, 2009). Na modernidade tardia, conforme refere BECK (2010), a produção social de riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos. Consequentemente, aos problemas e conflitos distributivos da sociedade da escassez sobrepõem-se os problemas e conflitos surgidos a partir da produção, definição e distribuição de riscos científico-tecnologicamente produzidos. O autor vai mais longe, afirmando que, primeiro, intensifica-se a cientificização dos riscos e, segundo, a comercialização do risco se intensifica. “Erra-se o alvo ao se considerar o assinalamento de ameaças e riscos do desenvolvimento civilizacional como mera crítica; ele é também – mesmo com toda a resistividade e as acrobacias da demonização – um fator de fomento econômico de primeira ordem. Isto torna-se patente no desenvolvimento dos setores e ramos econômicos correspondentes, assim como no aumento dos gastos públicos com a proteção do meio ambiente, o combate às enfermidades civilizacionais etc. O sistema industrial tira proveito dos inconvenientes que produz, e não é pouco proveito” (BECK, 2010, p. 67). Neste contexto, para BECK (2010), autor da expressão “sociedade de risco”, o risco é produzido através da própria evolução tecnológica, ou seja, os reflexos negativos, também conhecidos como efeitos colaterais, são consequências da inovação. Estes “novos” riscos, segundo o autor, são reaproveitados pelo sistema, gerando novas demandas e soluções, em um processo cíclico de evolução tecnológica. A história recente também ilustra muito bem os riscos que podem ser provocados pela inovação tecnológica. Um exemplo que é possível resgatar refere-se à energia nuclear, que passou de arma de destruição em massa, durante a Segunda Guerra Mundial, para uma alternativa energética, citada por muitos como energia limpa, mas que, com acidentes como o de Chernobyl (1986) e Fukushima (2011), expõe os riscos inerentes à tecnologia. Referindo-se ao desastre de Chernobyl, BECK (2010, p. 8) afirma que: “Longe daqui, no oeste da União Soviética, ou seja, de agora em diante, em nosso entorno próximo, aconteceu um acidente – nada deliberado ou agressivo, na verdade algo que de fato deveria ter sido evitado, mas que, por seu caráter excepcional, mas também é normal, ou mais, é humano mesmo. Não é a falta que produz a catástrofe, mas os sistemas que transformam a humanidade do erro em inconcebíveis forças destrutivas. Para a avaliação dos perigos, todos dependem de instrumentos de medição, de teorias e, sobretudo: de seu desconhecimento – inclusive os especialistas que ainda há pouco haviam anunciado o império de 10 mil anos da segurança probabilística atômica e que agora enfatizam, com uma segurança renovada de tirar o fôlego, que o perigo jamais seria agudo”. Ao longo da história, os riscos tem sido negligenciados ou ignorados o máximo possível por líderes políticos para evitar o pânico e a paralisia. Hoje, em dia, eles são ofuscados pelo debate sobre a mudança climática ou outro debate genérico e ideológico, que representa outra prova da nossa incapacidade de pensar sistematicamente (RAICH; DOLAN, 2010). No entanto, por sua dimensão cósmica, por seus efeitos cumulativos e irreversível, os riscos produzidos pelo desenvolvimento da técnica introduzem distorções tão definitivas que criam uma periculosidade sem precedentes na história da vida. A preservação da vida sempre teve um custo, todavia com o homem moderno esse custo, esse preço a ser pago pode ser a destruição total. De maneira proporcional ao incremento da periculosidade do homem, cresce em importância sua responsabilidade como tutor de todas as formas de vida (SIQUEIRA, 1998). A negligência aos riscos é motivada especialmente pela ganância instaurada na atual sociedade internacional. Tanto a iniciativa pública como a privada enxergam na inovação tecnológica a ponte para o seu desenvolvimento econômico, ofuscando-se os riscos gerados com o processo tecnológico e deixando-se de lado o aspecto social. Diversos doutrinadores, como MOURA E SILVA (2003), afirmam que a evolução tecnológica é hoje reconhecida como um dos principais motores do crescimento econômico devido ao seu impacto no aumento da produtividade. A inovação de processos e a introdução de novos produtos no mercado geram efeito direto sobre a economia, quer dos países industrializados quer dos países em vias de desenvolvimento. Diante deste panorama e prevendo uma evolução na área do conhecimento, muitas nações e instituições privadas investem pesado na inovação tecnológica, focando especialmente a solução para problemas internos e estimulando a competitividade de suas indústrias no mercado nacional e internacional. “Hoje em dia, sem esta ação coordenando esforços, investindo, estimulando o desenvolvimento industrial e particularmente o tecnológico, a economia corre sérios riscos de declínio e de ser levada à situação de satélite de economias mais poderosas, a ponto do comprometimento da independência nacional não só no plano econômico e técnico, como no político” (BARBOSA, 2011, p. 04). O foco no aspecto econômico exclusivamente prossegue o processo de deteriorização do meio ambiente e minimiza a importância do próprio ser humano, conforme refere CASAGRANDE JR. (p. 2, 2012): “Aliado a isto se vê um processo de globalização que acelerou o aumento da pobreza mundial e suas consequências como deteriorização da saúde e da dignidade humano. Esta não tem trazido à maioria dos trabalhadores uma melhor qualidade de vida, ao contrário, tem colaborado para o aumento da diminuição de renda entre os mais pobres. A despeito da economia mundial ter produzido quase US$ 41 trilhões em bens e serviços durante 1999, 45% da receita ficou para os 12% da população mundial que vive nos países industrializados do ocidente”. A mudança tecnológica é um processo social e institucionalmente incorporado. Os modos de utilização das tecnologias são condicionados pelo respectivo contexto socioeconômico. No mundo atual, isso significa basicamente os valores e as motivações de empreendimentos comerciais capitalistas operando dentro de um sistema muito competitivo. As escolhas e utilizações das tecnologias são influenciadas pela busca de lucros, acúmulo de capital e investimento, aumento da fatia do mercado etc. (DICKEN, 2010). Além disso, conforme refere FREITAS (2003), a emergência dos procedimentos científicos para a avaliação e o gerenciamento de risco, mais do que uma resposta técnica às preocupações coletivas, converteu-se também numa determinada resposta política à formação de consenso nos processos decisórios. Baseado tanto na perspectiva utilitarista e no paradigma do ator racional, como na concepção elitista de democracia, seu desenvolvimento se deu com o objetivo subjacente de transformar determinadas escolhas sociais, políticas e econômicas em “problemas” puramente técnicos e científicos. Assim, torna-se um elemento estratégico para despolitizar os debates, envolvendo a aceitabilidade do risco, e os processos decisórios envolvendo o desenvolvimento, difusão e controle de tecnologias consideradas perigosas, encobrindo, assim, tanto as grandes incertezas sobre suas consequências em larga escala social, como valores subjetivos e os interesses sociais, políticos e econômicos que determinam seus resultados. A dependência do desenvolvimento econômico e o condicionamento das decisões políticas à evolução tecnológica vem comprometendo os limites morais estabelecidos na sociedade, gerando riscos a nossa civilização e comprometendo nosso ecossistema. Neste sentido, JUNGES (2004), utilizando o modelo da “nave espacial” de K. Boulding, alerta sobre a produção dos riscos da evolução tecnológica, expondo que a Terra um sistema fechado, finito e auto-reprodutor, onde a natureza e os seres humanos estão intimamente relacionados. Um incidente na nave porá todos em perigo. Não se pode sacrificar a estabilidade e integridade do nosso meio de transporte, a nave Terra, com a satisfação de interesses privados. Por isso é necessário criar as condições para chegar a consensos que submetam as preferências individuais aos interesses do ecossistema Terra. Diferente da primeira, que é deontológica, essa é utilitarista porque tenta maximizar os benefícios, em parte empíricos, mas também valorativo-espirituais. Assim, conforme refere ENGELMANN (2011), o conhecimento deve ter um papel fundamental na sociedade, assegurando a tomada de decisões favoráveis ao ser humano e ao meio ambiente, pelo ingresso da razão prática, que deverá agir dentro de um determinado espaço de tempo. A inovação tecnológica deve ser vista como uma aliada do ser humano na construção do seu futuro. Para isso, ela necessita ser gerenciada considerando valores éticos essenciais, que visam justamente promover e proteger o ser humano e o meio ambiente. Numa sociedade de risco, como refere BECK (2010), há necessidade de questionar os limites possíveis para o processo de inovação ou deve-se questionar se é necessário realizar tudo que a técnica viabiliza? Se tudo que a técnica viabiliza deve ser acessível ao consumidor? Ou, quem pode ter acesso a esses produtos inovadores? 3  A SOCIEDADE TECNOCIENTÍFIA E OS LIMITES DA TÉCNICA A técnica avança a fronteira de seus limites continuamente. A sociedade internacional necessita, principalmente sob o aspecto econômico, desta inovação tecnológica, tornando-se o homem um refém do novo. Criam-se novos problemas – como acima é mencionado, através dos riscos e efeitos colaterais das soluções de outros problemas – para alimentar a ânsia desta cíclica sociedade tecnocientífica.   Evidente, que não há como menosprezar os benefícios trazidos pela inovação tecnológica ao ser humano e também para o seu meio. No entanto, os custos e os riscos assumidos pela nação universal foram altos e, em muitos casos, irreversíveis. Neste sentido, JUNGES (2004, p. 52), tentando alertar sobre os riscos e conseqüências da industrialização, afirma: “É inegável que a industrialização melhorou significativamente a vida dos seres humanos, mas provocou igualmente efeitos desastrosos, que agora ameaçam aqueles que ela própria procurou beneficiar. As conseqüências negativas não são fruto da própria ciência e técnica, mas da falta de uma cultura mais sistêmica do ambiente e de um igualitarismo em relação rurais. A civilização industrial provocou a acentuação do dualismo ser humano e natureza, a exploração dos recursos naturais para atender às crescentes necessidades humanas, o desenvolvimento de tecnologias com impacto sobre o meio ambiente, o uso e a exploração de novas fontes de energia, o aumento exponencial da população, o aumento da complexidade dos sistemas sociais pelo surgimento de classes sociais e pelo desaparecimento de modos alternativos de vida devido à massificação cultural. Tudo isso levou a um dissídio crescente entre a sociedade humana e o meio ambiente, a divisões e discriminações na sociedade humana.” Tanto os riscos, como os dissídios provocados no interior da sociedade humana e desta e o seu meio pelos avanços da ciência e da técnica, sobretudo nos últimos cinquenta anos, bem como a intervenção desta ciência cada vez mais crescente em domínios até então inalcançáveis pela ação do homem tem, conforme refere BRAGATO (apud ENGELMANN, 2011, p. 20) suscitado grandes preocupações éticas, uma vez que a hegemonia do discurso tecnocientífico vem constituindo, de forma penetrante, o paradigma a partir do qual a humanidade tem se movido desde a modernidade. O ser humano assiste, nos últimos tempos, a um crescente despertar de consciência ética em relação a diversos desafios levantados pelos avanços científicos e pelo progresso econômico e técnico. A humanidade começa a dar-se conta de que nem toda descoberta científica e nem toda vantagem tecnológica trazem sempre efeitos puramente benéficos para as pessoas e a sociedade. Ela acorda da visão ingênua de uma ciência isenta de interesses espúrios e de uma técnica limpa e benéfica (JUNGES, 1999). Conforme refere JONAS (2006), a esfera do produzir invadiu o espaço do agir essencial, então a moralidade deve invadir a esfera do produzir, da qual ela se mantinha afastada anteriormente, e deve fazê-lo na forma de política pública, que tenham por objetivo conservar o mundo físico, de modo que as condições para a presença humana permanecem intactas, e a vulnerabilidade do ser humano. “O poder tecnológico transformou aquilo que costumava ser exercícios hipotéticos da razão especulativa em esboços concorrentes para projetos executáveis. Na escolha entre eles devemos escolher entre extremos de efeitos distantes, em sua maioria desconhecidos. A única coisa que realmente podemos saber sobre eles é o seu extremismo propriamente dito: que eles dizem respeito à condição geral da natureza em nosso planeta e ao tipo de criaturas que devem ou não habitá-lo. A escala inelutavelmente “utópica” da moderna tecnologia leva a que se reduza constantemente a saudável distância entre objetivos quotidianos e últimos, entre as ocasiões em que podemos utilizar o bom senso ordinário e aquelas que requerem uma sabedoria iluminada” (JONAS, 2006, p. 63). Na realidade, o agir coletivo-cumulativo-tecnológico é de um tipo novo, tanto no que se refere aos objetos quanto à sua magnitude, sendo que, para seus efeitos, deixou de ser eticamente neutro[1], exigindo a determinação de uma resposta. Outrossim, conforme refere BARRETTO (2013), com a técnica moderna, a ação humana alcançou novas formas de poder, que desenvolveram capacidades, antes desconhecidas pelo homem, de manipular as leis da natureza humana e extra-humana, tornando o homem extremamente vulnerável na sua individualidade, ameaçando, assim, toda existência humana futura do planeta. A imposição de limites éticos à sociedade tecnocientífica é necessária e urgente. A sua reflexão definirá e determinará o futuro da sociedade internacional, especialmente sob o aspecto econômico e social. A proteção do ser humano e do seu meio ambiente não pode ser desprezada em favor de reflexos econômicos e políticos. No atual modelo, sem limites claros, conforme refere SIQUEIRA (1998), a técnica se converte na essência do poder e passou a ser a manifestação natural das verdades contidas na ciência. Se a ciência teórica podia ser chamada de pura e inocente, a tecnociência, ao ser intervencionista e modificadora do mundo, não o é.  A práxis – que, conforme JONAS (2006), reduziu-se a poiesis, transformando a ética em política e, por consequência, dando legitimidade para que o homem atuasse de acordo com os interesses implícitos nas relações de poder – deve sempre ser passível de uma reflexão ética, ainda mais quando a pergunta ética que está ligada ao futuro e à tecnociência de uma forma especial é a seguinte: O que vamos fazer do homem? O questionamento acima pode ser respondido e observado de vários pontos de vista, como, por exemplo, o desenvolvimento social ou econômico, o aspecto ambiental, o reflexo humanitário, a soberania dos povos, entre outros. Na realidade, estes aspectos sociais serão (ou deveriam ser) a base para a resposta construída pela necessária e urgente reflexão ética a ser realizada em relação à sociedade tecnocientífica. Além disso, conforme refere de forma pontual BRAGATO (apud ENGELMANN, 2011), os problemas e impasses éticos gerados pela tecnociência devem tomar a dignidade humana como valor-fonte a ser invocado como freio às possíveis intervenções ilimitadas que coloquem definitivamente em risco a continuidade da espécie humana. Porém, para isso, é necessária a remodelação de antigos conceitos e o principal deles é o de pessoa humana, na medida em que esferas do humano, até então imunes a outros tipos de ação que não a da natureza, necessitam de tutela. A pergunta sobre os limites da ação humana pressupõe, antes, a redefinição do que conta como efetivamente humano e, portanto, do que é digno de respeito e proteção. Outro aspecto que deve ser observado antes de evoluirmos na reflexão sobre a limitação ética da sociedade tecnocientífica, invocado por BECK (2010), ainda na década de 1980, é definir que tipo de ciência já vem sendo praticada no que diz respeito à previsibilidade de seus efeitos colaterais supostamente imprevisíveis. “O fiel da balança nesse contexto é saber: se persistirá a superespecialização que produz efeitos colaterais a partir de si mesma e que parece, com isto, confirmar sempre de novo sua inevitabilidade, ou se será possível reencontrar e desenvolver a força necessária para uma especialização voltada para o contexto; se a capacidade de aprendizado no relacionamento com efeitos práticos será recuperada ou se, em vista dos efeitos práticos, serão geradas irreversibilidades que se baseiam na suposição da infalibilidade e que tornam, já de saída, impossível o aprendizado a partir dos erros práticos; em que medida, justamente ao lidar com os riscos da modernização, é possível substituir o tratamento dos sintomas por uma eliminação das causas; em que medida as variáveis e causas apontadas fazem com que os tabus práticos em torno dos riscos “autoinfligidos em termos civilizatórios” sejam cientificamente reproduzidos ou rompidos; enfim, se riscos e ameaças serão metódica e objetivamente interpretados a contento ou serão cientificamente multiplicados, menosprezados ou encobertos” (BECK, 2010, p. 238). No mesmo sentido, KUHN (apud ENGELMANN, 2011) afirma que a revolução científica é um episódio de desenvolvimento não-cumulativo, no qual um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior, sendo que estes momentos revolucionários precisam ser percebidos e colocados ao dispor do progresso humano em diversos níveis, e podem ser expressos na seguinte capacidade humana: “se pudermos aprender a substituir a evolução-a-partir-do-que-sabemos pela evolução-em-direção-ao-que-queremos-saber”. Dar-se conta do saber e do aprender, será fundamental para que a revolução científica possa ter seus resultados focados nas necessidades do ser humano. Além disso, para que uma revolução científica alcance resultados ambientais e humanamente aceitáveis deverá ser perspectivada por meio de planejamento e gestão dos riscos e das possibilidades. Além do mais, a mencionada passagem traz à colação a aprendizagem humana da tradição, ou seja, é fundamental lançar-se mão do já sabido a fim de projetar o pretendido, aquilo que se busca alcançar. Uma das possíveis soluções, indicada por BECK (1999), para o futuro das inovações tecnológicas poderia ser encontrada, por exemplo, em uma tentativa de apoiar politicamente o desenvolvimento de técnicas em suas zonas de risco tendo em vista a criação de alternativas. A ideia é desenvolver uma nova concepção do processo de inovação tecnológica, que se voltasse para a indicação de caminhos alternativos e não para a produção de fatos irreversíveis. Deixando a projeção da futura reflexão ética sobre a sociedade tecnocientífica e ingressando efetivamente na atual realidade desta, JONAS (2006) refere que os pressupostos da ética clássica se tornaram insuficientes para tratar os problemas da ação técnica, exigindo-se uma reflexão sobre o desenvolvimento de um paradigma ético fundado em uma nova dimensão de responsabilidade. Neste sentido, BARRETTO (2013) afirma que o problema moral central na contemporaneidade talvez se encontre no cerne das indagações éticas a respeito do progresso científico e técnico, principalmente, no campo das ciências da vida. E esse problema nuclear consiste no embate entre duas concepções de responsabilidade. Trata-se da construção de uma concepção humanista da ética, que seria caracterizada pela subsistência de duas responsabilidades, que não seriam excludentes, a responsabilidade do bem – que obriga a preservação – e a responsabilidade do melhor – que determina o progresso ou o aperfeiçoamento qualitativo da vida humana. “Dessa forma, teríamos uma ética que refletisse e fornecesse argumentos para preservar o ritmo do progresso científico e técnico, próprio da contemporaneidade, e o bem maior que reside na qualidade de vida da pessoa humana. O componente propriamente ético dessa cultura, que se constrói em torno da ciência, servirá, assim, não como limitador do progresso científico, mas como elemento humanizador. A teoria da responsabilidade contemporânea, especificamente levando em conta a realidade tecnocientífica, deverá privilegiar essas duas faces de uma mesma moeda” (BARRETTO, 2013, p. 93). Além disso, neste contexto da responsabilidade, desenvolvida especialmente por Hans Jonas, o poder humano deve ser restringido pelo dever de cuidado diante da vulnerabilidade da natureza. Ou seja, o homem torna-se responsável pelo que estiver no âmbito do seu poder de interferência na natureza e, em consequência, pela repercussão da sua ação atual nas gerações futuras (BARRETTO, 2013). A natureza, como fonte geradora do ser humano, é a base de nossa subsistência, sendo impossível separar o homem da natureza sem uma desconfiguração da vida humana. “Mesmo que fosse possível separar as duas coisas – ou seja, mesmo que em um meio ambiente degradado (e em grande parte substituído por artefatos) fosse possível aos nossos descendentes uma vida digna de ser chamada humana, mesmo assim a plenitude da vida produzida durante o longo trabalho criativo da natureza e agora entregue em mãos teria direito de reclamar nossa proteção. Mas, como é impossível separar esses dois planos sem desfigurar a imagem do homem, e como naquilo que é mais decisivo – a saber, na alternativa “preservação ou destruição” – os interesses humanos coincidem com o resto da vida, que é sua pátria terrestre no sentido mais sublime da expressão, podemos tratar as duas obrigações sob o conceito-chave de dever para com o homem, sem incorrer em um reducionismo antropocêntrico” (JONAS, 2006, p. 229). Assim, a responsabilidade moral, representada pela responsabilidade do bem e do melhor – que, para JONAS (2006), aponta para o bem humano, o qual concebido em sua generalidade é o mesmo para todas as épocas, sua realização ou violação ocorre a qualquer momento e seu lugar completo é sempre o presente – conjugada com o dever de cuidado diante da vulnerabilidade da natureza (ou seja, do próprio homem e do seu meio) implicam na limitação da ciência e orientam as ações do ser humano para o futuro. A definição acima é apenas um passo inicial de uma discussão dos limites éticos da sociedade tecnocientífica. A proteção e a promoção do ser humano e do meio ambiente são condições inegociáveis sob o ponto de vista ético, mas, ao mesmo tempo, também servem de suporte ao próprio processo de inovação. Neste sentido, a delimitação “fina” das fronteiras éticas da sociedade tecnocientífica, considerando os parâmetros de proteção e promoção do ser humano e do meio ambiente, necessitam ser deliberados e acordados pela comunidade internacional. Ou seja, há necessidade de determinar qual a proteção e a promoção do ser humanos e do meio ambiente necessária e possível? Qual é o ser humano e o meio ambiente que necessita de promoção e proteção? 4  A TÉCNICA E A ÉTICA NA LEI BRASILEIRA DE INOVAÇÃO A história da humanidade demonstra que a liberdade técnica, ou seja, sem a determinação de limites éticos, pode levar a extremos que são capazes de comprometer o ser humano e o seu meio. A determinação de fronteiras éticas nos liames da técnica é indispensável diante do atual progresso científico do homem. No atual estágio do desenvolvimento tecnológico, a liberdade humana alcançou tamanhas proporções que passou a atingir a liberdade dos organismos e a colocar em risco o dinamismo da vida e a existência de toda natureza. A presença desta ameaça fica obscurecida por um niilismo que trata a matéria exterior como um mecanismo disponível ao domínio do ser humano, sem qualquer valor e sem finalidade. Nesta concepção niilista do mundo, o homem compreende que possui legitimidade para violentar a natureza e dela se apoderar segundo seu interesse (BARRETTO, 2013). Conforme refere SIQUEIRA (1998), a sociedade está acostumada a conviver com problemas de limites definidos que pouco servem para atender as complexas indagações éticas que ora se apresentam. A falta de sintonia entre o extraordinário progresso da tecnociência e os tímidos avanços dos mandamentos éticos podem gerar resultados desastrosos para o homem. A tecnociência somente enxerga o preto e o branco, onde a ética percebe o cinza e suas diferentes tonalidades. Trabalhar com perspectivas como, por exemplo, a prudência – definida no Catecismo da Igreja Católica como a virtude que dispõe a razão prática a discernir em qualquer circunstância nosso verdadeiro bem e a escolher os meios adequados a realizá-lo, ou por Aristóteles, em Ética Nicômaco, como recta ratio agibilium (a reta razão do agir), a virtude da razão prática ordenada à direção das ações humanas –, que difere, porém, da arte em sentido próprio, que visa à perfeição de coisas exteriores, no sentido que tende à perfeição do próprio agente: visa a tornar boa, honesta, a própria vontade (NEDEL, 2000), não é suficiente para inibir a ganância da atual sociedade, que explora a ciência para atingir objetivos específicos, sem medir consequências em relação aos riscos. Apesar de filósofos, como Kant, afirmarem que em matéria de moral a razão humana pode facilmente atingir um alto grau de exatidão e perfeição mesmo entre as mentes mais simples. Que não é necessária uma ciência ou filosofia para se saber o que deve ser feito, para se ser honesto e bom, e mesmo sábio e virtuoso. A inteligência comum pode ambicionar alcançar o bem tão bem quanto qualquer filósofo pretenda para si. O autor refere ainda que mesmo inexperiente na compreensão do percurso do mundo, incapaz de preparar-me para os incidentes sucessivos do mesmo, ainda assim posso saber como devo agir em conformidade com a lei moral (JONAS, 2006). Na realidade, os cientistas, que habitualmente preferem dedicar-se a seus microscópios e desprezam as reflexões filosóficas, permanecem distantes da realidade humana e social do homem, conforme o próprio Einstein chegou a dizer, que avaliados pela ética de filósofos e epistemológicos sistemáticos, os cientistas não passariam de “uns oportunistas sem escrúpulos”. A verdade é que, do ponto de vista sociológico, o discurso científico é hoje, para o cidadão comum, um discurso obscuro no seu conjunto (SIQUEIRA, 1998). Para frear a liberdade e a imprudência humana na sociedade científica a imposição de limites éticos faz-se necessária. O modo de impor estes limites é amplamente discutido pela sociedade internacional. A transferência do discurso ético para o universo jurídico é a solução desejada pelos filósofos contemporâneos, especialmente pela eficácia que o direito é capaz de determinar para os princípios éticos. “Existe uma interdependência necessária entre ética e direito. São dois âmbitos do conhecimento sobre o agir humano. O enfoque e a metodologia divergem, mas o objetivo é o mesmo. Um vê a ação humana referida à intencionalidade da consciência moral e o outro toma em consideração os resultados externos de uma ação avaliados por um ordenamento legal. Tendo o mesmo objeto de análise, as duas ordens do conhecimento prático exigem-se mutuamente. A ordem jurídica remete à ordem moral para fundamentar a validade e a vigência das normas e dos processos jurídicos e justificar os valores que sustentam a ordem constitucional. Ordenações jurídicas que não têm base ética não conseguem impor-se. A ordem moral remete à ordem jurídica para ter força jurídica e eficácia prática no sentido de possibilitar a convivência social e educar para as exigências éticas de uma ordem democrática. Princípios éticos que não recebem uma configuração jurídica são inócuos na incidência sobre a realidade” (JUNGES, 1999, p.123). Neste sentido, surge o questionamento se é legítimo legislar sobre a prática científica. Provavelmente, os cientistas oportunistas e inescrupulosos referidos por Einstein teceriam longas considerações sobre a premissa de que a pesquisa científica deveria ser inteiramente livre, não se devendo opor qualquer barreira ao desejo de conhecimento. No entanto, na ótica das responsabilidades do bem e do melhor, referidas por Hans Jonas, há a necessidade de norteadores comuns para a sociedade tecnocientífica, que necessariamente devem ter como base a ética, e parâmetros que assegurem a proteção e a promoção do ser humano e do meio ambiente. Diante da necessidade destes norteadores comuns, o presente artigo propõe um exercício inverso, verificando-se, na Lei de Inovação Brasileira (Lei nº 10.973, de 02 de dezembro de 2004), considerada como o marco da inovação no Brasil, a existência de parâmetros éticos que determinem e assegurem a proteção e a promoção do ser humano e do meio ambiente. A Lei Federal de Inovação, conforme refere o seu art. 1º, estabelece medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, com vistas à capacitação e ao alcance da autonomia tecnológica e ao desenvolvimento industrial do País, nos termos dos arts. 218 e 219 da Constituição. No atendimento aos preceitos da Constituição Federal de 1988, a Lei de Inovação, atende os propósitos do desenvolvimento científico, de um lado, e os propósitos da pesquisa e capacitação tecnológica, de outro lado. “A CF/88 reconhece e identifica duas formas de pesquisa: a pesquisa científica básica, art. 218, parágrafo primeiro, recebendo tratamento prioritário do Estado, não dirigida à solução de questões técnicas específicas vinculadas à atividade econômica e tendo como objetivo o bem público e o progresso das ciências; e a pesquisa tecnológica, art. 218, parágrafo segundo, voltada preferencialmente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional. Com este fito o Estado apoiará a formação e a capacitação dos necessários recursos humanos – art. 218, parágrafo terceiro” (VEGA GARCIA, 2008, p. 110). Assim, enquanto que a pesquisa científica é direcionada para toda a humanidade e para o progresso científico, a pesquisa tecnológica é um instrumento de desenvolvimento social, atendendo à população na medida em que resolva, prioritariamente, os problemas brasileiros, voltando-se para o desenvolvimento econômico nacional e regional. Neste sentido, deve-se ressaltar que o enfoque principal da Constituição Federal é o interesse e a solução dos problemas brasileiros, assim como o efetivo desenvolvimento nacional e a diminuição das diferentes e enormes desigualdades e contrastes sociais e espaciais, além da defesa intransigente da soberania política (VEGA GARCIA, 2008). Neste contexto, o conteúdo da Lei Federal de Inovação destaca alguns objetivos específicos, como: a) constituição de um ambiente propício às parcerias estratégicas entre as universidades, institutos tecnológicos e empresas, b) estimulo à participação de instituições de ciência e tecnologia no processo de inovação, c) normas de incentivo ao pesquisador-criador, d) incentivo à inovação na empresa e e) apropriação de tecnologias. Além dos objetivos acima, BARBOSA (2006) apresenta outros, denominados de extrajurídicos, e com o propósito de incentivar a inovação, visando o aumento da competitividade empresarial nos mercados nacionais e internacionais: “a) Possibilitar o uso do potencial de criação das instituições públicas, especialmente universidades e centros de pesquisa, pelo setor econômico, numa via de mão dupla; b) Facilitar a mobilidade dos servidores públicos, professores e pesquisadores, da Administração para a iniciativa privada e para outros órgãos de pesquisa; e c) Para tais fins, alterar a legislação de pessoal, a de licitações, e prever certos subsídios e incentivos fiscais.” A estrutura da Lei de Inovação, segundo FEKETE (apud ABRÃO, 2006), parece adequada para atingir os propósitos de criar um ambiente favorável à inovação e à cooperação, possuindo poder educativo de difundir uma nova cultura com relação à propriedade intelectual, tanto na proteção quanto na sua implementação no mercado produtivo. A edição da Lei de Inovação repercutiu de forma positiva em todas as esferas econômicas nacionais, trazendo consigo o objetivo principal de mudar o rumo do desenvolvimento nacional, tentando incutir na mentalidade dos agentes econômicos brasileiros a necessidade do desenvolvimento tecnológico. No entanto, não há como focar ou vincular a inovação tecnológica somente ao aspecto econômico. Conforme refere BOCCHINO (2010), a pesquisa e o desenvolvimento devem ser direcionados para atender às necessidades humanas e desta forma cumprir um importante papel no desenvolvimento social e tecnológico do país. Assim, a inovação, necessariamente, deve ter como base e princípio a necessidade e manutenção do ser humano, há necessidade de observar o aspecto econômico e o aspecto social. Neste contexto, a Lei nº 10.973, de 02 de dezembro de 2004, em seu art. 2º, IV, define a inovação como a introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo ou social que resulte em novos produtos, processos ou serviços. Importante salientar a lição de BARBOSA (2011), que refere que a inovação será um passo no procedimento que desde a criação até o uso social desta; representa o estágio em que essa criação chega ao ambiente produtivo ou social ou, também, a chegada de uma utilidade no ambiente social, com ou sem efeitos no sistema produtivo. Salienta ainda BARBOSA (2011, p. 41), que, ainda “que imprecisa, a definição é crucial para definir o alcance, limites e interpretação da Lei. O fim de suas normas é propiciar esse processo que leva as criações tecnológicas ao estágio de utilidade social”. Outrossim, conforme ressalta GRIZENDI (2011), a definição de inovação na Lei de Inovação federal é genérica, e, ao citar também o ambiente social e serviços, a lei federal tenta estender a lei à inovação não necessariamente tecnológica, porém, sem explorar tal viés ao longo dos seus artigos. Considerando o conceito de inovação extraído da Lei Federal de Inovação percebe-se claramente que o foco está integralmente voltado ao aspecto industrial e, consequentemente, econômico. A Lei não contempla qualquer referência ao ser humano ou ao meio ambiente no seu conceito de inovação e, mais preocupante, não menciona, igualmente, nenhum aspecto relacionado com a proteção e promoção do ser humano e do meio ambiente em todo o seu teor. A omissão da Lei Federal de Inovação, não prevendo qualquer preocupação com a promoção e proteção do ser humano e do meio ambiente, expõe claramente as preocupações apontadas nos capítulos anteriores, quais sejam: 1) a possibilidade de inovação sem limites; 2) a ausência de limites éticos para a inovação. Entretanto, a omissão da Lei também não quer dizer que não existam parâmetros éticos para o processo de inovação brasileiro, pois há direitos fundamentais constitucionalizados que nos condicionam este suporte ético. O que é necessário apontar, é que a Lei Federal de Inovação poderia ou, talvez, deveria ser o norteador comum, referido no capítulo anterior, que com base na ética determinaria os parâmetros de proteção e promoção do ser humano e do meio ambiente. Neste sentido, conforme refere NEDEL (2000), a humanidade tem de reinventar, a cada passo, o seu caminho, redirecionar o seu agir, agora inclusive por uma questão de sobrevivência, ante as múltiplas perspectivas, nem todas promissoras, que o avanço do saber teórico e prático lhe propicia, sendo que não há tempo a perder, as discussões éticas necessitam tomar o centro das discussões no universo jurídico da sociedade tecnocientífica. Além disso, ENGELMANN (2011) sustenta, com razão, que o ser humano e o meio ambiente são dois elementos inegociáveis na criação dos marcos regulatórios e na gestão da inovação. Conforme exposto anteriormente, o processo de inovação, em diversos aspectos, pode direcionar riscos para o ser humano e o meio ambiente, motivo da preocupação necessária com a proteção e promoção do ser humano e do meio ambiente. O momento de se estabelecer a relação entre o presente e o futuro, para que se possa estabelecer um sistema de deveres e direitos, é agora. As políticas públicas, conforme refere BARRETTO (2013) com base no imperativo de Hans Jonas, devem ser trabalhadas, tendo em vista o longo prazo, mas que ao mesmo tempo sejam aplicáveis no presente, tempo real para decidir o futuro. Deste modo, e para que assim possa ser feito, não somente os governantes, mas principalmente os legisladores tem papel fundamental no estabelecimento desta nova ética. O legislador deverá aspirar ao estabelecimento duma forma política viável que tenha duração, se possível inalterada, promovendo e zelando o melhor para o futuro. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A evolução tecnológica do século XX não teve precedentes na história da humanidade. Num período curto, a técnica teve um desenvolvimento impar, gerando inúmeros benefícios à sociedade internacional. No entanto, junto com os resultados positivos, a evolução tecnológica também expôs diversos riscos, sendo que alguns representam uma grande preocupação para a manutenção do ser humano no planeta. No atual estágio da técnica, concedendo superpoderes ao homem, os riscos gerados na sociedade tecnocientífica tem o potencial de comprometer a existência do ser humano. A pretensão e ganância do homem explorando a técnica ao máximo para atingir o desenvolvimento econômico e o poder, deixaram em alerta a humanidade sobre a necessidade uma reflexão ética na nova sociedade tecnocientífica. A técnica sem limites trouxe graves problemas e riscos evidentes ao ser humano e ao seu meio, gerando uma preocupação com os atuais parâmetros éticos (não) utilizados no processo de inovação científica e tecnológica. Os atuais limites éticos estão sendo ultrapassados diante do veloz progresso científico e tecnológico. Uma nova reflexão é necessária, o homem precisa de limites para a sua técnica, aparentemente, sem limites. Neste contexto, alguns autores como Hans Jonas e Vicente P. Barretto, afirmam que há necessidade de parametrizar o risco no extremo, gerando o que chamam de heurística do temor ou do medo. Ou seja, há necessidade da sociedade tecnocientífica temer os riscos que gera através de seu processo de inovação. No atual estágio, não há mais espaço para discussões sobre a liberdade da pesquisa científica ou tecnológica, no sentido da estipulação de limites éticos inibir o desenvolvimento da técnica. A sociedade tecnocientífica transformou-se efetivamente na sociedade do risco, referida por Ulrich Beck, não tendo mais espaço e tempo há perder com discussões supérfluas, pois, agora, é o futuro do ser humano que está em jogo. No entanto, a construção de um limite ético para a sociedade tecnocientífico não é uma tarefa simples, mas exige uma profunda reflexão, que, necessariamente, deve consagrar, além do conteúdo ético, a posição da própria técnica. A determinação de parâmetros éticos, além de não inibir a técnica, deve ter como base a real necessidade do ser humano no presente conjugada com a dosimetria dos riscos para as gerações futuras. Ou seja, tudo que o homem necessita, não deve prejudicar as gerações futuras. Nesta lógica, há de se concordar com a maioria dos filósofos, que definem o próprio ser humano e o seu meio ambiente como os parâmetros de proteção e promoção que devem nortear o novo discurso ético. Além disso, também defendem a positiva desta nova realidade ética da técnica na era da sociedade tecnocientífica. Diante destas constatações, o presente artigo propôs um exercício de avaliação da atual Lei Federal de Inovação – Lei nº 10.973, de 02 de dezembro de 2004. Nosso marco legal da inovação no Brasil, infelizmente não contempla qualquer menção em relação à proteção e promoção do ser humano e do meio ambiente. Na realidade, a Lei apresenta um conteúdo totalmente técnico e direcionado exclusivamente para o aspecto econômico da inovação, destoando do discurso dominante, que direciona a necessidade dos legisladores observarem os limites éticos da técnica, justamente para conseguir fixar norteadores necessários para os processos de inovação vinculados a alçada do instrumento legal. Apesar de ser difícil compreender a posição e opção do legislador, omitindo-se em relação à qualquer limite ético à técnica, também é compreensível, haja vista que a legislação é complementar e recepciona os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal do Brasil. No entanto, perdeu-se uma ótima oportunidade de expor reflexões éticas, no âmbito jurídico, como limites à inovação, pois, conforme refere Wilson Engelmann, o ser humano e o meio ambiente são condições inegociáveis.
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Da (in)constitucionalidade do inciso II, do artigo 1.641 do Código Civil frente os princípios constitucionais pátrios
O inciso II, do artigo 1.641, do Código Civil prevê que os maiores de setenta anos ao contrair matrimônio, terão que, por obrigatoriedade, fazê-lo sob o regime de separação de bens. Assim foram apontados os variados regimes de bens adotados pela legislação pátria, bem como seus institutos e características. Ao decorrer do desenvolvimento deste trabalho, serão feitas várias análises que possibilitarão uma compreensão mais ampla acerca de tal instituto, demonstrando assim, se tal norma padece de amparo legal, tornando-se inconstitucional.O princípio da dignidade humana, o direito a liberdade, são institutos inerentes à todas pessoas, sem distinção de qualquer condição, específica ou não. Sendo assim, tais elementos são primordiais e devem ser observados, principalmente por estar-se diante de uma sociedade onde impera o Estado Democrático de Direito e seus respectivos princípios. Entretanto, observa-se que tal restrição imposta, é resquício da postura patrimonialista do Código Civil, a qual deve ser modificada. A obrigatoriedade trazida pelo artigo em tela, constitui afronta àqueles que por sua vez, desejam se casar, mas em função de sua idade não podem optar por regime diverso àquele estabelecido, gerando assim, discórdias entre os princípios basilares previstos na Constituição Federal, e a situação restritiva estabelecida pelo legislador.[1]
Direitos Humanos
1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por objetivo a discussão a respeito da possível inconstitucionalidade presente no artigo 1641 do Código Civil que impõe o regime de separação de bens para os maiores de setenta anos. Na atual conjectura, a análise será feita frente aos princípios basilares interpostos pela Carta Magna O tema em tela é de grande relevância frente a realidade atual, que adota e tem por base os princípios relativos a um Estado Democrático de Direito, que tem como fundamentos basilares a isonomia e dignidade da pessoa humana, os quais são de suma importância para construção de uma sociedade sem preconceitos e distinções entre seus indivíduos. Partindo desse pressuposto, verificar-se-á, ao desenrolar do tema, que o legislador agiu mal ao estabelecer uma idade limite para a escolha do regime patrimonial de bens daqueles que por vontade própria, quisessem contrair matrimônio. Serão feitas análises e comparações no âmbito social e jurídico, que por sua vez, indicarão se o ser humano, enquanto capaz, embora com setenta anos ou mais, poderá dispor de seu patrimônio e aferir decisões que melhor lhe aprouver. Sendo assim, procurar-se-á compreender se o legislador ao estipular a idade limite para escolha do regime de bens do matrimônio, obsta o indivíduo dos princípios e garantias estabelecidos pela Constituição Federal. Sendo assim, o objetivo traçado pelo presente trabalho é a compreensão jurídica e fática dos princípios norteadores inculcados à escolha de regime de bens, bem como a abrangência de sua aplicabilidade na realidade e no dia-a-dia dos cidadãos brasileiros, inclusive os maiores de setenta anos. O estudo a ser desenvolvido, abarcará o enfoque social, a conceituação de alguns institutos e o debate junto ao ordenamento brasileiro. Serão apresentados argumentos embasados na Constituição Federal de 1988, na doutrina esparsa, entendimentos jurisprudenciais e legislação. Para possibilitar a desenvoltura desse trabalho, serão adotados os tipos de pesquisa teórica, bibliográfica e documental. Isso pela utilização de materiais já elaborados, quais sejam códigos, doutrinas, artigos científicos, livros, de diferentes autores e posicionamentos, bem como jurisprudências que ilustram as decisões e julgamentos do ordenamento jurídico contemporâneo. O método dedutivo propiciará o desenvolvimento da pesquisa e do trabalho almejado. Este procedimento metodológico fará com que, partindo dos efeitos teóricos e práticos da legislação vigente, haja a localização do problema e seu trato pertinente. Procedimentos técnicos de apreciação temática interpretativa e comparativa serão utilizados nessa construção. Por fim, faz-se necessário esclarecer que para o desenvolvimento do presente trabalho, optou-se para divisão em cinco capítulos. No primeiro capítulo, há especificação dos tipos de regimes adotados pela legislação brasileira, onde haverá conceituação e exposição das características pertinentes, bem como, a possibilidade de alteração de regime de bens. Abordar-se-á no segundo capítulo, a isonomia entre os cônjuges no Direito brasileiro, bem como, seus reflexos patrimoniais no âmbito do Direito Civil. No terceiro capítulo, será analisada a situação do idoso no Brasil, abordando, para fim, as garantias trazidas pela Constituição Federal, as quais foram reafirmadas pelo Estatuto do Idoso. Já no capítulo quarto, haverá a explicitação dos ordenamentos pátrios estrangeiros do Mercosul, incluindo o Chile, na parte que dizem a respeito dos regimes de bens adotados pelos nubentes. Será abordado também, uma proposta de unificação de legislação, com base na proximidade financeira e social dos países, as quais ensejam a uma possível uniformização para melhor adaptação jurídico-social entre os membros. Por fim, no quinto capítulo, será analisada a restrição legal imposta pelo legislador e sua possível inconstitucionalidade frente aos princípios inculcados na realidade jurídico-legislativa brasileira. Para tanto, serão enfocados, primordialmente, os princípios da dignidade humana, juntamente com o princípio da isonomia, os quais são liames esculpidos na Carta Magna promulgado em 1988. 2 DO REGIME DE BENS MATRIMONIAIS 2.1 Conceito Sabe-se que a união entre duas pessoas, que de forma manifesta expressa a vontade em constituir o âmbito familiar, enseja ao casamento, a compreensão, contribuição, a assistência mútua, indo muito além do caráter meramente econômico. Não obstante, desta também advém reflexos patrimoniais, que se estendem até a dissolução da sociedade conjugal. Ou seja, na constância do mesmo, o casal terá que organizar suas despesas, administrando-as de forma mais conveniente, surgindo então o regime de bens. O Estado considera a família, a base de tudo, conforme preconiza o artigo 226 da Constituição Federal. Em razão disto, cabe a ele intervir interpondo uma série de requisitos à celebração do casamento, à escolha e determinação do regime de bens, de forma a regulamentar a vida a dois. Maria Helena Diniz se expressa da seguinte forma, quanto ao regime de bens: “Regime matrimonial de bens, é o conjunto de normas aplicáveis às relações e interesses econômicos resultantes do casamento. É constituído, portanto, por normas que regem as relações patrimoniais entre marido e mulher, durante o matrimônio.”[2] Desse modo, mostra-se completamente necessário o estabelecimento de regime de bens entre os nubentes, pois, sem o mesmo, não subsistiria o casamento. Nosso Ordenamento Pátrio, adota, como regra geral, a liberdade de escolha dos regimes de bens. “É lícito aos nubentes, antes de celebrar o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.”[3] Entretanto, consoante ao exposto acima, é necessário o estabelecimento de um pacto antenupcial para estipulação do regime de bens que melhor os aprouver. Segundo Lafayette, mencionado por Caio Mário: “É lícito aos cônjuges escolher o regime de suas preferências, combina-las, ou estipular cláusulas de sua livre escolha e redação, desde que não atentem contra os princípios da ordem pública, e, não contrariem a natureza e os fins do casamento.”[4] 2.2 Do pacto antenupcial e da modificação do regime de bens. O Código Civil, em seu teor, permitiu a alteração de bens, mediante autorização judicial solicitada por ambos os cônjuges, sendo que, nesse diapasão, serão aferidas e apuradas as razões invocadas, e, ressalvado o interesse de terceiros. Ressaltando que, a lei atual não estabelece um prazo mínimo para possibilitar esse requerimento. Diante dessa flexibilidade, na ausência de manifestação dos nubentes, vigorará o regime de comunhão parcial de bens, e, o termo inicial do regime de bens, segundo o dispositivo predominante, é a partir da data do casamento. Enuncia o artigo 1.639 do Código Civil, o princípio capital de arbitrarem os nubentes, o regime que melhor lhes aprouver, lembrando que, dentro deste liame, comportam-se exceções, como nos casos citados no artigo 1641 da mesma legislação, onde há imposição da lei, para que seja predominante o regime de separação de bens. Outro princípio, devidamente discorrido acima, é o da autonomia da vontade dos cônjuges. Os esposos tem a sua disposição supletivamente, o regime da comunhão parcial, o qual é estabelecido por lei. Sendo assim, na hipótese de não terem elaborado o pacto antenupcial, será o regime predominante na relação. Entretanto, como mencionado, tem os nubentes ampla oportunidade em faze-los, adotando os demais regimes descritos pelo legislador, ou, combinando-os entre si. Conforme preleciona Maria Helena Diniz: “Os nubentes tem a livre escolha do regime que lhes convier, para regulamentar os interesses econômicos decorrentes do ato nupcial, já que, como não estão adstritos à adoção de um daqueles tipos, tal como se encontram definidos em lei, podem combina-los, formando um regime misto ou especial, sendo-lhes lícito, ainda, estipular cláusulas, desde que respeitados os princípios de ordem pública, os fins e a natureza do matrimônio”.[5] Sobre a mutabilidade do regime, no entendimento de Pontes de Miranda, citado por Daniela Silmara Lisandra: “Os princípios que dominam o direito brasileiro e em geral, o dos povos contemporâneos, são o da variedade dos regimes matrimoniais e o da liberdade das convenções patrimoniais. […] O princípio da liberdade permite não só escolher um dos regimes previstos e regulados, como também modifica-los, e combina-los […]”[6] Maria Berenice Dias, vai mais além. Em seu entendimento, a expressão “alteração de regime de bens”, não significa apenas a possibilidade de se trocar um regime por outro, mas também a possibilidade de introduzir modificações no decorrer do matrimônio.[7] Anteriormente, o Código Civil de 1916, não permitia sua revogabilidade, conforme estava previsto em seu artigo 216: “O regime de bens entre cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento e é irrevogável.”[8] Dentro desse parâmetro, na constância do matrimônio, não poderiam os cônjuges optarem por regime diverso àquele estabelecido no pacto antenupcial. A mutabilidade do regime de bens, gerou longos debates, a respeito de ser ou não mais benéfica à modificação do código, no sentido de se permitir a mesma. Não obstante, existia também, nesse liame, o cuidado do legislador para com a mulher, que, na época não estava em pé de igualdade com o marido. A mulher, nessa constância, não tinha autonomia para sequer administrar os bens do matrimônio. Para Caio Mário da Silva Pereira: “A imutabilidade do regime de bens foi estabelecida visando evitar pressões, influências e solicitações na constância do casamento que pudessem conduzir um dos consortes a alterar o regime econômico do matrimônio com grave risco para seus próprios haveres e possível prejuízo para os credores e herdeiros”.[9] É compreensível a cautela do legislador naquela época, porém, não mais nesses dias, onde existe a igualdade entre os cônjuges, a qual é amplamente idealizada na realidade contemporânea, e estabelecida na Constituição Federal. Ademais, a possível mutabilidade do regime, não assegura a um dos cônjuges a plena garantia de que o outro não cometerá qualquer tipo de ilicitude, ou fraude sobre o patrimônio comum. Ou seja, não se pode esperar que a lei ou norma, venha coibir em qualquer circunstância, as práticas ilícitas. Na visão de Maria Helena Diniz, a respeito da mutabilidade de regime de bens: “O regime de bens que era inalterável, afora pequenas exceções introduzidas jurisprudencialmente, pode hoje ser modificado mediante decisão judicial, a requerimento de ambos os consortes, catando-se as razões por eles apresentadas no pedido, ressalvados os direitos de terceiros. Louvável foi essa medida legislativa, pois os nubentes poderão, com sua inexperiência, escolher mal o regime, e, depois com o tempo e convivência conjugal, vão percebendo que outro seria mais adequado aos seus interesses. Todavia, poderá a mutabilidade do regime acarretar o ludibrio de um dos cônjuges pelo outro, que acreditando nas vantagens por ele apontadas, vem ser, posteriormente surpreendido com um pedido de separação judicial e de meação dos bens que outrora inexistia”.[10] Observa-se que a alteração efetuada, veio como forma de possibilitar eventuais modificações no regime anteriormente escolhido pelos nubentes, diante de possíveis desavenças que possam ocorrer na constância do matrimônio, garantindo assim, maior seguridade familiar. 2.3 Do Regime da comunhão parcial O presente é considerado o regime legal, adotado quando houver silêncio dos nubentes, ou, quando existir o pacto nupcial, este for nulo. Basicamente, tal regime é aquele em que há comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento, com exclusão daqueles que são mencionados no art. 1659 do Código Civil, como, por exemplo, os bens que foram adquiridos por um dos cônjuges, antes do matrimônio, e os que sobrevieram por doação ou sucessão. Assim menciona Silvio de Salvo Venosa: “A ideia principal da comunhão parcial, ou comunhão de adquiridos, como é conhecido no Direito Português, é a de que os bens adquiridos após o casamento, os aquestos, formam a comunhão de bens do casal. Cada esposo guarda para si, em seu próprio patrimônio, os bens trazidos antes do casamento. […] Na comunhão parcial, comunhão de aquestos ou separação parcial, como também é denominado esse regime, existem três massas de bens: os bens do marido e os bens da mulher trazidos antes do casamento e os bens comuns, amealhados após o matrimônio.”[11] Na visão de Rolf Madaleno, citado por Daniela Silmara Lisandra, tal regime atende uma lógica necessária. Vejamos: “Trata-se de regime que atende a certa lógica, e dispõe de um componente ético: o que é meu, é meu, o que é teu, é teu e o que é nosso, metade de cada um. Assim, resta reservada a titularidade exclusiva dos bens particulares e garante a comunhão do que for adquirido na constância do casamento. Nitidamente, busca evitar o enriquecimento sem causa de qualquer dos cônjuges. O patrimônio familiar passa a ser integrado pelos bens comuns, que não se confundem com os bens particulares e individuais dos sócios conjugais”.[12] No que tange à comunicabilidade dos bens do presente regime, esses não se confundem, tampouco se tornam um só. Comunicam-se apenas os bens da vigência do casamento. O código civil, no seu art. 1660, explicita os bens que se comunicam. Vejamos: “I – os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges; II – os bens adquiridos por fato eventual, com ou sem concurso de trabalho ou despesa anterior. III – os bens adquiridos por doação, herança ou legado, em favor de ambos os cônjuges; IV – as benfeitorias em bens particulares de cada cônjuge; V – os frutos dos bens comuns, ou dos particulares de cada cônjuge; percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão”.[13] São claros tais dispositivos. A exemplo de fato eventual, enquadra-se o prêmio de loteria. Entretanto, em outro liame, os bens móveis, presumem-se adquiridos na constância do casamento, salvo prova em contrário, de que tenha sido adquirido anteriormente. Resta-se configurada, na hipótese supra citada, a necessidade de descrição minuciosa dos bens móveis, no pacto antenupcial, sob pena de serem reputados como comuns. Contrário do que se dá na comunhão universal, alguns bens não se comunicam com o esposo, permanecendo a cada um, o que já possuía antes de casar. Pode-se dizer que, a comunhão de bens é mais intensa na comunhão universal, e, menos intensa na comunhão parcial. Vejamos o art. 1659, do Código Civil: “I – Os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e o que lhes sobrevierem, na constância do matrimônio por doação ou por sucessão, e os sub-rogados em seu lugar; II – os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges, em sub-rogação aos bens particulares; III – as obrigações anteriores ao casamento; IV – as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal; V – os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão; VI – os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge; VII – as pensões, meio-soldados, montepios e outras rendas semelhantes.”[14] Em regra, como se observa, a comunhão será formada pelos bens que os nubentes adquirirem na constância do matrimônio, de forma onerosa. No que diz respeito à dissolução, restarão comunicados, para efeitos de partilha, apenas os bens comuns, excluindo as hipóteses dos artigos 1659 e 1661 do código civil. Ressalte-se, que, cessado o regime da comunhão parcial pela separação, morte, divórcio ou anulação do casamento, os bens que, anteriormente não se comunicaram, continuam sobre propriedade de cada consorte. 2.3.1 Da administração dos bens na comunhão parcial Conforme dispõe o art. 1663 do Código Civil, a administração do patrimônio comum, compete a qualquer um dos cônjuges. Nó código de 1916, tal administração cabia ao marido, o que não mais podia vigorar após a promulgação da Constituição Federal de 1988, onde é equiparado os direitos entre homens e mulheres. As dívidas contraídas no decorrer dessa administração, obrigam os bens comuns e particulares do cônjuge que os administra, e os do outro na razão do proveito auferido. No parágrafo segundo do artigo supra, há expressa disposição de que é necessário a anuência de ambos os cônjuges, para os atos a título gratuito, que impliquem cessão do uso ou gozo dos bens comuns. Assim, a título exemplificativo, não será válido o comodato de um imóvel do casal, a terceiro, se ambos os cônjuges não anuírem a respeito. Será portanto, tal negócio, anulável. Finaliza ainda, o parágrafo terceiro do artigo 1663 que, “em caso de malversação dos bens, o juiz poderá atribuir a administração a apenas um dos cônjuges.”[15] No exemplo em tela, a má administração de um dos cônjuges, que coloque em risco o patrimônio comum, levará ao afastamento do mesmo da administração. Se em alguma hipótese, um dos cônjuges ocasionar prejuízo ao outro, devido a má administração, esta ficará obrigado a reparar, nos termos gerais do artigo 186 do Código Civil. Consoante o exposto em art. 1664 do presente código, os bens comuns responderão pelas obrigações contraídas pelos cônjuges, para atender aos encargos do lar.[16] Em contramão, estabelece o art. 1666, que as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges, na administração de seus bens particulares, não obrigam os bens comuns, o que é bem lógico.[17] 2.4 Da comunhão universal de bens Nesse regime, a priori, comunicam-se todos os bens do casal, presentes e futuros, ressalvados algumas exceções legais contidas no artigo 1667. Via de regra, tudo que entra para o acervo dos cônjuges, ingressa na comunhão. No código anterior ao atual, o regime de comunhão universal era o regime legal supletivo. Uma vez que, se o homem e a mulher eram unidos espiritualmente, seus respectivos patrimônios também deveriam ser unidos. Porém, essa ideia se perdeu nos dias atuais, tendo o legislador que proceder à alteração do dispositivo que assim permitia. Sendo assim, como o regime em tela deixou de ser o regime legal, se os cônjuges optarem pelo mesmo, precisarão fazê-lo mediante pacto antenupcial. Para Sílvio Salvo Venosa, no regime em tela, há um patrimônio comum, que será constituído por bens presentes e futuros. Nesse diapasão, ambos esposos, terão a posse e a propriedade em comum, indivisa de todos os bens, móveis e imóveis, cabendo a cada um, a metade ideal. Em conseqüência, terão também o direito de defender a posse e a propriedade dos bens. [18] Observa-se que a princípio, todos os bens se comunicam, com exceção daqueles citados no artigo 1668 do Código Civil. No regime da comunhão universal, há um patrimônio comum, que por sua vez, é constituído por bens presentes e futuros. Os cônjuges tem a posse e propriedade indivisa de todos os bens, móveis, imóveis, cabendo-lhes a metade ideal, configurando assim, o condomínio conjugal. No que tange à administração dos bens, as regras a serem usadas são as mesmas explícitas do regime de comunhão parcial, e, no que couber, são aplicáveis os dispositivos do art. 1663 do Código Civil. Quanto à dissolução do mesmo, o artigo 1671 do Código Civil expressa: “Extinta a comunhão, e efetuada a divisão do ativo e do passivo, cessará a responsabilidade de cada um dos cônjuges para com os credores do outro.” [19] Nesse sentido, preleciona Maria Berenice Dias: “Com a dissolução do vínculo, ou melhor, quando do fim da vida em comum, solve-se a comunhão de bens, e, em consequência, cessa a responsabilidade de cada um para com os credores do outro. Pacificado essa em sede jurisprudencial que a separação de fato rompe o estado condominial dos bens e dívidas contraídas durante a convivência do casal. Mesmo antes da partilha dos bens, descabido impor a um o ônus por dívidas contraídas pelo outro depois de findo o convívio.” [20] 2.4.1 Bens excluídos da comunhão universal Mesmo existindo um condomínio de natureza específica, nada impede que existam exceções que criem um patrimônio especial em determinadas situações que previamente são descritas em lei. Descreve o artigo 1668 do Código Civil: “São excluídos da comunhão: I- Os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar; II– Os bens gravados de fideicomisso e o direito do herdeiro fideicomissário, antes de realizada a condição suspensiva; III– As dívidas anteriores ao casamento, salvo se provierem de despesas com seus aprestos, ou reverterem em proveito comum; IV– As doações antenupciais feitas por um dos cônjuges ao outro com a cláusula de incomunicabilidade; V– Os bens referidos nos incisos V a VII do art. 1.659”.[21] No que tange aos bens da herança necessário que se imponha a cláusula de incomunicabilidade. Quanto aos bens gravados de fideicomisso, o mesmo institui a propriedade resolúvel e restrita do fiduciário. Como o fiduciário recebe o bem com o encargo de transferi-lo, sua propriedade não é plena, e por tal motivo não poderá ser objeto de comunicação.   2.4.2 Da administração dos bens Ao regime descrito, será aplicado o disposto no regime de comunhão parcial. Em relação aos bens comuns, a administração compete a qualquer um dos cônjuges. Em relação aos bens particulares, a administração compete ao cônjuge proprietário, exceto disposição contrária estabelecida no pacto antenupcial. Depois do advento da Constituição Federal de 1988, a administração passou a ser para ambos os cônjuges, e a sociedade matrimonial, deixou de ter a chefia exclusiva do marido. 2.5 Da participação no final dos aquestos No regime de participação no final dos aquestos, não há discussão acerca do regime patrimonial durante a vigência do matrimônio, sendo assim, cada cônjuge possui autonomia em relação aos seus bens. A comunicação importar-se-á apenas na sua dissolução. Nesse diapasão, disserta João Baptista Villela, citado por Tula Wesendonck: “O regime da participação final nos aquestos, pretende conciliar o regime da comunhão-que, além de expressar a unidade de vidas do casal, assegura aos cônjuges mútua proteção econômica – com o regime da separação – que confere autonomia conjugal. Assim, ao mesmo tempo que define uma participação de cada cônjuge nos incrementos patrimoniais do outro, evita a constituição de uma massa comum de bens.”[22] O que se tem nesse regime é que a participação, não é nos bens adquiridos em si, uma vez que, não há comunhão dos bens, mas sim participação do valor dos bens adquiridos a título oneroso na constância do casamento. Preceitua Douglas Phillips Freitas, mencionado por Patrícia Cristina Farias do Nascimento: “Trata-se de uma amálgama entre o regime de separação e de comunhão parcial de bens, onde preserva, em linhas gerais, a incomunicabilidade de cada um dos bens adquiridos antes e após o casamento, mas possibilita a comunicação de bens que, conjunta e deliberadamente, foram adquiridos na constância do casamento.”[23] Trata-se de um regime de separação de bens, no qual cada consorte tem a livre e independente autonomia para administrar seus bens pessoais da melhor maneira que lhes couber. De tais bens poderá dispor livremente, exceto quando o referido bem, for imóvel, necessitando assim da outorga do outro cônjuge. O mesmo é encarado como regime que substitui o regime dotal, não por suas características, pois essas se aproximam do regime de separação de bens, juntamente com do regime de comunhão parcial, formando um regime misto. Devido a liberdade de cada um dos cônjuges, no momento da dissolução, serão apurados o montante do aquesto, desde a data que cessou a convivência, como forma a coibir lesão a um dos consortes, que até então não se encontrava na administração ou propriedade de determinado bem. Importante salientar a crítica feita a tal regime, pois entende que se presta a fraudar a partilha. Mister salientar a crítica feita por Silvio Salvo Venosa, a respeito do regime em estudo: “É muito provável que esse regime não se adapte ao gosto da nossa sociedade. Por si só verifica-se que se trata de estrutura complexa, disciplinada por nada menos que quinze artigos, com inúmeras particularidades. Não se destina, evidentemente, a grande maioria da população brasileira, de baixa renda e de pouca cultura. Não bastasse isso, embora não seja dado ao jurista raciocinar sobre fraudes, esse regime ficará sujeito a vicissitudes e abrirá campo vasto ao cônjuge de má-fé. Basta dizer que este cônjuge poderá adredemente esvaziar seu patrimônio próprio, alienando seus bens, como subterfúgios ou não, de molde que não existam bens ou qualquer patrimônio para integrar a comunhão quando do desfazimento previamente engendrado da sociedade conjugal. Sabemos que a necessidade da outorga conjugal para a alienação de imóveis não obsta a condução de vontade, a supremacia da vontade de um dos cônjuges sobre o outro no recôndito do lar. Isto trará sem dúvida uma instabilidade não só ao consórcio, como também aos terceiros que contratam com o casal nesse regime. Levante-se até mesmo a necessidade, de lege ferenda, de um período suspeito para os atos de disposição de bens, que poderão ocorrer em fraudes contra terceiros e contra o próprio cônjuge, tal como existe na falência. Essas cautelas podem até mesmo ser colocadas na escritura do pacto, mas transformariam, sem dúvida, o casamento estritamente em um negócio patrimonial. Aliás, esse pacto, por si só, já denota um negócio patrimonial que suplanta o cunho afetivo que deve conter o casamento. O casamento passa a exigir uma contabilidade permanente, sob pena de ser impossível efetuar a comunhão de aquestos final.”[24] Assim, pelo que foi destacado, percebe-se algumas das desvantagens advindas de quem opta por esse regime. 2.5.1 Da administração dos bens Cada um dos cônjuges administra livremente os bens adquiridos anteriormente ao casamento e os sub-rogados em seu lugar. A livre administração também se estende aos bens que forem adquiridos durante o casamento a título gratuito, por sucessão ou doação, bem como as dívidas relativas a tais bens. Os bens móveis poderão ser dispostos pelo consorte da maneira que melhor aprouver, ressaltando o caso dos bens imóveis, quando necessitará da outorga prévia do cônjuge. 2.6 Da separação convencional e obrigatória A característica principal desse regime, consiste no fato de que os cônjuges poderão praticar atos de disposição sem que seja necessária a anuência do outro cônjuge. Nesse diapasão, não serão mais necessário a autorização do cônjuge para alienar, ou até mesmo impor ônus real pelo titular do patrimônio, inclusive sobre os bens imóveis. Não há, nesse sentido, uma união de patrimônios, tampouco sua futura comunicação. Segundo Maria Berenice Dias, nesse sentido: “O casamento não repercute na esfera patrimonial dos cônjuges, podendo cada um livremente alienar e gravar de ônus real o seu patrimônio. O patrimônio passado, presente e futuro, não se comunicam, nem durante o casamento, tampouco quando da sua dissolução. Cada um conserva com exclusividade o domínio, a posse e a administração de seus bens, assim como a responsabilidade pelas suas dívidas anteriores e posteriores ao casamento”.[25] Dessa forma, estabelece o artigo 1687 do Código Civil: “Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real.” Na concepção de Douglas Phillips Freitas, citado por Daniela Silmara Lisandra: “Trata-se de um regime que respeita a individualidade dos cônjuges, onde o patrimônio existente, antes e após a união, não participa da comunhão do casal. Embora o artigo 1688 do Código Civil traga numa linguagem constitucional, ao invés do que havia no código anterior, que “ambos os cônjuges são obrigados a contribuir para as despesas do casal na proporção dos seus rendimentos”, para a opção desse regime, é necessário o pacto antenupcial, que por sua vez, poderá estipular o contrário da determinação de que o casal é obrigado a comumente, sustentar o lar.”[26] O regime em tela, não se manifesta apenas pela vontade dos consortes (separação convencionada), mas também, por imposição da lei (separação obrigatória). No Direito brasileiro, o regime de separação pode ter origem legal e convencional, sendo que, o regime legal, está previsto no artigo 1641 do Código Civil. 2.6.1 Da separação convencional A separação convencional, é o regime adotado através do pacto antenupcial. Nesse regime existem dois patrimônios distintos: o do marido, e o da mulher. Os bens posteriores ou anteriores à celebração do casamento, são de propriedade individual de cada um dos cônjuges, o mesmo acontece com as responsabilidades pelas obrigações assumidas, que recaem sobre o cônjuge que vias de fato, praticou o ato. Quando aos bens adquiridos em comum, leciona Maria Berenice Dias, citada por Tula Wesendonck: “Os bens adquiridos em comum se regem pelas regras do condomínio. Cada um dos cônjuges administra livremente os seus bens, mantidos os princípios gerais do Direito de Família referentes à assistência marital, cuja exigência independe do regime de bens vigente.”[27] Atualmente, prevalece o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que poderá ser reconhecida a caracterização de uma sociedade de fato entre cônjuges casados sob o regime convencional de separação de bens, desde que exista a devida comprovação de que, vias de fato, houve conjunto esforço para a formação do patrimônio comum. Cada um dos cônjuges, nesse diapasão, contribui para o sustento do casal em proporção ao seu patrimônio, salvo se houver acordo que disponha ao contrário. 2.7 Da separação obrigatória ou legal Em alguns casos, não há liberdade para que os cônjuges escolham o regime de bens o qual serão submetidos. Serão, por fim, obrigados a contrair matrimônio pelo regime de separação total. Segundo o artigo 1641, do Código Civil, é obrigatório tal regime, quando: “Art. 1.641 É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I- das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial”.[28] Quando se estiver diante das situações descritas no artigo supra, embora os cônjuges tenham se casado pelo regime da separação total, haverá comunhão de bens adquiridos na constância do casamento, por força da súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, a qual estabelece que: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.”[29] Segundo Paulo Lobo, citado por Tula Wesendonck: “Na prática, os cônjuges que casam pelo regime de separação legal, estão casando pelo regime de comunhão parcial de bens, já que somente não haverá comunicação pelos bens adquiridos anteriormente ao casamento, mas se comunicarão os bens adquiridos na sua constância, por haver uma presunção absoluta (ressalte-se: sem admitir prova em contrário) de que os bens adquiridos pelos cônjuges decorrem do seu esforço comum.”[30] Conforme Maria Berenice Dias, no que tange à separação obrigatória, em todas as hipóteses em que a lei impõe esse regime, busca, de certa forma, assegurar o patrimônio de alguém. Porém, certas restrições são descabidas. Vejamos: “Em todas as outras previsões legais que impõe a mesma sanção, ao menos existem justificativas de ordem patrimonial, ou seja, consegue-se identificar a tentativa de proteger o interesse de alguém. Com relação aos idosos, há presunção absoluta de senilidade. De forma aleatória, e sem buscar seque algum subsídio probatório, o legislador limita a capacidade de alguém exclusivamente para um único fim: subtrair a liberdade de escolher o regime de bens quanto ao casamento. A imposição da incomunicabilidade é absoluta, não estando prevista nenhuma possibilidade de ser afastada a condenação legal.” [31] 3 A ISONOMIA ENTRE CÔNJUGES NO DIREITO BRASILEIRO E SEUS REFLEXOS PATRIMONIAIS NO CÓDIGO CIVIL A evolução histórica do Direito de Família, é de valiosa importância para compreender os aspectos que marcam a atual determinação do modelo de família e para entender a extensão da aplicabilidade do princípio da isonomia conjugal, trazido pela Constituição Federal. Tal princípio, não pode ser entendido mediante uma simples interpretação literal, pois, poderia assim, obter um efeito contrário ao que defende. Isso decorre da própria realidade social, a qual, nitidamente, não está baseada numa sociedade patriarcal. Vejamos a concepção de tal princípio, segundo o entendimento de Alexandre de Freitas Câmara: Primeiro entre os corolários do devido processo legal é, sem dúvida, o princípio da igualdade, também chamado de princípio da isonomia. Consagrado na Constituição da República no caput de seu artigo 5º, através da tradicional fórmula de enunciar que “todos são iguais perante a lei”, o princípio da isonomia tornou-se verdadeira obsessão legislativa em nosso país. O legislador, a todo momento, sente-se obrigado a enunciar uma igualdade que não precisava ser reafirmada, uma vez que está expressa como garantia fundamental na Constituição.” [32] 3.1 O princípio da isonomia entre cônjuges na Constituição Federal de 1988 A aplicabilidade do princípio da isonomia entre os cônjuges, tem gerado grandes debates, devido a indagação da necessidade ou não, de previsão legislativa que regulamente a matéria. Atualmente, prepondera a orientação de que, tal princípio, será protegido primordialmente, e que sua aplicação será imediata, tendo em vista que a Constituição Federal não fez menção a qualquer limitação quanto ao alcance de tal princípio. Tula Wesendonck disserta a respeito, da seguinte maneira: “A Constituição Federal, não tratou simplesmente a igualdade como sendo um “direito fundamental do cidadão”, mas estabeleceu que é um “objetivo fundamental da República””. [33] Fazendo uma breve análise entre o modelo familiar do Código Civil de 1916, e do recente modelo adequado a novas normas, percebe-se que são modelos totalmente distintos. Hoje, a família é mais plural, democrática e igualitária. A aplicabilidade do princípio da isonomia conjugal, fez surgir um novo modelo que família, baseado nas relações de afeto, no amor, na solidariedade mútua como razões primordiais do casamento. Tais concepções, influenciaram na construção do Código Civil vigente e repercutiram também na esfera patrimonial. 3.2 O princípio da isonomia entre cônjuges no Código Civil Quanto a aplicabilidade imediata ou não dos dispositivos constitucionais que zelam pelam isonomia, afirma João Baptista Villela, citado por Tula Wesendonck que o legislador ordinário, deve ter cuidado ao formular novas leis. Tal assertiva tem por base o fato de que, todos os dispositivos legais devem estar sobre o liame da isonomia, e que, posteriormente, todos os dispositivos que contrariem a Constituição, serão inconstitucionais.[34]  A título de exemplo, pode-se citar a redação original do atual Código Civil, o qual concedia ao homem a direção da sociedade conjugal, dando maior enfoque à sua vontade, e contribuindo a mulher, papel de colaboradora. Em virtude da flagrante desigualdade estampada no artigo, houve a conseqüente propositura das emendas 817-824 no Congresso Nacional, e sua eventual aprovação, conferindo ao homem e a mulher a direção da sociedade conjugal. Nesse liame, verifica-se a desigualdade entre os cônjuges no tratamento dado pelo Código Civil, a respeito da idade limite para escolha do regime de bens. Trata-se do disposto no artigo 1641, II, o qual estabelece a idade limite de sessenta anos, como limite a autorizar a escolha do regime de bens. Segundo Tula Wesendonck, a imposição de um regime obrigatório de bens, age de forma que limita a autonomia e liberdade dos cônjuges, uma vez que, não é facultado ao mesmo, escolher o regime que melhor o aprouver. [35] Nessa mesma linha de pensamentos, alguns doutrinadores consideram que tal dispositivo, por infringir um dos princípios basilares estampados na Constituição Federal, seria inconstitucional, pois, de forma clara, restringe a liberdade de escolha por pessoas consideradas plenamente capazes para todos os eventuais atos da vida civil. Sabe-se que no Direito de Família, tal regra existe com o objetivo de preservar o patrimônio constituído ao decorrer da vida do cônjuge, que casa depois. Hoje, setenta anos não é o fim de uma vida. Sendo assim, o indivíduo tem condições de continuar constituindo patrimônio, que será provavelmente até os oitenta, noventa anos. Sendo assim, não é plausível tal restrição, já que o patrimônio não é de uma vida, e sim, de parte dela. Esse também, é o posicionamento de José de Castro Bigi, mencionado na obra de Tula Wesendonck que critica o sistema de separação obrigatória, pois, de certa forma, haveria uma presunção de que o cônjuge, sendo “velho”, não produziria amores românticos, e sim, interesses meramente patrimoniais. [36] Vejamos, nesse sentido, o entendimento de Maria Helena Diniz: “Mas não pode se olvidar que o nubente, que sofre tal capitis diminutio imposta pelo Estado, tem maturidade suficiente para tomar uma decisão relativamente aos seus bens, e é plenamente capaz de exercer atos na ida civil, logo, parece-nos que, juridicamente, não teria sentido essa restrição legal em função da idade avançada do nubente […]” [37] O regime legal ou obrigatório estatuído no artigo 1641, inciso II do Código Civil, independe, entrementes, da vontade das partes. O fato que importa salientar é que, aqueles que desejam se casar após os setenta anos, não terão a plenitude e integridade de sua capacidade para eleger o regime de bens que melhor lhe convier, pois será, obrigatoriamente, imposto ao mesmo o regime de separação legal de bens, gerando a total incomunicabilidade para o passado, e o futuro. Ademais, a restrição imposta pelo artigo supra citado, deprecia o merecimento e a condição de autodeterminação que a pessoa tem, gerando assim, o sentimento de discriminação aos que estão ao alcance da proibição. O regime de bens é de extrema relevância para a efetividade da finalidade constitucional da família. A supressão do direto de escolha, fere e priva a pessoa ao direito de liberdade e dignidade humana, andando também, na contramão do princípio da isonomia tirando do alcance do casal,a possibilidade de construir um patrimônio conjunto. 4 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO IDOSO A Lei Maior, a qual tem objetivos claros em promover uma sociedade cidadã, democrática e igualitária, de modo expresso veda a discriminação em razão da idade. Em face do direito à igualdade e liberdade, ninguém pode ser discriminado em razão de sua idade, ou sexo, como se fossem causas naturais de incapacidade civil. No que tange ao regime de separação obrigatória para os maiores de setenta anos, é notória e evidente a ofensa ao princípio da isonomia, uma vez que o idoso é uma pessoa como qualquer outra, sujeita a direitos e deveres, como qualquer outro cidadão. Sua simples condição de alcançar um determinado limite de idade, não é motivo o bastante para que lhes sejam suprimidos alguns dos seus direitos, como em tela, a escolha do regime de bens. Cabe salientar, o que a Constituição já previa em seu artigo 230, antes mesmo da criação do Estatuto do Idoso: “A família, a sociedade e o Estado, tem o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem estar e garantindo-lhes o direito à vida.” [38] Entretanto, embora a própria Constituição estabeleça que deve ser assegurado a dignidade do idoso, este parece não ter sido suficiente para a proteção do mesmo. Nesse óbice, tiveram então que ser tutelados por Lei específica. O Estatuto do Idoso, veio como forma de implementar e assegurar ao idoso a inclusão social e garantir seus respectivos direitos. A respeito disso, menciona Eduardo Gonçalves Rocha: “Regras mais específicas, foram, então criadas para regulamentar as leis infra-constitucionais, sempre seguindo os princípios expostos no texto constitucional. Positivar um direito, é sempre proporcionar benefícios à sociedade, é um avanço, pois, poder-se-á utilizar a nova lei como instrumento para validar reivindicações. O Estatuto do Idoso apresenta um campo fértil e estimulante para que a sociedade se mobilize e exija efetivação das leis em benefício do idoso”. [39] O Estado, através do Estatuto, vem impor certas normas de conduta da sociedade para como os idosos, cabendo ao próprio Estado, familiares e sociedade amparar e protegê-los, assegurando assim, o seu bem estar, a sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e liberdade. Porém, tais postulados não foram suficientes para tornar ineficaz o ordenamento contido no Código Civil, onde há a imposição do regime de separação total para os maiores de setenta anos. Nesse diapasão, pode-se levar em consideração a capacidade civil que possuem essas pessoas. Ou seja, a capacidade plena é adquirida com o advento da maioridade, e tal, só pode ser afastada em casos extremos, e por meio de processo judicial de interdição. Ora, se é facultado ao nubente, que por ventura tenha mais de setenta anos, optar por praticar atos de sua vida civil, como por exemplo votar, por qual razão seria afastado o direito de pleitear pelo melhor regime de bens que o aprouver? Tal limitação, entrementes, se torna injustificável. 4.1 Do direito a liberdade O direito a liberdade se traduz no direito de ir e vir, sem limitações ou impedimentos. Nesse sentido, preleciona Roberto Mendes de Freitas Júnior, citado por Daniela Silmara Lisandra que o direito de liberdade significa agir o idoso de acordo com seu livre arbítrio, para que assim, alcance seus objetivos e realizações pessoais, da forma que melhor lhe aprouver, pois, a liberdade está assegurada na própria Constituição Federal em vários artigos espaços. Sendo assim, tal direito constitui conseqüência lógica dos princípios da dignidade humana, do direito a vida e a liberdade. [40] É claro o que dispõe o artigo 10 do Estatuto do Idoso onde “É obrigação do Estado e da sociedade assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas Leis.”[41] Nesse liame, resta-se claramente configurado que assim como outros preceitos e direito fundamentais do idosos o direito à liberdade também é violado, pois, o idoso nesse caso, não pode se orientar pelo próprio querer, no sentido de uma finalidade, sem ser determinado pelo querer dos outros, ou, pela simples imposição legal. Nada impede que uma pessoa com idade igual ou superior a setenta anos esteja em plena atividade física e intelectual, com pleno discernimento para tomar suas decisões em sua vida, especialmente quanto a administração do seu patrimônio e escolha de regime de bens. Ademais, a intervenção do Estado numa esfera íntima e pessoal de tal natureza, agride e viola o espaço individual da liberdade privada. E, se vias de fato estamos submetidos a um Estado Democrático de Direito, a preservação do espaço individual é pressuposto para convivência Pública. Segundo Andrade, citado por Pedro Lino de Carvalho Júnior, nesse sentido: “Há uma luta a ser encetada pelo indivíduo, enquanto personalidade única, pessoa privada, jamais confundida com o egocêntrico auto-absorvido, para combinar-se e recombinar-se, quando entendidos por necessários, modos de conviver, com desígnio de pacificar o indisponível no ser e o reclamado pela sociedade. Há o indivíduo social com direito a participar da comunidade, senhor do espaço público, e há o indivíduo privado com direito a ser reconhecido isoladamente dentro do todo, senhor de sua intimidade”. [42] É importante salientar que o princípio da liberdade diz respeito ao livre poder de escolha, ou autonomia de constituição, realização e extinção de entidade familiar, sem restrições ou imposições externas de parentes, da sociedade ou legislador, à livre aquisição e administração do patrimônio familiar; ao livre planejamento familiar; à livre definição dos modelos educacionais, dos valores culturais e religiosos; a livre formação dos filhos, desde que respeite suas dignidades como pessoas humanas; à liberdade de agir, assentada no respeito à integridade física, mental e moral. [43]  Por meios de critérios meramente sociais, o legislador estabeleceu a quem se destinaria o princípio da liberdade ou o princípio da autonomia da vontade, quanto à possibilidade ou não de efetuar a escolha sobre o regime de bens. 5 DA LEGISLAÇÃO ESTRANGEIRA 5.1 Histórico No âmbito do tema proposto, de grande valia é a exposição de alguns ordenamentos jurídicos diversos. A ideia de equiparação entre as legislações externas, é tema discutido e debatido em grandes amplitudes. Durante o século XXI em suas últimas décadas, os Estados modernos na busca do desenvolvimento, diante da realidade e evolução de vários aspectos, principalmente econômico, tendem a se reunir em blocos regionais mediante tratados e convênios. Diante de tais proposituras, há a facilitação de relações comerciais entre si e com outras nações. Não obstante, além da integralização econômica, os membros das comunidades almejam a unidade de idioma, da moeda, entre outros. O crescimento dos negócios em comum, traz a necessidade de estender-se a comunhão a outros setores, notadamente no plano jurídico, de modo que iguale, ou pelo menos aproxime as normas basilares das relações de direito privado entre esses Estados e seus respectivos cidadãos.[44] Na América do Sul, sobressai-se o Mercosul, formado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, que firmaram em 26 de março de 1991, um “Tratado para constituição de um mercado comum”, conhecido como Tratado de Assunção. Tal dtratado, calcado principalmente na reciprocidade, prevê para o Mercosul, o compromisso de harmonizar as legislações nas áreas pertinentes. Essa integração regional, incrementa as relações jurídicas nas mais diversas áreas, sejam elas comerciais, civis. Merece salientar, neste aspecto, a situação patrimonial dos cidadãos dos países que marcham para integralização, com destaque para sociedade conjugal e o regime de bens. 5.2 Argentina O Código Civil argentino, sancionado pela Lei número 340, de 12 de setembro de 1869, com vigência a partir de 1º de janeiro 1871, sofreu inúmeras modificações, especialmente quanto ao matrimônio e a sociedade conjugal. A sociedade conjugal no país supra indicado, após algumas modificações, cedeu lugar a um regime misto na participação das aquisições. Tal regime, tem por fundamento primordial, a igualdade jurídica entre os cônjuges. Admite-se também a convenção matrimonial, celebrados por meio de escritura pública, o qual tem por finalidade designar os bens que cada nubente levará para o casamento. [45] Embora a administração ordinária dos bens, na sociedade conjugal caiba ao marido, não há restrição quanto à idade pertinente para fazer jus aos aspectos e especificações de tal regime, devendo cada cônjuge, no caso de alienação de algum imóvel em comum, ter a anuência do outro. Quando houver a dissolução da sociedade conjugal, marido e mulher recebem seus respectivos bens, juntamente com o lucro que lhes digam respeito. Vejamos o teor do artigo 1299 do Código Civil argentino: “Decretada a separação de bens, fica extinta a sociedade conjugal. A mulher e o marido receberão seus bens próprios, e os que por sociedade lhes pertençam, liquidando a sociedade.”[46] Os bens da sociedade conjugal, devem ser divididos em partes iguais entre homem e mulher. Em linhas gerais, essas são as disposições inerentes ao regime de bens para todos os cidadãos argentinos. 5.3 Uruguai O Uruguai tem seu Código Civil em vigor desde 15 de outubro de 1995. Assim como o Código Civil argentino, a parte relativa ao regime patrimonial, é tratada nos capítulos que versa sobre contratos e obrigações, e não no título de Direito de Família, como se verifica na legislação brasileira. São admitidas convenção matrimoniais, em que os cônjuges podem ajustar o que lhes aprouver, segundo suas conveniências. A única restrição que se impõe, é que tal escolha não pode agredir os bons costumes e as disposições do próprio Código Civil uruguaio. Assim dispõe o artigo 1938 do Código Civil uruguaio: “Antes da celebração do matrimônio, os esposos podem fazer as convenções especiais que julguem necessárias, contando que não se oponham aos bons costumes e estejam em conformidade com os artigos posteriores.”[47] Somente na ausência das convenções especiais, que incide a lei no tocante aos bens da sociedade conjugal. Tais convenções, por motivos lógicos, devem ser celebradas antes mesmo de contrair o matrimônio, mediante escritura pública. O regime patrimonial do matrimônio, ou sociedade conjugal, é disciplinada por tais convenções estipuladas antes do casamento. Segundo o regime legal, existem bens próprios de cada cônjuge, isto é, os constituídos com o capital de cada um, e os bens “gananciales” – assim declarado pelo próprio Código – os quais serão objetos de partilha, em caso de dissolução da sociedade conjugal. [48] Nesse regime, merece ainda ser salientado, que cada cônjuge é livre para administrar e dispor dos seus bens, da forma que melhor lhe aprouver, com exceção dos bens “gananciales”, que precisam de consentimento mútuo. 5.4 Paraguai Segundo o Código Civil paraguaio, no matrimônio, marido e mulher tem direitos, deveres e responsabilidades iguais, independentemente do que trouxeram para o casamento ou do regime patrimonial de bens adotado pelos mesmos. A lei paraguaia reconhece três regimes patrimoniais do matrimônio, que podem ser adotados por meio de convenções antenupciais. São elas: a comunhão dos lucros sob a administração conjunta, a participação diferida e a separação de bens. Os nubentes poderão escolher o regime que melhor lhes aprouver, mediante convenções patrimoniais, sem nenhuma restrição quanto à idade, observando contudo, as restrições legais.[49] 5.5 Chile Assim como as legislações citadas anteriormente, o Código Civil chileno traz a regulamentação acerca dos regimes patrimoniais matrimoniais, no capítulo de contratos. Tal disposição se dá devido ao próprio conceito de matrimônio entabulado pela legislação, o qual seria um contrato solene entre nubentes, que estabeleceria direitos, deveres e auxílio mútuo. O regime de bens, é o da sociedade conjugal, uma vez que, por fato do matrimônio, contrai-se a sociedade de bens entre os cônjuges. Porém, a administração dos bens, cabe ao marido. Estão contemplados pela legislação chilena, três tipos de regimes de bens: sociedade de bens, separação total e separação parcial de bens. Contudo, é pertinente e admitido a convenção matrimonial pelos esposos, antes da celebração do ato do matrimônio. Utilizando dessa hipótese, somente será permitido pactuar pelo regime de separação ou regime de participação nos “gananciales”.[50] Tal estipulação, assim como no Uruguai, não deve contrariar os bons costumes e a lei. Na ausência da convenção patrimonial, vigorará o regime de comunhão de bens. 5.6 Da proposta de compatibilização Diante do pouco exposto acima, a respeito dos respectivos ordenamentos pátrios, tem-se o ideal para harmonização das legislações, tendo em vista os princípios universais que regem os direito humanos, e principalmente o direito a igualdade. Sendo assim, ao editar leis que digam a respeito aos direitos particulares das pessoas, o Estado deve se manter atento, e privilegiar as liberdades individuais. Nesse contexto, ao se propor a compatibilização e harmonização das leis, há de se buscar os preceitos vigentes entre um ou em outro ordenamento jurídico de cada País, que melhor retratem tais princípios, abandonando de uma vez os critérios discriminatórios, incompatíveis com o grau de desenvolvimento e civilização da sociedade contemporânea. Em referência às questões abordadas, que tem-se várias propostas de unificação da legislação inerente ao Direito de Família, entre alguns países da América do Sul, principalmente quando se diz respeito à liberdade para escolha do regime patrimonial de bens. É importante salientar, e observar as regras de ordem pública onde, mediante a justificativa de proteção dos cônjuges, há a intervenção estatal que limita a autonomia da vontade. Na Alemanha, na Áustria e na Suíça, as convenções sobre regimes de bens podem ser celebradas antes ou depois do casamento, ademais, esta sempre foi a orientação que perdura no Direito germânico. Aliás, na Alemanha não há necessidade de submeter ao judiciário, sendo livre decisão do casal.[51] Nos países filiados ao sistema latino, preferiu-se, ao contrário, consagrar a regra da imutabilidade ou da irrevogabilidade do regime de bens. Pessoas livres, menores, capazes, e em pleno gozo de suas faculdades mentais e psicológicas, tem sua liberdade de contratar limitada, sem que haja, necessariamente, um interesse protegido. É o que acontece por exemplo no Brasil, com a imposição do regime de separação de bens para aqueles que casam depois dos setenta anos. Tal imposição legal, não vem pra proteger qualquer direito tutelado. Para aqueles que afirmam que o direito protegido é o patrimonial, este, ao contrário da liberdade é bem disponível! De acordo com, Soares, Membro do Ministério Público da União, em sua proposta de unificação, o casal pode optar em compartilhar todos os bens, ou só uma parte deles, ou ainda, nenhum, considerando-se assim, a autonomia da vontade e o princípio da igualdade. [52] 6 A RESTRIÇÃO IMPOSTA PELO INCISO 2º, DO ARTIGO 1641, DO CÓDIGO CIVIL E SUA INTERPRETAÇÃO EM FACE DO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO 6.1 A restrição imposta pelo inciso segundo, do artigo 1.641, do Código Civil e o artigo 230 da Constituição Federal de 1988: um exame sobre o prisma e eficácia dos direitos fundamentais e do princípio da dignidade da pessoa humana. Dentre várias restrições impostas pelo legislador, as quais de um certo modo restringem a liberdade e a autonomia das pessoas, mister salientar a imposição aos maiores de setenta anos, aos que, por sua vez, desejarem contrair matrimônio. O objetivo de tal restrição seria, primordialmente, proteger os bens das pessoas idosas que venham a se casar com pessoas mais jovens, estas, não por afeto, mas apenas interessadas no possível aproveito financeiro. Mas será que tal imposição legal, condiz com a realidade do nosso tempo, e encontra respaldo nos valores da atual sociedade? Percebe-se que a imposição de tal regime, parte das premissas falsas ao presumir que o casamento se efetuará entre pessoas de idades bem distintas, por possível interesse econômico. Partindo desse patamar, presume-se também que não haverá esforço mútuo para construção, manutenção e preservação do patrimônio do casal. Talvez, em algum momento histórico, num passado recente, tal norma se justificasse pela realidade e características de uma outra época. Hoje, portanto, a sociedade está completamente mudada, com características bem distintas de alguns anos atrás. Mister salientar que em nenhuma época da história, a humanidade mudou tanto em pouco tempo como nos dias de hoje: costumes, conceitos, visões, etc. O avanço tecnológico, o amplo acesso à informações e cultura, inclusão social, enfim, mudanças que de um certo modo requerem também, a evolução do direito, para que essa ciência caminhe juntamente com a humanidade, sem correr o risco de se tornar normas e diretrizes calcadas em um momento pretérito. O artigo 230, caput, da Constituição Federal, é uma das mais claras e notórias expressões do princípio da dignidade humana, onde afirma que as pessoas acima de setenta anos, também fazem jus a uma vida digna e devem, portanto, serem inclusas na sociedade, assegurando sua participação na comunidade. Na sociedade contemporânea, nota-se que o chamado “peso da idade”, se manifesta cada vez mais tarde. O homem, atendo aos progressos e evoluções, tem uma longevidade maior, se preocupa mais com a saúde mental e física. Isso sem mencionar o aumento demasiado do culto à vaidade. Ou seja, atualmente, tudo colabora para o retardamento de uma eventual senilidade, além dos constantes avanços tecnológicos, que permitem que uma pessoa de setenta anos ainda tenha uma aparência atraente, desbancando uma das razões em existir a proibição estampada no artigo 1641, qual seja a do provável interesse meramente econômico em detrimento de atributos pessoais no matrimônio, entre ou com pessoas acima de setenta anos. Vale ressaltar, que várias pessoas chegam nessa idade em plena atividade física e intelectual, assim como, pleno exercício de suas faculdades civis. Não resta dúvidas, nesse diapasão, que sofre constrangimento a pessoa que nessas condições, não pode escolher o regime patrimonial de seu casamento. Ao determinar uma regra fixa, a lei talha a vontade da pessoa, mas não leva em consideração que há o desejo de estabelecer uma comunhão de vida permeada pelo carinho e ajuda mútua. Tal fator, é inerente a qualquer ser humano, independentemente de sua idade. Para Rolf Madaleno, citado por Michel Carlos Rocha Santos, estabelecer o regime compulsório de separação de bens aos maiores de setenta anos, é ignorar princípios elementares inerentes ao Direito Constitucional: “Em face do direito à igualdade e à liberdade ninguém pode ser discriminado em função do sexo ou idade, como se fossem causas de incapacidade civil. Atinge direito cravado na porta da entrada da Carta Política de 1988, cuja nova tábua de valores coloca em linha de prioridade o princípio da dignidade humana.” [53] A incapacidade não é resultado apenas da idade avançada, mas sim de vários outros fatores psíquicos ou físicos que impedem o bom discernimento do indivíduo. Para mostrar a violação ao princípio da isonomia, Maria Berenice Dias diz que a limitação, além de odiosa, é inconstitucional, pois, ao se falar do estado da pessoa, toda cautela é pouca. A plena capacidade é adquirida quando se atinge a maioridade, e tal, só pode ser afastada em situações extremas, por meio do devido processo judicial, o qual seja, a interdição que dispõe de um rito especial. Sendo assim, é indispensável a realização da perícia, e a designação de audiência onde o interditando é interrogado diretamente pelo magistrado. Raros são os processos que são revestidos de tantas peculiaridades e requisitos formais, sendo imperiosa a publicação da sentença na imprensa por três vezes. Tal rigor, denota o extremo cuidado que o legislador tem quando se trata da capacidade da pessoa. [54] O inciso II do artigo 1641, compactua com a ineficácia dos direitos fundamentais, ao subtrair a plenitude de capacidade aos maiores de setenta anos para escolher, dentre os regimes de bens existentes, o que melhor lhe aprouver. Nesse patamar, nota-se que o bem que a norma visa proteger, não faz jus a tamanha afronta a dignidade da pessoa humana. Não é necessário, sequer invocar o Estatuto de Idoso para reconhecer que é terminantemente proibido qualquer tipo de discriminação às pessoas em razão da idade avançada. A imposição contida na lei infraconstitucional se opõe aos princípios basilares e mais valiosos consagrados pela Carta Magna, como a igualdade e liberdade. Não obstante, todos eles são objetivos fundamentais da Constituição, e tem sua eficácia limitada e ameaçada diante da restrição imposta pelo inciso II do artigo 1641 do Código Civil. Estamos diante na extrema necessidade de concretizar, de uma vez por todas, os valores fundamentais com base nos instrumentos jurídicos que nosso ordenamento pátrio possui. Degradar a dignidade humana, é a maior ineficácia dos direitos fundamentais. Como preceituou Immanuel Kant, citado por Voltaire Schilling, dignidade é tudo aquilo que não se pode atribui valor, preço, seja ele pecuniário ou até mesmo estimativo. Ou seja, aquilo que inestimável, indisponível, que não pode ser objeto de troca. Vejamos, nas palavras dele: “No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa esta acima de qualquer preço, e, portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade”. [55] A dignidade do homem, nesse liame, não abarcaria somente a questão de o mesmo não poder ser um instrumento, mas também, de ser capaz de escolher seu próprio trajeto, efetuar suas próprias decisões, sem que haja manifesta interferência direta de terceiros em seu pensar e decidir. Assim, verifica-se que a dignidade por si só pressupõe a autonomia, autodeterminação do indivíduo, que pode e deve ter a liberdade,como também a possibilidade de escolher sobre as questões que cercam sua vida, no aspecto material ou imaterial. A dignidade é um valor moral e espiritual inerente à própria pessoa, são valores peculiares, que lhe dará poder de decisão sobre sua vida e seus respectivos negócios. Dignidade então, significa pleno exercício dos direitos fundamentais, sendo, portanto, razoável a restrição desse exercício, em casos em que o Estado deva agir para realmente resguardar e garantir um fim maior, o qual seja suficientemente importante para justificar a restrição da autonomia do indivíduo. Neste liame, não é plausível a alegação de que o idoso deva ser protegido dos “aventureiros”, que queiram contrair um casamento com fins meramente patrimoniais. Ora, o idoso tem condições de decidir e adotar o melhor regime patrimonial que lhe aprouver, assim como tem capacidade para escolher a pessoa com quem queira contrair matrimônio. Ademais, vale mencionar opinião de autoria do Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Luiz Felipe Brasil Santos: “A obrigatoriedade do regime da separação de bens para as pessoas que celebrarem matrimônio a partir de determinada faixa etária (seja ela qual for), atenta contra o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República. Nos dias que correm não mais se justifica essa odiosa regra restritiva, fruto de um superado Código marcadamente patrimonialista, como o de 1916, e incompatível com o espírito da legislação codificada hoje vigente, que sobreleva a dignidade da pessoa humana.”[56] A hermenêutica atual, não permite que a lei interfira na vontade individual em busca de proteção ao patrimônio. Tratar os maiores de setenta anos como incapazes de distinguir relações sadias, onde imperaria apenas o desejo de satisfação financeira, impondo-lhes assim regime patrimonial obrigatório, não é viável em uma sociedade na qual os princípios da dignidade e isonomia, são pontos de partidas para a aplicação do Direito de Família. Portanto, todos os institutos jurídicos deverão ser interpretados à luz de tais princípios, atribuindo à família, a plenitude e realização da dignidade, e personalidade de cada um dos seus membros. 6.2 Princípios constitucionais e o regime de separação de bens para os maiores de setenta anos Como antes exposto, o Código Civil impõe o regime obrigatório de separação de bens para os maiores de setenta anos, cujo fundamento encontrado por alguns doutrinadores, reside apenas no caráter protetivo. Melhor explicando, o objetivo dessa restrição é evitar o vulgo conhecido como “golpe do baú”. O antigo Código Civil, já aplicava a regra supra citada, diferenciando apenas na idade dos consortes, para a mulher era cinqüenta anos, e para o homem sessenta anos. Já, no atual código, com base no princípio da igualdade, foram equiparadas as idades, passando a ser setenta anos para ambos os sexos. A questão é saber, se, tal restrição imposta, padece de inconstitucionalidade. Vários doutrinadores alegam que sim, por tal norma conter afronta direta ao direito a liberdade e autonomia, bem como, ofensa ao princípio da dignidade humana. A isonomia prevista na Carta Magna estende-se a todos os brasileiros, protegendo-os de discriminações de sexo, idade, cor, raça, dentre muitas outras. Direcionando-se para lei mais específica, reza o artigo 2º do Estatuto do Idoso que: “O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.” [57] Vejamos o disposto no artigo 5º, inciso XLI da Constituição Federal: “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.”[58] Analisando os dois dispositivos acima, percebe-se que o maior de setenta anos é uma pessoa como qualquer outra. O decorrer da vida apresenta pontos positivos para o indivíduo, como a maturidade e experiência decorrentes de várias situações vividas. Porém, ao instituir tal regra, o legislador não se atentou a esse detalhe, levando apenas em consideração a possibilidade de vulnerabilidade proveniente da idade mais avançada, tornando assim o idoso, alvo mais fácil para os famosos “golpes”. Torna-se claro, nesta amplitude, que tal norma discutida em tela, fere também princípio da isonomia, o direito a liberdade, haja vista que os que estão abaixo da faixa etária estipulada, estão aptos para escolher o regime patrimonial que lhes convier, tendo ampla sua livre autonomia para escolha. O direito à liberdade, assim como a autonomia, visam propiciar ao idoso a possibilidade de se guiar segundo seu livre-arbítrio. Ambos, estão assegurados pelo nosso Ordenamento Pátrio, e são consequências lógicas do princípio da dignidade humana. O artigo 1.513 do Código Civil em vigor, consagra o princípio da liberdade quando diz que “É defeso a qualquer pessoa de direito público ou direito privado interferir na comunhão de vida instituída pela família.” Sendo assim, o princípio da liberdade está intimamente ligado com o princípio da autonomia privada, que é o poder que a pessoa tem, de, desejando, auto-regulamentar os seus próprios interesses. [59] Portanto, a autonomia privada não subsiste apenas em sede contratual, ou até mesmo obrigacional, mas também no âmbito familiar. Quando se faz escolha em relação a pessoa que se deve ficar, com quem namorar, com quem manter uma união estável, ou até mesmo se casar, estamos falando em autonomia privada. A liberdade de escolher o regime de bens na hora de contrair núpcias, faz parte dos direitos fundamentais garantidos aos cidadãos e apregoados pela Carta Magna. E, neste liame, se tratando do direito à liberdade, esse tem abrangência genérica, não sendo específico somente de algumas classes ou determinados clãs. Paulo Luiz Neto Lobo, disserta a respeito de tal princípio: “O princípio da liberdade diz respeito ao livre poder de escolha ou autonomia de constituição, realização e extinção de entidade familiar, sem imposições ou restrições externas de parentes, da sociedade ou do legislador, à livre aquisição e administração do patrimônio familiar; ao livre planejamento familiar; à livre definição dos modelos educacionais, dos valores culturais e religiosos; à livre formação dos filhos, desde que respeite suas dignidades como pessoas humanas; à liberdade de agir, assentada no respeito à integridade física, mental e moral” [60] Nessa esfera, quando os direitos individuais são desrespeitados pela intervenção estatal, tem-se uma situação que não condiz com os valores basilares que cada indivíduo possui dentro de si, e que, no nosso país, foram consagrados e garantidos com o advento da Constituição de 1988. Não obstante, quando a autonomia da vontade é injustamente restringida por uma pseudo-proteção, resta-se configurada uma situação descabida, que a hermenêutica não mais tolera na aplicação do direito de família contemporâneo. Quando se determina que aos setenta anos o indivíduo expira sua vigência de idade-limite para efetuar a escolha do regime de bens no casamento, os princípios constitucionais quedam-se nitidamente violados, pois, subentende-se que na sociedade atual, há espaço para discriminação em razão da idade. E que, seguindo esse mesmo raciocínio, a idade é causa natural para incapacidade civil. Intrigante é pensar que o código de 1.916 trazia essa imposição[61], sendo assim, os casos concretos, em resposta a tal restrição, deram origem à súmula 377, que passou a ser aplicada para evitar o enriquecimento ilícito, e que tem o seguinte teor: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.”[62] Vejamos: se a realidade social, a prática, mostrou a necessidade real de haver comunicação daqueles que, porventura estavam sob o prisma da separação legal de bens, e, na edição do Código Civil vigente, o legislador insistiu em manter a proibição, parece que o mesmo não quer se adequar à realidade social. O Direito de Família, impreterivelmente, merece ser analisado sob o prisma da Constituição Federal, uma vez que, a maior parte do Direito Civil está na Constituição, que acabou enfatizando os temas sociais que tem maior relevância jurídica, garantido-lhes assim, maior efetividade. A intervenção do Estado nas relações de direito privado permite o revigoramento das instituições de direito civil, e, diante do novo texto constitucional, forçoso ao intérprete redesenhar o tecido do Direito Civil à luz da nova Constituição.[63] Perante a realidade, onde houve a superação do direito civil clássico, por um, direito civil constitucionalizado, os institutos jurídicos, nesse diapasão, devem ser tutelados na proporção em que cumpram seu papel, de forma que permita o desenvolvimento do sujeito. Nota-se, que em meio tantas divergências, a ordem jurídica trazida pela Constituição de 1988, não recepciona o inciso II do artigo 1641. A modificação no conceito de família, bem como os novos princípios regedores do Direito de Família, nos levam a repudiar esta limitação injustificável que priva da liberdade, os integrantes da família que querem conferir a ela o formato. Paulo Luiz Neto Lobo, nesse patamar, preleciona que, a constitucionalização do direito civil, entendida como inserção constitucional dos fundamentos de validade jurídica das relações civis, é bem mais que um critério hermenêutico formal. Sendo assim, constitui a etapa mais importante do processo de transformação, ou de mudanças de paradigmas, por que passou o direito civil, no trânsito do Estado Liberal, para o Estado Social. Sendo assim, o conteúdo conceptual, a natureza, as finalidades dos institutos básicos do direito civil, nomeadamente a família, a propriedade e o contrato, não são os mesmos que vieram do individualismo jurídico e da ideologia liberal, cujos traços marcantes persistem na legislação civil. Sendo assim, sai de vista o indivíduo proprietário para revelar, em todas as ocasiões, a pessoa humana. E, nessa concepção, foram elevados determinados valores como a afetividade, sendo o valor essencial da família; o princípio da equivalência material e a tutela do contratante mais fraco, no contrato. Assim, os valores decorrentes da mudança da realidade social, convertidos em princípios e regras constitucionais, devem direcionar o foco do direito civil, em seus mais diversos planos. Quando a legislação civil for claramente incompatível com os princípios e regras constitucionais, deve ser considerada revogada, se anterior à Constituição, ou inconstitucional, se posterior à ela. Quando for possível o aproveitamento, observar-se-á a interpretação conforme a Constituição. Em nenhuma hipótese, deverá ser adotada a disfarçada resistência conservadora, na conduta freqüente de se ler na Constituição a partir do Código Civil.[64] Ora, resta-se evidente a ausência de motivo para que, aos maiores de setenta anos seja aplicada a restrição à autonomia de vontade. O fundamento baseado nessa restrição considera a fragilidade dessas pessoas em serem ludibriadas por pessoas mais novas, além de proteger o patrimônio familiar. Ademais, não se pode esquecer que as pessoas tratadas nesse inciso em tela, possuem capacidade de estarem em dia com seus deveres e obrigações sociais, bem como, discernimento dos seus atos. Não obstante, tais pessoas trazem uma bagagem de maturidade muito maior que a atual juventude, tudo, em razão da experiência de vida trazida no decorrer do tempo. O dispositivo legal que não guarda equiparação com a vida real, merece obscuridade e esquecimento. Nesse aspecto, deve a jurisprudência cumprir com a eficácia da normatividade constitucional pátria, enquanto não mudam essa lei que, nas palavras de Paulo Lins e Silva, citado por Maria Berenice Dias, afasta “o direito natural de afeto, carinho e elevada sensibilidade que o ser humano contém no seu interior, muitas vezes quando rebrota dessa terceira idade, o amor para ser vivido na fase mais experiente da vida. Tornam-se semi-incapazes, dependentes de normas arcaicas, discriminatórias e protetivas daqueles que nada fizeram para a construção numa vida, de um patrimônio simples ou representativos, cercando um livre direito de se exercer sem condições e realização formal e completa de um matrimônio digno e volitivo.”[65] Pode-se dizer que o regime de bens é um dos instrumentos de busca pela felicidade que dispõe a família que deseja se constituir. Em contrapartida, é correto então, afirmar que uma supressão nessa escolha, limita, em grande escala, a família como busca da felicidade e satisfação pessoal. Qualquer restrição legal, que, antes de levar em conta e analisar as características pessoais de cada indivíduo, impeça a manifestação da autonomia de vontade dos nubentes na estipulação quanto aos seus bens, portanto, e sem sombra de dúvidas alguma, causa um abalo à instrumentalidade constitucional da família. 6.3 Da jurisprudência e seus respectivos entendimentos Atentado às questões pertinentes dispostas acima, houveram várias manifestações esparsas. Os vários questionamentos, deram ensejo às mesmas. Vejamos então, o entendimento da Relatora Maria Berenice Dias, proferido na Sétima Câmara Cível, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “EMENTA: SEPARAÇÃO JUDICIAL LITIGIOSA. CULPA. Já se encontra sedimentado nesta Câmara o entendimento de que a caracterização da culpa na separação mostra-se descabida, porquanto o seu reconhecimento não implica em nenhuma seqüela de ordem prática. PARTILHA. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS. SÚMULA 377 DO STF. A partilha igualitária dos bens adquiridos na constância do casamento celebrado pelo regime da separação obrigatória de bens se impõe, a fim de evitar a ocorrência de enriquecimento ilícito de um consorte em detrimento de outro. Busca-se, outrossim, a justa e eqüânime partilha do patrimônio adquirido mediante o esforço comum, e que muitas vezes são registrados apenas no nome de um dos cônjuges. Aplicação da Súmula 377 do STF. Afastada a preliminar do recorrido, apelo provido em parte.” (RIO GRANDE DO SUL, TJ. Ap. 70007503766, Rel. Maria Berenice Dias, 2003) Diante do conteúdo de tal decisão, com respaldo na Súmula 377 do STF, percebe-se que, embora o regime pertinente seja o da separação obrigatória, o mesmo torna-se equívoco diante da orientação de tal súmula. Quando da separação, no momento da partilha, houve a devida meação dos bens adquiridos na constância do casamento, dando assim, a divisão equânime e justa a cada um dos cônjuges. Com a edição de tal súmula, percebe-se que houve necessidade de ratificação do entendimento esculpido no artigo 1641, inciso II do Código Civil. Se o legislador previu que não se comunicariam os bens na constância do casamento, esqueceu-se portanto, daqueles bens que fossem adquiridos por ambos os cônjuges no decorrer do mesmo. E como então, ficaria a divisão desses bens? Ficariam os nubentes limitados determinações do legislador, sem ao menos saber se haveria a adequada meação dos bens, se por ventura houvesse dissolução da sociedade conjugal. Partindo do pressuposto que a intenção do legislador era proteger o patrimônio do idoso de eventuais “golpes”, percebe-se que o mesmo se esqueceu que há outros meios para dilapidação do patrimônio protegido. Poderia o maior de setenta anos, nesse caso, doar seus bens. Quando do questionamento, para anulação de eventuais doações, partindo da premissa inculcada no artigo discutido, vejamos: “EMENTA: ANULAÇÃO DE DOAÇÃO – PRELIMINARES – REJEIÇÃO – CASAMENTO REALIZADO PELO REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA – CONJUGÊ SEXAGENÁRIO – VALIDADE DA DOAÇÃO FEITA À ESPOSA DESDE QUE OBSERVADA A LEGÍTIMA – PRINCÍPIO DA LIVRE DISPOSIÇÃO DOS BENS. Alargar o sentido da norma prevista no artigo 1641, II do CC para proibir o sexagenário, maior e capaz, de dispor de seu patrimônio da maneira que melhor lhe aprouver, é um atentado contra a sua liberdade individual. A aplicação da proibição do cônjuge, já de tenra idade, fazer doação ao seu consorte jovem, deve ser aplicada com rigor naquelas hipóteses onde se evidencia no caso concreto que o nubente mais velho já não dispõe de condições para contrair matrimônio, deixando claro que este casamento tem o único objetivo de obtenção de vantagem material.” (MINAS GERAIS, TJ. Ap.1.0491.04.911594-3/001 Rel. Vanessa Verdolim Hudson Andrade, 2005.) Mister salientar a sábia assertiva da Exma. Desembargadora: “Pois bem, o atualíssimo Diploma Civil de 2002, que, tantas inovações progressistas nos trouxe, nesta parte manteve este censurável atentado contra a liberdade individual de pessoas maiores e capazes, fazendo uma odiosa discriminação contra estas pessoas, ferindo o seu direito de livre disposição do patrimônio adquirido com seu trabalho, cabendo ao Judiciário, no cumprimento de sua função precípua de integração do ordenamento jurídico para o alcance da justiça, analisar cada caso concreto e fazer a leitura legal que mais se amolda aos objetivos prescritos pela norma”. (MINAS GERAIS, TJ. Ap.1.0491.04.911594-3/001 Rel. Vanessa Verdolim Hudson Andrade, 2005.) Na jurisprudência supra citada, já havia previsão para eficácia das doações realizadas pelas pessoas indicadas pelo artigo 1641, inciso II do Código Civil, apenas confirmando o instituto da doação, a qual não depende do regime de bens adotado pelos cônjuges. Esse julgado é prova concreta de que há formas diversas para se dispor do patrimônio, (contando o doador com capacidade para tal), colocando em xeque a intenção falha do legislador em querer proteger o patrimônio do idoso. Através das várias jurisprudências acerca da temática, observa-se que não é de plena eficácia a restrição inculcada pelo legislador, ao editar o artigo em questão. Vejamos então, a valiosa decisão proferida pelo Desembargador, Vieira Brito: “ALTERAÇÃO DO REGIME DE BENS. NUBENTE MAIOR DE 60 ANOS. PRINCÍPIO DA ISONOMIA. NÃO RECEPÇÃO DO ART. 258, § ÚNICO, II, DO CC DE 1916 PELA CR/88. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.641, II, DO CC. CLÁUSULA DE RESERVA DE PLENÁRIO. INTELIGÊNCIA DO ART. 97 DA CR/88. 1. É necessário que a Corte Superior se pronuncie sobre a não recepção do art. 258, parágrafo único, inciso II, do Código Civil de 1916 pela CR/88, bem como sobre a inconstitucionalidade do art. 1.641, II, do CC, de forma que somente após este precedente o órgão fracionário possa declará-la, diante da cláusula de reserva de plenário prevista no art. 97 da Constituição da República. 2. Suscitar relevância da questão.” (MINAS GERAIS, TJ. Ap Ap. Nº 1.0491.04.911594-3/001. Rel.Vieira de Brito, 2010.) Tal decisão, de ofício e por unanimidade, foi submetida ao crivo da Corte Superior para análises efetiva da inconstitucionalidade presente no dispositivo legal discutido. Embora a alegação do apelante seja de que a decisão recaia sobre a data de promulgação do Código Civil de 2002, quando o mesmo contava com 53 anos, o Relator de forma inequívoca, argüiu a inconstitucionalidade do dispositivo, com base em vários artigos esparsos na Constituição Federal, e no Estatuto do Idoso (os quais já foram especificados no presente trabalho), e concluiu que: “Com efeito, não resta dúvidas acerca do descabimento da referida vedação legal, motivo pelo qual deve ser afastada, mormente diante do princípio constitucional da isonomia. Ora, das vedações contidas no artigo 1.641 (das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento, da pessoa maior de sessenta anos e de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial), apenas aquela imposta aos sexagenários não pode ser excluída pelo artigo 1.523, parágrafo único, do Código Civil, havendo, portanto, flagrante violação ao princípio constitucional da isonomia, o que definitivamente não pode ser aceito ou sequer tolerado”. (MINAS GERAIS, TJ. Ap Ap. Nº 1.0491.04.911594-3/001. Rel.Vieira de Brito, 2010.) Não obstante, vai mais alem: “O alcance irracional e injusto da mesma norma vulnera ainda princípios constitucionais, até com gravidade maior, sob outro ponto de vista, que é o da mutilação da 'dignidade' da pessoa humana em situação jurídica de casamento, porque, desconsiderando-lhe, de modo absoluto e sem nenhum apoio na observação da realidade humana, o poder de autodeterminação, sacrifica, em nome de interesses sociais limitados e subalternos, o direito fundamental do cônjuge de decidir quanto à sorte de seu patrimônio disponível, que, não ofendendo direito subjetivo alheio nem a função social da propriedade, é tema pertinente ao reduto inviolável de sua consciência. É muito curta a razão normativa para invasão tamanha”. (MINAS GERAIS, TJ. Ap Ap. Nº 1.0491.04.911594-3/001. Rel.Vieira de Brito, 2010.) De forma expressa, conclui que a Constituição Federal não recepcionou o artigo 1641, II do Código Civil, suscita a relevância da questão e remete os autos à Corte superior para pronunciamento quanto a inconstitucionalidade ou não do dispositivo. 7 CONCLUSÃO Diante de todo conteúdo esparso nesse trabalho, de todas as análises pertinentes efetuadas, conclui-se que o legislador não foi muito feliz ao manter tal dispositivo no ordenamento jurídico, o qual, claramente é contrário aos estatutos consagrados pela Constituição Federal de 1988. Tal assertiva, tem por base de que com a vigência da restrição, o legislador, doravante preocupando-se com o bem patrimonial, que é disponível a cada indivíduo, limitou o pode de alcance dos maiores de setenta anos, restringindo-lhes a capacidade para escolher o regime de bens patrimonial que melhor lhes aprouver. Ou seja, a liberdade do idoso, a qual é bem indisponível, foi limitada frente a um instituto que é disponível, o qual seja, o patrimônio. Ora, se a Constituição Federal, a qual é fonte primária do ordenamento pátrio, afirma, em seu preâmbulo que todos são iguais perante a lei em direitos e deveres, qual fundamento lógico teria por base tal imposição legal efetuada pelo legislador ordinário? Ademais, a intenção do legislador em proteger o patrimônio do idoso, padece de falhas. Se o idoso é limitado na hora de escolher o regime patrimonial, pode o mesmo se desfazer deles por outros meios, uma delas, a doação Ou seja, não há justificativas palpáveis para tal dispositivo. Resultou, nesse liame, infrutífera a tentativa do legislador em proteger aquilo, que afinal de contas, nem deveria ser sua preocupação maior. Não poderia, nesse âmbito, agir o Estado, invadindo a esfera privada, sob o argumento protetivo, interferindo assim na liberdade e autonomia dos maiores de setenta anos. Estaria o ente estatal, nesse aspecto, invadindo a esfera privada além do limite permitido. O próprio Código Civil veda tal interferência. Ao considerar a fragilidade do idoso, o qual seria alvo fácil de casamento por interesses, foi desconsiderado a experiência de vida pertinente ao mesmo. O longo da vida, trás além da experiência, a maturidade para discernir entre escolhas mais adequadas ou não. Como foi considerado que o matrimônio se daria entre idades bem distintas, afirmou-se que nesses casos o idoso não teria capacidade lúcida de aferir o que melhor lhe seria propício. Sendo assim, com o intuito de causar um mal menor, veio a luz tal restrição. Nesse patamar, se o idoso de setenta anos não está apto para escolher o seu regime de bens, não estaria também apto a gerenciar atividades administrativas governamentais, a ocupar cargos eletivos, ou, até mesmo chefiar cargos dos poderes executivos, legislativos e jurisdicionais. A imposição do regime de separação de bens nos casamentos para maior de setenta anos disposta no Código Civil, é nitidamente atentatória aos princípios constitucionais da liberdade, isonomia e dignidade da pessoa humana. Como se não bastassem os princípios constitucionais primordiais, após a promulgação no novo Código Civil, o Estatuto do Idoso bate na mesma tecla, e de forma expressa veda qualquer tipo de discriminação ou preconceito em desfavor daqueles que atingiram a “melhor idade”. Não obstante, a ideia de justiça, na atual sociedade moderna, está ligada intimamente à concepção resultante do princípio da isonomia, e tal, interessa particularmente ao Direito. Todos em uma sociedade, clamam por condições justas e igualitárias, livre de constrangimentos inerentes ao fator idade, raça, sexo, cor.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/da-in-constitucionalidade-do-inciso-ii-do-artigo-1-641-do-codigo-civil-frente-os-principios-constitucionais-patrios/
O poder punitivo do estado na promoção de direitos humanos: estudo sobre a tipificação da homofobia à luz do PLC 122
O objetivo da presente produção consiste em analisar a necessidade de tipificação específica das ofensas discriminatórias e sua contribuição para que se efetivem os Direitos Humanos dos chamados grupos vulneráveis. Para tanto, este estudo concentrou-se no problema da homofobia e no Projeto de Lei da Câmara nº 122 de 2006, buscando elucidar a sexualidade como direito fundamental e levantar as principais questões jurídicas suscitadas em torno da proposta de lei através da pesquisa bibliográfica de insumos legais e doutrinários e do método de abordagem hipotético-dedutivo. A aprovação de lei que criminaliza a homofobia é meio efetivo da promoção dos direitos de quem é vítima? Posicionamentos contrários apontam o risco da insegurança jurídica e do tolhimento de direitos fundamentais que surgem da inflação do Direito Penal, enquanto os que urgem pela tipificação da discriminação defendem a utilidade da norma punitiva na proteção e efetivação de direitos. Sendo assim, depreendeu-se que necessária é a lei, tendo em vista a evidência de ser aporte mais imediato na erradicação da discriminação, não necessariamente diminuindo diretamente o problema, mas contribuindo para reforçar valores, observar direitos e impulsionar medidas mais eficazes.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO É comum, na seara das discussões entre Direito Penal e Direitos Humanos, que as produções tendam a abordar a correlação dessas temáticas apenas no que diz respeito às prerrogativas e garantias constitucionais do transgressor, de maneira que a discussão intensamente centrada nessas questões faça parecer que refletir sobre dignidade humana no Direito Penal seja restringir-se aos debates sobre a aplicação de pena ao criminoso. Estas prerrogativas são imprescindíveis para o ensejo de um sistema jurídico adequado com as diretrizes primordiais da política garantista e limitadora do poder punitivo em um Estado Democrático de Direito, cuja função do jus puniendi não visa apenas punir, mas também ressocializar. Entretanto, o estudo da interação entre Direito Penal e Direitos Humanos não se resume a isso, é apenas parte de acervo amplo de assuntos, que entre eles, está o de ser devida a promoção integral destes direitos dentro da mesma circunstância envolvendo ofensores e vítimas. Compreendidos como preceitos que promovem condições de uma existência digna, tais como a liberdade, a integridade e a igualdade, os Direitos Humanos têm seu cerne argumentativo encontrado nas teorias políticas do iluminismo, mais precisamente no pensamento rousseauniano, em que a sociedade é titular do poder conferido ao Estado para promover e proteger tais direitos, esboçando um modelo de contrato social pelo qual cada indivíduo cede parte de sua autonomia para viabilizar o controle estatal e a ordem. Logo, aquilo que motiva cada indivíduo atribuir ao Estado o direito em proibir a autotutela e de impor regras e medidas punitivas para quem as infringe, é o objetivo de garantir a proteção a segurança direta de direitos humanos. Em outras palavras, o que possibilita a existência de um contrato social em que o poder público limita a liberdade individual, a fim de promover a própria liberdade, é a necessidade de promover segurança para que pessoas exerçam sua autonomia. Entre as práticas ofensivas suscitadas no âmago das relações modernas, a discriminação vem sendo apontada como um dos problemas que mais invocam a necessidade da imposição da reprovação jurídica. Isto porque é inconcebível, dentro de um modelo de Estado promissor, que condutas permaneçam praticando a violação de direitos em razão da intolerância e do preconceito. No Brasil a Constituição de 1988 tratou de eminentemente preconizar a ojeriza à discriminação ao determinar que a ninguém será permitido prejudicar a outrem ou tratar com distinção negativa. Determinando, inclusive, que punições impostas contra quem comete a discriminação são legítimas, permitindo e dando azo para que normas penais sejam criadas e combatam a discriminação com especificidade. Todavia, nem todas as formas de discriminação foram alcançadas pela previsão da Lei Maior, assim como também, nem todas as minorias sociais que são o alvo da intolerância estão tuteladas pela proteção das legislações infraconstitucionais. Restando-lhes a omissão legal. Longe de ser uma celeuma recente, a homofobia é apontada como uma destas discriminações. Em um contexto político que prioriza a promoção isonômica da dignidade humana independente de quaisquer estigmas socioculturais, é evidente que este tipo de distinção deve ser rechaçado e que os direitos pessoais de sujeitos discriminados em razão de sua definição sexual deverão ser protegidos por toda disposição Estatal eficiente para isso. Entre as proposições legislativas que visam combater esse problema, destaca-se o Projeto de Lei da Câmara nº 122 de 2006 que objetiva criminalizar a homofobia. Por que esse projeto ainda não foi aprovado? Quais as consequências jurídicas levantadas hipoteticamente a partir de sua proposta? Por que a tipificação da homofobia é defendida como viés de efetivação de Direitos Humanos? Criminalizar e punir a discriminação é o melhor para proteger e promover estes direitos? O objetivo do presente este estudo é buscar levantar os debates que oferecem respostas para esses questionamentos. Para tanto, utiliza-se a pesquisa bibliográfica debruçada sobre as doutrinas, os tratados internacionais, a Constituição, as pesquisas acadêmicas, as governamentais e o próprio PLC. Sua abordagem se define pelo método hipotético-dedutivo, pois, mediante a hipótese cogitada de como uma realidade específica pode ser sanada por uma condição geral, busca-se apresentar uma resposta a esta hipótese. Acredita-se na relevância dessa pesquisa porque trata-se de problemática cuja incidência tem proporcionado intensos debates recentes, na maioria das vezes sem chegar a um consenso. Diante disto, é indubitavelmente preciso produzir no sentido de reiterar as abordagens e de propor entendimento entre elas. Contribuindo, portanto, para estimular a composição de medidas políticas. 1. O Poder de Punir, o Garantismo Penal e o conceito de bem jurídico; Partindo do pressuposto que é inexorável da natureza humana a condição de sociabilidade, então é evidente que favorecer uma sociedade estável, no que concerne à satisfação de seus interesses, é, também, promover o bem-estar de cada indivíduo que a compõe. Dessa forma, visando proporcionar um bem comum, é atribuída ao Estado como um dever, e ao mesmo tempo um direito, a função de elaborar leis que objetivam declarar e ensejar as condições que possibilitam a estabilidade coletiva e, consequentemente, a individual.   Nesse viés, o Direito Penal é mecanismo que é parte da atividade política cuja funcionalidade é exercer o atributo que mais representa a cessão de parcela da liberdade individual para o Estado a fim de que valores comuns sejam protegidos: “Nessa ótica de direitos horizontalmente planificados, podemos afirmar, sem exceção, que a sanção penal atinge uma pretensão para resguardar outra de maior valor. Assim, resta evidenciado que o escopo imediato do Direito Penal radica na proteção de bens jurídicos, essenciais ao indivíduo e à comunidade, norteada pelos princípios fundamentais, presentes, de forma explícita ou implícita no texto constitucional” (SILVA, 2007, p.74). E é nesse ponto que se instala a função da atividade penal, que deve ter por escopo “engessar” aquilo que faz jus à proteção e prever punições para quem pratica a criminalidade, que, por sua vez, é entendida como a execução de ato que extrapola o limite da liberdade ferindo e atacando valores fundamentais estatuídos. Confirmando estes entendimentos e reafirmando a função dúbia do Direito Penal que se define tanto na proteção de valores ético-sociais quanto na prevenção normativa para que tais valores não sejam atingidos, Bitencourt (2008, p.8), dispõe: “O Direito Penal funciona, num primeiro plano, garantindo a segurança e a estabilidade do juízo ético-social da comunidade, e, em um segundo plano, reage, diante do caso concreto, contra a violação ao ordenamento jurídico-social com a imposição da pena correspondente. Orienta-se o Direito Penal segundo a escala de valores da vida em sociedade, destacando aquelas ações que contrariam essa escala social, definindo-as como comportamentos desvaliosos, apresentando, assim, os limites da liberdade do indivíduo na vida da comunidade.”     À atribuição conferida ao Estado para prever e punir a criminalidade dar-se o nome de Jus Puniendi ou Poder Punitivo. Consistindo, portanto, na prerrogativa que é resguardada pelo próprio Direito Positivo de que seja legítima a ação política de aplicar punição contra os que transgrediram preceitos coletivos considerados como provedores da ordem e da convivência social estável. Do ideal de essencialidade comportada por bens que tornam razoável instituir um sistema jurídico penal protetor de valores ético-sociais, recolhe-se o conceito de bem jurídico, significando a titularidade de relevância que é dada a uma questão vital. Em outras palavras, bem jurídico é um fato cujo valor que a ele é conferido provoca o Estado para reconhecer sua importância e para certificar-lhe caráter jurídico, tutelando e garantindo sua promoção. Greco (2012, p.3) preceitua que: “Assim, já que a finalidade do Direito Penal, como dissemos, é proteger bens essenciais à sociedade, quando esta tutela não mais se faz necessária, ele deve afastar-se e permitir que os demais ramos do Direito assumam, sem a sua ajuda, esse encargo de protegê-los.” Desta feita, não é qualquer bem que é compatível com a proteção jurídico-penal, devendo ser aquele cuja representatividade na escala dos valores mais importantes esteja configurada nos que compreendem questões intangíveis e necessitadas de toda segurança eficiente oferecida pelo Estado.  Toda essa prudência que existe em torno da atividade de estatuir valores, de prever normas protetivas através da incriminação das condutas lesivas e de ensejar penalidade contra quem pratica a ofensa, diz respeito à concepção própria dos regimes políticos não totalitários, pois, em nome da própria segurança jurídica, entende-se necessário limitar a prerrogativa que detém o Estado para punir. Limitação esta emanada das próprias disposições jurídicas propedêuticas do Direito Penal e das normas estruturantes que compõem o arquétipo constitucional. Ante esta perspectiva chega-se à compreensão do que seja o Garantismo Penal, que consiste exatamente na concepção de que, em função da garantia de direitos e do resguardo da liberdade, deve-se também limitar este Poder Punitivo, de maneira que as considerações acerca dos bens jurídicos protegidos pela atividade penal deverão obedecer a óbices criteriosamente estabelecidos. Dentre estes está a Constituição, pela qual os direitos fundamentais declarados são bases para aferir o ideal de bem-jurídico de valor estimado, a ser protegido mediante a tipificação de condutas a ele ofensivas e através da punição para quem transgredir (GRECO, 2012).   Este cuidado se justifica no objetivo de se evitar que ao Estado se faça proveitoso usar de sua função punitiva para impor um governo abusivo, o que possibilitaria para quem detém do poder a ambição de se fazer alcançar interesses particulares e duvidosos sob o uso da coação e da penalidade, buscando ainda interpor limite à tendência de expansão do anseio por resolver todos os problemas sociais através da incriminação, que deturparia o princípio da subsidiariedade penal e da intervenção mínima, o que geraria a insegurança individual diante da arbitrariedade e da violência punitiva não linear, imprudente e inescrupulosa.    2. Da proteção e efetivação de Direitos Humanos por via da tipificação de condutas criminosas Na sequência de atos que compõem o tracejo do exercício do jus puniendi, que vão desde a análise dos valores que fazem jus à tutela penal, do enquadramento da conduta delituosa típica na previsão legal de crime, da cominação de pena como consequência, do processamento, do julgamento, da aplicação desta pena e da forma como se executa em face de quem cometeu o delito, uma série de princípios e direitos é invocada com o escopo de se fazer limitar este poder punitivo em nome da segurança jurídica e da animosidade que o Estado Democrático preconiza contra sistemas autoritários e violentos. Dentre os recursos de natureza jurídica que o próprio poder público se vale para tolher sua força coercitiva e controladora, destacam-se, no cenário das discussões hodiernas, as vertentes dos Direitos Humanos, que nessa utilidade se inclina na defesa de que quando o Estado excede sua autoridade, os direitos mais essenciais e anteriores a ele são reprimidos e desrespeitados, tais como a liberdade, a segurança, o bem-estar, a igualdade, a justiça e a dignidade da pessoa humana, esculpidos no texto constitucional: “A Constituição exerce duplo papel. Se de um lado orienta o legislador, elegendo valores considerados indispensáveis à manutenção da sociedade, por outro, segundo a concepção garantista do Direito Penal, impede que esse mesmo legislador, com uma suposta finalidade protetiva de bens, proíba ou imponha determinados comportamentos, violando direitos fundamentais atribuídos a toda pessoa humana” (GRECO, 2012, p.4). Destarte, considerando que tais disposições constitucionais coadunam com preceitos próprios do conceito de Direito Humano e que na própria Lei Maior promover esse direito é uma prioridade do Estado brasileiro, vislumbra-se uma persistente linha tênue presente na atividade de positivação do Direito Penal. Isto porque, ao passo que os valores agregados às condições essenciais são a fonte para conferir a elas a seletividade e a qualidade de um bem que logra mérito pela proteção jurídica, o legislador deverá observar, por outro lado, que esses preceitos também podem ser infringidos. Principalmente quando da cogitação “de como punir, o que punir e quando punir?” resultem conclusões desnecessárias. Exaure-se dessas perspectivas a noção do quanto analisar, cogitar e definir o que vai ou não ser considerado como crime punido nos moldes da atividade penal tradicionalista é uma função eminentemente complexa. Entretanto, o exercício crítico e valorativo em torno do que deve compor a pretensão punitiva e de como deve ser efetivada também é uma tarefa para instâncias científicas e discursivas que são anteriores e mais amplas que a atividade penal em si. O cuidado precípuo que as doutrinas e a função legislativa devem ter, ante o impasse entre a necessidade de proteger bens jurídicos e o limite do poder punitivo, é o de não exceder na defesa de um ou outro.   Todavia, a maneira como os debates que intensificam a relação do Direito Penal com os Direitos Humanos tem conduzido seus argumentos tendenciosamente centrados na discussão de observar esses últimos apenas quando diz respeito à figura de quem incorre na prática criminosa. É corriqueiro, na seara das publicações acadêmicas, das defesas de teses, das difusões doutrinárias e dos debates políticos, o lançamento de discussões que se engajam em trazer à baila, defesas e críticas que invocam a reconsideração de direitos fundamentais e a humanização de maneira exclusiva para a forma como o Estado vai punir, a quem vai punir e onde vai punir, sempre tendo em projeção a dignidade para quem cometeu delito: “Observa-se que, tendo como referencial os Direitos Humanos, neste momento, com intuito de revalorizar atenção à vítima, esta tem encontrado no sistema penal uma figura muito abstrata em relação a sua existência na sociedade. A atribuição do enfoque das garantias individuais no Direito Penal material e processual está voltada ao tratamento a ser dado ao réu e não à vítima […] No que se refere à proteção das vítimas (de crimes ou de violência do Estado) ainda há uma grande deficiência na efetivação dos direitos estabelecidos na legislação” (ARANDA, 2013). Longe de intentar produzir qualquer contestação da importância de exigir do Estado a devida prudência no exercício da prerrogativa punitiva, o que é questionado nesse ponto na verdade não é o chamamento dos Direitos Humanos para as problemáticas de suposta rigidez da legislação penal, da inflação punitiva ou da realidade carcerária, mas a maneira como os debates gerais da relação desses direitos com o ramo jurídico-penal têm excessivamente reiterado e focado nestes temas citados. Nessa esteira de estudos restringidos, produziu-se erroneamente e por diversas vezes, o entendimento que parece remeter ao Estado uma culpa exclusiva pela celeuma da criminalidade, como se o transgressor fosse a entidade política e como se vítima imediata e concreta fosse o criminoso. Nessa dinâmica de definição “do dever ser” e “do não dever ser” a função do Direito Penal para com os preceitos dos Direitos Humanos, em que lugar estão posicionadas as verdadeiras vítimas do crime? Isto é, onde estão os discursos de que é necessário promover e tutelar os Direitos Humanos dos particulares e da sociedade sob o viés do ativismo Penal? É até forçoso trabalhar essa perspectiva de maneira autônoma de tão escassa que é, no contexto das produções e estudos, a ideia de que prever e punir a criminalidade sejam garantir e efetivar Direitos Humanos. Ora, se a razão maior para a criação de um sistema jurídico, que age com o objetivo de manter a ordem mediante a tipificação e punição de condutas ofensivas, é a finalidade de ensejar segurança a um bem comum cujo valor é de intenso estimo para a sociedade, logo, o que de fato justifica a existência do Direito Penal é a busca pela promoção desse bem através da sua proteção. E o que teria mais mérito por essa proteção senão os próprios Direitos Humanos e a satisfação por parte dos indivíduos em ser possível gozar tais direitos de maneira integral e com a devida segurança? Se a acepção de bem jurídico é a de que consiste em fato cujo valor ensejado a ele o define como condição de extrema relevância e de indisponibilidade para a estabilidade coletiva, então os Direitos Humanos, tendo em vista a essencialidade, o caráter fundamental e basilar que comportam, estão adequados idoneamente a esse valor, não restando dúvidas de que são bens jurídicos merecedores de toda proteção viabilizada pelo Estado. Diante o exposto, fica evidente que o Direito Penal é ramo de eminente promoção dos Direitos Humanos e que, a fim de promovê-los, necessário se faz que sejam compreendidos em sua natureza de universalidade, de modo que as matérias jurídicas penais que se propõem a contribuir para a efetivação deles o façam integralmente, sem erroneamente reproduzirem a ideia de que falar desses direitos seja observar apenas as garantias atinentes ao criminoso ou à criminalidade. De fato, punir também é, por colateralidade, proteger e promover interesses relevantes, que representam bens jurídicos tanto sociais quanto individuais. 3. Homofobia: por que tipificá-la? Evidenciada a indubitável contribuição que a instrumentalização de normas penais com escopo punitivo tem para o objetivo de proteger e efetivar bens jurídicos, aos quais os Direitos Humanos representam, cabe adentrar na discussão acerca da necessidade de positivar medidas punitivas específicas para problemáticas isoladas, a exemplo da discriminação. Para tanto, é mister fazer os seguintes questionamentos: por que punir condutas discriminatórias com especificidade é necessário? O que faz dessa necessidade um fato suficiente para exigir do Estado previsões além das que já são existentes nos tipos penais genéricos? É a partir dessas indagações que, tanto os lados que defendem a atuação específica do Direito Penal, quanto os que criticam a inflação legislativa político-incriminadora, elaboram suas argumentações e fazem configurar eminente entrave. Exemplo mais recente de como o exercício legal da previsão especial de condutas ofensivas foi legitimado mesmo quando já existiam tipificações amplas da lesividade do comportamento transgressor, é a aprovação da Lei nº 11.340 de 2006, ou Lei Maria da Penha, que não criou um novo tipo penal com terminologia e abstrações autônomas, mas tipificou, especificamente, condutas cometidas contra a mulher ao prevê, dentro de um arquétipo penal que já preceituava punições para o delito em seu caráter geral, agravantes para a violência intentada em razão da vulnerabilidade e do proveito desta para reprimir e inibir a liberdade das mulheres. Maria Berenice Dias (2006), no ano em que esta lei foi publicada, observou: “Acaba de entrar em vigor a Lei 11.340 – chamada Lei Maria da Penha – que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Foi recebida da mesma forma que são tratadas as vítimas que protege:  com desdém e desconfiança. Como tudo o que é inovador, está sendo alvo de ácidas críticas. São apontados erros, imprecisões e até inconstitucionalidades. Nada mais do que injustificável resistência à sua entrada em vigor.” Isto é, do momento de sua publicação, e mesmo na fase de proposição até os anos que segue sua vigência, a referida lei foi e é alvo de alegações reacionárias, cujos posicionamentos apontam supostas ineficácia e contrariedade à ordem pátria, sustentados em argumentos tais como a violação do princípio constitucional da igualdade sexual, da intervenção mínima do poder público na vida privada e da fragmentariedade penal: “Somente quem tem enorme resistência de enxergar a realidade da vida pode alegar que afronta o princípio da igualdade tratar desigualmente os desiguais. Cada vez mais se reconhece a indispensabilidade da criação de leis que atendam a segmentos alvos da vulnerabilidade social. A construção de microssistemas é a moderna forma de assegurar direitos a quem merece proteção diferenciada. Não é outra a razão de existir, por exemplo, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso e da Igualdade Racial. E nunca ninguém disse que estas leis seriam inconstitucionais” (DIAS, 2006, p.1) No caso da mulher, o que tornou urgente a necessidade por instrumentalizar e fazer incidir uma norma específica que erradicasse concreto e simbolicamente a violência doméstica foi a ineficácia dos dispositivos genéricos processuais e materiais para com o combate da discriminação, que não conseguiam prever e alcançar os casos concretos, cuja incidência fechava-se no âmbito da moradia e para lá não se podia intervir, assim como, de lá não viria quaisquer tentativas de denúncia, pois, ameaçados, familiares e a própria mulher eram repreendidos. Somando-se ainda ao óbice cultural de uma concepção moral, machista, antiquada e latente, de que a mulher é objeto do homem e que sobre ela podia-se violentar nas mais variadas maneiras, restando-lhe o silêncio. Vislumbra-se, portanto, que a necessidade pela criação de norma punitiva que ataque a celeuma da violência com especificidade para com uma das suas formas mais torpes é reflexo da urgência por se fazer impor respeito e intangibilidade aos direitos de quem estava desprotegido, uma vez que, previsões penais genéricas, medidas de cunho administrativo e recursos de conscientização ou educação não demonstravam-se suficientes para combater a ameaça e violação direta aos Direitos Humanos, cometidas por quem achava ter a permissão de praticar a violência e do qual não se podia esperar a consciência do dever de respeito com base em escrúpulos que nem sequer os tinha. Similar ao problema da violência doméstica, a homofobia é espécie do gênero da discriminação moderna cuja demasia da infringência aos Direitos Humanos por motivos de preconceito é uma das adversidades atuais que mais clamam por um posicionamento mordaz na erradicação e desconstrução do ódio, da aversão e hostilidade para com gays, bissexuais, lésbicas, transgêneros e transexuais. Perpetrada no âmago familiar, nos centros escolares, nas igrejas, no ambiente de trabalho e nas mais variadas localidades da vida urbana, a negatividade imposta contra sexualidades adversas da heteronormatividade é um problema que está atrelado a contexto cultural alastrado durante a decorrência de imemoriáveis períodos históricos, dos quais a sociedade de hoje herdou a concepção e a consciência coletiva de que é indesejável, errado, prejudicial, vergonhoso, repugnante e inadequado ser homossexual: “O rol de violações aos direitos humanos que atinge as pessoas devido à orientação sexual ou identidade de gênero ainda constitui um padrão sistemático e global. A comunidade LGBT além de não ter seus direitos civis reconhecidos na maioria dos países, continua sendo vítima de discriminação, violência, abuso, perseguição e agressão constantes. Atualmente, relações homossexuais entre adultos continuam sendo criminalizadas em 80 países (11 deles na América central e no Caribe). Em sete países, a pena para esse “crime” é a execução” (RODRIGUES, 2011, p.28). Nesse contexto, as reações sociais, que se definiram como necessárias para fazer rechaçar essa “ameaça gay”, são as que variam desde condenações à fogueira na Idade Média, passando por execuções massivas em câmaras de gás no holocausto nazista, chegando a enforcamento em praças públicas, apedrejamento, prisões e ao ostracismo nos persistentes modelos de Estado ditatorial. Visualizando-se aí a legalização de uma conduta violadora e discriminatória, em regimes políticos cuja punição é desvirtuada dos princípios idôneos e o poder extrapola os limites do abuso e da violência. No modelo democrático, a exemplo do Brasil, não são anuídos quaisquer tratamentos desumanos impostos a uma pessoa por motivos de ter uma orientação sexual diferenciada, pelo menos não em lei. Entretanto, da mesma maneira que não permite legalmente, a norma também não proíbe. E as regulamentações esparsas, as disposições genéricas e as interpretações extensivas de arranjos principiológicos não se demonstram suficientes e nem incisivas para se fazer coibir e desarraigar a discriminação. Sendo assim, comportamentos advindos de diferentes setores sociais, imbuídos do “achismo” moral de que se a homossexualidade é errada, então a ela deve-se repudiar, cuja razão incutida é a de retaliar o que considera por desvirtuado, seja através do ataque direto, pela mitigação de outros direitos ou pela exclusão:   “A rejeição de toda conduta homossexual e sua inscrição no campo jurídico está fundada na negativa de conceder ao indivíduo sua autonomia para o exercício de sua sexualidade. Sexo é apenas uma função biológica a serviço do bem comum do casamento e seus significados de amizade e procriação. Dessa maneira, não é possível falar-se em liberdade sexual, e são admitidos tratamentos desiguais que coíbam a conduta sexual divergente de indivíduos” (LEIVAS, 2011, p.74). Mais uma vez observa-se nessas circunstâncias a semelhança com a problemática da violência cometida contra a mulher, em que, assimilando-se ao contexto anterior da aprovação de lei específica, a violação de Direitos Humanos parte de justificativas fundadas em perspectivas cultuadas pelo tempo e pela extensão de acepções morais que acreditam ser permissivo destratar alguém. Mas por que a legislação ainda é omissa, tendo em vista a urgência que se configura por proteger minorias em face de condutas violentas que não condizem com o atual momento da promoção isonômica de direitos e valores éticos? Insurge-se desse questionamento a mais problemática das situações, em que, o Estado safa-se pelo viés da negligência, pois, não sofre represália por legitimar condutas opressivas, mas também não desprestigia os interesses de uma maioria mediante a imposição expressa de proibições às condutas discriminatórias: “A omissão covarde do legislador infraconstitucional de assegurar direito aos homossexuais e reconhecer seus relacionamentos, ao invés de sinalizar neutralidade, encobre grande preconceito. O receio de ser rotulado de homossexual, o medo de desagradar seu eleitorado e comprometer sua reeleição inibe a aprovação de qualquer norma que assegure direitos à parcela minoritária da população alvo da discriminação” (DIAS, 2011, p.168). As consequências desse descaso por conta de um indiscreto preconceito alcançam a esfera da instrumentalização processual, de maneira que somando-se a elas, reproduzindo também o descompromisso e desinteresse por se fazer reafirmar direitos evidentes, as autoridades tratam o problema da homofobia com indiferença no trabalho de investigação, indiciamento, persecução e processamento dessa conduta lesiva, ainda mais quando não têm um aporte legal em que se apoiar para considerar típico e verossímil o prejuízo causado em razão dessa discriminação. Restando apenas o enquadramento nas previsões genéricas já existentes, que se demonstram insuficientes. E essa ausência de interposição legal que obrigue o poder público a perseguir tal ofensa específica dá margem para que o preconceito, que parte dos próprios servidores, invalide até mesmo o compromisso por perseguir as transgressões já previstas (DIAS, 2011). Nota-se a cada fechamento dos aspectos que estão em torno desse problema, que progressivo é o reconhecimento da relevância da implementação de medidas legais e políticas que interponham posicionamento mais contundente na erradicação da discriminação. E no caso da homofobia, diante do descaso legal, da insuficiência dos recursos existentes e do crescimento vertiginoso da violência por motivos torpes contra um grupo, indubitável é a necessidade de combater este problema com mais rigidez e especificidade, com escopo de proteção e efetivação de bens jurídicos evidentemente relevantes: “Neste quadro, as violações físicas diretas à vida e à integridade física de grupos contra os quais se dirige a discriminação homofóbica são realidades inadmissíveis, cuja superação é vital para promoção dos direitos humanos. Diante de episódios, cuja frequência horroriza, não se deve exigir menos que a atuação dos órgãos estatais de persecução penal, extraindo-se do direito penal e do direito civil toda a responsabilidade cabível” (RIOS, 2007, p.136). Assim sendo, a invocação da pretensão punitiva pode não ser, por si só, a solução integral, mas com certeza representa a corroboração simbólica e coercitiva mais incisiva de que é inaceitável a violação de Direitos Humanos por motivos tão antilógicos. Nesse ponto, defende-se que tipificar a violência homofóbica é o mecanismo central no combate a essa espécie de discriminação, pois, a partir dela é que se tem base e suporte jurídico mais eficaz para implementar outras medidas e para simbolizar o quanto ela é indesejável em um Estado cuja intenção é ser democrático (pelo menos em tese). É a sua incriminação que interporá à sociedade a obrigação mais mordaz de observar tolerância às diferenças: “Ou seja, com a punição penal, reafirma-se que determinada conduta afronta valores fundamentais de uma sociedade, exteriorizando a desaprovação social da atitude. Serve, pois, como marca de que, em nosso sistema democrático, não são admitidas certas atitudes as quais afrontam direito, humilhando e inferiorizando populações que dentro do nosso contexto social, já são vítimas recorrente de toda sorte de discriminação” (SOUZA, 2012, p. 37). Relatórios feitos pelo Governo Federal[1] sobre a realidade do problema da discriminação homofóbica, demonstraram que no ano de 2011, no Brasil, foram reportadas 6.809 violações cometidas em razão do preconceito contra orientação sexual e identidade de gênero, onde 1.713 foram os números de vítimas. Inferindo-se que em média 5,0 pessoas sofreram algum ou vários tipos de violência homofóbica por dia, em que o indivíduo não sofre apenas pelas agressões físicas, mas também pelo constrangimento, por meio de humilhações e injúrias. Esse número representa maioria do contingente de denúncias que são feitas a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência e a outros órgãos federais e estaduais, sendo 67,8% do total – o dobro das queixas para os módulos conjuntos da violência contra crianças e adolescentes, deficientes, moradores de rua, idosos e mulheres. Em 2012 este índice subiu para 9.982 violações e 4.851 vítimas, um aumento de 46,6% e 183,19 % respectivamente. Nesses dois anos aponta-se que mais de 65% das vítimas são do sexo biológico masculino (inserindo-se aí também os transgêneros e transexuais). Da análise do perfil dos suspeitos esse espectro também é o mesmo. Isto é, dos 7.059 denunciados em 2011 e 2012, mais de 60% são pessoas do sexo masculino. Apontamento que remete o problema a causas oriundas das questões sexistas e hétero-repressivas, que justificam as violências partindo da concepção excedida de que o ideal de “homem” não é praticar nenhuma das condutas perpetradas por homossexuais. Entre homens e mulheres que cometeram a violação, mais de 80% dos praticantes da ofensa foram informados como heterossexuais. Da análise realizada por este mesmo grupo sobre instrumentos de difusão de notícias que nos informam diariamente sobre a violência homofóbica, foram apresentados dados (comprovados pelas delegacias e departamentos competentes onde os casos foram registrados) que no Brasil, juntando 2011 e 2012, 588 homicídios foram cometidos exclusivamente por motivo dessa discriminação. Entre as vítimas, 94,52% são do sexo biológico masculino e 5,48% são do sexo biológico feminino; 40% são travestis, 54,19% são gays e 5,48% são lésbicas. Destes casos, 49% aconteceram nas ruas e 24% nas residências. Entre os suspeitos, mais de 90% são homens e no tocante às formas ou ao que foi usado para cometer os crimes, 36,13% foram com uso de armas de fogo, 30,32% com uso de faca, 7,74% por espancamento, 6,45% por asfixia, 5,48% por pauladas, 4,19% por pedradas e 1,94% por incineração, revelando o aspecto truculento e o caráter de motivação pelo evidente ódio. Diante dessas disposições cabe ressaltar que, de fato, a maneira de apontar realidade em espectros estatísticos, tomando por base a denunciação e a noticiação, não é a forma mais eficiente de se fazer vislumbrar a problemática em sua concretude. Entretanto, ante a inoperância dos órgãos competentes em registrar e fichar as ofensas que são cometidas em razão desse tipo de discriminação, inclusive porque lhes faltam aporte legal que tipifique e encrave a homofobia como delito, as informações relatadas são suficientes para compreender que um posicionamento legal é necessário tanto para erradicar as condutas em si quanto para impulsionar o avanço de outras medidas e instrumentos que tenham esse mesmo fim. 4. Projeto de Lei da Câmara nº 122/2006: Com a quantidade crescente de aportes bibliográficos publicados, intentados a discutir o reconhecimento de direitos sexuais, e com o surgimento de organizações que se preocuparam em mapear e demonstrar, ainda que limitadas, a realidade da prática da discriminação, cuja incidência é velada pela negligência das autoridades, tem-se a impressão de que estas questões só ganharam visibilidade agora. Em parte, esse entendimento não é equivocado. Entretanto, observa-se que essa notoriedade só insurge-se com tanta veemência porque é tido como urgente, tanto em nível nacional quanto global, que para o Estado seja obrigatório efetivar esses direitos humanos de maneira mais eficaz, inclusive pela implementação de medidas que assegurem a regalia de exercê-los e a proteção contra transgressões reacionárias também crescentes. Cinge-se nesse ponto a crítica que aponta o quanto a necessidade por regulamentar direitos só é enxergada quando a turbação deles já é concretamente evidente. E no Brasil não é diferente. É importante ressaltar que inserido num contexto de relativa ascensão econômica e de presença enfática no cenário das relações globalizadas, o Estado brasileiro é engrenado a apresentar eminente faceta de influenciável e de influenciado. Nessa dinâmica, os valores sociais constantemente mudam, buscam se adequar ou produzem novas concepções que são construídas por influências internas e externas. De abordagens anteriormente frisadas se auferiu a compreensão de que o valor estimado no almejo e interesse por Direitos Humanos, está inserido na avidez por exercer as liberdades individuais, os direitos de personalidade, a livre expressão, os direitos civis e a dignidade individual. Em âmbito nacional também são progressivos estes anseios, de modo que as novas gerações têm edificado concepções e ideologias que partem destes mesmos preceitos compartilhados hodiernamente em grande parte do mundo. Desta feita, destaca-se a sexualidade como um dos fatores principais que tem apresentado modelações sobre valores. Recaindo no expoente de como vivê-la e com quem vivê-la. Assim também, tem sido apontada como principal vetor do discurso de respeito à liberdade pela qual pessoas estão dispostas a reivindicá-la e vivenciá-la em estilos, gostos, vertentes e comportamentos sem limitar sua vontade e nem ceder a pressões sociais, mesmo com a discriminação fortemente arraigada ao ambiente em que vivem. Diante disto, é que emerge o complexo desafio para o Estado de como fazer para lidar com o embate configurado entre novas concepções e o paradigma conservador e reacionário, que, na maioria das vezes, dá margem para a discriminação. No Brasil que intencionava estruturar o modelo mais democrático de sua história política no período próximo do constitucionalismo de 1988, o mais razoável seria ter ratificado disposições que objetivassem sanar integralmente todas essas celeumas que impedem promover a isonomia e a inclusão almejadas, de maneira que buscasse projetar a construção de uma sociedade adequada para o momento atual. No caso de qualquer aspecto relacionado ao direito de se definir sexualmente, pelo menos não foi por ausência de pretensões políticas que se olvidou legislar: “Desde a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 que se pretende colocar proteção às minorias em razão de orientação sexual no texto constitucional. Os constituintes da subcomissão dos negros, populações indígenas, pessoas deficientes e minorias chegaram a receber, em sessões de meados de 1987, João A. de Souza Mascarenhas, então diretor de comunicação social da ONG Triângulo Rosa, que discursou sobre a importância de constar a expressão “orientação sexual” na proteção contra a discriminação” (BAHIA apud Folha de São Paulo, 2012, p.7). Entretanto, todas as intenções por incluir no bojo da Lei Maior as disposições que faziam menção ao combate da discriminação motivada por razões de sexualidade fracassaram. Nesse sentido, muitas outras tentativas de emendas ou propostas de leis infraconstitucionais foram apresentadas. Bahia (2012) destaca o PL 4.242, do Deputado Edson Duarte; o PL 3.770/2004, do Deputado Eduardo Valverde; e os PL. 5/2003 e 5.003/2001, da Deputada Lara Bernardi. Sempre trazendo à baila o mesmo entrave de discussões pautadas em demasiados fundamentos jurídicos e morais, a análise de propostas desta natureza são alastradas por anos na alternância entre as casas do Congresso. Na maioria das vezes o destino é o arquivamento, motivado pela pressão dos que conseguem compor contingente influente na ambiência do legislativo a ponto das aprovações e pautas lhes ser favorável. O mais recente e famigerado entre estas proposições é o Projeto de Lei da Câmara nº 122 de 2006, que é uma variação do PL 5.003/2001 e ganhou essa nomenclatura após ser aprovado na Câmara dos Deputados em 2006 e aditado por diversas vezes desde o início de sua tramitação no Senado, permanecendo aí protelado por arquivamentos, projetos substitutos, pareceres, debates, análises nas comissões e controvérsias políticas. No ano de 2011 o PLC 122 foi desarquivado pela senadora Marta Suplicy (PT-SP), assumindo também sua relatoria. Desde então, referida proposta aguarda aprovação na comissão de Direitos Humanos, na de Constituição, Justiça e Cidadania e no Plenário. Em suma, o PLC 122, apelidado de “lei da homofobia”, objetiva alterar a Lei 7.716/1989 que criminaliza as ofensas resultantes de discriminação e preconceito, tipificando as discriminações cometidas em razão de orientação sexual, de idade, de deficiência, de sexo, de gênero e identidade de gênero ao enquadrá-las no rol das espécies previstas como possíveis de punição. No tocante a esse projeto cabe destacá-lo em suas seguintes disposições: “Art. 3º A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, passa a vigorar com a seguinte redação: Art.1º Serão punidos, na forma desta lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem, condição da pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero. Art. 20 Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem, condição da pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero. Pena: reclusão de um a três anos e multa Art. 8º-B Proibir a livre expressão e manifestação de afetividade do cidadão homossexual, bissexual ou transgênero, sendo estas expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos ou cidadãs: Pena: reclusão de dois a cinco anos Art. 20-B. A interpretação dos dispositivos desta Lei de todos os instrumentos normativos de proteção dos direitos de igualdade, de oportunidade e de tratamento atenderá ao princípio da mais ampla proteção dos Direitos Humanos.” Nestes termos, observa-se que o supracitado projeto promove também a viabilização de mecanismos que combatam outros problemas de discriminação, cujas intermediações estatais são omissas ou ineficazes, tais como a de violação de direitos dos deficientes. E da análise mais específica sobre esta última predição, conclui-se que, pelo entendimento do teor dessa proposta, a norma incriminadora é um evidente instrumento de promoção de Direitos Humanos. 5. Discursos hipotéticos que justificam ou invalidam a necessidade de criminalizar a homofobia; Dos posicionamentos debruçados em defesa da tipificação da homofobia auferem-se as argumentações de que prever a punição é indubitavelmente proteger evidentes bens jurídicos, tal como se preceitua o entendimento mais majoritário sobre a função do Direito Penal. E por proteger, a lei também está, por outro viés, promovendo estes bens, que nada mais são do que o arranjo de direitos que a todos se deve assegurar. Inferindo, portanto, que leis dessa natureza são importantes e necessárias: “A intolerância viola o direito à existência simultânea das diversas identidades e expressões da sexualidade, que é um bem comum indivisível. Uma vez acionada, a intolerância ofende o pluralismo, que é requisito para a vida democrática. Daí a compreensão de que os chamados crimes de ódio, manifestação que merecem intensa reprovação jurídica, atentam contra a convivência democrática. Daí também a propriedade da utilização de ações coletivas para a proteção e promoção do direito ao reconhecimento das identidades forjadas e estigmatizadas num contexto heterossexista (RIOS, p.136).” Como exemplo de imposição da reprovação jurídica tal como preconiza o autor citado, o PLC 122/06 é o que se tem de proposta mais concisa em tramitação. Entre os resultados hipotéticos que esta proposição aponta, os que estão ao seu favor concluem que aprová-la é fazer, na prática, com que os Direitos Humanos sejam efetivados, tendo em vista que, interpõe a obrigação pela observância de prerrogativas como a liberdade, a integridade, a livre expressão, o trabalho e a afetividade: “Há muitas formas e meios de promover a morte social, sendo a discriminação a principal entre elas. Daí o mérito dos instrumentos para coibi-la e sua relevância num sistema jurídico referenciado nos Direitos Humanos e nas liberdades públicas. Esta Relatoria entende que o PLC nº 122, de 2006, tem pleno mérito na adequada definição de sujeitos e condutas criminosas, em face da inegável necessidade de recursos penais para coibir a discriminação homofóbica no território nacional e em função de garantir a universalidade do direito à igualdade e à diversidade entre os cidadãos e cidadãs[2].” Mas então o que obsta, mesmo diante de sua relevância, que essa proposta de lei complementar seja aprovada? O que faz dela um motivo de demasiada discussão no cenário das publicações doutrinárias, das acadêmicas e no âmbito das atividades legislativas? Críticas, polêmicas e interesses políticos fechados a parte, é evidente o reconhecimento de que esta é uma problemática suscetível para conflitos de abordagens jurídicas, para as quais é imprescindível a análise científica com cautela e com a finalidade de se evitar a legalização de instrumento que objetiva sanar um problema, mas que pode gerar outros mais com potencial de infringir bens jurídicos anteriormente estatuídos.  Entre as questões suscitadas, a cogitação pela aprovação ou não do PLC 122 dá margem para que sejam discutidos, principalmente, a Inflação indevida da lei penal e a contrariedade ao Direito Penal Mínimo; o tolhimento da liberdade de opinião e a limitação do direito de crença. Em um estudo que elencou argumentos favoráveis e contrários, Guimarães (2012) abordou que em se tratando das hipóteses que invalidam a criminalização da homofobia, a principal vertente é a de que a tipificação desta conduta produziria nada mais que a expansão desnecessária do Poder de Punir. Segundo a sua pesquisa, diante da realidade precária do sistema carcerário brasileiro, o ideal seria evitar ao máximo que novos arquétipos penais sejam legalizados. Ainda mais quando é defendido, por parte significante das ciências criminológicas, que penalizar não significa em nada garantir a redução da criminalidade. Pelo contrário, a atividade penal apenas representa o descompromisso do Estado para com questões atinentes à promoção de educação e de condições básicas que eliminam a decorrência de delitos diretamente em suas raízes. Nesse sentido, acontecerá o mesmo no caso da homofobia: os resultados serão apenas a punição que beira o abuso do poder; o descaso para com políticas de prevenção do crime quando o Estado e a sociedade entendem que punir é a solução de tudo; a continuidade do preconceito e a acentuação do ódio por parte do agressor diante da repressão que sofreu; a inflação do desejo de vingança social e o agravamento da superlotação carcerária. Recolhe-se também das argumentações contrárias ao PLC 122 o receio por estar sendo aprovada uma medida que, por ser fortemente coercitiva e de cunho limitador, submeta a sociedade aos riscos de uma insegurança jurídica. Um desses riscos seria a insuficiência em projetar, para a concretude prática, o entendimento do que realmente é capaz de configurar uma discriminação em razão de orientação sexual, identidade de gênero, sexo, condição da pessoa idosa e do deficiente. O maior e mais discutido desses temores diz respeito às invocadas liberdades de opinião e liberdade de crença, tendo em vista a relação destes preceitos com a proibição da discriminação homofóbica. Nesse ponto, a corrente contrária ao PL preceitua que aprová-lo seria permitir punir e vedar opiniões de pessoas que não concordam com a homossexualidade ou que, se embasando em acepções religiosas, poderiam ser denunciadas e submetidas a uma punição por difundirem aquilo que crêem. Desta feita, o PL é considerado inconstitucional e antidemocrático, pois censura e viola os valores sobre a autonomia intelectual, a livre expressão e o direito de convicção religiosa: “[…] em oposição às tendências modernas do Direito Penal, que descriminaliza condutas, o abominável projeto quer impor, criminalizando e dispondo o aparato policial a serviço de um grupo restrito, valores que chocam com o que pensa a esmagadora maioria da sociedade brasileira que é, eminentemente, cristã e heterossexual. Portanto, o Congresso Nacional está para aprovar uma lei que impede – e mais que isso, criminaliza! – qualquer manifestação – seja ela intelectual, filosófica, ideológica, ética, artística, cientifica e religiosa – contrária ao homossexualismo e às suas práticas (JUNIOR, 2013, p.2).” É por isso que, no entorno das atividades legislativas, as reações mais ferrenhas que vão de encontro com quaisquer proposições de reconhecimentos e mudanças sobre direitos sexuais, partem, na maioria das vezes, das representações religiosas que compõem contingente político inserido no Congresso Nacional, mais precisamente da bancada evangélica. Isto porque a maioria dessas propostas não tem aprovação das concepções e doutrinas tradicionais que pregam grande parte das religiões, não sendo interessante para seus representantes coadunar com leis que contrariam ou coloquem em descrédito os preceitos que estas crenças difundem a imemoriáveis tempos. Em um dos debates entravados na Câmara dos Deputados sobre o PLC 122, o deputado Jefferson Campos (PTB-SP) deflagrou o seguinte discurso: “Sr. Presidente, Sras. E Srs. Deputados, como pastor evangélico e cidadão brasileiro, tenho visto o levante que está acontecendo no Brasil na questão dos homossexuais. ONGs e associações que defendem os homossexuais têm se organizado na esfera política, e entraram no Legislativo Federal, tentando fazer valer leis que os colocam como cidadãos intocáveis no Brasil. A inconstitucionalidade do PL cerceia de forma velada a liberdade de pensamento e de crença, garantida pela nossa Constituição, e cria uma superlei, dando superdireitos aos homossexuais. Essa pretensa lei impõe pena de reclusão de até 5 anos para qualquer manifestação, ainda que de ordem religiosa, ou filosófica, de oposição ao homossexualismo. […] Portanto, o projeto é flagrantemente inconstitucional porque significa a implantação do totalitarismo e do terrorismo ideológico de Estado, com manifesta violação à livre manifestação do pensamento, à inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença. (Art. 5º da Constituição) (CAMPOS, 2008).” Emitindo parecer favorável pela aprovação e apresentando um substituto do projeto, que atualmente aguarda a entrada em pauta pela Comissão de Direitos Humanos, após ter sido aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais (CAS), o Senador Paulo Paim (PT) que é relator da proposta na CDH do âmbito do Senado, destacou a necessidade de se invocar o Direito Penal para erradicar a discriminação e, consequentemente, promover Direitos Humanos: “Não temos dúvida da necessidade de recorrer aos mecanismos penais para coibir a discriminação no território nacional e para garantir a universalidade do direito à igualdade e à diversidade, pois a homofobia é um ato juridicamente condenável, merecedor da represália social e estatal […] Desse modo, em consonância com a Constituição Federal, o texto que ora propomos almeja proteger a vida, não apenas em seu sentido biológico, mas nas relações sociais indispensáveis ao seu desenvolvimento. É certo que as condutas criminalizadas não tratarão da esfera da consciência, mas da esfera da convivência, definindo apenas comportamentos que impliquem lesão a direito alheio. (PAIM, 2013).” Ainda em sua exposição escrita, Paim atenta que legalizar medidas repressivas da discriminação em nada afronta a premissa da intervenção mínima do Direito Penal, pois é inteiramente constitucional, diante de um Estado que faz da tolerância uma das suas marcas definidoras, abolir o preconceito por vias da persecução: “[…] consciência da indivisibilidade dos direitos humanos está na raiz do combate ao preconceito e à discriminação, que tem sede constitucional no Brasil. A solução para o problema no momento civilizatório que vivemos está na elaboração de norma que reforce a perspectiva de prevalência dos direitos humanos e condene toda prática atentatória de direitos que tenha por fundamento o ódio e a intolerância por qualquer característica ou condição do ser humano. Afinal, não há preconceito ou discriminação que seja menor ou menos prejudicial à integridade e à dignidade humana, porque essas práticas são igualmente lesivas e desumanizantes.”   No intento de sanar as controvérsias entre o combate à discriminação e as questões da liberdade de opinião e de crença, o projeto foi retificado pelo seu substituto com o escopo de flexibilizar suas disposições e a elas abrir exceções. Por exemplo, ao art. 8º – que previa punição para quem proibisse a manifestação de afeto para alguns em local onde se é permitido para outros – foi acrescida menção “resguardando o respeito devido aos espaços religiosos.” O que para o relator é disposição suficiente para se fazer expandir a interpretação de que permanecem resguardadas as referidas liberdades. Mesmo com a nítida intenção de ser modelável aos ditames tradicionais, a aspereza dos que se opõem em desfavor de anuir a proposta é persistente. As mais recente das tentativas de estabelecer acordo entre prós e contras à aprovação foram realizadas nos últimos meses da sessão legislativa, para a qual o portal eletrônico de notícias do Senado destacou: “Falta de Consenso Impede Votação de Projeto que Criminaliza Homofobia – Manifestações de deputados da bancada evangélica e de representantes de igrejas marcaram a primeira tentativa de votação, nesta quarta-feira. Em sentido oposto, o senador Magno Malta (PR-ES), que é evangélico, afirma que o texto atual não contempla ninguém com interesse na questão. “Acompanhamos o esforço do senador Paim. Realmente, não é matéria fácil. Nem vou entrar no mérito, mas não podemos deixar um legado infame para as gerações futuras” [3].  Após diversos adiamentos devido a inexistência de acordos e a resistência das discussões, um requerimento do Senador Eduardo Lopes (PRB-RJ) para apensar o PLC à proposta de reforma do Código Penal foi aprovado em 17 de Dezembro de 2013, retirando do referido projeto as possibilidades de ser deliberado isoladamente, o que para os seus defensores significa uma possível derrota diante das circunstâncias que levem ao tratamento indevido para com o problema da homofobia, tendo em vista a quantidade de outros assuntos a serem legislados.   Isto posto, nota-se que quaisquer predisposições voltadas à desconstruir e erradicar a discriminação em razão da sexualidade, a exemplo do PLC 122, será inevitavelmente objeto de intensa disputa ideológica e política. De fato, há um evidente conflito entre valores e garantias constitucionais que deve ser observado, mas sem que as conclusões tomadas restem em demérito para uns ou para outros. Entretanto, mesmo que sendo visíveis as possibilidades de se fazer efetivar uma solução adequada para essa divergência, é mais visível ainda que isso não aconteça porque está em jogo interesses dos que concebem a democracia como o governo da maioria.     CONCLUSÃO Como diria o renomado e clássico jurista austríaco Hans Kelsen, o ilícito jurídico não é negação, mas sim, pressuposto do Direito. É como se a existência dos contrários fosse elementar para a construção do ponto de sustento e justificativa para que se efetive o Direito. Nesse sentido, definir ou tipificar o que é o delito e a ele cominar coação, não é limitar-se a isso, mas também é internalizar a presunção do seu contrário, que é o “não-delito.” Destarte, reforçar-se a concepção do “dever ser” ao torná-lo intrínseco e presumível na disposição do “não dever ser.” Distante de querer apontar essa teoria como absoluta, colhe-se seu fundamento como embasamento para dispor um fechamento perspicaz sobre a proposta de criminalização da homofobia e sobre a suposta efetividade de Direitos Humanos por via da atividade punitiva. Se pudéssemos definir o mundo moderno em uma palavra, com certeza uma das primeiras seria o termo “diversidade.” Com o estreitamento dos contatos entre diferentes culturas e da variedade de formas ou instrumentos dispostos a facilitar e ampliar as possibilidades da relação entre elas, é evidente que a diversidade cultural, a diversidade de raças, de religiões, de gêneros, de pensamentos, de gostos e concepções representam, de fato, a ordem e a progressão do contexto social hodierno. Estimular essa diversidade é eminentemente favorecer a tolerância, impulsionando a humanidade a um patamar muito mais elevado de bem-estar e racionalidade. Tomando emprestado o conhecimento de Lévi-Strauss, pode-se dizer que a diversidade é vetor de toda a evolução humana. Em se tratando da diversidade sexual e do reconhecimento de direitos que dela advêm, estas culturas têm suscitados diferentes maneiras de lidar com isso. Entre os que são apontados como avanços destacam-se: a legalização da união homoafetiva em lugares como Dinamarca, Holanda, Espanha, Canadá, Portugal, Argentina, Uruguai, França, Nova Zelândia e Estados Unidos e a aprovação de leis que criminalizam a discriminação nestes mesmos países e em outros como Bolívia, Colômbia, Equador, México, Inglaterra, Austrália, Irlanda, Escócia, Suécia, entre outros. A maioria com legislações aprovadas entre os últimos cinco anos, visando erradicar as violações em razão do preconceito pela via do ativismo judicial. Na contra mão das melhorias, mais de 80 países permanecem criminalizando a homossexualidade, com punições que podem chegar à pena de morte. O Projeto de Lei da Câmara n 122 de 2006 – que objetiva incluir a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero no rol dos crimes previstos pela Lei nº 7.716 – foi aqui referenciado como o aporte jurídico que melhor tem se demonstrado como propositura de medidas mais próximas de se efetivar o combate à discriminação em seus diversos tipos. Entretanto, assim como visualizado, uma série de questões políticas e jurídicas tem obstado sua aprovação. Sobre elas incumbe aqui interpor entendimentos necessários para facilitar uma posição conclusiva sobre a problemática geral trabalhada. Primeiramente, é mister ressaltar que a famigerada liberdade de opinião não consiste em prerrogativa com a qual seja possível deflagrar uma convicção sem observar limites que a ponderam. Esse direito garantido constitucionalmente não significa legitimação para infringir ou promover a violação dos direitos de outrem, ao se valer disto para propagar concepções que denotam o ódio e a intolerância. Desta feita, entende-se que o conflito apontado entre o PLC 122 e a liberdade de opinião é aparente, pois, longe de querer censurar quaisquer ideologias quando expressadas singelamente, essa proposta na verdade é suporte, permitido pela própria constituição, para se evitar opiniões que extrapolam os limites da aceitação. Nesse mesmo sentido, ter a convicção e o direito de expressá-la com base em qualquer crença de que a orientação ou identidade sexual de outra pessoa é algo errado não constitui o problema que é objeto da lei, mas sim o potencial que a inflação desses pensamentos tem para gerar a discriminação, quando impostos em práticas que incitam o tratamento pejorativo e a perseguição. Ante o exposto e inferindo considerações que depreendem a veracidade dos argumentos que apontam a norma penal como mecanismo de efetivação da tutela de direitos, retoma-se a teoria de Kelsen: a lei ainda é o instrumento jurídico mais importante na escala dos insumos coercitivos utilizados pelo Estado para promover a ordem. Por si só ela não é suficiente para que de fato se cumpram direitos e deveres que estatui, porém, é a partir dela que ganham visibilidade e consistência no meio coletivo. Não se pode negar que questões como a ética, os valores e a educação são elementares para construir uma sociedade mais justa e consciente sobre o devido respeito para com a liberdade e integridade de outrem. Entretanto, por parte do Estado, na necessidade de reforçar esses valores, a missão de fazê-lo se demonstra insuficiente se é ausente a incidência de lei como aporte capaz para difundir na sociedade o que é proibido e o que é permissivo. “Não há crime, nem pena sem lei anterior que os defina” e “não há direito sem ação”, são adágios que melhor ensejam a convicção da importância da lei para o alcance da ordem. Nessa esteira, considera-se aqui que as leis antidiscriminatórias são indubitavelmente necessárias para a efetivação de Direitos Humanos. Por elas é que se reforçam a idoneidade do bem jurídico tutelado e se dissemina no consciente coletivo a ideia de que destratar, constranger e violentar alguém por conta de quaisquer preconceitos ínfimos é contrariar o ordenamento vigente e é merecer a reprovação jurídica. Nota-se, pois, o caráter simbólico do Direito Penal. Se a eficácia da norma alcançará resultados concretos além de sua natureza axiológica e se na prática os Direitos Humanos serão respeitados, dependerá muito do compromisso das autoridades e da emancipação das vítimas como sujeito de direitos.
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Caso Garibaldi vs Brasil: análise da decisão internacional da Corte Interamericana de Direitos Humanos que responsabilizou o Estado brasileiro em caso de execução extrajudicial de trabalhador rural sem terra
Neste trabalho analisa-se a decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Garibaldi vs Brasil, expondo a importância de o Estado respeitar, sob pena de responsabilização, os compromissos internacionais assumidos no âmbito do sistema regional interamericano de proteção dos direitos humanos.
Direitos Humanos
1. Introdução Levando-se em conta o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos[1], será analisada uma recente decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, doravante denominada apenas Corte, em que o Estado brasileiro foi responsabilizado quanto à não apuração satisfatória da execução extrajudicial de um trabalhador rural sem terra, tomando-se como parâmetro normativo a Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica[2]. Diante de inúmeras desocupações de terra ocorridas todos os anos, em que os direitos humanos, não raro, são frequentemente violados, o caso Garibaldi vs Brasil ganha relevo em razão de sua atualidade e das consequências gravosas ao Estado brasileiro. Antes, não há se falar em antagonismo entre os sistemas global e regional. Ao contrário, são complementares[3]. Diante dos instrumentos de proteção internacionais, cabe a quem sofreu a violação, eleger o aparato mais favorável, tendo em vista que, eventualmente, direitos idênticos são tutelados por dois ou mais instrumentos de alcance global ou regional, ou, ainda, de alcance geral ou especial, sendo que os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos (PIOVESAN, 2006, P.225). Na tramitação do processo perante a Corte, já acentuava a Comissão Interamericana de Direitos Humanos que o Brasil deveria adotar “medidas eficazes com o fim de evitar a proliferação de grupos armados que pratiquem desocupações clandestinas violentas”[4]. Com este exemplo de execução sumária, muito presente na realidade brasileira[5], busca-se ressaltar a importância crescente do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Com a responsabilização, o Estado vê-se na necessidade de implementar medidas não apenas repressivas, mas preventivas quanto a eventos que representem violação a compromissos assumidos internacionalmente, até mesmo por força de pressões oriundas da comunidade internacional. Ver-se-á que, com a sentença proferida pela Corte, como já acentuado por LIMA JR.(2006, p.221) quando realçou a sua importância no caso Mayagna Awas Tingni vs Nicarágua, relacionado à proteção da propriedade comunitária tradicional indígena, recupera-se, embora não tendo o propósito de se sobrepor à decisão nacional, o sentido para o qual o Poder Judiciário se justifica. Essa exposição, antes de tudo, visa contribuir para divulgar a efetividade dos mecanismos de proteção interamericano dos direitos humanos, não podendo ser deixados em plano secundário. 2. O caso Garibaldi vs Brasil 2.1 Considerações iniciais A análise do caso por parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos decorreu de petição apresentada em 6 de maio de 2003 pelas organizações Justiça Global, Rede Nacional de Advogados e Advogados Populares (RENAP) e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), decorrente do homicídio do Sr. Sétimo Garibaldi, ocorrido em 27 de novembro de 1998, durante uma operação extrajudicial de despejo de famílias de trabalhadores sem terra, que ocupavam uma fazenda no município de Querência do Norte, Estado do Paraná. Narra a sentença, que cerca de cinquenta famílias, vinculadas ao MST, estavam ali acampadas, quando às cinco horas da manhã, um grupo com cerca de vinte homens, encapuzados e armados, chegaram à fazenda efetuando disparos ao ar e ordenando aos trabalhadores que deixassem suas barracas e se dirigissem ao centro do acampamento, lá permanecendo deitados no chão. Quando o Sr. Garibaldi saiu de sua barraca, foi ferido na coxa esquerda por um projétil de arma de fogo calibre 12, não resistindo ao ferimento e vindo a falecer em decorrência de uma hemorragia. Foi aberto inquérito policial para fins de apuração dos crimes de homicídio, porte ilegal de arma por parte do administrador da Fazenda, reconhecido por testemunhas como um dos membros do grupo armado, e de formação de quadrilha ou bando. Sem chegar a uma solução amistosa, a Comissão, conforme previsto no artigo 50 da Convenção Americana de Direitos Humanos, produziu relatório com determinadas recomendações para o Estado brasileiro, dando-lhe um prazo de dois meses para comunicar as ações empreendidas com o propósito de implementá-las, conforme Relatório de Admissibilidade e Mérito nº 13/07. Diante da omissão, a Comissão decidiu submeter o caso à jurisdição da Corte[6]. As organizações Justiça Global, RENAP, Terra de Direitos, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e MST requereram à Corte, em 11 de abril de 2008, que declarasse a violação dos direitos à vida e à integridade pessoal, em prejuízo de Sétimo Garibaldi, e dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, em prejuízo de Iracema Garibaldi, viúva, e de seus seis filhos. Requereram, ainda, diversas medidas de reparação. O Estado brasileiro, por sua vez, em 11 de julho de 2008 interpôs contestação na qual requereu como preliminares (a) o reconhecimento da incompetência ratione temporis da Corte para examinar supostas violações ocorridas antes do reconhecimento da jurisdição contenciosa pelo Brasil; (b) a não admissibilidade, por extemporâneas, de petições dos representantes das vítimas; (c) a exclusão, da análise do mérito, do suposto descumprimento do artigo 28 da Convenção[7]; e (d) a declaração de incompetência da Corte em razão do não esgotamento dos recursos internos. Quanto ao mérito, alegou que nada indicava que os procedimentos de investigação houvessem sido conduzidos de forma a contrariar dispositivos do Pacto de San Jose da Costa Rica. 2.2 Providências policiais e judiciais das autoridades brasileiras Os fatos anteriores a 10 de dezembro de 1998, data em que o Brasil reconheceu a jurisdição obrigatória da Corte, foram considerados apenas como antecedentes, deles não advindo qualquer consequência jurídica. Por exemplo, para fins de verificação da suposta parcialidade da magistrada que denegou determinado pedido de prisão temporária, testemunhos colhidos antes daquele marco temporal não puderam ser analisados pela Corte. O inquérito policial foi aberto em 27 de novembro de 1998 e durante mais de cinco anos o Ministério Público requereu a realização de diligências, além da oitiva de testemunhas. Outras diligências foram determinadas pelas autoridades policiais que o presidiram. O inquérito foi arquivado em 18 de maio de 2004 após requerimento do Ministério Público, fundamentado principalmente em supostas divergências entre os testemunhos, que impossibilitavam identificar a autoria do homicídio. Contra tal decisão, Iracema Garibaldi impetrou Mandado de Segurança em 16 de setembro de 2004, denegado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná em 17 de setembro daquele mesmo ano. Em 20 de abril de 2009, o Ministério Público requereu o desarquivamento do inquérito e a realização de diligências outras com base na alegação de surgimento de novas provas, especificamente as declarações de Vanderlei Garibaldi e Giovani Braun perante a Corte Interamericana nos dias 3 e 5 de fevereiro de 2009. Os autos foram então desarquivados. 2.3 Considerações de Direito da Corte Interamericana de Direitos Humanos A obrigação de investigar violações de direitos humanos, está incluída nas medidas positivas que os Estados devem adotar para garantir os direitos reconhecidos na Convenção. O dever de investigar não pode ser visto como uma simples formalidade, mas como um dever jurídico próprio. No caso de uma morte violenta, o Estado, ao tomar conhecimento do fato, deve iniciar ex oficio e sem demora, uma investigação séria, imparcial e efetiva, devendo ser realizada por todos os meios legais disponíveis e orientada à determinação da verdade. Os familiares da vítima têm o direito de conhecer o que se sucedeu e quem foram os responsáveis pelo fato, conforme jurisprudência da Corte. Para que se verifique se um Estado violou ou não obrigações reconhecidas na Convenção, a Corte entende que pode ocupar-se do exame dos respectivos processos judiciais internos, razão pela qual, no caso específico, examinou o inquérito policial, particularmente com relação aos fatos ocorridos após 10 de dezembro de 1998. Quanto à “cláusula federal”, no curso do processo na Corte, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos sustentou, com base no artigo 28 da Convenção, que o Brasil deveria ter adotado medidas adequadas para que Sétimo Garibaldi não fosse assassinado por um grupo armado a mando de fazendeiros do Estado do Paraná, bem como ter proporcionado aos familiares uma adequada indenização civil. De acordo com o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, o fato de o Estado brasileiro constituir-se em uma federação não o exime de responsabilidades decorrentes de práticas danosas aos direitos humanos, praticadas por uma de suas unidades federativas, que estão igualmente vinculadas por normas internacionais ratificadas pelo próprio Estado. Nos termos da sentença proferida: “No que concerne à denominada "cláusula federal" estabelecida no artigo 28 da Convenção Americana, em ocasiões anteriores a Corte teve a oportunidade de referir- e ao alcance das obrigações internacionais de direitos humanos dos Estados federais. Recentemente, no Caso Escher e outros, o Tribunal aduziu que, em sua competência contenciosa, tem estabelecido claramente que "segundo jurisprudência centenária e eu não variou até agora, um Estado não pode alegar sua estrutura federal para deixar de cumprir uma obrigação internacional". Essa questão também foi abordada em sua competência consultiva, ao determinar que "as disposições internacionais concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos […] devem ser respeitadas pelos Estados americanos Partes nas respectivas convenções, independentemente de sua estrutura federal ou unitária". Dessa maneira, a Corte considera que os Estados Partes devem assegurar o respeito e a garantia de todos os direitos reconhecidos na Convenção Americana a todas as pessoas sob sua jurisdição, sem limitação nem exceção alguma com base na referida organização interna. O sistema normativo e as práticas das entidades que formam um estado federal Parte da Convenção devem conformar-se com a mesma.” No caso concreto, a Corte Interamericana não constatou que o Estado brasileiro tenha descumprido as obrigações estabelecidas no artigo 28 da Convenção, com relação a seus artigos primeiro e segundo: “[…] a Corte considera, como o fez no Caso Escher e outros, que o arrazoado sobre a eventual inobservância das obrigações emanadas do artigo 28 da Convenção deve referir-se a um fato com um valor suficiente para ser considerado como um verdadeiro descumprimento. No presente caso, a manifestação do Estado em uma reunião de trabalho sobre as dificuldades na comunicação com uma entidade componente do Estado Federal não significa, nem carrega por si mesma, um descumprimento a essa norma. A Corte adverte que, no trâmite perante si, o Estado não apresentou sua estrutura federal como escusa para descumprir uma obrigação internacional. Segundo afirmado pelo Estado, e não desvirtuado pela Comissão nem pelos representantes, essas expressões constituíram uma explicação sobre a marcha da implantação das recomendações do Relatório nº 13/07 da Comissão.” 2.4 Falhas e omissões no inquérito policial No entender da Corte, não foram convocadas para testemunhar pessoas que seriam essenciais ao esclarecimento dos fatos, entre elas Vanderlei Garibaldi, que teria presenciado a operação de desocupação e comunicado o homicídio à polícia, que deveria convocá-lo para oferecer sua versão. Considerando que o inquérito deve ser conduzido de ofício pelo Estado, seu andamento não dependeria de impulso dos familiares do ofendido. A Corte também advertiu, por exemplo, que algumas diligências ordenadas pela autoridade policial e o Ministério Público deixaram de ser cumpridas. Com relação à petição de arquivamento formulada pelo Ministério Público, teria se baseado principalmente em informação oferecida por escrivão de polícia que narrou haver divergências entre as declarações das testemunhas, não tendo o promotor de justiça realizado qualquer ação no sentido de tentar esclarecê-las ou cotejá-las com outras provas já colhidas, renunciando, assim, à potestade punitiva do Estado. Por sua vez, a decisão judicial pelo arquivamento foi tomada unicamente com base no parecer ministerial, sendo desprovida de fundamentos que a justificassem[8]. O próprio desarquivamento do inquérito, ocorrido em 2009, evidenciaria a necessidade de se avançar nas medidas investigativas para o esclarecimento de fatos antes omitidos. A Corte, então, entendeu que as falhas e omissões apontadas demonstram que as autoridades estatais não atuaram com a devida diligência nem em consonância com as obrigações derivadas dos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana: “8.1 Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 25.1 Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.” A propósito, ressalte-se que a razoável duração do processo é um direito fundamental, previsto no art.5º, LXXVIII, da Constituição Federal, incluído pela Emenda Constitucional nº 45/2004 (“a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”). Vale lembrar que a Constituição Brasileira de 1934 já trazia disposição, com alcance mais restrito é verdade, que contemplava no Título III (“Da Declaração de Direitos”), especificamente no Capítulo II (“Dos Direitos e das Garantias Individuais”), a celeridade dos processos nas repartições públicas: “A lei assegurará o rápido andamento dos processos nas repartições públicas, a comunicação aos interessados dos despachos proferidos, assim como das informações a que estes se refiram, e a expedição das certidões requeridas para a defesa de direitos individuais, ou para esclarecimento dos cidadãos acerca dos negócios públicos, ressalvados, quanto às últimas, os casos em que o interesse público imponha segredo, ou reserva[9]”. (§35) No âmbito jurídico interno, o termo direitos fundamentais é considerado mais preciso que outros empregados na linguagem jurídica e política atual (direitos sociais, direitos individuais, direitos civis, direitos políticos ou direitos dos cidadãos), pois compreende tantos os pressupostos éticos como os seus componentes jurídicos, significando a relevância moral de uma ideia que prestigia a dignidade humana, constituindo-se, portanto, em uma norma básica do ordenamento jurídico e sendo um instrumento necessário para que o indivíduo desenvolva na sociedade todas as suas potencialidades (PECES-BARBA MARTINEZ, 1999, p.37). Mesmo antes da EC nº 45/2004, já se defendia a existência implícita do direito à razoável duração do processo no texto constitucional, afluente do devido processo legal, como um princípio consequente lógico do princípio da eficiência da atuação do administrador público (FARIA, BICHARA, 2009, p.100). No mesmo sentido SILVA (2009, p.176): “O termo “processo” deve ser tomado no sentido abrangente de todo e qualquer procedimento judicial e administrativo; isto também já está assegurado no art.37, pois quando aí se estatui que a eficiência é um dos princípios da Administração Pública, por certo que nisso se inclui a presteza na solução dos interesses pleiteados”.  Estudo acerca da razoável duração do processo, ainda quando da aprovação em primeiro turno da dita reforma do “Poder Judiciário”, alertava quanto à necessidade de se garantir um processo efetivo (FILHO, 2002, pp. 221-223): “Os processualistas extraem do disposto no art.5º, XXXV, não só o direito de amplo acesso à jurisdição como deste o conseqüente direito à pronta reposta do juiz às demandas […] Ressalte-se: o dispositivo declarou o direito já existente à razoável duração do processo e à celeridade de sua tramitação. Não se trata de “direito novo”, mas de direito já reconhecido pela Constituição e pelas leis e agora declarado, como reforço normativo, em texto específico, assim a afastar os entraves hoje existentes à sua concretização. (…) Relevante, ao menos, o aspecto pedagógico do novo dispositivo: o cidadão tem direito ao processo administrativo e judicial, e, mais, direito à sua razoável duração e conseqüente celeridade de tramitação. (…) As expressões razoável duração do processo e celeridade na sua tramitação caracterizam como processual o direito fundamental ora declarado […]. Poder-se-ia dizer que a norma declara o direito fundamental de todos à eficiente realização do processo pelo qual se leva o pedido à cognição judicial ou administrativa: é, assim, direito ao processo eficiente, muito além do simples direito ao processo. Ao se referir às instâncias judicial e administrativa, o texto indica que o processo é o atinente ao modo de decisão que concretiza e individualiza, no caso concreto, as normas genéricas e abstratas”. No âmbito da Comunidade Européia igualmente se exige o respeito à utilização de um prazo razoável na solução dos conflitos submetidos ao Estado. A Convenção Européia dos Direitos do Homem sublinha a importância atribuída à uma justiça administrada sem atrasos, que venha a corresponder à sua eficácia e credibilidade, conforme determinação expressa do seu art. 6.1: “Qualquer pessoa tem direito a que a causa seja examinada equitativamente e publicamente, num prazo razoável por um Tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei” (MATTOS, 2006, p.72). Com base nos ensinamentos de José Rogério Cruz e Tucci (in “Garantia do processo sem dilações indevidas”. Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: RT, 1999, p.259-260), DIDIER Jr. (2007, p.40) lembra que a Corte Européia de Direitos Humanos firmou o entendimento de que, respeitadas as circunstâncias de cada caso, devem ser observados três critérios para se determinar a duração razoável do processo: a complexidade do assunto, o comportamento dos litigantes e de seus procuradores e a atuação do órgão jurisdicional. A Corte Interamericana de Direitos Humanos também baliza suas decisões em tais parâmetros. Nos termos da sentença proferida no caso Garibaldi vs Brasil:  “A Corte tem considerado quatro elementos para determinar a razoabilidade do prazo: a) complexidade do assunto, b) atividade processual do interessado, c) conduta das autoridades judiciais, e d) o efeito gerado na situação jurídica da pessoa envolvida no processo.” Assim, no caso concreto, entendeu a Corte que a demora no desenvolvimento do inquérito não poderia ser justificada pela complexidade, vez que se tratou de um só fato, ocorrido diante de numerosas testemunhas e a respeito de uma única vítima. O entendimento da Corte também pode servir, internamente, na definição dos contornos do conteúdo do direito à razoável duração do processo[10]. Particularmente, da sentença do caso Garibaldi, extrai-se que “se o lapso temporal incide de maneira relevante na situação jurídica do indivíduo, resultará necessário que o procedimento tramite com uma maior diligência a fim de que o caso de resolva em um tempo breve”. Concluiu a Corte: “[…] que as autoridades estatais não atuaram com a devida diligência no Inquérito da morte de Sétimo Garibaldi, o qual, ademais, excedeu um prazo razoável. Por isso, o Estado violou os direitos às garantias e à proteção judiciais previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 da mesma, em prejuízo de Iracema Garibaldi, Darsônia Garibaldi, Vanderlei Garibaldi, Fernando Garibaldi, Itamar Garibaldi, Itacir Garibaldi e Alexandre Garibaldi.” 2.5. Parte dispositiva da sentença A Corte declarou, por unanimidade, que o Estado brasileiro violou os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial reconhecidos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, em prejuízo da esposa do Sr. Sétimo Garibaldi e de seus filhos. Ainda, por unanimidade, após explicitar que a sentença de per si já se constitui em uma forma de reparação, condenou o Estado brasileiro a: (a) dar ampla publicidade à decisão no Diário Oficial e em jornais de circulação nacional e estadual; a buscar identificar, julgar e, eventualmente, sancionar os autores da morte do Sr. Sétimo Garibaldi; a investigar as eventuais falhas funcionais nas quais possam ter incorrido os funcionários públicos a cargo do inquérito e, se for o caso, sancioná-los; a pagar indenização à Sra. Iracema Garibaldi e filhos, a título de danos material e imaterial, no prazo de um ano; e a restituir à Sra. Garibaldi as custas e gastos processuais. Além disso, a Corte reafirmou o papel de acompanhar a posteriori suas decisões, o que demonstra que a sua atuação não se exaure na análise e julgamento: “A Corte supervisará o cumprimento íntegro desta Sentença, em exercício de suas atribuições e em cumprimento dos seus deveres conforme a Convenção Americana, e dará por concluído o presente caso uma vez que o Estado tenha dado cabal cumprimento ao disposto na mesma. O Estado deverá, dentro do prazo de um ano contado a partir da notificação desta Sentença, apresentar ao Tribunal um relatório sobre as medidas adotadas para cumprir a mesma.” No sistema interamericano de direitos humanos, à própria Corte confia-se a tarefa de supervisionar o cumprimento de suas decisões (LIMA JR., 2006 a, p.148). Quanto ao Estado, cabe cumpri-las integralmente (RAMOS, 2002, p.240). A propósito, dispõe o artigo 68 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos: “1. Os Estados-partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes. 2. A parte da sentença que determinar indenização compensatória poderá ser executada no país respectivo pelo processo interno vigente para a execução de sentenças contra o Estado.” A diferença entre o trabalho final da Comissão e o da Corte, é que enquanto aquela, em seu relatório final, propõe recomendações, esta decide de forma “definitiva e inapelável”, não podendo os Estados recusar-se a cumprir a sentença (GORENSTEIN, 2002, p.76). 3. Considerações finais Conforme visto, a sentença do caso Garibalbi expõe a possibilidade real de responsabilidade estatal por um organismo regional internacional, em decorrência de eventos praticados por autoridades públicas, de forma omissiva ou comissiva, a violarem direitos humanos que demandam proteção não apenas internamente. Como bem observa LIMA JR. (2006, p.224): “[…] No campo específico da proteção internacional dos direitos humanos, as cortes regionais de proteção dos direitos humanos representam o que há de mais sofisticado em termos da busca de garantia pela plena efetividade para os direitos humanos no plano internacional. O novo momento do direito internacional é resultado da necessidade de estabelecer limites à noção tradicional de responsabilização do Estado na arena internacional em situações em que as instituições nacionais se mostram omissas ou falhas na tarefa de proteger os direitos humanos, conforme declarados em instrumentos internacionais e nacionais, e considerando que os Estados participam do sistema internacional de proteção dos direitos humanos por livre e espontânea vontade.” Diante do compromisso assumido pelo Brasil no âmbito internacional regional, ficou muito claro na sentença da Corte que na investigação de fatos que violem direitos humanos não pode um Estado-parte alegar a presença de obstáculos internos, tais como a falta de infra-estrutura ou de pessoal. Carências de tal espécie não excluem a sua responsabilidade internacional. Aqui se aplaude tal entendimento, não apenas porque se outra fosse a interpretação ficariam inócuos os compromissos estabelecidos, mas principalmente em razão da dimensão internacional dos direitos humanos e do bem jurídico que o Estado obrigou-se a proteger. É inegável que graves falhas e demoras relacionadas à apuração dos fatos, que afetem vítimas pertencentes a grupo vulnerável, propiciam a repetição crônica das violações de direitos humanos. A Corte leva em conta, ainda, se o Estado adotou medidas preventivas, relacionadas ao caso sob análise, para então decidir pela responsabilização[11]. Não se pode desconhecer a ação internacional dos organismos internos voltados à proteção dos direitos humanos (CORREIA, 2006, p.17): “[…] verifica-se maior visibilidade das violações de direitos humanos, desencadeando o risco do constrangimento político e moral ao Estado infrator. Ao enfrentar a publicidade das violações de direitos humanos, o Estado é praticamente obrigado a se justificar acerca das suas práticas, o que tem auxiliado na modificação ou na melhoria de uma determinada prática governamental no que se refere aos direitos humanos, conferindo suporte ou estímulo para alterações internas. (…) Mesmo sendo recente a jurisprudência da Corte, o sistema interamericano se consolida com relevante e eficaz estratégia de proteção dos direitos humanos quando as instituições nacionais se mostram omissas ou falhas.” Quanto à execução das decisões, afirma LIMA JR (2009, p.48), ao tratar do caso Lustig-Prean e Beckett contra o Reino Unido, observação perfeitamente aplicável ao sistema interamericano, que: “No que se refere à capacidade de cumprimento da decisão, o caso em comento não foge à regra do sistema europeu de proteção dos direitos humanos, o que põe em relevo a capacidade de aplicação das convenções internacionais de direitos humanos no plano interno, por meio da adoção de instrumentos e mecanismos internos com tal fim, uma vez que a inexistência de regras nesse sentido poderia desacreditar o sistema internacional (e mesmo os sistemas nacionais) de proteção dos direitos humanos.” Apesar de o fortalecimento da rede de proteção institucional internacional dos direitos humanos ser um processo lento e gradual, até mesmo na consciência crítica da comunidade jurídica atuante, a cada recomendação, ou decisão proferida pela Cortes internacionais, faz com que os Estados ao menos avaliem se é recompensador permanecer na prática de violações, pois certamente a simples divulgação dos casos já representa constrangimento perante a comunidade internacional. Ao que tudo indica, o Estado brasileiro parece permanecer, o que é visto com grande satisfação, na sua política de conferir legitimidade às decisões proferidas pelas Cortes internacionais, conforme se depreende da adoção de providências relativas ao cumprimento da decisão proferida no caso Garibaldi[12]. Por sua importância e crescente influência no cenário mundial, é uma postura que sinaliza à comunidade internacional a relevância dos sistemas internacionais de proteção de direitos humanos. Que há muito a se fazer, isso é inegável, mormente quanto a ações preventivas, porém não deixa de ser mais um passo rumo a dias melhores.
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Fim da inocência dos direitos humanos em razão da hostilidade lançada sobre os agentes da paz e segurança pública
Fato verídico é que os Direitos Humanos alcançaram níveis de maturidade social que  elevam o debate acerca dos seus propósitos de cidadania. Vários atores no processo querem levantar essa bandeira como sem fossem pioneiros da discussão no Brasil. Na outra ponta está o cidadão comum que na maioria das vezes sofre com a legislação fraca que prestigia o direito individual em face de ums coletividade. Parece-nos que o responsável pela primeira fase da persecução criminal, ou seja, a Autoridade Policial  é refém da demagogia alheia e nada obstante ser um dos poucos que atendem de fato as vítimas do sistema, é sempre posto em prova em seus atos e verdades. Todos querem  papel de destaque dentro da estrutura do Estado Democrático de Direito mas se recusam a agir com inocência em suas intenções. Falta solidariedade nos propósitos. Foi usada a metodologia de leitura de artigos publicados em mídia impressa e eletrônica conforme referência bibliográfica, bem como visitas em delegacias de polícia especializadas, seja nos municípios de Goiânia, GO e Manaus, AM.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO O presente ensaio traz algumas reflexões sobre o relacionamento dos direitos humanos com a concepção cidadania, ou seja, aqui pretendo fazer um conjugado entre o estágio atual dos direitos humanos amplamente difundido na população brasileira e a nova concepção de cidadania introduzida pela Constituição Federal de 1988. Para tanto, num primeiro momento, buscou-se delinear, ainda que brevemente, a segurança pública como um dos direitos humanos essenciais, isto é, a paz social. Haverá enfoque para os agentes engajados nessa causa e suas atribuições neste contexto bem como o papel da população que tem o dever de colaborar sempre. Depois de feito este estudo prévio, verificou-se de que maneira a nova Carta brasileira, rompendo com a ordem jurídica anterior, passou a comungar os direitos humanos internacionalmente consagrados com a concepção contemporânea de cidadania, posto que fatos concretos como o policial no exercício de seu mister e o menor na condição de infrator, são exemplos reais e corriqueiros do nosso tempo. Existe uma inquietação pública generalizada acerca do nível de criminalidade comum, o que gera um senso de insegurança pública, que, por sua vez, resulta em demandas por uma reação oficial draconiana, às vezes sem restrição legal. Veremos que aqueles que conclamavam os direitos humanos têm corroborado para manter o sistema falho e sem resposta. Por fim, buscou-se delinear qual o papel da educação em direitos humanos, e quais as maneiras de se implementar, de forma sólida, além dos princípios éticos que o cercam, uma cultura de direitos humanos, em nosso meio e em nossa sociedade. Se a finalidade dos Direitos Humanos foi alcançar a paz social, qual seria a razão para a sociedade não apostar suas fichas no policial como agente da paz e não da lei ? Qual a vantagem de tamanha hostilidade frequentemente lançada sobre a polícia ? Vejamos porque é válida a máxima que Direitos Humanos não nascem todos de uma vez nem de uma vez por todas. 2. HOSTILIDADES EM DETRIMENTO DA AUTORIDADE POLICIAL O Delegado de Polícia tem papel que merece destaque dentro da estrutura do Estado Democrático de Direito e por vezes, seus próprios pares, não dão o devido valor a sua profissão., quisá a sociedade que deveria confiar neste profissional. O cargo foi citado no texto constitucional “a Polícia Civil deve ser dirigida por delegados de polícia de carreira” e na legislação processual penal “a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais”. A notoriedade do cargo também é explicada pelas próprias palavras do Ministro Carlos Ayres Britto: “sempre que a Constituição nomina certos cargos, ela o faz com o evidente propósito de prestigiá-los, sobretudo quando organiza tais cargos em carreiras. É o caso dos Delegados de Polícia, dos Defensores Públicos, dos Procurados de Estado, sem falar em Juízes e Membros do Ministério Público”. (ADI 2587, 2004, p. 101). É notório que a carreira do Delegado de Polícia na condição de única autoridade policial, possui uma natureza diferenciada. Principalmente, por ser, dentre as carreiras jurídicas, a que mais tem “baixas” no exercício da função ou em relação a ela. Logo, são diversos os riscos inerente ao ofício que são abraçados por esses servidores, desde iminente risco de vida ao lidar com as mazelas da sociedade, perseguições políticas (como recentemente temos visto no caso Protógenes), e até mesmo a falta de condições de exercício isento de seu ofício pela falta de garantias que a magistratura e o Ministério Público dispõem (remoções compulsórias). Não obstante, como carreira chave de Estado, esta profissão é aquela que está mais suscetível ao rompimento da linha tênue entre legalidade e ilegalidade, entre o lícito e ilícito, isto porque no calor dos acontecimentos, decisões tem que ser tomadas justamente pela autoridade policial (como entrada e resgate de reféns que pode originariamente repercutir em algum revés ou em decidir sobre a lavratura ou não de um flagrante) em prol do melhor cumprimento de sua função. Notório o dever de realizar suas funções com o máximo de isenção possível, livre de quaisquer pressões externas, com alto grau de independência que reflete na certeza que seus atos são discricionários, conforme oportunidade e conveniência do Estado, sempre no limite da legalidade. É sim o primeiro garantidor da legalidade posto que atende a ocorrência no calor do momento e deve garantir para todas as partes seus direitos, seja ele vítima ou mesmo o autor do crime. Não há que se falar em tempos de outrora onde não se falava em Direitos Humanos para o criminoso. Neste diapasão, o Delegado de Polícia, na qualidade de servidor público estadual aprovado em concurso público sem qualquer indicação política, merece o devido respeito da sociedade pois que, reitero, não trata-se de cargo político cujos mandatos passam a cada 4 anos. Esta referência deve-se ao fato de que, pessoalmente, abomino pedidos políticos que configuram crime de advocacia administrativa, prevaricação ou tráfico de influência e considero insulto e desprestígio à minha profissão pessoas que, antes de se identificarem pessoalmente, já se apresentam como parentes de autoridades ou amigos de pessoas públicas que nem autorizaram o uso dos seus nomes em vão na delegacia. Cidadania é permitir que as partes denunciem e ouvir todos os lados com isenção, por isso, o primeiro promovedor dos Direitos Humanos é indiscutivelmente o policial no exercício do seu mister. Não há outro no sistema que ouve mais a população, posto que outras instituições estão presas ao papel frio, gabinetes com formalismos, ali não há possibilidade de se alcançar a verdade somente observável nos fatos e naquela situação. Parece-nos que o responsável pela primeira fase da persecução criminal, ou seja, o Delegado de Polícia, é o mais desprestigiado do Sistema de Segurança Pública e não há qualquer razoabilidade em se estabelecer diferenciação salarial entre estes e outros atores do sistema, entretanto, resta a devoção daqueles que acreditam nas pessoas e dias melhores e que labutam por vocação em prol das pessoas de bem da sociedade. Sábias são as palavras de Guimarães Rosa quando diz: “porque eu só preciso de pés livres, de mãos dadas e olhos bem abertos." 3.  DA GANÂNCIA PELO PODER NA CONTRAMÃO DA LEGALIDADE É sabido e consabido que não existe norma expressa que permita ao Ministério Público fazer investigação preliminar ou durante a ação penal condenatória, mas pouco se discute os verdadeiros motivos, pois que, historicamente, promotores não investigam, não atendem pessoalmente a população e desconhecem locais de crime, salvo exceções. Questione ao cidadão comum: quantas vezes foi atendido ou acompanhado por um promotor em alguma situação de urgência e depois pergunte se em contrapartida essa pessoa conhece algum Delegado de Polícia. Resta clara a resposta, pois o promotor usa seus estagiários e, em regra, é “senhor de gabinete” em um turno do dia; que incoerência, pois só ele tem os poderes da inamovibilidade e vitaliciedade para atender o povo sem qualquer interferência política, mas não, quem atende o povo no final de semana, feriado e madrugada é a Autoridade Policial. O MP se distanciou do povo brasileiro e não vem buscando se aproximar. Quem perde somos nós, povo carente de uma atividade ministerial forte. O promotor de Justiça se abster dos “papéis frios” e deveria abrir as portas do MP para conhecer o povo brasileiro, funcionando 24hs e acompanhando o cidadão em suas demandas. O promotor deveria ter sala dentro das repartições públicas e deveria estar obrigatoriamente dentro das delegacias. Se sentisse afinidade, aí sim seria merecedor do direito de investigar. Quer o poder, mas não quer “apertar a mão das pessoas simples do dia a dia”, muito cômodo essa posição. Eles não podem presidir auto de prisão em flagrante delito, nem usar o instituto da voz de prisão porque nunca acompanham operações, não saem dos gabinetes, em regra. Não se aceita que solicitem do Poder Judiciário autorização ou cumpram, de modo direto, mandado judicial de busca e de apreensão. Não guardam poder de ordenar a restituição, quando cabível, de coisa apreendida. Eles não podem, muito menos, pretender a infiltração de seus agentes, em tarefas de investigação, já que nunca pleitearam preparo operacional para isso. Mas, ainda assim, querem o poder. Qual o motivo de se desejar que o MP ponha em prática esse procedimento policial ? Nunca se ofereceu boa resposta. Fala-se em ineficiência e em desconfiança da atividade da polícia judiciária. Se é assim, importa lembrar que o controle externo das polícias judiciárias consiste em atribuição constitucional do próprio Ministério Público. Mas, reitero, dispensamos controle externo, seria bem vindo o promotor na delegacia atendendo o povo e orientando para questões não policiais. Ou seja, o controle seria “interno mesmo” e muito bem vindo. Será que haveria promotor disposto a dormir na delegacia em plantão atendendo de segunda a segunda em 24hs ? Em síntese, procuradores da República e promotores de Justiça precisam dos serviços das autoridades policiais para levar avante o procedimento preparatório simplesmente porque não sabem fazê-lo. É legítimo e há mais controle assim. Não há instituição perfeita. Entendo assim. Eficiência ministerial seria acompanhar a policia judiciária nas investigações, jamais investigar por si só, isto é, algo que os advogados fazem com maestria todos os dias nas delegacias. Esse é o paralelismo das formas: Ministério Público e advogados atuam para partes acompanhando os autos, jamais querendo interferir. Qual a razão para dar mais poder para o  Ministério Público que denuncia ? O advogado deve ser respeitado. Por isso, essa é a PEC da legalidade contra a ganância pelo poder. A acusação formal, clara e fiel à prova, é garantia de defesa, em juízo, do acusado. Espera-se, então, imparcialidade por parte do acusador público. Dirigir a investigação e a instrução preparatória, no sistema vigorante, pode comprometer a imparcialidade. Desponta o risco da procura orientada de prova, para alicerçar certo propósito, antes estabelecido; com abandono, até, do que interessa ao envolvido. Imparcialidade viciada desatende à justiça. É muito simples o sistema onde cada um atua na sua competência, “cada um no seu quadrado”, por isso, a ganância do  Ministério Público não pode prevalecer. Polícia investiga.  Ministério Público acusa. Advogado defende. Em geral, repito, regra geral, é simples e muito justo assim. A impressão pessoal é que “o MP não quer só o poder de investigar, quer todo o poder”. Não se pode inventar atribuição nem competência contrariando a Lei Magna. A atuação administrativa interna do Ministério Público, federal ou estadual, não deve fazer as vezes de polícia judiciária. Cada qual desempenhe sua específica função, no processo penal, em conjugação com o Poder Judiciário. Honestamente, espantoso ver advogado ao lado da PEC 37, “tiro no próprio pé a troco de quê “ ? Qual o interesse político de perder forças na sua atuação como advogado ? O  Ministério Público é instituição brilhante no sistema e deve aperfeiçoar sua atuação, não conseguiria jamais assumir mais esta função, desequilibrando todo o sistema. Creio que os  procuradores da República e promotores de Justiça deveriam atender o povo em regime de plantão 24hs, segunda à segunda, orientando e acompanhando o povo em diligências pessoalmente. Pessoas são presas na madrugada. Ilegalidades são cometidas e o MP permanece estático e fechado para o povo. Ministério Público aberto ao povo, sem formalidades. Isso sim seria bem-vindo e a impressão que todos gostariam de ter do MP brasileiro. Seria brilhante ver esta instituição lutando pela autonomia política do Delegado de Polícia, que agiria amparado pela inamovibilidade e sem chefia de governo estadual, mas horrível ver acusações infundadas depreciando a Policia Judiciária como um todo. Verdade seja dita, os fins não justificam os meios. Melhor dar autonomia pra polícia investigar do que extrapolar mais poderes para qualquer instituição. 4. MISTURA DE BEBIDA ALCOOLICA COM O USO DE SUA ARMA Situações corriqueiras podem ser citadas e não haveria motivo para evitar apontar para o próprio umbigo, ou seja, policiais são garantidores de direitos mas vivem dilemas em suas jornadas. Como aproximar os preconceitos da população do exercício de cidadania do policial que é pai de família e merece vida social, nada obstante seu mister que não para durante a noite nem em folga. Vejamos essa situação simples que ensejam tantos debates. Pasmem, mas atualmente não há configuração proibitiva no Estatuto do Desarmamento (Lei. 10.826/03), da mesma forma que não existe tipificação objetiva no diploma penal brasileiro. E você deve se perguntar agora, qual a solução jurídica para o caso do servidor com porte de arma estar ingerindo bebida alcoólica. De fato, o Judiciário já se manifestou incidentalmente nesse sentido e isto aconteceu quando a desembargadora do TRF da 2ª Região alegou que “o policial ébrio que porta arma de fogo não comete crime mas adicionou que poderia sim resultar em suspensão do porte.” Seria forçoso dizer que tal atitude imprudente não merece punição, por isso, outros dispositivos legais podem se adaptar a tal comportamento. O art. 62, do Decreto-Lei 3.688/41, Lei das Contravenções Penais, amolda tal expediente quando o policial ébrio se apresenta publicamente sob influência de substância etílica e provoque escândalo, colocando em risco a segurança pública ou alheia. Mas aqui  deve-se analisar o perigo concreto que envolva situação de risco e não presumido para configuração da infração penal citada. Caso o ébrio permaneça apenas com a arma na cintura, sem manifestar atividade nociva, dificilmente será autuado em uma Delegacia de Polícia por este fato. É profissional habilitado e usa para sua própria segurança, por isso, se mantém a arma sem provocar alarde não comete crime algum. Também é interessante destacar que o art. 132, do Código Penal, que ventila a exposição a vida ou a saúde de outrem a perigo direto ou iminente, poderá desencadear aplicação ao caso. Concluindo, o Delegado, Juiz, Promotor e policial em geral possuem porte de arma por questão funcional e não privada, como ocorre na autorização expedida pela PF e por isso a incidência criminal no aspecto citado não se aplica. De fato, ele exerce sua função 24hs por dia, não pode se omitir em nenhuma situação, sob pena de prevaricação. Daí o dever de usá-la sempre já que terá obrigatoriamente o dever de agir. Aqui não se discute acerca da prudência dos dispositivos de nossa legislação, pois o que se pretendia expor é que este tormentoso assunto, que é matéria corriqueira nos bancos de cursos de formação e academias de polícia, ainda não tem amparo legal. Merece atenção especial do nosso legislador que deveria tratar o tema com a mais absoluta brevidade. No caso concreto, diante de tantas situações sem solução prática, sugiro ao Delegado de Polícia Judiciária que recebe tal ocorrência, que haja com RESILIÊNCIA, agindo positivamente frente a adversidade que lhe é apresentada. É sabido e consabido que nesta função este é apenas mais um simples caso sem solução prática, sem manual de instruções, daí o gostoso sabor dessa profissão onde “rotina não é palavra de ordem”. 5. MENOR INFRATOR MAIS CIDADÃO QUE UMA VÍTIMA A sociedade, refém de sua própria legislação, vive hoje o dilema de conviver com o menor infrator praticando atrocidades sem qualquer punição mais severa. Nos causa a impressão que o menor de idade seria mais cidadão que a maior parcela da população brasileira vítima de suas confusões criminosas. O Código Penal Brasileiro adotou o critério puramente biológico, estabelecendo que o menor de 18 anos é plenamente inimputável. Vale dizer, considera-o sem condições de compreender o caráter ilícito do ato que pratica pois não teria maturidade mental e emocional completa. A própria Constituição Federal de 1988, elaborada por representantes do povo brasileiro reunidos em Assembleia Nacional Constituinte, expressamente, estabeleceu que são plenamente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial. Apesar da tendência mundial na redução da maioridade penal, o Brasil mantém essa fronteira fixada nos 18 anos, na contramão de todo o mundo. O alto índice de criminalidade, especialmente o aumento incontrolável da criminalidade juvenil – crimes cometidos por adolescentes e crianças – atormenta e deixa a sensação de impunidade no ar. Há bases sólidas para me posicionar a favor da redução e me parece que o debate passou da hora de surtir resultados. De fato, indiscutível que o adolescente de 16 anos já tem condições de identificar o certo do errado, sendo pessoas muito bem informadas, pela agilidade das trocas, inclusive pelas redes sociais. Outros tempos os de hoje em dia. Eles têm condições de escolher seu representante, pelo voto, porque não poderia responder criminalmente por seus atos ? Entendo que não haverá redução da criminalidade, já que o debate está focado nos efeitos e não nas causas como desigualdade social, exclusão social, impunidade, falhas na educação familiar/escolar, em especial no que tange aos valores e comportamento ético. Importa salientar que os menores infratores, quando praticarem um ato descrito como crime ou contravenção penal, estão sujeitos às medidas socioeducativas e aos procedimentos definidos no Estatuto da Criança e do Adolescente, não ficando sem punição por seus atos, mas o que se discute é que essas punições são brandas para a extrema violência que vem sendo aplicada por esses menores. Se quase 100 % (93%) aprovam a redução da menoridade penal para 16 anos, por que somente a metade desses (52%) acredita que essa prática reduziria os índices de criminalidade? A resposta é que independente da redução da violência, seria de bom tom por um ponto final na sensação de impunidade. Em prol dos direitos desses adolescentes infratores estamos pondo à deriva os direitos de pessoas de bem, maioria de brasileiros desacreditados e descrentes com a impunidade. Parentes de vítimas ainda acreditam na polícia judiciária civil e suas ações, aqui fica o descrédito para o legislador e o judiciário, que insistem em prestigiar o infrator em detrimento da vítima de mentes doentias. Entenda o simples clamor do povo brasileiro senhor legislador. O direito do menor sempre para onde começa o direito da vítima, independente de idade. Não basta que todos sejam iguais perante a lei, é preciso que a lei seja igual perante todos. 6. DELEGADO, DOUTOR POR EXCELÊNCIA, MESMO SEM DOUTORADO Profissionais de todas as áreas corroboram para o pleno exercício da cidadania, posto que o direito é universal e sem limites. Não há razão que justifique hostilizar o profissional do direito e sua autoestima quanto à denominação de doutor. O garantidor de direitos que promove a cidadania e a paz social merece sim denominação a caráter. Senão, vejamos. Muitos insistem em contradizer o profissional do direito, seja ele Advogado, Delegado, Procurador e outros, alegando que não têm obrigação de chamá-los de “doutor”. Não há vaidade nem soberba para tratar o tema, pois ele tem muito a ver com educação, no sentido que se pretende prestigiar pessoas por ostentarem algum saber jurídico. Para pôr um ponto final nessa discussão é que apresento a razão que admite todo profissional formado em direito, ou seja, o simples bacharel, ser merecedor da insígnia “doutor”. Observe que mesmo sem OAB, o mais simples bacharel em direito é sim merecedor desta conotação. Explico. Ocorre que o título de doutor foi concedido aos bacharéis em direito por Dom Pedro I, em 1827, e este título não se confunde com o estabelecido pela Lei no 9.394/96 (Diretrizes e Bases da Educação), aferido e concedido pelas Universidades aos acadêmicos em geral. Um título não desmerece o outro, todos merecem o termo “doutor”. Existe o título de doutor para quem cursou doutorado, prova é que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação traça as normas que regem a avaliação de teses acadêmicas, assim, para uma pessoa com nível universitário ser considerada doutora, deverá elaborar e defender, dentro das regras acadêmicas e monográficas, no mínimo uma tese, inédita, e provar, expondo, o que pensa. Mas fato é que também existe a forma de tratamento de doutor conferida a quem cursou direito tornando-se bacharel. A Lei do Império de 11 de agosto de 1827 prevê: “cria dois cursos de Ciências Jurídicas e Sociais; introduz regulamento e estatuto para o curso jurídico; dispõe sobre o título (grau) de doutor para o advogado”. A referida Lei possui origem legislativa no Alvará Régio editado por D. Maria I, a Pia, de Portugal, que outorgou o tratamento de doutor aos bacharéis em direito e exercício regular da profissão, e consta no Decreto Imperial (DIM) de 1º de agosto de 1825, instituída pelo Chefe de Governo Dom Pedro Primeiro. Os referidos documentos encontram-se microfilmados e disponíveis para pesquisa na Biblioteca Nacional, localizada na Cinelândia (Av. Rio Branco), Rio de Janeiro-RJ. A legislação Imperial constitui pedra fundamental que criou os cursos jurídicos no país. Ademais, a referida legislação Imperial estabelece que o título de Doutor é destinado aos bacharéis em direito devidamente habilitados, sendo assim, basta tecnicamente possuir o título de bacharel em direito para ostentar o título de Doutor, nos termos do regulamento em vigor, já que nunca na história foi revogado. Observe ainda que o advogado ostenta legitimamente o título, diferente do médico, uma vez que este, ressalvado o seu imenso valor, só ostenta o título por popularidade. Aqui sim obrigatório o doutorado. Não resta dúvida que o bacharel deve exercer sua excelência intelectual e enquanto profissional do direito, deve a si mesmo o questionamento interior de estar à altura de tão elevada honraria, seja por mérito, por capacidade ou competência. Verdade é que apreendemos no curso de direito que uma mentira muitas vezes dita aparenta verdade mas, na sua essência, será sempre mentira. Não é difícil encontrar quem menospreze todas as classes de bacharéis em direito, expurgando dos seus membros o título legítimo de Doutor. As razões de direito e argumentos jurídicos aduzidos aqui fincam a convicção de que ostentar o título de doutor, para o advogado, delegado, defensor e outros, é um direito, e não uma mera benevolência Tal raciocínio nos conduz à conclusão de que o título academico e o título dado à classe advocatícia não se confundem, possuem natureza diversa. E sustentar qualquer um dos dois é sem dúvida um ato de imensa coragem e determinação. Aos doutores que cursaram direito, portanto, deve-se, seguramente, elevada estima e grande consideração, por entregarem suas vidas profissionais à resolução de conflitos de interesses, dando muitas vezes a casos insolúveis, admirável solução em prol da verdade e do bem comum. 7. FIM DA INOCÊNCIA DOS ATOS DE DIREITOS HUMANOS Exponho nestas poucas linhas o quão a velocidade da modernidade injeta a anestesia necessária para impedir que o homem se interrogue, perdendo valores inclusive no ato mais simples de caridade. Direitos Humanos requer em sua essência um mínimo ético onde haja inocência no ato de caridade sem qualquer moeda de troca. Muito cômodo o ato de “apontar o dedo” nos atos dos policiais que agem em prol da segurança pública e muitas vezes expõem sua segurança pessoal em detrimento de um bem maior. O policial que atende uma ocorrência de desordem sem qualquer incidência de crime é sim um agente da paz, pois ali não age em nome da lei. Não há que se esquecer ali o ser humano policial, que tem historia, brio na cara, orgulho de atender quem precisa e é herói em sua família por seus atos de bravura em prol dos necessitados. Explorar a mídia e imprensa de um gabinete cortejado de conforto e luxo é bem diferente de quem atende em loco e na madrugada a quem precisa. Heróis de nossos tempos não são aqueles que peticionam ou como eu, passivo, nesta conversa, e sim aqueles que atendem pessoalmente o cidadão comum e suas crises. Não há profissional da segurança pública que haja sem o mínimo de caridade e consciência de direitos humanos, estes sim profissionais caridosos e solidários, ainda que endureçam ao longo de sua história. Curioso, mas policial não desacredita no ser humano, mas sim nas políticas sujas e engravatados de quase todas instituições. Estes escrevem artigos, concedem entrevistas para criticar o sistema, mas quase que em regra, são incapazes de dedicar sua atenção e atender em loco o cidadão brasileiro. Direitos Humanos é o que mais existe entre os profissionais de segurança pública, pois fazer caridade não é simplesmente assinar um cheque e entregá-lo a uma entidade beneficente. Não é malhar o siistema. Para que seu ato seja eficaz, é preciso participar sem caprichos das crises do povo desse país. Me questiono por vezes se seriam os brasileiros pessoas generosas ? A se fiar nas estatísticas disponíveis, nem tanto. Curioso mas enquanto os americanos são conhecidos por sua tradição em fazer filantropia, os brasileiros ainda estão no pré-primário desta escola. Podem dar, e dão, uma esmola aqui e ali para o mendigo que estende a mão, mas em geral, têm pouco interesse em ações consistentes de ajuda ao próximo. Isso é muito evidente. O resultado é que há uma distância longa entre a maioria das instituições beneficentes e seus colaboradores potenciais, sejam empresas ou pessoas físicas. A falta de transparência na administração das entidades, a pouca divulgação dos resultados dos projetos e a escassez de orientações sobre como fazer a doação de forma eficiente atrapalham ainda mais essa situação. Falta inocência nas intenções. É notável que as pessoas fazem doações ou contribuições por pressão do grupo, culpa, obrigação ou por prazer. Seja qual for o seu motivo, é preciso encarar o ato de caridade como um negócio, que envolve pesquisas prévias, definição de metas e acompanhamento dos resultados. Bancos, redes de fast-food, artistas, empresas privadas, nenhuma delas doam, mas pedem contribuição do funcionalismo e dos clientes para depois jogar na mídia. Contrasenso odioso falar em responsabilidade social às custas de terceiros. É muito fácil errar na área social. Para ajudá-lo a não errar na hora de doar, tracei um roteiro mínimo para que sua atitude seja de fato o que se espera em Direitos Humanos, respeitando diferenças e agindo com verdade e para quem precisa. 1) Doação não é ato publicitário. Você não merece praticar caridade pra ver seu dinheiro escorrer pelo ralo. Primeiro, aproxime-se de quem já está habituado a fazer doações, como amigos, vizinhos ou representantes da comunidade. Aprenda como essas pessoas executam as contribuições. Tire suas dúvidas, peça dicas, questione, discuta vantagens e desvantagens. 2) Você doa a quem te inspira compaixão Você já pensou em ajudar crianças, animais, idosos ou adolescentes carentes ? Ou, então, em contribuir com projetos de recuperação do meio ambiente ? Que tal bancar parte do tratamento de doentes de câncer ? Todas essas áreas precisam muito de ajuda, mas você deve escolher uma. Essa decisão é resultado de sua própria reflexão. Se optar por mais de uma área, tenha cuidado para não se perder em meio a vários projetos e objetivos diferentes, pois de fato não será capaz de ser salvador dos oprimidos. Simplesmente ampare alguém. É de extrema valia. 3) Apego aos conterrâneos ou ao tamanho do problema social ? Muitas pessoas preferem estar bem próximas das entidades que ajudam: a creche do bairro ou a entidade que abriga deficientes físicos da própria cidade. Nesse caso, há uma vantagem. Você poderá verificar no dia-a-dia, como suas contribuições serão aplicadas. Outras pessoas acreditam que projetos em outros estados, como as famílias atingidas pela seca no Nordeste ou a destruição da Floresta Amazônica, são mais importantes. Entidades locais ou não, a escolha é sua, aqui vale a máxima de estar em paz com seu coração. 4) Priorize em uma lista as entidades candidatas à doação Comece com um levantamento de todas as entidades que se enquadram nas características traçadas. Se ainda está perdido, sugiro o antigo e conhecido site www.filantropia.org.  Mas fato é que os conselhos e instituições sempre fazem publicidade em jornais ou sinais de transito, e ainda existe a página na Internet www.gife.org.br que reúne institutos, fundações e empresas que têm projetos em filantropia. 5) Visita a quem precisa é brilhante, rápida e faz muito bem É muito eficaz verificar pessoalmente (olho no olho) como funciona a instituição e qual o estado de suas instalações. Peça também uma lista das pessoas que estão na linha de frente da entidade. Conheça melhor suas idéias e seus valores. Quanto mais você mantiver contato com essas pessoas, menos surpresas desagradáveis terá. Não tenha vergonha de pedir informações sobre as finanças da entidade. Pergunte se as contas são controladas por alguma auditoria periódica. Se o trabalho for sério, a direção da entidade não terá problema algum em apresentar esses dados. Aqui sim é louvável publicidade, somente nesta prestação de contas. 6) Se envolva a ponto de estreitar laços. Seja parceiro. Definido o nome da instituição, é hora de você começar atrabalhar em parceria. Um dos principais erros cometidos atualmente pelas pessoas e empresas que fazem doações é que elas não se informam direito sobre o que será feito com o dinheiro e criam expectativas, muitas vezes, irrealistas. Quando se sabe qual será o projeto beneficiado, é possível organizar um calendário de doações. Elas podem até ser realizadas em etapas e não de uma só vez. Bom senso. O sacrifício é do tamanho de suas possibilidades. 7) Resultados tem que aparecer a médio prazo Não pense que sua participação chegou ao fim. Dados como o número de pessoas beneficiadas pelo projeto, o que foi concluído e o que ainda falta, são informações que dão vigor e entusiasmo aos que doam. Dessa forma, você corre menos riscos de ver seu dinheiro aplicado em projetos ineficazes.  8) Perceba as dificuldades e não imponha sua opinião Tenha cuidado para não inverter os papéis. Não é porque você fez uma doação para determinada entidade que poderá entrar lá e comandar tudo do seu jeito. É preciso respeitar o trabalho da instituição e até ajudar com seu conhecimento ou experiência, mas sem mudar o que já é feito com eficiência. Se você sentir profissionalismo na direção ficará mais a vontade. Confiança nas pessoas é a chave do negocio. Amadorismo é pra falsas propostas de ajuda. 9) Há vantagens ou benefícios Financeiros? Perceba que os benefícios financeiros de se fazer uma doação são irrisórios. Não há um programa eficaz de estímulo à filantropia no país. Uma das exceções é a cultura. Qualquer pessoa pode ajudar o financiamento de um projeto cultural e ter esse valor deduzido até 6% (pessoa física) e 4% (pessoa jurídica) do imposto a pagar. No caso dos filmes, a dedução é de até 3%. Quem ultrapassa esses limites não tem restituição sobre o excedente. Além da cultura, as doações ao fundo da Criança e do Adolescente também contam com benefício fiscal. O limite da dedução do imposto é de 6% para pessoa física e 1% para pessoa jurídica. Enfim, aqui prevalece a caridade, benefícios são pra aqueles que necessitam. 10) Seja voluntário e estará compreendendo a razão deste artigo Você pode ainda contribuir com entidades beneficentes sem fazer doações em dinheiro. Seja um voluntário. Para isso, aproveite seu conhecimento ou experiência em determinada atividade e ponha isso em prática. Brilhante a ideia de participar do processo. Aqui sim há o contato e a sensação do dever cumprido. Este é o papel do policial em suas ocorrências, daí o brilhantismo de todos que trabalham nas ruas, independente de qualquer coisa. 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS Facilmente compreensível na leitura dos casos propostos que o processo de desenvolvimento dos direitos humanos opera-se em constante cumulação, sempre fundados na sua universalidade, indivisibilidade e interdependência. Não há mais que se falar em pouca cultura para desrespeitar direito alheio. Parente de preso não é menos e nem mais merecedor de garantias, todos são responsáveis pela segurança pública e a paz social. Não existem pesos nem medidas diferentes. Perceba que atualmente afasta-se a visão fragmentária dos direitos humanos para se buscar uma "concepção contemporânea" desses mesmos direitos. Entendo que insistir na idéia geracional de direitos consolida a imprecisão da expressão em face da noção contemporânea dos direitos humanos e ainda pode se prestar a justificar políticas públicas que não reconhecem indivisibilidade da dignidade humana. Incabível hoje ponderar valores dos direitos fundamentais em detrimento da implementação dos direitos econômicos, sociais e politicos. Desta forma, a dicotomia até então existente entre direitos direitos individuais e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais, vai sendo superada pelo reconhecimento comum da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. Problema muito discutido dizia respeito ao miserável ser merecedor de mais direitos que a pessoa de posses. Hoje não mais. Incabível esta ideia pois cidadania em segurança pública é fazer a família amparar seus filhos e se responsabilizar por sua educação. Acusar o Estado da criminalidade crescente é responsabilizar injustamente quem deve dar suporte e não criar filhos de outrém. Você, leitor, e todos, em todas classes, são responsáveis por sua prole, daí o cuidado com o interesse da coletividade que não pode ser ameaçado por um ou outro indivíduo que só quer sugar do Estado, sem colaborar com o fortalecimento do pleno convívio social. A descartabilidade da pessoa humana não cabe no dicionário de pais que não educam seus filhos, já que estes jamais podem desistir de sua prole. Mínimo ético é favorecer a vida em sociedade e a lógica de ampliação dos direitos humanos. Fim da inôcencia é uma realidade pois merecedor de direitos é quem assume sua parcela de culpa e prestigia a sociedade pondo no mundo filhos melhores, pessoas com caráter e sabedores de suas responsabilidades
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O princípio da dignidade da pessoa humana como vetor punitivo do estado: preservação dos direitos do preso
Por meio de um método jurídico-teórico busca-se analisar a importância do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento do ordenamento jurídico pátrio, como vetor ao poder de punir do Estado. Dessa forma, tendo em vista o modelo constitucional de garantias, buscou-se analisar as ações estatais frente ao seu poder punitivo quando da pena privativa de liberdade contemplada sobre a nuance do regime fechado de cumprimento da pena. Hodiernamente o Estado que deveria assegurar a preservação da dignidade da pessoa humana fere de morte a Constituição cidadã, haja vista que, o poder de punir do Estado vem sendo exercido em desconformidade com a vontade do constituinte. As flagrantes ofensas praticadas pelo Estado são analisadas em um enfoque prático, isto é, tendo como objeto o encarcerado, titular de direitos que após o trânsito em julgado da sentença condenatória, cumpre nos diversos centros penitenciários do País a pena imposta pelo judiciário.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO O presente trabalho parte de uma proposta jurídico-teórica, em que pretende discutir a importância dos princípios constitucionais no exercício do poder de punir do Estado. Hodiernamente, doutrina e jurisprudência tem abordado a importância da dignidade da pessoa humana com um dos pilares do sistema jurídico em vigor. O constituinte de 1988 cravou no art. 1º, III, da CF/88, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Nesse prisma, percebe-se que o princípio da dignidade da pessoa humana foi lançado pelo Constituinte, como manual que precisa ser observado pelo Estado ao praticar suas ações. Destarte, esse princípio ganhou amplo destaque, funcionando como uma garantia que milita em favor dos cidadãos, funcionando como um limitador às ações do Estado. Não obstante, apesar da evolução do Direito democrático brasileiro, atualmente percebe-se que o Estado, no que tange ao ensaio em questão, negligencia o princípio em tela ao exercer o direito de punir seus cidadãos desordeiros. Dessa feita, adentraremos em um dos cenários mais desoladores do moderno estado brasileiro, não sendo outro, senão as mazelas que impregnam o regime de execução da pena. Assim, faz-se necessário buscar identificar os principais problemas presentes no exercício do poder de punir do Estado, tendo como exemplo o Complexo prisional de Aparecida de Goiânia – GO. 1. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 1.1. Etmologia Inicialmente torna-se importante conhecer a abrangência do vocábulo dignidade, haja vista que aceitar apenas a acepção jurídica da expressão, é tolher a contribuição da sociedade de hoje e de outrora. Dignidade é um substantivo feminino decorrente do latim dignitate, e segundo o Dicionário Aurélio da língua portuguesa é um adjetivo que, “por si só, designa a própria substância de um ser real ou metafísico, que define ou acentua alguma coisa. Diz o que é importante, essencial, substancial” (FERREIRA, 2010, p. 716). A seu turno, humana é adjetivo tecendo o significado de natureza pertencente ou relativo ao homem. Para a antropologia natureza humana é: “O conjunto das características físicas e orgânicas, mentais, psicológicas, afetivas, etc., que nos seres humanos, são supostamente comuns a toda a espécie e invariáveis, isto é, independentes das influências das sociedades ou culturas específicas em que os indivíduos nascem e se desenvolvem.” (FERREIRA, 2010, p. 1454). A Filosofia concebeu a natureza humana como o “conjunto das qualidades percebidas como idênticas, imutáveis e comuns a todos os seres humanos, e que seria suficiente para caracterizá-los como tais” (FERREIRA, 2010, p. 1455). Em sua obra “O Paradigma Perdido: A Natureza Humana”, Edgar Morin, inova ao defender que o movimento antropológico passe a gravitar em torno do fenômeno natureza e não na compreensão do fenômeno humano pautado na razão (2000). Nessa trilha, afirma: “A antropologia da primeira metade do nosso século lançou-se exatamente no sentido contrário, repudiando firmemente qualquer ligação com o “naturalismo”. O espírito humano e a sociedade humana, únicos na natureza, devem encontrar a sua inteligibilidade não só em si próprios, mas também como antítese de um universo biológico sem espírito e sem sociedade”. (2000, p. 04). Por fim, conclui o insigne mestre: “A questão da origem do homem e da cultura não diz unicamente respeito a uma ignorância que é preciso reduzir, a uma curiosidade a satisfazer. É uma questão com um alcance teórico imenso, múltiplo e geral. É o nó górdio que sustém a soldadura epistemológica entre natureza/cultura, animal/homem. É o local exato onde devemos procurar o fundamento da antropologia”. (2000, p. 28). Nesse diapasão de ideias, temos que a dignidade humana é um valor inerente ao homem, constructo das transformações sociais ocorridas ao longo do tempo, carecendo ainda, de profundos estudos, reflexões, para então, alcançar compreensão mais justa e adequada à sociedade em cena. 1.2 Movimento histórico Retornar através da história ao passado é necessário para compreensão do presente, e meio lógico para pensar o futuro. Noutras palavras, descortinar o passado é prever os fatos que hão de seguir-se, permitindo, por isso, adoção de medidas antecipativas com intuito de melhor adequar-se a realidade futura. Hodiernamente, aquele que se debruça ao estudo da estrutura jurídica nacional, seja como operador do direito, ou ainda como usuário eventual, encontrará no Título I, Dos Princípios Fundamentais, art. 1º, inc. III, da CFR, menção ao princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Nesse sentido: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana”; Deve-se ressaltar que, o citado artigo não é isolado no corpo do texto constitucional, havendo registro expresso no Título VII, Da Ordem Social, Capítulo VII, da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e Idoso, conforme redação dada pela EC Nº 65, de 13/05/10, art. 226, §7º. A presença do princípio em tela não se esgota nas passagens transcritas, pois há ainda outros casos explícitos, assim como outros implícitos, como quando a Constituição em seu Art. 5º, inc. III, diz que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.  Logo, poder-se-á concluir fundado nos ensinamentos de Flávia Piovesan que “acentuada é a preocupação da Constituição de 1988 em assegurar a dignidade e o bem estar da pessoa humana, como um imperativo de justiça social” (2009, p. 320). Uadi Lammêgo Bulos após minudente análise sobre os princípios constitucionais fundamentais ensina que o princípio da dignidade da pessoa humana “é vetor que agrega em torno de si a unanimidade dos direitos e garantias fundamentais do homem, expressos na Constituição de 1988” (2012, p.320). Prosseguindo em sua brilhante explanação sobre o princípio da dignidade humana, conclui o mestre: “O princípio da dignidade do homem possui um conteúdo amplo e pujante, envolvendo valores espirituais e materiais. Seu acatamento representa a vitória contra a intolerância, o preconceito, a exclusão social, a ignorância e a opressão”. (2012, p. 320).  Modernamente, percebe-se que o princípio da dignidade da pessoa humana funciona como um limite às atuações dos Estados, principalmente dos ocidentais, como o Brasil, que se intitula Estado Democrático de Direito. De outro lado, o princípio assegura aos cidadãos a expectativa de que seus valores intrínsecos não serão violados por esse ente arquétipo abstrato, Estado. 1.3 Prelúdio da dignidade da pessoa humana No tópico anterior abordou-se o princípio da dignidade humana em sua acepção moderna. Nas próximas linhas, buscar-se-á alcançar os laços mais distantes que contribuíram para a formação de meritório princípio. É na Bíblia Sagrada que se encontra um dos primeiros relatos versando sobre o tratamento digno do homem. Quando o homem cedeu aos encantos da serpente, desobedecendo às regras de Deus, viu-se despido, desprotegido. A consequência do erro foi a expulsão do paraíso, mas veja a benevolência do Criador do Universo, conforme narra o livro de Gênesis: “O Senhor Deus fez roupas de pele e com elas vestiu Adão e sua mulher. Então disse o Senhor Deus: “Agora o homem se tornou com um de nós, conhecendo o bem e o mal. Não se deve, pois, permitir que ele tome também do fruto da árvore da vida e o coma, e viva para sempre”. Por isso o Senhor Deus o mandou embora do jardim do Éden para cultivar o solo do qual fora tirado”. (HITCHCOCK, 2005, p. 14).  Como princípio fundamental que é a dignidade da pessoa humana existe antes mesmo de ser apreciada no bojo constitucional, está ligado ao jus cogens, direitos universais de observância obrigatória por todos os Estados. José Carlos Gobbis Pagliuca, contribuiu com importante trabalho sobre os antecedentes históricos dos direitos humanos. Para o mestre as fontes históricas são encontradas na: “Bíblia e outros textos religiosos como o Bhagavad – Gita – Tratados, propriedade, constituição familiar, moradia, responsabilidade do Estado, direito de defesa, etc. Magna Carta (Inglaterra, 1215) – Documento ao tempo do Rei João Sem-Terra, teve por escopo disciplinar a arbitrária cobrança de tributos e julgamentos justos. Petiton of Rights (Inglaterra, 1628) – Aprimoramento da Magna Carta. Habeas Corpus Act (Inglaterra, 1679) – Institui o habeas corpus que evoluiu tal qual o conhecemos hoje. Bill of Rights (Inglaterra, 1628) – Trouxe a lei para a competência parlamentar em prejuízo do rei. Pacto de Mayflower (norte do oceano Atlântico, 1620) – Segundo consta foi celebrado a bordo do navio Mayflower que trazia ingleses que imigravam para a colônia da América (EUA), em face precípua de conflitos religiosos (eram calvinistas e ficaram conhecidos como “puritanos” e “os peregrinos fundadores dos EUA”). Esse Pacto estabelecia, em resumo, que obedeceriam as leis justas e iguais. O pacto “é lembrado pela historiografia norte-americana como um marco fundador da ideia de liberdade, ainda que o documento dedique longos trechos à glória do rei James da Inglaterra”. Declaração de Virgínia (EUA, 1776) – Como diploma legal, sem dúvida, pode ser considerada a primeira carta tecnicamente abrangente de direitos humanos, embora de modo limitado. Mencionava serem os homens livres e independentes e com certos direitos inatos. Declaração de Independência dos EUA (1776) – Criada logo depois da Declaração da Virgínia, promoveu a igualdade, vida, liberdade e propriedade. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) – Decorrente da Revolução Francesa teve os ideais da Declaração americana e ressalvada a dignidade (liberdade, igualdade e fraternidade). Criação da Organização Internacional do Trabalho (criada em 1919, como parte do Tratado de Versailles) – É considerada como constitutiva dos direitos humanos, pois visava a humanização do trabalho ante condições injustas, difíceis e degradantes de muitos trabalhadores e com isso evitar riscos de conflitos sociais”. (2010, p. 28 e ss.) O apogeu da proteção aos direitos humanos deu-se com a Declaração dos Direitos Humanos ou do Homem, de 1948. A Declaração dos Direitos Humanos de 1948 é considerada universal porque alcança vários Estados-partes, uma vez que o documento da ONU e a integralidade do ser humano tem abrangências extramuros (PAGLIUCA, 2010, p.30). Sebastião José Roque entende que a história do direito “é composta de três fases: 1 – Antes da DDHC, 2 – DDHC, 3 – Depois da DDHC” (2007, p. 114). A Declaração dos Direitos Humanos e dos Cidadãos, de 1789, é um documento solene, que traz em seu bojo 17 princípios, voltados para a consecução dos direitos naturais sagrados, inalienáveis e imprescritíveis do ser humano. Ressalte-se que os acontecimentos referenciados não são taxativos, havendo outros diplomas de relevo para os direitos humanos, tais como: Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, Declaração dos Direitos Humanos dos indivíduos que não são nacionais nos países em que vivem de 1985. 1.4 Classificação dos princípios constitucionais Para melhor compreensão da importância do princípio da dignidade da pessoa humana no ordenamento pátrio, faz-se necessário conhecer a sistemática utilizada pelos jurisconsultos, bem como pelo legislador pátrio. Em síntese esclarecedora, pontifica Walter Claudius Rothenburg, que: “As classificações orientam-se por um critério de generalidade/positividade, apresentado por primeiro princípios gerais de Direito, em seguida princípios básicos, mas referidos a uma determinada concepção político-social, e finalmente princípios mais específicos dotados de uma maior precisão”. (2003, p. 67). Ainda de acordo como Rothenburg uma das mais referidas “tipologias” é apresentada por Canotilho, a saber: “[…] – princípios jurídicos fundamentais: antes mesmo de serem apreciados enquanto princípios específicos do Direito Constitucional, são princípios gerais de Direito, com determinação histórica e “multifuncionalidade”, de que são exemplo os princípios da publicidade dos atos jurídicos, da proibição do excesso (proporcionalidade ou “justa medida”), do acesso ao direito e aos tribunais, da imparcialidade, da administração; – princípios políticos constitucionalmente conformadores: condensam “as opções políticas nucleares” e refletem “a ideologia inspiradora da constituição” (por isso que são “reconhecidos como limites do poder de revisão”), tais os definidores da forma de Estado (inclusive “da organização económico-social, como, p.ex:, o princípio da subordinação do poder económico ao poder político democrático, o princípio da coexistência dos diversos sectores da propriedade…”), da estrutura do Estado e do regime político (como princípio pluralista), da forma de governo e da organização política em geral (“como o princípio da separação e interdependência de poderes e os seus princípios eleitorais”); – princípios constitucionais impositivos: os que, “sobretudo no âmbito da constituição dirigente, impõem aos órgãos do Estado, sobretudo ao legislador, a realização de fins e a execução de tarefas”: princípio da independência nacional, da correção das desigualdades…; – princípios-garantia: cuja maior densidade normativa (e menor grau de vagueza) – de onde uma particular força normativa – os aproxima das regras, permitindo o “estabelecimento directo de garantias para os cidadãos” (princípios em forma de norma jurídica” (Larenz)”), como o de legalidade estrita em matéria criminal, o da inocência, o do juiz natural.” (2003, p. 67 e s.) Valendo-se, ainda, da eficiente obra do Procurador da República, outra classificação, desta vez, quanto à origem, é dada por Edilsom Pereira de Farias, nesses termos: “[…] – os princípios explícitos ou positivos, “expressamente previstos na constituição ou em lei”. Quanto aos princípios constitucionais, comportariam a seguinte tipologia: princípios estruturantes ou fundamentais, “aqueles que expressam as decisões políticas fundamentais do constituinte no que pertine a estrutura básica do Estado e as idéias e os valores fundamentais triunfantes na Assembléia Constituinte”, e cuja modificação implica a destruição da constituição…, princípios constitucionais impositivos ou diretivos, que “dizem respeito às tarefas que a constituição incumbe ao Estado geralmente para o atendimento de necessidades coletivas de natureza econômica, social e política”…, e princípios-garantia, “compostos por aquelas normas constitucionais que propõem diretamente uma garantia individual”, sendo diretamente aplicáveis…; – os princípios implícitos ou princípios gerais do Direito, que, embora tendo “respaldo no direito positivo a despeito de não constituírem normas explícitas” – dotados, portanto, de “presencialidade” e “objetividade” normativa… – “não estão consagrados em nenhuma concreta disposição de norma, senão que se encontram implicitamente no interior da ordem jurídica de onde são recolhidos através da arte de interpretar e aplicar as normas jurídicas”…; – os princípios suprapositivos ou extra-sistêmicos, “que reivindicam sua origem fora e acima do direito positivo (não estatuídos por disposições normativas e nem destas extraídos por dedução ou indução)”…, tendo como exemplos – segundo Luis P. Sanchís – o princípio “de precedência da lei em todo o âmbito normativo, entendido como exigência do sistema de legitimidade”, e a “cláusula do sistema de liberdades ‘que concibe la libertadad jurídica como la garantia institucional de la coextensa libertad natural…” (2003, p. 68 e s.). Deve-se ter em mente, que as classificações apresentadas não são absolutas e que estas não esgotam o estudo do tema. Na verdade, interessante seria a capacidade de aglutinar, formando um consenso entre aqueles que se dispõem a estudar o tema. A dignidade da pessoa humana é um valor constitucional, escolhido pelo Constituinte como fundamento da República Federativa do Brasil. Na obra Valores e Princípios Constitucionais, Bizzotto, ao fazer uso da lúcida lição de Moraes, afirma que a dignidade humana é: “Valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas”. (2003, p. 137).  Partindo da premissa da pessoa como centro da sociedade e a finalidade da existência desta, Bizzotto, conclui que “a norma tem o escopo único de respeitar o próprio ser humano inserido na comunidade, sem o qual, ela (a norma) perde sua legitimidade” (2003, p.137). Nessa linha de ideias “a rede constitucional, através de suas matizes, visa reforçar a dignidade da pessoa humana como “o valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem” (ROBERTI, 2001, p. 49). A classificação dos princípios constitucionais como afirmado alhures é extensa, tendo como escopo sistematizar o estudo das regras adotadas pelo legislador na Constituição dos Estados Democráticos, para revelar, então, o alcance dos principais direitos fundamentais, encontrando o princípio da dignidade da pessoa humana valência sobre os demais, haja vista o giro gravitacional em torno de si, pois é o elemento essencial dos Estados modernos, que tem como finalidade assegurar o exercício pleno da cidadania. 1.5 Teoria do quarto status de Jellinek Georg Jellinek, filósofo do direito alemão, lecionou nas universidades de Basiléia e de Heidelberg, tendo publicado durante sua vida inúmeras obras que contribuem sobremaneira para a compreensão do fenômeno jurídico. Dentre as teorias que buscam explicar o papel desenvolvido pelos direitos fundamentais, não resta dúvida que a teoria desenvolvida pelo filósofo é das mais valiosas, visto que, mesmo elaborada no final do século XIX, permanece bastante atual, explicando o papel das distintas espécies de direitos fundamentais. Na concepção de Jellinek o cidadão é colocado face ao Estado em quatro status: 1) status passivo ou subjectionis; 2)status negativo; 3)status positivo ou civitatis; 4)status ativo. André Puccinelli Júnior, em trabalho maestral sintetiza o trabalho do mestre alemão: “[…]Status passivo ou subjectionis – aqui a pessoa humana está em posição de subordinação perante o Poder Público, vinculando-se ao Estado por meio de ordens e proibições. Por outras palavras, o indivíduo só detém obrigações e deveres perante o Estado. Status negativo – enfatiza-se aqui a liberdade individual perante o Estado que dever exercer sua autoridade sobre homens livres. Status positivo ou status civitatis – nessa etapa, o indivíduo assume o direito de exigir uma atuação positiva do Estado consistente em prestações materiais a seu favor. Status ativo – finalmente, aqui o indivíduo conquistaria o direito de participar ativamente da formação da vontade do Estado, mediante o voto e o exercício de outros direitos ligados à cidadania política”. (2012, p. 202 e s.) A sistematização em forma de status apresentada pelo mestre alemão acompanha a evolução histórica, ressaltando, por fim, a participação do cidadão no exercício de tais princípios e a condição a que fica submetido o Estado. 1.6 Princípios, normas e regras É importante nesse ponto trazer a lume determinados apontamentos, tratados pelos estudiosos do direito, no que se refere ao campo de aplicação dos princípios, normas e regras, verificando-se existe ou não diferença entre eles. Princípio, do latim principiu, de acordo com a definição encontrada no Dicionário Aurélio da língua portuguesa, significa “momento ou local ou trecho em que algo tem origem, começo, causa primária, elemento predominante na constituição de um corpo orgânico, preceito, regra, lei” (FERREIRA, 2010, p. 1709-1710). Normas, do latim norma, a seu turno, “aquilo que se estabelece como base ou medida para a realização ou a avaliação de alguma coisa; princípio, preceito, regra, lei; modelo, padrão” (FERREIRA, 2010, p. 1476). Por fim, regras, derivação do latim regula, quer significar: “Aquilo que regula, dirige, rege ou governa; fórmula que indica ou prescreve o modo correto de falar, pensar, raciocinar, agir, num caso determinado; aquilo que está determinado pela razão, pela lei ou pelo costume; preceito, princípio, lei, norma; moderação, método, ordem”. (FERREIRA, 2010, p. 1806). Do exposto, percebe-se que, os vocábulos traduzem diferenças, mas ao mesmo tempo, se completam reforçando uma ideia de conexão. Na acepção jurídica os termos ganham contornos próprios. Apesar da ciência jurídica não ser exata, ela não está despida de conceitos próprios, exatos. É por meio das normas que o Direito se irradia, impondo observância de comportamentos a sociedade. As regras disciplinam uma determinada situação, assim dependendo do caso uma regra pode ou não ter incidência, dependendo do enquadramento da situação ao caso previsto. Por fim, os princípios são amplos, funcionando como linha reguladora do ordenamento jurídico. Noutras palavras, os princípios funcionam como guia que indica o caminho a ser seguido por aqueles que se dispõem a tratar desse fenômeno social, denominado Direito. Em clássica lição sobre princípios, manifesta o mestre Celso Antônio: “Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo”. (2002, p. 807-808). Percebe-se do exposto que o conceito da expressão não é uníssona em sede doutrinária, mas, em Direito, os conceitos apresentados tende a aceitar a carga significativa de nascente, base, cerne que compõe um sistema jurídico. 1.7 A dignidade da pessoa humana como limite ao poder de punir do Estado Em linhas antecedentes tentou-se apontar a importância do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado brasileiro, assim, lançando do estágio presente, pairou sobre o contexto histórico, linguístico e científico desse tão importante princípio. Destarte, nesse ponto, buscar-se-á assentar as primeiras linhas, alicerce da presente discussão, qual seja, a importância desse princípio como limitador ao poder do Estado punir seus cidadãos que em algum momento infrinja as regras de comportamentos, prevista em lei protetora de determinado bem jurídico, que pela sua importância carece de proteção jurídico-penal. O Art. 5º, caput, da CFR, estendeu, em sua literalidade, a proteção dos direitos nela previstos aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País. Contudo, essa não é a melhor interpretação, devendo buscar uma interpretação sistemática e teleológica, visando abranger, todas as pessoas, indistintamente, sob o risco de reduzir a vontade do Constituinte originário. Nessa linha, manifesta com sua clareza habitual Puccinelli Júnior, afirmando: “[…] o que se propõe é a interpretação sistemática e teleológica (finalística) da norma, estendendo os direitos e garantias fundamentais a todas as pessoas, independentemente de sua nacionalidade ou situação no Brasil”. (2012, p. 193). As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata, conforme Art. 5º, §1º, da CF/88, no entanto há normas previstas na própria constituição que ficam dependentes de leis futuras para se concretizarem. Fato é que o princípio da dignidade da pessoa humana perfaz-se como sendo a viga mestra do alicerce constitucional pátrio. O Estado tem o dever-poder de proteger os bens jurídicos mais importantes de seus cidadãos, e para tanto, lança mão de um ramo específico construído por meio de regras específicas, limitadoras dos direitos dos cidadãos que trilham o caminho da afronta as regras sociais. Assim, por meio do direito penal o Estado, quando determinados cidadãos afrontam bens jurídicos como a vida, ou o patrimônio, inflige penas que vão desde multas até a privação de liberdade. Esta quando aplicada em regime fechado, tolhe um dos mais importantes bens do homem, qual seja a liberdade de ir, vir e permanecer, ou seja, locomover-se com liberdade. Desse modo, respeitado o devido processo legal, o Estado pode privar de sua liberdade o cidadão que, por exemplo, praticar ato atentatório contra a vida não abarcado por excludente de ilicitude. Agora, esse dever-poder não é ilimitado, encontrado na dignidade da pessoa humana seu principal vetor. O Direito Penal “é o conjunto de princípios e leis destinados a combater o crime e a contravenção penal, mediante a imposição de sanção penal”. (MASSON, 2010, p. 3) Seguindo o que foi dito alhures o direito é um fenômeno social, não podendo ser contemplado dissociadamente. Nessa linha de intelecção manifesta Masson, afirmando que “[…] o ordenamento jurídico, com efeito, é composto pelo conjunto de normas e princípios em vigor. Sua divisão em blocos se dá estritamente para fins didáticos”. (2010, p. 5) Destarte, pela lucidez dos argumentos apresentados sob o tema, transcreve-se os ensinamentos pontificados por Cleber Masson: “As regras e princípios constitucionais são os parâmetros de legitimidade das leis penais e delimitam o âmbito de sua aplicação…Dessa forma, qualquer lei, penal ou  não, elaborada ou aplicada em descompasso com o texto constitucional, não goza de validade…O Direito Penal desempenha função complementar das normas constitucionais”. (2010, p. 6-7) Em síntese, o princípio em voga, forjado nas constantes lutas sociais, travadas ao longo da evolução humana, impregnou a constituição pátria de direitos inerentes ao homem, como à vida, à liberdade, à dignidade, impondo ao Estado o dever de respeitar e efetivar tais direitos, mesmo que determinados cidadãos afrontem as regras de conduta social, praticadas em seu território. 2 O DIREITO DE PUNIR DO ESTADO 2.1 Breves comentários “É no coração do homem que se encontra os preceitos essências do direito de punir. Ninguém faz graciosamente o sacrifício de uma parte de sua liberdade apenas visando o bem público” (BECCARIA, 2009, p. 18). Cezar Roberto Bitencourt aduz que, “[…] falar de Direito Penal é falar, de alguma forma, de violência. No entanto, modernamente, sustenta-se que a criminalidade é um fenômeno social normal” (2010, p. 31). Nessa linha de intelecção, sustenta Mirabete: “A vida em sociedade exige um complexo de normas disciplinadoras que estabeleça as regras indispensáveis ao convívio entre os indivíduos que a compõem. O conjunto dessas regras, denominado direito positivo, que deve ser obedecido e cumprido por todos os integrantes do grupo social, prevê as consequências e sanções aos que violarem seus preceitos”. (2003, p. 21) Desta feita, conclui-se que o ius puniendi é uma resposta necessária por meio da qual o Estado, em virtude da necessidade de impor sanções àqueles que descumprem as regras sociais mais importantes, suspende temporariamente direitos, entre os quais se destaca a liberdade. Nesse diapasão assevera Rogério Greco: “No que diz respeito especificamente às normas de natureza penal, destaca-se o chamado ius puniendi, que pode ser entendido tanto em sentido objetivo, quando o Estado, através de seu Poder Legislativo, e mediante o sistema de freios e contrapesos, exercido pelo Poder Executivo, cria as normas de natureza penal, proibindo ou impondo determinado comportamento, sob a ameaça de uma sanção, como também em sentido subjetivo, quando esse mesmo Estado, através do seu Poder Judiciário, executa suas decisões contra alguém que descumpriu o comando normativo, praticando uma infração penal, vale dizer, um fato típico, ilícito e culpável”. (2013, p. 19) O Direito Penal hodierno é uma face do Estado necessária ao controle social, funcionando como um remédio amargo ministrado aos cidadãos que escolhem trilhar caminho diverso, ofendendo as regras de condutas postas em um determinado ordenamento jurídico, atingindo bens de suma importância como a vida, o patrimônio, a dignidade. 2.2 Rudimentos históricos Justificando a importância de proceder à reflexão histórica, argumenta Bitencourt: “A importância do conhecimento do conhecimento histórico de qualquer ramo do Direito facilita inclusive a exegese, que necessita ser contextualizada, uma vez que a conotação que o Direito Penal assume, em determinado momento, somente será bem entendida quando tiver como referência seus antecedentes históricos”. (2010, p. 59) É consenso entre os jurisconsultos que a história do Direito Penal está entrelaçada com a história da própria evolução social da humanidade. Pode-se afirmar, com segurança, que “a história da pena e, consequentemente, do Direito Penal, embora não sistematizado, se confunde com a história da própria humanidade” (MASSON, 2010, p. 45). Não há consenso entre os doutrinadores quanto às fases por que passou a evolução da vingança penal. Contudo, “[…] atualmente prospera a teoria da tríplice divisão, a saber: vingança privada, vingança divina e vingança pública” (BITENCOURT, 2010, p. 59). Insta salientar que tais etapas foram “[…] marcadas por forte sentimento religioso e espiritual. Vale ressaltar ser essa divisão meramente didática, haja vista uma fase se interligar e conviver com outra durante os tempos primitivos” (MASSON, 2010, p. 46). Não é possível falar em um marco certeiro sobre o nascimento do Direito punitivo, todavia resta cristalizado que o ius puniendi nasceu da relação entre particulares, onde predominava as regras do mais forte, sendo, com o passar do tempo, entregue ao Estado, para que este, substituindo os cidadãos, evitasse a destruição destes. 2.2.1 Sociedades primitivas Nessa era as punições ao infrator eram implementadas de maneira a desagravar a divindade. Nas sociedades primitivas, “[…]os fenômenos naturais maléficos eram recebidos como manifestações divinas – “totem” – revoltadas com a prática de atos que exigem reparação” (BITENCOURT, 2010, p. 59). Fazendo coro à afirmação supra, leciona Mirabete: “Nos grupos sociais dessa era, envoltos em ambiente mágico (vedas) e religioso, a peste, a seca e todos os fenômenos naturais maléficos eram tidos como resultantes das forças divinas (“totem”) encolerizadas pela prática de fatos que exigiam reparação”. (1986, p. 38) Na manifestação inicial do poder de punir não é possível uma distinção entre o espiritual, sagrado e o humano, pois as punições, denominadas pelos doutos “totêmicas”, encontravam sua legitimação no mundo espiritual, buscando, assim, manter o equilíbrio com a entidade a quem devotavam. 2.2.2 Fase da vingança divina Fincado no augúrio de que o infrator era punido para desagravar a divindade, manifesta Cleber Masson: Uma das reações contra o criminoso era a expulsão do grupo (desterro), medida que se destinava, além de eliminar aquele que se tornara um inimigo da comunidade e dos seus deuses e forças mágicas, a evitar que a classe social fosse contagiada pela mácula que impregnava o agente, bem como as reações vingativas dos seres sobrenaturais a que o grupo estava submetido”. (2010, p. 46-47)  Para arrematar conclui o insigne autor que: “O castigo consistia no sacrifício de sua vida. Castigava-se com rigor, com notória crueldade, eis que o castigo deveria estar em consonância com a grandeza do deus ofendido, a fim de amenizar sua cólera e reconquistar sua benevolência para com o seu povo”. (2010, p. 47) O castigo ou oferenda por delegação divina, conforme lição de Mirabete era “[…]aplicado pelos sacerdotes, que infligiam penas severas, cruéis e desumanas, visando especialmente à intimidação”. (MIRABETE, 1986, p. 40) Apesar da forte presença espiritual nesse período não havia a consciência da proporcionalidade, ou ainda a valorização do ser humano como igual, assim, aquele que cometia um erro, crime ou pecado era castigado sem piedade, no mais das vezes, recebendo castigo igual ao mal praticado a seu semelhante. 2.2.3 Fase da vingança privada Encerrada a fase da vingança divina, inicia-se esta, em decorrência, principalmente do crescimento dos povos e da complexidade social daí resultante (MASSON, 2010, p. 47). Nessa fase, cometido um crime, “[…] ocorria a reação da vítima, dos parentes e até do grupo social (tribo), que agiam sem proporção à ofensa, atingindo não só o ofensor, como também todo o seu grupo”. (MIRABETE, 1986, p. 39) Com a evolução social, para evitar a dizimação das tribos, “[…] surge a lei da talião, determinando a reação proporcional ao mal praticado: olho por olho, dente por dente”. (BITENCOURT, 2010, p. 60) Em afirmação lúcida esclarece Masson que “[…] o talião foi pioneira manifestação do princípio da proporcionalidade, por representar tratamento igualitário entre autor e vítima”. (2010, p. 48) Como número de infratores só aumentava a aplicação do talião foi trazendo consequências dantescas, ou seja, “[…] as populações iam ficando mutiladas, pela perda de membro, função ou sentido, assim, evoluiu-se para a composição”. (BITENCOURT, 2010, p. 60) A composição, nas lições de Mirabete, “[…] é o sistema pelo qual o ofensor se livrava do castigo com a compra de sua liberdade (pagamento em moeda, gado, armas, etc)”. (1986, p.39) É nessa fase que surge o talião “olho por olho, dente por dente”, marcado pelo aumento da sociedade, bem como o surgimento de fenômenos complexos. Alguns consideram o “talião” como uma das primeiras manifestações do princípio da proporcionalidade na seara penal, contudo, com o transcorrer dos dias esse sistema teve que ser abandonado, pois sua aplicação fez surgir outros problemas sociais, tais como invalidez para o trabalho, ou guerra em razão das mutilações. 2.2.4 Fase da vingança pública Com o passar do tempo o Estado estruturou-se, avocando poder-dever de manter a ordem e a segurança social, “[…]conferindo a seus agentes a autoridade para punir em nome de seus súditos. A pena assume nítido caráter público” (MASSON, 2010, p. 48) Nesta fase, “[…] o objetivo da repressão criminal é a segurança do soberano ou monarca pela sanção penal, que mantém as características da crueldade e da severidade, com o mesmo objetivo intimidatório”. (BITENCOURT, 2010, p. 61) Segundo Mirabete, ainda em obediência ao sentido religioso, “[…] o Estado justificava a proteção ao soberano que, na Grécia, por exemplo, governava em nome de Júpiter, e era seu interprete e mandatário” (1986, p. 40). Essa concepção fui superada com a contribuição dos filósofos, tendo “[…] Aristóteles antecipado a necessidade do livre-arbítrio, verdadeiro embrião da ideia de culpabilidade”. (BITENCOURT, 2010, p. 61) Leciona Masson, que nessa época, “[…] as penas eram largamente intimidatórias e cruéis, destacando-se o esquartejamento, a roda, a fogueira, a decapitação, a forca, os castigos corporais e amputações, entre outras”. (2010, p. 49) Pode-se afirmar que com a estruturação do Estado os homens livres permitiram que o estado assumisse o poder-dever de exercer o direito punitivo sobre o indivíduo que afrontasse os valores da época, aplicando, em regra, penas intimidatórias e, extremante, cruéis. 2.2.5 Direito penal em Roma e na Grécia antiga “Roma, oferece um ciclo jurídico completo, constituindo, até hoje a maior fonte originária de inúmeros institutos jurídicos, tida com síntese da sociedade antiga, representando um elo entre o mundo antigo e o moderno” (BITENCOURT, 2010, p. 61). A história do Direito Romano divide-se em várias etapas, as quais percorrem 22 séculos (de 753 a.C. a 1453 d.C.), passando por grandes transformações. (MASSON, 2010, p. 50) Na formação de Roma, a pena era “[…] aplicada em seu sentido religioso, confundindo-se com a figura do Rei e do Sacerdote, que dispunham de poderes ilimitados, numa verdadeira simbiose de Direito e religião”. (BITENCOURT, 2010, p. 61-62) O núcleo do Direito Penal Romano clássico, nas lições de Bitencourt, surgiu com o conjunto de leis publicadas ao fim da República (80 a.C.), com as leges Corneliae e Juliae, tendo sido criadas verdadeiras tipologias de crimes. (2010, p. 62) Esse conjunto de leis pode ser considerado “[…] a primeira manifestação, ainda que tímida, do princípio da reserva legal”. (MASSON, 2010, p. 51) O fundamento da pena, conforme lições de Bitencourt, “[…] era essencialmente retributivo, embora, em seu período final, apareça bastante atenuado, vigindo o princípio da reserva legal”. (2010, p. 62) Por fim, sobre o Direito Romano, sintetiza Masson: “Os romanos também conheceram alguns institutos importantes: nexo causal, dolo e culpa, caso fortuito, inimputabilidade, menoridade, concurso de pessoas, legítima defesa, penas e sua dosagem. Não procuraram defini-los. Ao contrário, os utilizavam casuisticamente, sem o apego à criação de uma teoria geral do Direito Penal”. (2010, p. 51) Para Bitencourt, conforme assentado alhures, os filósofos da Grécia “[…] anteciparam a necessidade do livre-arbítrio, embrião da culpabilidade, pensado primeiro na filosofia para depois ser transportada para o campo jurídico”. (2010, p. 61) Ao lado da vingança pública “[…] os gregos mantiveram por longo tempo as vinganças divina e privada, formas de vingança que ainda não mereciam ser denominas Direito Penal” (BITENCOURT, 2010, p. 61) Denota-se do exposto que, Roma e Grécia, contribuíram para o Direito Penal, pensando a base de muitos dos institutos hoje existentes, entre os quais a tipicidade, a culpabilidade, enfim, auxiliaram na construção de uma das nuanças mais intrigantes do Direito, por lidar com um dos bens mais valiosos do homem, qual seja, a liberdade. 2.3 O direito penal na idade média Não há entre os estudiosos uma metodologia para o estudo dos diplomas que contribuíram para o desenvolvimento do Direito Penal e da pena durante a idade média. No entanto, destaca-se em diversas obras o Direito Penal germânico e o Direito Penal canônico. O Direito Penal germânico, não tinha leis escritas, “[…] caracterizava-se como direito consuetudinário, concebido como uma ordem de paz. Sua transgressão poderia assumir caráter público ou privado”. (MASSON, 2010, p. 51) Discorrendo sobre a política criminal germânica, com base nas lições de Jescheck, leciona Bitencourt: “A reação à perda de paz, por crime público, autorizava que qualquer pessoa pudesse matar o agressor. Quando se tratasse de crime privado, o transgressor era entregue à vítima e seus familiares para que exercessem o direito de vingança, que assumia um autêntico dever de vingança de sangue. Essa política criminal germânica, em seus primórdios, representava uma verdadeira guerra familiar, evoluindo para um direito pessoal a partir do século IX, para, finalmente, em 1495, com o advento da Paz Territorial Eterna, ser definitivamente banida”. (BITENCOURT, 2010, p. 64) A seu turno o Direito Penal canônico “[…] é o ordenamento jurídico da Igreja Católica Apostólica Romana, e a primeira consolidação de suas normas e regras se deu por volta do ano de 1140, por decreto de Graciano” (MASSON, 2010, p. 52). Sobre o Direito canônico leciona Bitencourt no sentido de ser ele composto pelo Corpus Juris Canonici, que resultou do Decretum Gratiani (1140), sucedido pelos decretos dos Pontífices Romanos (séc. XII), de Gregório IX (1234), de Bonifácio VIII (1298) e pelas Clementinas, de Clemente V (1313) (2010, p. 65). Os delitos eram classificados, ou divididos de acordo com Masson: “[…]a) Delicta eclesiástica: ofendiam o direito divino, eram da competência dos tribunais eclesiásticos e punidos com penitências; b) Delicta mera secularia: ofendiam apenas a ordem jurídica laica, eram julgados pelos tribunais do Estado e suportavam as penas comums. Eventualmente, sofriam punição eclesiástica com as poena medicinales; e c) Delicta mixta: violavam as ordens religiosa e laica, e eram julgados pelo Tribunal que primeiro tivesse conhecimento da ofensa. Pela Igreja eram punidos com as poena vindicativae”. (2010, p. 52-53). Discorrendo sobre a importância do Direito Penal canônico, Mirabete aduz: “Assimilando o Direito Romano e adaptando este às novas condições sociais, a Igreja contribui de maneira relevante para a humanização do Direito Penal, embora politicamente a sua luta metódica visasse obter o predomínio do Papado sobre o poder temporal para proteger os interesses religiosos de dominação. Proclamou-se a igualdade entre os homens, acentuou-se o aspecto subjetivo do crime e da responsabilidade penal e tentou-se banir as ordálias e os duelos judiciários. Promoveu-se a mitigação das penas que passaram a ter como fim não só a expiação, mas também a regeneração do criminoso pelo arrependimento e purgação da culpa, o que levou, paradoxalmente, aos excessos da Inquisição. A Jurisdição penal eclesiástica, entretanto, era infensa à pena de morte, entregando-se o condenado ao poder civil para execução”. (1986, p. 41). Nesse período histórico a pena continuava a ser aplicada para defender os interesses de alguns para manutenção do poder, contudo, nota-se a influência de valores inerentes ao homem, naturais, na formação de um novo modelo de pensamento, ou seja, humanização do direito penal, tendo o direito canônico contribuído para o surgimento da prisão moderna (BITENCOURT, 2010, p. 66). 2.4 O direito penal moderno e os reformadores “A pena de morte, pois, não se apoia em nenhum direito. É guerra que se declara a um cidadão pelo país, que considera necessária ou útil a eliminação desse cidadão”. (BECCARIA, 2000, p. 52) É no decorrer do Iluminismo que se inicia o denominado “Período Humanitário do Direito Penal, movimento que pregou a reforma das leis e da administração da justiça penal no fim do século XVIII” (MIRABETE, 1986, p. 42). Sobre esse movimento cultural, leciona Bitencourt: “Esse movimento de ideias, definido como Iluminismo, atingiu seu apogeu na Revolução Francesa, com considerável influência em uma série de pessoas com um sentimento comum: a reforma do sistema punitivo. O Iluminismo, aliás, foi uma concepção filosófica que se caracterizou por ampliar o domínio da razão a todas as áreas do conhecimento humano”. (2010, p. 69) A época o “Absolutismo impunha atos de punição crudelíssimos e arbitrários, por meio de graves suplícios. A sociedade não mais suportava tal forma de agir do Estado” (MASSON, 2010, p. 54). Com proficiência leciona Bitencourt: “É na segunda metade do século XVIII quando começam a remover-se as velhas concepções arbitrárias: os filósofos, moralistas e juristas dedicam suas obras a censurar abertamente a legislação penal vigente, defendendo as liberdades do indivíduo e enaltecendo os princípios da dignidade do homem”. (2010, p. 69) Cesare Beccaria, de forma impressionante para a época, “[…] antecipa as ideias posteriormente consagradas na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, pugnando de maneira universal pela abolição da pena de morte” (MASSON, 2010, p. 54). No pensamento de Beccaria, “[…] a pena deve ser proporcional, uma vez que os gritos de horror como consequências das torturas não retiram a realidade da ação já praticada, revelando a inutilidade dos tormentos” (MASSON, 2010, p. 54). Beccaria, após criticar as mazelas existentes em sua época afirma que, “[…] para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, de modo essencial, pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei”. (2000, p. 107) Não resta dúvida que Beccaria foi um dos grandes expoentes dessa revolução de ideias, contudo, outros grandes nomes contribuíram, para o desenvolvimento das ideias de valorização do homem, entre eles, podem ser citados John Howard (1725-1790) e Jeremias Bentham (1748-1832), com aquele nasce o penitenciarismo, este contribui para a penologia (BITENCOURT, 2010, p. 72-76). Por fim, vale ressaltar que as ideias de Beccaria continuam validas hodiernamente, haja vista que, não só no Brasil, mas em vários outros países ocidentais é comum o emprego do ius puniendi como ferramenta de dominação e exclusão do homem, principalmente daqueles que estão no extremo piso da sociedade, isto é, os pobres, despidos de oportunidades de acesso a uma economia globalizada. 2.5 Direito Penal no Brasil O Direito Penal brasileiro, num primeiro período, regeu-se pela “[…] legislação portuguesa, e, só num segundo período, por legislação genuinamente brasileira”. (BITENCOURT, 2010, p. 76) A história do Direito Penal pátrio pode ser sistematizada em três fases, a saber: colonial, império e república. Durante o período colonial “[…] esteve em vigor as Ordenações Afonsinas e Manuelinas, Código de D. Sebastião e as Ordenações Filipinas, que refletiam o direito penal dos tempos medievais”. (MIRABETE, 1986, p. 47) Nesse período prevaleceu uma realidade jurídica particular, em que na prática, prevalecia a vontade dos donatários, pois estes estabeleciam o Direito a ser aplicado, sem critério algum, podendo, afirmar que o regime jurídico do Brasil Colônia era catastrófico (BITENCOURT, 2010, p. 77). Proclamada a independência, determinou a Constituição de 1824, a elaboração de um Código Criminal, fundado nas solidas bases da justiça e equidade, destarte, em 1830, D. Pedro I sancionou o Código Criminal, diga-se o “[…] primeiro código autônomo da América Latina” (BITENCOURT, 2010, p. 77). Segundo Mirabete, “[…] este código de índole liberal, fixava um esboço de individualização da pena, previa a existência de atenuantes e agravantes e estabelecia um julgamento especial para os menores de quatorze anos”. (2003, p. 43) Proclamada a República, nasceu necessidade de novo estatuto criminal, editado em 1890, denominado Código Penal, que extirpou a pena de morte, e instalou regime penitenciário de caráter correcional (MIRABETE, 1986, p. 48).  O código elaborado por João Batista Pereira apresentou “[…] inúmeros equívocos e deficiências, que o transformaram em verdadeira colcha de retalhos, conforme sustenta Cleber Masson”. (2010, p. 59) “O Direito Penal pátrio passou por várias modificações, seja procurando atualizar as sanções penais, ou ainda, reformulando a parte geral, humanizando as sanções penais, buscando penas alternativas a prisão”. (BITENCOURT, 2010, p. 79) É evidente que o Direito Penal brasileiro ainda está em constante evolução, contudo essa evolução não é de toda positiva, pois o legislador insiste em importar de outros ordenamentos jurídicos ideias que foram desenvolvidas para uma sociedade com valores e costumes próprios, assim, comumente, as ideias transportadas não produzem os resultados esperados. 2.6 A pena como meio de consecução do ius puniendi Ariel Dotti, citado por Haroldo Caetano, adverte que “[…] os fundamentos e os fins da pena resumem o debate imortal sobre a essência e a circunstância do próprio Direito Penal dos tempos modernos” (2009, p. 25). “A identificação da função da pena torna-se pressuposto para a compreensão do que é o próprio Direito Penal, já que, como já afirmado, o que diferencia este ramo do Direito dos demais é justamente pela existência daquela” (CANTERJI, 2008, p. 82). A doutrina majoritária sustenta que existem três correntes por meio das quais é possível estudar as teorias da pena, a saber: teorias absolutas ou teorias da retribuição, teorias relativas ou teorias da prevenção ou finalistas e teorias mistas. A pena nas teorias absolutas “[…] apresenta característica da retribuição, de ameaça de um mal contra o autor de uma infração penal. A pena não tem outro propósito que não seja o de recompensar o mal com outro mal” (SILVA, 2009, p. 26). A Constituição da República, nas palavras de Rafael Braude, “[…] nega validade a esse tipo de função, demonstrando, ainda, o temor com a sua aplicação ao proibir penas de caráter perpétuo, de morte e cruéis” (2008, p. 82). A seu turno, as teorias relativas, desenvolveram-se em oposição às teorias absolutas, “[…] concebendo a pena como um meio para a obtenção de ulteriores objetivos” (SILVA, 2009, p. 27). “Tais teorias, que atribuem à pena uma finalidade prática de prevenção geral ou especial do crime (punitur ne peccetur), tem representantes em grandes nomes da época do iluminismo: Beccaria, Filangieri, Camignani” (SILVA, 2009, p. 27). Versando sobre a presente teoria, afirma Canterji que: “A pena atua como forma preventiva de crimes. Trata-se de concepções utilitaristas da pena, não sendo uma necessidade em si mesma como forma de realização da Justiça, mas sim de instrumento preventivo de garantia social para evitar a prática delitos futuros”. (2008, p. 82) As teorias mistas, por sua vez resultam da combinação entre as teorias absolutas e relativas, e segundo Silva “[…] sustentam o caráter retributivo da pena, mas agregam a essa função a de reeducação e inocuização do criminoso, embora, em geral, coloquem em primeiro plano a retribuição”. (2009, p. 27) Instruído pelas palavras de Francisco Assis Toledo, Silva assenta em sua obra quanto ao objetivo dessas teorias: “Prevenção geral e especial são, pois, conceitos que se complementam. E, ainda que isto possa parecer incoerente, não excluem o necessário caráter retributivo da pena criminal no momento de sua aplicação, pois não se pode negar que pena cominada não é igual a pena concretizada, e que esta última é realmente pena da culpabilidade e mais tudo isto: verdadeira expiação, meio de neutralização da atividade criminosa potencial ou, ainda, ensejo para recuperação, se possível, do delinquente, possibilitando o seu retorno à convivência pacífica na comunidade dos homens livres”. (2009, p. 28) “O Art. 59, do Código Penal, adota essa dupla ordem de finalidades. O art. 1º da Lei de Execução Penal tem maior zelo ao cuidar dessa prevenção especial, estabelecendo a ressocialização como meta a ser alcançada” (SILVA, 2009, p. 28). “As teorias que atribuem à pena a função de prevenção especial positiva e prevenção especial negativa, entendem que a pena é essencialmente voltada para quem está submetido a ela” (CANTERJI, 2008, p. 85). Assim, a prevenção especial positiva “[…] consiste na ideia de que a pena é um remédio utilizado pelo Estado em favor do doente (sujeito autor de um crime) objetivando sua melhora” (CANTERJI, 2008, p. 85). A seu turno, a prevenção especial negativa, visa “[…] proteger a sociedade de um dos seus membros, ou seja, faz um mal ao autor de uma infração penal para proporcionar um bem aos demais cidadãos”. (CANTERJI, 2008, p. 87) A liberdade é sem dúvida, um dos maiores bens do ser humano, discorrendo sobre sua importância leciona Augusto Cury: “Sem liberdade o ser humano se deprime, se asfixia, perde o sentido existencial. Sem liberdade, ou ele se destrói ou destrói outros. Por isso o sistema carcerário não funciona. A prisão exterior mutila o ser humano, não transforma a personalidade de um criminoso, não expande sua inteligência, não reedita as áreas do seu inconsciente que financiam o crime. Apenas imprime dor emocional. Eles precisam ser reeducados, conscientizados, tratados”. (2004, p. 33) Desse modo, sustentar a ideia de que a ressocialização, visando reeducar e reintegrar o indivíduo que cometeu fato definido como crime é, conforme leciona Karam, “[…] absolutamente incompatível com o fato da segregação” (2009, p.5). Maria Lúcia Karam, invocando apontamentos de Carlos Elbert sobre lapidar lição de Zaffaroni, discorre: “Pretender ensinar uma pessoa a viver em sociedade mediante seu enclausuramento é algo tão absurdo quanto pretender treinar alguém para jogar futebol dentro de um elevador, a execução penal não ressocializa, nem cumpre qualquer das funções “re” que lhe são atribuídas – ressocialização, reeducação, reinserção, reintegração – todas estas funções “re” não passando de uma deslavada mentira”. (2009, p. 5) Assim, poder-se-á perguntar qual seria a função da pena? Em resposta a essa pergunta, manifesta Karam: “Todas as teorias, fundadas nas irracionais e irrealizáveis idéias de retribuição e prevenção, servem para esconder o fato de que a pena, na realidade, só se explica – e só pode se explicar – em sua função simbólica de manifestação de poder e em sua finalidade não explicitada da manutenção e reprodução de estruturas de dominação”. (2009, p. 7). 3 DIREITOS DO PRESO NO REGIME FECHADO A construção de qualquer conhecimento exige uma base sólida. Aqui, não é diferente, por isso, nos capítulos antecedentes buscou-se levantar as vigas sobre as quais se erigiu o presente trabalho. A dualidade apresentada, dignidade da pessoa humana e ius puniendi, não pode ser contemplada de maneira dissociada. No presente capítulo adentrar-se-á no escopo pretendido, discorrendo sobre as mazelas que permeiam a execução da pena no Brasil, utilizando como parâmetro estrutural a Penitenciária Odenir Guimarães (POG), localizada no complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. Ressalte-se que, ter-se-á em mira objetivos bastante definidos, haja vista estar-se lidando com assunto dos mais empolgantes. Saliente-se que, abordar o assunto de maneira abrangente não encontra seara no presente estudo. Assim, buscar-se-á demonstrar que a Administração Pública brasileira descumpre flagrantemente a Constituição, lançando ao limbo o princípio da dignidade da pessoa humana inerente ao cidadão infligido a cumprir pena em regime fechado, ao não proporcionar o acesso deste ao trabalho, a escola, a saúde, a um ambiente salubre, e principalmente, preservação da sua honra. Reafirmando o que foi dito alhures, a punição não deve ser apenas uma reprimenda, mas precisa ir além, buscando ressocializar o cidadão infrator, tolhido de sua liberdade enquanto nesse estado, dando a ele condições de retornar ao convívio social, numa condição de igualdade com seus pares. Assim encetada as primeiras linhas, passemos adiante. 3.1 A privação da liberdade como pena A pena privativa de liberdade ocupa, hodiernamente, status de pena principal, ou seja, “[…] depois que a maioria dos países abandonou o sistema de penas corporais e de morte”. (GRECO, 2013, p. 215) No Brasil, segundo fonte histórica, foi com a aprovação do Código Criminal do Império, que a privação da liberdade “[…] tornou-se a punição por excelência entre as novas medidas penais”. (MAIA et al., 2009, p. 110) A privação da liberdade como pena foi um avanço, visto que, nos períodos anteriores considerava-se penas, exemplificativamente, a morte e os castigos corporais. “A origem da pena privativa de liberdade confunde-se com a origem do modo de produção capitalista” (KARAM, 2009, p. 8). Com a proficiência que lhe é costumeira, Maria Lucia Karam, sobre a origem da pena privativa de liberdade afirma: “Surgindo como pena nos primórdios do capitalismo, a privação da liberdade teve, nessa origem, a importante função real de contribuir para a transformação da massa indisciplinada de camponeses expulsos do campo e separados dos meios de produção em indivíduos adaptados à disciplina da fábrica moderna. Decerto, não obstante sua origem, a pena privativa de liberdade não é uma exclusividade do capitalismo”. (2009, p. 9) À pena privativa de liberdade tem-se buscado dedicar determinadas funções, visando justificar sua aplicação, nessa linha: A mais relevante função real desempenhada pela pena privativa de liberdade, a permear toda a sua história, vinculando-a a suas antecessoras, está e sempre esteve na exposição do condenado, na construção e propagação de sua imagem de “criminoso”, que o identifica como o “outro”, o “perigoso”, o “mau” e, especialmente nos tempos atuais, como o “inimigo”, a personalização e a visibilidade do “criminoso” contribuindo de maneira decisiva para a ocultação de desvios estruturais, encobertos através da crença em desvios pessoais, contribuindo para o reforço de estruturas de dominação, para o reforço do poder”. (KARAM, 2009, p. 9-10) Sobre a função da sanção penal Rafael Braude, afirma que: “Tentando encontrar alguma – porém não qualquer – função para a pena, investiga-se a relação existente entre as funções políticas e jurídicas… Deve ser investigada essa relação, já que a existência de uma pena possui origem em sua previsão legal e decorre de uma condenação criminal…pela total inexistência de finalidade da pena, tem-se que a função do Direito diante de tal quadro é de limitação, a qual se inicia pelo Poder Legislativo e é aplicada pelo Poder Judiciário… Desta maneira, a fixação de uma pena apresenta função protetora do condenado, tanto diante de uma sociedade sedenta por vingança quanto diante do Estado, já que vivenciamos um crescimento incontrolado do poder punitivo (2008, p. 89-91). Cuidando da função pena privativa de liberdade, após considerar sua evolução e, também, retrocesso, leciona Greco: “A pena de privação de liberdade, em muitos lugares e situações, virou, portanto, uma pena-castigo. Assim, quanto maior a dor, quanto maior o sofrimento, quanto mais distante o delinquente permanecesse do convívio social, melhor seria. Sua finalidade, portanto, era amedrontar, e não ressocializar; era inocuizar, e não reintegrar”. (2013, p. 216) Tratada a questão da finalidade da pena privativa de liberdade, passemos a analisar o local para cumprimento dessa pena. 3.2 Edificação para cumprimento da pena privativa de liberdade Não há dúvida de que um dos maiores problemas do Estado no momento de execução da pena privativa de liberdade está ligado ao lugar em que se dará sua execução. Para Bitencourt, “[…] a questão da privação da liberdade deve ser abordada em função da pena tal como hoje se cumpre e se executa, com os estabelecimentos penitenciários que temos”. (2012, p. 162) Segundo Greco, “[…] foram inúmeras as tentativas de encontrar um lugar adequado, principalmente que cumprisse com as funções utilitárias que são atribuídas às penas de privação de liberdade” (2013, p. 215). As edificações, conforme se depreende do estudo realizado por Greco, “[…] foram sendo construídas ora como intuito de fazer com que a pena cumprisse seu fim utilitário, ora como um lugar, pura e simplesmente, onde o infrator deveria pagar com a sua liberdade o mal que havia feito à sociedade” (2013, p. 216). Prevê a Constituição pátria, art. 5º, inc. XLVIII, da CFR/88, que “[…] a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”. Importa pontuar que mesmo antes da promulgação da Constituição Cidadã, o legislador aprovou a lei 7.210/84, denominada lei de execução penal, cuidando dos estabelecimentos penais, trazendo regras específicas, de observância obrigatória à administração penal no Brasil. Na mencionada lei encontram-se as regras que norteiam o administrador público na implantação das estruturas arquitetônicas destinadas ao cumprimento da pena, interessando o conjunto arquitetônico dos estabelecimentos para a execução da pena privativa de liberdade em regime fechado. Percebe-se que a Lei 7.210/84, visou assegurar condições mínimas para a manutenção do condenado a pena privativa liberdade no regime fechado, em consonância com os instrumentos jurídicos internacionais. Infere-se do exposto, que o conjunto arquitetônico destinado ao cumprimento da pena privativa de liberdade, recebe o nome de Penitenciária, podendo ser definido como estabelecimento oficial, destinado ao cumprimento da pena de reclusão ou detenção, tendo não só o fito de punir o condenado, mas proporcionar-lhe condições que lhe permita seu reingresso a sociedade livre. Sobre os a estrutura física dos estabelecimentos penais, Rogério Greco, em lapidar trabalho de investigação histórica, leciona: “Foram criadas regras mínimas para o Tratamento dos Reclusos, adotadas pelo Primeiro Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, realizado em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas através das suas Resoluções 663C (XXIV), de 31 de julho de 1957, e 2.076 (LXII), de 13 de maio de 1977. As regras 9, 10, 11, 12, 13 e 14 da Resolução 663C (XXIV) do Conselho Econômico e Social cuidam dos locais de reclusão, vale dizer, especificam as condições mínimas para que o preso possa estar acomodado  no sistema carcerário. A regra 9 diz que “as celas ou locais destinados ao descanso notório não devem ser ocupados por mais de um recluso. Se, por razões especiais, tais como excesso temporário de população prisional, for necessário que a administração penitenciária central adote exceções a esta regra, deve evitar-se que dois reclusos sejam alojados numa mesma cela ou local. Quando se recorra à utilização de dormitórios, estes devem ser ocupados por reclusos cuidadosamente escolhidos e reconhecidos como sendo capazes de ser alojados nestas condições. Durante a noite, deverão estar sujeitos a vigilância regular, adaptada ao tipo de estabelecimento prisional em causa”… As regras n. 10, 11, 12 e 13 determinam que “as acomodações destinadas aos reclusos, especialmente dormitórios, devem satisfazer todas as exigências de higiene e saúde, tomando-se devidamente em considerações as condições climatéricas e especialmente a cubicagem de ar disponível, o espaço mínimo, a iluminação, o aquecimento e a ventilação. Em todos os locais destinados aos reclusos, para viverem ou trabalharem: a) As janelas devem ser suficientemente amplas de modo a que os reclusos possam ler ou trabalhar com luz natural, e devem ser construídas de forma a permitir a entrada de ar fresco, haja ou não ventilação artificial; b) A luz artificial deve ser suficiente para permitir aos reclusos ler ou trabalhar sem prejudicar a vista. As instalações sanitárias devem ser adequadas, de mo a que os reclusos possam efetuar as suas necessidades quando precisarem, de modo limpo e decente. As instalações de banho e ducha devem ser suficientes para que todos os reclusos possam, quando desejem ou lhes seja exigido, tomar banho ou ducha a uma temperatura adequada ao clima, tão frequentemente quanto necessário à higiene geral, de acordo com a estação do ano e a região geográfica, mas pelo menos uma vez por semana num clima temperado” (2013, p. 218-219). Asseverando sobre a importância da arquitetura dos estabelecimentos penais, leciona Oswaldo Henrique: “Não se pode esquecer a importância da arquitetura dos estabelecimentos penais, que deve ser compatível com o processo de reintegração social. Uma vez garantida nas construções a segurança contra a fuga e contra a comunicação externa passível de desencadear a criminalidade, devem-se buscar projetos arquitetônicos que minimizem os efeitos nocivos do confinamento, para preservar a dignidade, a saúde e a personalidade do preso“.(2008, p 155) Infelizmente o que se vê nos noticiários, reportagens especiais, ou mesmo aqueles que se permitem a realizar uma visita num dos diversos estabelecimentos penais do Brasil, perceberá que a realidade é outra. Na Penitenciária Coronel Odenir Guimarães, localizada no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, a realidade é assustadora, pois ali se vê num espaço planejado para suportar no máximo 3 (três) pessoas, acomodar o décuplo. As instalações sanitárias são coletivas, não há chuveiros ou duchas destinados a assegurar condições de higiene mínimas. Por fim uma questão importante, muitas vezes desprezada, é a necessidade desses estabelecimentos oficiais terem um endereço certo, evitando, assim, que funcionários públicos cometam abusos, como os verificados em países autoritários, onde muitos cidadãos, afastados de suas famílias, advogados, eram torturados, e muitos perderam a vida (GRECO, 2013, p. 215-216). Insta salientar que o assunto não se esgota nesse ponto, devendo ser rememorado e aprofundado em linhas futuras, no momento em que se aprofundar na análise da realidade da estrutura penal escolhida como referência. 3.3 Direitos do Preso Conforme dito alhures a dignidade da pessoa humana irradia-se por todo ordenamento jurídico pátrio. “Da dignidade humana, princípio genérico e reitor do Direito Penal, partem outros princípios mais específicos, os quais são transportados dentro daquele princípio maior” (CAPEZ, 2005, p.12). A imposição da pena privativa da liberdade não é absoluta, encontra limites na Constituição, nas leis, tratados e princípios, assim pode se afirmar, que “[…] ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei, e que, não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política”[…], conforme art. 3.º Lei 7.210/84. O cidadão tolhido de sua liberdade, quando condenado, tem direito a não ser torturado. “A tortura é um ato de covardia praticado pelo mais forte contra o mais fraco, ou, pelo menos praticado por aquele que, mesmo momentaneamente, se encontre nessa situação de superioridade” (GRECO, 2013, p. 261). Nessa mesma linha, o princípio n.6 da Assembleia Geral das Nações Unidas: “[…] nenhuma pessoa sujeita a qualquer forma de detenção ou prisão será submetida a tortura ou a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Nenhuma circunstância, seja ela qual for, poderá ser invocada para justificar a tortura ou outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”. É, também, direito do cidadão que se encontra preso cumprir a pena com dignidade, assim, “[…] não se poderá impor um sacrifício maior do que o previsto na sentença penal condenatória, pois que seus demais direitos como ser humano deverão ser preservados”. (GRECO, 2013, p. 262). A realidade é cruel, visitar a penitenciária Coronel Odenir Guimarães, certamente, fará com que o leitor perceba o quanto o Estado descumpre o princípio da dignidade humana, em razão da realidade ali encontrada, podendo mencionar, exemplificativamente, celas imundas sem a devida higienização, banheiros apodrecidos, fiação elétrica exposta, entre outros desmandos.  O preso conserva os direitos a sua integridade física e moral, tanto é verdade, que a Constituição dispõe em seu art. 5.º, XLIX, “[…] é assegurado aos presos o respeito a integridade física e moral […]”. O preso só não poderá exercer durante o período em que cumpre a pena, os direitos atingidos pela sentença e previstos em lei como efeitos da condenação, cabendo ao Estado, na medida do possível, adotar medidas que contribuam ao retorno do cidadão condenado ao convívio social. Ao condenado a pena de prisão celular é assegurado o direito de cumpri-la em um ambiente que lhe permita exercer sempre que possível a individualidade, num ambiente salubre que assegure aeração, condicionamento térmico adequado a existência humana, conforme Lei 7.210/84. A realidade em Goiás está em simetria com a realidade pátria, celas lotadas, amontoando homens, celas com preparadas para 3 (três) pessoas sendo ocupada por 30 (trinta) ou mais indivíduos, em condições insalubres, com instalações sanitárias precária, areação insuficiente, e constantes riscos a integridade física, moral, sexual e psicológica dos presos. Em proficiente observação manifesta Rogerio Greco: “É justamente quando está cumprindo a sua pena que o preso é esquecido pelo Estado. Não são colocados em prática planos ressocializadores, suas condições carcerárias são indignas, seu afastamento do meio social é quase absoluto e as autoridades esquecem a sua existência”. (2013, p. 263). Se uma das finalidades da pena de prisão é a ressocialização, afastar o homem do convívio social parece ser um contrassenso, assim, deve se permitir que “[…] o preso continue a manter contato com o mundo exterior ao cárcere, principalmente com seus familiares e amigos, despertando nele a motivação necessária para querer sair daquele ambiente” (GREGO, 2013, p. 263). No Capítulo IV, seção II, arts. 40 a 43, da Lei 7.210/84, Lei de Execução Penal, encontra-se explicitados os direitos do preso. Repise-se que tais direitos não se exaurem ali, mas funcionam como patamar mínimo a ser observado pelo Estado, pois ao preso se conserva todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei. Na sociedade contemporânea o desenvolvimento intelectual, sem sombra de dúvidas, é um dos direitos inerentes a dignidade humana, assim, deve o Estado propiciar meios para que o condenado que não teve acesso a educação, quando em liberdade, possa desenvolver essa capacidade. Assim cabe a administração penitenciária aparelhar sua estrutura de meios que levem acesso a educação básica, profissional e cultural a comunidade carcerária, buscando parcerias ou levando a estrutura do Estado para dentro do muro do cárcere. O legislador pátrio adotou o sistema progressivo para a execução da pena privativa de liberdade, conforme art. 33, §2.º, CP e art. 112, LEP, contudo, esse regime em que o condenado como se programado para, naturalmente, se reeducar não atingirá sua finalidade, visto que: “O sistema progressivo tal como se apresenta, ignora a natureza humana do preso. Pretende o sistema que o preso seja algo como uma máquina programável, um computar, que gradativamente vai obtendo uma reeducação para, aos poucos, conquistar avanços na execução da pena”. Acontece que o indivíduo preso, já devidamente submetido ao inafastável processo de prisionização (capítulo V), assimila padrões vigorantes no cárcere e se adapta à prisão, de maneira a tornar descabida qualquer esperança de reforma advinda do encarceramento”. (SILVA, 2009, p. 60-61) Portanto, não há que se falar em ressocialização sem respeito aos direitos individuais e da coletividade carcerária, primados da dignidade humana. 3.4 Penitenciária Coronel Odenir Guimarães A formação do sistema penitenciário do Estado de Goiás não se deu ao acaso. O primeiro estabelecimento de prisão do Estado que se tem notícia foi construído em 1733, conhecida como Casa de Câmara e Cadeia de Pirenópolis, demolida em 1919, sendo substituída por outra construída noutro local. Inicialmente a estrutura prisional do Estado de Goiás funcionava de maneira descentralizada, existindo, portanto antes da criação da Agência Goiana do Sistema Prisional (AGESP). Certamente a referida estrutura não contribuía para a melhor execução das políticas penitenciárias, dessa forma o Governo Estadual promoveu algumas mudanças, visando efetivar políticas penitenciárias mais justas, isonômicas, e também, angariar recursos junto ao Governo Federal. A penitenciária Cel. Odenir Guimarães localiza-se no complexo prisional de Aparecida de Goiânia, custodiando presos do regime fechado do sexo masculino. Observa-se que o conjunto arquitetônico da penitenciária Odenir Guimarães (POG) não atende os requisitos mínimos determinados em Lei; sua estrutura é antiga, e não foi planejada para suportar a grande quantidade de presos atuais. Segundo dados apresentados pela Agência Goiana do Sistema Prisional, relativos ao primeiro semestre de 2012, o Estado de Goiás está operando acima de sua capacidade prisional, ou seja, população carcerária maior que o número de vagas existentes. No final do semestre de 2012, a quantidade de vagas disponível para o regime fechado era de 3592 (três mil quinhentos e noventa e duas vagas), no entanto, encontrava-se cumprindo pena, nesse regime, 4258 (quatro mil duzentos e cinquenta e oito) presos. Segundo Maria Karam “[…] a deterioração física do ambiente prisional é agravada pela superpopulação carcerária”. (2009, p. 17) Adentrar seus muros é conhecer uma realidade absurda. Não há local adequado para convívio social, inexiste espaço adequado para prática de esportes; fiação exposta, rede de esgoto a céu aberto, inexistência de chuveiros ou duchas para a adequada higiene pessoal; celas abarrotadas; serviço de saúde insuficiente. É uma triste realidade que só demonstra “[…] o mal contido na pena, cujo caráter estigmatiza em vez de propiciar sua recuperação. A prisão praticada dessa maneira ofende a dignidade da pessoa humana, torna-se tortura psicológica e moral, tendo efeitos negativos não ressocializadores, sendo, portando ilegal (MARQUES, 2008, p. 158). 3.5 A ofensa dos direitos: revolta Haroldo Caetano da Silva, chamando a uma reflexão sobre uma pena esvaziada da ressocialização, leciona: “Essa forma – senão nova, pelo menos renovada – de concepção da sanção penal esvaziada da ressocialização, por isso realista, traz reflexos de alta relevância. Seja no campo da dogmática penal, da elaboração da norma, da execução da pena, da maneira como a população em geral vê o funcionamento da justiça criminal, a percepção da pena em sua essência retributiva pode em muito contribuir para a construção de um sistema penal mais coerente, democrático, melhor legitimado, humanizado, eficaz e justo”. (2009, p. 77) Segundo a Lei 7.210/84, constitui direitos do preso o respeito a sua integridade física e moral, acesso a alimentação suficiente e vestuário, atribuição de trabalho e sua remuneração, proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação, o chamamento nominal, a igualdade no tratamento, e inúmeros outros direitos. Segundo Bitencourt as revoltas e protestos no ambiente carcerário tem sua “[…] origem nas deficiências efetivas do regime penitenciário. As deficiências são tão graves que qualquer pessoa que conheça certos detalhes da vida carcerária fica profundamente comovida”. (2012, p. 228) O autor identifica três deficiências costumeiramente vistas na maior parte dos sistemas penitenciários: falta de orçamento, pessoal técnico despreparado e a ociosidade em razão da falta de programas políticos (BITENCOURT, 2012, p. 230). “A maior parte das rebeliões que ocorrem nas prisões é causada pelas deploráveis condições materiais em que a vida carcerária se desenvolve”. (BITENCOURT, 2012, p. 230) Segundo Rogério Greco “[…] a crise carcerária é o resultado, principalmente, da inobservância, pelo Estado, de algumas exigências indispensáveis ao cumprimento de uma pena privativa de liberdade”. (2013, p. 301) Citando K.M. Espinoza Velázquez e M. Mengana Catañeda, leciona o iminente professor: “Em um Estado Democrático de Direito, no qual a liberdade ocupa um lugar de destaque, a par de outros direitos fundamentais a pratica intracarcerária deve encaminhar-se à proteção dos direitos do homem. Sem embargo, a atual realidade penitenciária de um número elevado de países encontra-se longe de alcançar esses propósitos, ocorrendo constantes vulnerações aos direitos fundamentais das pessoas que se encontram privadas da liberdade, tanto no que diz respeito à sua integridade física, alimentação, saúde, comunicação, acesso a um processo justo, entre outras”. (2013, p.301) Nessa tela, identifica-se como fatores causadores da crise penitenciária: “A ausência de compromisso por parte do Estado no que diz respeito ao problema carcerário, o controle ineficiente por parte daqueles que deveriam fiscalizar o sistema penitenciário, a superlotação carcerária, a ausência de programas destinados à ressocialização dos condenados, a ausência de recursos mínimos para manutenção da saúde e o despreparo dos funcionários que exercem suas funções no sistema prisional”. (2013, p.301-308) O homem é livre por natureza, segregado, vinculando-se a um grupo apenas para se proteger, exigindo, per si, respeito a seus direitos. CONCLUSÃO O Estado tem o direito de punir os cidadãos que se dispõem a afrontar as regras de condutas convencionadas em seu território. Assim, dependendo do bem jurídico protegido o Estado tem o dever-poder de aplicar a sanção correspondente ao caso, contudo, o exercício desse poder punitivo não é absoluto, devendo observância a certos princípios. Dentre esses princípios, ganha destaque o princípio da dignidade da pessoa humana. Tal princípio, no ordenamento jurídico pátrio, principalmente após a Constituição de 1988, passou a irradiar sobre todo o ordenamento jurídico pátrio, sendo considerado como um dos pilares, fundamento da República Federativa do Brasil. Como fundamento jurídico que é, a dignidade da pessoa humana impõe ao Estado determinados deveres ou, como querem alguns, prestações – positivas ou negativas, visando assegurar ao homem direitos mínimos, naturais a sua existência, sem os quais não poderá dizer que este vive dignamente. Os valores vigentes hodiernamente foram construídos desde a remota sociedade, num processo de lutas entre homens despidos de seus direitos naturais e os soberanos que suprimiam os direitos dos dominados, visando manter o poder e conservar privilégios. Assim, a revolução Inglesa de 1215, buscou retomar da mão do Rei João Sem Terra o direito a um tratamento justo por parte da Coroa, resultando na Magna Carta de 1215; o movimento iluminista, certamente, é outro dos grandes marcos histórico, influenciando na Revolução Francesa, que resultou na Declaração dos Direitos Humanos e dos Cidadãos, de 1789. Pois bem, ao Estado visando garantir a harmonia social, é dada o dever-poder de avançar sobre determinados direitos dos homens livres, aplicando-lhes sanções, destacando a pena privativa da liberdade, esta substituiu àquelas aplicadas sobre o corpo, tais como a morte, a tortura, podendo ser considerada uma evolução. Nesse contexto, modernamente, a execução desta espécie de pena tornou-se um dos grandes problemas, pois lançar no cárcere o cidadão não pode ser na mesmo forma de antes, suprimindo todos os direitos do cidadão preso, numa clara atitude despótica. Privar o cidadão de sua liberdade é retirar do homem um de seus maiores bens. Infelizmente, a realidade brasileira na execução dessa medida está aquém de suas pretensões, pois o que se vê são celas lotadas, abrigando num espaço ínfimo uma grande população carcerária. Além disso, as estruturas prediais são uma espécie sombria das construções que abrigavam os homens presos em tempos passados, não apresentado condições de salubridade simples, tais como, iluminação adequada, arejamento, instalações sanitárias condizentes. Falta ainda investimento do Estado na efetivação de políticas carcerárias adequadas, que assegurem uma vida digna aos presos, entre as quais, o acesso a educação, a profissionalização, o respeito à integridade física, moral, sexual e psicológica. Conclui-se que a pena de prisão privativa de liberdade no Brasil afronta flagrantemente a dignidade da pessoa humana, princípio irradiante da República Federativa do Brasil, que impõe ao Estado – Juiz, Legislador e Executor – respeitar os direitos do homem, propiciando uma vida digna.
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Evolução histórica do conceito de cidadania e a Declaração Universal dos Direitos do Homem
O presente trabalho visa demonstrar o conceito jurídico de cidadania e sua transformação histórica no decorrer dos tempos. Demonstrará, também, o link existente da cidadania dentro da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 1948. Como a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trata do assunto, ao impor destaque desde o início do texto constitucional, ou seja o artigo 1º.
Direitos Humanos
1 INTRODUÇÃO O conceito de cidadania, assim como o Direito, se renova constantemente diante das transformações sociais, do contexto histórico vivenciado e principalmente diante da mudança de paradigmas ideológicos. Por tal razão é possível afirmar que cidadania não é uma idéia estática, mas dinâmica. Neste sentido, destaca-se: “O conceito contemporâneo de cidadania se estendeu em direção a uma perspectiva na qual cidadão não é apenas aquele que vota, mas aquela pessoa que tem meios para exercer o voto de forma consciente e participativa. Portanto, cidadania é a condição de acesso aos direitos sociais (educação, saúde, segurança, previdência) e econômicos (salário justo, emprego) que permite que o cidadão possa desenvolver todas as suas potencialidades, incluindo a de participar de forma ativa, organizada e consciente, da construção da vida coletiva no Estado democrático[1]”. A cidadania conhecida na antiguidade clássica não é a mesma cidadania por que lutamos hodiernamente e a que almejamos concretizada nas gerações futuras. De há muito cidadania deixou de ser simplesmente o direito de votar e ser votado. Cidadania é muito mais que isto. É ter educação de qualidade, saúde, informação, poder de participação na condução das políticas públicas e igualdade de oportunidades. Neste sentido, ao longo dos tempos restou claro que a cidadania apresenta forte interligação com a conquista dos direitos humanos, sendo que o estudo de ambos deve ser feito de forma conjunta a possibilitar melhor compreensão do tema. Cabe, portanto, aos estudiosos do direito conhecer o passado para entender o presente e encontrar instrumentos para melhorar o futuro. É essa viagem que se pretende e a que se convida o leitor. 2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE CIDADANIA A palavra “cidadania” provém do latim civitatem que significa cidade. Isto nos remete a expressão grega polis, cidades-estados antigas; tipo de organização a que é atribuído, pela maioria dos historiadores, o conceito tradicional de cidadania. Nesta fase cidadania se restringia à participação política de determinadas classes sociais. Cidadão era o que morava na cidade e participava de seus negócios.[2] Não é incorreto afirmar que na Grécia antiga, cidadania era confundida com o próprio conceito de naturalidade, visto que cidadãos eram somente os nascidos em solo Grego e só esses podiam exercer e usufruir dos direitos políticos. E assim era devido ao regime aristocrático dominante. O mesmo ocorria em Roma, onde se via claramente a exclusão dos romanos não nobres e de estrangeiros, que não detinham nenhuma espécie de direitos. Nota-se, portanto, que tanto na Grécia quanto em Roma a cidadania mostrava-se como um direito de poucos, havendo uma discrepância entre o discurso teórico e a aplicação prática na sociedade. Na Idade Média, com o advento das mudanças trazidas pelo feudalismo logo no primeiro período, isto é, o que sucedeu à queda do Império Romano, a preocupação política cedeu espaço à questão religiosa e a idéia de cidadania foi relegada a segundo plano. A sociedade de estamentos apresentava uma organização que incluía a nobreza, o clero e os camponeses, tendo referidas classes direitos e privilégios distintos. Tal situação só se modificou com o surgimento dos estados nacionais. Neste período denominado historicamente como Baixa Idade Média, reaparece a noção de estado centralizado e com ele a clássica visão da cidadania, ligada aos direitos políticos. Contudo, as mudanças sociais advindas das novas necessidades materiais aliada ao fenômeno da cristianização passou a exigir uma reformulação do conceito de cidadania que já não atendida às demandas, surgindo daí a semente do ideal de igualdade. Com o iluminismo vivenciamos um período de transição e de transformações políticas, econômicas, artísticas, contribuindo também para o despertar do ideal de liberdade. Movidos por esta chama filósofos como Locke e Rousseau defenderam a democracia liberal, distante do direito divino e que tinha por base a razão. Merece destaque as idéias de Rousseau que preconizava ainda um caráter universal para os direitos. Muito influenciaram essas idéias nas lutas políticas da época, sendo alicerce para os movimentos de independência de colônias americanas e de revoluções tais como a Francesa e a Inglesa. Entretanto, neste período, diante do fato de que a sociedade ideal apontava desigualdades sociais, a cidadania também foi tolhida, de certa forma, de seu sentido mais amplo. Os séculos XIX e XX foram responsáveis por progressos significativos que repercutiram no conceito de cidadania. A Revolução Francesa e a Revolução Americana inseriram no contexto mundial um novo tipo de Estado, carregando consigo os ideais de liberdade e igualdade e embora tivessem uma origem burguesa auxiliaram na busca pela inclusão social. Aliado a tudo isto despontavam as lutas sociais. A cidadania passa, por fim, a manter íntima vinculação com o relacionamento entre a sociedade política e seus membros. As duas guerras mundiais foram decisivas para a mudança de ideologia sobre a cidadania e o medo advindo das atrocidades praticadas e alicerçadas pela legalidade fez com que órgãos internacionais e a própria sociedade civil passassem a entender cidadania como algo indissociável dos direitos humanos. O conceito de cidadania passou a ser vinculado não apenas à participação política, representando um direito do indivíduo, mas também o dever do Estado em ofertar condições mínimas para o exercício desse direito, incluindo, portanto, a proteção ao direito à vida, à educação, à informação, à participação nas decisões públicas. Mesmo diante de todos estes avanços ainda hoje se percebe as inúmeras violações aos direitos humanos e a ausência de cidadania plena a considerável parcela da população que se diz excluída, em especial, nos países subdesenvolvidos e emergentes. Podemos assim, abeberando-nos da lição de Norberto Bobbio[3], assegurar que a cidadania é uma luta diária, e que hoje não basta apenas elencar e fundamentar direitos é preciso efetivá-los. Este é o desafio de nosso tempo. Para tanto, a informação é instrumento indispensável nesta empreitada, porque somente conhecendo seus direitos é que o cidadão terá condições para reivindicá-los. Daí o papel fundamental da educação, a mais fecunda de todas as todas as medidas financeiras, nas palavras de Rui Barbosa[4]. Cidadania no conceito moderno deixa de ser apenas o direito destinado ao indivíduo de participar ativa e passivamente do processo político. É mais que isto, é também o dever do Estado para com cidadão, dever de ofertar o mínimo existencial para garantir-lhe a dignidade. 3-A Inter-relação entre Cidadania e Direitos Humanos Vimos ao longo da história que cidadania e direitos humanos se interligaram de tal maneira que hoje é incabível dissociá-los. A noção de cidadania sempre esteve voltada para um agir, para uma conduta positiva de participação. Já os direitos humanos, considerados como direitos básicos, direitos fundamentais internacionalizados, foram vistos em determinadas épocas apenas como direitos negativos (função de defesa), outras como direitos positivos (função de prestação) e atualmente como direitos que exigem do Estado condutas positivas e negativas (direito de participação). A partir do momento que a cidadania deixou de ser vista restritivamente passando a garantir ao cidadão o direito de exigir do Estado condutas negativas e positivas, isto é, a implementação dos direitos fundamentais individuais e sociais, tornou-se intimamente ligada aos direitos humanos. É cediço que ambos são direitos a serem conquistados, são frutos de um processo histórico, de conquistas, avanços e mudança de comportamento, não podendo ser entendidos como direitos subjetivos inerentes aos indivíduos. Os direitos humanos nada mais são que os direitos fundamentais da pessoa humana. São necessários como forma de garantir a participação plena na vida social. Aí se encontra o elo que liga os conceitos de cidadania aos direitos humanos. Se considerarmos que cidadania é o direito de participação na sociedade e que para seu efetivo exercício deve o cidadão ser resguardado de direitos básicos, tais como a vida, a moradia, a educação, a informação, dentre outros e considerando que estes direitos são direitos básicos de qualquer ser humano, logo podemos concluir que a violação de direitos humanos redunda em prejuízo ao pleno exercício da cidadania. Registra-se que, surgindo na Grécia antiga, a concepção do direito natural como aquele direito eterno, imutável, universal, anterior a qualquer outro, foi este o grande precursor dos direitos humanos. Assim como a cidadania, os direitos humanos também foram se consolidando no decorrer da história, envolto nas concepções ideológicas do Estado Liberal, do Estado Social ou da providência e mais recentemente no Estado Democrático de Direito. Após a 2ª Guerra Mundial, e diante dos horrores provocados pelo holocausto, grande marco de desrespeito ao valor dignidade da pessoa humana, os direitos humanos ganharam força. Isto culminou na criação da Organização das Nações Unidas e em seqüentes tratados de Direitos Humanos a destacar a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Referida declaração foi proclamada pela ONU em 10 de dezembro de 1948 e representa uma tentativa de convergência de todos os valores que já foram buscados pelas outras exposições de prerrogativas que a precederam.[5] Embora não seja um documento que apresente força obrigatória serviu de base a outros tratados que também foram responsáveis por avanços significativos: o Tratado Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Tratado Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Seu preâmbulo nos demonstra de forma clara o sentimento que predominava no contexto histórico da época, reconhecendo dignidade a todas as pessoas. Assim, verifica-se o resgate do valor dignidade humana, sendo este o sentido maior da referida Declaração. Ao mencionar no artigo 1º que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade, faz ressurgir os ideais presentes na Revolução Francesa: liberdade- igualdade- fraternidade. Nota-se que a Declaração dos Direitos do Homem de 1948 açambarcou os direitos das três dimensões- 1ª dimensão (direitos civis e políticos) 2ª dimensão( direitos sociais, econômicos e culturais) e 3ª dimensão ( direitos difusos). Menciona Flávia Piovesan[6] que ao conjugar o valor liberdade com o valor igualdade, a declaração demarca a concepção contemporânea de direitos humanos, pela qual esses direitos passam a ser concebidos como uma unidade interdependente e indivisível. Quanto à natureza jurídica desta declaração é possível afirmar que trata-se de mera recomendação, o que significa dizer não criar direitos subjetivos aos cidadãos ou obrigações internacionais aos Estados. Novamente nos valemos da lição de Flávia Piovesan[7] quando esclarece que: a Declaração Universal não é um tratado. Foi adotada pela assembléia geral das Nações Unidas, sob a forma de resolução, que por sua vez, não apresenta força de lei. Entretanto, seu valor é inegável, fato mencionado com maestria por Dalmo de Abreu Dallari[8]: “O exame dos artigos da declaração revela que ela consagrou três objetivos fundamentais: a certeza dos direitos, exigindo que haja uma fixação prévia e clara dos direitos e deveres, para que os indivíduos possam gozar dos direitos ou sofrer imposições; a segurança dos direitos, impondo uma série de normas tendentes a garantir que, em qualquer circunstância, os direitos fundamentais sejam respeitados; a possibilidade dos direitos, exigindo que se procure assegurar a todos os indivíduos os meios necessários à fruição dos direitos, não se permanecendo no formalismo cínico e mentiroso da afirmação de igualdade de direitos onde grande parte do povo vive em condições sub-humanas”. Portanto, não podemos ignorar que cidadania e direitos humanos caminham lado a lado, deixando-nos a certeza de que apesar das valiosas vitórias obtidas com o sacrifício e luta de muitos e com os Diplomas Legais internacionais a conquista e efetivação de direitos não é um processo findo. O progresso, o desenvolvimento científico e tecnológico, as novas demandas e aspirações do homem moderno vão sendo incrementadas exigindo constante renovação e luta destemida para que sejam garantidas de forma eficaz as prerrogativas para o exercício da cidadania plena. 4- A Cidadania no Direito Brasileiro Ao processo evolutivo pelo qual passou o conceito de cidadania não ficou indiferente o Brasil, sendo a cidadania plena um objetivo a ser alcançado. Entretanto, não se pode negar os avanços obtidos através dos movimentos sociais e das lutas de classe. Desde a abolição da escravatura, da conquista do voto feminino, passando pelo período de redemocratização do país, do movimento das “diretas já”, do impeachment do Collor até a efetivação paulatina de direitos sociais, temos conquistado espaços de maior presença dos cidadãos na condução do destino de nosso país. A Constituição da República de 1988 foi, sem dúvida, um dos marcos deste avanço. Apelidada de Constituição Cidadã, cuida do tema em vários de seus artigos. A expressão cidadania aparece logo no art. 1º da CR/88 que preconiza: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito federal, constituiu-se em estado democrático de Direito e tem como fundamentos: I- A soberania; II- A cidadania; III- A dignidade da pessoa humana; IV- Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V- O pluralismo político; Parágrafo único-Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Colocada ao patamar de fundamento da República Federativa do Brasil, a cidadania ganhou no ordenamento constitucional brasileiro uma conotação ampla, tendo por característica a universalidade e a indivisibilidade. Isto pode ser facilmente percebido quando nos referimos às crianças. Elas não são cidadãos no sentido restrito da palavra, isto é, não votam. No entanto, a elas são garantidos os direitos inerentes à cidadania. O direito a ter um registro de nascimento, o direito a ter saúde, educação, moradia. O direito de ser respeitada em sua individualidade. O art. 5º da CR/88, por seu turno, apresenta-se como um quadro de direitos básicos e fundamentais, uma gama de garantias ao pleno exercício da cidadania. Neste diapasão, o legislador constituinte não só manteve garantias já conquistadas como o habeas Corpus[9] e a ação popular, como acrescentou outras, podendo ser citado o  habeas Data[10]. Em seu sentido original e restrito a cidadania tem espaço no artigo 14 da Constituição, que aduz: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direito e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I- Plebiscito; II- Referendo; III- Iniciativa popular;” Ao consagrar a soberania popular conferiu-se o sufrágio universal exercido pelo voto direto e secreto. Não há que se confundir sufrágio com voto. Sufrágio é o direito, o voto é o exercício desse direito de participação política. Tem o voto por características ser secreto, direto, universal e com valor igual para todos. No Brasil diferente de épocas remotas, abolimos o sufrágio restrito (censitário ou capacitário). Ao consagrar a universalidade do sufrágio reconheceu-se a todos os nacionais, independente do grupo ou classe a que pertence ou da sua qualificação, ou do sexo, o direito de participar ativamente da vida política. Ao estipular que o voto é direto, consagra-se o princípio da imediaticidade do voto, o que impõe que o eleitor vote sem que haja mediação por terceiros, como colégios eleitorais. O voto direto também pressupõe ter caráter personalíssimo, isto implica na impossibilidade de ser exercido por procuração. Única exceção é a prevista no art. 81 § 1º da CR/88 que preconiza: “Vagando os cargos de Presidente da República e Vice- Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga. § 1º- ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da Lei. § 2º – Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período de seus antecessores;” O voto secreto, por seu turno, vincula-se à idéia do voto livre, impedindo que o eleitor sinta-se pressionado a votar em um ou outro candidato. Necessário se faz o respeito às escolhas do cidadão. A igualdade de voto não admite qualquer tratamento discriminatório, e abrange não só a igualdade de valor numérico (Zahlwertgleichheit), mas também a igualdade de valor quanto ao resultado (Erfolgswertgleichheit)[11]. Consagra-se a máxima one man, one vote. Inquestionável que a periodicidade do voto também é uma de suas características, diante da forma republicana e do regime democrático por nós adotados. Tanto é assim que o art. 60 § 4º da CR/88 consagrou esta característica como cláusula pétrea. Ademais, não há como admitir o direito de escolha ao cidadão, se este não possuir alternativas. Prevê ainda a Constituição de 1988 instrumentos da democracia participativa tais como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. Segundo dispõe o art. 49 da CR/88 a realização de plebiscito ou referendo dependerá de autorização do Congresso Nacional, à exceção de algumas hipóteses previstas também constitucionalmente como, por exemplo, a que se vislumbra no art. 18 § 3º e 4º. Distingue-se o plebiscito do referendo pelo momento da consulta realizada junto ao cidadão, sobre determinado ato ou decisão governamental. Se prévia temos o plebiscito, se posterior o referendo. Já a iniciativa popular vem regulamentada no art. 61 § 2º da CR/88 e pode ser exercida acaso se obtenha a subscrição de no mínimo 1% do eleitorado nacional, distribuído em pelo menos cinco Estados da federação e com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles. O projeto de iniciativa popular terá início na Câmara dos Deputados que, no caso, funcionará como casa iniciadora. No âmbito do município a matéria vem regulada no art. 29, XIII, exigindo-se 5% do eleitorado e no âmbito estadual, segundo se observa do art. 27 § 4º a imposição das exigências numéricas foi deixada a cargo do legislador infraconstitucional. Nota-se como é importante aliarmos a cidadania aos direitos fundamentais, posto que esses instrumentos exigem, para melhor resultado, certo grau de politização da população. A Constituição neste ponto foi tímida. O constituinte originário não outorgou ao cidadão brasileiro instrumentos importantes, como o Recall, o veto popular e ainda a possibilidade de ajuizamento de ADI pelo cidadão. Registre-se ainda no tocante aos direitos políticos que no Brasil o alistamento eleitoral e o voto são obrigatórios para os maiores de dezoito anos e facultativos para os analfabetos, os maiores de setenta e os maiores de dezesseis[12] e menores de dezoito anos, sendo elencadas como condições de elegibilidade a nacionalidade brasileira, o pleno exercício dos direitos políticos, o alistamento eleitoral, o domicílio eleitoral na circunscrição e a filiação partidária. Gilmar Ferreira Mendes[13] levanta a polêmica referente à obrigatoriedade do voto aos portadores de deficiência grave, que em virtude de suas limitações têm por demais oneroso o cumprimento deste dever. Para solucionar a questão traz à baila comentário sobre o Código Eleitoral, Diploma anterior à Constituição de 1988 e que desobrigava o alistamento do inválido (art. 6º, I.) Ainda segundo o Ministro Gilmar Ferreira Mendes: “(…) o TSE, respondendo a uma consulta formulada pelo TRE/ES observou a ausência de qualquer disciplina constitucional sobre a matéria tão relevante o que sugeria não um silêncio eloqüente, mas uma clara lacuna de regulação suscetível de ser colmatada mediante interpretação que reconhecesse também o caráter facultativo do alistamento e do voto no caso de portadores de deficiência grave. Assinalou-se que o legislador constitucional, ao facultar o voto aos maiores de 70 anos, atentou, certamente, para as prováveis limitações físicas decorrentes da sua idade, de modo a não transformar o exercício do voto em transtorno ao seu bem-estar. Diante de tais fundamentações expediu-se a resolução n 21.920 publicada no DJ de 1-10-2004 que eximiu de sanção a pessoa portadora de deficiência física que torne impossível ou demasiadamente oneroso o cumprimento das obrigações eleitorais, relativas ao alistamento e ao exercício do voto. Adotando assim o chamado “o pensamento do possível” (Peter Häberle) o TSE identificou uma incompletude constitucional, no caso em apreço e determinou que a superação se desse com a aplicação aos portadores de deficiência grave, da norma que reconhece a facultatividade do voto aos maiores de 70 anos.” No tocante à inelegibilidade ressalta-se que foram apontados pelo legislador constituinte originário como inelegíveis, isto é, aqueles que não podem ser votados, os inalistáveis (estrangeiros e os conscritos) e os analfabetos[14], não significando que tais limitações firam o princípio do sufrágio universal. Ademais, diplomas internacionais como o Pacto de San Jose da Costa Rica [15] (art. 23), admitem regulamentação do exercício do voto. Estas hipóteses configuram o que a doutrina pátria chama de inelegibilidade absoluta, que significa dizer a ausência de capacidade eleitoral passiva para todo e qualquer cargo. Contamos ainda no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro com hipóteses de inelegibilidade relativa. A relativa se destina apenas a determinados cargos eletivos com possibilidade de deixar de existir caso o cidadão cumpra o requisito legal imposto. Pode decorrer: de motivos funcionais (Por exemplo: vedação de terceiro mandato sucessivo aos chefes do Poder Executivo), de motivos de casamento ou parentesco, da condição de militar ou de previsões em lei complementar. Segundo o § 7º do art. 14 são também inelegíveis no território da jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro de seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição. Trata-se, aqui, da inelegibilidade reflexa cuja finalidade é impedir o monopólio do poder político por grupos hegemônicos ligados por laços familiares.[16] Merece lembrada a Súmula nº 6 do TSE que estendeu a hipótese também a do companheiro ou companheira, a do irmão e da concubina. No tocante aos militares a matéria é tratada no § 8º do art. 14 da CR/88 dispondo que se o militar contar com menos de dez anos de serviço deverá afastar-se da atividade e caso conte com mais de dez anos será agregado pela autoridade superior e, se eleito, passará automaticamente, no ato da diplomação para a inatividade. Outros casos de inelegibilidade relativa poderão estar presentes na LC 64/90, segundo menciona o § 9º do art. 14 da CR/88. Exemplo recente e que merece destaque foi a alteração trazida pela Lei Complementar nº 135 de 04 de junho de 2010 (Lei da Ficha Limpa), oriunda de projeto de iniciativa popular que acrescentou outras hipóteses de inelegibilidade. Por derradeiro, lembremos que o cidadão pode, em algumas situações peculiares, ser privado dos direitos políticos de forma definitiva ou provisória. À privação definitiva dá-se o nome de perda dos direitos políticos e à temporária de suspensão dos direitos políticos. Nota-se que a CR/88 não admite a cassação dos direitos políticos. Preconiza o art.15: “É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão  só se dará nos casos de: I- Cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado; II- Incapacidade civil absoluta; III- Condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; IV- Recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII; V- Improbidade administrativa, nos termos do art. 37 § 4º;” Na perspectiva dos direitos políticos não se pode olvidar do art. 16 da Carta Magna, com redação alterada pela Emenda Constitucional nº 4/1993 dispondo que: a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até 1 ( um ) ano da data de sua vigência. Consagra-se, portanto, o princípio da anterioridade eleitoral, tido como cláusula pétrea já que representa uma garantia individual do cidadão eleitor que necessita e tem direito à segurança jurídica. Após a análise desses direitos políticos é imprescindível que apontemos que a cidadania é tema recorrente em vários outros dispositivos constitucionais, haja vista que no capítulo que trata da Administração Pública, art. 37, I restou assegurado o acesso aos cargos, empregos e funções públicas. Tudo isto sem falar da obrigatoriedade de participação popular na composição dos conselhos municipais, estaduais e federais voltados à fiscalização da saúde, da educação, dos direitos da criança e do adolescente, da obrigatoriedade das audiências públicas, demonstrando a preocupação do legislador constituinte em oportunizar ao cidadão o direito de participar da condução das políticas públicas. Leciona Kildare Gonçalves Carvalho[17]: “A Constituição considera, desta forma, o estágio atual de evolução da vida dos povos, para admitir que a idéia de cidadania não se acha restrita ao cidadão eleitor, mas se projeta em vários instrumentos jurídico-político imprescindíveis para viabilizá-la. Cidadania significa, nessa perspectiva, participação no Estado Democrático de Direito.” Verifica-se, pois, que o voto é apenas uma etapa do processo de cidadania. Todas as vezes que um cidadão se posiciona frente à atuação estatal seja criticando, seja apoiando, seja sugerindo determinada medida está aprimorando a idéia de democracia e realizando um exercício de cidadania, já que com esta se vincula. A cidadania é, pois, um exercício que se conquista com pequenos gestos e se aprimora com a educação e o respeito ao próximo. Façamos valer a exortação do professor Paulo Freire: “De nada adianta colocar nos estacionamentos placas com vagas reservadas para idosos e deficientes, de nada adiantam placas para não pisar a grama, de nada adiantam cestos de lixos nas ruas,  escolas  etc.  É  hora  de  ensinarmos  aos  nossos  jovens  e crianças  noções  de  cidadania  que  não  se  aprendem  em  livros, mas  pelos exemplos,  e  isso  cabe  a  nós  professores,  pais  e  familiares.  É hora de mostrar-lhes que a  limpeza das ruas e das   escolas não é responsabilidade apenas  do  poder  público  ou  de  seus  diretores,    porém  de  todos  nós.  Exemplos ensinam muito mais que palavras e discursos. Ninguém caminha sem aprender a caminhar, sem  aprender  a  fazer  o  caminho  (PAULO FREIRE).” 5- Conclusão A cidadania é uma conquista diária. Não há como compreendermos o conceito de cidadania sem buscarmos uma hermenêutica zetética, isto é, considerando  seus vários aspectos e relacionando-a com os direitos humanos, com a democracia e coma a ética.  Cidadania implica em vivência na sociedade, na construção de relações, na mudança de mentalidade, na consciência e reivindicação dos direitos, mas também no cumprimento dos deveres. Isto não se aprende com teorias, mas na luta diária, nos exemplos e principalmente com a educação de qualidade, grande propulsora para que o indivíduo possa desenvolver suas potencialidades e conscientizar-se de seu papel social que pode e deve fazer a diferença na construção de uma sociedade mais justa, livre e solidária.
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A proteção do indivíduo frente ao poder estatal
O presente trabalho tem por objetivo apresentar um breve panorama sobre a evolução e a importância dos Direitos Humanos Fundamentais e dos princípios limitadores do poder punitivo estatal, não esgotando, desta forma, o tema. Será abordada também as gerações/dimensões desses direitos e uma análise quanto à finalidade dos princípios que regem o nosso atual Código Penal.[1]
Direitos Humanos
1. ABORDAGEM INICIAL: A evolução constante dos ordenamentos e dos direitos fundamentais que visam garantir uma harmoniosa e passiva convivência dos indivíduos defendendo uma base para que isso possa ser consolidado, seja por meio da proteção jurídica do Estado ou baseado em costumes e tradições adequados a época, é de inegável importância, não obstante, essa positivação não fora conquistada e reconhecida tão facilmente em uma só vez, mas sim, fruto de árduas revoluções e conquistas históricas, significando, desta maneira, uma maior proteção dos direitos inerentes à pessoa humana em concordância ao que se diz a finalidade do Estado, o bem comum. Para isso, já explicava Beccaria em seu livro “Dos delitos e das penas”,  “[…] cada indivíduo disporia ao depósito público a mínima porção possível de sua liberdade, suficiente apenas para induzir outros a defendê-lo. O agregado dessas mínimas porções possíveis forma o direito de punir. Tudo o que vai além disso é abuso, não justiça.” (BECCARIA, p. 14) O nosso país é considerado um Estado Democrático de Direito, pois todos, desde o mais simples indivíduo até a potência pública, estão submetidos ao respeito das legislações. Com isso, se aplica a garantir o respeito pelos direitos humanos e pelas garantias fundamentais através do estabelecimento de uma proteção jurídica que é a nossa Constituição Federal, a qual é reconhecida como estando no ápice da pirâmide servindo de legitimação para todo o ordenamento jurídico. O termo como é reconhecido hoje teve decorrência de um grande processo de evolução oriundo dos povos gregos e seus pensadores criando a ideia do “Estado ideal”, mas foi no final do século XIX que as suas bases foram consolidadas e que hoje, com os avanços através das análises em meio há esse tempo, garante não só a proteção aos direitos de propriedade, mas também várias garantias fundamentais baseadas no que chamamos de “Princípio da Dignidade Humana”.  Inicialmente, mostra-se necessário um conceito em consonância sobre direitos humanos. Estes são os direitos considerados básicos e essenciais para qualquer indivíduo, independentemente de condições pessoais específicas e sendo inerentes à pessoa humana. Analisando a nossa Constituição Federal, é verificável que, no seu art. 1°, inciso III, a dignidade da pessoa humana é considerada um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Esse princípio é considerado o núcleo exegético do ordenamento jurídico, pois é visto como base de orientação do mesmo, isto é, deve-se tê-lo sempre como fundamento e respeitá-lo para que as ações sejam feitas de forma efetiva. Podemos então considerar que a pessoa que tem garantia dos direitos sociais previstos no art. 6° da C.F/88, sendo estes “o direito à educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e a infância e a assistência aos desamparados”, está usufruindo de tal princípio. Portanto, os direitos fundamentais nascem da dignidade humana.    2. A ÁRDUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA 2.1. A MAGNA CARTA: Em referência a essa evolução baseada principalmente em árduas conquistas, não se pode deixar de relatar sobre a importante e tão citada “Magna Carta”. O Constitucionalismo foi um movimento jurídico, político, social e ideológico que procurou limitar o poder do Estado por meio de uma Constituição tentando garantir o bem público e os interesses da sociedade. Os seus antecedentes são bastante remotos, logo, os primeiros modos de proteção individual surgem no antigo Egito e Mesopotâmia, unido ao Código de Hamurabi, todavia, é  outorgada no século XIII a chamada “Magna Carta”, de 21 de junho de 1215, sendo peça básica de todo o Constitucionalismo, na qual o rei João sem Terra reconhece uma série de direitos do povo inglês. Apesar de tal conduta, o rei só assinou esse documento porque fora pressionado e obrigado pelos barões apoiados pelos burgueses, fazendo assim com que ela tivesse mais importância histórica do que prática, já que ele se recusava a aplicá-la de fato. Entretanto, a partir do século XVII, ela passou a ter mais concretização, quando alguns documentos e legislações reafirmaram valores já expostos. Na realidade, a consagração normativa dos direitos humanos fundamentais coube à França, sendo considerado o principal documento da evolução dos direitos fundamentais e consagração dos econômicos e sociais. 2.2. A REVOLUÇÃO FRANCESA: A Revolução Francesa foi sustentada pelo povo, este manipulado pela burguesia que defendia seus próprios valores, como por exemplo, a expansão da propriedade privada, a exoneração dos privilégios que tinham a nobreza e o clero, etc., logo, como o poder estava concentrado nas mãos dos chamados primeiro (nobreza) e segundo (clero) estados, aos demais estavam reservados apenas deveres. A base teórica dessa revolução foi cunhada pelo filósofo e pensador suíço Jean-Jacques Rousseau, falecido em 1778, ou seja, foi inspirada dos ideais iluministas. Para que pudessem reivindicar seus direitos de uma forma mais eficaz, criaram o chamado terceiro estado, composto pela grande maioria da população, e não usando apenas a força bruta, mas um discurso que a legitimou no poder. Assim, se contrapondo ao poder centralizado no monarca, é também na Revolução Francesa que são estabelecidas as bases de um Estado de Direito e caracterizando a ideia de separação dos poderes. Foi Montesquieu que sistematizou o princípio com profunda intuição e ganhou muita ênfase na Revolução, tendo assim tanta importância que fora declarado que a sociedade na qual a garantia dos direitos não está assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não têm Constituição. Desta forma, esse princípio foi à essência da doutrina exposta no Federalist, da contenção do poder pelo poder, o chamado sistema de freios e contrapesos. Tendo como inspiração as ideias iluministas e a Revolução Americana, serviu de modelo para outras no período. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão deve ser vista por a sua importância histórica tendo como elemento essencial à isonomia, marco importantíssimo para evolução das legislações dos Estados. Como se observa, “[…] olhando para trás, a Declaração ratifica a abolição dos privilégios, adotada em 4 de agosto, mas, encarando o futuro, estabelece a uniformidade do direito aplicável a todos os homens. Está nisto,sem dúvida, uma das principais revoluções da Revolução Francesa”(FERREIRA FILHO, p.27). Na época da Revolução Francesa, após longos anos de opressão pelo regime absolutista e com a tomada do poder pela burguesia, havia certo temor de retorno à situação anterior. Foi o começo da “era dos códigos”, marcada pelo Código de Napoleão, o qual acreditava possuir resposta pronta e acabada para a resolução de todos os conflitos jurídicos, e o Código Civil Francês de 1804. A não admissão de qualquer tipo de brechas que pudessem levar os magistrados a aplicar o direito em desconformidade à norma legal até então estabelecida, e a redução do direito à lei foi um forte fundamento da Escola Exegética que se firmou após a Revolução. “Nada é mais perigoso do que o popular provérbio de que é necessário consultar o espírito da lei. Adotá-lo é abrir-se a uma torrente de opiniões […]” (BECCARIA, p. 18). Segundo Perelman, nesse sistema, o papel dos juízes era insignificante, logo, percebe-se que o Direito era acentuadamente reduzido às leis escritas. Era a ideia que o código tinha solução para todos os problemas. Os Diegestos (Pandectas), que eram a compilação das decisões dos antigos jurisconsultos, e o Código foram às compilações feitas por ordem do Imperador Justiniano. Em contrapartida, a Escola Histórica Alemã do Direito rebelou-se contra e existência de um Direito Natural permanente e imutável. Para Savigny, ao invés de um direito geral e universal, cada povo, em cada época, deveria possuir o seu, expressão natural de sua evolução histórica, de seu uso, costumes e tradições de todas as épocas passadas. “A maior singularidade da Revolução Francesa foi seu avanço em termos de direitos humanos, e nisto a França se distingue claramente da Inglaterra, que havia progredido mais em termos de direitos políticos e sociais. No mesmo ano da eclosão da Revolução Francesa, foi divulgada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada pela Assembleia Nacional Francesa em 26 de agosto de 1789, definindo os direitos inerentes à pessoa humana hoje inscritos em todas as Constituições democráticas contemporâneas ocidentais”. (NOTICIASSTF, 2009). 3. AS GERAÇÕES/DIMENSÕES DOS DIREITOS HUMANOS: Em consonância com o tema, há de se relatar sobre as gerações de direitos humanos. Este já nos apresenta uma grande controvérsia em como é denominado, logo, alguns autores criticam essa expressão defendendo que, quando se fala em gerações, a posterior fará com que a anterior deixe de existir, o que de fato não acontece com os direitos humanos. Desta maneira, alguns acreditam que a melhor nomenclatura para tratar-se sobre o tema seja: dimensões dos direitos humanos, sobre estas, há de se relatar quatro. A primeira dimensão se refere às liberdades públicas, onde temos os direitos políticos básicos que surgiram com a Magna Carta. Ela se opõe a tamanha atuação estatal, defendendo um indivíduo independente do Estado e foi consumado, como já citado, na Declaração de 1789, nos 17 artigos que relatavam os princípios da liberdade, igualdade formal, propriedade e legalidade e as garantias individuais liberais em uma concepção individualista, ora, já se referia o lema da Revolução: “Liberdade, igualdade e fraternidade”. A segunda relata sobre os direitos sociais, culturais e econômicos, os quais alguns autores afirmam que eles nasceram no século XIX com a Revolução Industrial, mas a sua real positivação só foi surgir com a Constituição Mexicana 1917 e a Alemã de 1919, também chamada de Constituição de Weimar. Tal Constituição fora muito importante para a história, pois esse modelo prevendo direitos e deveres fundamentais dos alemães serviram de base para outras que se editaram, como a própria Carta de 1934 brasileira. Consistiu um grande marco, encontrando-se na importante Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 10 de dezembro de 1948. A terceira dimensão trata sobre os direitos de solidariedade ou fraternidade são aqueles difusos ou coletivos orientados para o progresso da humanidade, sendo considerados direitos indeterminados e indivisíveis, pois não pertencem a ninguém particularmente, isto é, é de todos e de ninguém, são vinculados, por exemplo, ao desenvolvimento, à paz internacional, ao meio ambiente saudável, a comunicação, etc., que surgiram pós Segunda Guerra Mundial. Vale relatar então sobre o Neoconstitucionalismo, o qual teve como marco filosófico o pós-positivismo, e foi marcado pela força normativa da constituição e tem objetivo assegurar uma maior eficácia da constituição e concretização dos principais direitos fundamentais, logo, a sua eficácia andava muito reduzida pelos regimes ditatoriais. Há várias consequências, como a Hermenêutica Constitucional, transformações no Estado de Direito, entre outros. Cumpre destacar que a teoria da norma pós-positivista teve como principal fundamento a normatividade dos princípios, eles seriam o “coração da constituição” tanto é que nossa Constituição no seu Título I já se refere aos princípios fundamentais, pois é considerado que toda regra quanto princípio proíbe, permite ou obriga algo. Não obstante, apesar de tais aspectos, alguns autores defendem que o mesmo não tem nada de novo, o que há de fato é novos “rótulos” acompanhados de prefixos que significam basicamente a mesma coisa que já havia sido exposta, devendo então ser usada à terminologia apenas no sentido de constitucionalismo contemporâneo. “É, portanto, o constitucionalismo contemporâneo com outro nome. E nada mais.” (BULOS, p. 80). Quando nos referimos à quarta dimensão, não citada por vários autores mas que vale ser ressaltada, estamos falando sobre os direitos dos povos, são aqueles que têm por objetivo a preservação do ser humano, estes são: biossegurança, biodireito, a inclusão digital, a proteção contra uma globalização desenfreada, acontecimentos ligados à engenharia genética, etc. os quais surgiram há aproximadamente 20 anos. Alguns autores ainda acrescentam outras dimensões, Bulos, por exemplo, cita ainda os de quinta geração, direito à paz, e os de sexta geração, o direito à democracia, à informação e ao pluralismo jurídico. “Todas as Constituições brasileiras, sem exceção, eunciaram Declarações de Direitos. As duas primeiras contentaram-se com as liberdades públicas, vistas claramente como limitações ao Poder. Todas, a partir de 1934, a estas acrescentaram, na Ordem Econômica, os direitos sociais. A atual já prevê pelo menos um dos direitos de solidariedade”. (FERREIRA FILHO, p. 99) 3.1.  O ÂMPARO DO BRASIL: No Brasil, houve a evolução dos chamados direitos fundamentais do homem, logo, o ordenamento jurídico brasileiro foi o primeiro a positivar os direitos do homem dando-lhes juridicidade efetiva na Carta Magna do Império do Brasil em 1824. Estes passaram de direitos individuais para direitos sociais e coletivos sendo consagrados na nossa atual Lei Maior.Com a Constituição de 1988, os direitos humanos foram plenamente positivados trazendo consigo diversos remédios constitucionais para garantia da eficácia desses direitos, a saber: “A constituição de 1988 prevê como remédios constitucionais: a) o “habeas corpus” (art. 5°, LXVIII); b) o mandado de segurança (art. 5°, LXIX); c) o mandado de segurança coletivo (art. 5°, LXX); d) o mandado de injunção (art. 5°, LXXI); e e) o “habeas data” (art. 5°, LXXII). A eles se podem acrescentar, embora tenha diferença de caráter em relação aos enumerados: f) a ação popular (art. 5°, LXXIII), ao menos enquanto tutela o meio ambiente; e g) a ação civil pública (art. 129, III), enquanto proteção do meio ambiente.” (FERREIRA FILHO, p. 147-148) Podem ser titulares de direitos fundamentais (pessoas físicas): brasileiros natos; brasileiros naturalizados; estrangeiros residentes no Brasil; estrangeiros em trânsito pelo território nacional; qualquer pessoa que seja alcançada pela lei brasileira (pelo ordenamento jurídico brasileiro), sendo que, vale ressaltar, nem todos terão o mesmo número de direitos, isto é, os brasileiros natos possuem mais direitos que os brasileiros naturalizados que possuem mais direitos que os estrangeiros residentes, etc. O art. 60, § 4°, da Constituição estabelece não poderem ser objeto de deliberação propostas de Emenda tendentes a abolir as chamadas cláusulas pétreas. Onde temos entre elas alguns direitos e garantias individuais (IV). Há algumas características básicas desses direitos, não se pode deixar de tratar então sobre a chamada “proteção contra o regresso ou vedação do retrocesso”, ou seja, uma vez concedida um direito fundamental pelo Estado, não poderá ele depois diminuir a sua proteção, por exemplo: no Brasil, a pena de morte é vedada pelo art. 5°, XLVII o qual reza: não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX. Então, poderia haver uma emenda constitucional válida que a tornasse possível? Não, pois estamos diante cláusula pétrea. Mas e uma nova constituição, isto é, por meio do poder constituinte originário? Também se pode afirmar que não, justamente pela violação a característica da vedação do retrocesso. Há várias outras características como: historicidade; relatividade; imprescritibilidade; inalienabilidade; indisponibilidade; indivisibilidade; eficácia vertical e horizontal; conflituosidade; aplicabilidade imediata; e a vinculação aos três poderes. Tem-se que relatar ainda sobre a proteção internacional, logo, este foi um importante passo para a proteção desses direitos, assim, observando o Pacto de São José da Costa Rica, de 1969, é notável que, respeitando os direitos humanos essenciais, independente de onde a pessoa tenha nascido ou reside, defendem um regime de liberdade e justiça para os indivíduos, além de consolidar um regime de liberdade pessoal e de justiça social entre os países americanos e permitir ao ser humano o gozo incondicional dos direitos econômicos, sociais e culturais. Com a criação do Tribunal Penal Internacional, formado por 18 magistrados, este passou a possuir competência para julgar os maiores crimes contra a humanidade, como genocídio, crimes de guerra, entre outros. O Brasil ratificou o tratado como está previsto no art. 5, § 4° da nossa Constituição.   4. DIREITO PENAL: Tratando sobre os direitos fundamentais que significam também limites ao arbítrio estatal, há de falar sobre os princípios que regem o nosso Direito Penal e limitam o poder punitivo do Estado. Tendo como uma das principais características ser a “ultima ratio”, o Direito Penal é constituído por normas jurídicas que define as infrações penais e suas sanções aplicáveis aos infratores, pertencendo ao direito público e visando somente a tutela dos bens jurídicos mais relevantes aos indivíduos. Analisando os direitos previstos atualmente nas legislações, como já mencionado, nem sempre fora assim. Desde os primórdios, quando o homem já vivia em pequenos agrupamentos, crimes e castigos já existiam, sendo que as penas eram baseadas em tradições e o ser humano vivia preso às crenças. Tratando-se de suas relações, precisavam de um ordenamento coercitivo que garantisse a convivência harmoniosa passando assim a criarem proibições que basicamente acarretavam punições com a finalidade, sobretudo, da vingança, a qual era geralmente desproporcional ao erro. Entretanto, os massacres passaram a ocorrer em grande escala e para por fim a estes, aceitaram o qual ficou conhecida como “lei de talião”, o famoso “olho por olho, dente por dente”. Com tais avanços, posteriormente consagram a ideia da composição, onde o ofensor poderia pagar pelo dano comprando, desta maneira, a sua liberdade, sendo considerada então a origem das indenizações do Direito Civil e da multa do Direito Penal. 4.1. ESCOLAS PENAIS: CLÁSSICA E POSITIVA: Sobre um panorama evolutivo, é importante citar que houve duas principais escolas penais, a clássica e a positiva. Na primeira, os dois maiores expoentes foram Beccaria e Carrara, sendo o último o responsável principal pelo simbolismo na expressão sendo assim chamada até de “Escola Clássica de Carrara”. Podemos citar como características da Escola Clássica o método dedutivo lógico abstrato e principalmente o livre-arbítrio absoluto, considerado um dogma, como fundamento da responsabilidade penal, destacando-se também a caracterização do delito como ente jurídico, pois consiste na violação de um direito, do crime como contrariedade à lei e da pena como forma de prevenção. Na segunda, o médico Cesare Lombroso, fundador da Escola Positiva, contestou o livre-arbítrio da Clássica e indicou o atavismo (caracteres hereditários) como causa criminógena, podendo assim o indivíduo geneticamente já estar destinado a ser o chamado “criminoso nato”. Tendo o método experimental ou indutivo que partia da observação de delitos, dos agentes para determinar as causas porque fora cometidos e os tipos de delinquentes, determinando o delito como fato natural e a pena como medida de defesa social, devendo se adequar ao criminoso para corrigi-lo. Enrico Ferri dividiu ainda os criminosos em dois grupos: habituais e ocasionais. O primeiro é o que já nasce com tendência para o crime, chamados então de natos. O segundo se diz respeito aos que agem sobre influências externas (sem alteração psicológica) ou motivadas por uma paixão (passionais). Desta maneira, determinado por fatores endógenos e exógenos (psicológicos e sociais) que influenciam, não há como, no momento do fato, o sujeito fazer uma opção livre, assim resultando a ação de vários fatores, sejam eles atávicos ou do meio em que vive. 4.2. PRINCÍPIOS LIMITADORES DO PODER PUNITIVO ESTATAL: São verificáveis hoje vários princípios com a finalidade de impor limites ao poder punitivo estatal, analisáramos então um panorama com os mesmos, a saber: Alguns autores declaram que o princípio da legalidade teve sua origem na Magna Carta, entretanto, fora com a Revolução Francesa que se houve uma maior tutela, pois precisavam efetivar a limitação do poder punitivo estatal, rompendo com sua arbitrariedade e excesso. De acordo com tal princípio, nenhuma ação pode ser considerada crime acarretando sanção, sem que antes não haja norma que declare a ilicitude do ato e a pena correspondente prevista para a conduta definindo-a assim como crime. Este princípio compreende ainda o princípio da reserva legal e o princípio da anterioridade. Então, tudo o que não é expressamente definido com precisão como ilícito, não é considerado crime no Direito Penal. O princípio sempre esteve presente nos Códigos brasileiros, hoje está previsto no art. 1° do Código Penal, bem como no inciso XXXIX do art. 5° da CF, determinando que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. De acordo com Rogério Greco, podemos determinar quatro funções fundamentais, a seguir: 1ª – proibir a retroatividade da lei penal; 2ª proibir a criação de crimes e penas pelos costumes; 3ª proibir o emprego de analogia para criar crimes, fundamentar ou agravar penas; 4ª proibir incriminações vagas e indeterminadas. Cumpre relatar ainda que, segundo o princípio da reserva legal, a lei deve ser taxativa (princípio da taxatividade), já explica Bitencourt que “O que deriva na correspondente exigência, dirigida ao legislador, de determinação das condutas puníveis, que também é conhecida como princípio da taxatividade ou mandato de determinação dos tipos penais” (BITENCOURT, 2013, p. 51) exigindo assim uma definição precisa do legislador da conduta criminosa bem como da sanção correspondente sendo vedados conceitos vagos equívocos ou imprecisos.  Com a constante evolução da sociedade, não há como o legislador prever todos os fatos que podem ser nocivos para os indivíduos. É explicada tal situação com a tese que Miguel Reale denominou Teoria Tridimensional do Direito, podendo-a resumir assim: ao fato social atribui-se um valor por meio dos princípios, ao qual se traduz em norma, cuja interpretação varia de acordo com o contexto social e histórico a época dos fatos. “(…) tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não existem separados um dos outros, mas coexistem numa unidade concreta” (REALE, 2002, p. 65). Desta forma, sabendo que não é aceito a analogia para suprir lacunas no Direito Penal e que a lei não pode retroagir, salvo para beneficiar o réu, na medida em que sociedade vai valorando os fatos, o legislador deve traduzi-las em norma para que, depois de expressas com clareza, os fatos que vierem a ocorrer possam sofrer as devidas sanções já previstas em norma, mas sempre, é claro, respeitando o princípio da fragmentariedade. Desta maneira, temos que citar ainda o chamado princípio da irretroatividade, pois é uma regra dominante para conflitos de leis penais no tempo. Segundo o mesmo, os fatos ocorridos antes ou depois da sua entrada em vigor e a cessação de sua vigência não retroage e nem tem ultra-atividade, não obstante, no Direito intertemporal, há de se relatar, a lei posterior que for mais favorável ao réu sempre retroagirá, já se a benéfica for a anterior, esta terá ultra-atividade. Já se, em contrapartida, a lei posterior for mais severa, esta é irretroativa, pois prejudicará o réu, em suma, a lei só retroage ou tem ultra-atividade se for a benefício do réu, nunca para prejudicá-lo, que está exposto no art. 5°, XL, da CF “A lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Vale lembrar que as leis temporárias ou excepcionais são exceções a tal princípio, sendo de fato ultra-ativas, punindo assim os fatos ocorridos durante a sua vigência mesmo depois de sua cessação. O princípio da intervenção mínima procura impedir ou limitar o arbítrio do legislador quanto ao conteúdo das normas penais incriminadoras, sendo chamada também como “ultima ratio”, logo, este só deve ser utilizado quando os outros ramos do Direito de controle social revelarem-se incapazes de prevenir ou tutelar os bens jurídicos mais relevantes. Há de se falar então sobre o princípio da fragmentariedade, pois como consequência do outro acima mencionado revela a necessidade do Direito Penal só proteger os bens e valores jurídicos mais imprescindíveis para a sociedade, limitando-se a tutelar as ações mais graves e mais perigosas praticadas contra os bens jurídicos mais relevantes. O princípio da adequação social se diz respeito a condutas que não podem ser consideradas criminosas no ramo do Direito Penal, pois há certos comportamentos que necessitam de relevância pelo fato de serem constantes no meio social e não significarem algo de teor significante para tipificação como crime, se adequando então a algo permitido ou tolerável. É notória que não se deve tipificar a conduta como criminosa no âmbito penal só pelo fato de não se enquadrar no padrão médio de comportamento dos indivíduos, pois é sabido que nem todas as condutas estarão previstas no Código justamente por reconhecimento de tais princípios e pelo fato de que com a constante evolução da sociedade, não há como o legislador prever todos os fatos que podem ser nocivos para os indivíduos para serem normatizados. Analisando o princípio da insignificância, chamado por Klaus Tiedemann de princípio de bagatela, concluiremos que se deve considerar a proporcionalidade da gravidade da conduta para ser realmente necessária a intervenção estatal, reconhecendo a atipicidade de fatos jurídicos considerados mais leves, como por exemplo: uma lesão insignificante não poderá ser enquadrada ao artigo 129 do C.P que trata das lesões corporais, pois é exigido pelo princípio da ofensividade ou lesividade que para que seja tipificado algum crime, deve-se ter perigo concreto de dano a um bem jurídico que já está protegido na esfera penal sendo desconsiderados, portanto, aqueles chamados de crimes de perigo abstratos, sendo rejeitados, desta forma, atos insignificantes. O princípio da culpabilidade defende que não há crime sem dolo ou culpa, desta maneira, o ato em si, mesmo não havendo culpabilidade penal no indivíduo pode ser visto pelos demais membros da sociedade como um ato ilícito, isto é, não há pena sem culpabilidade, logo, quando não se enquadra em algum artigo do Código Penal não é um fato típico mesmo sendo uma ação considerada antijurídica pelas pessoas. Analisando o princípio da proporcionalidade, podemos notar que A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, já exigia expondo no seu art. 15: “a lei só deve cominar penas estritamente necessárias e proporcionais ao delito”, ou seja, deve haver uma proporcionalidade entre a gravidade do crime praticado e a sanção a ser aplicada. Já defendia Cessare Beccaria no seu livro “Dos delitos e das penas” que “[…] os crimes só podem ser medidos pelo prejuízo que causam à sociedade […]” (BECCARIA, p. 26). Então, deve-se ter uma proporção entre a gravidade do perigo e a lesão que se pode produzir para salvar o bem jurídico pretendido. Temos também o princípio da presunção de inocência previsto no art. 5°, LVII da C.F./88 o qual reza: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Há ainda que se relatar sobre o princípio da humanidade, logo, é este é que é o maior obstáculo para a adoção da pena capital e da prisão perpétua, já que defende que o Estado não pode aplicar sanções que atinjam a dignidade da pessoa humana ou que lesionem a condição físico-psíquica dos condenados, desta maneira, recomenda a chamada reeducação e reinserção social e não é aceitável nenhuma pena privativa de liberdade que atente contra o bem-estar da pessoa e que viole o princípio da dignidade humana, o núcleo e postulado fundamental da nossa Constituição. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Em concordância com o que é citado por Bulos, os direitos fundamentais cumprem as finalidades de defesa e de instrumentalização. Como o primeiro, permitem o ingresso em juízo para proteger bens lesados, proibindo os Poderes Públicos de invadirem a esfera priva dos indivíduos. Como o segundo, consagram princípios informadores de toda ordem jurídica fornecendo-lhes os mecanismos de tutela permitindo ao particular reivindicar do Estado o cumprimento de prestações sociais; a proteção contra atos de terceiros; e a tutela contra discriminações. Em meio a tudo, vale lembrar ainda que, já que são inerentes à pessoa humana, os direitos humanos devem ser hierarquicamente superiores a outros direitos previstos no ordenamento jurídico brasileiro prevalecendo-se assim quando entrar em choque com outros, sendo que quando não houver hierarquia entre estes, ou seja, quando houver conflito entre os próprios direitos fundamentais, deve-se analisar casuisticamente qual direito se enquadra e mais favorável ao caso em questão. 5.1. CONCLUSÃO: Portanto, é inquestionável que a evolução dos direitos humanos e dos princípios limitadores do poder punitivo estatal é de suma importância para o que se diz ser sua finalidade, a busca pelo bem comum. Como todo o exposto, é notável que, para que os Direitos Humanos Fundamentais tenham mais eficácia e sejam mais respeitados, falta ainda um maior conhecimento dos cidadãos sobre seus direitos previstos nas legislações e a necessidade e possibilidade de defendê-los conforme o próprio ordenamento jurídico prevê.
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A dignidade da pessoa humana e sua definição
Os seres humanos optam voluntariamente por viver em grupos e constituem sobre si Estados cuja função é ordenar a convivência coletiva e pacificar os litígios. Conforme as coletividades evoluem, direitos são reconhecidos e criados, e a complexidade das relações cresce exponencialmente. Dentre os direitos essenciais está a dignidade da pessoa humana, um valor fundamental constitucional que norteia todas as atividades realizadas nos âmbitos nacional e internacional e sem o qual a convivência em coletividade se tornaria inviável. Até o presente momento inúmeros autores buscaram identificar o que seria a dignidade da pessoa humana, entretanto, todos se limitaram a uma identificação externa, baseada em exemplos – deveras insuficiente, razão pela qual muitos dizem que o referido do instituto não teria como possuir uma definição adequada. Deste modo, o presente estudo qualitativo foi realizado através do método dedutivo, tendo sido utilizada a revisão bibliográfica de normas vigentes, livros e ensaios correlatos, cujo objetivo é formar uma definição mais completa e adequada sobre o que seria o princípio da dignidade da pessoa humana.
Direitos Humanos
Introdução Os seres humanos optam voluntariamente por viverem em grupos e constituem sobre si Estados cuja função é ordenar a convivência coletiva e pacificar os litígios. Conforme as coletividades evoluem e a complexidade das relações cresce exponencialmente novos direitos são reconhecidos e criados. Dentre os direitos essenciais está a dignidade da pessoa humana, um valor fundamental constitucional que norteia todas as atividades realizadas nos âmbitos nacional e internacional. E para que este princípio esteja aliado à segurança jurídica e possa ser aplicado adequadamente torna-se de alta relevância sua identificação e definição. 1. Da formação do Estado Ao longo da história diversas foram as formas de manutenção da paz e prosperidade em meio aos grupamentos humanos. Muitos foram os sistemas de Governo e espécies de Estado. O homem, por questões de conveniência e oportunidade busca conviver em coletividade, mas para que esta convivência seja pacifica, benéfica e produtiva torna-se necessário o estabelecimento de regras e padrões de conduta. Desde os tempos mais remotos, mesmo antes do homem possuir plena consciência de seus atos, já existia primordialmente e de forma natural o Direito, uma vez que todas as criaturas quando tendo ameaçado, ofendido ou lesado um bem seu de relevância, instintivamente lançavam mão de algum recurso defensivo insurgindo-se contra seu o agressor.  Passados os tempos, o homem evoluiu superando a autotutela e o conceito de estado de natureza[1], no qual imperava a vontade do mais forte – a batalha de todos contra todos. Os indivíduos então passaram a viver em grupamentos ordenados, por perceberem que juntos teriam maior proteção contra predadores, inimigos, riscos e dificuldades oferecidas pela natureza, podendo somar esforços, dividir atribuições e multiplicar então os frutos de seu trabalho[2]. Estava estabelecido um contrato social[3], uma livre associação de seres humanos inteligentes que deliberadamente resolveram formar certo tipo de sociedade, na qual tacitamente abdicavam de parte de suas liberdades individuais em troca dos benefícios de uma convivência coletiva. E para que esta convivência fosse pacífica, ordenada e frutífera, desde logo, já se tornava necessário o estabelecimento de uma tábua de valores, de cláusulas naturais de respeitabilidade e conduta entre os indivíduos, assim como a organização do Estado através da firma de uma Carta Política. Deste modo surgiram as primeiras normas, as regras básicas de convivência que devem ser seguidas por todos, em respeito à vontade geral, competindo ao Estado a busca da paz, da ordem, do bem comum, da justiça e da felicidade coletiva, o que torna possível se construir uma civilização próspera e harmônica, dentre as quais consta o valor natural da dignidade da pessoa humana. 2. O Estado e a tutela dos direitos da personalidade No Brasil a coletividade evoluiu do mesmo modo referido até alcançar o estágio atual materializado por meio da Constituição Federal de 1988, no qual constam os valores essenciais, as garantias fundamentais e a estruturação do Estado objetivando a paz, a vida, a ordem, a liberdade, a justiça, a harmonia, a prosperidade, o progresso, a dignidade da pessoa humana, dentre outros pilares, muitos direitos foram reconhecidos e assegurados. Dentre as garantias fundamentais está o direito a indenização por dano material, moral ou à imagem, ou seja, a proteção constitucional aos direitos da personalidade patrimoniais e extrapatrimoniais, voltada a tutelar a incolumidade dos sujeitos de direito. Contemporaneamente esta cláusula geral de tutela da personalidade decorre diretamente do princípio de respeito à dignidade humana (art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988). Logo, conforme o sistema vigente, diante de uma ofensa, restam ao titular lesado duas alternativas: a autocomposição – forma amigável de solução do conflito; ou a heterocomposição – forma de pacificação de litígios imposta pelo Estado, através das decisões do Poder Judiciário. Ao Estado compete a heterocomposição[4], não cabendo mais aos indivíduos obter suas pretensões à força, fazendo “justiça” com as próprias mãos[5], sob pena de tornarem-se transgressores às normas, passíveis de responsabilização. Naturalmente, cada indivíduo busca atender a seus interesses e necessidades, mas também aos de seu grupo. Mas em certas ocasiões as pretensões dos grupos e dos indivíduos se contrapõem, nasce então um litígio. Na pacificação dos litígios valores, princípios e bens jurídicos são sopesados para que, reconhecendo conforme o caso qual dos elementos deve prevalecer, se possa alcançar a pacificação através solução menos gravosa aos litigantes. De fato, as vantagens de uma vida em coletividade devem ser distribuídas equitativamente entre todos os membros. Porém, em qualquer reunião de homens enquanto a competitividade imperar sobre a cooperação haverá sempre uma tendência continua e abusiva de concentração de privilégios a uma minoria, restando aos demais miséria e debilidade[6]. Assim sendo, somente boas e sábias Leis, fundadas livremente na real vontade coletiva, poderiam evitar tais desproporcionalidades, assim como o estado natural de guerra que é gerado entre os favorecidos e os desamparados, a partir do momento em que há um considerável desequilíbrio entre estes elementos humanos que compõe uma coletividade, trazendo de volta então a segurança, a paz e a estabilidade sociais. Para alcançar estes objetivos foram reconhecidos vários direitos humanos, direitos essenciais e inerentes à dignidade, positivados na ordem internacional. Por serem universalmente aceitos são positivados na ordem interna dos Estados sob o titulo direitos fundamentais. Os Direitos Humanos são importantes na medida em que viabilizam uma convivência harmônica, pacifica e produtiva entre os indivíduos de uma coletividade. Ou seja, são essenciais à formação de um Estado Democrático, isto, pois, o governo que nega tais direitos basilares dá causa a revoluções, guerras e revoltas. Sendo assim, o reconhecimento de tais direitos traz limites e obrigações à atuação estatal, sendo instrumentos indispensáveis à proteção da dignidade. Não é o indivíduo que existe para servir ao Estado (como ocorria ao tempo do absolutismo), mas sim o Estado é que foi criado para servir aos indivíduos. Logo, a coletividade se formou exatamente para reduzir e pacificar os conflitos de interesses. Mas conforme a coletividade se desenvolve novos conflitos vão surgindo. E neste sentido o reconhecimento dos direitos humanos vem de um processo histórico no qual, em cada época, foram sendo declarados e acrescentados novos direitos, na medida da evolução das coletividades. 3. Das gerações de direitos humanos Conforme vários autores, em 1979 o jurista tcheco Karel Vasak utilizou pela primeira vez a expressão "gerações de direitos do homem", buscando se valer de um recurso didático para metaforicamente demonstrar a evolução dos direitos humanos com base no lema da revolução francesa (liberdade, igualdade e fraternidade). Assim foi criada a classificação tradicional acerca das “gerações de direitos humanos”. A primeira geração de direitos humanos trata das liberdades individuais civis clássicas, do direito à vida e dos direitos políticos de participação, embasando a “igualdade formal”. Esta primeira geração foi o resultado das revoluções liberais, fundadas em ideais iluministas com inspiração jusnaturalista, como reação dos indivíduos contra a opressão do estado governamental, forçando a transição do Estado absolutista para o Estado liberal, cujos pensadores de maior evidência foram Jonh Locke e Rousseau discorrendo acerca dos direitos naturais do homem. A causa desta reação dos indivíduos se encontrava nos privilégios injustificados concedidos dentro do sistema monárquico, à nobreza e ao clero, em detrimento dos demais cidadãos. Havia um direito próprio e privilegiado, protetivo à nobreza e ao clero, inclusive com penas diferenciadas e mais brandas. Por esta razão foi estabelecido que “todos os homens nascem livres e são iguais perante a lei”, firmando-se o marco do Estado liberal clássico. Deste modo, foram reconhecidas as liberdades civis, os impedimentos e limitações à ingerência arbitrária estatal na vida dos indivíduos particulares, impondo ao Estado obrigações de não fazer, assegurando–se, por exemplo, liberdade de crença, de reunião, de profissão, de expressão, propriedade privada, segurança, igualdade de todos perante a Lei, de forma que todos os homens nascem livres e iguais, sendo tais direitos exercidos independente de anuência do Estado, este ao mesmo tempo impedido de obstá–los. Concomitantemente foram reconhecidas os direitos políticos que asseguram possibilidade de participação dos indivíduos na toma de decisões e na condução da vida política dos Estados, na formação da vontade do Estado. Este período foi marcado por eventos históricos como a Revolução Gloriosa de 1688 (incluídos o Habeas Corpus Act de 1679 e a Bill of Rights de 1688), a Declarações Americana de Direitos em 1776, a independência dos EUA em 1777 (e sua Constituição de 1787) e a Revolução Francesa de 1789 (e a Declaração de Direitos do Homem de 1789), havendo referência por parte da doutrina também à Magna Carta de 1215 de João Sem Terra. A segunda geração de direitos humanos trata da igualdade, aborda os direitos sociais (proteção contra desemprego, condições mínimas de trabalho, assistência em caso de invalidez, aposentadoria e de assistência social, saúde), culturais (direito à educação básica) e econômicos. A liberdade irrestrita de contratar e a propriedade como direito sagrado e absoluto, geravam graves discrepâncias, enriquecendo alguns em detrimento da pobreza de muitos. A igualdade formal perante a lei se apresentava insuficiente para uma convivência justa, tornando-se necessária uma maior igualdade material. Por esta razão os vitimizados se agruparam politicamente para criar força e exigir melhores condições, fazendo surgir os movimentos “classistas” de corpos intermediários (instituições) buscando reduzir os desníveis sociais decorrentes da Revolução industrial européia e da péssima qualidade de vida e de condições de trabalho. Assim, a segunda geração foi resultado da pressão popular exercida pela classe dos explorados, pretendendo melhores condições de vida e de trabalho, forçando a transição do Estado liberal ao Estado prestacional (Estado do bem estar social), fundada em ideais comunistas de Marx e Engels, que exigiam do Estado uma atuação positiva intervindo no domínio econômico para reequilibrar a distribuição de riquezas e propiciar ao indivíduos condições minimamente dignas de trabalho e sobrevivência, como, por exemplo, direitos trabalhistas, direito à saúde e à educação acessíveis a todos indistintamente. Este período for marcado pela Revolução mexicana de 1910 (e Constituição de 1917), Revolução russa de 1917 instituindo o estado social–comunista, a Constituição Weimar alemã de 1919, o Tratado de Versailles em 1919 (OIT) e a Constituição brasileira de 1934 que recebeu influências destas outras constituições internacionais anteriores. A terceira geração de direitos humanos trata da fraternidade (solidariedade), dos direitos dos povos e dos direitos difusos, direitos de interesse das coletividades situados entre o interesse público e o interesse privado. Refere-se à coletivização de direitos, incluído o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado. Depois de duas guerras mundiais a paz se tornou uma questão internacional essencial. Os indivíduos agora eram membros de uma comunidade internacional globalizada, caracterizada pela massificação das relações decorrente do desenvolvimento tecnológico e cientifico. Porém, diante da grande disparidade econômica entre países desenvolvidos e sub–desenvolvidos, tornava-se necessário defender direitos de toda a humanidade, não mais só de categorias ou nacionalidades. Logo, esta terceira geração foi o resultado da visão pós segunda guerra mundial decorrente das atrocidades nazistas e das práticas de reificação (coisificação) das pessoas, forçando a uma rediscussão sobre o tratamento jurídico mínimo assegurado ao homem. No nazismo o governo atuava licitamente, nos moldes de seu ordenamento jurídico interno, porém, com violação drástica a valores humanos internacionais essenciais. Logo, passou–se a ter uma nova visão fraternal mundial, com proteção especial a minorias e preocupação com o meio ambiente afetado em razão da guerra e crescimento industrial. Neste período pós guerra ocorreu a criação da ONU em 1945 e elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela ONU em 1948. A quarta geração de direitos humanos trata do biodireito e do direito à informação. O biodireito se refere à tutela quanto aos riscos à existência humana natural decorrentes dos avanços na engenharia genética, trata-se dos direitos ao patrimônio genético e à ética nas pesquisas biológicas. Por sua vez, o direito de acesso à informação e a conquistas tecnológicas são um desdobramento decorrente da solidariedade propiciando a todas as pessoas uma possibilidade de inclusão digital e acesso aos meios informáticos[7]. Há referência também por parte da doutrina ao direito à Democracia planetária, considerando os direitos dos indivíduos como um todo na coletividade global[8]. A quinta geração de direitos humanos trata do direito à paz em razão dos crescentes conflitos armados ao redor do mundo, da insegurança entre nações e constantes atentados terroristas. A doutrina vem cogitando acerca desta nova geração fazendo referência ao “direito a uma convivência pacífica e harmoniosa entre os sujeitos e entre nações a fim de evitar a terceira guerra mundial”[9]. Os direitos humanos são direitos naturais, inerentes a qualquer ser humano, reconhecidos por meio de instrumentos de direito internacional, como os Tratados da ONU (Organização das Nações Unidas) e da OEA (Organização dos Estados Americanos). Tais direitos essenciais, lastreados na dignidade, a partir de quando são positivados internamente nos ordenamentos jurídicos das nações, por meio de suas cartas magnas, passam a receber a denominação de direitos fundamentais. Por sua vez, direitos do homem é expressão que se refere a direitos naturais ainda não positivados no âmbito internacional e nem no nacional dos Estados. 4. Da constitucionalização da dignidade da pessoa humana Os Direitos Humanos são importantes na medida em que viabilizam uma convivência harmônica, pacífica e produtiva entre os indivíduos de uma coletividade. Tais direitos são essenciais à formação de um Estado Democrático, isto, pois, o governo que nega tais direitos basilares dá causa a revoluções, guerras e revoltas, sendo o reconhecimento de tais direitos instrumentos indispensáveis à proteção da dignidade. Na Constituição Federal brasileira de 1988 foi criado um Título específico reunindo as três primeiras gerações direitos humanos, cada uma em capítulo próprio (Título II – Capítulos I a III, art. 5º e seguintes), topograficamente já logo no inicio do texto constitucional. Nas Constituições anteriores tais direitos inerentes às pessoas constavam topograficamente ao final das disposições. O objetivo deste deslocamento feito na Constituição de 1988 foi o de transmitir uma mensagem, o ideal de que os direitos das pessoas precedem aos do Estado, prestigiando o jusnaturalismo e a referida premissa de “contrato social”. Porém, um destes direitos humanos, foi constitucionalizado com maior destaque objetivando exatamente fomentar sua incidência sobre todos os demais direitos, inclusive os fundamentais. No art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 consta como um postulado central do ordenamento pátrio, um fundamento axiológico sobre o qual está construído o Estado Democrático de Direito: dignidade da pessoa humana, um dos princípios fundamentais da República. Este é parâmetro orientador de aplicação e interpretação (exegese). É um valor constitucional que irradia luzes sobre todo o ordenamento, em todos os âmbitos (civil, penal, administrativo, eleitoral, trabalhista e etc), orientando todas as atividades estatais, inclusive dos três poderes, executivo, legislativo e judiciário (eficácia vertical dos direitos fundamentais), bem como de todas as atividades privadas (eficácia horizontal dos direitos fundamentais), atuando como piso protetivo mínimo. Tanto é que alguns exemplos podem ser citados. O art. 6º da própria Constituição Federal traz um rol de direitos sociais que formam um parâmetro de aplicação do princípio da dignidade, de forma se cumpridos, presente se encontra a dignidade. O art. 170 da Constituição, inserido no Título que trata sobre a Ordem Econômica e Financeira, dispõe dentre os princípios gerais da atividade econômica cabe à República Federativa do Brasil “assegurar a todos uma existência digna”. Ou seja, até mesmo a realização das atividades econômicas e financeiras, públicas e privadas, devem observar o princípio da dignidade, corroborando o fundamento fixado no art. 1º, inciso III. No âmbito internacional dentre os instrumentos incorporados ao ordenamento brasileiro, com base no art. 5º, §2º da Constituição Federal de 1988, dois merecem destaque. A Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 da OEA, que traz previsões sobre a dignidade em três dispositivos (arts. 5º, 6º e 11) e a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 da ONU. Uma vez abordado o desenvolvimento histórico e a localização jurídica do instituto nos âmbitos nacional e internacional, há de se passar ao ponto mais delicado de analise sobre o tema. Qual a definição de “dignidade da pessoa humana”? A definição até então utilizado pela doutrina brasileira está baseado nas idéias de Immanuel Kant[10], apontando-se situações nas quais o referido princípio não é observado. Entretanto, a análise casuística não forma uma definição científica adequada. Diariamente a dignidade norteia e orienta todas as atividades realizadas no âmbito nacional e por esta razão torna-se essencial elaborar-se uma definição mais acertada a fim de possibilitar que referido princípio possa ser aplicado adequadamente. 5. A dignidade da pessoa humana e sua definição Dignidade é uma palavra que possui diversos significados, mas normalmente correlata a “merecimento ético”, em razão de um status social ou de condutas baseadas na honestidade e honradez. É uma atribuição outrogada a quem seja “merecedor”. Pessoa humana é uma identificação jurídica baseada em critérios biológicos e filosóficos, diferenciando os Homens dos demais seres vivos, de máquinas e objetos inanimados. Taxonomicamente “humano” é o homo sapiens ("homem sábio"). A dignidade é essencialmente um atributo da pessoa humana pelo simples fato de alguém "ser humano”, se tornando automaticamente merecedor de respeito e proteção, não importando sua origem, raça, sexo, idade, estado civil ou condição sócio-econômica. É um princípio fundamental incidente a todos os humanos desde a concepção no útero materno, não se vinculando e não dependendo da atribuição de personalidade jurídica ao titular, a qual normalmente ocorre em razão do nascimento com vida. É um critério unificador de todos os direitos fundamentais ao qual todos os direitos humanos e do homem se reportam, em maior ou menor grau, apesar de poder ser relativizado, na medida em que nenhum direito ou princípio se apresenta de forma absoluta. Existe divergência quanto à aplicação do princípio da dignidade às pessoas jurídicas. Entretanto, conforme a posição majoritária apontada por vários doutrinadores, apesar de as pessoas jurídicas serem dotadas de direitos fundamentais, a elas não poderia ser aplicado o princípio da dignidade, por ser um atributo humano, não destinado a criações jurídicas fictícias. Contudo, esta posição é uma incoerência, na medida em que todos os direitos humanos e fundamentais são decorrências lastreadas no valor dignidade, no piso protetivo mínimo contra situações consideradas intoleráveis pela coletividade. Deste modo, se analisados os ordenamentos jurídicos no mundo e os instrumentos de direito internacional percebe-se que a dignidade da pessoa humana tem seu conceito formado por duas identificações: uma externa e outra interna. Até o momento todos os autores se limitaram a uma identificação externa – deveras insuficiente, razão pela qual muitos dizem que o princípio da dignidade da pessoa humana não possui uma definição. Na verdade referido princípio trata-se de uma cláusula aberta, uma fórmula lógica abstrata cujo conteúdo será preenchido concretamente a partir de certas circunstâncias de tempo, lugar e desenvolvimento histórico-cultural em cada coletividade.   A dignidade da pessoa humana possui uma identificação externa, como um direito natural, um direito humano, um direito fundamental e um princípio de hermenêutica. É um valor que orienta todos os demais princípios, direitos, deveres e atos, tornando-se assim a pedra angular de todos os direitos naturais, do Homem, humanos, fundamentais. Por outro lado, em sua identificação interna, a dignidade da pessoa humana é um eixo de tolerabilidade, uma barra de proteção, uma linha divisória que delimita até que ponto algo, qualquer fato ou situação, é considerado tolerável por determinada coletividade, conforme suas referidas circunstâncias de tempo, lugar e desenvolvimento histórico-cultural. Ou seja, analisa-se o que o indivíduo deve ser obrigado a suportar ou tolerar por se tratar de um mero dissabor da vida em coletividade ou algum infortúnio proveniente de fato da natureza. Nem tudo agrada a todos. Porém, ainda que algo seja desagradável existem meros desprazeres decorrentes da vida em coletividade ou do mundo natural dos fatos que são considerados “toleráveis”, ou seja, é exigível dos indivíduos em geral que suportem aquele fato ou situação. A tolerabilidade em geral é um parâmetro para a edição de normas e atos jurídicos. Entretanto, a tolerabilidade em concreto deve ser analisada caso a caso, tendo em vista que ao legislador não é fisicamente possível prever juridicamente todas as hipóteses que poderão ocorrer no mundo real dos fatos. Por sua vez, os fatos e situações considerados intoleráveis, violadores da dignidade humana, são aqueles que o Estado e a coletividade não poderiam exigir que algum indivíduo os tolerasse. O individuo, por si só, pode optar por suportar certas situações intoleráveis, desde que se trate de direito ou bem jurídico disponíveis, mas em razão da intolerabilidade geral o Estado não pode lhe obrigar a realizar tal escolha, sob pena de violar-lhe a dignidade como pessoa humana. A dignidade da pessoa humana se correlaciona diretamente ao conceito de mínimo existencial abordado por diversos autores, ou seja, a certos bens, oportunidades ou direitos cuja privação é considerada intolerável na medida em que se aviltaria a existência do ser. Cite-se, por exemplo, o mais básico direito de acesso a água potável, a alimento ou a higiene básica. A tolerabilidade não se refere ao que cada indivíduo por si só consegue suportar. Não é este um critério subjetivo e variável conforme as circunstâncias individuais de cada membro da coletividade. Trata-se em realidade de um juízo objetivo, uma fórmula que deve ser aplicada com base nos parâmetros gerais da coletividade na qual o individuo se insere em razão da necessária segurança jurídica, esta que é um dos elementos basilares necessários a justificar a existência e constituição dos Estados sobre os indivíduos. É notório que as coletividades humanas modificando-se ao constantemente longo do tempo. Assim, um fato antes tolerável, futuramente pode tornar-se intolerável por uma coletividade e vice versa. Vamos a alguns exemplos. A escravidão era um instrumento necessário e tolerável para as coletividades mais antigas. Porém, em tempos atuais torna-se uma patente violação à dignidade da pessoa humana tendo em vista ser uma situação absolutamente intolerável. A poluição ambiental em épocas anteriores era amplamente tolerada. Mas nos tempos atuais torna-se uma questão de violação à dignidade da pessoa humana na medida em que o ambiente ecologicamente equilibrado fixa um parâmetro geral de tolerabilidade aos impactos ambientais. A homossexualidade era um tipo de opção considerada intolerável nas coletividades em geral. Entretanto, atualmente vários povos passaram a rediscutir o repúdio a esta prática e chegaram até a legalizar casamentos gays embasados no princípio da dignidade da pessoa humana, no discurso de tolerância às diferenças. Com relação às penas aplicadas em razão de ilícitos criminais, em épocas anteriores era tolerável a aplicação de açoites, tortura, mutilações, ordálias em geral. Porém, atualmente tais castigos passaram a ser considerados intoleráveis já que violam a dignidade da pessoa humana. Ou seja, caso fossem aplicados ultrapassariam a linha mestre de tolerabilidade, maculando assim a dignidade do individuo como pessoa humana. Considerações finais Portanto, para que seja observada a segurança jurídica e se torne possível uma aplicação jurídica adequada, percebe-se que a dignidade da pessoa humana externamente é um direito natural, um direito humano, um princípio de hermenêutica e um direito fundamental constitucional. Mas internamente consiste em uma cláusula aberta cujo conteúdo traz em si um “eixo de tolerabilidade” norteando as condutas do Estado e dos indivíduos; é uma barra de proteção, uma linha divisória que delimita até que ponto certo fato ou situação pode ser considerado tolerável, suportável por determinada coletividade, conforme suas referidas circunstâncias de tempo, lugar e desenvolvimento histórico-cultural.
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Estudo da correlação existente entre os direitos humanos e o direito ambiental: uma abordagem em âmbito nacional e internacional do direito
O presente trabalho tem por objetivo apresentar um estudo da correlação existente entre os direitos humanos e o Direito Ambiental em âmbito nacional e internacional. Na esfera nacional, investigou-se o modo como esses direitos encontram-se incorporados na Constituição, bem como a forma como o direito humano ambiental presente no art. 225 da Constituição Federal é desdobrado no ordenamento jurídico infraconstitucional vigente, a fim de se assegurar que o mesmo seja preservado. No âmbito internacional, realizou-se um estudo dos principais tratados internacionais a partir da Convenção de Estocolmo – marco inicial do Direito Ambiental Internacional – até a atualidade, com o intuito de expor algumas medidas que evidenciem a relação existente entre esses direitos. Dessa forma, concluiu-se que o Direito Ambiental foi incorporado na Constituição Federal, dado que o direito ao meio ambiente possui vinculação a outros direitos fundamentais, além de possuir um capítulo na Constituição específico para tratar desse tema. No que se refere ao desdobramento infraconstitucional do direito humano ambiental, constatou-se que o art. 225 da Constituição Federal encontra-se contemplado pelas normas investigadas. Por fim, demonstrou-se que as diversas medidas tomadas pelo Direito Internacional consolidam o vínculo existente entre os direitos humanos e o Direito Ambiental.
Direitos Humanos
1. Correlação entre o Direito Ambiental e os direitos humanos em âmbito nacional A presente seção tem por objetivo estabelecer a correlação existente entre o Direito Ambiental e os direitos humanos em âmbito nacional. Para tanto, realiza-se uma introdução aos conceitos de direitos humanos na subseção 1.1. Em seguida, apresenta-se o conceito de Direito Ambiental, a fim de delimitar seu escopo de abrangência. Por fim, a subseção 1.3 estabelece uma correlação entre o Direito Ambiental e os direitos humanos presentes na Constituição Federal. Ao término desta seção, o leitor terá desenvolvido uma visão crítica a respeito do relacionamento entre direitos humanos e o Direito Ambiental presentes na Constituição Federal. 1.2. Direitos humanos Segundo a Organização das Nações Unidas, os direitos humanos são uma categoria de direitos intrinsecamente relacionados à natureza humana independentemente de qualquer tipo de diferença que possa existir entre as pessoas, como as de natureza étnica, racial e religiosa. Por meio dessa perspectiva, tais direitos incluem o direito à vida e ao meio ambiente, por exemplo, não havendo grau de hierarquia entre eles, uma vez que todos são considerados imprescindíveis para a consolidação de uma sociedade consciente a respeito do bem estar de seus membros (ONUBR, 2013a). A diferença entre direitos humanos e direitos fundamentais reside no plano da positivação, sendo a primeira expressão utilizada para se referir a direitos universalmente aceitos, os quais se encontram positivados na ordem internacional. Já o conceito de direitos fundamentais abarca os direitos inerentes à pessoa humana de forma análoga aos direitos humanos, contudo, diferenciam-se destes por se encontrarem inseridos no texto das constituições e, por conseguinte, serem tutelados jurídica e jurisdicionalmente pelo Estado (PINHEIRO, 2008). A título de exemplificação da diferença conceitual apresentada, observa-se que o §3º do art. 5º da Constituição Federal refere-se aos direitos decorrentes dos tratados internacionais como direitos humanos, ao passo que os direitos positivados pela própria Constituição são denominados direitos fundamentais, como fica evidenciado pelo título II da Constituição. Destaca-se que, embora haja variação de plano de positivação, não há diferença de conteúdo entre os direitos humanos e os direitos fundamentais, uma vez que os direitos tratam da mesma matéria. Além disso, os direitos humanos são direitos históricos, uma vez que são decorrentes de circunstâncias históricas, como o surgimento dos direitos civis provenientes das revoluções ocorridas na Europa do século XVIII (BOBBIO, 2004, p. 13). Dessa forma, é possível dividir os direitos humanos em gerações, sendo que a terceira geração corresponde à categoria de direitos humanos que se insere o direito ao meio ambiente. O Supremo Tribunal Federal também já se posicionou em relação à categorização do direito ambiental como pertencente à terceira geração, conforme transcrito na citação a seguir: “[Direito ao meio ambiente] Trata-se, consoante já o proclamou o Supremo Tribunal Federal (RE 134.297-SP, Rel. Min. Celso de Mello), de um típico direito de terceira geração que assiste, de modo sujetivamente indeterminado, a todo o gênero humano, circunstância essa que justifica a especial obrigação – que incumbe ao Estado e à própria coletividade – de defendê-lo e de preservá-lo em benefício das presentes e das futuras gerações, evitando-se, desse modo, que irrompam, no seio da comunhão social, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade na proteção da integridade desse bem essencial de uso comum de todos quantos compõem o grupo social.” (IBRAHIN, 2012, apud LAFER, 1998, p. 7560-61) Por fim, com o intuito de fundamentar a legitimidade e aplicabilidade dos direitos humanos, propostas de teorias dos direitos humanos têm sido apresentadas, dentre elas, destacam-se a dos teóricos jusnaturalista, moralista e positivista. Segundo (LOPES, 2008), essas três teorias são complementares, uma vez que: “[…] os direitos humanos devem existir a partir da formação de uma consciência de sociedade e o seu convívio nela (teoria moralista), fundamentados e solidificados na crença da existência de direitos que são oriundos da natureza humana e pelo homem são portados ao nascer e pelo fato de “ser homem” (teoria jusnaturalista), é que então, o legislador pode encontrar meios pelos quais pode positivar – prescrever em uma Carta Constituinte – todos estes direitos e inseri-los em um ordenamento jurídico.” (LOPES, 2008, p. 1) Assim, observa-se que os direitos humanos estão associados à dignidade da pessoa humana, além disso, garante-se a tutela jurídica e jurisdicional desses direitos ao incorporá-los nas constituições dos Estados – por meio dos direitos fundamentais –, em consonância ao apresentado pelas correntes teóricas do direito. 1.3. Direito Ambiental O Direito Ambiental é um ramo autônomo, visto que possui, por exemplo, diretrizes, instrumentos e princípios próprios que o diferenciam dos demais ramos do Direito, como fica evidenciado pela Lei n. 6.938/81 que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente (FARIAS, 2006, apud SIRVINSKAS, 2005, p. 3). Assim, o Direito Ambiental pode ser definido como: “Conjunto de princípios e regras destinados à proteção do meio ambiente, compreendendo medidas administrativas e judiciais, com a reparação econômica e financeira dos danos causados ao ambiente e aos ecossistemas de uma maneira geral.” (DEA; MIRANDA, 2011, apud ANTUNES, 2001, p. 7) Inicialmente, a denominação dada pelos estudiosos à proteção jurídica do meio ambiente foi Direito Ecológico. Contudo, a palavra ecologia abrange os meios naturais, não considerando outros aspectos relacionados à matéria tratada por esse ramo do direito, como o meio ambiente cultural. Assim, a expressão Direito Ambiental mostrou-se mais apropriada, uma vez que abarca os aspectos que estão inseridos no ordenamento jurídico relacionado ao meio ambiente (DEA; MIRANDA, 2011, apud ANTUNES: 2001, p. 6). Dessa forma, o conceito de Direito Ambiental deve abranger os seguintes principais aspectos: meio ambiente natural, meio ambiente artificial, meio ambiente cultural e meio ambiente do trabalho (FARIAS, 2006b). Por meio ambiente natural ou físico entende-se todo o conjunto de elementos que compõem a natureza, como o ar, mares, rios, flora e fauna. Essa acepção encontra-se definida pelo inciso I do art. 3º da Lei nº 6.938/81: “meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. Além disso, esse aspecto é contemplado mediatamente pelo caput do art. 225 e imediatamente, pelos incisos I, III e VII do § 1º da Constituição Federal, a seguir transcritos: “Art. 225. […] I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.” O meio ambiente artificial, por sua vez, corresponde ao espaço urbano construído, o qual é composto pelo espaço urbano fechado e pelo espaço urbano aberto (DEA; MIRANDA, 2011, apud FIORILLO, 2006, p. 10). O primeiro refere-se ao conjunto de edificações urbanas. Já o espaço urbano aberto refere-se ao conjunto de equipamentos públicos, como os definidos segundo o parágrafo único do art. 5º da Lei nº 6.766/79: “Consideram-se urbanos os equipamentos públicos de abastecimento de água, serviços de esgotos, energia elétrica, coletas de águas pluviais, rede telefônica e gás canalizado”. A Constituição Federal em seu art. 216 estabelece o aspecto cultural do Direito Ambiental nos seguintes termos: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.” Por fim, o aspecto do trabalho que o conceito de Direito Ambiental abrange designa tanto os bens móveis e imóveis, quanto à esfera humana relacionada às atividades laborais. Esse aspecto preocupa-se com as condições de trabalho relacionadas à saúde, ao bem estar dos trabalhadores, entre outros. Tal aspecto encontra-se tutelado, por exemplo, pelo inciso VIII do art. 200 da Constituição Federal: “Ao sistema único de saúde compete […]  colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.” Portanto, o conceito de Direito Ambiental abrange o meio ambiente natural, artificial, cultural e meio ambiente do trabalho. Sendo que todos esses aspectos encontram-se tutelados mediata ou imediatamente pelo art. 225 da Constituição Federal, o qual constitui um dos objetos de investigação deste trabalho. 1.4. Correlação entre o Direito Ambiental e os direitos humanos presentes na Constituição Federal Os direitos humanos e o direito ambiental são mutuamente dependentes, haja vista uma pessoa não poder gozar plenamente dos direitos humanos sem o aparato jurídico do Direito Ambiental. A recíproca também é verdadeira, uma vez que o direito ambiental tem como fim último a dignidade da pessoa humana, em consonância aos aspectos que o conceito de Direito Ambiental incorpora, os quais foram discutidos na seção anterior. Além disso, a própria categorização do direito ambiental como direito humano pertencente à terceira geração, consoante ao discutido na seção 1.2., evidencia a sua relação ao conceito de direitos humanos. Bobbio (2004, p. 9) endossa essa perspectiva ao afirmar que o direito ao meio ambiente natural é o de maior relevância dentre os pertencentes à terceira geração. Segundo Mazzuoli, o direito a um meio ambiente íntegro relaciona-se intrinsecamente ao direito à vida: “A vida tutelada pela Constituição, portanto, transcende os estreitos limites de sua simples atuação física, abrangendo também o direito à sadia qualidade de vida em todas as suas vertentes e formas. Sendo a vida um direito universalmente reconhecido como um direito humano básico ou fundamental, o seu gozo é condição sine qua non para o gozo de todos os demais direitos humanos, aqui incluso o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.” (MAZZUOLI, 2004, p.182, grifo nosso) Dessa forma, é possível estabelecer uma relação imediata entre o direito fundamental[1] à vida, estabelecido pelo art. 5º da Constituição, e o direito ambiental. Os direitos humanos relacionados à saúde e à alimentação também encontram relação aos direitos ambientais, conforme discutido por Carvalho: “A relação entre direitos humanos e proteção ambiental é bastante evidente e inegável. Sem um meio ambiente saudável ou ecologicamente equilibrado não se pode gozar dos básicos direitos reconhecidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. A poluição generalizada da água, do ar e do solo, bem como a contaminação dos alimentos, acarretam graves problemas à saúde e à sobrevivência principalmente das populações mais vulneráveis.” (IBRAHIN, 2012, apud CARVALHO, 2005, p. 7550, grifo nosso) Assim, por meio do trecho apresentado, estabelece-se o relacionamento entre o direito ambiental e os direitos sociais fundamentais estabelecidos pelo art. 6º da Constituição Federal. Além disso, o §2º do art. 5º da Constituição Federal determina que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Dessa forma, os direitos e garantias de tratados internacionais, os quais o Brasil faz parte, são acrescentados aos existentes na Constituição, ou seja, “Esse processo de inclusão implica a incorporação pelo Texto Constitucional de tais direitos [decorrentes dos tratados internacionais]” (IBRAHIN, 2012, apud PIOVESAN, 2009, p. 7556). Por fim, a Constituição Federal possui um capítulo exclusivo – Capítulo VI – para tratar sobre o direito ao meio ambiente, sendo que o caput do art. 225 pertencente a esse capítulo apresenta: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” Segundo Mazzuoli (2004, p. 182), esse artigo é enquadrado como direito fundamental, uma vez que a dignidade da pessoa humana está vinculada ao direito ambiental, haja vista ser impossível a realização plena do ser humano sem um meio ambiente em equilíbrio. Por isso, compete tanto ao Poder Público quanto à população o dever de defendê-lo e preservá-lo. Ao analisar o art. 225, observa-se que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado abrange toda a população de forma difusa e indivisível, ou seja, ultrapassam a esfera de um único indivíduo. Além disso, o direito ambiental relaciona-se com outras áreas como o direito da propriedade e administrativo. Por exemplo, áreas de preservação podem ensejar em limitações na utilização da propriedade, isso “são reflexos da consagração deste direito ao meio ambiente como indivisível e ao mesmo tempo de todos, legitimando cidadãos a proporem ações populares que visem anular ato lesivo ao meio ambiente” (SAMPAIO, 2011). Como mecanismos de defesa ao direito ambiental, a Constituição Federal disponibiliza a ação popular em seu inciso LXXIII do art. 5º: “LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.” (Grifo nosso) Sendo o Ministério Público responsável por promover o inquérito civil e ações públicas para a proteção do meio ambiente, conforme o inciso III do art. 129 da Constituição Federal. Por fim, o § 4º do art. 225 da Constituição Federal estabelece como patrimônio nacional: a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira. Essa designação implica que a fruição das áreas citadas deve considerar questões como a relevância ambiental para a coletividade. Além disso, a Constituição Federal admite que haja propriedade privada desde que respeitados os critérios estabelecidos para preservação ambiental. Observa-se que o direito de propriedade privada sobre os bens ambientais é exercido tanto em benefício do titular, como em beneficio da coletividade. Dessa forma, conclui-se que o Direito Ambiental foi incorporado pela Constituição Federal, dado que o direito ao meio ambiente possui vinculação a outros direitos fundamentais, além de possuir um capítulo na Constituição específico para tratar desse tema. Ademais, a Constituição estabelece mecanismos apropriados, a fim de que tais direitos sejam preservados. 2. Estudo da forma como o direito humano ambiental presente na Constituição Federal é desdobrado no ordenamento jurídico infraconstitucional vigente Esta seção tem por objetivo apresentar o estudo realizado a respeito da forma como o direito humano ambiental presente no art. 225 da Constituição Federal é desdobrado no ordenamento jurídico infraconstitucional vigente. Para tanto, a subseção 2.1 apresenta as principias normas de proteção ambiental. Ao término desta seção, o leitor obterá um panorama atual do ordenamento jurídico brasileiro existente, com vistas à preservação do direito fundamental ambiental e para que haja democratização e socialização dessa temática. 1.  2.1. Principais normas vigentes de proteção ambiental no Brasil Esta seção apresenta as principais normas vigentes de proteção ambiental no Brasil que visam regulamentar o direito ambiental fundamental presente no art. 225 da Constituição Federal. As normas abordadas nesta seção são: Decreto-Lei nº 1.985/40, Decreto-Lei nº 9.760/46, Lei nº 4.118/62, Lei nº 6.938/81, Lei nº 9.605/98, Lei nº 9.795/99, Lei nº 9.985/00, Medida Provisória nº 2.186-16/01 – MP nº 2.186-16/01–, Lei nº 11.105/05, Lei nº 11.284/06, Decreto nº 6.514/08, Lei nº 11.952/09 e Lei nº 12.651/12. O Decreto-Lei nº 1.985/40 regulamenta o §2º do art. 225 da Constituição Federal ao estabelecer o Código de Minas. Esse código “define os direitos sobre as jazidas e minas, estabelece o regime do seu aproveitamento e regula a intervenção do Estado na indústria de mineração, bem como a fiscalização das empresas que utilizam matéria prima mineral”, de acordo com o art. 1º do Decreto-Lei nº 1.985/40. Já o Decreto-Lei nº 9.760/46 dispõe sobre os bens imóveis da União, regulamentando a questão de terras devolutas presente no §5º do art. 225 da Constituição Federal, o qual apresenta mais uma restrição a essa matéria ao dispor: “São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais”. A Lei nº 4.118/62, por sua vez, regulamenta o §6º do art. 225 da Constituição Federal ao dispor sobre a política nacional de energia nuclear. Sendo que o referido parágrafo apresenta: “As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas”. A Lei nº 6.938/81 foi estabelecida com base no art. 225 da Constituição. Essa Lei dispõe a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, constitui o Sistema Nacional do Meio Ambiente – Sisnama – e institui o Cadastro de Defesa Ambiental de acordo com o art. 1o da Lei nº 6.938/81. A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental, visando assegurar condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, consoante o art. 2o da Lei nº 6.938/81. Dentre os princípios que devem ser atendido pela Política Nacional do Meio Ambiente, destaca-se a educação ambiental a todos os níveis de ensino, consoante o inciso X do art. 2o da Lei nº 6.938/81. Esse princípio encontra-se definido pelo inciso VI do §1o do art. 225 da Constituição Federal. Além disso, a Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a formação de uma consciência pública sobre a necessidade de preservação da qualidade ambiental e do equilíbrio ecológico, segundo o inciso V do art. 4o da Lei nº 6.938/81. Esse objetivo, também, encontra-se definido pelo inciso VI do §1o do art. 225 da Constituição Federal e tem por fim a democratização e socialização da preservação do meio ambiente. O Sisnama, por sua vez, tem a “finalidade de estabelecer um conjunto articulado de órgãos, entidades, regras e práticas responsáveis pela proteção e pela melhoria da qualidade ambiental” (MMA, 2013). Esse sistema é constituído pelos órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e pelas Fundações instituídas pelo Poder Público, responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental, de acordo com o art. 6o da Lei nº 6.938/81. Por fim, o Cadastro de Defesa Ambiental é um instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente e corresponde ao Cadastro Técnico Federal de Atividades e Instrumentos de Defesa Ambiental (CTF/AIDA) e ao Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras ou Utilizadoras de Recursos Ambientais (CTF/APP). Segundo o inciso I do art. 17 da Lei nº 6.938/81, o CTF/AIDA tem por finalidade: “[O] registro obrigatório de pessoas físicas ou jurídicas que se dedicam a consultoria técnica sobre problemas ecológicos e ambientais e à indústria e comércio de equipamentos, aparelhos e instrumentos destinados ao controle de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras.” Já o CTF/APP tem por objetivo, segundo o inciso II do art. 17 da Lei nº 6.938/81: “[O] registro obrigatório de pessoas físicas ou jurídicas que se dedicam a atividades potencialmente poluidoras e/ou à extração, produção, transporte e comercialização de produtos potencialmente perigosos ao meio ambiente, assim como de produtos e subprodutos da fauna e flora.” No que se refere às sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, cita-se a Lei nº 9.605/98. A Lei em tela, em seu art. 55, estabelece a pena de detenção, de seis meses a um ano, e multa, para o ato de executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida, essa pena também é aplicável para quem deixar de recuperar a área pesquisada ou explorada. Assim, a Lei nº 9.605/98 tem como fim a regulamentação dos §§2o e 3o do art. 225 da Constituição Federal. Sendo que essa Lei aborda o §2o do art. 225 da Constituição Federal por meio da definição de pena específica para aquele que deixar de recuperar a área pesquisada ou explorada. O referido parágrafo constitucional estabelece: “Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei”. Já a matéria tratada pela Lei nº 9.605/98 regulamenta o §3o do art. 225 da Constituição Federal, uma vez que essa Lei dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Sendo que o referido parágrafo constitucional apresenta: “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. A Lei nº 9.795/99, por sua vez, regulamenta o inciso VI do §1o do art. 225 da Constituição Federal, ao dispor sobre a educação ambiental e instituir a Política Nacional de Educação Ambiental. Tal Lei visa à democratização e socialização da preservação do meio ambiente A Lei nº 9.985/00 estabelece critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de conservação – UC. Logo, essa Lei regulamenta: ·  a preservação e restauração dos processos ecológicos essenciais e prove o manejo ecológico das espécies e ecossistemas, consoante o inciso I do §1o do art. 225 da Constituição Federal; · a preservação da diversidade e da integridade do patrimônio genético do País e a fiscalização das entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético, de acordo com o inciso II do §1o do art. 225 da Constituição Federal; · a definição, em todas as unidades da Federação, de espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, conforme o inciso III do § 1o do art. 225 da Constituição Federal; e · a proteção da fauna e da flora, tal qual estabelecido pelo inciso VII do § 1o do art. 225 da Constituição Federal. Ademais, a referida Lei institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, que corresponde a um o conjunto de UC federais, estaduais e municipais. A Medida Provisória nº 2.186-16/01, por sua vez, regulamenta o inciso II do § 1o e o §4o do art. 225 da Constituição e dispõe sobre os bens, os direitos e as obrigações relativas: · ao acesso a componente do patrimônio genético, inciso I do art. 1o da MP nº 2.186-16/01; · ao acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, segundo inciso II do art. 1o da MP nº 2.186-16/01; · à repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da exploração de componente do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado, de acordo com inciso o III do art. 1o da MP nº 2.186-16/01; e · ao acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para a conservação e a utilização da diversidade biológica, consoante o inciso IV do art. 1o da MP nº 2.186-16/01. Já a Lei nº 11.105/05 regulamenta os seguintes assuntos pertencentes ao art. 225 da Constituição Federal: · preservação da diversidade e da integridade do patrimônio genético do País e a fiscalização das entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético, conforme o inciso II do §1o do art. 225 da Constituição Federal; ·  exigência de estudo prévio de impacto ambiental, consoante o inciso IV do §1o do art. 225 da Constituição Federal; e ·  controle da produção, da comercialização e do emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente, segundo o inciso V do §1o do art. 225 da Constituição Federal. Além disso, a Lei nº 11.105/05 estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS –, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio –  e dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança. O CNBS, segundo art. 8o da Lei nº 11.105/05, é um órgão de assessoramento superior do Presidente da República, cuja função é a formulação e implementação da Política Nacional de Biossegurança. Segundo art. 10 da Lei nº 11.105/05, a CTNBio: “[…] é instância colegiada multidisciplinar de caráter consultivo e deliberativo, para prestar apoio técnico e de assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e implementação da PNB [Política Nacional de Biossegurança] de OGM [organismos geneticamente modificados] e seus derivados, bem como no estabelecimento de normas técnicas de segurança e de pareceres técnicos referentes à autorização para atividades que envolvam pesquisa e uso comercial de OGM e seus derivados, com base na avaliação de seu risco zoofitossanitário, à saúde humana e ao meio ambiente.” A Lei nº 11.284/06, por sua vez, regulamenta o art. 225 de maneira ampla ao tratar sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável, instituir o Serviço Florestal Brasileiro – SFB – e criar o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal – FNDF. O SFB localiza-se na estrutura do Ministério do Meio Ambiente e atua exclusivamente na gestão das florestas públicas. Já o FNDF possui natureza contábil e é destinado a fomentar o desenvolvimento de atividades sustentáveis de base florestal no Brasil e a promover a inovação tecnológica do setor, de acordo com art. 41 da Lei nº 11.284/06. O Decreto nº 6.514/08 dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente e estabelece o processo administrativo federal para apuração destas infrações, logo, esse decreto visa regulamentar o § 3º do art. 225 da Constituição Federal. Já a Lei nº 11.952/09 regulamenta o § 4º da Constituição Federal ao tratar sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal. Por fim, a Lei nº 12.651/12 regulamenta o § 4º e o caput do art. 225 da Constituição, ao tratar sobre a proteção da vegetação nativa, por meio do estabelecimento de normas gerais sobre: · a proteção da vegetação, áreas de Preservação Permanente e as áreas de Reserva Legal; · a exploração florestal; · o suprimento de matéria-prima florestal; · o controle da origem dos produtos florestais; e · o controle e prevenção dos incêndios florestais.  Dessa forma, apresentam-se as principais normas discutidas nesta seção de forma a evidenciar a relação existente entre essas normas com regulamentação do art. 225: · Caput do art. 225 da Constituição Federal é regulamentado pela Lei nº 6.938/81, Lei nº 11.284/06 e Lei nº 12.651/12; · Parágrafo 1º do art. 225 da Constituição Federal: · Inciso I é regulamentado pela Lei nº 9.985/00; · Inciso II é regulamentado pela Lei nº 9.985/00, MP nº 2.186-16/01 e Lei nº 11.105/05. · Inciso III é regulamentado pela Lei nº 9.985/00; · Inciso IV é regulamentado pela Lei nº 11.105/05; · Inciso V é regulamentado pela Lei nº 11.105/05 e Lei nº 11.105/05; · Inciso VI é regulamentado pela Lei nº 6.938/81 e Lei nº 9.795/99; e · Inciso VII é regulamentado pela Lei nº 9.985/00. · Parágrafo 2º do art. 225 da Constituição Federal é regulamentado pela Lei nº 9.605/98 e Decreto-Lei nº 1.985/40; · Parágrafo 3º do art. 225 da Constituição Federal é regulamentado pela Lei nº 9.605/98 e Decreto nº 6.514/08; · Parágrafo 4º do art. 225 da Constituição Federal é regulamentado pela MP nº 2.186-16/01, Lei nº 11.952/09 e Lei nº 12.651/12; · Parágrafo 5º do art. 225 da Constituição Federal é regulamentado pelo Decreto-Lei nº 9.760/46; e · Parágrafo 6º do art. 225 da Constituição Federal é regulamentado pela Lei nº 4.118/62. Contudo, destaca-se que o esquema apresentado fornece apenas um panorama geral das principais normas, uma vez que algumas relações foram suprimidas, a fim de simplificar a visualização. Por exemplo, todas as leis discutidas estão relacionadas de forma direta ou indireta com o caput do art. 225 da Constituição Federal, não obstante, o esquema atrela apenas a Leis nº 6.938/81, a Lei nº 11.284/06 e a Lei nº 12.651/12 ao referido caput. Assim, demonstrou-se que o artigo 225 da Constituição encontra-se contemplado pelas normas infraconstitucionais investigadas, conforme evidenciado pelo esquema apresentado contendo as principais normas discutidas nesta seção. 3. Correlação entre Direito Ambiental e os direito humanos no âmbito do Direito Internacional A presente seção tem por objetivo estabelecer uma correlação entre o Direito Ambiental Internacional e os direitos humanos. Para isso, a subseção 3.1 apresenta a evolução do Direito Ambiental Internacional, desde a sua concepção até a atualidade. Já a seção 3.2 apresenta algumas medidas tomadas pelo Direito Internacional que evidenciam o vínculo existente entre os direitos humanos e o Direito Ambiental. Ao término desta seção, o leitor terá adquirido um panorama do desenvolvimento do direito ambiental em âmbito internacional, bem como das medidas que consolidam a relação existente entre os direitos humanos e o Direito Ambiental Internacional. 3.1. Direito Ambiental Internacional O marco inicial do Direito Ambiental Internacional é a Convenção de Estocolmo, realizada na capital da Suécia em 1972, a qual contou com a presença de representantes de 113 países. Não obstante, outras convenções internacionais anteriores tenham ocorrido sem obterem a mesma visibilidade e impacto por tratarem de temas menos abrangentes (GRANZIERA; ADAME; GALLO, 2007, p. 5). Como resultado dessa convenção, obteve-se a Declaração de Estocolmo sobre o ambiente humano, a qual estabeleceu 26 princípios comuns aos países signatários. Esses princípios abarcam temas de interesse da humanidade e buscam conciliar a proteção do meio ambiente com o direito ao desenvolvimento. Além disso, a Declaração de Estocolmo influenciou as constituições supervenientes à conferência, no que ser refere à inserção de matérias relacionadas à preservação do meio ambiente, conforme apresentado por José Afonso da Silva: “[A Declaração de Estocolmo] abriu caminho para que as Constituições supervenientes reconhecessem o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito humano fundamental entre os direitos sociais do Homem, com sua característica de direitos a serem realizados e direitos a não serem perturbados.” (MAZZUOLI, 2004, apud SILVA, 2000, p. 178, grifo nosso) No mesmo ano da publicação da Declaração de Estocolmo, a Assembleia Geral da ONU criou o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA –, a fim de coordenar os trabalhos referentes ao meio ambiente, realizados pela ONU e seus parceiros. Atualmente, as principais áreas de atuação do PNUMA são: mudanças climáticas; desastres e conflitos; manejo de ecossistemas; governança ambiental; substâncias nocivas e resíduos; e eficiência de recursos (PNUMA, 2013). As décadas de 70 e 80 marcam a inserção definitiva de questões ambientais na pauta da agenda pública global, essa conquista foi obtida com a contribuição da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento – criada em 1983 e conhecida como Comissão Brundtland – que publicou o relatório intitulado “Nosso Futuro Comum” em 1987, o qual “traz o conceito de desenvolvimento sustentável para o discurso público” (ONUBR, 2013b). Em decorrência das amplas recomendações feitas pela comissão em comento, elaborou-se a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a qual ficou conhecida como ECO-92 ou Rio-92, realizada no Rio de Janeiro em 1992. Essa conferência adotou a Agenda 21, utilizada pelos governos com o intuito de se definir um programa detalhado, a fim de estabelecer um modelo sustentável de crescimento econômico, tendo em vista a proteção e a renovação dos recursos ambientais. Já a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, conhecida como Rio+10, aconteceu na cidade Joanesburgo em 2002; ela foi concebida para transformar as metas e compromissos estabelecidos na Agenda 21 em ações a serem implementadas. Essa cúpula resultou na Declaração de Joanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável e no Plano de Implementação detalhando as prioridades para a ação. Por fim, a última conferência internacional que consolidou a base do Direito Ambiental Internacional foi Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, conhecida como Rio +20, realizada no Rio de Janeiro em 2012. Seu objetivo foi debater sobre as medidas necessárias para manter um crescimento sustentável e reduzir as agressões ao meio ambiente. 3.2. Medidas tomadas pelo Direito Internacional que evidenciam o vínculo existente entre os direitos humanos e o Direito Ambiental Esta seção tem por objetivo apresentar algumas medidas tomadas pelo Direito Internacional que evidenciam o vínculo existente entre os direitos humanos e o Direito Ambiental. Para tanto, considerou-se como ponto de início desta investigação a Convenção de Estocolmo de 1972, uma vez que ela corresponde ao marco inicial do Direito Internacional Ambiental, consoante ao discutido na seção anterior. O direito humano ao meio ambiente foi reconhecido no plano internacional pela Declaração de Estocolmo, cujos 26 princípios definidos podem ser comparados, no que se refere à importância para os países signatários, à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, uma vez que estabelece as diretrizes éticas a serem seguidas pelos países em relação à preservação do meio ambiente como um direito humano de todos (MAZZUOLI, 2004, p. 177-78). Como evidência desse reconhecimento, pode-se citar tanto o primeiro parágrafo da proclamação da Declaração de Estocolmo, o qual estabelece “[…] Os dois aspectos do meio ambiente humano, o natural e o artificial, são essenciais para o bem-estar do homem e para o gozo dos direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à vida mesma”, como o seu Princípio 1: “O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras. A este respeito, as políticas que promovem ou perpetuam o apartheid, a segregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira são condenadas e devem ser eliminadas.” Observa-se que o referido princípio também estabelece como obrigação difusa a proteção e melhoria do meio ambiente, visando às gerações presentes e futuras. Segundo Relatório da Secretaria-Geral Sobre o Cumprimento da AG/RES. 1819 (XXXI-O/01), que trata sobre direitos humanos e o meio ambiente, as principais medidas ocorridas no Direito Internacional que tornam patente a relação existente entre os direitos humanos e o meio ambiente são discutidas a seguir. O Princípio 1 da Declaração de Estocolmo, o qual foi discutido anteriormente nesta seção. O Princípio 10 da ECO-92 ao estabelecer que a “melhor maneira de tratar questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados” (ECO-92, 1992). Dessa forma, o referido princípio estabelece o direito ao acesso a informações relativas ao meio ambiente que esteja em posse do Estado, bem como a oportunidade de participar nos processos de tomada de decisões, como a formação da agenda pública. Ademais, a Convenção sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça nas Questões Ambientais, conhecida como Convenção de Aarhus, em 1998, dá um enfoque mais abrangente e se baseia no Princípio 1 da Declaração de Estocolmo (OEA, 2002). A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, ocorrida em Nova York em 1989, trata, dentre outros assuntos, da importância do meio ambiente para o desenvolvimento da criança, como fica evidente ao dispor sobre os perigos e riscos da poluição ambiental, da seguinte forma: “[Os Estados Partes da Convenção em comento deverão] combater as doenças e a desnutrição dentro do contexto dos cuidados básicos de saúde mediante, inter alia, a aplicação de tecnologia disponível e o fornecimento de alimentos nutritivos e de água potável, tendo em vista os perigos e riscos da poluição ambiental.” (Grifo nosso) Além disso, a referida convenção dispõe que os Estados Partes da Convenção deverão propiciar uma educação que estimule a criança a respeitar o meio ambiente, consoante o art. 29 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. O relatório da (OEA, 2002) também apresenta como medida a Conferência Ministerial da Organização da Unidade Africana, a qual teve como resultado a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, em 1981, conhecida como Carta de Banjul. Essa Carta declara em seu art. 24 que “Todos os povos têm direito a um meio ambiente geral satisfatório, propício ao seu desenvolvimento” (OUA, 1981), ou seja, o referido artigo vincula o direito ao meio ambiente ao direito ao desenvolvimento humano integral. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia de 2000, que foi adaptada em 2007 em Estrasburgo, estabelece aos signatários que desenvolvam medidas de proteção ao meio ambiente conforme apresentado por seu art. 37: “Todas as políticas da União devem integrar um elevado nível de proteção do ambiente e a melhoria da sua qualidade, e assegurá-los de acordo com o princípio do desenvolvimento sustentável”. Por fim, relatório da (OEA, 2002) apresenta o Tratado para o Estabelecimento da Comunidade da África Oriental, o qual foi assinado em 1999, em Arusha, na Tanzânia. Esse tratado estabeleceu relações comerciais e políticas mais cooperativas para os seus membros. O art. 111 do referido tratado estabelece algumas ações a serem cumpridas em matéria ambiental, além de estabelecer que “um meio ambiente limpo e sadio é precondição para o desenvolvimento sustentável” (EAC, 1999). Dessa forma, o referido artigo associa o direito ao meio ambiente com o direito humano econômico. Portanto, constatou-se que as medidas analisadas, as quais foram tomadas no âmbito do Direito Internacional, consolidam o vínculo existente entre os direitos humanos e o Direito Ambiental, uma vez que essas medidas abarcaram a relação existente entre o direito ao meio ambiente com o direto à dignidade humana, à vida, ao bem estar, ao acesso à informação, à participação política, ao desenvolvimento da criança, ao desenvolvimento humano integral e ao direito humano econômico. Conclusão O presente trabalho apresentou um estudo da correlação existente entre os direitos humanos e o Direito Ambiental em âmbito nacional e internacional do Direito por meio da investigação: do conceito de diretos humanos e Direito Ambiental, da relação estabelecida entre esses direitos presentes na Constituição Federal, da forma como o direito humano ambiental presente na Constituição Federal é desdobrado e das medidas tomadas pelo Direito Internacional. Ao se explorar o conceito de direitos humanos, observou-se que eles estão relacionados com a dignidade da pessoa humana, sendo que os Estados, ao incorporá-los em suas constituições, comprometem-se com a tutela jurídica e jurisdicional desses direitos. A investigação sobre o Direito Ambiental demonstrou que esse conceito é mais abrangente que o meio ambiente em sentido restrito, uma vez que abarcar o meio ambiente natural, artificial, cultural e meio ambiente do trabalho. Sendo que todos esses aspectos encontram-se tutelados mediata ou imediatamente pelo art. 225 da Constituição Federal. A correlação estabelecida entre o Direito Ambiental e os direitos humanos presentes na Constituição Federal comprovou que o Direito Ambiental foi incorporado pela Constituição Federal, dado que o direito ao meio ambiente possui vinculação a outros direitos fundamentais, além de possuir um capítulo na Constituição específico para tratar desse tema. Ademais, constatou-se que a Constituição estabelece mecanismos apropriados, a fim de que tais direitos sejam preservados. Em relação ao estudo da forma como o direito humano ambiental presente na Constituição Federal é desdobrado no ordenamento jurídico infraconstitucional vigente, conclui-se que o artigo 225 da Constituição encontra-se contemplado pelas normas infraconstitucionais investigadas, conforme evidenciado pelo esquema proposto contendo as principais normas discutidas. Por fim, as medidas tomadas pelo Direito Internacional contempladas neste trabalho evidenciaram o vínculo existente entre os direitos humanos e o Direito Ambiental, ao abarcar medidas que relacionam o direito ao meio ambiente com o direto à dignidade humana, à vida, ao bem estar, ao acesso à informação, à participação política, ao desenvolvimento da criança, ao desenvolvimento humano integral e ao direito humano econômico. Dessa forma, o presente trabalho demonstrou a importância do direito ao meio ambiente ao correlacioná-lo a outros direitos humanos, essa constatação vai ao encontro da crescente preocupação mundial com os aspectos ambientais. Essa conscientização é evidenciada em âmbito nacional ao se equiparar o direito ao meio ambiente aos demais direitos fundamentais incorporados na Constituição Federal. Em âmbito internacional, os diversos tratados celebrados pelos países demonstram a preocupação mundial sobre esse tema.
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Presente e futuro dos direitos humanos e fundamentais frente á finalidade da sanção
O presente artigo analisa os fundamentos históricos, filosóficos e jurídicos da Declaração universal dos Direitos do Homem em relação à melhor aplicação da sanção penal frente aos fundamentos dos Direitos Humanos e Fundamentais. Apresenta a evolução e fundamento histórico, filosófico e jurídico dos Direitos Universal dos Direitos do Homem, destacando seus aspectos teóricos e práticos em função da sua efetividade política e jurídica, em seguida analisa a promoção e eficácia dos Direitos Humanos, assim como o Estado de Direito e liberdades e garantias do cidadão, e por fim apresenta os limites da aplicação da sanção frente aos fundamentos dos Direitos Humanos e da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, defende-se a ideia de que o  sistema prisional deve ser um espaço de novos estímulos, novos saberes e de outros experimentos.
Direitos Humanos
1 INTRODUÇÃO O presente artigo consiste em analisar os fundamentos históricos, filosóficos e jurídicos da Declaração universal dos Direitos do Homem com a finalidade precípua de se obter uma melhor aplicação da sanção penal frente aos fundamentos dos Direitos Humanos, enquanto princípios supremos que servem para proteger, garantir e respeitar o ser humano em sua totalidade, assim como delinear os contornos da denominada crise do sistema judiciário, que parece perdurar para muito além do momento em que a sentença penal condenatória é proferida. É importante ressaltar que a prevalência da Constituição acentua a hegemonia axiológica dos princípios, que se convertem em pedestal normativo do sistema jurídico, detendo a função de assegurar um critério interpretativo e integrativo, num sistema lacunoso, incompleto e imperfeito. Nesta esteira de pensamento, a validade axiológica do Direito Penal demanda a legitimação das prerrogativas estatais com a comunicação entre Estado e cidadão, numa relação dialética que pressupõe a participação democrática a partir da satisfação dos direitos fundamentais, definidos a partir do amadurecimento da noção de cidadania. Como categoria especial de direitos, estes gozam de um acréscimo de legalidade no que tange à necessidade de se estabelecer que o resguardo a eles destinado não possa se restringir tão-somente à vida em liberdade, haja vista que, uma vez negados no âmbito do sistema carcerário, quando do cumprimento de penas privativas de liberdade, estar-se-ia afastando o reconhecimento da própria pessoa humana, que não deixa de existir em razão do cárcere. Nesse norte, os Direitos Humanos e Fundamentais se mostram de vital importância para se obter a verdadeira finalidade da sanção, que representa o objetivo final de todo “direito punitivo” que a sociedade conferiu ao Estado. De fato, se num primeiro sentido, o da sua importância prática, a fase de execução da pena deve ser contemplada como especialmente relevante para o criminoso que sofre a sanção, é nela que os fins mais basilares do direito penal se perdem. E tudo por força de uma displicência política e jurídica que se agrava em matéria de execução, mas em diversos outros setores da vida social de grande sensibilidade. Neste sentido, medidas sócio-educativas a serem obtidas mediante o trabalho e o estudo representam direito do recluso, a ser devidamente garantido e efetivado pelo Estado. 2 FUNDAMENTOS HISTÓRICOS/FILOSÓFICOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM As declarações nascem a priori como teorias filosóficas. A ideia de que o ser humano, enquanto tal, tem direitos por natureza e que ninguém (nem mesmo o Estado) lhe pode subtrair, que ele mesmo não pode alienar, é um dos princípios basilares que permeia a construção dos ordenamentos jurídicos desde o período da Grécia clássica, como se pode constatar nas discussões entre Antígona e Creonte através da Trilogia tebana de Sófocles. A liberdade e a igualdade dos homens não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir; não são uma existência, mas um valor; não são um ser, mas um dever ser. Enquanto teorias filosóficas, as primeiras afirmações dos direitos do homem são universais em relação ao conteúdo, na medida em que se dirigem a um homem racional fora do espaço e do tempo. Contudo, se pode constatar um segundo momento da história da Declaração dos Direitos do Homem que consiste, portanto, na passagem da teoria á prática, do direito somente pensado para o direito realizado. Com a declaração de 1948, tem início uma terceira e última fase, na qual a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva: universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva no sentido de que coloca em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado. Os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem- se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais. A Declaração Universal contém em germe síntese de um movimento dialético, que começa pela universalidade abstrata dos direitos naturais, transfigura- se na particularidade concreta dos direitos positivos, e termina na universalidade não mais abstrata, mas também ela concreta, dos direitos positivos universais. A Declaração Universal é apenas o início de um longo processo, cuja realização final ainda não somos capazes de ver. A Declaração é algo mais do que um sistema doutrinário, porém algo menos do que um sistema de normas jurídicas. A própria Declaração proclama os princípios de que se faz pregoeira não como normas jurídicas, mas como ideal a ser almejado pelos povos e nações. Lê- se no Preâmbulo que “é indispensável que os direitos do homem sejam protegidos por normas jurídicas, se quer evitar que o homem seja obrigado a recorrer, como última instância, á rebelião contra a tirania e a opressão.” Quando os direitos do homem eram considerados unicamente como direitos naturais, a única defesa possível contra a sua violação pelo Estado era um direito igualmente natural, o chamado direito de resistência. A posteriori, nas Constituições que reconheceram a proteção jurídica de alguns desses direitos, o direito natural de resistência transformou – se no direito positivo de promover uma ação judicial contra os próprios órgãos do Estado, pseudo legitimidade, ou legitimidade incompleta, já que a legitimidade formal não é um fim, mais o meio da consecução dos anseios do ser humano. A legitimidade formal sem atingir o ápice da legitimidade material, verdadeiramente não é legitimidade. Quando se diz que a Declaração Universal representou apenas o momento inicial da fase final do processo, o da conversão universal em direito positivo dos direitos do homem, pensa-se habitualmente na dificuldade de implementar medidas eficientes para a sua garantia numa comunidade como a internacional, na qual ainda não ocorreu o processo de monopolização da força que caracterizou o nascimento do Estado moderno. A Declaração não pode apresentar nenhuma pretensão de ser definitiva. A expressão “direitos do homem”, que é certamente enfática- ainda que oportunamente enfática pode provocar equívocos, já que faz pensar na existência de direitos que pertencem a um homem abstrato e, como tal, subtraídos ao fluxo da história, a um homem essencial e eterno, de cuja contemplação derivaríamos o conhecimento infalível dos seus direitos e deveres. Hoje os direitos ditos humanos são produto não da natureza, mas da civilização humana. Hobbes conhecia apenas um dos direitos, á vida. O desenvolvimento dos direitos do homem passou pro três fases: num primeiro momento, afirmaram- se os direitos de liberdade, isto é, todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado. Num segundo momento, foram propugnados os direitos políticos os quais concebendo a liberdade não apenas negativamente, como não impedimento, mas positivamente, como autonomia. Finalmente, foram proclamados os direitos sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigências podemos mesmo dizer, de novos valores, como os do bem-estar e da igualdade não apenas formal, e que poderíamos chamar de liberdade através ou por meio do Estado. Os direitos elencados na Declaração não são os únicos e possíveis direitos do homem: são os direitos do homem histórico, tal como este se configurava na mente dos redatores da Declaração após a tragédia da Segunda Guerra Mundial. No campo do direito à participação no poder, faz-se sentir na medida em que o poder econômico se torna cada vez mais determinante nas decisões políticas e cada vez mais decisivo nas escolhas que condicionam a vida de cada homem a exigência de participação no poder econômico, ao lado e para além do direito reconhecido, (ainda que nem sempre aplicado) de participação no poder político. O campo dos direitos sociais, finalmente, está em contínuo movimento: assim como as demandas de proteção social nasceram com a revolução industrial, é provável que o rápido desenvolvimento técnico e econômico traga consigo novas demandas, que hoje não somos capazes de prever. A comunidade internacional se encontra hoje diante não só do problema de fornecer garantias válidas para aqueles direitos, mas também de aperfeiçoar continuamente o conteúdo da Declaração, articulando- o, especificando- o, atualizando-o, de modo a não deixá-lo cristalizar- se enrijecer-se em fórmulas tanto mais solenes quanto mais vazias. A Declaração Universal: “nenhuma distinção será estabelecida com base no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território a que uma pessoa pertence”; outra é considerar como contrária aos direitos do homem, como o faz a Declaração da independência, “a sujeição dos povos ao domínio estrangeiro”. A primeira afirmação refere- se á pessoa individual; a segunda, a todo um povo. Uma chega até a não – discriminação individual; a outra prossegue até a autonomia coletiva. 3 A PROTEÇÃO, PROMOÇÃO E EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS O importante não é fundamentar os direitos do homem, mas protegê-los. O problema que temos de enfrentar, contudo, é o das medidas imaginadas e imagináveis para a efetiva proteção desses direitos. As atividades implementadas pelos organismos internacionais, tendo em vista a tutela dos direitos do homem, podem ser consideradas sob 3 aspectos: promoção, controle e garantia.  Por promoção, entende-se o conjunto de ações que são orientadas para este duplo objetivo: Induzir os Estados que não têm uma disciplina específica para a tutela dos direitos do homem a introduzi- la . Induzir os que já a têm a aperfeiçoá-la, seja com relação ao direito substancial (número e qualidade dos direitos a tutelar), seja com relação aos procedimentos (número e qualidade dos direitos a tutelar), seja com relação aos procedimentos (número e qualidade dos controles jurisdicionais). Por atividades de controle, entende-se o conjunto de medidas que os vários organismos internacionais põem em movimento para verificar se e em que grau as recomendações foram acolhidas e se em que grau as convenções foram respeitadas. Dois modos típicos para exercer esse controle, são os relatórios que cada Estado signatário da convenção se compromete a apresentar sobre as medidas adotadas para tutelar os direitos do homem de acordo com o próprio pacto, bem como os comunicados com os quais um Estado membro não cumpriu as obrigações decorrentes do pacto. Por atividade de garantia entende-se a organização de uma autêntica tutela jurisdicional de nível internacional, que substitua á nacional. Enquanto a promoção e o controle se dirigem exclusivamente para as garantias existentes ou a instituir no interior do Estado, ou seja, tendem a reforçar ou a aperfeiçoar o sistema jurisdicional nacional, a terceira tem como meta a criação de uma nova e mais alta jurisdição, a substituição da garantia nacional pela internacional, quando aquela for insuficiente ou mesmo inexistente. Mas, só será possível falar legitimamente de tutela internacional dos direitos do homem quando uma jurisdição internacional  conseguir impor- se e superpor- se ás jurisdições nacionais, e quando se realizar a passagem da garantia dentro do Estado que é ainda a característica predominante da atual fase para a garantia contra o Estado. 4 ESTADO DE DIREITO E LIBERDADES E GARANTIAS DO CIDADÃO  “Estado de direito”, segundo Ferrajoli (2006) são Estados onde funcionam regularmente um sistema de garantias dos direitos do homem. Não há dúvida de que os cidadãos que têm mais necessidade da proteção internacional são os cidadãos dos Estados não de direito. As dificuldades jurídico-políticas, a tutela dos direitos do homem vai de encontro a dificuldades inerentes ao próprio conteúdo desses direitos. Neste contexto, entende-se por “valor absoluto” o estatuto que cabe a pouquíssimos direitos do homem, válidos em todas as situações e para todos os homens sem distinção. O direito a não ser escravizado implica a eliminação do direito de possuir escravos, assim como o direito de não ser torturado implica a eliminação do direito de torturar. Esses dois direitos podem ser considerados absolutos, já que a ação que é considerada ilícita em conseqüência de sua instituição e proteção é universalmente condenada. Na maioria das situações em que está em causa um direito do homem, ao contrário, ocorre que dois direitos igualmente fundamentais se enfrentem, e não se pode proteger incondicionalmente um deles sem tornar o outro inoperante. Nesses casos, que são a maioria, deve- se falar de direitos fundamentais não absolutos, mas relativos, no sentido de que a tutela deles encontra, em certo ponto, um limite insuperável na tutela de um direito igualmente fundamental, mas concorrente.  Os direitos do homem constituem uma categoria heterogênea, ou seja, ao fato de que desde quando passaram a ser considerados como direitos do homem, além dos direitos de liberdade, também os direitos sociais a categoria em seu conjunto passou a conter direitos entre si incompatíveis, a saber, direitos cuja proteção não pode ser concedida sem que seja restringida ou suspensa a proteção de outros. “Liberdades” são os direitos que são garantidos quando o Estado não intervém; e de “poderes” os direitos que exigem uma intervenção do Estado para sua efetivação. Liberdades e poderes não são complementares e sim incompatíveis. Nem tudo o que é desejável e merecedor de ser perseguido é realizável. Para a realização dos direitos do homem, são frequentemente necessárias condições objetivas que não dependem da boa vontade dos que os proclamam, nem das boas disposições dos que possuem os meios para protegê-los. Entender que todo ponto de vista é na verdade a vista de um ponto é essencial no que diz respeito ao ser humano. Neste sentido, se faz necessário analisar o ser humano em três dimensões, no campo material, ou seja, campo biológico, psíquico e social. Não obstante, a relação indivíduo e sociedade é de suma importância, visto que, a sociedade tem uma dinâmica própria, além de representar um fenômeno “sui generis”, ou seja, deve ser entendida por ela própria. Nesta esteira, resta necessário, analisar o fato social, no qual se depara como coercitivo (se impõe ao indivíduo), exterior (anterior ao indivíduo) e geral (se aplica a coletividade). O primeiro entra em relativo conflito com a idéia de direito á liberdade, já que em múltiplos casos o indivíduo vislumbra a liberdade como mais um ônus, encargo, do que propriamente um direito. Entre o direito á liberdade e a responsabilidade individual existem uma relação de necessariedade. È de suma importância encontrar a possível coexistência harmônica entre um processo de desenvolvimento igualitário e a manutenção da liberdade. Nesta esteira, é necessário falar em democracia, que a priori é apresentada como um processo universal. O processo democrático é definido como um constante aumento da igualdade de condições que diz respeito a toda a humanidade. Todavia, cada Nação terá seu próprio processo de desenvolvimento democrático. Nessa diversidade de caminhos que as Nações podem percorrer para a realização da democracia, o fator mais importante para defini-los é a ação política do seu povo. Embora as instituições políticas de caráter liberal possam ajudar a manutenção de liberdades individuais, é na ação política dos cidadãos que está posta a garantia de sua real existência na democracia. 5 OS LIMITES DA APLICAÇÃO DA SANÇÃO FRENTE AOS FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Obedecer a lei que se prescreve a si mesmo é um ato de liberdade, o preço da liberdade é a eterna vigilância. Neste sentido, a teoria sistêmica do Direito interliga subsistemas, entre eles, o político, econômico, moral e jurídico dentro de um sistema social. Direito como sistema autopoiético, aberto e fechado, com uma dupla contingência, característica normativamente fechado, só uma norma pode modificar outra norma e cognitivamente aberto, recebe influência do ambiente. A sanção não é em hipótese alguma, um fim em si mesmo, e sim, o fundamento e a sua finalidade. Portanto, a finalidade da sanção que é a ressocialização do indivíduo (finalidade exterior), só atinge o seu ápice no que tange ao desenvolvimento pessoal e interpessoal na medida em que ocorre a verdadeira transformação interior. O Estado pode e tem competência para encarcerar o indivíduo, porém tem também o dever de libertá-lo interiormente, retirá-lo da prisão que gera á opressão interior, tendência ao vício delituoso. A pena e a teoria retributiva se baseiam na noção de merecimento, na idéia de liberdade da vontade humana; se há liberdade, há responsabilidade e culpabilidade, esta é ao mesmo tempo fundamento e limite da pena, neste sentido, só pode castigar o culpado e somente pode castigar-lhe em proporção a sua culpa e até onde chegue esta. Não obstante, o que é defendido por esta teoria, é de extrema importância que haja um juízo de ponderação entre justiça retributiva (culpabilidade) e mecanismos de integração da personalidade humana para assim, poder reintegrá-lo á sociedade. Mecanismos de integração ou reintegração não seriam avaliados exclusivamente pelo juiz singular e sim por uma equipe, na fase da execução penal, tais como: psicólogos, psiquiatras, educadores, pessoas que irão formá-lo profissionalmente e até espiritualmente, visto que, em muitos casos o que motivou o delito foram feridas da alma que precisam ser curadas. Surge, portanto, um problema, é irracional e até mesmo covarde, conceder a competência ao juiz de poder mensurar se o indivíduo está efetivamente pronto para viver em sociedade, exercendo sua liberdade, cumprindo leis pré estabelecidas em seu meio social, se ele não tem formação para tal, e se nem ao menos tem ferramentas para solucionar ou ao menos minimizar os motivos que levou a pessoa a cometer determinado delito. O consagrado autor, Ingo Wolfgang Sarlet (2009, p. 97), ao tomar a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, o Constituinte de 1988, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu expressamente que “é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.”[1] Noutros termos, diz-se que no momento em que a dignidade é guindada à condição de princípio constitucional estruturante e fundamento do Estado Democrático de Direito, é o Estado que passa a servir como instrumento para a garantia e promoção da dignidade das pessoas individual e coletivamente consideradas. O princípio da dignidade da pessoa humana sustenta e perpassa todos os direitos fundamentais que, em maior ou menor medida, podem ser considerados como concretizações ou exteriorizações suas. Ademais, ele desempenha função vital na revelação de novos direitos, não inscritos no texto constitucional, mas que poderão vir a ser evocados quando da necessidade de garantia da vida humana com dignidade. É necessário considerar, que o ser humano não é meramente o meio de produção, pelo qual a sociedade manipula conforme lhe apraz, mas sim a finalidade de todo o processo. A importância da base informacional para juízos avaliatórios se mostra de suma importância. Pagar o mal que o indivíduo fez com o bem, vendo no indivíduo uma possibilidade concreta de transformação e posterior reinserção social, traz conseqüências como o fomento da economia, diminuição dos gastos públicos com segurança, reestruturação do ambiente familiar, entre inúmeras outras conseqüências benéficas tanto para o indivíduo, “peça” fundamental, como para o próprio Estado. A palavra “dignidade” é empregada no sentido de atributo da pessoa humana, como um valor inerente a todo ser racional, independentemente da forma como se comporte. Segundo José Afonso da Silva (2006), é sob esse aspecto que a Constituição tutela a dignidade da pessoa humana, de modo que “(…) nem mesmo um comportamento indigno priva a pessoa dos direitos fundamentais que lhe são inerentes, ressalvada a incidência de penalidades constitucionalmente autorizadas.”[2] Convém destacar que o princípio em pauta não constitui tão-somente um limite para os Poderes Públicos, no sentido que devem se abster de atentar contra ele. Compreendido para além disso, o princípio traduz um norte para toda a conduta estatal, de modo que impõe ao Estado o dever de agir em prol da proteção ao livre desenvolvimento da personalidade humana, com o asseguramento de condições básicas para uma vida com dignidade. Maria Celina Bodin de Moraes (2003), num notável esforço de síntese, procedeu ao desdobramento jurídico do princípio da dignidade da pessoa humana em quatro postulados basilares: direito à igualdade, tutela da integridade psicofísica, direito à liberdade e princípio da solidariedade social.[3] O direito à igualdade compreenderia, segundo anota a autora, não apenas a isonomia formal, mas igualmente a material, forçando a atuação promocional do Estado no afã de corrigir desigualdades socioeconômicas que acabam por comprometer uma vida digna.[4] Ele teria, ademais, que ser articulado com o direito à diferença, de fundamental importância numa sociedade essencialmente multicultural como esta em que se vive. O direito à integridade psicofísica, por seu turno, além de aspectos negativos, como a vedação de práticas de tortura e de tratamentos degradantes, possui dimensões positivas, destinadas a assegurar o mínimo existencial digno. [5]Já o direito à liberdade, que decorre do reconhecimento da autonomia moral da pessoa humana, teria de ser contrabalanceado com deveres de solidariedade social, no sentido que vai do indivíduo para o coletivo. E, por derradeiro, o princípio constitucional da solidariedade, o qual identificar-se-ia “(…) com o conjunto de instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos, em uma sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou marginalizados”.[6] Dalmo de Abreu Dallari (1998), no mesmo norte, pondera com propriedade que: “Para ter direitos é indispensável que o ser humano seja reconhecido e tratado como pessoa, o que exige também respeito à sua dignidade. Nenhum homem deve ser humilhado ou escravizado por outro. A dignidade também se expressa no direito de ter um nome e ser conhecido e respeitado por esse nome. Também se expressa no direito à integridade física, sem agressões. A polícia que agride é contraditória, pois existe para proteger e fazer respeitar o direito. O direito à integridade física também passa pelas condições de vida, higiene e saúde e segurança, mas também pelo sofrimento psíquico. O direito a ser pessoa se estende às crianças ou aos trabalhadores, aos moradores de favelas, à eliminação de práticas discriminatórias. Uma ofensa comum é o ser tratado como suspeito sem motivo concreto, embora a Constituição preveja a “presunção de inocência”. Não há qualquer justificativa para que algumas pessoas sejam mais respeitadas do que outra”.[7] Consoante bem sintetiza Ingo Wolfgang Sarlet (2009): “O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a intimidade e identidade do indivíduo forem objeto de ingerências indevidas, onde sua igualdade relativamente aos demais não for garantida, bem como onde não houver limitação do poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta não passará de mero objeto de arbítrio e injustiças. A concepção do homem-objeto, como visto, constitui justamente a antítese da noção de dignidade da pessoa humana”.[8] In fine, é certo que a tutela da personalidade humana deve ser dotada de elasticidade, incidindo sobre todas as situações em que se deflagre alguma ameaça à sua dignidade, tipificada ou não pelo legislador. Todo e qualquer comportamento, comissivo ou omissivo, que acabe por atentar contra esta dignidade deve ser prontamente coibido pela ordem jurídica. Hodiernamente, não basta o Estado perguntar o que motivou o indivíduo a cometer determinado ilícito, mas também e primordialmente, o que fazer para solucionar ou minimizar os efeitos os problemas da personalidade humana, para que ele não venha a cometê-los novamente. No que concerne a imputabilidade e responsabilidade moral segundo a Escola Clássica, o homem é responsável porque é livre, seus atos lhe são imputáveis e é responsável moralmente por eles. Não obstante, o ser humano em múltiplas faces da realidade lida com a liberdade não necessariamente como um direito, mas sim como um encargo, porque é justamente em não saber como lidar com ela que se comete os maiores delitos. O direito a liberdade em seu aspecto formal, sempre será direito, porém no mundo factível, prima facie é gerado o direito á responsabilidade individual e em seu aspecto social; só após, pode-se falar em direito á liberdade. A versão da retribuição diz que a pena oferece aos “cidadãos virtuosos” a garantia de que não serão atacados impunemente. Diante desta forma de pensar, surge um questionamento quem garante aos “cidadãos virtuosos” a garantia de não serem atacados impunemente? A pena? Certamente não. A pena deve ser entendida como um lapso temporal necessário á plena estruturação/ reestruturação mental/ interior do indivíduo. Já que antes dos indivíduos pactuarem um contrato social com a sociedade, devem pactuar um contrato consigo mesmo. Segundo Maurice Cusson, Pourquoi punir? é defendido a idéia de que reconhecer a liberdade de que gozam os delinqüentes é reconhecer sua dignidade como seres humanos. Esta afirmação deve ser entendida á luz de princípios constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana, esta é determinada apartir do momento em que o indivíduo tem a possibilidade e a formação de fazer escolhas; a dignidade do “delinqüente” ou melhor cidadão infrator é ter a possibilidade de se transformar em um cidadão pleno, capaz de escolher seu próprio futuro. Talvez não pareça nenhum contrasenso afirmar que a agressividade do Direito Penal do Inimigo, concebido por Günter Jakobs (2009) na segunda metade da década de 1990, esteja vigente como nunca o fora antes. O Direito Penal do Cidadão, garantista, que observa todos os princípios fundamentais que lhe são pertinentes, parece ter se sucumbido diante de um direito despreocupado com tais princípios, que afasta a condição de cidadão do preso e o trata como se, de fato, inimigo do Estado fosse. Em que pese o princípio da dignidade da pessoa humana tenha sede constitucional, sendo, por conseguinte, considerado como um princípio expresso, não raro, percebe-se, em diversas situações, a sua violação pelo próprio Estado, de modo que aquele que deveria ser o maior responsável pela sua efetivação, acaba por se transformar em seu maior algoz. Luigi Ferrajoli parece compreender bem o que se passa: “A coisa mais difícil, além da elaboração teórica e normativa dos princípios, dos direitos e de suas garantias jurídicas, é, contudo, defender, atuar e desenvolver na prática o sistema das garantias. Esta não é mais uma questão jurídica, mas uma questão de fato, que diz respeito às condições externas nas quais evolui a vida do direito: com a lealdade institucional dos poderes públicos, com a maturidade democrática das forças políticas e sociais, com a sua disponibilidade para lutar pelos direitos, em uma palavra, com o sustento prático oferecido ao sistema normativo das garantias”.[9] CONCLUSÃO A Carta Magna brasileira é pródiga em velar por direitos de saúde, educação, moradia, lazer, alimentação, enfim, direitos mínimos, basilares e necessários para que desfrute o ser humano de uma condição de vida digna. No entanto, em maior ou menor grau, esses direitos são absolutamente negligenciados pelo Estado. E, talvez, um inequívoco exemplo dessa prática perniciosa decorra da realidade do sistema carcerário brasileiro. Indivíduos que foram condenados ao cumprimento de uma pena privativa de liberdade são afetados, diariamente, em sua dignidade, enfrentando problemas como os da superlotação carcerária, espancamentos, ausência de programas de reabilitação, dentre outros tantos que integram um vasto rol. A ressocialização do egresso constitui tarefa quase que impossível, haja vista que inexistem programas governamentais que promovam sua reinserção social, além do fato de a sociedade não perdoar aquele que foi condenado por ter praticado uma infração penal.[10] Com efeito, a situação atual do sistema carcerário brasileiro se apresenta como um relevante e complexo problema social contemporâneo, para o qual não se divisa solução a curto prazo. Com a afirmação definitiva, no século XIX, da pena privativa de liberdade como cerne do sistema penal hodierno, ocorreu o crescimento avassalador do número de criminosos, sem a correspondente criação de estabelecimentos prisionais suficientes e adequados ao trato de tais indivíduos. Em 1890, o Código Penal já previa que presos com bom comportamento, após o cumprimento de parte da pena, poderiam ser transferidos para presídios agrícolas que, atualmente, são apenas trinta e sete, divididos em agrícolas e industriais, sendo que alguns Estados sequer mantêm presídios deste tipo[11]. Já no ano de 1935, o Código Penitenciário da República propunha que, além de cumprir a pena, o sistema também deveria trabalhar pela recuperação do detento. Em 2012, a reabilitação dos presos ainda é uma utopia, com o retorno da grande maioria dos detentos para as prisões das quais saíram, evidenciando que, no Brasil, cadeia não é capaz de reabilitar. Ocorre que tamanha ineficiência não cuida de fenômeno recente, seja no Brasil ou em qualquer parte do globo. Michel Foucault, depois de assinalar que a prisão sempre foi denunciada como “o grande fracasso da justiça penal”, recorda falhas do sistema penitenciário, as quais são perfeitamente delineadas no sistema brasileiro: “[…] a) as prisões não diminuem a taxa de criminalidade; b) provoca a reincidência; c) não pode deixar de fabricar delinqüentes, mesmo porque lhe são inerentes o arbítrio, a corrupção, o medo, a incapacidade dos vigilantes e a exploração (dentro dela nascem e se desenvolvem as carreiras criminais); c) favorece a organização de um meio de delinqüentes, solidários entre si, hierarquizados, prontos para todas as cumplicidades futuras; d) as condições dadas aos detentos libertados condenam-nos fatalmente à reincidência; e) a prisão fabrica indiretamente delinqüentes, ao fazer cair na miséria a família do detento”.[12] Constantemente, se vislumbra um jogo de atribuições de grande parcela das autoridades competentes e responsáveis pelo melhoramento do sistema prisional. A despeito de o código penitenciário brasileiro adotar um sistema que protege os condenados de situações degradantes e preveja a concessão de favores graduais, tais avanços teóricos do direito não se traduziram na realidade penitenciária brasileira. Como é cediço, as penas de reclusão e de detenção buscam a ressocialização do indivíduo, no escopo de que ele se emende e conquiste condições de ser reinserido na sociedade, evitando, assim, a reincidência. A fim de concretizar tal desiderato, é necessário que a permanência no estabelecimento carcerário seja adequada a esta reabilitação, o que se torna inviável, mormente as condições políticas, econômicas, sociais e culturais do país, que tanto obstam à transmissão de recursos para as instituições penitenciárias. No que diz respeito a coação punitiva, como a própria história atesta, nunca foi, e nunca será a melhor alternativa para responder aos anseios da sociedade relativo á segurança e sim políticas que afirmem e se garantam a transformação da personalidade humana. O sistema penitenciário tem por função á plena realização de duas dimensões: de um lado, um conhecimento de tipo regulatório; de outro, um conhecimento de tipo emancipatório. O conhecimento regulatório é a assimilação do “modus operandi”, ou seja, aprender como o mundo funciona a partir daquilo que está dado. Já o conhecimento emancipatório, por sua vez, tem o encargo de incorporar o anterior, mas ao mesmo tempo pensar sua superação, sendo capaz de imaginar formas alternativas de construção da sociabilidade humana. O que se constata em parte significativa é uma concepção deturpada de liberdade e uma visão de mundo que, apesar de pretender produzir individualidades, produz seres individualistas. O sistema prisional deve ser um espaço de novos estímulos, novos saberes e de outros experimentos. Renunciar a isso é legitimar o falso discurso da liberdade. Tal discurso parte de uma concepção totalmente rasteira do que é liberdade. A liberdade maior consiste na capacidade de dizer não a determinadas pulsões. Se faço tudo o que quero, não sou livre, sou escravo de mim mesmo. Contudo, se sou capaz de identificar em mim determinadas vontades, que podem ser produto dos mais diferentes estímulos recebidos ao longo da vida, e ao mesmo tempo sou capaz de, autonomamente, dizer não a elas em nome de algo maior, aí, sim, há o exercício pleno da liberdade. De fato, ás vezes uma pessoa pode ter uma razão muito forte para conquistar o direito a uma opção precisamente com o propósito de rejeitá-la. Por exemplo, Mahatma Gandhi jejuou como forma de protesto político contra o Raj, ele foi livre ao privar-se de alimentos, mobilizou consciências e apontou novos caminhos. Mas, senhor de si, colocou em segundo plano, para algo maior, exercendo assim, seu direito á liberdade. Quando o Estado se furta ao dever de apresentar novos estímulos, estão deixando de construir seres mais preparados para o enfrentamento do mundo real e deixando de formar cidadãos capazes de olhar e enxergar o que está á sua volta a fim de pensar formas de mudança. Contudo, apresentar novos estímulos exige uma nova postura. Exige, sim, carinho como ponto de partida para o relacionamento com todos os seres humanos, mas exige também, acima de tudo, coragem para o enfrentamento. Mas, em um mundo dominado pela lógica de mercado, enfrentar pode significar uma série de perdas que poucos estão dispostos, de novo, a enfrentar. E assim, políticas públicas de caráter emancipatório, acaba sendo algo fictício, pensado somente por aqueles tidos como “desencaixados” ou talvez rígidos que não são fomentados pelo próprio sistema.
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Crescimento econômico e autoritarismo
O objetivo deste artigo é criticar a literatura que associa maior crescimento a regimes ditatoriais, baseada quase sempre na retórica de que “o bolo cresce e depois podemos dividi-lo”, em oposição ao fato de que esse crescimento muitas vezes se faz às expensas de violações aos direitos humanos. O hoje já tradicional estudo de John Helliwell, economista de Harvard, propôs, em 1992, com base em aparentes evidências estatísticas, que países com regimes ditatoriais apresentavam maiores índices de crescimento que países com regimes democráticos. A este trabalho seminal seguiu-se uma série de outros estudos que conformam uma literatura volumosa.[i] Ainda antes dele, Przeworski também já propunha reflexões nesse mesmo sentido.[ii] A hipótese que este trabalho pretende confirmar é a de que a retórica econômica e de dados estatísticos mascara uma troca ou “trade-off” entre crescimento e democracia herdeira de uma estrutura jurídico-econômica inadequada para abarcar a dimensão humana da cidadania. Embora esta literatura seja inadequada para lidar com a inteireza do fenômeno dos direitos humanos, ela persiste em redutos argumentativos da academia e, por vezes, das lideranças políticas de todo o mundo, abrindo os flancos da proteção aos Direitos Humanos.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO – A RETÓRICA DO CRESCIMENTO É delicada a relação entre crescimento econômico e democracia. A literatura acadêmica sobre o tema demonstra três tendências em antagonismo. A primeira delas sustenta que a democracia é capaz de promover crescimento econômico estimulando, ao mesmo tempo, a redistribuição de renda; a segunda, que defende que a aceleração de crescimento demanda a implantação de reformas econômicas duras, o que só poderia ser feito em um regime autoritário; e a terceira, que sustenta não haver nenhuma relação entre democracia e crescimento. A década de 1960 encontrou o Brasil num nível de renda baixo e de grande desigualdade. O regime ainda democrático, através da implementação do chamado Plano de Metas (1957-1961) do governo Kubitschek, deu azo a um período de grande crescimento econômico. O plano baseava-se na rápida instalação de um conjunto amplo e diversificado de setores industriais, modificando radicalmente a estrutura produtiva do país. Isso foi "realizado por meio da expansão dos investimentos das empresas estatais (energia elétrica, petróleo, rodovias, portos etc.), das companhias de capital privado nacional (autopeças, têxteis, alimentícias etc.) e das corporações multinacionais (setor automobilístico, farmacêutico, metal-mecânico). Os investimentos das multinacionais concentraram-se, na década de 1950, em setores voltados para o mercado interno e acabaram tendo efeito líquido negativo em termos de geração de divisas. A capacidade de importar tornou-se dependente do dinamismo das exportações concentradas em commodities minerais e agrícolas, e ainda enfrentou o protecionismo dos países centrais."[iii] Findo o ano de 1961, esse crescimento diminuiu, acrescido de significativo aumento da inflação. Com a ascensão da autocracia militar ao poder em 1964, seguiu-se um período de novo crescimento econômico que durou até fins de 1967, acompanhado, contudo, de alargamento da desigualdade social e da desigualdade na distribuição de renda. A assunção do poder pelos militares fez com que a economia nacional se recuperasse e passasse a ter crescimento econômico em taxas notáveis de cerca de 9% ao ano. Ocorre, contudo, que, conforme assevera O'Donnell e Schmitter[iv], "[…] os regimes autoritários deixam, tipicamente, um difícil legado econômico. Eles frequentemente se comportam como agentes de transnacionalização, abrindo a economia ao comércio e ao investimento estrangeiros, aumentando-lhe a vulnerabilidade a impactos gerados externamente e hipotecando pesadamente os futuros ganhos aos credores externos. Ocorre nesses regimes igualmente ter aumentado o escopo da intervenção tecnocrática, através do planejamento governamental, controles monetários e/ou criação de empresas estatais. Os projetos faraônicos de desenvolvimento, a elevação das despesas militares, o arrocho salarial, a rígida adesão a doutrinas econômicas da moda e/ou as custosas aventuras externas são outras facetas desse legado. Entretanto, independentemente da magnitude das mudanças estruturais ou da gravidade das circunstâncias que caracterizam cada transição, é virtualmente inconcebível que os responsáveis pela transição sejam capazes de adiar a tomada de importantes decisões de ordem social e econômica." O golpe militar de 1964 se deu sobretudo sob a justificativa de evitar que o país fosse tomado pela “onda comunista” que então se “alastrava” pelo mundo, aliada ao anseio de promover a estabilização econômica nacional, até então dificultada pelo acúmulo de dificuldades criadas décadas antes. Afastado o risco do comunismo e recuperada a economia, seu crescimento atinge ápice em 1972, legando como herança na transição democrática uma grande desigualdade de renda e uma inflação novamente galopante. 2. O ESGARÇAMENTO DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL SOB O ARGUMENTO DA RETÓRICA ECONÔMICA Coincidentemente, em 1972 iniciaram-se as violações aos direitos humanos durante a chamada Guerrilha do Araguaia pelo regime autocrático militar, que com isso deixou também um difícil legado de desrespeito aos direitos humanos. Teria este sido um preço a pagar-se pela estabilidade ou pelo crescimento econômico? Sabbadini[v] propõe, em estudo breve, que "o impacto de democratizações sobre o crescimento econômico depende da desigualdade de renda dos países. Para países com baixa desigualdade de renda, democratizações (ou melhoras nas instituições democráticas) estão positivamente relacionadas à taxa de crescimento econômico. Na pior hipótese, nestas sociedades, uma democratização não leva a uma queda da taxa de crescimento. Porém, em economias marcadas pela elevada desigualdade de renda (do quartil superior da nossa amostra, com índice de Gini acima de 45 pontos), a democratização tem  uma correlação negativa com o crescimento econômico. Esse achado é consistente a visão […] de que a democracia, ao mesmo tempo em que melhora a segurança dos direitos de propriedade ao restringir ações do governo através de um mecanismo de checks and balances, também permite maiores níveis de distribuição de renda, podendo assim inibir o crescimento." Sabbadini conclui que "a cooperação entre os agentes é maior quando a alteração que a torna possível é escolhida democraticamente do que quanto é imposta." Assim, os estudos têm sugerido uma relação entre democracia, crescimento econômico e distribuição de renda. Existe uma evidente relação de consequência entre o regime ditatorial militar e o aumento às violações dos direitos humanos por parte do Estado brasileiro. Da mesma forma como o regime autocrático fez implementar no Brasil um crescimento econômico, implementou também desnecessariamente o incremento das violações aos direitos humanos sem que isso tivesse realmente sido uma necessidade para evitar-se a estabilização social violenta e forçada que um eventual regime político comunista – diga-se, en passant, nocivo, já que também autoritário – fatalmente implementaria, considerando que tais regimes instituem, pela sua própria natureza, uma distribuição de renda igualitária em critérios quase absolutos. A observação da história permite perceber que baixos índices de civilidade, republicanismo e autossuficiência conduziram várias sociedades a governos autoritários, e que o aumento desses traços conduzem a regimes democráticos, onde o Estado é levado a menor intervenção, e onde a desigualdade na distribuição da renda é mitigada pelas condições de empreendimento do próprio povo. No comunismo, ao revés, essa desigualdade na distribuição de renda é dada não como uma conquista e sim de forma artificial, como uma outorga do Estado. Vê-se, pois, que a distribuição da renda é fator essencial na composição do crescimento econômico e no desenvolvimento social, na medida em que, quanto melhor a distribuição de renda, maior a circulação da riqueza. Cabe analisarmos se o preço dessa distribuição é maior em Estados em que uma reestruturação econômica é precedida de democracia ou se é maior em Estados onde tal reestruturação é imposta por um regime autoritário. Diante da censura, das perseguições, dos desaparecimentos forçados e das mortes, vê-se que a erradicação dos direitos civis e políticos da população foi um alto preço a pagar pelas reformas econômicas que, afinal, resultaram em novo declínio do crescimento econômico e elevação astronômica dos níveis inflacionários antes mesmo de a transição para a democracia haver se operado. Ademais, é de considerar-se que o "milagre econômico" operado pelos militares foi possivelmente uma continuidade temporária do plano dos "50 anos em 5" do governo Kubitschek. Portanto, o panorama brasileiro revela que houve o período das reformas econômicas se iniciou sob o pálio de um regime democrático, e que a assunção, reestruturação e consecução dessas reformas pelo regime autoritário resultou em um crescimento temporário, seguido de uma forte desaceleração e de uma recessão, além de ter proporcionado aumento da desigualdade na distribuição de renda em razão do "pleno emprego" e do êxodo rural. Assim, no caso brasileiro, se não se pode concluir que houve bons resultados pela predecessão da democracia às reformas econômicas, também não se pode dizer que o governo autocrático tenha favorecido a realização de reformas robustas e nem na redução das desigualdades de renda, acrescida do elevado custo humano que implicou na violação de direitos civis e políticos dos cidadãos. A realidade brasileira do período 1960-1980 parece, portanto, não se enquadrar em nenhum dos modelos analisados por Sabbadini. As causas dessa violação foram, portanto, não só a herança oligárquica e opressora herdada do período colonial português como também a ausência da formação de uma cultura de educação econômica na população em geral que lhe permitisse atuar como agente colaboradora ativa de um processo de reconstrução econômica nacional. Não fosse isso, quiçá a história teria sido diferente, e não teria havido a violação aos direitos humanos por parte dos militares. Qual a maior tragédia? A econômica, a social ou a cultural? Qual o maior preço a pagar. Do mesmo modo, não se pode conceber uma reforma política ou uma transição pacífica que não proteja os direitos humanos. Nesse ponto, vemos que a Lei de Anistia outorgada pelo regime militar foi inaceitável, pois desconsiderou a violação perpetrada aos direitos dos que, no exercício de direitos políticos, foram mortos ou violentados ao discordarem do regime então em vigor. Observando a experiência sob uma perspectiva estruturalista, pode-se imaginar o envolvimento bem sucedido das instituições democráticas na implementação de reformas políticas mesmo em países com muita desigualdade social e de renda. Ainda que falha, ainda que mais demorada no tempo, ainda que de processo de maturação mais longo, democracias são meios de cultura mais eficientes para reformas econômicas duradouras do que governos autoritários, e nada justifica que, em condições normais e em tempo de paz, o cidadão tenha que perder seus direitos civis e políticos em nome da economia de um país em prol de reformas econômicas. CONCLUSÃO Em março de 2013, em cerimônia comemorativa aos 35 anos da Embrapa, o então Presidente Luís Inácio Lula da Silva elogiou os governos Geisel e Médici como aqueles que teriam promovido um grande crescimento econômico ao Brasil. Reprodução de sua manifestação é a de que “o Brasil não ganhava os espaços internacionais que o Brasil tem que ganhar (…) Pois é com muito orgulho que às vezes as pessoas falam que o Lula elogia os governos Geisel e Médici. Pois bem (…) eu agora afirmo que um dos presidentes que permitiu que a gente vivesse um dos momentos mais críticos do Brasil, o Presidente Médici, foi o homem que assinou a Embrapa e foi o homem que assinou Itaipu (…)”[vi] O fato de um presidente da República proveniente de classe econômica pobre, cuja história relata violações de direitos humanos decorrentes tanto de sua origem nordestina, quanto de sua pouca escolaridade e trabalho nas atividades sindicais é a prova cabal de que o mito de que o crescimento econômico se associa aos regimes não-democráticos está difusa e perigosamente espalhado pela sociedade brasileira, até mesmo nos mais altos cargos.  O objetivo deste artigo, como se pretendeu demonstrar, foi o de atacar a retórica econômica como critério que mina a supremacia dos direitos humanos. Sua inabalável conclusão é a de que os direitos humanos, sem qualquer ressalva ou justificativa, podem ser restringidos, ainda que o argumento econômico prometa tentadoras benesses. Qualquer proposta de transação entre crescimento e democracia se configura em uma tentativa de limitar os direitos humanos. O argumento que não pode prosperar é o de que os direitos humanos podem receber algum tipo de limitação, por mais benéfico, confortável ou “eficiente” que isso possa ser ao implementar melhorias individuais, sociais ou econômicas. Qualquer nova estrutura econômica e de poder que venha a ser erigida para reformas econômicas e políticas deve necessariamente proteger os direitos humanos em seus processos.
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Lei Maria da Penha e o Grupo Sermais: mecanismos de prevenção da violência e ressocialização dos agressores de violência doméstica e familiar contra a mulher
O presente estudo tem por finalidade analisar os métodos utilizados e os resultados alcançados pelo Serviço de Reflexão, Reeducação e Responsabilização do Autor de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Universidade Estadual de Ponta Grossa, o intitulado Grupo Sermais. Traçaremos um breve histórico dos direitos das mulheres, com a consolidação dos direitos humanos após as grandes guerras mundiais; e dos tratados que marcaram a internacionalização dos direitos das mulheres, dos quais o Brasil é signatário. Em agosto de 2006, foi sancionada a Lei Maria da Penha, que prevê de mecanismos de prevenção da violência, dispondo sobre a criação de centros de educação e de reabilitação para os agressores, cujo objetivo é buscar o questionamento das relações de gênero que vem legitimando a violência contra a mulher, por meio de atividades educativas, reflexivas e pedagógicas[1].
Direitos Humanos
Introdução: A lei 11.340/06, mais conhecida como Maria da Penha, não surgiu do acaso. O direito das mulheres foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro após várias recomendações pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, que, após ter recebido denúncia em razão da morosidade no caso de Maria da Penha, condenou internacionalmente o Brasil, solicitando a adoção de várias medidas para eliminar a tolerância do estado brasileiro perante a violência doméstica e família contra a mulher. A lei 11.340/06 dispõe sobre a criação de serviços de ressocialização e reeducação dos agressores de violência doméstica, possibilitando ao juiz determinar o comparecimento obrigatório do condenado a tais serviços. Porém, ainda são poucos os municípios que contam com esses programas, que são de extrema importância para buscar o questionamento das relações de gênero que vem legitimando a violência contra a mulher. A Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) – que já contava o Núcleo de Estudos da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – desenvolveu o Grupo Sermais, dispondo de uma equipe multidisciplinar, das áreas do direito, serviço social e psicologia. O projeto está de acordo com a proposta para implementação deste tipo de serviço, definida pela Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República, onde aborda que, por meio de atividades educativas, reflexivas e pedagógicas, tais serviços devem buscar o questionamento das relações de gênero que vem legitimando a violência contra a mulher. Devem produzir, portanto, um efeito ressocializador no condenado, superando o estigma de que a função punitiva estatal, quando aplicada isoladamente, não ajuda na prevenção da violência. 1. Objetivos e Técnicas de Pesquisa:     A partir de estudos bibliográficos, o presente artigo tem por finalidade traçar um breve histórico internacional e nacional sobre os direitos das mulheres, passando pela consolidação dos direitos humanos, que preconizam a igualdade entre homens e mulheres, bem como pelos tratados e convenções sobre os direitos humanos das mulheres que o Brasil é signatário. Com análise da lei Maria da Penha, sancionada em 2006, identificar os mecanismos dispostos pela lei, no que tange a ressocialização e responsabilização dos agressores e a prevenção da violência. Por fim, a partir da experiência prática do Serviço de Reflexão, Reeducação e Responsabilização do Autor de Violência, o entitulado Grupo Sermais – um projeto da Universidade Estadual de Ponta Grossa – analisar os métodos utilizados e resultados obtidos com o primeiro grupo, que finalizou suas atividades em junho de 2013. 2. Os Direitos Humanos e o Reconhecimento dos Direitos das Mulheres: Desde as barbáries ocorridas com as grandes guerras, o mundo está muito mais preocupado com os direitos inerentes de cada ser humano. Os direitos humanos consolidaram-se com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A partir de então, tornou-se incansável a busca de legislações que promovessem, de forma efetiva, a proteção e a promoção da igualdade de homens e mulheres, eliminando qualquer forma de discriminação. O Brasil é signatário de duas convenções que marcaram a internacionalização dos direitos das mulheres, quais sejam: a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1979), que no seu artigo 1º afirma que “Para fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher" significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo”. E a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção Belém do Pará – 1994), que em seu preâmbulo consta que é indispensável para o desenvolvimento individual, social e para plena participação da mulher em todas as esferas da vida, que seja eliminada toda e qualquer violência de gênero. Mas foi somente com repercussão do caso da Maria da Penha – que durante seu casamento foi repetidamente agredida e intimidada, culminando em duas tentativas de homicídio, deixando-a por fim tetraplégica – que a violência doméstica ganhou atenção do Estado. Devido a morosidade e os diversos erros no processo de Maria da Penha, o Centro para a Justiça e o Direito Internacional – CEJIL e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM denunciaram o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que, em 2001, recomendou ao Brasil que elimine a tolerância do Estado perante a violência contra a mulher adotando medidas nacionais e responsabilizou o Brasil por negligência e omissão sobre esse aspecto. A violência de gênero é um fenômeno complexo, que decorre de  questões históricas, e profundamente arraigadas na sociedade, ligadas ao patriarcado. Finalmente, em agosto de 2006, em cumprimento às convenções e tratados internacionais do qual o Brasil é signatário, foi sancionada a Lei 11.340/06, a Lei Maria da Penha. Como preleciona Maria Berenice Dias (2007, p. 21), que critica o tratamento dado pelo Brasil a essas questões, “Até o advento da Lei Maria da Penha, a violência domestica não mereceu a devida atenção, nem da sociedade, nem do legislador e muito menos do judiciário. Como eram situações que ocorriam no interior do ‘lar, doce lar’, ninguém interferia. Afinal, ‘em briga de marido e mulher ninguém põe a colher’!” A lei “pretende atender recomendações internacionais, objetivando resposta global e articulada contra a violência doméstica e familiar que se exerce sobre a mulher […] sempre em busca do reforço ao respeito à igualdade e dignidade da mulher” (LAVORENTI, 2009, p. 231). Define ainda, o que é a violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da orientação sexual, estabelecendo as suas formas, como sendo a física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Tira do Juizado Especial Criminal a competência para julgar os crimes de violência doméstica – pois este julga os crimes de menor potencial ofensivo e prevê penas alternativas – e passa para o Juizado de Violência Doméstica contra a Mulher que, enquanto não for criado, será substituído pelas Varas Criminais.   3. Os Mecanismos de Prevenção da Violência Doméstica e Reeducação dos Agressores: Ressalta-se que a lei não trata apenas de meios para reprimir e punir os agressores, mas também de meios de prevenção, como no seu artigo 35, inciso V, que dispõe sobre a criação de centros de educação e de reabilitação para os agressores, reconhecendo, assim, que o trabalho reflexivo responsabilizante dos homens pode coibir novos casos de violência, bem como o artigo 45, que modifica o disposto no artigo 152 da Lei de Execução Penal, passando a prever que o juiz, nos casos de violência doméstica e familiar, poderá determinar, como uma medida restritiva de direito, o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação. De acordo com Maria Berenice Dias (2007, p.139) “A imposição de medida restritiva de direitos, que leve o agressor a conscientizar-se de que é indevido seu agir, é a melhor maneira de enfrentar a violência doméstica. Só deste modo se poderá dar um basta às diversas formas de violência cometidas contra a mulher de forma tão reiterada e há tanto tempo. Ninguém duvida que a violência doméstica tem causas culturais, decorrentes de uma sociedade que sempre proclamou a superioridade masculina, assegurando ao homem o direito correcional sobre a mulher e os filhos.” A Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República, na sua Proposta para Implementação dos Serviços de Responsabilização dos Agressores, aborda que tais serviços previstos nos artigos supracitados devem buscar o “questionamento das relações de gênero que têm legitimado as desigualdades sociais e a violência contra as mulheres, por meio de atividades educativas, reflexivas e pedagógicas vinculadas à responsabilização dos agressores”, contribuindo, assim, para a responsabilização e conscientização sobre as suas atitudes como sendo uma violação dos direitos humanos das mulheres. Sendo assim, tais programas devem produzir um efeito ressoacializador no condenado, superando o estigma de que a função punitiva estatal, quando aplicada isoladamente, não ajuda na prevenção da violência, nem mesmo na compreensão da situação pelo agressor, não abrangendo a relação que desencadeou tal ato (MEDRADO, 2008, p. 83). Infelizmente são poucos as cidades do Brasil que possuem o serviço de reabilitação dos autores de violência doméstica e familiar contra a mulher que a lei Maria da Penha dispõe. 4. O Serviço de Reflexão, Reeducação e Responsabilização do Autor de Violência Doméstica e Familiar: A Universidade Estadual de Ponta Grossa, no Paraná, já contava com o Núcleo de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (NEVICOM), desde 2010, que tem por objetivo a divulgação da Lei Maria da Penha, dando conhecimento às mulheres sobre a forma de acesso a justica. A partir desse trabalho e da constatação de que as punições penais não impedem a ocorrência de novas violações, percebeu-se a necessidade da extenção do trabalho para com os autores de violência doméstica e familiar contra a mulher. Foi desenvolvido, então, o Grupo Sermais, um projeto voltado para o atendimento dos autores da violência, com caráter pedagógico, onde os autores são encaminhados ao serviço por determinação judicial, sendo, portanto, obrigatório. O principal objetivo do grupo é a contribuição para a descontrução do estereótipo de gênero e a contrução de uma masculinidade, fazendo com que os autores reflitam que o seu comportamento transgressor constituiu uma violação dos direitos humanos, a partir da realização de atividades educativas e pedagógicas, que, numa perspectiva humanista, levem os participantes do grupo mudarem o seu comportamento transgressor. Os dados coletados nas atividades realizadas, são organizados e encaminhados aos órgãos públicos para a formulação de políticas de atendimento às mulheres vitimizadas. O primeiro grupo iniciou o trabalho com a participação de quatorze (14) autores de violência, e concluiu, em junho de 2013, com nove (09) homens. Toda condução do trabalho foi feita  por um Psicólogo e um Professor do Curso de Direito, embora durante o desenvolvimento do projeto ocorreu a participação de um médico e um advogado  criminalista. Conta ainda com uma equipe de apoio multidisciplinar, das áreas do direito, serviço social e psicologia. O trabalho se realizou através de reuniões semanais, com duração de duas (02) horas cada. Não são aceitos no grupo, os reincidentes, os autores de violência sexual, os autores de tentativa de femicídio, os autores de lesão corporal grave, os dependênctes de substâncias psicoativas, os portadores de transtoros psiquiátricos e os menores de 18 anos. Diversos temas foram abordados nos encontros, tais como: Desde o primeiro encontro, os participantes demonstraram grande interesse na participação e aprendizado, principalmente foram levantadas muitas dúvidas sobre a Lei Maria da Penha, em como ela funciona, o que ela prevê, e a impressão que eles tinham de que as leis favoreciam muito as mulheres e prejudicavam os homens. No terceiro encontro, então, foi chamado um professor de direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa para abordar essas questões. A partir de questionamentos levantados em aula, surgiu a questão da violência aprendida, isto é, foi constatado que muitos dos homens agressores também foram vítimas de violência quando crianças ou presenciaram o pai agredindo a mãe, tendendo, assim, para a reprodução desse comportamento violento e mostrando grande dificuldade para reconhecerem seus comportamentos transgressores. Como podemos observar do relato de um dos integrantes do grupo: “Meu pai altas vezes chegava em casa bêbado e minha mãe apanhava na minha frente, e meu pai muitas vezes me deu um aoio por eu brigar em escola. Disse, nunca traga desaforo pra dentro de casa” (SIC) Muitos deles se viam como vítimas da situação, e achavam que violência contra a mulher é somente aquela que deixava marcas visíveis no seu corpo: “Eu na verdade não era para ter sido Maria da Penha, porque foi só uma discussão que aconteceu sabe. Ela me deu um tapa na cara e eu não aguentei e dei um empurrão nela. Ela não ficou com hematoma nenhum, nada! (SIC)” Houve uma melhora no autocontrole dos autores. Um autor mencionou que “após iniciar o grupo tive melhoras em minhas atitudes e na forma de pensar e agir”. (SIC). Os integrantes relataram que quando compareceram na delegacia, o delegado não teve interesse em ouvir suas opiniões e motivos, enquanto no grupo lhes é proporcionado esse diferencial, através do diálogo, do conhecimento, da troca de experiência que eles obtiveram durante o curso. No último encontro, foi realizado um questionário com todos os participantes para analisar como foi para eles a experiência de participação no grupo, como se sentiram, o que acharam do atendimento, dos temas abordados, entre outros. Para todos houve uma melhora após o curso, como podemos observar da tabela abaixo: Foi possível perceber, nitidamente, a evolução que eles obtiveram, analisando, por exemplo, a resposta de um autor sobre a questão se ele se sentia vítima da situação: “No início me achava vítima sim, mas minha visão era do que eu passava convivendo com a parceira, mas hoje eu vi que realmente não deveria ter chegado ao ponto que chegou, deveria ter tomado uma ação antes da “coisa piorar”, vendo por este lado ela foi a vítima de minha intolerância.” Considerações Finais: É visívelmente necessário que, além dos mecanismos repressivos estatais, possamos contar com um trabalho que promova a igualdade de gênero. Conforme Muszkat (2011) o homem é membro de uma família, sendo parte ativa e operante de um sistema vivo de operações afetivas, sendo assim, simplismente privá-lo de tal convívio – através de penas privativas de liberdade, por exemplo – impede que esse sistema familiar reflita de modo mais global sobre seu funcionamento. É necessário, portanto, investir no enfrentamento da violência, na proteção das mulheres vitimizadas, e trabalhar com os autores dessa violência, para que possa haver uma mudança efetiva no seu comportamento. Assim, conforme verificado na prática, o Nevicom, através do Grupo Sermais, como um agente social, tem o papel de transmitir para esses homens, conhecimentos e valores que favoreçam a reflexão sobre, promovendo, assim, a educação e a responsabilização dos mesmos e, principalmente, prevenindo a ocorrência de mais casos de violência doméstica contra a mulher.
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Anistia direito ou dever: o caso Araguaia
O estudo em pauta trata da anistia em especial no caso da Guerrilha do Araguaia, ocorrida no período do golpe militar de 1964, buscando demonstrar a realidade, eficácia e validade da Lei nº 6.683/79. E, tem como finalidade demonstrar as fases da Ditadura Militar, passando pela evolução constitucional até chegar à democracia, analisa a responsabilidade do Estado ante os crimes cometidos pelos agentes estatais, conceituando o instituto da anistia a fim de esclarecer sua validade e a proporção de seu alcance e efeitos perante os opressores e oprimidos. Foram apresentadas as decisões tomadas pelo governo brasileiro em relação aos fatos e crimes ocorridos principalmente na Guerrilha do Araguaia, bem como a responsabilidade da República Federativa do Brasil perante a Comissão Interamericana e a Corte Interamericana de Direitos Humanos por infringir os preceitos legais da Convenção Americana. Contudo, as determinações dos órgãos internacionais não foram cumpridas pelo país gerando reflexo na comunidade internacional.
Direitos Humanos
1 INTRODUÇÃO Na década de sessenta, o Brasil sofreu a maior e mais traumática mudança de todos os tempos, a chamada ditadura militar. Para os militares era necessária uma mudança radical, pois alegavam que o país viveria em constante “revolução” interna caso isso não acontecesse. Os militares tomaram o poder e mudaram o regime político do Brasil e, este regime era comandado pela mais alta cúpula militar e durou vinte e um anos. Foram criados Atos institucionais e, o mais rigoroso foi o Ato Institucional nº 5, criado em 1968 que suspendeu a Constituição de 1946, dissolveu o Congresso Brasileiro e criou um Código de Processo Penal Militar, a partir daí os direitos políticos, sociais e individuais foram gradativamente sendo suprimidos. Durante estes anos, para conseguir seus objetivos, os militares praticavam crimes como tortura, homicídio, estupro entre muitos outros. Entretanto, eles não eram punidos, pois usavam do poder estatal para controlar a nação através de leis criadas por eles mesmos, como Código de Processo Penal Militar, a fim de encobrir seus crimes, uma vez que podiam prender os cidadãos sem ao menos um julgamento justo e, quando as pessoas eram presas em muitos casos não foi registrada a prisão. A ditadura militar chegou ao fim e, àqueles que cometeram crimes durante este período não sofreram nenhum tipo de sanção, pois com a criação da Lei nº 6.683/79 todos foram anistiados, pois seus efeitos foram bilaterais. Há grande divergência doutrinária a respeito da abrangência da lei supramencionada, uma vez que a Lei da Anistia não especifica se este benefício será somente para aqueles que sofreram repressão política ou também para aqueles que praticaram a repressão política, levando a uma interpretação ampla. Ademais, o Estado brasileiro é responsável pelos atos ilícitos cometidos, uma vez que foram praticados por seus agentes agindo em nome do Estado. Pode-se afirmar que o agente do Estado realiza as tarefas estatais, representa a própria vontade estatal, baseado no princípio da legalidade. Portanto, o Estado deve responder pelas ilicitudes praticadas pelos agentes que agiram de forma cruel em nome da República Federativa do Brasil. A Ordem dos Advogados do Brasil peticionou ao STF uma Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a fim de esclarecer a abrangência e a validade do artigo 1º da Lei de Anistia, entretanto o STF alegou não poder interferir em um acordo elaborado entre o Estado e o povo, pois a sua interpretação deve ser histórica e, ainda, que a revisão da Lei de Anistia deve ser feita por lei e não cabe ao STF legislar. Para que houvesse punição dos repressores estatais foi necessário que os familiares e representantes dos desaparecidos políticos do Araguaia recorressem à Comissão Interamericana de Direitos Humanos para encontrar os corpos desaparecidos e verem seus direitos resguardados. Em março de 2009, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos demandou à Corte Interamericana de Direitos Humanos contra a República Federativa do Brasil por não cumprir as determinações impostas pela Comissão e, infringir gravemente os Direitos Humanos constantes na Convenção Americana de Direitos Humanos. Diante de tantas discussões a respeito do tema, aqueles que foram vítimas da crueldade militar clamam pela sua punição e que eles sejam excluídos da Lei de Anistia. Partindo do método dedutivo, a pesquisa buscará respaldo nas literaturas existentes sobre o tema, elaborando fichamento das obras lidas em autores como: Lauro Joppert Swensson Junior (2007); Durbens Martins Nascimento (2000), Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2009), dentre outros. Serão utilizados documentos legais: a Constituição Federal de 1988 – CF/88, a Lei nº 6.683/79, a sentença dada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund e análise jurisprudencial. No primeiro capítulo o trabalho abordará as fases ditatoriais, traçando a evolução constitucional e democrática do Brasil a fim de analisar e conhecer o estopim causador da Ditadura Militar, e a responsabilidade do Estado perante os ilícitos cometidos pelos agentes estatais. No segundo capítulo tratará do conceito de anistia em especial pelo ocorrido na Guerrilha do Araguaia na época da Ditadura Militar, enfatizando a problemática enfrentada pelos juristas em definir se os militares usaram do poder estatal para cometer crimes, e ainda, abordará a responsabilidade do Estado perante os órgãos Internacionais, bem como apresentará as decisões tomadas pelo governo, levando em consideração que este escolheu não punir os crimes relacionados com a Ditadura Militar quando concedeu a anistia não somente aos que foram exilados ou presos, mas também para aqueles que fizeram repressão estatal. Por fim, no terceiro capítulo o estudo falará sobre o posicionamento do Brasil diante das decisões internacionais, uma vez que o período militar não atingiu somente o povo brasileiro, mas gerou reflexo na comunidade internacional por violar os Direitos Humanos, bem como analisará a realidade dos Direitos Humanos frente à revolução que houve no Brasil entre os anos de 1964 e 1985, tanto no âmbito nacional como no universal. 2 EVOLUÇÃO DE SURGIMENTO E EFETIVAÇÃO DA ANISTIA NA REALIDADE JURÍDICO-SOCIAL 2.1 Motivação No século XX o Brasil passou por profundas mudanças, a começar pela criação de quatro Constituições no curto período de trinta e três anos, ora outorgadas e ora promulgadas, a fim de alcançar a tão buscada democracia, concedendo ao povo direitos políticos e sociais. No entanto, foi na década de sessenta, que o país sofreu a maior e mais traumática mudança, com a segunda ditadura militar. Com o intuito de tomar o poder, os militares usaram como pretexto a crise econômica presente no governo de João Goulart, que em tese não poderia ser superada senão por uma mudança radical, ou seja, uma mudança governamental. Sendo inaugurado pelas forças armadas um inédito regime político, comandado pela mais alta cúpula militar, que perdurou por vinte e um anos. Para a autora Glenda Mezarobba “o objetivo declarado de livrar o país da ameaça comunista e da corrupção, no Brasil a ditadura passou por pelo menos três fases distintas e valeu-se, entre outros expedientes, dos chamados Atos Institucionais (AI) para exercer o poder”.[1] Para a referida escritora a primeira fase da ditadura começou entre o Golpe de Estado de 1964, quando foi editado o AI-1 que trouxe o estado de exceção ao país e o novo regime imposto pelos ditadores. Já a segunda fase iniciou-se em 1968 com a criação do AI-5, que instaurou o período de maior repressão política e concedeu à Presidência da República poderes para fechar, em caráter precário o Congresso Nacional, suspender a garantia ao Habeas Corpus e os direitos individuais, desta maneira foram rompidos os mecanismos que possibilitam limitar o poder do Estado e garantir direitos essenciais. Para o jornalista Elio Gaspari[2] a segunda fase foi o momento mais dramático do período ditatorial, pois houve grande extermínio e coerção aos opositores do regime, sendo o último recurso da repressão política. Este período ficou marcado na história como os Anos de Chumbo. Durante a segunda fase que foi criado, pelo Partido Comunista do Brasil, o movimento da Guerrilha do Araguaia, deu-se este nome, pois o movimento foi instalado às margens do Rio Araguaia situado no Estado do Tocantins. Por volta de 1967 os primeiros guerrilheiros chegaram à região a fim de se instalar e ambientar-se a vida na floresta. “Boa parte destes homens e mulheres que se embrenharam nas matas do Araguaia era composta de lideranças estudantis que haviam participado de importantes manifestações contra a ditadura militar”.[3] Muitos deles eram procurados ou já haviam sido presos, ou seja, estavam em risco de serem torturados ou mortos. A repressão não admitia a existência da guerrilha e, suas ordens eram de não fazer prisioneiros, assim, os guerrilheiros eram capturados, torturados e depois, mortos. Posteriormente, seus corpos eram escondidos para que não houvesse vestígios das atrocidades que ocorreram durante a Guerrilha do Araguaia. Elio Gaspari diz, que as atrocidades eram constantes: “Da guerrilha do Araguaia só há um relato assumido de oficial combatente. É o do capitão Pedro Correa Cabral, feito mais de vinte anos depois, quando ele já era coronel da reserva: “A guerrilha já não era mais guerrilha. Era uma caçada levada a termo por verdadeiros monstros”. Cabral revelou que helicópteros sobrevoaram a selva com alto-falantes por meio dos quais se oferecia a rendição aos guerrilheiros. Quem a aceitou, foi assassinado.”[4] Os combates eram intensos deixando muitos mortos e desaparecidos. As Forças Armadas combatiam arduamente a guerrilha.A imprensa era proibida de relatar a existência e os fatos referentes à Guerrilha do Araguaia e, ainda hoje há por volta de 70 guerrilheiros desaparecidos. Teve início a terceira fase com a posse presidencial do general Ernesto Geisel, essa fase se consagrou pela lenta abertura política e, caracterizou-se pela transição para a democracia e perdurou até o final da ditadura. A partir de 1978, os atos políticos da ditadura foram gradativamente revogados, os brasileiros que haviam deixado o país por motivos políticos agora poderiam retornar, a censura foi acabando, e após dez anos o Ato Institucional nº 5 foi revogado. 2.2 Concretização A responsabilidade do Estado surge através de uma ficção jurídica que, atribui a ele uma existência independente da ordem jurídica e concede legitimidade para determinados atos como efeito dos elementos que o constitui, tanto no âmbito jurídico como no social. O Estado é, portanto, uma pessoa jurídica com competências e funções, que serão exercidas por agentes ou órgãos estatais. Analisando estes fatos na perspectiva jurídica, será o ordenamento jurídico que determinará a organização do Estado, suas funções e por quais pessoas essas funções serão realizadas e, de quais maneiras. Desta forma, o Estado como uma ficção jurídica não realiza suas funções, mas depende de seus órgãos e agentes. Levando todos estes conceitos em consideração, chega-se a conclusão de que o Estado não comete crimes, mas sim, seus órgãos e agentes, uma vez que estes são responsáveis por praticarem a vontade estatal. Entretanto, quando seus agentes deixam de cumprir as determinações basilares do Estado para cometer crimes, deixam de serem considerados agentes estatais, assim suas condutas não podem mais ser atribuídas ao Estado. Neste diapasão esclarece Hans Kelsen: “[…] o Estado não pode praticar um ato ilícito. Fundamenta-se esta fórmula no facto de o Estado que quer o Direito (porque o Direito é a sua “vontade”), não poder querer o ilícito (o não-Direito) e, por isso, não poder praticar o ilícito. Se um ilícito é praticado, só pode ser um ilícito do indivíduo que o cometeu através da sua conduta, mas não um ilícito do Estado, em relação ao qual este indivíduo apenas se comporta como órgão quando a sua conduta é autorizada pela ordem jurídica enquanto criação, aplicação, ou observância do Direito, mas não enquanto violação ao Direito. A violação do Direito cai fora da autorização ou competência conferida a um órgão do Estado e não é, por isso atribuível ao Estado. Um Estado que praticasse o ilícito seria contraditório consigo mesmo”.[5] Chega-se a esta constatação pelas normas internas adotadas pelo ordenamento jurídico brasileiro que impossibilita o Estado de cometer ilícitos. Em contrapartida, se fosse adotada as regras morais e as normas jurídicas de Direitos Humanos estabelecidas em tratados internacionais seria o Estado brasileiro criminoso em relação aos ilícitos cometidos na ditadura militar. Entretanto, para alguns autores, são agentes estatais somente aqueles que cumprem as normas jurídicas do Estado no exercício da sua função. Assim, não houve criminalidade por parte do Estado brasileiro, neste sentido, afirma Lauro Joppert, “(…) o que podemos afirmar em relação à criminalidade estatal brasileira é que uma série de condutas penalmente tipificadas pelo direito da época foi praticada por indivíduos encarregados da perseguição e repressão dos opositores políticos do regime militar”.[6] Em contrapartida, o Estado é garantidor do bem social, tendo desta forma responsabilidade pelo vínculo obrigacional estabelecido entre o Estado e a sociedade, tornando-se assim, garantidor do interesse público. O agente estatal representa o Estado e, a sua vontade é a vontade do Estado, tendo o dever de reparar o dano causado, seja cometido por ele ou por seus agentes, esta afirmação baseia-se no princípio da legalidade. Neste sentido, o renomado autor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, esclarece que: “Ao agir, a Administração está adstrita à rigorosa observância do aspecto objetivo do princípio da legalidade, ou seja, deve sujeitar-se integralmente ao ordenamento jurídico legislado, sem qualquer vantagem, prelazia ou princípio de supremacia que justifique que dele se afaste, ainda que praeter lege, a pretexto de atender a suposto interesse público.”[7] (grifos do autor) Assim, é dever da administração agir em conformidade com o ordenamento jurídico, ainda que alegue atender o interesse público não poderá se afastar da legislação pátria e, nem das normas de direito internacional e dos tratados assinados pelo Brasil, pois estes se tornaram parte do ordenamento jurídico brasileiro, tendo assim, força coercitiva. No que tange às normas internacionais, o Brasil é responsável pelas atrocidades que aconteceram no período ditatorial, pelo motivo de ser responsável pela preservação dos direito individuais e sociais, e ainda de assegurar a efetividade dos direito humanos. Aristóteles assevera que o Estado tem deveres perante a sociedade, pois é o sujeito de política e de governo. Portanto: “Para bem conhecer a Constituição dos Estados e suas espécies, é preciso em primeiro lugar saber o que é um Estado, pois nem sempre se está de acordo se se deve imputar fatos ao Estado ou aos que o governam, quer como chefes únicos, quer num grupo menos numeroso do que o resto da Cidade. Ora, o Estado é o sujeito constante da política e do governo; a constituição política não é senão a ordem dos habitantes que o compõem.”[8] Portanto, é o Estado o responsável pelos atos de seus agentes, ainda que não tenha ordenado ou tido conhecimento destes atos. 3 A REALIDADE DOS DIREITO HUMANOS PARA A CONCRETIZAÇÃO DAS RELAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 3.1 No âmbito Nacional Todos os Estados que passaram por transformação política tiveram que rever assuntos do passado em aberto a fim de redefinir seu futuro. Salienta Lauro Joppert[9] que tais transformações necessitam de medidas judiciais e não judiciais para resolver as injustiças do passado a fim de garantir que os crimes cometidos durante a repressão não se repitam. O que ocorre, em tese, durante essas transações é a criação de uma nova Constituição, reparação às vítimas de violência patrocinada pelo Estado; profundas reformas no Poder Judiciário e nas forças armadas; afastamento das funções públicas de todos os que cometeram atos contra os direitos fundamentais. No Brasil, houve além destas transações, a criação da lei de Anistia. A criação desta lei se deve ao movimento da sociedade civil pela anistia, logo após a posse do presidente Ernesto Geisel. O movimento pela anistia cresceu muito no final da década de 70, e a Igreja Católica e o Movimento Feminino pela Anistia tiveram importante participação no surgimento da lei. Estes movimentos buscavam a anistia ampla e irrestrita para os que cumpriam pena por resistirem ao regime e para os exilados, ou seja, os perseguidos pela repressão militar. Entretanto, a lei de Anistia se estendeu também aos repressores. Desta forma é importante salientar o conceito destinado ao instituto da anistia. Este conceito começou a ser abordado e debatido na perspectiva política e jurídica após a primeira metade do século XX, com a ocorrência de golpes de estado, revoluções internas, conflitos armados em muitos países. Estes conflitos aconteceram quase que ao mesmo tempo em locais distintos, geralmente nos países subdesenvolvidos em que a população buscava a democracia, ou ainda, políticos que aproveitaram momentos da fraqueza democrática para tomar o governo e instalar uma nova ordem política. Entretanto, ao definir o conceito de anistia era comum confundi-lo com o conceito de perdão, porém são conceitos distintos e que geram efeitos totalmente diferentes no direito e na política. Estes institutos e demais atos de benevolência, geralmente são usados pelo Estado para trazer a paz após uma mudança política drástica, como foi o caso do Brasil, que passou do período de ditadura para a democracia, passando por essa época de justiça de transição onde muitos crimes cruéis foram praticados, para tanto o Estado precisava manter a reconciliação entre os opressores e os oprimidos em prol da paz nacional, e o mecanismo usado nestes casos, geralmente, são os atos de clemência, como a anistia e o perdão. Lauro Joppert define ainda que a clemencia como “um ato do Estado através do qual se afasta ou então diminui as atuais ou possíveis consequências punitivas de uma condenação penal”.[10] Importante destacar que a clemência não é utilizada somente em casos de justiça de transição ou qualquer tipo de mudança política, apesar de na maioria das vezes ser também utilizado no âmbito político internacional. Isto ocorre pela afirmação dos direitos humanos, principalmente com o surgimento da Carta da ONU em 1945 e com a Declaração Universal de Direitos Humanos em 1948, onde foi criado o conceito de crime contra a humanidade, ou seja, crimes que afetam não somente um país, mas alguns países ou todos. Anistia deriva do grego amnestia, que significa esquecimento. Assim anistia “é o ato estatal, geralmente do Poder Legislativo, através do qual o Estado renuncia à imposição de sanções ou extingue as já pronunciadas”.[11] Portanto, a anistia é uma ficção jurídica, que leva ao esquecimento a prática das condutas ilícitas, como se não existissem. O termo anistia geralmente é usado referindo-se a anistia penal, porém pode haver a anistia fiscal e tributária, por exemplo. A Lei de Anistia de 1979 permite uma dupla interpretação, para alguns doutrinadores esta dupla interpretação foi proposital para beneficiar os agentes estatais.   Há muitas polêmicas acerca da validade e da interpretação da Lei de Anistia brasileira devido à concessão da autoanisita pelo governo ditatorial, pois “[…] são consideradas ilegítimas as leis de anistia editadas pelos próprios governantes anistiados”.[12] Portanto, para que uma lei de anistia seja legítima não é permitido que a criminalidade repressiva política seja beneficiada por esta lei. Para Lauro Joppert, “[…] é moralmente inadmissível o regime autoritário promover ou permitir a prática de crimes graves contra os seus inimigos políticos e então conceder anistia, afastando a possibilidade da punição penal aos autores de tais crimes […]”.[13] Para melhor compreensão da Lei nº 6.683/79 transcreve-se seu artigo 1º: “Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”.[14] O artigo supramencionado concede anistia àqueles considerados culpados ou suspeitos de praticarem crimes políticos ou conexos aos crimes políticos, crimes eleitorais, aos que por algum motivo tiveram seus direitos políticos suspensos, bem como os servidores públicos entre outros, mas o que causa divergência entre os estudiosos do direito é o § 1º do artigo 1º da Lei nº 6.683/79, in verbis, “§ 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.[15] O que tem acontecido na prática é a aplicação da Lei de Anistia também para os crimes comuns praticados pelos repressores, como o desaparecimento forçado, tortura, estupro, homicídio entre outros praticados no período da ditadura, pois se interpreta como crimes conexos aos crimes políticos ou crimes eleitorais. Em contrapartida, doutrinadores entendem que os crimes cometidos pelos repressores não têm ligação alguma com os crimes políticos, assim não são considerados crimes conexos, portanto, não podem ser atingidos pelo benefício da anistia. O avanço da punição dos agentes estatais iniciou-se, principalmente, com a consagração e o reconhecimento dos direito humanos no âmbito nacional, além da estabilidade que a democracia foi adquirindo ao longo dos anos. No entanto, a Lei de Anistia não alcançou, na íntegra, seus objetivos, uma vez que deixou impunes os autores de inúmeras atrocidades. É nessa perspectiva, que em 1995 o presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei de Desaparecidos – Lei nº 9.140, que continha em seu anexo I, o nome de 136 desaparecidos políticos, visando o princípio da reconciliação e pacificação nacional, constante de seu artigo 2º, que estabelece “A aplicação das disposições desta Lei e todos os seus efeitos orientar-se-ão pelo princípio de reconciliação e de pacificação nacional, expresso na Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979 – Lei de Anistia”.20 Desta forma, o Estado ao criar essa lei assume a culpa pelas transgressões aos direitos humanos cometidos durante a ditadura, e não somente violou os direitos de brasileiros, pois na lista conta nomes também de estrangeiros que residiam no Brasil. Para Mezarobba, “foi a primeira vez, no Brasil, que se admitiu, independentemente de sentença judicial, a responsabilidade objetiva do Estado pela atuação ilícita de seus agentes de segurança”.[16] Em 2008, o Conselho OAB propôs uma Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental requerendo ao Supremo Tribunal Federal, a fim de obter um posicionamento mais claro sobre o artigo 1º da Lei de Anistia sendo feita uma interpretação à luz da Constituição Federal de 1988 e a validade da anistia para os agentes do Estado que, no período da ditadura, cometeram crimes comuns como sequestro, homicídio, estupro e ainda, violaram os direitos humanos dos cidadãos. Muitos foram os argumentos utilizados para sustentar o pedido, entre eles a invalidade da lei quanto a sua recepção, alegando que estender a anistia aos repressores viola preceitos fundamentais da Constituição, o dever do poder público de não ocultar a verdade e transgressão ao princípio da dignidade da pessoa humana. O ministro Eros Grau que foi o relator da ADPF rejeitou as preliminares invocadas pela Advocacia Geral da União, pela Procuradoria Geral da República, pelo Ministério da Defesa e pelo Senado Federal. O entendimento do relator foi que o poder judiciário não é competente para rever o acordo político que consagrou a anistia: “O acompanhamento das mudanças do tempo e da sociedade, se implicar necessária revisão da lei de anistia, deverá ser feito pela lei, vale dizer, pelo Poder Legislativo, não por nós. Como ocorreu e deve ocorrer nos Estados de direito. Ao Supremo Tribunal Federal, repito-o, não incumbe legislar”.[17] O Ministro argumenta que a Lei de Anistia tem caráter bilateral, não podendo questionar a legitimidade do acordo que criou a lei, pois a interpretação deve ser histórica, assim deve-se observar a vontade histórica do legislador e suas intenções. A decisão da Suprema Corte foi criticada nacional e internacionalmente por defensores dos direitos humanos e organizações humanísticas. 3.2 No âmbito Universal O sigilo dos documentos concernentes à aplicação da Lei de Anistia e aos conflitos tornou quase que impossível para os familiares dos desaparecidos políticos localizarem seus corpos, principalmente para os que desapareceram lutando na Guerrilha do Araguaia. Indignados com o desaparecimento sem justificativa por parte do Estado, 22 famílias buscando encontrar 25 desaparecidos do Araguaia, propuseram ação ante a Justiça Federal requerendo que o Estado brasileiro explicasse as mortes dos guerrilheiros e acabasse com o sigilo dos documentos militares a fim de facilitar a localização dos corpos. Porém, o processo sob nº 82.00.24682-5 foi extinto sem resolução de mérito. Interpuseram apelação e, após cinco anos o Tribunal Regional Federal deferiu por unanimidade o recurso. Passado os anos foi dada sentença condenando a União a quebrar o sigilo das informações e comunicar onde os corpos se encontravam. Os militares alegaram não existirem os documentos referentes à Guerrilha do Araguaia citados na sentença e, por conseguinte não poderem apresentá-los. Diante de tais injustiças e do descaso do Estado, a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo, o Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional, o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e a Human Rights Watch/América peticionaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos alegando que o Brasil havia infringido direitos garantidos na Convenção Americana de Direitos Humanos, também chamada de Pacto de São José da Costa Rica. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é órgão que fiscaliza o cumprimento da Convenção Americana de Direitos Humanos pelos países membros do tratado e, trabalha juntamente com a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Comissão é responsável por transmitir informações, nortear os atos dos países através de medidas a serem adotadas, bem como elaborar relatórios anuais e os enviar à Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos. Para que haja comunicação de qualquer infração aos preceitos da Convenção, primeiro deve ter sido utilizada todos os meios internos possíveis para solucionar o problema, salvo se não houver tido o devido processo legal ou a demora excessiva do processo. Já a Corte Interamericana de Direitos Humanos é o órgão jurisdicional que analisa as violações da Convenção Americana e tem competência litigiosa. A Corte somente poderá exercer sua jurisdição nos Estados que ratificaram “a adoção de medidas que se façam necessárias à restauração do direito então violado. […] A decisão da Corte tem força jurídica vinculante e obrigatória, cabendo ao Estado seu imediato cumprimento”.[18] Ao comunicar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos as infrações cometidas pelo Brasil deu-se início as averiguações com audiências em Washington para colher informações dos familiares e representantes das vítimas. Em 2001 a Comissão reconheceu o caso dos desaparecimentos na Guerrilha do Araguaia e, em 2008 a Comissão constatou que o Estado brasileiro ficou inerte ante as atrocidades cometidas no caso Araguaia, uma vez que não investigou e não puniu os autores dos desparecimentos, e nem apresentou informações para facilitar a busca pelos corpos das vítimas. Por fim, a Comissão determinou algumas medidas a serem cumpridas pelo Brasil, tais como “a responsabilização penal dos responsáveis, a publicação de todas as informações estatais relacionadas à Guerrilha do Araguaia, o emprego de esforços na localização dos corpos e a criação de cursos educacionais sobre direitos humanos nas forças armadas”.[19] O Brasil não cumpriu as determinações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, no ano de 2009, a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos demandaram contra a República Federativa do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso referente à Guerrilha do Araguaia. 4 A REALIDADE DOS DIREITOS FRENTE ÀS DECISÕES NACIONAIS E INTERNACIONAIS Todo Estado que aderir à Convenção Americana e aceitar expressamente a jurisdição da Corte Interamericana, bem como tendo esgotado todos os procedimentos internos está sujeito à jurisdição da Corte. A inobservância e o descaso do Estado brasileiro em relação às determinações impostas pela Comissão Interamericana ocasionaram em um processo contra a República Federativa do Brasil baseado nos artigos 51 e 61 da Convenção Americana, in verbis: “Artigo 51 – 1. Se no prazo de três meses, a partir da remessa aos Estados interessados do relatório da Comissão, o assunto não houver sido solucionado ou submetido à decisão da Corte pela Comissão ou pelo Estado interessado, aceitando sua competência, a Comissão poderá emitir, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, sua opinião e conclusões sobre a questão submetida à sua consideração. 2. A Comissão fará as recomendações pertinentes e fixará um prazo dentro do qual o Estado deve tomar as medidas que lhe competir para remediar a situação examinada. 3. Transcorrido o prazo fixado, a Comissão decidirá, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, se o Estado tomou ou não as medidas adequadas e se publica ou não seu relatório. Artigo 61 – 1. Somente os Estados-partes e a Comissão têm direito de submeter um caso à decisão da Corte. 2. Para que a Corte possa conhecer de qualquer caso, é necessário que sejam esgotados os processos previstos nos artigos 48 a 50”.[20] O Brasil questionou a competência da Corte, e ainda, alegou que os crimes estavam prescritos, assim a Corte não poderia promover um processo em face do Brasil. “12. […] Não obstante, o Brasil reconheceu a jurisprudência da Corte, no sentido de que pode conhecer das violações continuadas ou permanentes, mesmo quando iniciem antes do reconhecimento da competência contenciosa do Tribunal, desde que se estendam além desse reconhecimento, mas enfatizou que é inequívoca a falta de competência da Corte para conhecer das detenções arbitrárias, atos de tortura e execuções extrajudiciais ocorridas antes de 10 de dezembro de 1998”.[21] Mesmo que as violações tivessem ocorrido antes da vigência da Convenção Americana de Direitos Humanos, há crimes que são permanentes, como a ocultação de cadáveres e o desaparecimento forçado, assim não punindo os repressores e ficando omisso diante das violações dos direitos das vítimas, o Brasil infringiu normas basilares da Convenção. “125. Em consideração ao exposto anteriormente, a Corte Interamericana conclui que o Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos, respectivamente, nos artigos 3, 4, 5 e 7, em relação ao artigo 1.1, da Convenção Americana […]”.[22] É importante ressaltar que o Estado brasileiro aderiu expressamente a Convenção Americana e, para melhor entendimento transcreve-se o artigo 1º do Decreto 678/1992, “A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), celebrada em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, apensa por cópia ao presente decreto, deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém”.[23] Desta forma, o Estado é responsável pela manutenção da paz nacional, ao não cumprir esta tarefa, ele se tornou violador dos direitos das vítimas, sendo o responsável pelo desaparecimento forçado e até mesmo pela morte dos guerrilheiros do Araguaia. Os familiares das vítimas não perderam somente seus entes queridos, mas também sofreram abalos psicológicos e emocionais graves, para tanto a Corte Interamericana reconheceu que a violação do direito à integridade pessoal das vítimas causou danos no seio familiar, ao dizer que: “239. No presente caso, a violação do direito à integridade pessoal dos mencionados familiares das vítimas verificou-se em virtude do impacto provocado neles e no seio familiar, em função do desaparecimento forçado de seus entes queridos, da falta de esclarecimento das circunstâncias de sua morte, do desconhecimento de seu paradeiro final e da impossibilidade de dar a seus restos o devido sepultamento.”[24] Para a Corte a violação do direito à integridade dos familiares das vítimas se deve, entre outras coisas, à falta de investigação e de informação que pudesse esclarecer os fatos, a inércia do Estado em punir os culpados, que provocou nos familiares sentimentos de frustração e angústia. Em razão de todo o ocorrido a Corte, por unanimidade, declarou que: “3. As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil”.[25] Declarou ainda, que o Estado é responsável pelos desaparecimentos, pois violou o direito à vida, à personalidade jurídica, à integridade e liberdade pessoal. Sendo, que não adequou sua norma interna aos preceitos estabelecidos na Convenção Americana no tema referente aos Direitos Humanos. Bem como, é responsável pela violação do direito à liberdade de pensamento e de expressão consagrado no artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A proteção dos Direitos Humanos se tornou característica da sociedade internacional após a catástrofe da Segunda Guerra Mundial que, emergiu com o surgimento da Organização das Nações Unidas (ONU). Através da ONU foram criados vários tratados, convenções e instituições internacionais, a fim de manter a paz e a harmonia mundial. Desta forma, a legislação dos países signatários destes tratados devem aderir seus dispositivos e os princípios dos Direitos Humanos. Entretanto, o Brasil tem imensa dificuldade em cumprir estes tratados ou determinações da ONU. Mesmo que o Brasil tenha aderido aos sistemas internacionais o seu cumprimento não é efetivo, isto se deve principalmente ao Poder Judiciário, pela demora em solucionar os conflitos, suas súmulas e jurisprudências não acompanham, em muitos casos, a evolução do Direito Internacional. “Nesse aspecto, o exame da jurisprudência é de vital importância, pois no Brasil, assim como ocorre em outros Estados, o Poder Judiciário é um dos principais responsáveis pela falta de eficácia e de efetividade do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Por conseguinte, é relevante investigar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, quando leva à falta de efetividade dos direitos humanos”.[26] O fundamento do Direito Internacional é o princípio pacta sunt servanda, assim, o tratado aderido pelo país obriga as partes, e ainda, deve ser cumprido de boa-fé. É importante frisar que, no período ditatorial o Brasil não cumpriu na maioria das vezes os dispositivos internacionais, violando os direitos dos indivíduos de forma cruel durante vinte e um anos. Mesmo após a época de repressão o povo brasileiro não conseguiu visualizar a punição dos repressores da ditadura, pois o Estado concedeu a anistia tanto aos oprimidos como aos opressores. Deve-se destacar que os crimes cometidos foram praticados pelo próprio Estado através de seus agentes, assim não foi conveniente punir os culpados. O STF declarou no julgamento da ADPF 153 que a anistia foi fruto de um acordo político e que deve ser analisado de forma histórica, observando o momento da celebração deste acordo. Ora, conceder a anistia de forma bilateral seria ir contra todos os protestos e anseios do povo brasileiro, seria a ratificação e a legitimação do golpe de Estado de 1964, incluindo todos os seus efeitos como a tortura, os abusos sexuais, os desaparecimentos forçados, as mortes e a usurpação do poder pelos militares. Desta forma, a Lei de anistia não alcançou os efeitos pretendidos, seja no âmbito universal ou nacional, ou ainda, na expectativa dos familiares das vítimas da repressão. É evidente que a Justiça brasileira tem imensa dificuldade em tratar do assunto ditatorial e da justiça de transição, pois foi uma fase nebulosa na história do país. O Estado se negou a ajudar os familiares das vítimas, ocultando informações sobre o paradeiro dos corpos, principalmente as informações referentes à Guerrilha do Araguaia, que até pouco tempo sua existência era negada. Foi necessário que os familiares e representantes das vítimas peticionassem à Comissão Interamericana de Direitos Humanos para obrigar o Brasil a prestar esclarecimentos sobre as mortes e ajudar a encontrar os corpos dos desaparecidos políticos do Araguaia. Porém, o Estado não cumpriu as determinações da Comissão, fazendo-se necessário recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos a fim de fazer o Brasil cumprir as normas previstas na Convenção Americana. 5 CONCLUSÃO A Lei de Anistia faz parte do processo de transformação político-social da redemocratização vivida pelo Brasil. As mudanças ao longo do tempo são evidentes, embora não haja uma mobilização social em prol do esclarecimento e reavaliação da validade da Lei nº 6.683/79. A criação de leis é formada a partir de transformações da história da sociedade, não foi diferente com a Lei de Anistia, pois ao se deparar com um período ditatorial que durou vinte e um anos foi necessário o surgimento de uma lei firmada em um acordo entre o governo e a sociedade, a fim de esquecer os crimes cometidos pelos opositores do regime militar. Este foi o objetivo da criação da lei supramencionada, porém com sua criação vieram os interesses do governo autoritário que beneficiou com anistia não somente os crimes políticos, mas abrangeu os homicídios, crimes sexuais, desaparecimentos forçados, torturas, entre outros crimes, pois seus efeitos foram bilaterais. Portanto, a Lei de Anistia de 1979 não satisfez os anseios dos grupos que reivindicaram a anistia política para os que foram perseguidos e lutaram contra o regime autoritário e, nem alcançou a eficácia que a sociedade esperava. Ao analisar esta lei chega-se a conclusão de que o Estado brasileiro é culpado pelos crimes praticados por seus agentes, ainda que contrários aos interesses do Estado, levando-se em consideração que os agentes agem em nome do Estado e, que é dever do Estado manter a paz social respeitando a priori os Direitos Humanos de cada cidadão. Esta afirmação pode ser definida como a responsabilidade do Brasil em âmbito nacional e, no que diz respeito a este reflexo, internacionalmente o Brasil não se apresenta em melhor condição sendo culpado por inúmeros crimes decorrentes da ditadura militar, e ainda, por ficar inerte diante das atrocidades cometidas pelos militares. A falta de informação a respeito do regime militar, decorrentes das alegações do Governo em dizer que são confidenciais ou que tais documentos inexistem, é a principal barreira para alcançar resultados nos processos que perduram na justiça e, ainda dificultam as pesquisas referentes a este tema. Desta forma, conclui-se que muito tem o direito brasileiro para avançar relativamente às atrocidades cometidas pelo Estado em nome da Justiça.
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A atividade policial e os direitos humanos
O histórico da inserção da força policial no Brasil atribuiu posição antagônica entre a efetividade dos Direitos Humanos e a atuação das forças de segurança pública, representadas, nesta pesquisa, pela polícia. Evidencia a necessidade desses dois institutos atuar juntos em defesa da sociedade. Trata da importância de aproximar a polícia da comunidade, por meio de programas como o polícia comunitária, o qual resgata a dignidade do profissional de segurança pública e a confiança do cidadão, há muito tempo perdida, na atividade policial. Mostra também que as propostas de ensino nas academias de polícia devem ser pautadas nas regras de Direitos Humanos, propondo a formação de um profissional pedagogo de cidadania.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A formulação de princípios ou padrões de conduta diante da condição social do homem são elementos norteadores da convivência social. No decurso da história da humanidade as civilizações construíram diferentes sistemas de normas sociais objetivando estabelecer padrões de relações humanas e comportamentos sociais. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948 aborda em seus 30 artigos, os valores éticos básicos norteadores para proteção dos Direitos Humanos. De acordo com Soares (1997)[1], os enfrentamentos atuais para a construção da democracia no Brasil passam, necessariamente, pela ética e pela educação para a cidadania.  Por duas décadas, o Brasil esteve envolvido em um sistema ditatorial (1965 a 1985). Nesse período, direitos básicos foram cerceados. Serviram à manutenção da ditadura militar as forças policiais do país, as quais atuaram como aparelho repressor do Estado. O processo de estruturação dos direitos do homem ocorre desde o século XVIII, quando erigiu – se o Estado de Direitos, tendo início então os movimentos constitucionalistas. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, denominada constituição cidadã, buscou-se resgatar o processo de democratização interrompido pelo período da ditadura militar e, consequentemente fazer valer direitos dos cidadãos que haviam sido negligenciados até então.  Dentro desse contexto, pesquisas sobre a integração dos direitos humanos na atividade policial são extremamente necessárias no sentido de mudar o histórico de violência em sua atuação.  Buscando por essa adequação, atualmente os planos de ensino das academias de polícia e cursos de especialização inseriram em suas propostas; matérias referentes à importância dos direitos humanos na atividade policial. Tal procedimento tem como objetivo, a reflexão desses profissionais, os quais através da produção de monografias, artigos e teses sobre o tema, conscientizem-se da necessidade de adequação do seu trabalho à defesa e respeito aos direitos fundamentais do cidadão. Essa pesquisa tem sua justificativa embasada pela necessidade de demonstrar que direitos humanos e atividade policial são totalmente compatíveis desfazendo a crença de que o discurso dos direitos humanos só traz benefícios aos infratores da lei. O objetivo geral da pesquisa é demonstrar a polícia como peça fundamental para garantir a democracia e a valorização dos direitos humanos. Os objetivos específicos baseiam- se em conceituar e discorrer sobre Direitos Humanos; atividade policial; cidadania; poder de polícia; polícia comunitária, abordando a atuação da polícia no Distrito Federal. Considerando-se os objetivos estabelecidos no estudo, esta é tida como uma pesquisa exploratória. Que segundo Gil (1991)[2], assume, em geral, as formas de Pesquisa Bibliográfica e descritiva. 1. DIREITOS HUMANOS E ATIVIDADE POLICIAL 1.1 Direitos humanos De acordo com Bobbio (2004)[3] Direitos humanos são derivados da dignidade e do valor inerente à pessoa humana, tais direitos são universais, inalienáveis e igualitários. Em outras palavras eles são inerentes a cada ser humano, não podem ser tirados ou alienados por qualquer pessoa; sendo destinados e aplicados a qualquer indivíduo em igual medida – independente do critério de raça, cor, sexo, idioma, religião, política ou outro tipo de opinião, nacionalidade ou origem social, propriedades, nascimento ou outro status qualquer. Os direitos humanos podem ser melhor entendidos como aqueles direitos constantes nos instrumentos internacionais: Declaração Universal dos Direitos Humanos, O Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, tratados regionais de direitos humanos, e instrumentos específicos lidando com aspectos da proteção dos direitos humanos como, por exemplo, a proibição da tortura. O direito de liberdade na concepção de Bobbio (1909)[4] além de estar intimamente ligado ao principio da igualdade evolui paralelamente a ele. O que se confirma na afirmação contida na Declaração universal dos Direitos do Homem em seu artigo 1°: “ (…) art.1° da Declaração Universal, “todos os homens nascem iguais em liberdades e direitos”, afirmação cujo significado é que todos os homens nascem iguais na liberdade, no duplo sentido da expressão: “os homens têm igual direito à liberdade”, “os homens têm direito a uma igual liberdade”. Somente após a Segunda Guerra Mundial, a qual envolveu várias nações e causou prejuízos mundiais; os Direitos Humanos se firmaram e obtiveram reconhecimento pleno, pois o quadro de destruição deixado pela guerra despertou na humanidade a necessidade de se frear esse tipo de disputas. Sensibilizadas com as atrocidades das guerras, as nações mundiais decidiram fundar a Organização das Nações Unidas (ONU), e m junho de 1945, foi assinada a Carta das Nações Unidas, a qual declara como objetivo principal: “preservar as próximas gerações do sofrimento da guerra e reafirmar os direitos fundamentais do homem”. Em 1948, com a aprovação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, a qual tem como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana promoveu-se o efetivo respeito aos direitos humanos. Dando início a elaboração de outros Pactos Internacionais sobre o referido tema. Em 1966 em conformidade com os princípios proclamados na Carta das Nações Unidas; foram criados o Pacto Internacional dos Direitos Civis e políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, os quais asseguram o respeito à integridade física e a dignidade da pessoa humana, proibindo sob qualquer pretexto a prática de tortura e execuções não levadas à justiça; garantindo todas as prerrogativas de defesa. Ambos estão inseridos na Carta Internacional de Direitos Humanos. No Brasil, a ditadura militar, instalada no ano de 1964 vigorando até 1984, foi um marco de desrespeito aos Direitos Humanos. O período da ditadura foi marcado por torturas de todo tipo e responsável pelo desaparecimento de muitas pessoas. Todas as classes sociais sofreram violação e restrição de Direitos. O Brasil se efetivou como um país democrático de direito após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Também chamada de Constituição Cidadã por contar com garantias e direitos fundamentais que reforçam a idéia de um país livre e pautado na valorização do ser humano. Com a ruptura do antigo sistema ditatorial o Estado tinha a necessidade de resgatar a importância dos direitos do homem que tinham sido negligenciados até então. Porquanto, desde 1948 havia-se erigido a Declaração Internacional dos Direitos Humanos, no mundo. Já no artigo 1° da Carta Magna afirma-se a condição de Estado Democrático de Direito fundamentado em cidadania e dignidade da pessoa humana. O Brasil por ser signatário de Tratados Internacionais de Direitos Humanos, tem como princípios em suas relações internacionais a prevalência dos direitos humanos. Os padrões internacionais de direitos humanos têm o objetivo de prevenir que as pessoas se tornem vítimas desse abuso, assegurá-las e protegê-las caso isto aconteça. Em alguns casos a violação desses direitos, são atos criminosos por si só – tortura, por exemplo, e execuções ilegais por funcionários do Estado. Os criminosos também têm direitos humanos, por exemplo, têm direito a um julgamento justo e a um tratamento humano quando detidos. Uma vez sentenciados por uma corte de justiça pelo cometimento de uma ofensa criminal, perdem o direito à liberdade durante o tempo de cumprimento da sentença. No que se referem aos policiais, estes devem entender que enquanto estiverem investigando um crime, estão lidando com suspeitos e não com pessoas que foram condenadas pelo cometimento de um ato criminoso (que está sendo investigado). Apesar de um policial acreditar que a pessoa realmente cometeu o crime, somente a justiça poderá considerar a pessoa culpada. Este é um elemento essencial para um julgamento justo, prevenindo que pessoas inocentes sejam condenadas por crimes que não tenham cometido. 1.2 Atividade policial A Constituição Federal destaca quais os órgãos estão aptos a promover a segurança pública e detalha os tipos de atividades delegadas a cada um deles. Esses órgãos são as diferentes polícias no contexto brasileiro. São elas: Polícia Federal; Polícia Rodoviária Federal; Polícia Ferroviária federal; Polícia Civil; Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros Militares. Muito embora cada um desses órgãos possua seu próprio campo de ação; a atividade primordial baseia-se na preservação da ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio. Porquanto o caput do art. 144 os estabelece como órgãos de promoção de segurança pública. A atividade policial brasileira é detalhada em sua Carta Política, dada a importância do trabalho policial, uma vez que dependendo da forma como for exercida a atividade confirma ou nega o Estado Democrático de Direito. A atividade policial é um oficio de suma importância, seriedade e dimensão única, pois deve atuar de forma a impedir que as garantias e liberdades constitucionais sejam violadas, Conforme a concepção de Goldstein (2003, p.28; 29), “A policia não está apenas obrigada a exercer sua limitada autoridade em conformidade com a Constituição e, por meios legais, aplicar suas restrições: também está obrigada a observar que outros não infrinjam as liberdades garantidas constitucionalmente. Essas exigências introduzem na função policial a dimensão única que torna o policiamento neste país um oficio seríssimo.” Apesar de detalhamento do trabalho policial no corpo da Constituição; tais como: patrulhamento ostensivo; função de investigação e apuração de infrações penais; e preservação da ordem pública, o que se vê, hoje, é uma polícia que faz mais do que a determinação legal impõe. A instituição policial absorveu atividades que em principio não deveriam ser suas, como por exemplo, as ocorrências que envolvem discussões familiares, tal fato pode estar ligado a falhas no Sistema de Segurança Pública ou pela mudança nos anseios da sociedade. A atividade policial, atualmente, não pode ser compreendida apenas pela ótica legal. É preciso levar em conta que as leis são rígidas e invariáveis, mas a sociedade é mutável e espera uma mudança na perspectiva do trabalho policial. O profissional de segurança contemporâneo é um agente promotor de cidadania e direitos humanos.  A atividade policial, de hoje, leva em consideração não só a intolerância a criminalidade, mas também preocupa – se com o caráter social que desempenha junto à população. O trabalho da polícia abrange toda a determinação legal imposta pela constituição e regimentos policiais, e, sobretudo a civilidade que o profissional deve ter, no senso de responsabilidade frente à sociedade, a qual espera do agente de segurança pública; a proteção quando um conflito se instala. 2.  Antagonismo entre direitos humanos e polícia Traçando perfil do contexto histórico brasileiro, percebe-se que Direitos Humanos e atividade policial sempre estiveram em posições antagônicas. Diante de todas as manifestações contrárias aos Direitos Humanos no período da ditadura militar, a polícia ganhou um estigma de ações pautadas em violência, que não condiz com modelo ideal de corporação em um Estado Democrático de Direito. A utilização dos aparatos policiais pelo regime autoritário da época colocou um grande abismo entre a polícia e a sociedade. Ainda hoje, a população vê nos agentes de segurança um instrumento de dominação do Estado sobre o povo e não de servidores, ou seja, vêem uma polícia contra o povo e não para o povo. Com a democratização da política brasileira, tornou-se necessário repensar o modelo de segurança pública do país, tendo em mente que essa nova conjuntura da política nacional, propicia a relação polícia e direitos humanos como uma parceria em benefício da comunidade e não o contrário.        Inserir na instituição policial uma proposta baseada em tendências contemporâneas a respeito de sua atuação não se constitui tarefa fácil, por se tratar de instituição fechada em si, tradicionalista e baseada em hierarquia e disciplina, no caso das polícias militares. A mudança no modo de agir da polícia, parte do princípio de que é necessário que se mude a convicção que os profissionais de segurança têm a respeito do valor dos direitos humanos. Mesmo dentro da polícia há o paradigma de que os militantes de direitos humanos só atuam para reprimir a ação da força, procurando excessos em sua atividade e protegendo os marginais. O desconhecimento por boa parte da polícia do que sejam tais direitos, provoca a revolta dos profissionais de segurança pública e a noção de que os militantes de direitos humanos são subversivos e atentam contra a segurança nacional. Os militantes de direitos humanos são mal interpretados, pelos policiais, em razão da história de enfrentamento das duas posições em épocas de ditadura no país. O contexto histórico brasileiro reforça o abismo que se criou entre direitos humanos e atividade policial, dificultando as novas filosofias de policiamento. Na verdade, as denúncias feitas pela comunidade de Direitos Humanos é benéfica aos bons policiais, pois minam a ação de maus profissionais e impedem que eles continuem agindo em desacordo com os direitos, maculando dessa forma, todo o corpo policial. Para que haja uma mudança no paradigma de antagonismo, é imprescindível que a polícia e as ONGS de direitos humanos se aproximem e trabalhem juntas na efetivação do bem maior, não para satisfação de posições, mas em favor da sociedade. 3. POLÍCIA E CIDADANIA A Declaração Universal dos Direitos Humanos não faz diferença de cidadãos,  fica claro que todas as pessoas são iguais em direitos e deveres e veda qualquer forma de distinção. O profissional de segurança assim como qualquer cidadão possui direitos e obrigações, no entanto, a ele se atribui o solene dever de figurar como agente promotor de Direitos Humanos. Os agentes de segurança possuem o poder de representar o Estado e se tornam, por isso, talvez, a classe de trabalhadores com mais notoriedade em sua atuação. Dessa forma, é necessário que se invista, vigilantemente, nas ações policiais esperando dos agentes uma atuação pautada sempre no estrito cumprimento da lei, já que atuam para garanti-la. É importante cobrar profissionalismo nas ações. Em sua atuação vigilante, a população deve reconhecer que o policial também é um cidadão com deveres, obrigações e direitos. Já o policial deve sentir-se inserido e participante dessa sociedade na mesma medida do cidadão comum. A partir da Revolução Francesa cidadania se tornou sinônimo de igualdade, o que significa que independente da profissão exercida, a pessoa não perde seu status de cidadão perante a sociedade. Não há diferenças entre sociedade civil e sociedade policial, essa nem mesmo existe. O agente de segurança detém uma responsabilidade ímpar frente à população, já que a sociedade deposita confiança naquele diante da insegurança que se vive atualmente. A polícia é a representação mais intima do Estado que a nação possui; é a sua frente de atuação, nela se deposita todas as frustrações e esperanças no governo. Espera-se muito do agir policial, porquanto a missão é nobre. Entretanto, a sociedade muda o discurso a toda hora. A polícia se vê perdida nos anseios da população, que em determinado momento deseja que o agente de segurança seja polido em suas ações, já em outras situações pede que a polícia seja uma instituição de vingança social, fazendo justiça com as próprias mãos como acontecia nos primórdios da humanidade. As pessoas estão aterrorizadas pela violência que assola o país. Vive-se o clima de guerra urbana que gera insegurança. O policial não se deve levar por anseios ilegítimos que possam desprestigiar seu trabalho. A sociedade que deseja ações desmedidas por parte do agente será a mesma que proporcionará a ele o repúdio quando atender aos seus próprios anseios primitivos. O uso da força é apenas uma das características da atividade policial, ela não pode resumir o agir policial como um todo. Suas atribuições e responsabilidades vão além, nem sempre é escolha do profissional o uso dessa prerrogativa para executar suas tarefas. Como defende Balestreri (1998), o policial é um pedagogo de cidadania, ele deve ser incluído no rol dos profissionais pedagógicos, ao lado das profissões consideradas formadoras de opinião. Dessa forma, o agente de segurança é um educador, o qual educa por meio de suas atitudes ao de lidar com situações cotidianas. O policial educador transmite cidadania, a partir de, exemplos de conduta; de comportamentos baseados em moderação e bom senso. O agente de segurança pública não pode mais ser visto, nos dias de hoje, como agente de repressão a mando do Estado. A Constituição Federal de 88, em seu artigo 144, declara que a segurança pública é exercida pelas polícias e que suas atribuições são a preservação da ordem pública, a incolumidade das pessoas e do patrimônio.  Visto desse modo, a atividade de polícia consiste em desempenhar funções policiais, e ao mesmo tempo proteger os direitos humanos. Violar os direitos humanos, desrespeitar as normas legais como propósito de aplicar a lei não é considerado uma prática policial eficiente – apesar de algumas vezes se atingirem os resultados desejados. Quando a polícia viola a lei com o intuito de aplicá-la, não está reduzindo a criminalidade, está se somando a ela. Espera-se dos agentes de segurança o vigor necessário no desenvolvimento de suas atividades, porém que haja preocupação em agir no estrito cumprimento da lei. É necessária a admiração da sociedade por essa classe de trabalhadores. O policial não é inimigo da população, deve que ser visto como agente promotor de direitos humanos, sobretudo, de cidadania. 4. POLÍCIA COMUNITÁRIA 4.1 O que é polícia comunitária O policiamento comunitário baseia-se em uma concepção de cooperação entre agentes de segurança e a população, delimitando estratégias as quais aproximem esses dois atores no intuito de juntos resolverem os problemas de insegurança. Nas palavras de Skolnick e Bayley (2006, p.69)  “Este conceito de uma cooperação maior entre a polícia e a comunidade é o que tem sido considerado, em todo o mundo, como sendo “policiamento comunitário”. Para que se efetive a policia comunitária é preciso firmar parceria entre a comunidade e instituição policial. Unidas devem buscar soluções para os problemas que geram violência na comunidade. Marcineiro e Pacheco (2005, p.84)  alertam que “é preciso comprometimento de ambas as partes na solução dos problemas, na busca da melhoria da qualidade de vida da comunidade”. A polícia não deve apenas ser ouvinte dos problemas da sociedade e essa não deve apenas transmitir aquela seios anseios. Para que seja eficiente e eficaz o modelo comunitário é preciso que as duas sejam parceiras atuantes na resolução dos problemas identificados na localidade que estão inseridas. O policiamento comunitário baseia seu objetivo principal em atribuir a sociedade parcela de responsabilização na prevenção ao crime. Incluir a comunidade na solução de seus problemas locais e pedir a ela que explane suas opiniões e, além disso, fazer com que ela trabalhe para prevenir o crime e diminuir suas mazelas sociais é função e objetivo maior da polícia que trabalha com o programa de policiamento comunitário. A partir daí, pode-se formular o pensamento de que policiamento comunitário é expressão máxima de valorização de direitos humanos, é interiorizar no intimo policial a idéia de profissional pedagogo de cidadania e promotor de direitos humanos. Aumentar a responsabilização da polícia implica em se abrir as críticas da população, porquanto terá que ouvi-la e saber que nem sempre é agradável o que ela ira dizer. Quando o cidadão diz a polícia sua impressão a respeito do trabalho de seus profissionais e essa se preocupa, gera a cumplicidade de que a instituição necessita para a efetividade do policiamento comunitário e seu objetivo maior de prevenção do crime. Se o profissional de segurança não conhece a comunidade à qual está servindo, e se não conhece, principalmente, seus problemas, não atenderá aos princípios do programa comunitário. Os Conselhos Comunitários de Segurança funcionam com esse intuito, a comunidade se reúne com representantes da polícia para explanar suas opiniões a respeito do trabalho policial e ajudar a polícia em soluções para os problemas do bairro. Observa-se valorização da dignidade humana, efetivação de cidadania e expressão democrática. As comunidades compõem-se cada uma em sua complexidade, o policiamento comunitário leva em consideração essas questões e acredita que modelo de patrulhamento deve ser adaptado as necessidades de cada localidade. A proposta de descentralização do comando leva em consideração as diferenças que cada comunidade possui. Assim o comandante subordinado que tem liberdade para coordenar de acordo com as prioridades que lhes são apresentadas poderá adaptar de melhor forma o programa comunitário da área na qual atua. A efetiva ação está no dia a dia, conhecendo as dificuldades e problemas da comunidade, diferente do comando centralizado que se mantém distante e, conseqüentemente, o atendimento se torna insuficiente. Assim Skolnick; Bayley[5] declaram que “a descentralização do comando é necessária para ser aproveitada a vantagem que traz o conhecimento particular, obtido e alimentado pelo maior envolvimento da polícia na comunidade”. Resumidamente, polícia comunitária é a filosofia teórica de estudar o problema e buscar soluções junto à comunidade; policiamento comunitário é a filosofia em ação de buscar soluções para prevenir o problema antes que aconteça, também com apoio da comunidade. Polícia comunitária é uma filosofia nova no Brasil. A implantação do programa busca resgatar a tão manchada história das forças de segurança no país, que por erros do passado e também recorrentes nos dias de hoje prejudicou o contato com o cidadão. Pelo fato de em outros países a iniciativa ter tido sucesso, o Brasil adotou a implantação em todas as polícias do país. No Distrito Federal os Postos Comunitários são a expressão mais latente de policiamento comunitário, entre outras iniciativas da polícia como, teatro nas escolas e incentivo a esportes nas regiões mais pobres e violentas da capital. 4.2  Experiência da Polícia comunitária no Distrito Federal Polícia Comunitária é uma filosofia inovadora que está sendo implantada em todo o mundo. O Brasil trouxe para sua realidade esse modelo novo de policiamento. Participam do projeto no país as instituições de segurança e defesa social. O Ministério da Justiça prepara os profissionais de segurança de todos os estados membros para se tornarem multiplicadores de polícia comunitária, por meio de curso de capacitação. As diretrizes comunitárias de segurança do Distrito Federal optaram pela segurança comunitária, pelo fato de possuírem um conceito mais abrangente que engloba não só a Polícia Militar, como estipulado no conceito de Polícia Comunitária implantada no país, mas também as polícias militar e civil, o Corpo de Bombeiro Militar e o Departamento de Trânsito de Brasília. No entanto, o objetivo é o mesmo da filosofia de Polícia Comunitária, qual seja o de aproximar o profissional de campo à população, prevenindo os problemas da comunidade que geram violência. O Decreto n ° 24.316 de 23 de Dezembro de 2003 regulamenta o programa de policiamento comunitário no Distrito Federal. A implantação do modelo é de responsabilidade da Secretária de Segurança Pública e de Defesa Social. O objetivo do modelo de segurança comunitária na cidade; segundo a legislação é  reduzir os crimes, violência e demais fatores que desarticulem a ordem pública, pautando-se na prevenção como forma de proporcionar melhor qualidade de vida à população local, porquanto quando se previne o fato e esse não se concretiza evita os prejuízos ao cidadão, a sociedade e ao poder público. Importante observar que para os programas de policiamento comunitário serem eficazes e eficientes nas regiões do Distrito Federal é necessário adequá-los à realidade da população. Como em todo país, Brasília também conta com sérios problemas de desigualdades sociais. Portanto, estratégias de redução de criminalidade no Plano Piloto devem ser diferentes das pautadas em cidades satélites, principalmente, naquelas mais novas e com graves problemas sociais. Segundo Cardoso (2009, p. 16)  “o policiamento em Brasília tem que ser mais específico, adaptando-se a realidade de cada cidade.” o que será um desafio para os responsáveis pelo modelo comunitário, porquanto um dos princípios desse policiamento é que ele atenda as prioridades de cada comunidade; e se adeque as dificuldades de cada uma. É fundamental que a população seja ouvida em seus anseios dentro de sua comunidade. Para que o poder público, no caso as polícias e demais agentes sociais envolvidos na filosofia, reconheçam as debilidades daquela localidade, afim de que se desenvolva os programas comunitários necessários. A sociedade deve se sentir responsável em por fim a suas mazelas sociais, o cidadão tem o poder – dever de opinar nas políticas de segurança pública que lhe são impostas.  Quem está apto a esclarecer os problemas de uma comunidade a não ser aquele que faz parte dessa comunidade? Assim, afirma Cardoso (2009, p. 17)  “A polícia é vulnerável e não consegue arcar sozinha com a responsabilidade, sendo assim, a comunidade deve ser vista como “co-produtora” da segurança e da ordem, juntamente com a polícia”. Como forma de viabilizar uma efetiva participação da comunidade na resoluções de seus problemas criou- se, por meio dos Decretos n° 24.101 de setembro de 2003 e 26.291 de outubro de 2005 os Conselhos Comunitários de Segurança no Distrito Federal, inspirados no modelo japonês. O conselho é formado por pessoas da comunidade local que reúnem- se com as autoridades das polícias civil e militar, corpo de bombeiro militar e secretária de defesa social, conforme o caso para juntos discutirem programas que desarticulem as causas da criminalidade naquela região. Os conselhos são separados por Regiões Administrativas – RAS[6] do Distrito Federal e por Conselhos especiais que englobam as áreas rurais, os conselhos escolares, os conselhos de segurança da Universidade de Brasília, o conselho de segurança dos rodoviários, os conselhos dos taxistas, dos postos de combustível, do comércio, da indústria gráfica e do transporte alternativo. Os Conselhos Comunitários efetivam a voz democrática da sociedade. O cidadão seja ele quem for, a dona de casa, o comerciante da esquina, o aposentado, a empregada doméstica, enfim todos que morem naquela comunidade ou que participem de um grupo como os taxistas ou rodoviários, por exemplo, tem o poder de opinar sobre a estratégias de segurança daquele ponto que é sensível e gera instabilidade na ordem daquela localidade. Ao perceber que o problema responsável pela criminalidade de um bairro é talvez, um beco escuro, a comunidade propõe em reunião do conselho que a polícia procure solucionar a questão, juntamente com a Administração da cidade a qual aquele bairro pertença. Se um dos princípios fundamentais do modelo de polícia comunitária é atribuir responsabilidade a sociedade, os conselhos são uma das formas de efetivar esse modelo e fazer com que os programas traçados junto a comunidade sejam realmente eficazes, porquanto trata o problema com os maiores interessados. Percebendo que há um número considerável de violência entre os jovens da cidade, constatados em muitos casos famosos de delinquência juvenil, os profissionais de segurança em parceria com a comunidade desenvolvem programas por meio de teatro e esporte. A companhia de teatro Pátria Amada coordenada pela Secretária de Segurança desenvolve um trabalho, por meio de peças teatrais, que visa diminuir a violência e as dúvidas dessa faixa etária, como gravidez precoce, doenças sexualmente transmissíveis, uso de drogas, entre outras. As peças são apresentadas em escolas públicas e os scripts são elaborados observando temas do dia a dia dos adolescentes, como uso de drogas, estupro, abuso sexual ; esses são problemas graves que aumentam o índice de violência entre os jovens.  Outra forma encontrada para afastar os jovens da criminalidade é o esporte, o programa “esporte a meia noite” foi implantado nas cidades do Gama, Planaltina, Ceilândia e Samambaia. Inicialmente, foi implantado em Planaltina por contar com diferentes grupos de “gangues” de garotos constantemente envolvidos em conflitos, os quais eram responsáveis pela maioria dos homicídios na cidade. Ficou constatado que no período que compreendido entre 23 horas às 2 horas da madrugada ocorria a maior parte dos crimes na região, então foi estipulado esse horário para promover práticas esportivas com os garotos da localidade. Em horário determinado passa o ônibus do programa e aquele jovem que quiser pode embarcar rumo ao centro de esporte, único requisito para participar do “esporte a meia noite” é submeter- se a abordagem policial que tem por objetivo garantir a segurança de todos, porquanto trabalha- se com jovens em situação de risco. Esses são programas comunitários que aproximam a sociedade da polícia e mudam o paradigma que se tem de uma polícia distante e fria em relação aos problemas da comunidade. Ainda não é normal ver um profissional de segurança personagem de uma peça ou participando de uma partida de futebol com crianças. Os jovens, a partir dessas iniciativas internalizam conceitos novos de atuação policial diminuindo, dessa forma a distancia entre os dois polos: comunidade e instituições policiais. A validade dos programas comunitários está na premissa de que os profissionais de segurança atuam promovendo o direito à dignidade do ser humano. Conforme, concepção de Balestreri (1998, p. 30)  “o velho paradigma antagonista da Segurança Pública e dos Direitos Humanos precisa ser substituídos por um novo, que exige desacomodação de ambos os campo: “Segurança Pública com Direitos Humanos”.” Outro programa comunitário instituído como forma de aproximar a comunidade da polícia foi a implantação dos Postos de Polícia Comunitária – PCS em todo o Distrito Federal. O modelo segue aos Kobans japoneses, em países como Cingapura e Japão os postos funcionam como pequenas delegacias são bem equipados possuem televisão, sala de descanso e banheiro.      O objetivo dos postos é a sensação de segurança à comunidade, pois funcionam 24 horas o que faz com que a população sinta – se protegida. No entanto, muitas são as críticas a respeito do programa, desde sua inauguração na capital. Os policiais reclamam a falta de viaturas, de efetivo, de equipamento de trabalho como rádios, telefones, internet, computadores e até mesmo falta de água. A maior reclamação dos profissionais é que recebem ordens de seus superiores para não abandonar os PSC. Criando, dessa forma um policial engessado sem poder atender as solicitações da comunidade. Conforme Cardoso (2009, p. 45) “Os policiais acostumados com o serviço operacional em viaturas se sentem deslocados no postos, pois não “prendem” mais ninguém. Alegam que se tornaram “simplesmente vigias de posto”, pois estão impossibilitados de realizar qualquer tipo de atendimento em suas proximidades.” Os postos são construídos com material frágil, não suporta tiros e além disso, é facilmente inflamável. Um dos postos instalados na cidade satélite do Guará, em 2009, foi queimado por marginais no mesmo dia de sua inauguração, fatos como esse geram insegurança até mesmo entre os policiais, os quais estão preocupados com a segurança dos Postos Comunitários e não mais com a população. Assim afirma Cardoso (2009, p. 33) “alguns postos instalados em áreas consideradas “perigosas” foram alvos de ameaças. O programa funciona bem em outros países, pois não apenas a população foi privilegiada, mas também os policiais que dispõe de infra-estrutura e efetivo suficiente. Diante de tantas reclamações a respeito do modelo em Brasília, pode-se perceber que não houve a preocupação de um estudo mais detalhado sobre o funcionamento dos Postos em outros países para assim adequá-los à realidade da cidade. A população não está satisfeita com os Postos comunitários e nem tão pouco os policiais que atuam neles. Conforme observa Cardoso (2009, p. 34) “As reclamações estão ocorrendo em todos os postos. A falta de segurança e de condições para se trabalhar é evidente, mas também é clara a reorientação das atividades de policiamento. A polícia saiu das viaturas e entrou definitivamente nos posto”. Para que os Postos Comunitários de Segurança se tornem eficazes, atendam realmente a população e cumpram com a finalidade do policiamento comunitário, aproximar a polícia da sociedade, é necessário que sejam avaliados os erros e  recuperem a proposta inicial dos postos. O maior objetivo do Posto é dar sensação de segurança a população o que não vem acontecendo. CONCLUSÃO A relação entre polícia e direitos humanos está centrada nas noções de proteção e respeito, e pode ser uma relação muito positiva. De fato é função da polícia a proteção dos direitos humanos. Tal proteção se faz de maneira genérica, mantendo a ordem social, de modo que todos os direitos humanos, de todas as categorias possam ser gozados. Quando há uma quebra na ordem social, a capacidade e habilidade do Estado em promover e proteger os direitos humanos são consideravelmente diminuídos ou destruídos. Ainda, é parcialmente por meio da atividade policial que o Estado atinge suas obrigações legais de proteger alguns direitos humanos específicos – o direito à vida, por exemplo.        Dentre as profissões públicas pode-se dizer que a polícia é uma das que possui maior responsabilidade em relação à imagem do Estado.  É necessário que os agentes públicos de segurança resgatem os anos perdidos de autoritarismo e distanciamento da sociedade brasileira. A história da origem policial no Brasil explica o porquê de seus traços de violência. Tendo em vista esse histórico, cada policial ao entrar na corporação devem estar conscientes de que a policia não é mais a mesma, agora mais que nunca; deve-se fortalecer o sentido de fazer de sua missão um ato nobre. Policiais devem respeitar os direitos humanos no desenvolvimento de suas atividades profissionais. Em outras palavras, considerando que é função da polícia a proteção dos direitos humanos, o requisito de respeito a esses direitos afeta diretamente o modo como a polícia desempenha todas as suas funções. Diante dos anos que macularam a imagem policial as instituições de segurança pública e as políticas governamentais acenam para mudança nas diretrizes de policiamento em todo Brasil, seguindo assim uma tendência mundial. Os cursos de integração das normas de direitos humanos na atividade policial são de extrema importância, pois conscientiza o profissional policial de que o poder a ele atribuído deve ser utilizado sempre em benefício da sociedade. Quanto ao programa de policiamento comunitário, sua efetivação depende do entendimento de que a idéia é que haja a participação da comunidade nas formulações, implementações e avaliações das políticas de segurança pública e estratégias de policiamento. A instalação de cada Posto Comunitário de Segurança pode tornar-se um instrumento avançado entre o relacionamento da Polícia Militar e comunidade na redução dos índices de criminalidade, no aumento da confiança dos serviços prestados, maior eficácia nas ações e adoção de estilo de gerenciamento participativo. Diante do exposto conclui-se que a formação dos profissionais da Segurança Pública é fundamental para a qualificação das polícias brasileiras e o ensino dos Direitos Humanos no Curso de Formação de policiais é uma alternativa que se apresenta adequada, uma vez que propicia a percepção dos policiais como sujeitos e defensores dos Direitos Humanos garantindo a efetiva aplicabilidade do conhecimento desenvolvido na prática policial.
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A evolução histórica dos direitos humanos no plano internacional: doutrina e filosofia
O presente trabalho tem como objeto de estudo a evolução histórica dos direitos humanos no âmbito internacional, através da doutrina jurídica e da doutrina  filosófica, elencando os principais acontecimentos históricos que ajudaram na consolidação dos Direitos Humanos no mundo. Os estudos serão iniciados a partir do período axial, passando pela Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993, gerações dos Direitos Humanos e Sistemas Internacionais de proteção.
Direitos Humanos
Introdução O estudo trata da evolução histórica dos Direitos Humanos, dentro do cenário doutrinário e filosófico, Os Direitos Humanos são inerentes à pessoa humana, sendo assim, direitos essenciais para todos os cidadãos.  O estudo da problemática da efetivação da proteção dos direitos humanos é  assunto mais que atual, tendo em vista a complexidade de conceitos e de relações entre as pessoas, entre as instituições e especialmente entre nações que precisam, antes de tudo, ter um olhar voltado para as características próprias de cada localidade sem é claro desrespeitar aquilo que é norma entre um agrupado de nações.  O respeito que deve haver entre as pessoas, entre as diferentes formas de pensar e agir caracteriza a construção mais ampla do conceito de dignidade da pessoa humana. Não há como pensarmos o cidadão sem que o mesmo possua garantias efetivas de proteção nas diferentes situações vivenciadas pelas populações tuteladas. O conjunto das normas, tratados e convenções internacionais, são parte integrante e configuram um processo que serve de fundamento maior à democracia, que passa a ser assentada, firmada não apenas na representação, mas muito mais que isso, na participação. Desta forma convêm que se busquem as raízes sobre as quais encontraram solidez os movimentos filosóficos e sociais. Na medida em que a consciência dos direitos humanos vai permeando a vivência em sociedade, mais veremos que é imprescindível o seu conhecimento, suas implicações e a sua efetiva aplicação através do completo conhecimento dos mecanismos de organização e normatização da proteção dos Direitos Humanos nos diferentes momentos da sociedade, numa passagem pelas evoluções histórica e de conceito pelos diferentes filósofos e doutrinadores. 1. BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS Ao longo da história, a concepção dos direitos humanos ganhou importância, visto que seus princípios, bem como seus pressupostos, são incisivos na proteção da dignidade de todos os seres humanos. 1.1. Conceito de Direitos Humanos Os direitos humanos, como se extrai da própria expressão, são uma espécie de direitos, entretanto, eram denominados de Direitos do Homem, sendo posteriormente denominados como Direitos Humanos. Vejam alguns conceitos  doutrinários: No entendimento de João Batista Herkenhoff (1994, p. 30), os direitos humanos são “aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser homem, por sua natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente”.                 Já Selma Regina Aragão (2000, p.105), conceitua como sendo direitos em função da natureza humana, reconhecidos universalmente pelos quais indivíduos e humanidade, em geral, possam sobreviver e alcançar suas próprias realizações. Na mesma ótica, Robert Alexy (2007, p. 94), entende que os direitos humanos podem ser definidos a partir de cinco características, a saber: “a universalidade, a fundamentalidade, a abstratividade, a moralidade e a prioridade”. Ademais, Edilson Farias (2004, p.27), acrescenta aos conceitos acima mencionados, os valores da fraternidade, sendo: “Os direitos humanos podem ser aproximadamente entendidos como constituídos pelas posições subjetivas e pelas instituições jurídicas que, em cada momento histórico, procuram garantir os valores da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da igualdade e da fraternidade ou da solidariedade”. Para Flavia Piovesan (2006, p.18), o conceito de direitos humanos é dotado de universalidade, pois possui extensão universal, pois basta possuir condição de pessoa para ser titular de direitos. Portanto, o ser humano é visto como um ser essencialmente moral com unicidade existencial e dignidade. 1.2. Período Axial Iniciamos através dos antecedentes mais remotos dos direitos humanos, conhecido como período axial, onde o Filósofo Alemão Karl Jaspers (2002, p.163), em breve análise sobre o nascimento espiritual do ser humano afirmou que: “(…) se situaria no ponto de nascimento espiritual do homem, onde se realizou de maneira convincente, tanto para o Ocidente como para a Ásia e para toda a humanidade em geral, para além dos diversos credos particulares, o mais rico desabrochar do ser humano; estaria onde esse desabrochar da qualidade humana, sem se impor como uma evidência empírica; seria, não obstante, admitido de acordo com um exame dos dados concretos; ter-se-ia encontrado para todos os povos um quadro comum, permitindo a cada um melhor compreender sua realidade histórica. Ora este eixo da história nos parece situar-se entre 500 a.C. no desenvolvimento espiritual que aconteceu entre 800 e 200 anos antes de nossa era. É aí que se distingue a mais marcante censura na história. É então que surgiu o homem com o qual convivemos ainda hoje. Chamamos breve essa época de período axial”. Visando uma melhor elucidação Fábio Konder Comparato (2005, p.11), leciona que: “(…) é a partir do período axial que, pela primeira vez na História, o ser humano passa a ser considerado, em sua igualdade essencial, como ser dotado de liberdade e razão, não obstante as múltiplas diferenças de sexo, raça, religião ou costumes sociais. Lançavam-se, assim, os fundamentos intelectuais para a compreensão da pessoa humana e para afirmação da existência de direitos universais, porque a ela inerentes”. No que tange a formação de cada ser humano, Lilith Abrantes Bellinho, expõe  em seu trabalho os ensinamentos do Professor Fábio Konder Comparato, que: “(…) o caráter único e insubstituível de cada ser humano, portador de um valor próprio, demonstra a dignidade da pessoa existe singularmente em todo indivíduo”. Nesse diapasão, podemos afirmar que a visão individualista da sociedade contribuiu para a própria alteração do conceito de justiça, ou seja, passou-se de uma concepção orgânica até então vigente, em que o justo era cada parte desempenhar a função que lhe seria no corpo social, para outra em que justo é que cada um seja tratado de modo a poder satisfazer suas próprias necessidades e alcançar seus propósitos fins, o primeiro entre todos aqueles da felicidade, que é um fim individual por excelência. Por fim, segue os ensinamentos do Filósofo italiano Norberto Bobbio (2000, p. 481), o qual aponta o individualismo como base filosófica da democracia:   “O individualismo é a base filosófica da democracia: uma cabeça, um voto. Como tal, sempre se contrapôs e sempre se contraporá às concepções holistas da sociedade e da história, qualquer que seja a sua proveniência, que têm em comum o desprezo à democracia entendida como forma de governo na qual todos são livres para tomar decisões em questões que lhes dizem respeito de alguns direitos fundamentais, inalienáveis e invioláveis, que são os direitos do homem”. 1.3. Os Direitos Humanos no período da Idade Média Para Claudio Vicentino (1997, p. 109), a Idade Média era marcada pela organização feudal, onde a riqueza era diferenciada pela propriedade de terras, ponto preponderante para distinguir os grupos sociais, onde de um lado os senhores e de outro os servos que eram vinculados a terra e sem perspectiva de ascensão social. Segundo Fábio Konder Comparato (2005, p.44): “Toda a Alta Idade Média foi marcada pelo esfacelamento do poder político e econômico, com a instauração do feudalismo. A partir do século XI, porém, assiste-se a um movimento de reconstrução da unidade política perdida. Duas cabeças reinantes, o imperador carolíngeo e o papa, passaram a disputar asperamente a hegemonia suprema sobre o território europeu. Ao mesmo tempo, os reis, até então considerados nobres de condição mais elevada que os outros (primi inter pares), reivindicaram para as suas coroas poderes e prerrogativas que, até então, pertenciam de direito à nobreza e ao clero”. Na Idade Média surgiram diversos documentos que contribuíram para a efetivação dos direitos humanos, entretanto, esses documentos não eram cartas de liberdade e sim contratos feudais, onde o rei se comprometia respeitar os direitos de seus súditos. Dessa forma Fábio Konder Comparato (2005, p.40), aduz que tais documentos não afirmavam direitos humanos, mas sim direitos de testamentos. Assim explica que no nascimento da lei escrita criou-se uma regra geral e uniforme, onde  todos os indivíduos viviam numa sociedade organizada ficando sujeita a regra. (COMPARATO, 2005, p.10) Cabe salientar que nesse período surgiu a Magna Charta Libertatum (Magna Carta) de 15.6.1215, Outorgada por João-Sem-Terra em 15 de Junho de 1.215, a qual impedia o exercício do poder absoluto. Nesse viés Alexandre de Moraes (2002, p. 25-26), completa informando que a referida carta, dentre outras garantias, previa também: a) multa proporcional ao delito cometido pelo infrator; b) previsão do devido processo legal; c) livre acesso à Justiça; d) liberdade de locomoção; e) livre entrada e saída do país. No final da Idade Média, precisamente no século XIII, surge a grande figura de Santo Tomás de Aquino, que, tomando a vontade de Deus como fundamento dos direitos humanos, condenou as violências e discriminações, dizendo que o ser humano tem direitos naturais que devem ser sempre respeitados, chegando a afirmar o direito de rebelião dos que forem submetidos a condições indignas (DALLARI, 1999, p. 54). 1.4. Os Direitos Humanos na Idade Moderna Com nova ordem econômica mundial, os proprietários de terras já não tinha mais poder, prevalecendo nesse período o oposto do feudalismo, sendo ele o capitalismo. Assim, Dirceu Pereira Siqueira e Miguel Belinati Piccirillo, informam que: “A descentralização política, o predomínio do magistério da Igreja Católica, o estilo de vida feudal, que caracterizaram a idade média, deixam progressivamente de existir, dando azo para a criação de uma nova sociedade, a moderna”. Concluem o pensamento inserindo em seu artigo os ensinamentos do Saudoso Professor de Filosofia Gregorio Peces-Barba Martínez (1999, p. 115-127), que: “Essa mudança comportamental é decorrente de vários fatores tais como o desenvolvimento do comércio que criou uma nova classe, a burguesia, que não participava da sociedade feudal; a aparição do Estado Moderno, ocorrendo à centralização do poder político, ou seja, o direito passa a ser o mesmo para todos dentro do reino, sem as inúmeras fontes de comando que caracterizavam o medievo; uma mudança de mentalidade, os fenômenos passam a ser explicados cientificamente, através da razão e não apenas através de uma visão religiosa, ocorrendo, portanto uma mundialização da cultura”. Sem embargos, cumpre mencionar que esse período foi de suma importância para a sociedade, oferecendo assim quatro diretrizes primordiais para os Direitos Humanos, sendo elas: a)  a Petition of Rights de 1628; b) o Habeas Corpus Act de 1679; c) a Bill of Rights de 1689 e d) a Declaração de Virgínia de 1776, que serão explicados logo abaixo. a) Petition of Rights de 1628 Escrita em de 07 de junho de 1628, firmada por Carlos I, é uma das tantas declarações de direito do século XVII. Tinha como referência a Magna Charta Libertatum, que previa a possibilidade de requerer-se ao rei, dentre outras medidas, que nenhum homem livre fosse despojado de seu feudo, detido ou aprisionado, senão em virtude de sentença. Para enfatizar esta posição Ingo Wolfgang Sarlet (2002, p.43), destaca que: “(…) há que referir o pensamento de Lord Edward Coke (1552 – 1634), de decisiva importância na discussão em torno da Petiton of Right de 1628, o qual, em sua obra e nas suas manifestações publicas como juiz e parlamentar, sustentou a existência de fundamental rights dos cidadãos ingleses, principalmente no que diz com a proteção da liberdade pessoal contra a prisão arbitrária e o reconhecimento do direito de propriedade tendo sido considerado o inspirador da clássica tríade vida, liberdade e propriedade, que se incorporou ao patrimônio do pensamento individualista burguês”. Preconizava no presente documento que nenhum homem livre ficasse sob prisão ou detido ilegalmente, bem como seria obrigado a contribuir com qualquer favor, empréstimo e, muito menos, pagar taxa sem a aprovação de todos, devidamente, manifestado por ato no parlamento, dentre outras coisas. b) Habeas Corpus Act de 1679 Subscrito por Carlos II, em 1679, como mandado judicial em caso de prisão arbitrária ressurgiu com o parlamento inglês, que quase na sua totalidade era representado por protestantes. Estes procuraram por todos os meios cabíveis limitar o poder real, esse poder era de prender os opositores políticos sem submetê-los a um processo criminal legal. Para Alexandre de Moraes (2002, p.26): “A lei previa que por meio de reclamação ou requerimento escrito de algum indivíduo ou a favor de algum indivíduo detido ou acusado da prática de um crime (exceto se tratar de traição ou felonia, assim declarada no mandado respectivo, ou de cumplicidade ou de suspeita de cumplicidade, no passado, em qualquer traição ou felonia, também declarada no mandado, e salvo o caso de formação de culpa ou incriminação em processo legal), o lorde-chanceler ou, em tempo de férias, algum juiz dos tribunais superiores, depois de terem visto cópia do mandado ou o certificado de que a cópia foi recusada, poderiam conceder providência de habeas corpus (exceto se o próprio indivíduo tivesse negligenciado, por dois períodos, em pedir a sua libertação) em benefício do preso, a qual será imediatamente executada perante o mesmo lorde-chanceler ou o juiz; e, se afiançável, o indivíduo seria solto, durante a execução da providência, comprometendo-se a comparecer e a responder à acusação no tribunal competente. Além de outras previsões complementares, o Habeas Corpus Act previa multa de 500 (quinhentos) libras àquele que voltasse a prender, pelo mesmo fato, o indivíduo que tivesse obtido a ordem de soltura”. c) Bill of Rights de 1689  O presente documento decorreu da abdicação do Rei Jaime II, sendo outorgado pelo príncipe de Orange. Documento de suma importância, pois, impunha grandes restrições ao poder estatal, além de fortalecer o princípio da legalidade, criou o direito de petição, instituiu a liberdade de eleição, principalmente para os membros do parlamento, e conferiu a imunidade parlamentar, violação a aplicação de penas cruéis e convocação frequente do parlamento. Assim, Lorivan Antônio Fontoura Trentin (2003, p. 18), relata que: “Essa declaração de direitos estipulou que o Rei não tinha o poder de revogar as leis feitas pelo parlamento ou de impedir a sua execução e mais, proibiu a exigência de fianças excessivamente elevadas para que alguém fosse processado em liberdade, bem como a imposição de penas cruéis ou incomuns. Ao lado dessas conquistas, o Bill of Rights declarava como fundamentais o direito de liberdade de palavra, de imprensa e de reunião, o direito de não ser privado da vida, liberdade ou bens sem processo legal”. O documento em comento teve um papel crucial na separação dos poderes, conforme leciona Fábio Konder Comparato (1999, p. 80-81): “(…) o essencial do documento foi à instituição da separação de poderes, com a declaração de que o Parlamento é um órgão precipuamente encarregado de defender os súditos perante o Rei, e cujo funcionamento não pode, ficar sujeito ao arbítrio deste. Ademais, o Bill of rights veio fortalecer a instituição do júri e reafirmar alguns direitos fundamentais dos cidadãos, os quais são expressos até hoje, nos termos, pelas Constituições modernas, como o direito de petição e a proibição de penas inusitadas ou cruéis”. d) Declaração de Virgínia de 1776 A presente Declaração continha catorze parágrafos, os quais abrangiam direitos natos da pessoa, soberania popular e igualdade perante a lei, sem distinção de classe social, religião, raça ou sexo, bem como igualdade de condição política, podendo assim assumir cargos de governo, além do direito e proteção à liberdade de imprensa e instituição do tribunal do júri. Dessa forma Fábio Konder Comparato (1999, p.98), afirma que: “A Declaração da Virgínia expressa com nitidez os fundamentos democráticos, reconhecimento de direitos natos de toda a pessoa humana, os quais não podem ser alienados ou suprimidos por uma decisão política, este era o fundamento do parágrafo primeiro da Declaração”. Nessa esteira cumpre mencionar a opinião de Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p. 46-47): “As declarações americanas incorporaram virtualmente os direitos e liberdades já, reconhecidos pelas suas antecessoras inglesas do século XVII, direitos estes que também tinham sido reconhecidos aos súditos das colônias americanas, com nota distintiva de que, a respeito da virtual identidade de conteúdo, guardavam as características da universalidade e supremacia dos direitos naturais, sendo-lhes reconhecida à eficácia inclusive em relação à representação popular, vinculando, assim todos os poderes públicos”. 1.5. Direitos Humanos e os acontecimentos após o ano de 1776 No que tange aos acontecimentos em 1776, Melina Girardi Fachin (2009, p. 27), declara que logo após, dois fatores condicionados em textos escritos, propiciaram a consagração dos direitos humanos e direitos fundamentais, sendo eles: as teorias contratualistas e a laicidade do direito natural. Assim, assevera que: “Foi nesse contexto histórico com o desenvolvimento laico do pensamento jusnaturalista, nos séculos XVII e XVIII que as ideias acerca da dignidade da pessoa humana começam a ganhar importância, especialmente pelos pensamentos de Samuel Pufendorf e Immanuel Kant. (FACHIN, 2009, p.48)”. Por sua vez, Fábio Konder Comparato (1999, p. 21), em seu estudo sobre as raízes históricas dos direitos humanos, destaca a importância das noções kantianas de que a pessoa humana é dotada de razão e de liberdade, bem como de que jamais deve ser tratada como meio, para a compreensão da ideia de dignidade: “Ora, a dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado, em si mesmo, como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita”. Ainda sobre a dignidade, Immanuel Kant (2004, p.65), conceitua como sendo a qualidade daquilo que não tem preço e a sua atribuição ao ser humano, justamente porque não é instrumento, senão um fim em si mesmo: “No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não.  admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade. (…) o que se faz condição para alguma coisa que seja fim em si mesma, isso não tem simplesmente valor relativo ou preço, mas um valor interno, e isso quer dizer, dignidade. Ora, a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmos, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador do reino dos fins. Por isso, a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas providas de dignidade.”  Havia uma preocupação no tocante aos limites do poder político, visto a recente passagem do Estado absoluto para o Estado liberal. Nesse sentido destaca Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p. 44-45), que o filósofo inglês John Locke, ao final do século XVIII, estava preocupado em defender os interesses individuais em face dos abusos do Estado, entretanto, foi considerado o precursor ­no reconhecimento de direitos naturais e inalienáveis do homem. Destaca ainda que alguns direitos sociais, principalmente os trabalhistas apareceram após a Revolução Francesa de 1789, entretanto, até no início do século XX, os direitos humanos, bem como os direitos fundamentais predominavam na forma individualista, sendo necessária a intervenção do Estado para a realização da justiça, ficando assim caracterizada a transição de Estado Liberal para o Estado Social, ou seja, a passagem da primeira para a segunda geração de direitos (SARLET, 2004, p. 44-45). Ademais, podemos afirmar que somente a pós-guerra houve de forma internacional o movimento dos direitos humanos, principalmente em 1945, devido o holocausto, bem como as demais violações cometidas na época pelos nazistas, motivo pelo qual houve uma união entre as nações, onde decidiram que os direitos humanos e fundamentais fossem o carro chefe da ONU. Nessa esteira, Norberto Bobbio (2000, p. 49), realça que: “O início da era dos direitos é reconhecido com o pós-guerra, já que “somente depois da 2ª Guerra Mundial é que esse problema passou da esfera nacional para a internacional, envolvendo – pela primeira vez na história – todos os povos”. 1.6. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e sua concepção contemporânea Cumpre mencionar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi aprovada unanimemente pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, sendo a primeira organização internacional que abrangeu quase a totalidade dos povos da Terra, ao afirmar que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Entretanto, essa declaração condensou toda a riqueza dessa longa elaboração teórica, ao proclamar, em seu artigo VI, que todo homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa (PIOVESAN, 2006, p. 13). No Brasil, a Declaração foi assinada em 10 de dezembro de 1948, como já mencionada, foi o marco inicial do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, onde inaugurou a concepção contemporânea reconhecendo a dignidade da pessoa humana, bem como efetivou sua internacionalização. Cumpre mencionar que a presente Declaração era composta por 30 artigos, continha a formalidade no tocante aos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, sendo responsável pela elaboração de alguns pactos internacionais sobre os Direitos Humanos, sendo eles: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o qual foi aprovado em 1966 e entrou em vigor em 23 de março de 1976 e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o qual foi aprovado em 1966 e entrou em vigor em 3 de janeiro de 1976. Para Flávia Piovesan (2006, p. 18), a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 acaba por inovar o conceito de direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, a qual é marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos. Conceitua ainda que, a concepção contemporânea de direitos humanos é uma “unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, na qual os valores da igualdade e liberdade se conjugam e se completam”. Ademais, Flávia Piovesan (2006, p. 17), traz consigo duas importantes consequências sobre a presente concepção: “Na revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que são admitidas intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos; isto é, transita-se de uma concepção “hobbesiana” de soberania centrada no Estado para uma concepção “kantiana” de soberania centrada na cidadania universal, segundo Celso Lafer, na leitura de Flávia Piovesan e na cristalização da idéia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de Direito”. Assim, leciona Flávia Piovesan (2004, p. 57), que: “a concepção contemporânea de direitos humanos caracteriza-se pelos processos de universalização e internacionalização destes direitos, compreendidos sob o prisma de sua indivisibilidade”. Doravante nas obrigações do Estado, Lilith Abrantes Bellinho, explica que os Estados têm a obrigação legal de promover e respeitar os direitos e liberdades fundamentais, não se limitando à sua jurisdição reservada. A intervenção da comunidade internacional deve ser aceita de forma subsidiária em face da emergência de uma cultura global que objetiva fixar padrões mínimos de proteção dos direitos humanos. Nesse contexto Flávia Piovesan (2006, p.140), defende a força jurídica da Declaração de 1948: “(…) a Declaração Universal de 1948, ainda que não assuma a força de tratado internacional, apresenta força jurídica obrigatória e vinculante na medida em que constitui a interpretação autorizada da expressão direitos humanos constante dos arts. 1º (3) e 55 da Carta das Nações Unidas. Ressalta-se que, à luz da Carta, os Estados assumem o compromisso de assegurar o respeito universal e efetivo dos Direitos Humanos. Ademais, a natureza jurídica vinculante da Declaração Universal é reforçada pelo fato de – na qualidade de um dos mais influentes, instrumentos jurídicos e políticos do século XX – ter-se transformado, ao longo dos mais de cinquenta anos de sua adoção, em direito costumeiro internacional e princípio geral do direito internacional”. Para Melina Girardi Fachin (2009, p. 77), a Declaração dos Direitos Humanos de 1948, portanto, sinaliza o início de uma nova era de direitos humanos e, dialeticamente, sintetiza seu desenvolvimento até então e lança bases para o futuro, marcando a vertente contemporânea dos direitos fundamentais, referendada pelas Nações Unidas em 1993. Tal fato, ainda recente, caracteriza a primeira etapa do processo de consolidação dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, ao menos no plano teórico, como categorias universais. 1.7. Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993 e sua concepção pós-contemporânea Cabe salientar que a Declaração dos Direitos Humanos de 1948, possuía natureza jurídica de resolução sem forma cogente no âmbito internacional, motivo pelo qual, houve a necessidade de criar um documento que conferisse maior efetividade aos princípios definidos pela própria  Declaração de 1948, principalmente  no âmbito internacional. Assim, quase quarenta anos após a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 foi realizada em Viena, no ano de 1993, a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, sob o sistema da Organização das Nações Unidas, na qual mais de 180 dos Estados-membros presentes reafirmaram os termos universais da Declaração dos Direitos do Homem. Portanto, a Conferência de Viena veio consagrar e reafirmar o compromisso universal datado de 1948. (FACHIN, 2009, p. 71-72) Flávia Piovesan (2006, p. 16), ressalta que: “(…) a Declaração de direitos Humanos de 1948, quando, em seu §5º, afirma: “todos os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase, a Declaração de Viena afirma ainda a interdependência entre os valores dos Direitos Humanos, democracia e desenvolvimento”. A declaração de Viena consagra em seu preâmbulo seus  princípios, com o compromisso, sob os artigos 55 e 56 da Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal e os dois Pactos de Direitos Humanos, para que tome medidas para garantir maior progresso na observância universal dos direitos humanos, derivados estes da dignidade e do valor inerentes da pessoa humana. Entretanto, requer que todos os povos do mundo e os Estados-membros das Nações Unidas “se redediquem à tarefa global” de promover e proteger todos os direitos humanos de modo a assegurar-lhes de forma plena e universal. Para Flávia Piovesan (2006, p. 187), o processo dinâmico e evolutivo da codificação dos instrumentos de direitos humanos, requer a pronta “ratificação universal” dos tratados de direitos humanos, sem reservas e reclama um maior fortalecimento da inter-relação entre democracia, desenvolvimento e direitos humanos em todo o mundo, advogando a proteção universal destes últimos sem imposição de condições. Se fizermos uma comparativa entre a Declaração Universal de 1948 e a Declaração de Viena de 1993, veremos que esta última efetivou de forma universal os Direitos Humanos, assim explica Flávia Piovesan (2004, p. 63), que: “A Declaração Universal, de 1948, foi adotada por voto, com abstenções, num foro então composto por apenas 56 países, e se levarmos em conta que a Declaração de Viena é consensual, envolvendo 171 Estados, a maioria dos quais eram colônias no final dos anos 40, entenderemos que foi em Viena, em 1993, que se logrou conferir caráter efetivamente universal àquele primeiro grande documento internacional definidor dos direitos humanos”. 2. OS DIREITOS HUMANOS E SUAS GERAÇÕES DENTRO DOS ASPECTOS DOUTRINÁRIOS E FILOSÓFICOS De acordo com as mutações históricas e as ideologias sociais, os direitos humanos passaram a ter várias gerações aparecendo assim em diversas Constituições, vindo a consolidar-se no ordenamento jurídico pátrio, como por exemplo,  na Carta Magna de 1988.   Cabe salientar, que tal sistematização dos direitos humanos em gerações de direitos, não acompanha qualquer hierarquização desses valores, mas tão só corresponde ao seu reconhecimento em dado momento histórico e em determinados ordenamentos jurídicos. Podemos esquematizar as gerações de direitos humanos da seguinte forma:  a) 1ª Geração – liberdades públicas e direitos políticos; b) 2ª geração – direitos sociais, econômicos e culturais; c) 3ª geração – direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos; d) 4ª geração – direitos da bioética e direito da informática. 2.1. A Primeira Geração (Dimensão)  A primeira geração dos Direitos Humanos remonta no artigo II da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, anunciada na França em 26 de agosto de 1789. Assim, estatui o artigo II que: O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais que são imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Para Ingo Wolfgang Sarlet (2005, p.54): “Os direitos humanos fundamentais da primeira dimensão encontram suas raízes especialmente na doutrina Iluminista e Jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII (nomes como Hobbes, Locke, Rousseau e Kant), segundo a qual, a finalidade precípua do Estado consiste na realização da liberdade do indivíduo, bem como nas revoluções políticas do final do século XVIII, que marcaram o início da positivação das reivindicações burguesas nas primeiras constituições escritas no mundo”. No que se refere ao artigo II da citada Declaração, Rafael Augusto de Conti, disserta a importância de estarmos atentos a dois pontos do trecho acima transcrito, que os Direitos são Naturais e que há uma sobreposição, ou seja, confusão entre os Direitos do Homem e os Direitos do Cidadão. Em relação aos Direitos como liberdade e propriedade serem naturais, podemos informar várias filosofias, dentre as quais, a de John Locke (1.632 – 1.704). Entretanto, este pensador irá argumentar em seu ensaio de juventude intitulado "Ensaios sobre a Lei de Natureza", que existe uma lei universal que todos somos capazes de apreender, pois a mesma é apreendida pela razão, faculdade que todos possuímos. Já o pensador Tomas Hobbes (1588 – 1679): por sua vez, argumenta que todos possuímos o direito (liberdade) a lutar por nossa sobrevivência em razão de nossa própria constituição natural, assim segue suas argumentações: “Quando alguém transfere o seu direito, ou a ele renuncia, o faz em consideração a outro direito que reciprocamente lhe foi transferido, ou a qualquer outro bem que daí espera. Pois é um ato voluntário, e o objetivo de todos os atos voluntários dos homens são algum bem para si  mesmos”. “Portanto, há alguns direitos que são impossíveis de se admitir que alguns homens, por quaisquer palavras ou outros sinais, possam abandonar ou transferir. Em primeiro lugar, ninguém pode renunciar ao direito de resistir a quem o ataque pela força para lhe tirar a vida, pois é impossível admitir que com isso vise algum benefício próprio. O mesmo se pode dizer dos ferimentos, das cadeias e do cárcere, tanto porque desta resignação não pode resultar benefício – como há quando se resigna a permitir que outro seja ferido ou encarcerado, mas também porque é impossível saber, quando alguém lança mão da violência, se com ela pretende ou não provocar a morte. Por último, o motivo e fim devido ao qual se introduz esta renúncia e transferência do direito não é mais do que a segurança da pessoa de cada um, quanto à sua vida e quanto aos meios de preservá-la de maneira tal que não acabe por dela se cansar. Portanto, se por palavras ou outros sinais um homem parecer despojar-se do fim para que esses sinais foram criados, não se deve entender que é isso que ele quer dizer, ou que é essa a sua vontade, mas que ele ignorava a maneira como essas palavras e ações iriam ser interpretadas”. Referente ao segundo ponto da temática que é a sobreposição entre o Direito do Homem e o Direito do Cidadão, Rafael Augusto de Conti, foi incisivo na seguinte colocação: “Quando se diz que o fim de toda associação é a conservação dos direitos naturais, vê-se que estes possuem como protetor, garantidor, o que contemporaneamente chamamos de Estado. É neste ponto que surge a ideia do Estado Garantidor de tais Direitos, que são considerados como os básicos”. Começa a instaurar uma relação que é à base da crítica dos pensadores que vão contra os Direitos Humanos e que, também, paradoxalmente, é à base da evolução dos Direitos Humanos de Primeira Geração para os de Segunda Geração. Nesse sentido aponta a crítica de Rousseau (1.712 – 1782), sobre o verbete do Direito Natural defendida por Denis Diderot (1.713 – 1.784), que era necessário o retorno para a vida social não de forma abstrata como vem ocorrendo na Modernidade, senão vejamos: “Somente da ordem social estabelecida entre nós é que extraímos as ideias daquela que imaginamos. Assevera que a defesa dos Direito Humanos deve começar, antes, dentro das próprias comunidades políticas existentes, e não pelo caminho inverso (nos dias de hoje, diríamos por meio de órgãos internacionais, por exemplo). Portanto, na Modernidade, o Direito do Homem é o Direito do Cidadão. Para os pensadores que instauram este espaço público de debate, o homem singular, concreto, é portador de um Sujeito Transcendental (aos moldes kantianos) e que, enquanto portador de tal Sujeito, ele é detentor também de Direitos Inalienáveis, Imprescritíveis, Imutáveis, ou seja, de Direitos Naturais. Não obstante, paradoxalmente, para alguns destes pensadores, um Direito Humano só é passível de ser defendido dentro de uma Comunidade Política, ou seja, apenas quem é cidadão é que pode ter os seus Direitos assegurados. É interessante notar que, mesmo em Kant, o cidadão do mundo é, antes, o cidadão de uma determinada nação. 2.2. A Segunda Geração (Dimensão) Foi instituída ao longo do século XIX, pelos movimentos do proletariado, buscando a efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais. Para Celso Lafer (1988, p.127), os direitos de segunda geração são os de trabalho, saúde, educação, dentre outros, informando que o sujeito passivo é o Estado, o qual tem o dever de realizar prestações positivas aos seus titulares, os cidadãos, em oposição à posição passiva que se reclamava quando da reivindicação dos direitos de primeira geração. Já no aspecto filosófico, Karl Marx (1.818 – 1883) em seu texto intitulado “Sobre a questão judaica ”, critica os Direitos Humanos dizendo que existe uma separação entre a sociedade civil atomizada (ou seja, individualista) e a comunidade política que a comanda. Diz o filósofo alemão: “Os direitos do homem, direitos dos membros da sociedade burguesa, são apenas os direitos do homem egoísta, do homem separado do homem e da coletividade”. Ao denunciar a separação da sociedade civil da política de Estado, Marx, relata que grande parte da Humanidade, que são os trabalhadores, é controlada por uma minoria (os burgueses) criando  um debate sobre a existência e eficácia dos Direitos Humanos. Nesse sentido Rafael Augusto de Conti, informa: “Pode-se dizer que Marx, ao apontar os problemas do capitalismo em sua versão agressiva dos liberalistas, aponta, ao mesmo tempo, para um novo modelo de Estado Constitucional: o Estado Social de Direito. Este, por sua vez, é aquele que vai permitir a positivação de Direitos Humanos de 2ª Geração ao redor do mundo. A primeira positivação de tais direitos se deu com a Constituição Mexicana de 1.917 que assegura direitos sociais, por exemplo, aos camponeses e aos trabalhadores assalariados”. Por fim, observa que o filósofo alemão vai contra, em princípio, à própria ideia de Direitos Humanos, por esta ser idealista e pelos motivos acima já transcritos. No entanto, o conteúdo de sua crítica é o que vai estabelecer o cenário possível para o reconhecimento dos Direitos Humanos de 2ª Geração. Finalizando o breve estudo sobre os direitos humanos de segunda geração, é importante trazer a baila os ensinamentos do Professor Oswaldo Giacoia Junior, que assevera: “A segunda geração dos direitos humanos, com titularidade centrada na pessoa social, é constituída pelos direitos econômicos, sociais e culturais, cuja positivação resulta tanto dos imperativos de justiça social surgidos no curso do desenvolvimento do capitalismo industrial, na passagem do século XIX para o XX – com sua exigência de igualdade concreta em contrapartida ao formalismo jurídico característico da conquista dos direitos civis – quanto dos movimentos políticos que levaram ao socialismo real, e da influência moral e política exercida pela doutrina social da Igreja Católica. Trata-se, em verdade, de uma especificação da titularidade dos direitos humanos que marca a passagem do plano abstrato do destinatário genérico – "o homem", o gênero humano – para categorias concretas ou grupos sociais específicos (trabalhador, idoso, mulher, criança, adolescente, deficiente, consumidor, etc.)”. 2.3. A Terceira Geração (Dimensão) dos Direitos Humanos Possui característica de titularidade difusa, sendo concebidos para proteção da coletividade. Visto às inúmeras dificuldades, bem como das conquistas decorrentes da diuturna luta social pelo reconhecimento e eficácia dos direitos de primeira e segunda geração e outros valores não prioritários na sociedade ocidental, tais direitos estiveram em pauta de discussão ao final da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Entretanto, os direitos de terceira geração são chamados direitos difusos ou coletivos, os quais tutelam a paz, o desenvolvimento, o meio ambiente, o patrimônio histórico e cultural. Assim confirma Gustavo Bregalda (2007, p.97), que a “Terceira Geração (Dimensão) de Direitos Humanos elege os direitos de solidariedade e fraternidade, sendo seus componentes o meio ambiente equilibrado, a vida saudável e pacífica, o progresso e o avanço da tecnologia”. Dentro dos Aspectos Filosóficos, o Professor Oswaldo Giacoia Junior, leciona que: “Numa terceira geração, surgem os direitos coletivos, de solidariedade ou de titularidade difusa, sendo também o momento histórico em que predomina a tendência à internacionalização dos direitos humanos. Ocorre, então, a positivação, tanto no plano das constituições dos Estados nacionais, quanto principalmente naquele do direito internacional público, da proteção aos direitos que concernem solidariamente à humanidade. Por exemplo, aqueles ligados à paz, ao desenvolvimento, à conservação do meio ambiente, ao desenvolvimento sustentado, ao patrimônio genético, ameaçados pelas consequências indesejáveis do extraordinário progresso e da extensão planetária da técno-ciência, sobre cuja dinâmica se assenta a configuração atual da sociedade, tanto no âmbito da produção e circulação de bens, como naquele do consumo e lazer”. Por fim, o Professor destaca: “(…) especialmente a linha de especificação – que, nos próprios termos de Bobbio, pode ser compreendida como a manifestação, "nestes últimos anos, de uma nova linha de tendência; ela consiste na passagem gradual, porém cada vez mais acentuada, para uma ulterior determinação dos sujeitos de direito”. 2.4. A Quarta Geração (Dimensão) dos Direitos Humanos Considerados como novos tais direitos se preocupam com a globalização e principalmente com as constantes mudanças do mundo atual. Para que possamos compreender, Paulo Bonavides (2009, p. 571), traz uma conceituação, sendo ela: “Globalizar direitos fundamentais equivale a universalizá-lo no campo institucional. Só assim aufere humanização e legitimidade um conceito que, doutro modo, qual vem acontecendo de último, poderá aparelhar unicamente a servidão do porvir […]. São direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo”. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência. Como podemos observar que a evolução dos direitos humanos deu-se impulsionada para conjuntura social da época. 3. SISTEMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS Temos como principais instrumentos normativos que sustentam a proteção universal dos direitos humanos a Carta das Nações Unidas, de 1945; a Declaração  Universal dos Direitos Humanos, de 1948; o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, estes dois últimos do ano de 1966. O grande mecanismo impulsionador do processo de generalização da proteção dos direitos humanos é a Declaração Universal dos Direitos Humanos.  Outros tantos instrumentos, tratados e convenções foram elaborados visando promover os direitos humanos. Não obstante tudo isso os direitos humanos tem sua proteção não apenas pelo fato de terem declarações, pactos e normas constitucionais que garantem tal proteção. Para que a garantia se efetive é necessária uma organização que de fato seja articulada, integrando os sistemas de proteção. Uma demanda cada vez mais crescente ao redor da efetivação dos direitos humanos trouxe a baila os sistemas e seus mecanismos de proteção dos direitos humanos no âmbito internacional. Tais sistemas foram organizados em diferentes níveis, dentre eles o sistema em  nível global.  O Sistema Global de proteção dos Direitos Humanos, também chamado de Sistema Universal, ou para alguns Sistemas da ONU, possui como fonte normativa imediata a já elencada Carta das Nações Unidas de 1945. A referida carta diz  que os Estados devem promover a proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais exigindo assim a necessidade de efetivação dos mesmos direitos. Tal sistema é parte integrante da estrutura da Organização das Nações Unidas. Dentro do Sistema Global possuímos dos tipos de instrumentos normativos: os gerais e os especiais.  Ao falarmos em instrumentos normativos gerais estamos nos referindo principalmente àqueles que integram a chamada Carta Internacional de Direitos Humanos, que é formada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.  São tratados como gerais porque estão direcionados a toda e qualquer pessoa humana, sem nenhuma distinção.    Já ao falarmos de instrumentos normativos especiais, estamos falando das diversas Convenções Internacionais uma vez que estão voltadas à prevenção da discriminação ou à proteção de pessoas ou grupos de pessoas em situações de vulnerabilidade, que por algum motivo merecem uma tutela diferenciada, especial. Na intenção de dar suporte à vigilância, supervisão e fiscalização do cumprimento desses instrumentos normativos sejam gerais ou especiais, fez-se necessária a criação de mecanismos e organismos convencionais e extraconvencionais, pois só assim teríamos assegurado o respeito e cuidado para com os instrumentos de efetivação da proteção.  Temos por convencionais  aqueles que obrigam os Estados contratantes enquanto que extraconvencionais são aqueles que vinculam os membros de determinada organização. Podemos mencionar como principais organismos e mecanismos extraconvencionais e convencionais:  a Comissão de Direitos Humanos da ONU; o novo Conselho de Direitos Humanos da ONU; os comitês de Direitos Humanos e os Relatores Especiais e os Grupos de Trabalho. A certeza da proteção da dignidade da pessoa humana passa por um Sistema Global eficiente e de fato eficaz, que promova, proteja e faça a reparação dos direitos humanos. O Sistema Global, integrado por seus diversos organismos convencionais e extraconvencionais, depara-se com um grande desafio: promover o aperfeiçoamento institucional, em busca da credibilidade ameaçada em face dos novos conflitos em exposição na comunidade internacional. É certo que muitas barreiras e obstáculos ainda precisam ser vencidos para que todos os direitos humanos sejam garantidos à totalidade das pessoas nos diversos rincões sociais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os Direitos Humanos são o fundamento do estado democrático e desta forma entraram na pauta das políticas públicas de vários países.  Não há como se pensar na sociedade moderna nação que seja alheia aos mecanismos de proteção dos Direitos Humanos. Abster-se da compreensão e da proteção de tais direitos só demonstraria o desrespeito às convenções internacionais e a total indiferença em relação a convivência em sociedade. A dignidade da pessoa humana é o bem mais precioso do estado democrático, sem buscarmos novos mecanismos de efetivação desse estado, sem lutarmos pela implantação de novas políticas públicas de proteção à pessoa de nada adiantará todo o esforço empreendido ao longo das décadas, numa caminhada constante e firme na proteção dos direitos humanos. As diferentes gerações de direitos humanos devem encontrar guarida nos estudos modernos, e  buscar a sua efetivação nos  diferentes mecanismos extraconvencionais e convencionais do sistema global de proteção desses mesmos direitos.  Estamos iniciando um caminho longo, árduo para que possamos enfim chegar à sua plenitude. Mas caminhar sempre, às vezes com pequenos passos, outras vezes com passadas mais largas, mas sempre persistindo na estrada da efetivação plena, da dignidade conquista para todos, sem acepção.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-evolucao-historica-dos-direitos-humanos-no-plano-internacional-doutrina-e-filosofia/
Aspectos gerais sobre o sistema árabe de proteção aos direitos humanos
Este artigo aborda sobre o Sistema de Proteção aos Direitos Humanos no mundo árabe, relatando sobre os atos que tem sido feitos para o surgimento deste sistema e fazendo uma abordagem sobre a Declaração Árabe dos Direitos Humanos, mostrando à interpretação dos Direitos Humanos a luz dos valores islâmicos, desmistificando muitos pontos que têm gerado dúvidas acerca deste sistema nascente, na sociedade ocidental, mostrando através deste trabalho, a concepção árabe acerca dos Direitos Internacionais dos Direitos Humanos, e desta nova fase de tutela dos direitos humanos que têm atravessado o mundo nos últimos anos[1].
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO – OS DIREITOS HUMANOS E O ISLAMISMO O nascimento da fé islâmica se dá por volta do século VII d.C. período em que o Império Romano estava entrando em decadência e as regiões do Oriente Médio, que não haviam sido dominadas por este, cultuavam crenças politeístas, ao contrário das regiões dominadas pelo império, onde o Cristianismo crescia vertiginosamente. A existência de diversos povoados isolados na península arábica com crenças religiosas distintas, impossibilitavam a unificação da península em um único Estado-nacional forte, em virtude da falta de identidade cultural entre estes, bem como a intolerância religiosa entre indivíduos de um grupo para com o outro, fazendo que a península vivesse constantemente em guerras entre povoados distintos, o que fazia a região se tornar bastante propensa à dominação por outra nação mais organizada, graças à fragilidade das nações que ali se encontravam. Outro fator bastante delicado na região eram as relações comerciais, bastante dificultadas pela falta de unidade na península, impedindo o fluxo comercial em virtude de guerras encontradas no percurso e regras distintas entre um povoamento e outro, fenômeno bastante semelhante ao que viveria a burguesia durante a baixa idade média. Naquele tempo, a Meca era o centro da península arábica, era na Meca onde os habitantes da península realizavam a prática do comércio e também se realizavam o culto as diversas divindades das tribos pagãs árabes. Posteriormente, a Meca se tornaria o centro religioso da fé-islâmica, como permanece até os dias atuais, sendo esta causa uma das que mais fomentam anualmente, a ida de peregrinos, todos os anos, para a Arábia Saudita. Como a religião islâmica surgiu com o fim de integrar os povos da Arábia resultando numa inevitável unificação local, a fé-islâmica trouxe em seu livro sagrado muitas regras comportamentais e políticas que se consolidaram ao longo dos séculos como regras fundamentais deste povo, moldando hábitos e costumes da região onde o islamismo predominou, diferenciando-as em relação às demais regiões do globo. Os princípios introduzidos pelo islamismo através do alcorão e da sharia sofreram enormes mutações ao longo do tempo, quanto a sua aplicabilidade nos países islâmicos. Na Turquia, com a introdução do regime republicano, as leis da sharia perderam valor jurídico em favor de códigos de lei elaborados com base na legislação europeia vigente na época, sendo isto uma consequência da secularização do Estado Turco ocorrida com a implantação do regime republicano neste país. Em um sentido bastante contrário ao turco, figuram o Irã, a Síria e a Arábia Saudita, onde as leis da Sharia são ainda aplicáveis, mesmo no caso iraniano ou sírio onde os países adotaram o regime republicano, tendo uma pequena peculiaridade no caso iraniano, onde o sistema republicano introduziu o uso dessas normas como oficiais, em virtude da forma de regime republicano que o Estado Iraniano adotou a República Islâmica. Este crescimento da adoção da Sharia no mundo árabe, em função do fundamentalismo islâmico, culminou em um inevitável conflito entre as normas de Direitos Humanos adotada no ocidente com as regras dispostas neste instrumento normativo islâmico. Uma das evidências deste conflito, independentemente de sua aplicação de forma fundamentalista ou não, é a desigualdade entre os gêneros, repudiada nos Direitos Humanos ocidentais em inúmeros instrumentos. Todavia, apesar de serem vistas como repressoras e contrárias aos Direitos Humanos pelos ocidentais, a violação dessas regras pelos muçulmanos é vista como uma falta grave e veem as normas ocidentais como muito avançadas e imorais, não podendo se falar em Direitos Humanos nos países islâmicos, aos moldes ocidentais, no contexto histórico e cultural que estes países vivem atualmente, podendo-se reconhecer lesões aos direitos humanos dos povos árabes, majoritariamente seguidores da fé islâmica, causadas pela aplicação destas normas de Direitos Humanos aos moldes ocidentais. Em virtude particularidades regionais, a aplicação das normas de Direitos Humanos exigiu a criação de organismos regionais para a proteção destes direitos de acordo com as características regionais, respeitando as particularidades históricas, culturais e econômicas daquela região, visando com isto efetivar a aplicação destes direitos adotando-se medidas especificas para o alcance deste objetivo na região de jurisdição daquele organismo regional de proteção aos direitos humanos. 2. SISTEMA ÁRABE DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS Ainda no sentido de regionalização da tutela aos direitos humanos, a criação de um organismo de proteção ao sistema árabe de proteção aos direitos humanos tornou-se crucial em virtude das imensas particularidades desta região geopolítica do globo. A criação de um sistema de proteção aos direitos humanos na região ainda encontra-se um pouco distante de se concretizar, todavia, os países desta região já firmaram entre si acordos internacionais que caminham na construção deste sistema de proteção aos direitos humanos baseado nos moldes culturais, históricos e econômicos da região geopolítica do mundo árabe. 2.1. DECLARAÇÃO ISLÂMICA UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS A Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos foi proclamada em 19 de Setembro de 1981, pelo Conselho Islâmico em Paris, trazendo em seu teor características bastantes peculiares adaptativas em relação à Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas de 1948, havendo ambos os textos, em uma análise superficial muitas semelhanças, mas em uma análise mais aprofundada percebe-se que se trata de uma adaptação da declaração original voltada aos princípios da fé-islâmica, invocados constantemente ao longo da declaração. 2.1.1. ESTUDO SOBRE O PREFÁCIO Um pouco extenso, o Prefácio da Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos trás ao longo de seu teor menções ao profeta Maomé e a Alá (Deus), introduzindo a declaração com a histórica ligação que o Islamismo tem para com os Direitos Humanos na proteção a honra e a dignidade da pessoa humana, bem como no combate a exploração, opressão e injustiça, ficando notável a preocupação do islamismo na tutela destes direitos, sempre os protegendo com normas que, segundo o prefácio da declaração, emanam da crença em Alá (Deus) tendo o islamismo a crença que somente Ele é Legislador e fonte de todos os Direitos Humanos, não podendo nenhum governo ou autoridade reduzir ou violar os Direitos Humanos cedidos por Deus, assim como não podem ser cedidos. Com uma breve análise nesta transcrição interpretativa do prefácio da Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos observa-se que a declaração busca com o temor a Deus, intimidar os governantes a não reduzir ou violar os Direitos Humanos, crendo a declaração na perfeição divina de Alá que concedeu os Direitos Humanos que seriam justos e necessários a humanidade, não podendo os governantes os suprimir, evidenciado que estariam sendo injustos nesta conduta. Desta forma fica evidente que os Direitos Humanos do Islamismo emanam do Alcorão, que é a palavra de Alá (Deus) escrita, acessível a todos os homens. Desta forma, bastando ler esta parte do prefácio podemos entender que a Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos é na verdade uma interpretação da Declaração Universal dos Direitos Humanos sob a ótica do Alcorão, suprimindo os direitos excessivos e acrescendo os direitos que o alcorão prevê aos seguidores da fé-islâmica, que deverão ser assegurados pelo governante de um país islâmico. No meio do prefácio mostra-se a preocupação dos elaboradores da declaração com o desrespeito aos Direitos Humanos que têm sido praticados pela humanidade na contemporaneidade estabelecendo com a declaração um compromisso de defesa a estes direitos como marca do começo do décimo quinto século islâmico. No fim do prefácio, fica explicito que os direitos constantes na declaração têm suas fontes na Suna e no Alcorão e que a declaração na prática trata-se de uma compilação dos direitos constantes nestes livros sagrados da fé-islâmica feita por estudiosos, juristas e representantes muçulmanos dos movimentos e pensamentos islâmicos. 2.1.2. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS DA DECLARAÇÃO Nas considerações iniciais o texto introdutório torna explicito o papel dos valores do islã em garantir uma ordem social mais justa com os ensinamentos de Alá (Deus) constantes no Alcorão e na Suna, de autoria do profeta Maomé, onde se encontra a base moral e legal permanente para estabelecer e regulamentar as instituições e relações humanas. Ainda no texto das considerações iniciais é possível notar a preocupação social que a declaração trás consigo em seu teor, preocupando-se não somente em fazer valer os princípios islâmicos como também com a subsistência econômica abundante que está sendo desperdiçada ou injustamente negada aos habitantes da Terra, mostrando uma nítida preocupação da declaração com a desigualdade e a miséria social que vive boa parte da população mundial. Implicitamente, a declaração trás nas considerações iniciais uma preocupação para com a exploração e as guerras que o povo islâmico tem enfrentado no contexto de sua elaboração, figurando esta preocupação de modo genérico, na primeira consideração da declaração, transcrita abaixo, com o conteúdo aspiratório sublinhado: “CONSIDERANDO que a antiga aspiração humana por uma ordem mundial mais justa, onde as pessoas possam viver, crescer e prosperar num ambiente livre do medo, da opressão, da exploração e da privação, ainda não foi alcançada”; Por fim, nas duas últimas considerações finais do texto da declaração, reforça-se a ideia inicial do prefácio da declaração sobre direitos humanos, sua concessão e a missão do islã na proteção a estes direitos. A repetição enfática da expressão cedidos no prefácio é novamente repetida nas considerações introdutórias à declaração que em ambas as aparições dão margem a dupla interpretação, conforme consta sublinhado na transcrição da consideração citada abaixo: “CONSIDERANDO que em razão de sua fonte e sanção Divinas tais direitos não podem ser diminuídos, abolidos ou desrespeitados pelas autoridades, assembleias e outras instituições, nem podem ser cedidos ou alienados”; Todavia, entendendo que quando versar sobre Direitos Humanos este deve ser sempre interpretado em prol da humanidade (in dubio pro humanitate), podemos entender que o cedido se refere na irrenunciabilidade aos direitos constantes na carta isto é, não pode nenhum indivíduo abrir mão de seus direitos humanos, em hipótese alguma, pois eles são sagrados, reforçando-se a ideia com a expressão alienados, que pode ser interpretada para seu uso nas relações trabalhistas nos países islâmicos, fazendo o texto da consideração entender que nem na hipótese de venda da força de trabalho pode haver violações aos Direitos Humanos constantes na declaração. Também podemos entender no quesito a inalienação dos Direitos Humanos quanto aos realities show que normalmente tem como foco a supressão de algum direito fundamental em troco de algum prêmio, podendo isto ser facilmente entendido como uma alienação, que para o sistema árabe seria algo terminantemente proibido, o que com certeza inviabilizaria a elaboração destes programas nos países abrangidos por este sistema. 2.1.3. CRENÇAS MUÇULMANAS SOBRE OS DIREITOS HUMANOS Em um rol de oito alíneas, estão dispostas as considerações iniciais sobre a fé-islâmica e o seu compromisso com os direitos humanos, reforçando a origem das normas do islã e o papel do homem em satisfazer as vontades de Alá (Deus) aqui na Terra, ou seja, o dever dos seres humanos em fazer valer as normas de direitos humanos. Na alínea “e” trás ainda a ideia de universalidade dos Direitos Humanos constantes na declaração, onde cita que a mensagem do Islã é para toda a humanidade, isto significa que os direitos postos naquela carta são para todos os indivíduos, independentemente de crença religiosa. Por fim, em virtude de a declaração ser um instrumento nitidamente vinculado a uma crença religiosa seria evidente que ela trouxesse algum compromisso obrigacional, neste caso restrito aos muçulmanos, nas alíneas “f” e “g”, o dever e obrigação de todos os muçulmanos em divulgar os ensinamentos do Islã, buscando torna-los efeitos não só na vida privada como na sociedade buscando estabelecer uma ordem islâmica. Ainda na alínea “f” a declaração trouxe a prevalência dos deveres e obrigações aos muçulmanos, frente aos direitos, isto quer dizer que, as obrigações religiosas dos muçulmanos não deverão deixar de ser cumpridas, sendo que o impedimento à prática destas seria, sem sombra de quaisquer dúvidas, uma nítida violação aos Direitos Humanos sob a ótica desta declaração. 2.1.3.1. ORDEM ISLÂMICA O texto introdutório da declaração, trás em sua alínea “g” catorze incisos que definem o que é a Ordem Islâmica que todos os muçulmanos têm por obrigação estabelecer. Segue abaixo a transcrição da alínea e dos incisos conforme figuram no texto da declaração: Por conseguinte, nós, como muçulmanos, que acreditamos: a. Em nossa obrigação em estabelecer uma ordem islâmica: 1.    Onde todos os seres humanos sejam iguais e que ninguém goze de privilégios ou sofra prejuízo ou discriminação em razão de raça, cor, sexo, origem ou língua; 2.    Onde todos os seres humanos nasçam livres; 3.    Onde a escravidão e o trabalho forçado sejam abolidos; 4.    Onde as condições sejam estabelecidas de tal forma que a instituição da família seja preservada, protegida e honrada como a base de toda a vida social; 5.    Onde os governantes e governados sejam submissos e iguais perante a Lei; 6.    Onde a obediência seja prestada somente àqueles mandamentos que estejam em consonância com a Lei; 7.    Onde todo o poder mundano seja considerado como uma obrigação sagrada a ser exercido dentro dos limites prescritos pela Lei e nos termos aprovados por ela e com o devido respeito às prioridades fixadas nela; 8.    Onde todos os recursos econômicos sejam tratados como bênçãos divinas outorgadas à humanidade, para usufruto de todos, de acordo com as normas e os valores estabelecidos no Alcorão e na Suna; 9.    Onde todas as questões públicas sejam determinadas e conduzidas, e a autoridade para administrá-las seja exercida após consulta mútua (shura) entre os fiéis qualificados para contribuir na decisão, a qual deverá estar em conformidade com a Lei e o bem público; 10.  Onde todos cumpram suas obrigações na medida de sua capacidade e que sejam responsáveis por seus atos pro rata; 11.    Onde, na eventualidade da infringência a seus direitos, todos tenham asseguradas as medidas corretivas adequadas, de acordo com a Lei; 12.  Onde ninguém seja privado dos direitos assegurados pela Lei, exceto por sua autoridade e nos casos previstos por ela; 13.  Onde todo o indivíduo tenha o direito de promover ação legal contra aquele que comete um crime contra a sociedade, como um todo, ou contra qualquer de seus membros; 14.  Onde todo empenho seja feito para b) Assegurar que a humanidade se liberte de qualquer tipo de exploração, injustiça e opressão; c) Garantir a toda a seguridade, dignidade e liberdade nos termos estabelecidos e pelos meios aprovados, e dentro dos limites previstos em lei. Olhando-se pela primeira vez este rol de uma forma superficial é possível notar a semelhança da Ordem Islâmica com históricas aspirações ocidentais, sendo possível fazer de uma forma inevitável uma comparação de muitos elementos da Ordem Islâmica com elementos das ideias iluministas que inspiraram a Revolução Francesa e muitas revoluções ocorridas no ocidente no século XIX, como, por exemplo, a igualdade de direitos entre os indivíduos, o direito de liberdade e o regimento do Estado por leis (Estado de Direito) de acordo com os incisos 5, 6 e 7 deste rol explicativo sobre a Ordem Islâmica. Há também previsto neste rol de direitos, no inciso de nº. 8 (oito), algo bastante semelhante a um princípio adotado na Doutrina Social da Igreja Católica, o princípio da destinação universal dos bens, que serviu no ordenamento jurídico brasileiro como base fundamental para a obrigação patrimonial da função social do bem, incorporado com a Constituição Federal de 1988. Desta forma, como diz o inciso explicativo sobre a ordem islâmica que houvera sido citado, tem como finalidade assegurar esta função social do patrimônio negando a ideia de que o bem tenha um proprietário que somente ele pode fazer uso da propriedade de forma egoística, fazendo o texto do inciso, entender que a propriedade pertence a todos, pois ela é uma concessão divina, desta forma, o Direito de Propriedade é sagrado devendo este direito se reverter em favor da população, gerando frutos que sejam bons para toda a coletividade, pois o direito de fazer uso da propriedade bem como ter direito a seus frutos pertence a toda humanidade e não apenas a alguns indivíduos, mostrando um nítido repúdio da declaração ao capitalismo selvagem e individualista. Outra caraterística bastante peculiar da Ordem Islâmica e frequente ao longo da declaração é a prevalência das obrigações, surgindo à ideia de que todo direito emana de uma obrigação, não havendo direitos sem obrigações a cumprir, todavia, a Ordem Islâmica, que pode ser vista como modelo de sociedade ideal aos olhos do islamismo, prevê limites justos a esta obrigação, vedando que as obrigações sejam excessivas, devendo estas respeitar a capacidade individual de cada um, conforme prevê o inciso 10, que se interpretado com o inciso 1º, implicitamente a declaração quer dizer que o princípio de igualdade adotado para o islã, não é um princípio superficial, se assemelhando bastante com o principio da isonomia adotado no ocidente: “Tratar os desiguais desigualmente na medida de suas desigualdades”. A Ordem Islâmica prega a supremacia legal nas relações sociais, assegurando limites e privilégios na aplicação da lei, nos incisos 11º ao 13º, que também possuem muitas semelhanças com princípios adotados no ocidente. No inciso 11º, tem-se implicitamente previsto a questão da obrigatoriedade da anterioridade da lei penal e explicitamente o papel punitivo do Estado, tido como um direito da coletividade no texto da Ordem Islâmica, tanto para a vítima que teve seu direito lesado, que tem o direito de ver quem lhe cometeu algum mal ser condenado, tanto para o réu, que somente pode ser condenado nos termos previstos na Lei, havendo uma nítida proibição à justiça popular e a aplicação de penas abusivas pelo Estado, devendo toda pena buscar fundamento na Lei, não podendo ser punido aquilo que nela não esteja previsto e somente pode ser punido nos temos em que esta estabelecer. No inciso 13º encontra-se a proteção ao Direito de Ação aos indivíduos que tenham seus direitos lesados de forma bastante similar à adotada no ocidente, tendo por fim, nos incisos 12º e 14º, uma pelo final da parte introdutória, onde se reforça novamente as ideias postas desde o prefácio da declaração, como a vedação aos regimes autocráticos, a proteção aos Direitos Humanos, dando importante ênfase à proteção a liberdade e a dignidade da pessoa humana e ao combate a injustiça e a opressão. Os direitos instituídos pela declaração apresentam nitidamente o anseio da declaração em buscar a implantação da Ordem Islâmica, tendo todos os dispositivos concessores de direitos da declaração algo que denuncia esta tendência tanto no aspecto social, moral ou econômico. 2.1.4. CARTA DE DIREITOS O rol de direitos da declaração compreende vinte e três incisos, cada um assegurando um direito individual de natureza de direitos humanos com fundamentação buscada diretamente no alcorão que para lei islâmica, o Alcorão é a palavra de Alá (Deus) emanando deste livro sagrado todos os direitos humanos, reforçando-se a ideia de proteção divina a estes direitos. Superficialmente, este rol de direitos visa apenas assegurar uma fundamentação islâmica aos Direitos Humanos assegurados à Declaração de Direitos Humanos das Nações Unidas, todavia esta interpretação é errônea, pois o teor da declaração suprimiu alguns direitos que não possuem fundamentação no Alcorão e assegurou outros direitos que possuem previsão em outros documentos garantidores de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) ou ainda outros tidos como inéditos, que não possuem nenhuma previsão em outro documento assecuratório de direitos humanos no âmbito internacional, mas em virtude da relevância do tema para o islamismo, são tidos na declaração islâmica como direitos humanos fundamentais, ainda que não tenham uma natureza tão relevante na tutela ocidental dos direitos humanos. 2.1.4.1 CARACTERÍSTICAS DO ROL DE DIREITOS O rol de direitos da declaração tem além da fonte eminentemente religiosa, características assecuratórias de direitos de primeira e segunda dimensão, segundo a classificação de Norberto Bobbio, diferenciando-se de forma mais benéfica em relação à Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU neste sentido, assegurando aos indivíduos não somente os direitos negativos, mas também direitos sociais aos indivíduos, como por exemplo, a inclusão no rol de direitos, a proteção às relações trabalhistas e a seguridade social, que são direitos de segunda dimensão, assegurados no âmbito internacional por outros instrumentos, como convenções da Organização Internacional do trabalho (OIT), podendo ser considerado como inovador a inclusão destes instrumentos na Declaração Islâmica Universal de Direitos Humanos, gerando uma harmonia entre os princípios da fé-islâmica, a declaração de direitos humanos da ONU e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais, que possui alguns de seus elementos reforçados pela declaração islâmica, com o fundamento do reforço no Alcorão. Quanto ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a declaração não incorporou elementos deste além dos previstos na declaração de direitos humanos da ONU, tendo em vista que os países signatários da declaração islâmica não eram signatários deste pacto por adotarem regimes incompatíveis com os termos estabelecidos por este, justificando a omissão. 2.1.4.2. DIREITOS DE LIBERDADE Figuram nos incisos II, X, XII, XIV, XXIII do rol de direitos da Declaração Islâmica Universal de Direitos Humanos, os direitos individuais que tangem à liberdade dos indivíduos frente ao Estado e aos demais indivíduos, assim como na declaração da ONU. Estes direitos apresentados são os direitos de natureza negativa, isto é, de que o Estado não intervirá nas relações sociais, tendo a própria explicação destes direitos um reforço a esta ideia. O primeiro direito garantidor de liberdade disposto na declaração islâmica se encontra no inciso II desta onde se aborda um conceito generalizado de liberdade. Neste inciso, a declaração assegura a todos os indivíduos a liberdade desde seu nascimento, que é inviolável exceto sob a autoridade da lei após o devido processo legal, podendo-se observar a nítida semelhança do direito islâmico para com o ocidental, neste aspecto protecionista a liberdade é tida como um dos direitos maiores que o indivíduo pode ter, não podendo ser suprimida pelo estado sem nenhuma justificativa plausível, reforçando a ideia do devido processo legal e da anterioridade da lei penal para justificar essa supressão a este direito fundamental. A alínea “b” do inciso II da declaração define em que esfera a liberdade é tutelada, ficando-se evidente que não há para os direitos humanos islâmicos, a previsão de tutela da liberdade em virtude da opção sexual, ou seja, não pode para a declaração islâmica esta hipótese de proteção aos indivíduos, justamente por serem consideras imorais as relações homossexuais pelo Alcorão logo o constante no texto da declaração é um rol taxativo, não admitindo interpretação expansiva na concessão de direitos uma vez que este instrumento concessório é baseado em documentos de origem religiosa, não podendo este documento contrariar sua essência. Além desta particularidade a declaração assegura o direito de manifestação em caso de infringência ou anulação do direito abaixo, conforme segue no trecho transcrito abaixo: “II – Direito à Liberdade a. O homem nasce livre. Seu direito à liberdade não deve ser violado, exceto sob a autoridade da Lei, após o devido processo. b. Todo o indivíduo e todos os povos têm o direito inalienável à liberdade em todas as suas formas, física, cultural, econômica e política – e terá o direito de lutar por todos os meios disponíveis contra qualquer infringência a este direito ou a anulação dele; e todo indivíduo ou povo oprimido tem o direito legítimo de apoiar outros indivíduos e/ou povos nesta luta.” Além de assegurar o direito a manifestação em caso de infringência aos direitos, prevê ainda o direito dos demais povos em apoiar o povo oprimido em suas manifestações, tornando-se isto bastante evidente com o episódio da Primavera Árabe onde os povos de demais países islâmicos começaram a apoiar aqueles que se insurgia contra os regimes opressores, iniciando uma corrente de apoio entre os povos, realizando múltiplas insurgências no Norte da África e no Oriente Médio. Para assegurar uma proteção maior, a declaração editou os incisos X, XII, XIV, XXIII. No inciso X, a declaração garante uma definição geral de proteção às minorias e as liberdades inerentes a estes grupos, visando proteger os grupos minoritários contra abusos e desrespeito aos direitos fundamentais destes, reforçando a ideia de proibição da exploração e opressão, abordada constantemente na carta, sendo utilizada neste contexto contra os grupos que poderiam ser vitimas facilmente de regimes opressores em virtude da condição vulnerável na qual se encontram. É com base também neste direito disposto no inciso X, que alguns países islâmicos adotam mais de um sistema jurídico em seu território nacional, baseando-se no disposto na alínea “b” deste inciso, conforme transcrição abaixo. “X- Direitos das Minorias a) … b) Em um país muçulmano, as minorias religiosas, no que se refere às suas questões civis e pessoais, terão o direito de escolher serem regidas pela Lei Islâmica ou por suas próprias leis.”  É com base neste dispositivo da declaração que alguns países islâmicos têm assegurado aos seus nacionais o direito de adoção de um segundo sistema jurídico para reger as regiões de maioria não islâmica, como por exemplo, o caso da Nigéria onde o sul não islâmico adota o sistema do common law enquanto o norte islâmico, adota a Lei Islâmica no seu ordenamento jurídico. Em alguns países islâmicos houve a opção por não adotar a Lei Islâmica em sua integridade, optando por um sistema de códigos de lei (civil law) com o ordenamento jurídico baseado nos preceitos da Lei Islâmica, incorporando elementos de outras legislações não-islâmicas, principalmente no tocante das penas a serem aplicadas, destacando-se entre esses países islâmicos que aderiram ao civil law, a Turquia, o Líbano e o Iraque. O uso da civil law  nestes casos foi adotado como um meio de se adotar um só ordenamento jurídico no país, tendo em vista a diversidade cultural que o país detinha, como por exemplo no caso libanês, o país possui três grandes maiorias religiosas: os cristãos maronitas, os muçulmanos xiitas e os sunitas; neste caso, elaboraram-se os códigos com base nos preceitos comuns das três principais religiões do Estado libanês, evitando uma pluralidade de ordenamentos jurídicos no país de pequena dimensão territorial como o Líbano, onde os três grupos convivem muitas vezes na mesma região, não havendo uma predominância de um grupo em determinada região do país, como há na Nigéria. É notória a preocupação da declaração com os direitos de liberdade de crença, tendo o conceito de minorias basicamente elaborado neste sentido, tendo-se em vista a pouca diversidade cultural nos países árabes, sendo o caso mais notável de diferença nestes países, é a questão religiosa, que tem gerado muitos conflitos locais, muitos estimulados em virtude do fundamentalismo islâmico que pregou intolerância para com os demais grupos religiosos, logo, torna-se evidente a preocupação da Comissão Islâmica na proteção das minorias religiosas, frequentemente ameaçadas pelos grupos fundamentalistas na região, com a supressão da liberdade religiosa. Reforçando-se a preocupação com as minorais religiosas, a declaração trás em seu inciso XII, o direito a liberdade de crença, pensamento e expressão, principalmente nas alíneas “a” e “e”, onde se prega a liberdade de expressão e de crença de modo protecionista, conforme pode ser visto abaixo no texto das alíneas transcritas da declaração: “XII – Direito de Liberdade de Crença, Pensamento e Expressão a. Toda a pessoa tem o direito de expressar seus pensamentos e crenças desde que permaneça dentro dos limites estabelecidos pela Lei. Ninguém, no entanto, terá autorização para disseminar a discórdia ou circular notícias que afrontem a decência pública ou entregar-se à calúnia ou lançar a difamação sobre outras pessoas. d. Ninguém será desprezado ou ridicularizado em razão de suas crenças religiosas ou sofrerá qualquer hostilidade pública; todos os muçulmanos são obrigados a respeitar os sentimentos religiosos das pessoas”. O texto da declaração trás a ideia de liberdade com consciência, isto é, a lei assegura a liberdade de crença, todavia o indivíduo não islâmico tem de ter a noção que se estiver em um Estado islâmico, sua crença será tratada como secundária e portanto deve respeitar as restrições que aquele Estado estabelecer para a crença, valendo o mesmo para o pensamento, não podendo ninguém disseminar a discórdia ou circular noticias que afrontem a decência pública, isto quer dizer que, não pode ninguém fazer uso de conteúdo imoral para expressar sua opinião, autorizando a própria carta, em outros incisos, a defesa por parte da população contra a imoralidade, desta forma, torna-se legitimo o levante da população contra uma conduta imoral. Desta forma, a declaração não só legitima como incentiva este levante em defesa da moralidade sob a ótica do islã, devendo o indivíduo não muçulmano respeitar a moral muçulmana. Todavia, para evitar o desrespeito dos muçulmanos para com os que não seguem o islã, instituindo no na alínea “e” uma cláusula obrigacional aos muçulmanos de respeitar os sentimentos religiosos das outras pessoas, proibindo ao Estado e aos indivíduos que se ridicularizem ou desprezem outrem, ou ainda sofra hostilidade pública em razão de suas crenças religiosas. Este direito, assim como os demais da declaração possuem natureza recíproca, isto é, além de estabelecer uma regra para ser seguida pelos países islâmicos a declaração apresenta este dispositivo como uma sugestão aos países não islâmicos, para que não ridicularize, despreze, ou seja, o Estado hostil com os muçulmanos, buscando construir uma relação de respeito mútuo e recíproco entre os povos da Terra, buscando alcançar o respeito e a integração com diversidade. Os demais direitos de liberdade constantes na declaração, previstos nos incisos XIV e XXIII não são necessariamente ligados à questões culturais como os anteriores, mas direitos até bastante conhecidos no ocidente, como o de liberdade de associação e a liberdade de movimento (direito de ir e vir) que encontram dispositivos correspondentes na declaração de direitos humanos da ONU. Todavia, em virtude do contexto em que se vive boa parte das regiões islâmicas, a declaração ainda trouxe o direito de liberdade de moradia que proíbe que os indivíduos sejam forçados a deixar o país de sua residência ou ser arbitrariamente deportado sem o devido processo legal, tendo este dispositivo um interesse protecionista a liberdade dos muçulmanos residentes em países não islâmicos ou ainda nos países islâmicos que vivem em guerra civil, como o caso da Faixa de Gaza, onde, sob a ótica desta declaração, o Estado de Israel tem cometido inúmeras violações aos direitos humanos neste sentido, expulsando expressamente ou tacitamente palestinos de seus locais de residência para que possam ser habitadas por israelenses, entendo Israel ter o direito integral sob o território da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, não querendo a presença palestina no local, violando este dispositivo da Declaração Islâmica Universal de Direitos Humanos, justamente pelo fato de não verem validade neste instrumento, uma vez que Israel é um país de maioria judaica, todavia, o desrespeito a este dispositivo gera legitimidade a hostilidade de seus vizinhos, que tem Israel como um violador dos direitos humanos, sob a ótica islâmica de proteção aos direitos humanos. 2.1.4.3. DIREITOS HUMANOS PROTECIONISTAS Superficialmente todos os direitos constantes na declaração poderiam ser tidos como direitos humanos protecionistas tendo em vista que, justamente pelo fato de serem normas que versam sobre direitos humanos estariam a princípio protegendo desde o início estes, todavia, há na declaração, direitos bastante particulares e essenciais para a proteção da pessoa humana, não se subdividindo em diversos conceitos, como ocorre no direito de liberdade que se desdobra em vários conceitos e aspectos ao longo do rol de direitos, posto na declaração. Desta forma, são tidos como direitos protecionistas ou fundamentais não desdobráveis, os constantes nos incisos I (Direito a Vida), IX (Direito ao Asilo), XXII (Direito a Privacidade), da declaração. Estes direitos são citados uma única vez na declaração e não sofrem desdobramento no restante desta e são tidos como fundamentais e não desdobráveis em virtude de serem autoexplicativos, não necessitando estarem vinculados a nenhum outro direito para que façam sentido. 2.1.4.4. DIREITOS DE IGUALDADE Apesar de haverem na declaração outros incisos que possam ser interpretados como promotores do direito de igualdade, não asseguram a igualdade de fato, ficando então o inciso III então como o único dispositivo da declaração que versa sobre igualdade em seu sentido genérico, ficando este também responsável por definir o conceito de igualdade adotado pela Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos. Segue abaixo, na íntegra, o teor do inciso III da declaração citada: “III – Direito à Igualdade e Proibição Contra a Discriminação Ilícita a. Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito a oportunidades iguais e proteção da Lei. b. Todas as pessoas têm direito a salário igual para trabalho igual. c. A ninguém será negada a oportunidade de trabalhar ou será discriminado de qualquer forma, ou exposto a risco físico maior, em razão de crença religiosa, cor, raça, origem, sexo ou língua”. Pode-se notar nas alíneas do inciso III, a previsão de três tipos de igualdade sendo dois destes, um nítido reflexo da segunda e da terceira dimensão de direitos de Norberto Bobbio. Na alínea “a” temos disposto o conceito clássico de igualdade, onde se prevê a todos os indivíduos a igualdade perante a lei (igualdade formal), assegurando a todos, a igualdade de oportunidades e proteções estatais, da mesma forma que desejavam os iluministas no ocidente, evidenciando a natureza de primeira dimensão deste direito. Na alínea “b” temos a igualdade nas relações de trabalho, um direito que mitiga características de segunda e terceira dimensão, pois prevê a igualdade no sentido econômico como no sentido físico, reforçando-se esta segunda igualdade, com o inciso “c”, entendendo que para a declaração ninguém, independente de crença religiosa, cor, raça, origem, sexo ou língua, pode ter salário diferente ao de outra pessoa que exerce a mesma função no ambiente de trabalho. Por fim, a alínea “c” trás a vedação a discriminação, dando um enfoque majoritário às relações trabalhistas, buscando evitar a discriminação ou exploração de determinado trabalhador em virtude de suas características particulares. Além da proteção à discriminação ou a exploração, o texto da alínea “c”, por sua vez, serve como um dispositivo orientador para o princípio de igualdade, abrangendo em um rol, aparentemente taxativo, os sujeitos protegidos pela declaração de serem vitimas de discriminação e exploração, por serem tuteladas pelo direito à igualdade. Como já foi dito anteriormente, a declaração é omissa aos homossexuais em virtude de questões religiosas que consideram as práticas homossexuais imorais, logo, não há previsão expressa nos instrumentos protecionistas de direitos humanos do islã, a possibilidade de proteção a esta minoria. 2.1.4.5. DIREITO A JUSTIÇA Talvez uma das maiores preocupações da declaração seja a questão da justiça, trazendo muitos dispositivos que defendem o acesso à justiça de forma implícita ou explicita, tendo este Direito a Justiça muitas prerrogativas em favor dos indivíduos em geral, garantindo-se a estes muitas prerrogativas, inclusive o direito de reação contra à ordens ilegais, assegurado somente aos muçulmanos. Grande parte dos direitos previstos nos incisos IV e V da declaração encontram-se previstos nas legislações ocidentais, como o princípio da legalidade, o Estado de Direito, o direito de acesso à justiça e ao devido processo legal, a intransferência da pena da pessoa do condenado e da anterioridade da lei penal. 2.1.4.6. DIREITO A INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL Assim como no ocidente, a declaração trás em seus incisos VII e VIII o direito à integridade física e moral individual. No caso do inciso VII, há a vedação expressa contra a tortura física ou mental, assegurando ao individuo o direito de não coerção com o emprego destes métodos para a confissão de pratica criminosa ou como meio de induzir ao consentimento de ato que seja prejudicial aos seus interesses. Neste caso, o inciso VII vem reforçar os direitos de liberdade anteriormente apresentados na declaração em diversos dispositivos, protegendo o titular deste direito contra qualquer meio coercitivo que possa força-lo a abrir mão de seu direito, fazendo valer a proteção que a declaração confere desde a introdução da carta de não redução dos direitos humanos conferidos por Alá (Deus). No inciso VIII, a preocupação é com a proteção da moral individual, assegurando ao individuo o direito de proteger sua honra e reputação contra calúnias, ataques sem fundamento ou tentativas deliberadas de difamação e chantagem, visando com isto não apenas a proteção de sua imagem perante a sociedade como também a sua própria liberdade, que pode sofrer restrições em virtude de denunciações caluniosas ou chantagens. 2.1.4.7. DIREITO A DEMOCRACIA Pouco falado na declaração, esta estabelece aos indivíduos o direito a democracia, assegurando alguns direitos aos cidadãos para que se alcance este fim. Um destes direitos é o de assegurar aos indivíduos o direito de assumir cargo público (inciso XI, alínea “a”, da Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos), dependendo este dispositivo de regulamentação legal em cada Estado árabe. Com este direito, proíbe-se que a coisa pública seja gerida por uma oligarquia ou casta, assegurando a todos os indivíduos, conforme consta expressamente no texto da declaração, o direito a assumir um cargo público. Reforçando-se a defesa a construção de Estados árabes democráticos, figura na alínea “b” do mesmo inciso, o direito do povo de escolher e exonerar seus governantes, estabelecendo, ainda que de forma rudimentar e sucinta, uma previsão de estabelecimento nos Estados árabes de se instalar uma democracia indireta, baseada no processo de consulta livre (Shura). 2.1.4.8. DIREITOS ECONÔMICOS Os incisos XV e XVI trazem a proteção especial que a Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos trás para a propriedade e para a ordem econômica. O teor do inciso XVI versa sobre a proteção ao direito de propriedade, impedindo a desapropriação em todas as hipóteses, exceto em caso de interesse público, mediante o pagamento de uma compensação justa e adequada. O teor deste inciso se assemelha muito a proteção dada à propriedade no ocidente, com uma proteção bastante abrangente, similar à adotada nos países de orientação liberal, por não citar nada sobre a função social da propriedade, como ocorre em muitas constituições ocidentais adotadas na época em que se elaborou a declaração islâmica, todavia, pode-se entender que a expressão “interesse público” citado no texto da declaração pode na verdade se tratar não somente da desapropriação por interesse da Administração Pública, mas também da sociedade, possibilitando, por exemplo, a desapropriação de uma área rural improdutiva para que sirva para a reforma agrária, vedando o dispositivo apenas a desapropriação com fins arbitrários, ou seja, que atendam somente a interesses particulares. Por prever a proteção à propriedade privada, a declaração islâmica faz implicitamente uma opção pelo sistema capitalista, repudiando os sistemas que não reconhecem o direito à propriedade privada, desta forma, podemos entender que o Estado que segue a Ordem Islâmica deve ser Democrático e Capitalista. O inciso XV da declaração aborda de uma maneira mais superficial, as demais questões econômicas, podendo chamar este pequeno rol de direitos com sete alíneas de “função social da economia”. Novamente, a declaração vincula a existência de um direito à figura divina, como ocorre na alínea “a” do inciso XV, que prevê que “os benefícios da natureza e de seus recursos, são bênçãos concedidas por Deus para o bem da humanidade” (inciso XV, alínea “a”, da Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos). Este atrelamento do direito de usufruto dos proventos da economia pela humanidade com a imagem divina pode ser entendido como um meio para justificar a existência dos demais direitos, observando-se o temor e o respeito que os muçulmanos têm para com a figura divina de Alá (Deus), o que confere maior segurança ao cumprimento fiel destas regras, justificadas no final da declaração, com trechos do alcorão onde buscam fundamento. Há também a existência de muitos direitos e obrigações constantes no inciso XV da declaração que buscam equivalência com outros no ocidente. O direito previsto no inciso XV, alínea “b” encontra-se previsto na constituição brasileira em seu Art. 5º, inciso X, onde trecho deste dispositivo se assemelha com a alínea “g” do mesmo inciso da declaração, que prevê que não podem ser praticadas as atividades que prejudiquem os interesses da comunidade ou violem as leis e valores islâmicos, semelhante ao que ocorre no caso brasileiro, onde a lei veda, com base no dispositivo constitucional citado, que se pratiquem atividades que a lei proíba ou que a pratique fora dos padrões que ela estabelecer. A declaração também legitima a intervenção estatal na economia, conforme prevê no inciso XV da alínea “c”, ainda que ela faça uma vedação tácita aos regimes comunistas e socialistas, ou seja, prevê a existência de um Estado intervencionista, caso isto seja necessário para evitar que abusos decorram da economia a. A preocupação para a humanização da economia se repete na alínea “f” onde a declaração, com base na lei islâmica, proíbe monopólios, práticas comerciais restritivas desmedidas, usura, coerção física contratual e a publicação de propaganda enganosa, tendo todas estas vedações equivalentes no direito ocidental. Ao analisar estas vedações, é necessário que se dê um destaque especial à questão da usura, que deve ser interpretada quanto à vedação aos juros abusivos, ou seja, a lei permite aos bancos que cobrem juros, pois sua sobrevivência depende da cobrança destes, mas proíbe a cobrança de maneira excessiva, devendo que sejam cobrados de forma justa, de acordo com o crédito cedido e os riscos que dele provém. Dois incisos da declaração, porém merecem um destaque especial, que são as alíneas “d” e “e”, cujo teor segue abaixo na íntegra: “XV – A Ordem Econômica e os Direitos Dela Decorrentes d. pobre tem direito a uma parte prescrita na fortuna do rico, conforme estabelecido pelo Zakat, cobrado e arrecado de acordo com a Lei. e. todos os meios de produção serão utilizados no interesse da comunidade (Ummah) como um todo e não podem ser descuidados ou malversados. Na alínea “d” temos o direito à distribuição de renda, inexistente na declaração da ONU, mas certamente incorporado na declaração islâmica não somente pela sua previsão no Alcorão, de onde emanam as regras de direitos humanos islâmicos, mas também observando o contexto em que se elaborou a declaração (Europa, no fim do século XX), onde as politicas assistencialistas encontravam-se no seu auge de eficácia. Desta forma, o disposto na alínea “d” em muito se assemelha com o modelo de Imposto de Renda adotado em alguns países ocidentais, que prevê a arrecadação tributária sobre a renda, restituindo aos contribuintes parte do que foi contribuído injustamente, compensando a restituição com o que foi pago pelo outro contribuinte mais abastado, buscando com isso uma distribuição de renda desta pequena parcela da renda excessiva alheia. A obrigação mais curiosa neste inciso XV é a existente na alínea “e”, que prevê a destinação e a obrigatoriedade de conservação dos meios de produção. Bastante curioso este dispositivo, a declaração considera “desumano” o uso dos meios de produção para servir apenas a um individuo, ou seja, não poderia no caso da declaração um indivíduo ter uma propriedade rural que nada produzisse, ele só a mantêm para fins de especulação imobiliária, não contribuindo a propriedade em nada para à sociedade, o que torna evidente este direito como uma obrigação de existência função social da propriedade, ou seja, diferente do que fora dito anteriormente, com a interpretação isolada do inciso XVI, na declaração islâmica é obrigatório sim que a propriedade exerça sua função social, assim como ocorre em muitos países ocidentais que tiveram suas constituições elaboradas no período em que a declaração islâmica foi elaborada. A vedação ao descuido dos meios de produção (alínea “e”) é uma obrigação do direito de propriedade bastante peculiar sem dispositivo equivalente na legislação ocidental. Este dispositivo proíbe o mal uso da propriedade, ou seja, não pode o proprietário do bem, destruí-lo ou fazer mal uso deste de maneira injustificada ou injustificável. No âmbito rural, poderíamos entender com a interpretação deste dispositivo, por exemplo, a proibição às queimadas, que causam de médio a longo, o empobrecimento do solo da propriedade, logo, para os direitos humanos islâmicos, as queimadas seriam uma prática “desumana”, pois destrói um meio de produção a médio e longo prazo e de uma forma injustificável, pois há outros meios de realizar a colheita sem o emprego de queimadas. Desta forma, conforme a tendência existente no ocidente, o direito de propriedade não é absoluto, não podendo o proprietário fazer o que bem entender com seu bem, conforme prevê o conceito liberal de propriedade, determinando o texto da declaração diversas obrigações ao seu proprietário, como a função social, já bastante empregada no ocidente e outra pouco convencional para os sistemas ocidentais, que é o da preservação produtiva da propriedade. 2.1.4.9. DIREITOS SOCIAIS Outra característica de incorporação de direitos de segunda dimensão na declaração islâmica é a incidência em seu texto de direitos sociais voltados à seguridade social e as relações trabalhistas. No inciso XVII prevê o direito à dignidade nas relações de trabalho obrigando o empregador muçulmano tratar seus empregados de forma juta e generosa, conferindo-lhes a eles o direito ao repouso e ao lazer, além do pagamento imediato da remuneração pelo trabalho prestado. Com isto, a declaração islâmica reforça o ideal de dignidade que ela tanto defende em seu texto, em especial nas relações de trabalho onde veda, com diversos dispositivos, a exploração no ambiente de trabalho, independente de qual seja o trabalhador, reforçando o direito às condições dignas de trabalho no inciso XVII que busca fundamentação no Islã, visando com isto causar um sentimento de obrigação no empregador muçulmano, atrelando a obrigação religiosa aos direitos humanos, invocando a proteção divina ao direito como ocorre em diversos dispositivos da carta, apelando-se ao temor a Alá (Deus) para o cumprimento do direito. Quanto à inclusão do direito à Seguridade Social, a declaração islâmica seguiu a tendência do momento histórico em que foi editada, incluindo no rol de direitos da declaração este direito, que possui forte ligação com os direitos de dignidade constantes na declaração, que acabou por instituir direitos de seguridade social, bastante similares aos existentes no ocidente, com fins bastante similares, conforme pode ser observado com a leitura do inciso XVIII transcrito na íntegra logo abaixo: “XVIII – Direito à Seguridade Social Toda a pessoa tem direito à alimentação, moradia, vestuário, educação e assistência médica, compatível com os recursos da comunidade. Esta obrigação da comunidade se estende em particular a todos os indivíduos sem condições, em razão de alguma incapacidade temporária ou permanente”. Por fim, encerrando o rol dos direitos sociais, temos o inciso XXI que prevê o direito à educação a todas as pessoas, desta forma podemos entender que o texto da declaração islâmica repudia a restrição do direito a educação em qualquer hipótese, seja por religião, sexo, etnia e etc. desta forma, podemos entender que as práticas do talibã que impediam o acesso de mulheres à educação, aos olhos da declaração islâmica, seria uma lesão aos direitos humanos islâmicos. Além de assegurar o direito à educação, a declaração trás no mesmo inciso na alínea “b” o direito de liberdade de escolha profissional, ou seja, ninguém poderá impedir alguém de exercer determinada profissão caso queira, desta forma, homens e mulheres seriam em tese, para o texto da declaração, livres para o trabalho em qualquer área, assegurando-se ainda a igualdade de oportunidades para o pleno desenvolvimento de suas inclinações naturais, dando-se uma margem um tanto duvidosa para a interpretação deste dispositivo se for analisado o contexto cultural, isto é, como a inclinação natural depende muito de uma questão cultural, poderia sim a cultura local estabelecer a distinção entre os gêneros no mercado profissional, podendo o próprio indivíduo não querer seguir uma carreira onde as características funcionais privilegiam o gênero oposto. 2.1.4.10. DIREITOS DA FAMÍLIA E DAS MULHERES Talvez por se tratar de um instrumento de proteção aos direitos humanos, atrelado a uma corrente religiosa, buscando nesta os seus fundamentos, a declaração islâmica trás em dois incisos (XIX e XX) uma relevante gama de direitos inerentes à família e as mulheres casadas. A concessão de direitos especiais às mulheres casadas existe em virtude da condição de hipossuficiência destas na sociedade islâmica, isto é, as mulheres, em virtude de diversas restrições em virtude da fé-islâmica que culmina num elevado grau de dependência para com seu marido, para evitar abusos e assegurar a esta meios dignos de vida, a declaração assegura às mulheres casadas direitos especiais, estabelecidos com base no alcorão, que acarretam em obrigações aos homens casados, garantindo direitos que para a realidade ocidental seria desnecessário fazer que figurassem num instrumento legal, mas para a realidade islâmica torna-se fundamental para assegurar direitos fundamentais a sua dignidade ou imagem social durante ou depois da constância do casamento. Segue abaixo, em inteiro teor, o texto do inciso XX da declaração, que assegura às mulheres casadas direitos especiais: “XX – Direitos das Mulheres Casadas Toda mulher casada tem direito a: a. Morar na casa em que seu marido mora; b. Receber os meios necessários para a manutenção de um padrão de vida que não seja inferior ao de seu marido e, em caso de divórcio, receber, durante o período legal de espera (iddah), os meios de subsistência compatíveis com os recursos do marido, para si e para os filhos que amamenta ou que cuida, independente de sua própria condição financeira, ganhos ou propriedades que possua; c. Procurar e obter a dissolução do casamento (khul’a), na conformidade da Lei. Este direito é cumulativo com o direito de buscar o divórcio através das cortes; d. Herdar de seu marido, pais, filhos e outros parentes, de acordo com a Lei; e. Segredo absoluto de seu marido, ou ex-marido se divorciada, com relação a qualquer informação que ele possa ter obtido sobre ela, e cuja revelação resulte em prejuízo a seus interesses. Idêntica responsabilidade cabe a ela, em relação ao marido ou ao ex-marido”. Um instrumento bastante interessante no texto da declaração constante neste inciso é o que se encontra disposto na alínea “e”, que versa sobre a proteção dos direitos da privacidade matrimonial em proteção a honra do cônjuge, visando este dispositivo coibir, por exemplo, a revelação pública das intimidades matrimoniais. Nas declarações de direitos humanos ocidentais não há a previsão expressa deste direito, havendo, todavia a possibilidade de responsabilização civil e criminalmente do cônjuge que denegrir a imagem e a honra do outro cônjuge, entretanto, na declaração islâmica, este instrumento assegura um direito mais específico, ou seja, caso existisse um dispositivo da mesma maneira no ocidente, poderíamos dizer que quem publicasse na internet cenas que tornassem públicas cenas da intimidade do casal, ainda que com a anuência do outro cônjuge, já que para a declaração islâmica os direitos humanos são indisponíveis, estaria cometendo uma lesão aos direitos humanos do outro cônjuge, o que possibilitaria, por exemplo, um agravo da responsabilização cabível ou uma proteção estatal maior contra estas práticas. No inciso XIX da declaração islâmica encontram-se versadas as proteções especiais asseguradas pela declaração aos demais assuntos inerentes à família. O teor constante neste inciso trata-se de um rol bastante taxativo e autoexplicativo, buscando fundamentação também em instrumentos islâmicos e em outros incisos da declaração que asseguram o direito a liberdade, a dignidade e a seguridade social. A declaração assegura a obrigação marital em sustentar a família, o que faz projetar a figura do homem como chefe da família, na sociedade islâmica. Além do dever citado, a declaração institui o dever dos pais em conferir a educação a seus filhos, vedando o trabalho infantil ou qualquer atividade que possa prejudicar seu desenvolvimento natural. Esta vedação ao trabalho infantil por sua vez torna-se algo bastante conflituoso pois o conceito de criança é variável por Estado islâmico, não trazendo a declaração nenhum meio que assegure um esclarecimento disto, desta forma, para buscar uma interpretação uniforme e benéfica, o dispositivo deve ser interpretado de forma conjunta às disposições da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que versem sobre o trabalho infantil. Nas alíneas “g” e “h” do inciso XIX a declaração islâmica realiza uma distinção quanto aos gêneros. Na alínea “g”, a declaração prevê uma distinção protecionista, conforme ocorre no inciso XX, ou seja, a declaração prevê direitos especiais a maternidade, assegurando a maternidade respeito e assistência por parte da família e dos órgãos públicos de todas as espécies, não apenas financeira, todavia, é preciso entender que a maternidade para o direito islâmico somente é possível se tratar de uma mulher casada uma vez que a pratica de relações sexuais antes do casamento é terminantemente proibida pela lei islâmica, desta forma, os direitos assegurados à maternidade neste inciso são inerentes às mulheres casadas exclusivamente. A alínea “h” versa sobre a divisão de tarefas, reforçando a conclusão interpretativa sobre o inciso XXI, onde o dispositivo do inciso XIX diz expressamente que no âmbito familiar as tarefas devem ser distribuídas de acordo com suas obrigações e responsabilidades de acordo com o sexo, dando um reforço à obrigação cultural e uma margem a expansão desta no âmbito extrafamiliar, ainda que este não seja o desejo da declaração. Os demais direitos são similares aos existentes no ocidente, como a obrigação dos filhos em cuidar dos pais na velhice (alínea “f”), direito ao respeito mutuo entre os cônjuges (alínea “b”), direito a livre constituição familiar (alínea “a”), liberdade de educação familiar conforme a sua religião, tradição e cultura (alínea “a”) – reforçando o conceito de liberdade de crença religiosa e universalidade dos direitos humanos islâmicos aos demais crentes – proteção estatal a integridade da família (alínea “d” e “e”). Segue abaixo, na íntegra, o texto do inciso XIX. “XIX – Direito de Constituir Família e Assuntos Correlatos a. Toda pessoa tem o direito de se casar, constituir família e ter filhos, de acordo com sua religião, tradições e cultura. Todo cônjuge está autorizado a usufruir tais direitos e privilégios e deve cumprir essas obrigações na conformidade do estabelecido na Lei. b. Cada um dos parceiros no casamento tem direito ao respeito e consideração por parte do outro. c. Todo marido é obrigado a manter sua esposa e filhos, de acordo com suas possibilidades. d. Toda criança tem o direito de ser mantida e educada convenientemente por seus pais, sendo proibido o trabalho de crianças novas ou que qualquer ônus seja colocado sobre elas, que possam interromper ou prejudicar seu desenvolvimento natural. e. Se por alguma razão seus pais estiverem impossibilitados de cumprir com suas obrigações para com a criança, torna-se responsabilidade da comunidade a satisfação dessas obrigações às custas do poder público. f. Toda pessoa tem direito ao apoio material, assim como ao cuidado e proteção de sua família durante a infância, na velhice ou na incapacidade. Os pais têm direito ao apoio material, assim como ao cuidado e proteção de seus filhos. g. A maternidade tem direito a respeito especial, cuidado e assistência por parte da família e dos órgãos públicos da comunidade (Ummah). h. Na família, homens e mulheres devem compartilhar suas obrigações e responsabilidades, de acordo com o sexo, dotes naturais, talentos e inclinações, sem perder de vista as responsabilidades comuns para com os filhos e parentes. i. Ninguém deverá se casar contra sua vontade, nem perder ou sofrer diminuição de sua personalidade legal por conta do casamento. 2.1.5. CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE A DECLARAÇÃO Diversos dispositivos do instrumento fundamental de proteção aos direitos humanos no mundo árabe mostram similaridade com normas protecionistas aos direitos humanos existentes no ocidente, evidenciando uma proximidade de interesses do mundo árabe com o ocidente, o que mudaria tempos depois com a Declaração do Cairo de 1990 quando o mundo árabe se desilude com o ocidente e consequentemente com seus ideais. Diversos trechos da declaração resgatam para a realidade árabe-islâmica, direitos existentes na declaração de direitos humanos da ONU e ainda acresce novos direitos que se tornaram fundamentais para assegurar direitos maiores, como por exemplo, os direitos de igualdade, dignidade, liberdade e etc. buscando indiretamente, os direitos constantes nesta declaração, influências no Estado Liberal de Direito, em virtude da velada influência ocidental neste sistema, formando este instrumento de proteção aos direitos humanos um sistema mitigado entre os valores liberais ocidentais e os princípios islâmicos, o que se torna bastante evidente ao longo desta declaração, em virtude do tratamento especial às mulheres casadas, sem precedente específico no ocidente e a omissão do instrumento quanto à discriminação de homossexuais, o que assegura que tais práticas discriminatórias podem ser assim feitas. Por fim, a Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos não deve ser vista como aplicável a todos os países islâmicos, principalmente pelo fato desta declaração buscar boa parte da fundamentação de suas normas na Suna, o que evidencia que a declaração islâmica seja um instrumento sunita, ou seja, relativamente incompatível com o islamismo xiita, majoritariamente seguido no Azerbaijão e Irã. Desta forma, o instrumento torna-se eficaz somente no mundo árabe, isto é, no Norte da África e na Península Arábica onde a maioria populacional, quando não os Estados, professa o islamismo sunita, ficando em consonância a crença majoritária do Estado com a declaração islâmica. Nos países islâmicos do sudeste asiático, como por exemplo, a Malásia ou Cingapura, ou ainda os países europeus de maioria muçulmana, como por exemplo, a Albânia tende a aderir a outro sistema de proteção aos direitos humanos e não o sistema árabe. 2.2. INSATISFAÇÃO COM O OCIDENTE E INTERPRETAÇÃO CONSERVADORA DOS DIREITOS HUMANOS ISLÂMICOS Em virtude de diversos fatores, a Conferência Islâmica assim como diversos organismos do mundo árabe têm mostrado relevante insatisfação com o ocidente. Desde a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948, alguns estados islâmicos apresentaram desde o início, insatisfação com o instrumento ocidental, como por exemplo, o Sudão, a Arábia Saudita e o Paquistão, pelo desrespeito em alguns trechos aos costumes islâmicos. Este descontentamento prévio daria origem posteriormente a uma relevante insatisfação com o ocidente. A princípio, quando foi editada a Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos em 1981, este instrumento protecionista apenas fazia adaptações à Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU aos costumes islâmicos, fazendo valer o atendimento de anseios que o mundo árabe tinha a pouco mais de trinta anos atrás. Todavia, neste intervalo, o mundo árabe sofria importantes modificações em diversos aspectos, que acabaram por fim em fazer com que a declaração chegasse de forma tardia, tornando-se ineficaz na proteção aos direitos humanos no mundo árabe. Na década de 1970, como reflexo do fim do neocolonialismo no mundo árabe, uma forte onda nacionalista tomou conta do mundo árabe, divergindo-se em duas correntes. A primeira corrente, de esquerda, era o nacionalismo pregado pelo Partido Ba’ath, que pregava a implantação de Repúblicas Seculares, ou seja, pregava a existência de estados republicanos laicos à semelhança da Turquia. Além da implantação das Repúblicas Seculares, o Ba’ath pregava a implantação do sistema socialista adaptado aos costumes árabes e por fim, a unificação de todo o mundo árabe em uma só nação, a semelhança do que existiu antes do neocolonialismo. A exaltação nacionalista pregada pelo Ba’ath denotava bem esta mudança que o Oriente Médio passava e o anseio deste em romper com o ocidente que há tempos explorava a região, todavia, os países dominados pelo partido acabaram se tornando estados ditatoriais e cada vez mais distantes de seus ideais originais após a morte do presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, principal expoente do partido na luta pelo nacionalismo árabe. Após a morte de Nasser, alguns países dominados pelo partido, como o próprio Egito, a Síria, a Líbia e a Tunísia, acabaram por se tornar regimes ditatoriais quase autocráticos que acabariam por sofrer fortes abalos com a Primavera Árabe, nos primeiros anos da década de 2010. Em posição de oposição ao nacionalismo pregado pelo Ba’ath, surgiu também na década de 1970, uma corrente direitista de nacionalismo, que pregava a formação de Estados Islâmicos. Esta corrente ganha força com a Revolução Iraniana ocorrida em 1978, onde houve a implantação do primeiro Estado islâmico no mundo, o que influenciaria mais tarde outros países, como a Mauritânia, o Paquistão e o Afeganistão. A proposta dos Estados Islâmicos previa a construção de um Estado nacionalista com base nas leis islâmicas, ou seja, diferentemente do nacionalismo pregado pelo Ba’ath, não se fala em estado secular, mas sim em uma reafirmação do Estado Confessional Islâmico e o uso das leis islâmicas. Além do crescimento do nacionalismo no mundo árabe, as ideias fundamentalistas ganham importante espaço neste contexto histórico em que o mundo árabe afirmava sua independência para com o ocidente. Com forte apoio popular, os movimentos fundamentalistas islâmicos colocavam a culpa no ocidente pelos males que viviam a sociedade árabe naquele contexto e não somente pregava o repúdio ao ocidente como também a implantação integral das leis islâmicas, não admitindo analogias e pregando a implantação de uma interpretação conservadora destas leis. Desta forma, em virtude da força dos fundamentalistas, em especial nas regiões mais pobres do mundo árabe, resultará em uma transformação na política destes Estados, como a implantação integral da Lei Islâmica (Sharia) e a supressão de muitos direitos femininos. Um dos notórios exemplos da política fundamentalista aplicada ocorreu no Afeganistão durante o regime do Taliban, cujos atos praticados eram tidos como cruéis até pela própria opinião islâmica de outros Estados. O apoio popular foi crucial para o fundamentalismo islâmico e para a proliferação dos Estados Islâmicos. A desilusão da população com os regimes que pregavam a “ocidentalização” dos Estados surgiu com o aumento das desigualdades sociais, cada vez mais evidentes nos Estados que optavam por este modelo. Quanto ao modelo do Ba’ath a população começa a desiludir-se com este sistema, em virtude dos elevados índices de corrupção que começam a surgir neste, em especial após a morte de Gamal Abdel Nasser, perdendo o partido seu principal braço ideológico e, com o colapso da União Soviética, principal patrocinadora da independência do mundo árabe e simpatizante das ideias socialistas do Ba’ath, acabam por culminar em crise este modelo e com isto, acarretar uma relevante insatisfação popular quanto a estas ideias que se mostraram ineficazes ao longo do tempo. Evidentemente que as ideias liberais tornaram-se cada vez menos bem vistas no mundo árabe, o que possibilitou, mesmo após a edição da declaração islâmica de direitos humanos, a prevalência da interpretação conservadora dos direitos humanos. Passando a se projetarem como exemplos a serem seguidos pelos países islâmicos, a Arábia Saudita e o Irã conseguiram com o fracasso dos modelos ocidentais e socialistas na região, influenciar a política dos demais países islâmicos, com o sucesso destes países notavelmente conservadores, o que tornaria inevitável em curto prazo à reversão desta tendência conservadora islâmica na qual o mundo árabe passou a se encontrar no começo dos anos 1980, culminada pelos anseios locais de combate às desigualdades sociais, de paz social, de preservação à dignidade da pessoa humana e de combate aos regimes autocráticos, todos inevitavelmente positivados na declaração islâmica de 1981 de maneira superficial, adquirindo somente uma proteção mais aprofundada anos mais tarde com a Declaração do Cairo. 2.3. DECLARAÇÃO DO CAIRO DE 1990 E IGUALDADE ENTRE OS GÊNEROS Inevitavelmente, como consequência desta onda conservadora e regionalista, crescente após o fracasso do Ba’ath após a morte de Gamal Abdel Nasser e do colapso do bloco socialista, editou-se a Declaração do Cairo em 1990 que representa um amadurecimento da visão islâmica sobre os direitos humanos, reafirmando os assegurados em 1981, dando importante enfoque a proteção cultural do mundo árabe bem como assegurando um reforço à proteção dos direitos de igualdade entre os gêneros, na qual a declaração islâmica não logrou em protegê-los com eficácia, em virtude de seu texto mais genérico. Um dos principais pontos reforçados pela declaração do Cairo, quanto a proteção dos direitos humanos, foi a proteção as mulheres, onde este instrumento sanou grande parte das omissões da declaração anterior, que não logrou em assegurar a igualdade entre os gêneros da forma que aspirava. Com a declaração do Cairo passou a ser assegurado o direito de homens e mulheres de ocuparem carreiras no setor público, com isto, muitos estados signatários da declaração, dentre eles o Egito, passaram a ser obrigados a por fim às restrições que antes impunham às mulheres em ascender a carreira pública. Dentre os demais direitos adquiridos com a Declaração do Cairo, podemos citar a rejeição velada que o instrumento faz para com a poligamia, passando a entender que tal prática agrava as diferenças entre homens e mulheres. É importante ressaltar a questão dos casamentos poligâmicos, que apesar de se encontrar previsto na Lei Islâmica (Sharia), tem-se entendido que isto acaba promovendo a desigualdade entre os gêneros, havendo entre os países islâmicos uma tendência em prol da abolição deste modelo familiar, que tem sobrevivido apenas nos países mais conservadores, como por exemplo, a Arábia Saudita, Marrocos e Emirados Árabes Unidos. É importante ressaltar que apesar da Declaração do Cairo ter sido fundamental por reduzir a desigualdade entre homens e mulheres, quanto aos seus direitos e deveres, há ainda algumas restrições de direitos às mulheres que são tidas pela sociedade como mecanismos de proteção às mulheres casadas, como por exemplo, a restrição do direito de viagem sem estar acompanhada de seu marido e a restrição de receber a herança igual ao herdeiro homem. Do outro lado, porém, a Lei Islâmica sempre assegurou tanto ao homem quanto à mulher o direito de divórcio, o que resultou no caso da Malásia, no século XX, elevados índices de divorcio, em virtude da facilidade de pedi-lo. Desta forma, deve-se entender que o conceito de igualdade entre os gêneros pregados no ocidente não é compatível com a visão islâmica de igualdade, o que evidentemente impossibilitará que seja alcançado, no mundo islâmico um grau de igualdade similar ao adotado no ocidente. 2.4. A INCOMPATIBILIDADE DAS PENAS CAPITAIS PARA COM A PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS Aos olhos ocidentais, as penas capitais e de mutilação previstas na Lei Islâmica causa espanto e são vistas como desumanas e consequentemente vistas como violadoras aos direitos humanos do ocidente. No mundo árabe, entretanto, não são vistas como violadoras dos direitos humanos, mas só buscam apoio pelas correntes mais conservadoras do islamismo, não gozando tais práticas de apoio popular e já terem recaído em desuso em muitos Estados islâmicos, em especial aqueles que optaram por adotar códigos de lei penal, baseados ou não na Lei Islâmica, mas com as penas substituídas por outras mais brandas e que fossem mais bem vistas pela sociedade. Desta forma, as penas de mutilação, amplamente divulgadas no ocidente como decorrentes da aplicação da Sharia nos países islâmicos tem sido uma prática pouco usual e se encontravam totalmente em desuso até a década de 1970. Com o nacionalismo conservador que emergiu no mundo árabe durante a década de 1970, fomentado com o fracasso do Ba’ath após a morte de Nasser, as penas capitais e de mutilação foram reintroduzidas em muitos ordenamentos jurídicos islâmicos, dentre eles, o Irã, o Paquistão e o Sudão, onde junto com a reintrodução destas penas houve também significantes mudanças políticas nestes Estados que acabaram por valorizar o papel da religião na sociedade destes países. Desta forma, a questão sobre a aplicação das penas de mutilação tem causado certa polêmica inclusive nos países islâmicos, isto é, em países onde prevalece a interpretação mais liberal dos direitos humanos, isto é, onde a própria lei apresenta um elevado grau de secularidade e a população mostra-se satisfeita com este sistema, existe uma rejeição a este sistema punitivo, compartilhando com uma visão ocidentalizada dos sistemas punitivos. Em controvérsia a estes sistemas punitivos ocidentalizados, como os existentes na Turquia e no Líbano, os sistemas mais conservadores, adotados com a intepretação literal da Sharia tem adotado este sistema e com forte apoio popular a esta prática punitiva. Quanto ao desrespeito aos direitos humanos islâmicos, a controvérsia se intensifica, pois, nenhuma declaração islâmica sobre direitos humanos abordou sobre o uso destas penas logo, é possível entender que ambos os modelos são vistos como corretos, pois, para uma visão conservadora, se a Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos foi elaborada com base no Alcorão, na Suna e na Lei Islâmica (Sharia), entende-se que, o que estiver disposto nestes instrumentos é norma de direitos humanos e não pode ser questionado, devem ser interpretados de forma literal, do outro lado, porém, para uma corrente mais liberal e ocidentalizada, entende-se que é necessário considerar o avanço da sociedade islâmica e que a aplicação de penas de mutilação não é mais coerente com a realidade, atualmente vivida nestes países, que costumam registrar um maior grau de abertura comercial e política em relação aos países que adotam um sistema conservador. 3. A PROTEÇÃO AO DIREITO DOS MUÇULMANOS FORA DO MUNDO ÁRABE Se no mundo árabe, a proteção aos direitos humanos islâmicos ainda não é eficaz, no ocidente, em virtude do crescimento de adeptos ao islamismo, algumas iniciativas tem sido feitas para a proteção dos direitos humanos islâmicos no que for compatível com as regras de direitos humanos locais. Recentemente, no Brasil, a Defensoria Pública da União tem disponibilizado em seu site de forma gratuita, uma cartilha que visa instruir a população sobre os direitos dos presos muçulmanos. Instruindo sobre hábitos alimentares, higiênicos, religiosos e etc. considerados fundamentais para o crente muçulmano e que a lesão destes seria um desrespeito à sua liberdade religiosa e consequentemente, uma violação aos direitos humanos destes prisioneiros, no sistema prisional nacional. A cartilha preocupou-se com a exposição de muitos direitos religiosos dos muçulmanos que têm sido frequentemente violados no ocidente em alguns países, como a França e os Estados Unidos da América. O caso mais famoso de violação dos direitos humanos envolvendo presos muçulmanos foi o de Guantánamo, onde a opinião pública internacional tomou ciência de inúmeras práticas de tortura e desrespeito a estes indivíduos, praticados nesta prisão pertencente ao governo estadunidense. A possibilidade de haverem inocentes na prisão chocou a opinião pública internacional, que comparou a prisão de Guantánamo como um campo de concentração moderno, para muçulmanos acusados de serem suspeitos de práticas terroristas. Outro fato que ganhou forte repercussão por desrespeitar os direitos dos presos muçulmanos no ocidente, mas com uma conduta com um viés mais moralista do que físico, como ocorreu em Guantánamo, foi o ocorrido na França, onde o governo francês proibiu o uso do véu pelas mulheres muçulmanas, sob a alegação de que isto as tornava inferiores, alegando que o uso do véu era uma atitude islâmica machista. A vedação do uso do véu foi fortemente rejeitada pelas muçulmanas, pois conforme preveem os costumes islâmicos, a mulher muçulmana deve ficar com o corpo todo coberto, podendo ficar à mostra aos demais homens e mulheres, somente suas mãos e seu rosto, logo, apesar do aparente viés de igualdade que tentava instituir o governo francês com esta norma, isto na verdade configurou um verdadeiro desrespeito ao direito de liberdade de crença religiosa, consequente, de forma inevitável, veio a configurar em um desrespeito aos direitos humanos destas mulheres. 4. CONCLUSÃO Como diz Sidney Guerra em seu livro “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, o sistema árabe de proteção aos direitos humanos ainda não passa de uma “grande aspiração” e isto se torna bastante evidente ao longo do estudo sobre este sistema, em função das inúmeras divergências interpretativas sobre as normas de direitos humanos islâmicos. A raiz divina dos direitos humanos islâmicos tem sido o principal ponto de controvérsia interpretativa, considerando que no mundo árabe, nem todos os países enfrentam a mesma realidade social e econômica, o que dificulta bastante o consenso sobre a interpretação das normas islâmicas de direitos humanos. Nas regiões mais pobres do mundo árabe, como por exemplo, o Sudão, prevalece a interpretação conservadora das normas de direitos humanos islâmicos, logo, para os sudaneses, a aplicação das penas de mutilação e outras práticas, que aos olhos ocidentais seriam vistas como bárbaras, são plenamente aceitáveis para a sociedade local, diferentemente do que ocorre em países mais liberais, como por exemplo o Líbano, que em virtude de sua natureza mais liberal e cosmopolita, não são aplicadas tais penas aos condenados, havendo neste país, segundo a Amnistia Internacional, uma redução significativa dos condenados à pena de morte, tendência seguida por outros países do mundo árabe, como por exemplo, o Kuwait, Marrocos, Argélia e Jordânia. Desta forma, a diferença entre o mundo árabe em sua porção africana e asiática, mas não tanto quanto a proximidade com o Mediterrâneo e as influencias liberais provenientes da Europa. É possível notar que o anseio por liberdades é mais intenso nos países próximos ao Mediterrâneo, tornando-se este fato com a Primavera Árabe, onde a maior parte dos grandes protestos ocorridos deu-se em países com costa no mediterrâneo. A proximidade da Europa pode ser citada como um dos fatores que contribuíram para a fomentação dos movimentos e a derrubada de governos nestas regiões, que não vinham sendo bem vistos pelo ocidente, como por exemplo, o governo de Muammar Al-Gaddafi, que foi derrubado pelos revoltosos líbios que procuraram estabelecer no país uma República Democrática. Outros países que tiveram influência do partido Ba’ath enfrentaram ou têm enfrentado protestos à semelhança do líbio, como por exemplo, a Tunísia, o Egito, o Iêmen e a Síria, evidenciando a insatisfação da população local para com estes regimes que se tornaram corruptos e autocráticos. Mas a insatisfação local não se estendeu somente aos países onde o nacionalismo do Ba’ath foi prevalecente, mas em país onde o conservadorismo exacerbado culminou em pequenos protestos, como o caso da Arábia Saudita e do Irã, denotando uma pequena insatisfação da população também para com os regimes islâmicos conservadores, evidenciando que o único apelo da Primavera Árabe é de lutar pela democracia no mundo árabe, independente de ideologias, como foram as lutas regionais no passado, talvez por uma frustração da população com as ideologias nacionalistas da segunda metade do século XX, que acabaram consolidando regimes ditatoriais nos países árabes. Dois pontos bastante curiosos na Primavera Árabe foi o sucesso dos partidos islâmicos e das monarquias neste contexto. Nas monarquias onde houve protestos por mudanças políticas, como por exemplo, o Marrocos, o Omã, a Jordânia e o Kuwait, os monarcas acataram as exigências dos manifestantes e com isto, estabeleceram nestes países, algumas mudanças governamentais sem culminar na queda dos regimes monárquicos, denotando o sucesso destes regimes em face as republicas, que na prática eram regimes ditatoriais, com raríssimas exceções quanto ao Líbano e a Palestina, além da inflexibilidade quanto a mudanças, culminando fatalmente na queda de alguns destes regimes. No Líbano e na Palestina, em virtude dos regimes republicanos democráticos, houve apenas pequenos protestos, que apenas representavam uma insatisfação popular sobre algumas atitudes governamentais ou ainda, no caso palestino, quanto à Israel. Quanto ao sucesso dos partidos e ideologias islâmicas, este fato foi algo bastante curioso, denotando o interesse de instaurar nestes países, a Ordem Islâmica defendida na Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos, de 1981, principalmente entre as camadas mais pobres dos países onde os regimes locais foram derrubados, que aspiram à redução das desigualdades sociais, que se elevaram significativamente durante a vigência dos regimes derrubados pela revolução. A preferência pelas ideologias islâmicas deu-se no caso Egípcio, onde os partidos islâmicos adquiriram nas primeiras eleições após a queda do regime anterior, a maioria dos assentos no Poder Legislativo, ocorrendo fato bastante similar na Tunísia. O desejo de fazer valer os direitos humanos islâmicos pelas camadas mais pobres da sociedade, fez com que a Primavera Árabe trouxesse consigo a possibilidade de instituição de novas constituições baseadas com importantes instrumentos assecuratórios destes direitos, tendência que deverá prosseguir, com o tempo, caso sejam bem sucedidos estes novos regimes, por todo o Mundo Árabe, promovendo um cenário de unidade que sempre aspirou à região. Desta forma, torna-se possível acreditar que, em médio prazo, após a consolidação destes regimes, podemos imaginar a possibilidade do surgimento efetivo de um Sistema Árabe de Proteção dos Direitos Humanos envolvendo estes países, graças à unidade histórica, cultural e ideológica que envolverá estes países, se assemelhando bastante com o que ocorre com a América Latina, onde os países signatários do Pacto de San José da Costa Rica e que aceitam a jurisdição da Corte Internacional de Direitos Humanos possuem forte semelhança histórica, cultural e ideológica entre si, pois em sua maioria são países que conviveram com regimes militares ditatoriais, possuem uma raiz latina e convivem com um cenário de desigualdade social elevado, que tornam a América Latina bem peculiar em relação ao restante do globo, ocorrendo o mesmo com esta porção do Mundo Árabe, onde a Primavera Árabe triunfou, instituindo regimes que aspiram à constituição de um estado democrático, islâmico e protetor dos direitos humanos, como aspiram às camadas marginalizadas da população destes países, que mantem o sonho histórico de não alinhar-se aos interesses ocidentais, mas rejeitam as ideias antigas que culminaram com a opressão da população durante décadas.
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A constitucionalização dos direitos humanos
O presente trabalho tem por objetivo entender como se deu a constitucionalização dos direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, a partir da contextualização histórica e conceitual do surgimento dos mesmos na órbita internacional. Para tanto, analisou-se os momentos em que se deu a evolução das dimensões de direitos ao longo da história, sem olvidar, contudo, da reconstrução e reafirmação dos valores dos direitos humanos que se fez necessária no período pós Segunda Guerra como resposta às atrocidades cometidas. E, enfim, ressaltou-se a importância de se constitucionalizar os direitos humanos no documento pátrio para concretização dos direitos fundamentais. O método empregado foi o dedutivo e indutivo, com a utilização de artigos científicos, material bibliográfico, legislação e sites da Internet. Do exposto, foi possível constatar a relevância da inserção dos direitos humanos na Constituição Federal de 1988 como forma de se alcançar a proteção e promoção do princípio da dignidade da pessoa humana a todos os brasileiros.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO O processo de constitucionalização dos direitos humanos é extremamente importante no que se refere à concretização dos direitos fundamentais no Brasil. Entretanto, o estudo deste fenômeno somente foi possível a partir da contextualização histórica e conceitual do surgimento dos direitos humanos na órbita internacional. Para tanto, os fundamentos teóricos dos direitos humanos foram abordados no intuito de sedimentar o assunto. Dessa forma, conceituaram-se as dimensões de direitos levando-se em conta o contexto histórico e político, bem como as necessidades da população que ensejaram a evolução da proteção legal. Nesse passo, a questão da reafirmação dos valores dos direitos humanos foi abordada uma vez que a positivação legal não foi suficiente para proteger a vida e a dignidade do ser humano. O método utilizado foi o dedutivo, com as considerações particulares baseadas em argumentos gerais, como também se utilizou o método indutivo, quando da análise de decisões de casos concretos pelos tribunais. O material empregado na elaboração do trabalho foi jurisprudência, artigos, material bibliográfico, legislação, sites da Internet. 1. AS DIMENSÕES DOS DIREITOS HUMANOS Para entender como se deu a constitucionalização dos direitos humanos, isto é, sua incorporação à Constituição, é preciso fazer uma contextualização histórica e conceitual do surgimento dos mesmos. De acordo com o doutrinador Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 41) a “Magna Charta Libertatum” ou “Magna Carta de João Sem-Terra”, elaborada na Inglaterra no século XIII, é o principal documento encontrado para o estudo da positivação de direitos, mesmo que adstritos ao clero e a nobreza, como bem aventado por Fábio Konder Comparato (2008, p. 80): “O sentido inovador do documento consistiu, justamente, no fato de a declaração régia reconhecer que os direitos próprios dos dois estamentos livres – a nobreza e o clero – existiam independentemente do consentimento do monarca, e não podiam, por conseguinte, ser modificados por ele”. A “Magna Carta” promulgou direitos subjetivos aos governados tais como o “habeas corpus”, o devido processo legal e o direito de propriedade. Por conseguinte, importantes declarações de direitos foram formuladas, notadamente a “Petition of Rights” (1628), o “Habeas Corpus Act” (1679), e o “Bill of Rights” (1689) (COMPARATO, 2008, p. 81-83). Todavia, de acordo com Sarlet (2010, p. 43) a origem dos direitos humanos não pode ser atribuída à positivação de direitos nestes documentos ingleses, por não traduzirem o atual sentido dos direitos fundamentais. O fato é que em tais declarações os direitos e as liberdades careciam da supremacia e da estabilidade necessárias para vincular o Parlamento. Dessa forma, o marco inicial do surgimento dos direitos humanos deu-se com as lutas da classe burguesa pela queda do absolutismo monárquico representado pela nobreza. Nesse sentido, para Norberto Bobbio (2004, p. 24) a positivação dos direitos humanos advém da formação do Estado Moderno: “No plano histórico sustento que a afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical mudança de perspectiva, característica da formação do Estado moderno, na representação da relação política, ou seja, na relação Estado/cidadão ou soberano/súdito: relação que é encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos não mais súditos, e não do ponto de vista do direito do soberano, em correspondência com a visão individualista da sociedade […].” Nas palavras de Dalmo de Abreu Dallari (2005, p. 280, grifo do autor) apresentou-se, a princípio, a forma mais liberal do Estado Moderno, o Estado Liberal: “[…] o Estado Liberal, resultante da ascensão política da burguesia, organizou-se de maneira a ser o mais fraco possível, caracterizando-se como Estado mínimo ou o Estado-polícia, com funções restritas quase que à mera vigilância da ordem social e à proteção contra ameaças externas. Essa orientação política favoreceu a implantação do constitucionalismo e da separação de poderes, pois ambos implicavam o enfraquecimento do Estado e, ao mesmo tempo, a preservação da liberdade de comércio e de contrato, bem como do caráter basicamente individualista da sociedade.” Neste contexto de Estado liberal, a Revolução Americana foi a primeira a tratar de direitos humanos na famosa Declaração da Virgínia (1776), como bem ilustrado por Comparato (2008, p. 50, grifo nosso): “O artigo I da Declaração que “o bom povo da Virgínia” tornou pública, em 16 de junho de 1776, constitui o registro de nascimento dos direitos humanos na História. É o reconhecimento solene de que todos os homens são igualmente vocacionados, pela sua própria natureza, ao aperfeiçoamento constante de si mesmos. A “busca da felicidade”, repetida na Declaração de Independência dos Estados Unidos, duas semanas após, é a razão de ser desses direitos inerentes à própria condição humana. Uma razão de ser imediatamente aceitável por todos os povos, em todas as épocas e civilizações. Uma razão universal, como a própria pessoa humana”. A promulgação desta declaração foi de extrema importância, uma vez que impulsionou a luta pela proteção aos direitos do homem em outros países. Prova disso é a revolta da burguesia francesa contra o poder político do clero e da nobreza, estourando em 1789 a Revolução Francesa sob o lema “liberdade, igualdade e fraternidade”. Não se pode olvidar que a Revolução Francesa (1789) foi o ápice da garantia de direitos por meio da promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na qual foi inscrita a primeira dimensão de direitos, consistente na garantia de direitos civis e políticos característicos do Estado Liberal, tais como liberdade, propriedade, segurança e igualdade perante a lei. “Os direitos fundamentais, ao menos no âmbito de seu reconhecimento nas primeiras Constituições escritas, são o produto peculiar (ressalvado certo conteúdo social característico do constitucionalismo francês), do pensamento liberal-burguês do século XVIII, de marcado cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de não-intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face de seu poder” (SARLET, 2010, p. 46-47). Enfim, as Declarações da Virgínia e dos Direitos do Homem e do Cidadão positivaram os direitos individuais, que na visão de Celso Lafer (1988, p. 126) são: “[…] direitos inerentes ao indivíduo e tidos como direitos naturais, uma vez que precedem o contrato social. Por isso, são direitos individuais: (I) quanto ao modo de exercício – é individualmente que se afirma, por exemplo, a liberdade de opinião; (II) quanto ao sujeito passivo do direito – pois o titular do direito individual pode afirmá-lo em relação a todos os demais indivíduos, já que esses direitos têm como limite o reconhecimento do direito de outro.” Como visto, trata-se de direitos inerentes a cada cidadão. Assim, nos dizeres de Maria Paula Dallari Bucci (2006, p. 3) os direitos de primeira dimensão somente serão assegurados nas situações em que o Estado e os cidadãos se abstenham de agir, trata-se de garantias negativas. Contudo, antes de abordar com mais cautela a evolução das categorias de direitos humanos, cumpre salientar que no presente trabalho utilizar-se-á o termo “dimensão” para designá-las ao invés do termo “geração”, uma vez que esta expressão pode ensejar a falsa impressão de substituição gradativa de uma categoria por outra. O fato é que a teoria dimensional, na visão de Sarlet (2010, p. 45-46), revela o caráter cumulativo do processo evolutivo e afirma a natureza complementar de todos os direitos. Ademais, corrobora sua unidade e indivisibilidade no contexto do direito constitucional interno e na esfera do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Portanto, à medida que novas dimensões de direitos humanos surgem, as já existentes não desaparecem. Nesse sentido, Jorge Neto (2009, p. 39) acredita que, além da complementariedade, a dimensão consiste na perspectiva histórico-vertical dos direitos, ou seja, no aprofundamento dos direitos. Quanto às dimensões, a primeira consiste em direitos de cunho negativo, realizáveis no contexto de Estado Liberal que permite situações de favoritismos e desigualdades. Ocorre que estas situações associadas aos efeitos da revolução industrial como excesso de mão-de-obra, péssimas condições de trabalho e ínfima remuneração percebida pelo trabalhador, propiciam a formação da classe proletária. Souto Maior (2009, p. 247) elucida o contexto em se originaram as reivindicações dos operários perante a classe industrial, a burguesia e o clero: “É relevante lembrar que a consagração jurídica de liberdade, apoiada em preceitos liberais, aplicada a uma realidade de extrema desigualdade econômica e cultural, favoreceu a exploração desenfreada do homem pelo homem, trazendo consigo a produção de ódios que, concretamente, eliminaram qualquer chance para a construção da paz mundial”. Os ideais liberais de não intervenção estatal chocavam-se com as manifestações populares por um comportamento estatal ativo e de justiça distributiva. Desse modo, as reivindicações sociais ganharam força e o Estado Social surgiu. Com isso, ainda que de modo esquivo, a proteção à igualdade aconteceu e o Estado passou a assegurá-la e promovê-la. Surgem então os direitos de segunda dimensão que consistem em direitos a prestações sociais, conceituados por Sarlet (2010, p. 48) nos seguintes termos: “A utilização da expressão ‘social’ encontra justificativa, entre outros aspectos que não nos cabe aprofundar neste momento, na circunstância de que os direitos de segunda dimensão podem ser considerados uma densificação do princípio da justiça social, além de corresponderem à reivindicações das classes menos favorecidas, de modo especial da classe operária, a título de compensação, em virtude de extrema desigualdade que caracterizava (e, de certa forma, ainda caracteriza) as relações com a classe empregadora, notadamente detentora de um maior ou menor grau de poder econômico.” É certo que o Estado Social possibilitou uma maior intervenção do Poder Público na economia, bem como exigiu a prestação de serviços públicos em prol dos titulares de direitos, o povo. Tudo isso em oposição à abstenção que se reclamava quando da reivindicação dos direitos de primeira dimensão, conforme Souto Maior (2009, p. 249): “O Direito Social, que tem por base a visualização do outro, buscando pelo espírito de solidariedade a elevação da condição humana, integrando o homem, sem distinções, ao todo social, está mais afeito aos dilemas postos pela efetivação dos denominados direitos fundamentais (vida, saúde, trabalho, lazer, intimidade, privacidade, liberdade de expressão, de crença religiosa etc.) que o Direito Liberal, voltado para a individualidade egoísta, desvinculada de qualquer interesse social.” Posteriormente, no período pós Segunda Guerra Mundial (1945), outros valores foram colocados em discussão, ensejando, assim o reconhecimento de direitos diversos dos já positivados. São os direitos de terceira dimensão, quais sejam, os direitos de fraternidade, desenvolvimento, paz, solidariedade, direitos dos povos. Sarlet (2010, p. 48-49) conceitua de maneira completa esta dimensão: “[…] trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos (família, povo, nação), e caracterizando-se, consequentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa. […] Dentre os direitos fundamentais da terceira dimensão consensualmente mais citados, cumpre referir os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e qualidade de vida, bem como o direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito de comunicação. Cuida-se na verdade do resultado de novas reivindicações fundamentais do ser humano, geradas, dentre outros fatores, pelo impacto tecnológico, pelo estado crônico de beligerância, bem como pelo processo de descolonização do segundo pós-guerra e suas contundentes consequências, acarretando profundos reflexos na esfera dos direitos fundamentais.” Estes direitos, portanto, diferem dos outros, pois reclamam a participação dos cidadãos e incitam a existência de uma consciência coletiva na atuação individual de cada membro da sociedade em consonância com o Estado. Por fim, é importante esclarecer que alguns doutrinadores sustentam a existência de direitos de quarta dimensão composta por direitos que são pensados para solucionar problemáticas jurídicas novas, frutos da sociedade contemporânea. Sarlet (2010, p. 51) expõe em sua obra o posicionamento de Paulo Bonavides acerca do assunto: “Para o ilustre constitucionalista cearense, esta quarta dimensão é composta pelos direitos à democracia (no caso, a democracia direta) e à informação, assim como pelo direito pluralismo. A proposta do Prof. Bonavides, comparada com as posições que arrolam os direitos contra a manipulação genética, mudança de sexo, etc., como integrando a quarta geração, oferece nítida vantagem de constituir, de fato, uma nova fase no reconhecimento dos direitos fundamentais, qualitativamente diversa das anteriores, já que não se cuida apenas de vestir com roupagem nova reivindicações deduzidas, em sua maior parte, dos clássicos direitos de liberdade.” De todo o exposto, é de clareza solar que os direitos humanos se originaram das transformações da sociedade e das necessidades do ser humano, no intuito de materializar a dignidade humana. 2. A RECONSTRUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS Ocorre que a mera positivação destes direitos em diplomas legais não é suficiente para garantir a plena proteção ao ser humano. Isto porque ao final da Segunda Guerra Mundial, a despeito do extenso rol de direitos reconhecidos, o ser humano foi vítima de muitas atrocidades e crueldades. Por conseguinte, várias críticas foram feitas à concepção positivista das normas, e em resposta a isto Piovesan (2012, p. 85) alerta para o surgimento da força normativa dos princípios, bem como ilustra que houve um reencontro com o pensamento kantiano, segundo o qual “as pessoas devem existir como um fim em si mesmo e jamais como um meio, a ser arbitrariamente usado para este ou aquele propósito”. O fato é que após a fatalidade causada pela guerra, repensa-se o valor do ser humano, que cada vez mais carece de condições mínimas para alcançar sua dignidade. Nesse sentido é a reflexão de Comparato (2008. p. 38): “Pois bem, a compreensão da dignidade suprema da pessoa humana e de seus direitos, no curso da História, tem sido, em grande parte, o fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada grande surto de violência, os homens recuam, horrorizados, à vista da ignomínia que afinal se abre claramente diante de seus olhos; e o remorso pelas torturas, pelas mutilações em massa, pelos massacres coletivos e pelas explorações aviltantes faz nascer nas consciências, agora purificadas, a exigência de novas regras de uma vida mais digna para todos.” Após vivenciar o sofrimento o homem arrepende-se de seus próprios atos e mobiliza-se no intuito de criar normas capazes de evitar novos extermínios e garantir dignidade ao ser humano. Tais normas visam proteger os direitos humanos na esfera internacional, como bem lembrado por Piovesan (2012, p. 185): “Nasce ainda a certeza de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao âmbito reservado de um Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Sob esse prisma, a violação dos direitos humanos não pode ser concebida como questão doméstica do Estado, e sim como problema de relevância internacional, como legítima preocupação da comunidade internacional”. Eis que surge um novo campo do Direito, o denominado Direito Internacional dos Direitos Humanos, que de acordo com Flávia Piovesan (2012, p. 184), “surgiu a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo”. É, pois, no contexto do pós Segunda Guerra que irrompe a premente necessidade de reconstrução e reafirmação dos valores dos direitos humanos, como bem explicado por Piovesan (2010, p.38): “Em face do regime de terror, no qual imperava a lógica da destruição e no qual as pessoas eram consideradas descartáveis, ou seja, em face do flagelo da Segunda Guerra Mundial, emerge a necessidade de reconstrução do valor dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional.” Neste cenário surge em 1945 a Organização das Nações Unidas (ONU). Trata-se de uma reconfiguração da antiga Liga das Nações que fora criada em 1919 sob o Tratado de Versailles. A ONU consiste em uma organização internacional constituída pelos países que desejam trabalhar pela paz e pelo desenvolvimento do planeta (ONU, Disponível em: http://www.onu.org.br/conheca-a-onu/a-historia-da-organizacao/). Em 1948 esta instituição editou a Declaração Universal dos Direitos do Homem que, segundo Borsato (2011, p. 13) surgiu para validar as garantias da humanidade. Como visto, é de extrema importância a proteção que se deu aos direitos através da criação de tratados e convenções internacionais. Ocorre que boa parte deles não são ratificados pelos países. Por esta razão é salutar que se promova a constitucionalização dos direitos, uma vez que a Constituição está no topo da escala normativa e possui supremacia perante o ordenamento interno. Sarlet (2010, p. 29) afirma que a partir do momento em que os direitos humanos são positivados internamente nos Estados ganham forma de direitos fundamentais, que em regra, têm sua força normativa decorrente da norma constitucional e distingue-se pelo reconhecimento positivo no ordenamento jurídico interno. A constitucionalização no Brasil, de acordo com Flávia Piovesan (2012, p. 80), ocorreu com o advento da Constituição Federal de 1988: “A Carta de 1988 institucionaliza a instauração de um regime político democrático no Brasil. Introduz também indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira. A partir dela, os direitos humanos ganham relevo extraordinário, situando-se a Carta de 1988 como o documento mais abrangente e pormenorizado sobre os direitos humanos jamais adotados no Brasil”. Foi em decorrência da democratização do país que o campo de proteção dos direitos foi significativamente ampliado. Piovesan (2012, p. 83) descreve a preocupação do legislador constituinte em assegurar os valores da dignidade e do bem-estar aos indivíduos como imperativo de justiça social, uma vez que o conteúdo da Constituição prevê um extenso rol de direitos no preâmbulo da Carta Magna, elenca a cidadania e a dignidade da pessoa humana como os principais fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito, e por fim, positiva variados postulados como objetivos fundamentais do Estado brasileiro. Portanto, a constitucionalização dos direitos humanos no Brasil além de positivar formalmente os direitos no ordenamento jurídico pátrio, previu valores éticos, propósitos e princípios no texto constitucional, sobretudo o princípio da dignidade humana. 3. OS DIREITOS HUMANOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 “A priori” é preciso compreender o significado de “direitos humanos”, objeto do presente estudo, em consonância com a expressão “direitos fundamentais”. Isto porque parte da doutrina tem utilizado ambos os termos como sinônimos com o mesmo conceito e conteúdo, sem saber ao certo ao que cada um se refere. A própria Magna Carta de 1988 não é precisa no emprego dos mesmos, conforme constatação feita por Sarlet (2010, p. 27): “[…] a exemplo do que ocorre em outros textos constitucionais, há que reconhecer que também a Constituição de 1988, em que pesem os avanços alcançados, continua a se caracterizar por uma diversidade semântica, utilizando termos diversos ao referir-se aos direitos fundamentais. A título ilustrativo, encontramos em nossa Carta Magna expressões como: a) direitos humanos (art. 4º, inc. II); b) direitos e garantias fundamentais (epígrafe do Título II, e art. 5º, §1º); c) direitos e liberdades constitucionais (art. 5º, inc. LXXI) e d) direitos e garantias individuais (art. 60, §4º, inc. IV)”. Indaga-se se existe alguma distinção entre as expressões “direitos fundamentais” e “direitos humanos”, pois ambas tratam de valores ligados à liberdade e igualdade com vistas à proteção e promoção da dignidade da pessoa humana. Grosso modo, em termos de conteúdo não há grandes diferenças. Contudo, não se pode olvidar que os direitos fundamentais são aqueles minimamente necessários a proporcionar uma vida digna ao seu titular, ao passo que os direitos humanos têm alcance ampliado, abrangendo, assim, os direitos positivados e os que ainda aguardam para serem positivados. Entretanto, a maior distinção que existe entre os termos concerne ao plano de positivação, conforme ensinamento de Sarlet (2010, p. 29): “Em que pese sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “direitos fundamentais”) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional).” Como visto os direitos humanos estão consagrados no plano internacional, ao passo que os direitos fundamentais estão positivados no plano interno, isto é, nas constituições. Dessa forma, quando os direitos humanos são consagrados na Constituição eles ganham o “status” de direitos fundamentais. Sarlet (2010, p. 32) aborda as consequências desta incorporação: “Nesse sentido, os direitos humanos (como direitos inerentes à própria condição e dignidade humana) acabam sendo transformados em direitos fundamentais pelo modelo positivista, incorporando-os ao sistema de direito positivo como elementos essenciais, visto que apenas mediante um processo de “fundamentalização” (precisamente pela incorporação às constituições), os direitos naturais e inalienáveis da pessoa adquirem a hierarquia jurídica e seu caráter vinculante em relação a todos os poderes constituídos no âmbito de um Estado Constitucional.” Concluindo a ideia apresentada, o autor (2010, p. 34) esclarece que os termos não se excluem, mas se inter-relacionam cada vez mais, respeitadas as diferentes esferas de positivação. No Brasil, a consagração dos direitos humanos no ordenamento jurídico interno como direitos fundamentais deu-se com o advento da Carta Magna de 1988. A positivação destes direitos visa, dentre os fundamentos da República Federativa do Brasil, à dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III). A dignidade figura como “valor constitucional supremo”, o valor mais importante da Constituição. Para Piovesan (2010, p. 48): “A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. Na ordem de 1988, esses valores passam a ser dotados de uma especial força expansiva, eprojetando-se por todo universo constitucional e servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico nacional.”  A dignidade é, portanto, o fundamento de onde se irradiam todos os direitos fundamentais, pois é ela quem assegura o preenchimento adequado dos mesmos, como bem lembrado por Sarlet (2010, p. 109): “Neste sentido, importa salientar, de início que o princípio da dignidade da pessoa humana vem sendo considerado fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa humana e que com base nesta devem ser interpretados. Entre nós, sustentou-se recentemente que o princípio da dignidade da pessoa humana exerce o papel de fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais, dando-lhes unidade e coerência.” No sentido formal de Constituição, a maioria dos direitos fundamentais está inscrita no Título II “Dos direitos e garantias fundamentais”: “Somente no art. 5º temos 77 incisos dispondo basicamente sobre direitos civis, ou seja, direitos relativos às liberdades, à não-discriminação e ao devido processo legal (garantias do Estado de Direito). Alguns dos direitos relativos às liberdades são retomados a partir do art. 170, que rege nossa ordem econômica. Do art. 6º ao art. 11, por sua vez, temos direitos sociais, que serão ainda estendidos entre os arts. 193 e 217. […] Por fim, há, ainda, direitos ligados a comunidades e grupos vulneráveis, como a proteção especial à criança, ao idoso, ao índio (arts. 227, 230 e 231), ou, ainda, a proteção ao meio ambiente (art. 225 da CF)” (VIEIRA, 2006, p.41). Além dos direitos fundamentais inscritos no texto constitucional, incluem-se todos os outros necessários para preservar e promover a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, não se pode olvidar que, além das normas constitucionais brasileiras, existe a possibilidade de o Brasil aderir a tratados e convenções internacionais. O disposto no parágrafo 3º do artigo 5º trata da interação entre o ordenamento jurídico pátrio e os tratados internacionais de direitos humanos, possibilitando ao Brasil a constitucionalização de direitos reconhecidos e resguardados no âmbito internacional. A constitucionalização de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio, segundo Piovesan (2010, p. 49) elevou os direitos neles enunciados a “uma hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a norma constitucional” (PIOVESAN, 2010, p. 49). “Desde o processo de democratização do País e em particular a partir da Constituição Federal de 1988, o Brasil tem adotado importantes medidas em prol da incorporação de instrumentos internacionais voltados à proteção dos direitos humanos” (PIOVESAN, 2012, p. 366). Do exposto infere-se que, os direitos humanos na Constituição Federal de 1988 são os direitos já positivados, os extraídos do regime e dos princípios constitucionais e os decorrentes de tratados internacionais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Do exposto não se pode olvidar que é de extrema relevância a inserção dos direitos humanos como direitos fundamentais no ordenamento pátrio para a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana. Nessa medida, a Constituição Federal de 1988 garantiu um extenso rol de direitos sociais na proteção dos cidadãos brasileiros, o que só foi possível por meio do fenômeno da constitucionalização dos direitos humanos.
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-constitucionalizacao-dos-direitos-humanos/
As açôes de enfrentamento ao tráfico de pessoas frente à violação dos direitos humanos
Resumo:Prática relacionada com a Antiguidade, o tráfico de seres humanos continua existindo em pleno século XXI. Atualmente, se confunde com outras práticas criminosas e de violação dos Direitos Humanos e não serve mais apenas à exploração de mão-de-obra escrava. As vítimas são exploradas não só para atividades sexuais comerciais, mas também para o trabalho forçado e escravo (na agricultura, na pesca, nos serviços domésticos, na indústria e outros), extração de órgãos e para adoção, constituindo-se em formas modernas de escravidão. O presente trabalho traz algumas reflexões oriundas de pesquisas realizadas em documentos públicos dentro da órbita dos direitos humanos fundamentais.
Direitos Humanos
1. INTRODUÇÃO O tráfico de pessoas é considerado forma de com práticas criminosas que viola os Direitos Humanos. Neste sentido, essas pessoas são exploradas para fins de escravidão, ou seja, no trabalho forçado, em atividades sexuais comerciais como a prostituição, até mesmo para a aquisição de órgãos humanos. A incorporação dos Direitos Humanos à ordem internacional é decorrência de um longo período de avanços e retrocessos políticos e sociais. Os Estados começaram a estabelecer normas internacionais a fim de proteger a pessoa humana. Objetivou-se com este trabalho analisar a realidade do tráfico de seres humanos na contemporaneidade do Brasil, enfocando a violação dos direitos fundamentais das pessoas e a política pública de enfrentamentoao tráfico de pessoas. Para tanto, utilizou-se da pesquisa bibliográfica e documental, tais como livros, revistas, jornais, hebdomadários, internet e documentação de órgãos oficiais. A análise se deu em uma perspectiva qualitativa. No Brasil, esses direitos são constitucionalizados em virtude do disposto no art. 5º da Constituição de 1988, que diz que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade […]”. Seguindo uma deliberação da Conferência Internacional de Direitos Humanos de Viena (Áustria), ocorrida em 1993, o Brasil conta atualmente com o seu Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) em sua segunda versão. Tem a finalidade de demonstrar a visão governamental acerca dos direitos humanos e das questões de afirmação da cidadania. Estabelecem diretrizes, define concepções e prioridades, conclamando e exigindo a participação dos estados, dos municípios e da sociedade civil nesse processo. A primeira versão do PNDH recebeu numerosas colaborações de pessoas e entidades nacionais de defesa dos direitos humanos, reunidas em 1996, na Primeira Conferência Nacional de Direitos Humanos, juntamente com representantes do poder público. Recentemente, o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil tornou-se uma prioridade política de diferentes setores governamentais e da sociedade civil organizada. De acordo com os Princípios e Diretrizes Recomendadas pela ONU, sobre Direitos Humanos e Tráfico de Pessoas, o tráfico de seres humanos é caracterizado pelo uso de força, coerção, fraude ou abuso de poder. Assim, as medidas de proteção e enfrentamento ao tráfico de pessoas devem ser pautadas nos princípios universais de direitos humanos, que garantem o direito de ir e vir como essencial para a dignidade humana. O presente estudo faz parte de pesquisas realizadas em documentos públicos por um grupo de pesquisadores, com o escopo de veicular informações concernente a problemática supracitada principalmente no que se refere a contribuição do Serviço Social na defesa dos direitos humanos fundamentais. 2. DIREITOS HUMANOS E A QUESTÃO DO TRÁFICO DE SERES HUMANOS Segundo Hobsbawm (1995) os Estados Unidos foram o primeiro país aformular uma declaração de direitos do homem, a de Virgínia, em 1776. Noentanto é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, emplena Revolução Francesa, que obteve maior expressão. Conforme Cançado (2003) a constituição francesa de 1791 incorpora aDeclaração de 1789, e a partir daí os direitos do homem ingressam noconstitucionalismo moderno, expressos nos direitos do cidadão, em 1948,foi aprovada a convenção contra o genocídio e assinada, em Bogotá, aConvenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis e dosDireitos Políticos à mulher. A Declaração Universal dos Direitos Humanos surgiu em 1945 como umcódigo de conduta mundial, contudo, exerceu maior influência nos paísesocidentais, incorporando-se em seus ordenamentos jurídicos. ADeclaração implica em dizer que, além de pertencer a uma família, a umacomunidade e a um Estado Nacional, todas as pessoas ganhem a condição demembro de uma comunidade planetária, internacional. A declaração possibilitou o reconhecimento de que todo ser humano,independentemente das diferenças de biotipo, sexo, orientação sexual,idade, nacionalidade, etnia ou cultura, é portador de um valor a ser garantido por todos os povos. Foi necessário evocar ao mundo, em uma instância com legitimidade internacional, assim a Organização das Nações Unidas (ONU), trouxe a lembrança  dos fatos históricos da Primeira e da Segunda Guerra Mundial onde jogaram por terra: o respeito à vida e à dignidade humana, para formular diretrizes para valorização da vida. De acordo com o manual da Aliança Global contra o Tráfico de Mulheres (GAATW,), que é formada por diversas Organizações da Sociedade Civil (OSCs), e atuam na proteção dos direitos humanos e vítimas do tráfico internacional: “[…]os países têm a responsabilidade deproporcionar proteção às pessoas traficadas, nos termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e na medida em que parte importante dos países assinou ou ratificou inúmeros instrumentos internacionais ou regionais.” GAATW (2006, p.11). O tráfico de seres humanos é um problema global que requer respostas para prevenir e controlar tanto a oferta quanto à procura desse crime que representa uma violação dos Direitos Humanos. Conforme cita o representante do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime(UNODC) Giovanni Quaglia na Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (2007, p.39) “No mundo todo, especialmente em países em desenvolvimento, centenas de homens, mulheres e crianças são traficadas ilegalmente. São atraídos pela expectativa de um trabalho bem remunerado em outros países, geralmente aqueles mais ricos”. A maioria das vítimas é de mulheres e crianças, que são recrutados por falsos anúncios, catálogos de noivas enviados pelo correio ou encontros casuais. No caso das crianças, muitas são forçadas, vendidas à escravidão sexual por famílias pobres, ou até raptadas para o tráfico e exploração. As vulnerabilidades econômicas, de gênero, sociais, falta deoportunidades são fatores que propiciam e alimentam o tráfico internacional de pessoas; um crime que põe em risco os direitos humanos fundamentais. A rede do tráfico de pessoas atua também na fragilização da vítima, seja pela coação de si ou de seus familiares, separando a vítima de sua comunidade, impedindo possibilidades de ajuda; imposição de condições de endividamento; isolamento de qualquer forma de comunicação. Leal (2006, p.183), afirma que “as vítimas são muitas vezes forçadas, através de violência física, a dedicar-se a atos sexuais ourealizar trabalhos similares à escravidão. Essa força inclui o estupro eoutras formas de abusos sexuais, tortura, fome, prisão, ameaças, abusos psicológicos e coerção”. Os aliciadores do tráfico de pessoas agem também no convencimento das vítimas de serem as principais culpadas por estarem em tal situação.Dessa maneira, a maioria das pessoas traficadas desconhece sua condição de vítima e os direitos de que é detentora. Pessoas traficadas são expostas a AIDS  e Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs). Leidholdt (1999) /apud/ Jesus (2003, p.19) coloca que as principais causas do tráfico internacional de seres humanos são: “a ausência de direitos, ou a baixa aplicação das regras internacionais de direitos humanos; a discriminação de gênero, a violência contra a mulher; a pobreza e a desigualdade de oportunidades e de renda; a instabilidade econômica, as guerras, os desastres naturais e a instabilidade política”. Segundo Jesus (2003, p.19), “praticamente 99% das pessoas traficadas para exploração sexual são do sexo feminino”. Existe então uma discriminação em torno das relações gênero e aspectos culturais a serem considerados, tais aspectos contribuem para discriminação da mulher,desvalorizando-as e considerando-as como meras mercadorias para prazeres sexuais. Esses padrões visam garantir os direitos das pessoas traficadas na medida em que lhes proporcionam assistência e proteção legais,tratamento não-discriminatório e restituição, compensação e recuperação.A GAATW em seu manual sobre direitos humanos e tráfico de mulheres,lançado no Brasil em 2006, define os Padrões de Direitos Humanos para o Tratamento de Pessoas Traficadas recomendando esses padrões aos Estados. Os PDH baseiam-se na idéia de direitos humanos e removem a palavra “vítimas”, pois, segundo o manual, pessoas traficadas devem ser tratadas como uma categoria de pessoas cujos direitos foram violados no processo do tráfico e cujos direitos devem ser protegidos. O manual também ilustra uma tabela onde os direitos específicos foram violados pelo tráfico e aos quais os governos podem ser responsabilizados por sua inépcia em punir traficantes, eliminar a discriminação baseada no gênero e atender as necessidades e direitos das pessoas traficadas que conseguiram escapar da rede do tráfico. Responsabilidades propostas pelo PDH, contêm meios de fornecer às pessoas traficadas o acesso à justiça, às ações e reparações privadas,ao acesso à saúde e aos outros serviços, e à ajuda com repatriamento e reintegração em seus países de origem. Tal documento visa promover o respeito dos direitos humanos dos indivíduos que foram vítimas do tráfico, incluindo aquelas que foram sujeitadas ao trabalho involuntário e/ou práticas de modo escravo, podendo ser usado como guia para fornecer auxílio às vitimas e seus familiares, e ainda, promover ação legal contra traficantes. Como a Constituição brasileira assegura que o país cumprirá todas as orientações de acordos internacionais ratificados, o governo observou a necessidade, diante da realidade do país, de criar uma Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. 2.1. A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas Através do Decreto Presidencial nº 5.948, de 26 de outubro de 2006,foi criada a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas(PNETP).Pode-se considerar que a publicação do Decreto é um marco na luta por Direitos Humanos no Brasil e pela construção da imagem de um país garantidor de direitos.Considerando queo Brasil possui de acordo com a PESTRAF – Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual. (2002)241 rotas de tráfico nacionais e internacionais o governo busca consolidar uma Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas,que compete a agenda pública no tocante a  questão social. O objetivo é unir esforços na esfera federal no combate a esse tipo de crime, que atinge principalmente as mulheres brasileiras,exploradas sexualmente em países como Espanha, Portugal e Itália. Segundo a PNETP (2007, p.61), “com o Plano Nacional, pretende-sedar real concretude e efetividade às ações preventivas, repressivas ede atenção às vítimas que consubstanciam a Política Nacional, ao estabelecer propostas, prazos definidos e responsáveis pela execução de cada ação”. A Política define ações a serem implementadas por órgãos e entidades públicos em diversas áreas, como Justiça, Segurança Pública,Educação, Saúde, Assistência Social e Direitos Humanos. O conteúdo e diretrizes da Política são pautados na garantia dos direitos humanos e envolve grande número de secretarias e ministérios. O texto foi elaborado pela Secretaria Nacional de Justiça (SNJ), do Ministério da Justiça, juntamente com as Secretaria Especial de Direitos Humanos e com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. No total, a elaboração da Política contou com a participação de 11ministérios, além do Ministério Público do Trabalho e aproximadamente 50organizações da sociedade civil. A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, está dividida em três capítulos. Esses dispõem sobre sua finalidade principal, ou seja, traçar diretrizes, princípios e ações no enfrentamento ao tráfico de pessoas. Define-se ainda a expressão “tráfico de pessoas”, tal como prevêem os principais instrumentos,notadamente o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial mulheres e crianças, e a legislação brasileira. A nova Política Nacional é um avanço na prevenção e enfrentamento do tráfico de pessoas, o art. 4º, inciso IX da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, faz parte das diretrizes gerais “o incentivo à formação e à capacitação de profissionais para a prevenção e repressão ao tráfico de pessoas, bem como para a verificação da condição de vítima e para o atendimento e reinserção social das vítimas”. A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas já mostra seus impactos positivos, tanto em relação ao diálogo promovido entre os diversos atores, quanto ao aumento do número de ações de combate, prevenção e atendimento. A Política prevê três grandes eixos de atuação: prevenção ao tráfico de pessoas, repressão ao tráfico de pessoas e responsabilização de seus autores e atenção às vítimas, seu escopo no entanto não está restrito apenas  em ações de repressão. Vários organismos nacionais e internacionais, como a OIT, a PESTRAF e a GAATW, propõe ações de combate e enfrentamento ao tráfico de seres humanos. O Brasil vêm fazendo parcerias com instituições e organismos internacionais para enfrentar e erradicar de vez o tráfico de pessoas no país. A Política Nacional de Enfrentamento ao tráfico de Pessoas propõe várias ações de enfrentamento e articulações contributivas ao enfrentamento entre ministérios e outros órgãos do governos, tais como:Ministério da Justiça (Secretaria Nacional d Justiça – SNJ),  Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), Departamento de Polícia Federal(DPF), Departamento de Polícia Rodoviária Federal (DPRF), Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), Ministério da Educação (MEC), Ministério da Saúde, Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS),Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério do Turismo (MTUR),Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Ministério das Relações Exteriores (MRE). Vale ressaltar que a articulação entre as instituições acima, vem contribuindo qualitativamente no que se refere ao enfrentamento ao tráfico de pessoas. 2.2. A Importância do Profissional de Serviço Social na Política de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Na década de 1980 teve inicio um processo de mobilização da sociedade,que resultou na conquista pela promulgação da Constituição de 1988,passando pela aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990entre outras leis que vieram contribuir para  a garantia e ampliação dos direitos sociais. Paralelo ás conquistas dos direitos sociais assegurados a partir da Constituição de 1988, observou-se a reestruturação dos mecanismos de acumulação do capital que resultou em profundas mudanças societárias e conseqüentemente em novas formas de intervenção do profissional do Serviço Social. Diante dessas expressões da questão social, as exigências contemporâneas para o exercício profissional passam por três dimensões: consistente conhecimento teórico metodológico, que possibilita a compreensão clara da realidade; realização dos compromissos ético-políticos estabelecidos pelo Código de Ética Profissional  do Assistente Social e capacitação técnico – operacional, através  da qual o profissional definirá estratégias e táticas na perspectiva da consolidação teórico pratica de um projeto profissional comprometido com os interesses e necessidades dos usuários […] e com a construção de uma nova cidadania social.SILVA(2000,p. 113). De acordo com as diretrizes da política de enfrentamento ao trafico de pessoas existe uma necessidade de atuação de profissionais de diversas áreas no que tange ao enfrentamento ao tráfico de pessoas,destarte a atuação profissional do Serviço Social se torna indispensável na formulação de programas e projetos destinados a este fim, visando a garantia dos direitos humanos fundamentais. Ademais se perfilha o assistente social como um profissional dotado de competência teórico-metodológico, ético-politica e técnico- operativa para intervir junto as expressões da questão social.  Cabe elucidar que organismos internacionais como GAATW – Aliança Global – elencam algumas diretrizes na formulação de propostas onde o profissional do Serviço Social é importante na assistência e acompanhamento as vitima do trafico. Mas, é preciso esclarecer que tais diretrizes compreendem às vezes de forma equivocada a verdadeira atuação deste profissional. Ressalta-se que tais diretrizes foram firmadas mundialmente colocando de certa forma a atuação a cargo de cada país. Departamentos de bem-estar social e assistentes sociais poderiam( GAATW, 2006, p. 86): “- oferecer uma orientação geral sobre a sociedade na qual a pessoa traficada é um estranho: sistema legal, práticas culturais, informação de viagem, sistema político, etc. – realizar uma preparação apropriada para um eventual retorno ao seu próprio país, de acordo com os desejos da pessoa interessada;especialmente considerando comunicações com agências e outras pessoas,incluindo membros da família, no país de origem”. O Trafico de seres humanos hoje é visto como um mercado em expansão haja vista a facilidade de se comercializar a vida humana por intermédio de vários fatores favorecedores do trafico tais como: a pobreza, a ausência de oportunidades de trabalho, discriminação de gênero, instabilidade política, econômica e civil em regiões de conflito, emigração não documentada, turismo sexual, corrupção de funcionários públicos e leis deficitárias. De acordo com o artigo quinto da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (2007, p.86): “V – na área de Assistência Social: a) oferecer assistência integral às vítimas de tráfico de pessoas no âmbito do Sistema Único de Assistência Social; b) propiciar o acolhimento de vítimas de tráfico, em articulação com os sistemas de saúde, segurança e justiça; c) capacitar os operadores da assistência social na área de atendimento às vítimas de tráfico de pessoas; e d) apoiar a implementação de programas e projetos de atendimentos específicos às vítimas de tráfico de pessoas”; A relevância de um profissional capacitado nas ações de enfrentamento aotráfico e assistência às vítimas, faz do exercício profissional do Serviço Social imperativo fundamental na formulação de políticas bem como programas de assistência à vítima, propostos pela GAATW. Tal profissional poderá contribuir sistematicamente na efetivação e eficácia, desses programas bem como veicular informações e auxiliar a vítima em todas as etapas do processo. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A miséria social a qual se encontra a humanidade coloca a mercê os vínculos afetivos, onde seres humanos são objetos numa visão mercadológica no mundo capitalista. Desta forma o pacto internacional ao enfrentamento do tráfico de seres humanos para exploração comercial não pode ser entendido apenas como uma carta de princípios e sugestões que os governos cumpram ou deixem de cumprir se assim o desejarem, já é pacifico na doutrina jurídica que os tratados internacionais produzam efeitos no âmbito interno. Os mesmos coexistem de forma supletiva à ordem internacional referente aos mecanismos de promoção e proteção social. É fundamental esclarecer que não se trata de trocar a defesa dos direitos civis e políticos pela defesa dos direitos econômicos sociais e culturais. De acordo com os dados analisados relativos ao tráfico de pessoas,as mulheres são as principais vitimas dos aliciadores, sobretudo pelas promessas de ascensão social, fazendo desta problemática um mercado milionário em expansão. Ademais as vitimas do tráfico vivem na clandestinidade trabalhando ilegalmente, forçadas a se prostituir e trabalhar em condições análogas à de escravos. A análise de todo processo histórico até os dias atuais evidenciou as grandes mudanças ocorridas no âmbito jurídico com a alteração do código penal que caracterizava o tráfico de seres humanos por meio do art. 231 como “Tráfico de Mulheres”. A redação foi mudada para “Tráfico Internacional de Pessoas” e acrescentou o art. 231–A qualificando o“ Tráfico Interno de Pessoas”. Esses dispositivos foram alterados pelaLei11.106, de 28 de março de 2005. A alteração contribuiu e contribuirá significativamente a repressão do tráfico de pessoas pelo fato de ter ampliado o alcance da norma incriminadora. Outro fator contributivo analisado foi a recém criada Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas; a mesma coloca diretrizes princípios e ações referentes ao enfrentamento desta problemática, considera-se, no entanto, um grande avanço. Outrossim, a sociedade necessita compreender a natureza dos direitos humanos e a responsabilidade dos governos em proteger estes direitos. Este conhecimento fortalece a sociedade a exigir dos governos ações para proteger os direitos humanos de todas as pessoas, incluindo vítimas do tráfico. Destarte o estudo demonstrou que o tráfico de seres humanos é apenas uma nova nomenclatura para as mesmas práticas ilícitas cometidas no passado. Imprescindível será sensibilizar e pressionar os governos para cumprir sua responsabilidade e fazer prevalecer os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos para todos os povos. Desta forma, o Serviço Social é citado nas diretrizes internacionais referentes ao enfrentamento do trafico de seres humanos, colocando um novo desafio aos profissionais no que se refere às formas de enfrentamento.
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Os direitos do preso à luz do princípio da dignidade da pessoa humana
A preocupação primordial deste estudo é refletir sobre os direitos fundamentais trazidos pela Constituição Federal de 1988, enfatizando os direitos dos detentos à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Este artigo tem como objetivo analisar se os direitos e princípios que regem o atual Estado Brasileiro têm sido respeitados e efetivados no âmbito do direito penal. Realizou-se uma pesquisa bibliográfica considerando as contribuições de autores como GRECO (2011), SILVA (2007), GOMES (2011), entre outros, procurando enfatizar a importância do respeito aos direitos dos presos e, consequentemente, a obediência ao próprio texto constitucional, bem como analisar as penas aplicadas no Brasil e investigar se a sua principal função – ressocializar o infrator – está sendo alcançada.
Direitos Humanos
Introdução O presente trabalho tem como tema a observância aos direitos humanos dos detentos frente à Constituição Federal de 1988 e ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Nesta perspectiva, construíram-se questões que nortearam este trabalho: ·Quais os direitos fundamentais trazidos pela Constituição Federal de 1988? · Quais os direitos dos detentos à luz do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, fundamento da República Federativa do Brasil? · Os detentos têm tido seus direitos respeitados? Caso negativo, quais os fatores que influenciam ou determinam essa situação? Quando se fala em direitos humanos, pressupõe-se que tais direitos são essenciais para uma vida digna, e que todos, independentemente de cor, classe, condição social, devem ter esses direitos respeitados. No entanto, apesar das conquistas históricas desses direitos, hoje positivados na própria Carta Magna, há ainda muito preconceito e ignorância quando se insere o rol dessas garantias aos que se encontram, temporariamente, privados de sua liberdade. Esquecem, pois, que continuam sendo seres humanos e, portanto, merecedores de todos os direitos compatíveis com sua condição. Esquecem-se ainda que o fim de todo condenado é o retorno à sociedade. E que se o infrator não for ressocializado, continuará a delinquir, tornando a sociedade cada vez mais insegura e violenta. A ressocialização, bem como o respeito aos direitos do preso, interessa a toda a coletividade, visto que todos perdem com o crime. Daí a importância de se estudar e investigar os motivos que levam a não ressocialização dos detentos, buscando soluções para o decadente sistema prisional brasileiro. Neste contexto, o objetivo primordial deste estudo é, pois, investigar como os detentos têm sido tratados na égide da Constituição Federal de 1988 que proclama os direitos fundamentais dos seres humanos e se funda no princípio da dignidade da pessoa humana. Para alcançar os objetivos propostos, utilizou-se como recurso metodológico, a pesquisa bibliográfica, realizada a partir da análise pormenorizada de materiais já publicados na literatura e artigos científicos divulgados no meio eletrônico. O texto final foi fundamentado nas ideias e concepções de autores como: José Afonso da Silva (2007), Rogério Greco (2011), Luis Flávio Gomes (2011), entre outros. Desenvolvimento A Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova ordem jurídica, visto que encerra um tenebroso período de nossa história – período militar, e proclama o (re) nascimento de uma democracia. De acordo com o artigo 1º da Carta Magna de 1988 a República Federativa do Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito. Mas o que isto significa? Significa que o Brasil é um sistema institucional, no qual cada um é submetido ao respeito do direito, do simples indivíduo até a potência pública; e que as funções típicas e indelegáveis do Estado são exercidas por indivíduos eleitos pelo povo para tanto, de acordo com regras pré-estabelecidas que regerão o pleito eleitoral. No Estado democrático de direito, apenas o direito positivo (isto é, aquele que foi codificado e aprovado pelos órgãos estatais competentes, como o Poder Legislativo) poderá limitar a ação estatal. Nesse contexto, destaca-se o papel exercido pela Constituição. Nela delineiam-se os limites e as regras para o exercício do poder estatal (onde se inscrevem os chamados "Direitos e Garantias fundamentais"), e, a partir dela, e sempre a tendo como baliza, redige-se o restante do chamado "ordenamento jurídico", isto é, o conjunto das leis que regem uma sociedade. Diz o Prof. José Afonso da Silva (2007, p.153) sobre o assunto: “O reconhecimento dos direitos fundamentais do homem em enunciados explícitos nas declarações de direitos, é coisa recente, e está longe de se esgotarem suas possibilidades, já que a cada passo na etapa da evolução da Humanidade importa na conquista de novos direitos. Mais que conquista, o reconhecimento desses direitos caracteriza-se como reconquista de algo que, em termos primitivos, se perdeu, quando a sociedade se dividira em proprietários e não proprietários”. Nesse contexto – de reconhecimento dos direitos humanos, foi promulgada a Constituição Federal de 1988, a qual não apenas estabelece um regime político democrático, como propicia um grande avanço no que se refere aos direitos e garantias fundamentais. O compromisso ideológico e doutrinário desses direitos fundamentais que serve de pilar básico ao Estado Democrático de Direito, aparece logo a partir do preâmbulo da nossa Lei Maior: “(…) para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias (…)”. Esse compromisso se manifesta por todo o texto constitucional, de forma explícita, ou implicitamente, conforme podemos observar logo no seu art. 1º que consagra como fundamentos da República Federativa do Brasil a cidadania e a dignidade da pessoa humana. A nossa Constituição também faz menção expressa à promoção e proteção dos direitos humanos quando afirma que sua prevalência constitui princípio que rege as relações internacionais do Estado brasileiro (artigo 4º), ou ainda, quando estabelece no artigo 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) que o Brasil propugnará pela formação de um Tribunal Internacional dos Direitos Humanos.  Além disso, roga o artigo 5º, §2º da Constituição que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Dentre todos os direitos fundamentais elencados no Diploma Maior, merece destaque o mais amplo e o mais importantes deles: o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet (2012, p. 62): “[…] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”. Já de acordo com Rogério Greco (2011, p.67): “No entanto, mesmo reconhecendo a sua existência, conceituar dignidade da pessoa humana continua a ser um enorme desafio. Isto porque tal conceito encontra-se no rol daqueles considerados vagos e imprecisos. É um conceito, na verdade, que, desde a sua origem, encontra-se em um processo contínuo de construção. Não podemos, de modo algum, edificar um muro com a finalidade de dar contornos precisos a ele, justamente por ser um conceito aberto”. A atual Constituição do Brasil assim dispõe em seu artigo 1º: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Note-se que, apesar do artigo 1º elencar outros fundamentos para a República Federativa do Brasil, é o princípio da dignidade humana que embasa todos os demais, sendo, portanto, a viga mestra de todo o ordenamento jurídico brasileiro. A dignidade da pessoa humana é, por conseguinte, o núcleo essencial dos direitos fundamentais, a fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais, a fonte ética, que confere unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais, o valor que atrai a realização dos direitos fundamentais. Greco (2011, p.71) afirma que: “Percebe-se, portanto, a preocupação do legislador constituinte em conceder um status normativo ao princípio da dignidade da pessoa humana, entendendo-o como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito”. Como princípio constitucional, a dignidade da pessoa humana deverá ser entendida como norma de hierarquia superior, destinada a orientador todo o sistema no que diz respeito à criação legislativa, bem como para aferir a validade das normas que lhe são inferiores. Assim, por exemplo, o legislador infraconstitucional estaria proibido de criar tipos penais incriminadores que atentassem contra a dignidade da pessoa humana, ficando proibida a cominação de penas cruéis, ou de natureza aflitiva, a exemplo dos açoites, mutilações, castrações, etc.”. Apesar de consagrado constitucionalmente, percebe-se, em muitas situações, a sua violação pelo próprio Estado. Assim, aquele que seria o maior responsável pela sua observância, acaba se transformando em seu maior violador.  Isso se reflete em todas as áreas sociais, e com grande ênfase no âmbito do Direito Penal, pois o poder estatal passou a utilizar da pena e das prisões como principal forma de controle e manutenção da ordem, esquecendo-se que seu objeto e limite de atuação estão estabelecidos e vinculados aos direitos fundamentais. Corroborando com a afirmação supracitada, Rogério Greco (2011, p.103) exemplifica: “Veja-se, por exemplo, o que ocorre com o sistema penitenciário brasileiro. Indivíduos que foram condenados ao cumprimento de uma pena privativa de liberdade são afetos, diariamente, em sua dignidade, enfrentando problemas como superlotação carcerária, espancamentos, ausência de programas de reabilitação, falta de cuidados médicos, etc. A ressocialização do egresso é uma tarefa quase impossível, pois não existem programas governamentais para a sua reinserção social, além do fato de a sociedade, hipocritamente, não perdoar aquele que já foi condenado por ter praticado uma infração penal”. É evidente que a dignidade da pessoa humana – assim como nenhum outro direito fundamental, não é absoluta. Com isso, pretende-se dizer que o Estado, em determinadas situações, pode privar o cidadão, temporariamente, de alguns de seus direitos fundamentais em prol de outros princípios que também são garantidos pela própria Constituição. Como exemplo, tem-se que, em busca da pacificação social, o Estado tem o poder de punir o infrator de suas leis (penais), privando-o, temporariamente, de sua liberdade (direito fundamental). Nesse contexto, Grego (2011, p. 73): “Assim, tomemos como exemplo o fato de alguém ter praticado um delito de extorsão mediante sequestro, qualificado pela morte da vítima. O sequestrador, como é de conhecimento de todos, tem direito à liberdade, diretamente ligado à sua dignidade, deverá ceder frente ao direito de proteção dos bens jurídicos pertencentes às demais pessoas, que com ele se encontram numa sociedade. Percebe-se, assim, que a dignidade, como um valor individual de cada ser humano, deverá ser avaliada e ponderada em cada caso concreto. Não devemos nos esquecer, contudo, daquilo que se denomina como sendo um núcleo essencial da dignidade da pessoa humana, que jamais poderá ser abalado. Assim, uma coisa é permitir que alguém, que praticou uma infração penal de natureza grave, se veja privado de sua liberdade pelo próprio Estado, encarregado de proteger, em última instância, os bens jurídicos; outra coisa é permitir que esse mesmo condenado a uma privação de liberdade cumpra sua pena em local degradante de sua personalidade; que seja torturado por agentes do governo com a finalidade de arrancar-lhe alguma confissão; que seus parentes sejam impedidos de visitar-lhe; que não tenha uma ocupação ressocializante no cárcere, etc. A sua dignidade deverá ser preservada, pois que ao Estado foi permitido somente privar-lhe a liberdade, ficando resguardados, entretanto, os demais direitos que dizem respeito diretamente à sua dignidade como pessoa”. Observa-se que o princípio da dignidade da pessoa humana, ainda que relativizado, possui um núcleo essencial que deve ser preservado, impondo limites à própria atuação estatal e ao ius puniendi do Estado. E se é no Estado Democrático de Direito que o ius puniendi encontra seus fundamentos, também será nele que encontrará suas limitações. A atual Constituição do Brasil traz, expressa e implicitamente, princípios penais fundamentais que funcionam como limites internos ao ius puniendi, tendo eles como norte o princípio da dignidade da pessoa humana. O princípio da intervenção mínima determina que o Direito Penal apenas deverá proteger aqueles bens que são imprescindíveis à condição humana, à sua coexistência pacífica no meio social. Portanto, a norma jurídica penal deve atender aos ideais de necessidade e utilidade na incidência da mesma. O Direito Penal deve ser a ultima ratio para a solução dos conflitos existentes, pois se trata da via mais violenta, que mais fere as garantias individuais, como o direito à liberdade. Daí a importância desse princípio, que serve de limite para legislador no momento em que este seleciona as condutas que devem ser tipificadas no Código Penal brasileiro. Já o princípio da ofensividade no Direito Penal incide em dois diferentes planos.  Inicialmente, serve de orientação à atividade legiferante, fornecendo substratos político-jurídicos para que o legislador adote, na elaboração do tipo penal, a exigência indeclinável de que a conduta proibida represente ou contenha verdadeiro conteúdo ofensivo a bens jurídicos socialmente relevantes. No segundo plano, serve de critério interpretativo, constrangendo o intérprete legal a encontrar em cada caso concreto a indispensável lesividade ao bem jurídico protegido. Para Luiz Flávio Gomes (2011, p.111), é dupla a função do princípio da ofensividade no Direito Penal: “(a) função político-criminal (momento em que se decide pela criminalização da conduta) e (b) função interpretativa ou dogmática (instante em que se interpreta e se aplica concretamente o Direito penal). A primeira função do princípio da ofensividade constitui um limite ao direito de punir do Estado (ao ius puniendi) (sentido subjetivo). Está dirigida ao legislador. A segunda configura um limite ao Direito penal (ao ius poenale) (sentido objetivo). Está dirigida ao intérprete e ao juiz (ao aplicador da lei penal)”. O princípio-síntese da dignidade humana, portanto, consagra, a nível constitucional, a ideia de que a intervenção estatal, na esfera penal, somente deve ser justificada na hipótese de ocorrer ataque efetivo e concreto a um bem jurídico relevante. Não há crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico tutelado (nullum crimen sine iniuria). O princípio da reserva legal, por outro lado, estabelece toda a estrutura basilar das leis penais brasileiras, estando intrinsecamente ligado ao princípio da anterioridade, tendo ambos, previsão legal na CF, no art. 5º, inc. XXXIX, o qual: "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal". Observa-se que, além da exigência expressa de lei formal para tipificar crimes e cominar sanções penais, deflui do dispositivo que a lei somente se aplicará, para qualificar como crime, aos atos praticados depois que ela tenha sido publicada. Da mesma forma, a previsão legal abstrata da pena (cominação da pena) deve existir, estar publicada, antes da conduta que será apenada. O princípio da imputação pessoal, por sua vez, encontra previsão legal no art. 5º, XLV da CF, estabelecendo que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido. Como se pode observar, as penas serão aplicadas tão somente ao condenado, sem que ocorra sua transmissão, diferente do que o artigo preceitua em relação à obrigação de reparar o dano que, pode estender aos sucessores. Sinteticamente, pode-se conceituar o principio da imputação pessoal de modo que, a culpabilidade dos atos será imputada a quem os tenha praticado, bem como aqueles, que de alguma forma tenham incorrido em participação, visando à punibilidade aplicada de forma individual a cada sujeito, na medida de sua ação. O principio da individualização da pena, também possui respaldo na Constituição Federal, no artigo 5º, XLVI, pelo qual desenvolve questões relativas às sanções adequadas, limites de aplicação máximos e mínimos, bem como circunstâncias que aumentem ou diminuam sua aplicação. Estabelece o artigo 5º, XLVI da Carta Magna: “A lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos”. Desta seleção, conforme entendimento doutrinado por Greco (2011, p.115-116), o legislador visou dividir as diversas formas de aplicação de sanções, intrinsecamente relacionadas à medida de importância dos bens jurídicos tutelados, ou seja, impor o Direito Penal na proporção da lesão praticada. Para a cominação e imposição da pena, agregam-se, além dos requisitos de idoneidade e necessidade, a proporcionalidade. Pela adequação ou idoneidade, a sanção penal deve ser um instrumento capaz, apto ou adequado à consecução da finalidade pretendida pelo legislador (adequação do meio e fim). O requisito da necessidade significa que o meio escolhido é indispensável, necessário, para atingir o fim proposto, na falta de outro menos gravoso e de igual eficácia. Existem muitos outros princípios que impõem limitações ao poder estatal, não sendo objetivo desse artigo exaurir o estudo destes princípios, mas tão somente concluir que em um Estado Democrático de Direito, o ius puniendi do Estado não é ilimitado, absoluto ou quiçá incondicionado. Há limites necessários, cuja finalidade é a adequação do Direito Penal ao Estado Constitucional Democrático de Direito, fundado na invariante axiológica da dignidade da pessoa humana. É preciso compreender, portanto, que o Estado não pode punir de forma arbitrária, uma vez que encontra sua atuação limitada pelos direitos fundamentais erigidos no ordenamento jurídico, e que o preso conserva os demais direitos adquiridos enquanto cidadão, que não sejam incompatíveis com a "liberdade de ir e vir", à medida que a perda temporária do direito de liberdade em decorrência dos efeitos de sentença penal refere-se tão-somente à locomoção.  Tanto é verdade que a Lei das Execuções Penais (LEP) contempla expressamente os direitos básicos dos detentos. São eles: a)    Direito à alimentação e vestimenta fornecidos pelo Estado. b)    Direito a uma ala arejada e higiênica; c)    Direito à visita da família e amigos; d)    Direito de escrever e receber cartas; e)    Direito a ser chamado pelo nome, sem nenhuma discriminação; f)     Direito ao trabalho remunerado em, no mínimo, 3/4 do salário mínimo; g)    Direito à assistência médica; h)    Direito à assistência educacional: estudos de 1º grau e cursos técnicos; i)      Direito à assistência social: para propor atividades recreativas e de integração no presídio, fazendo ligação com a família e amigos do preso; j)     Direito à assistência religiosa: todo preso, se quiser, pode seguir a religião que preferir, e o presídio deve propiciar locais adequados aos cultos; k)    Direito à assistência judiciária e contato com advogado: todo preso pode conversar em particular com seu advogado e se não puder contratar um o Estado tem o dever de lhe fornecer gratuitamente. Teoricamente, a finalidade das penas privativas de liberdade é a readaptação social do infrator e a prevenção da criminalidade. Na prática, a legislação penal e o sistema prisional vigentes no Brasil têm se mostrado incompatíveis com estes objetivos, em  razão das condições ambientais e subumanas a que são submetidos os sentenciados nas prisões brasileiras. Assevera Maria Angélica Lacerda Marin Dassi (2013): “No panorama brasileiro, o estado desordenado do sistema carcerário constitui-se mais um dos efeitos da falência dos paradigmas da modernidade. A prisão serve tão-somente para deportar do meio social aqueles indivíduos que representam um risco à sociedade. Na perspectiva foucaultiana, constitui-se um instrumento utópico de ressocialização, criado para atender aos interesses capitalistas. Ela exclui do ângulo de  visibilidade as mazelas sociais, mas não recupera o infrator e não contribui para diminuir as práticas criminosas. Estabelecendo um confronto entre as disposições legais e a realidade, observa-se que os requisitos mínimos da boa condição penitenciária, preconizados pela legislação penal brasileira estão longe de serem cumpridos. Para esta constatação, basta um breve olhar sobre as prisões existentes no país”. Vários são os fatores que têm contribuído para o desrespeito aos direitos fundamentais dos presos e à consequente crise no sistema carcerário brasileiro. Analisar-se-á cada uma delas. · Ausência de compromisso por parte do Estado O problema carcerário numa ocupou, verdadeiramente, a pauta de preocupações administrativas dos governantes. O tema vem à tona, em geral, em situações de crises agudas, como rebeliões, ou quando os organismos não governamentais que trabalham com essas questões trazem a público as mazelas existentes nos estabelecimentos prisionais. Além disso, manter um sistema carcerário digno requer uma boa parcela do orçamento público, e o Estado não está disposto a gastar com os infratores, não acredita, realmente, que eles possam ser ressocializados e reinseridos na sociedade, voltando a ter uma vida digna e honesta. À falta de interesse somam-se outros fatores como corrupção, má administração, etc. O bem da verdade, segundo Greco (2011, p.302), é que falta de interesse estatal reflete a falta de interesse da própria sociedade que gostaria que, na maioria dos casos, os presos sofressem além da condenação imposta, a fim de suas estadias nos estabelecimentos penais se tornem os piores anos de suas vidas, como se a simples privação de liberdade não fosse punição mais do que suficiente. · Controle ineficiente por parte daqueles que deveriam fiscalizar o sistema carcerário Se por um lado o Poder Executivo não destina orçamento suficiente nem constrói políticas públicas eficazes para o bom funcionamento do sistema penitenciário brasileiro, por outro o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública – principalmente promotores e juízes das execuções penais, não fiscalizam a administração do Poder Executivo nem a observância da Lei das Execuções Penais. · Superlotação carcerária O Poder Legislativo, com o intuito de dar uma satisfação à sociedade, que clama por segurança e justiça, cria novos tipos incriminadores, permitindo que fatos de pequena ou nenhuma importância sejam julgados pela Justiça Criminal, contribuindo assim para que o sistema fique superlotado com pessoas que poderiam ter sido punidas pelos demais ramos do direito, uma vez que, segundo o Princípio da Intervenção Mínima, o Direito Penal só deve intervir onde os demais ramos do direito não consigam solucionar o litígio. Ademais, o próprio Poder Judiciário, atendendo ao clamor social, usa indiscriminadamente a privação cautelar de liberdade, fazendo com que o instituto que deveria ser exceção – prisão cautelar, passe a ser regra. Importante destacar que a superlotação carcerária é um fator de risco não apenas para os presos, que cumprem suas penas em situações degradantes, como também para os funcionários encarregados de sua vigilância. · Ausência de programas destinados à ressocialização dos condenados. Apesar de a ressocialização ser uma das funções da pena, visto que o fim de todo condenado é o retorno à sociedade, o Brasil é extremamente deficiente em políticas públicas eficazes tanto para o detento quanto para o egresso do sistema prisional. Num primeiro momento, destaca-se a importância de políticas públicas que visem a prevenir à prática delituosa, dando oportunidade para todos, diminuindo as desigualdades econômicas e sociais, bem como fortalecendo as instituições criminais de forma a extinguir o pensamento da impunidade que assola a nação brasileira. Num segundo momento, quando já houve a transgressão da lei penal, é mister cuidar para que o infrator seja realmente punido, mas de forma a assegurar-lhe a dignidade durante toda a execução da pena, além de prepará-lo moral, psicológico, educacional e profissionalmente a enfrentar o mundo após tantos anos isolado. São necessárias também políticas públicas que conscientizem a população de que o ex-detento já pagou o que devia à sociedade, devendo ser tratado como um cidadão comum, sem discriminações, garantindo-lhes novas oportunidades e evitando que voltem a delinquir. Conclusão      Diante do exposto, concluiu-se que a Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova ordem jurídica no Brasil, elevando-o a um Estado Democrático de Direito, que tem como seu fundamento maior a dignidade da pessoa humana. Que tal princípio não é absoluto, posto que o homem não vive sozinho, mas em sociedade, sendo necessário resguardar os valores (bens jurídicos) relevantes para uma sociedade livre, justa e pacífica. Dessa forma, legitima-se o poder de punir estatal, dando direito ao Estado de retirar, temporariamente, alguns dos direitos fundamentais de seus cidadãos, como a liberdade. Mas esse ius puniendi do Estado não é ilimitado, absoluto ou quiçá incondicionado. Há limites necessários, cuja finalidade é a adequação do Direito Penal ao Estado Constitucional Democrático de Direito, fundado na invariante axiológica da dignidade da pessoa humana. Quando o Estado pune penalmente o infrator, ele lhe retira o direito à liberdade, mas os demais direitos compatíveis com a limitação de “ir e vir” devem ser preservados, o que não ocorre atualmente no sistema carcerário brasileiro. O preso é, na verdade, colocado à margem da sociedade, como se de fato não existisse. Isto ocasiona um ciclo vicioso, visto que o infrator é condenado, cumpre a pena em situações desumanas, retorna à sociedade e, não encontrando outra saída, volta a delinquir… Pela má administração, escassez de recursos destinados, corrupção, falta de fiscalização e de interesse de todas as esferas políticas e administrativas, e inclusive da própria sociedade, o sistema carcerário brasileiro encontra-se em profunda crise, sendo necessárias políticas públicas urgentes que forneçam uma execução da pena digna, que conscientizem a sociedade que o infrator é maior que o crime, é um ser humano, e por essa simples razão, deve ter sua dignidade preservada, assim como todos os homens e mulheres existem nos quatro cantos do planeta. Somente assim, pela integração de todos os poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e da sociedade será possível garantir uma sociedade mais justa, segura e igualitária, na qual todo homem tem a sua dignidade respeitada. Posto que a Constituição Brasileira de 1988 não é apenas uma folha de papel, mas um instrumento garantir dos direitos humanos e um importante documento para a transformação social!
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Antropologia forense e direitos humanos no Brasil: considerações sobre a comissão nacional da verdade e a perícia criminal
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi instituída no âmbito do Governo Federal para apurar possíveis afrontas aos direitos humanos ocorridas durante o período da ditadura militar no Brasil. Ocorre que foi deferido recentemente o procedimento da exumação dos restos mortais do ex-presidente João Goulart. Esse fato pode ser considerado um marco na história dos direitos humanos no Brasil, sobretudo no que se refere à observância das suas principais características, como a imprescritibilidade e a historicidade dos mesmos. Nesse sentido, faz-se necessário uma revisão dos procedimentos técnico-científicos adotados no campo das ciências forenses, para se verificar se o Estado, em sentido amplo, possui condições estruturais e procedimentais devidamente aprimoradas e adequadas para a satisfação, em última análise, da eficácia dos direitos humanos.
Direitos Humanos
1. OBJETO DE ESTUDO Com a criação e instituição da Comissão Nacional da Verdade (CNV) para apurar possíveis delitos praticados conta os direitos humanos, no período da ditadura militar no Brasil, foi deferida a exumação dos restos mortais do ex-presidente João Goulart. Considerando que os direitos humanos, por possuírem características peculiares no ordenamento jurídico estatal, que transcendem (e muito) o aspecto jurídico, tão-somente, tendo reflexos em todas as ciências humanas, e, especialmente, nas ciências históricas; Tendo por premissa que as técnicas criminalísticas (periciais) em antropologia forense, e, mais precisamente, em arqueologia forense, são muito próximas do ideal nos sistemas penais de países desenvolvidos, e que a perícia criminal no Brasil, como um todo, é um serviço de segurança pública "bastante deficitário", conforme estudo encomendado  pelo Governo Federal em 2012 (SENASP, Estudo da Perícia no Brasil, 2012, p. 79); Devido a esta situação, suponhamos que os direitos humanos assumissem uma dimensão histórica tal, onde os efeitos decorrentes desse fato, permitissem o início de uma perquirição estatal por violações aos direitos humanos, cometidas no passado, com base probatória em um conhecimento, que o próprio Estado assume não poder executar de forma plena. Nessa hipótese, estaríamos diante de a descoberta de um novo efeito dos direitos humanos, com base em um estudo de cunho histórico (SARLET, 2009, p. 37). Ainda, se concluirmos que o Estado está, de fato, "arriscando", ao embutir aos direitos humanos um caráter absoluto, em razão da imprescritibilidade dos delitos que o afrontam, e, para tanto, está, sim, se propondo a aprofundar as investigações, ao ponto de solicitar a exumação de um ex-presidente morto há muito tempo, sabendo que, disto decorrerão diversos efeitos jurídicos e políticos no país, bem como que seu aparato para fazê-lo é considerado, por ele próprio, deficitário.  Essa situação hipotética corroboraria tal tese. Mas, por lado, se for verificado que o Estado está ciente da imprescindibilidade das ciências forenses, como a antropologia e a arqueologia forenses, e pretende melhorar o aparelhamento de segurança pública em perícia criminal, aprimorando sua estrutura e procedimentos? Seria este o sentido da dimensão da eficácia dos direitos humanos, atualmente assumido pelo Estado? Se sim, qual o reflexo deste quadro na historicidade dos direitos humanos? É possível traçar um paralelo histórico desde a época da ditadura militar até os dias atuais, para verificar se houve evolução histórica dos direitos humanos em antropologia forense? 3. ANTROPOLOGIA FORENSE, DIREITOS HUMANOS E A COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE As ciências históricas, em um sentido amplo, têm o condão de realizar uma análise dos fatos pretéritos de um determinado local e de sua seqüencia cronológica, confrontando-os com os acontecimentos do presente, em busca de uma melhor compreensão dos fenômenos humanos e um adequado enquadramento científico das demandas dele surgidas, na tarefa de apresentar respostas para a sociedade, sobretudo no que se refere à análise da realidade do mundo contemporâneo, a cada dia mais complexa. Nesse diapasão, as ciências forenses, enquanto conjunto de conhecimentos técnico-científicos de que dispõe o Estado, e destinadas ao descobrimento da verdade sobre fatos criminosos, estão inseridas em um contexto de necessidade do aprimoramento da eficiência da segurança pública que é oferecida pelo ente estatal. Especificamente no âmbito das ciências históricas, a antropologia forense, enquanto ramo científico da antropologia física ou biológica, e que encontra suporte em outras ciências, como o Direito e a Medicina, mostra-se uma área do conhecimento criminalístico muito valiosa, porém ainda pouco desenvolvida no âmbito da polícias científicas brasileiras. Sobretudo em se tratando de técnicas de arqueologia forense, muito pouco do conhecimento já adquirido por outros sistemas penais do exterior, como o norte-americano, é aplicado pelos órgãos de segurança pública no país (SAFERSTEIN, R., 1987, p. 04). A Antropologia Forense é a área científica que estuda as ossadas. Resulta da aplicação de conhecimentos de Antropologia às questões de direito no que diz respeito à identificação de restos cadavéricos (necroidentificação). Através dos ossos, podemos obter dados sobre o sexo, idade, estatura do falecido e pormenores da vida que a pessoa teve (hábitos alimentares, algumas doenças, lesões, etc. (SCHMITT, A, CUNHA, E, PINHEIRO, J., 2006, p. 09 Os achados em escavações podem ter diversas origens: cadáveres abandonados numa fase avançada de decomposição, corpos desfigurados resultados de mutilações, ou, cadáveres que possam corresponder a indivíduos vítimas de desastres em massa (acidentes de aviação, naufrágios, catástrofes naturais, etc.).  As técnicas desenvolvidas no trabalho de um antropólogo começa no local do crime e estende-se até ao laboratório. Dividindo-se parcialmente em três etapas: 1º) etapa- Arqueologia forense. É feita uma escavação minuciosa do local onde se encontra o corpo; 2º) etapa- Antropologia social. Consiste na recolha de informações em redor da área do crime (entrevistas às pessoas da região, consulta em arquivos municipais, eclesiásticos e militares, etc.; 3º) etapa- Investigação laboratorial. Há uma aplicação de técnicas como a osteologia humana (área que se debruça sobre o estudo dos ossos que compõe o esqueleto), paleopatologia (ramo da ciência que se dedica ao estudo das doenças do passado) e tafonomia (estudo sistemático da evolução de fósseis). Pode ainda ser feita uma reconstrução facial do cadáver e superposição fotográfica (TULLER, H, DURIC, M., 2006, p. 11). No passado, sabidamente vivíamos em um período ditatorial onde direitos fundamentais eram suprimidos dos indivíduos, sob o argumento da ordem e dos valores estatais vigentes. Nos dias atuais, a investigação sobre a ocorrência de abusos de autoridade extremos, atentatórios aos bens jurídicos mais bem protegidos pelo Estado Democrático de Direito, encontra vazão em uma característica fundamental dos direitos fundamentais: a imprescritibilidade. Ao fazer tal afirmação, nos voltamos para o presente. A Comissão Nacional da Verdade, instituída no âmbito do Governo Federal, visa investigar violações de  direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 no Brasil por agentes do Estado. Essa comissão será formada por sete membros nomeados pela Presidente do Brasil Dilma Rousseff e catorze auxiliares, que atuarão durante dois anos, sendo que no final desse período, publicarão um relatório dos principais achados, que poderá ser público ou poderá ser enviado apenas para o presidente da república ou o ministro da defesa. A lei que a institui foi sancionada pela Presidente em 18 de novembro de 2011e foi instalada oficialmente em 16 de maio de 2012. Com base nesse contexto, e com base na perquirição de eventuais afrontas aos direitos humanos, e tendo em vista o caráter da imprescritibilidade e historicidade dos mesmos, a comissão decidiu por deferir o procedimento forense de exumação dos restos mortais do ex-presidente João Goulart. Tal medida mostra a dimensão que toma, a partir do panorama constitucional apresentado, o aprimoramento e sedimentação de um protocolo de antropologia forense.
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Normativa da educação em direitos humanos nas nações unidas e no Brasil
Este artigo trata da normatização da educação em direitos humanos no âmbito das Nações Unidas e do Brasil. Inicialmente, analisa-se a normativa das Nações Unidas sobre a educação em direitos humanos, centrando-se maior atenção no Programa Mundial para a Educação em Direitos Humanos, no seu Plano de Ação e na Declaração das Nações Unidas sobre Educação e Formação em Direitos Humanos. Após, verifica-se o regramento nacional, com foco no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos e nas principais medidas realizadas para sua efetivação e para a implementação da educação em direitos humanos.[1]
Direitos Humanos
Introdução A educação em direitos humanos, conceituada como o “conjunto de atividades de educação, de capacitação e de difusão de informação, orientadas para criar uma cultura universal de direitos humanos” (Plano de ação para a primeira etapa do Programa Mundial para educação em direitos humanos, p. 1. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/textos/edh/br/plano_acao_programa_mundial_edh_pt.pdf> Acesso em: 24 jul 2013), cada vez mais vem sendo objeto de preocupação e normatização no plano global de proteção aos direitos humanos e no plano nacional, considerando que configura elemento fundamental para a garantia dos direitos humanos e da paz mundial. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, representa marco na proteção aos direitos humanos no plano global e já traz preocupação com a educação em direitos humanos, pois prevê como objetivo comum o esforço para promover o respeito aos direitos humanos por meio do ensino e da educação (artigo 26)[2]. Diversos instrumentos internacionais estabeleceram preceitos relativos à educação em direitos humanos, em particular o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (artigo 13), a Convenção sobre os Direitos da Criança (artigo 29), a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (artigo 10), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (artigo 7), a Declaração e Programa de Ação da Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlatas, celebrada em Durban (África do Sul), em 2001 (Declaração, parágrafos 95 a 97 e Programa de Ação, parágrafos 129 a 139). Ademais, vários marcos internacionais concretos de ação foram adotados, como a Campanha Mundial de Informação Pública sobre os Direitos Humanos, com base na preparação e difusão de material de informação sobre os direitos humanos, a Década das Nações Unidas para a educação na esfera dos direitos humanos, e a Década Internacional de uma cultura de paz e não violência para as crianças do mundo (2001-2010). Merece destaque a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, que, em 1993, por meio da Declaração e Programa de Ação de Viena[3] (Parte I, parágrafos 33 e 34 e Parte II, parágrafos 78 a 82) reafirmou a responsabilidade prioritária dos Estados na efetivação dos direitos humanos e ressaltou a educação em direitos humanos como instrumento fundamental para tanto. Nesse sentido, em 10 de dezembro de 2004, na 70ª sessão plenária, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, por meio da Resolução 59/113A, o Programa Mundial para a educação em direitos humanos. Em seguida, em 14 de junho de 2005, na 113ª sessão plenária, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, por meio da Resolução 59/113B, o plano de ação para a primeira etapa (2005-2007) do Programa Mundial para a educação em direitos humanos[4]. Posteriormente, a Resolução 15/11, de 30 de setembro de 2010, aprovou, na 31ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, o plano de ação para a segunda etapa (2010-2014) do Programa Mundial para a educação em direitos humanos. Por fim, ainda no plano global, em 23 de março de 2011, o Conselho de Direitos Humanos aprovou a Declaração das Nações Unidas sobre educação e formação em matéria de direitos humanos através da Resolução 16/1 e recomendou à Assembleia Geral que adotasse a referida Declaração, o que ocorreu em 19 de dezembro de 2011, por meio da Resolução 66/137 da Assembleia Geral das Nações Unidas. No plano interno, a Constituição Federal de 1988 inaugurou um Estado Democrático de Direito, fundado na dignidade da pessoa humana e que garante como cláusulas pétreas os direitos humanos. O direito à educação foi estabelecido no artigo 205, que prevê que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Algumas disposições infraconstitucionais contemplaram a educação em direitos humanos, mas a matéria somente começou a ser sistematizada de forma mais completa com o lançamento do Programa Nacional de Educação em Direitos Humanos, por meio do Ministério da Educação, da Justiça e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, em 2003, com a criação do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Após intensos debates e apoiado no plano de ação do Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos, foi finalizado o Plano Nacional de Educação em Diretos Humanos em dezembro de 2006, com o objetivo de trazer plena realização à democracia, desenvolvimento, justiça social e de promover os direitos humanos, estabelecendo medidas no âmbito da educação básica, educação superior, educação não-formal, educação dos profissionais dos sistemas de justiça e segurança e educação e mídia. Diversas medidas foram realizadas no Brasil com o objetivo de efetivar a educação em direitos humanos e implementar o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, com destaque a Lei Maria da Penha, o Programa Nacional de Direitos Humanos – 3, as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos e o Estatuto da Igualdade Racial. 1 A normativa da educação em direitos humanos no plano global das Nações Unidas No presente capítulo será avaliada a normativa da educação em direitos humanos no plano global das Nações Unidas, com destaque para a análise do Programa Mundial para educação em direitos humanos, do seu plano de ação e da Declaração das Nações Unidas sobre educação e formação em direitos humanos. 1.1. O Programa Mundial para educação em direitos humanos O Programa Mundial para educação em direitos humanos, aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 2004, por meio da Resolução 59/113, é produto de discussões e documentos anteriores da Organização das Nações Unidas. Importante marco inicial é a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, de 1993, que considerou a educação em direitos humanos elemento essencial para a efetivação dos direitos humanos pelos Estados.[5] Após a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, diversas resoluções foram aprovadas pela Assembleia Geral e pela Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas proclamando a importância da educação em direitos humanos. A Resolução 58/181, de 22 de dezembro de 2003, decidiu dedicar uma plenária durante a 59ª sessão da Assembleia Geral, por ocasião do Dia dos Direitos Humanos, para examinar os objetivos da década e analisar as atividades que poderiam ser realizadas para fomentar a educação em direitos. Em seguida, o Conselho Econômico e Social, seguindo a Resolução 2004/71 da Comissão de Direitos Humanos, de 21 de abril de 2004, de forma mais objetiva, recomendou que a Assembleia Geral proclamasse, na 59ª sessão, um programa mundial para educação na esfera dos direitos humanos, que começasse a partir de janeiro de 2005 e fosse estruturado em fases consecutivas, para intensificar as atividades nacionais de educação em direitos humanos em setores ou questões concretas determinadas periodicamente pela Comissão de Direitos Humanos. A década de 1995 a 2004 foi, então, estabelecida como a Década das Nações Unidas para a educação na esfera dos direitos humanos e o Programa Mundial para educação em direitos humanos foi aprovado. Em seus considerandos, o programa reafirma a necessidade de prosseguir com ações internacionais para aprovar esforços dirigidos a atingir objetivos de desenvolvimento internacionalmente estabelecidos, incluindo os contidos na Declaração do Milênio, em particular o acesso universal ao ensino básico para 2015. Considera, ainda, que a educação na esfera dos direitos humanos é um processo de longo prazo, que se prolonga durante toda a vida, pelo qual as pessoas aprendem a ser tolerantes, a respeitar a dignidade dos outros e os meios e métodos de fortalecer o respeito em todas as sociedades. Observa que a educação na esfera dos direitos humanos é essencial para a realização dos direitos humanos e liberdades fundamentais e contribui significativamente para promover a igualdade, prevenir os conflitos e as violações de direitos humanos e fomentar a participação nos processos democráticos, a fim de estabelecer sociedades em que se valorize e respeite todos os seres humanos, sem discriminações e distinções de nenhum tipo, em particular por motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política e de outra ordem, como origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição. O programa toma nota das opiniões expressadas no relatório do Alto Comissionado das Nações Unidas para Direitos Humanos sobre os objetivos registrados na Década das Nações Unidas para a educação na esfera dos direitos humanos e sobre as futuras atividades das Nações Unidas considerando a necessidade de manter um marco mundial para a educação na esfera dos direitos humanos posteriormente ao decênio, a fim de que a agenda internacional dê prioridade a essa questão. Além disso, proclama que o programa começará em 1º de janeiro de 2005, será estruturado em etapas sucessivas e terá por objetivo promover a execução dos programas de educação na esfera dos direitos humanos em todos os setores. Por fim, o programa reconhece o plano de ação para a primeira etapa (2005-2007) do Programa Mundial para a educação em direitos humanos, elaborado conjuntamente pelo Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos e pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, e convida os Estados a apresentar suas observações ao Escritório do Alto Comissionado para rápida aprovação. 1.2 O plano de ação do Programa Mundial para educação em direitos humanos O plano de ação para a primeira etapa (2005-2007)[6] do Programa Mundial para a educação em direitos humanos, aprovado por todos os Estados Membros da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 14 de julho de 2005, centrou-se na educação em direitos humanos nos sistemas de ensino primário e secundário. Conforme explicado no resumo do plano de ação, “ao contrário da Década das Nações Unidas para a educação em matéria de direitos humanos (1995-2004), de duração limitada, o Programa Mundial consiste em uma série de etapas, a primeira das quais abrange o período de 2005-2007 e é centrada nos sistemas de ensino primário e secundário. No Plano de Ação para a primeira etapa, elaborado por um amplo grupo de especialistas em educação e em direitos humanos dos cinco continentes, são propostas uma estratégia concreta e as idéias práticas para proporcionar educação em direitos humanos no plano dos países.” (Plano de ação do Programa Mundial para educação em direitos humanos, p. 2). Em sua introdução, o plano contextualiza e define a educação em direitos humanos, estabelece os objetivos do Programa Mundial para a educação em direitos humanos e esclarece os princípios condutores da atividade de educação em direitos humanos. Conforme exposto, o contexto do plano considera o consenso da comunidade internacional de que “a educação em direitos contribui decisivamente para a realização dos direitos humanos” (Plano de ação do Programa Mundial para educação em direitos humanos, p. 9) e considera a existência dos diversos documentos internacionais elaborados, como a Declaração Universal de Direitos Humanos, a Convenção sobre os Direitos da Criança e as diretrizes conexas aprovadas pelo Comitê sobre os Direitos da Criança (em particular, a observação geral No. 1 (2001) sobre os objetivos da educação), a Declaração e o Programa de Ação de Viena, de 1993, e a Declaração e o Plano de Ação Integrado sobre a Educação para a Paz, os Direitos Humanos e a Democracia, além das declarações e nos programas internacionais em matéria de educação, como o Marco de Ação de Dakar sobre Educação para Todos: Cumprir Nossos Compromissos Comuns, aprovado no Fórum Mundial sobre a Educação em 2000.[7] Nesse contexto, seguindo as bases acordadas pela comunidade internacional, a educação em direitos humanos pode ser definida como: “o conjunto de atividades de capacitação e difusão de informação, orientadas para criar uma cultura universal na esfera dos direitos humanos mediante a transmissão de conhecimentos, o ensino de técnicas e a formação de atitudes, com a finalidade de: a) Fortalecer o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; b) Desenvolver plenamente a personalidade humana e o sentido da dignidade do ser humano; c) Promover a compreensão, a tolerância, a igualdade entre os sexos e a amizade entre todas as nações, os povos indígenas e os grupos raciais, nacionais, étnicos, religiosos e lingüísticos; d) Facilitar a participação efetiva de todas as pessoas numa sociedade livre e democrática na qual impere o Estado de direito; e) Fomentar e manter a paz; f) Promover um desenvolvimento sustentável centrado nas pessoas e na justiça social.” (Plano de ação do Programa Mundial para educação em direitos humanos, p. 10). Possui, portanto, conteúdo amplo e voltado para a prática, pois, conforme descrito no resumo do plano de ação, “uma educação integral em direitos humanos não somente proporciona conhecimentos sobre os direitos humanos e os mecanismos para protegê-los, mas que, além disso, transmite as aptidões necessárias para promover, defender e aplicar os direitos humanos na vida cotidiana. A educação em direitos humanos promove as atitudes e comportamento necessários para que os direitos humanos de todos os membros da sociedade sejam respeitados. As atividades de educação em direitos humanos devem transmitir os princípios fundamentais dos direitos humanos, como a igualdade e a não discriminação e, ao mesmo tempo, consolidar a sua interdependência, indivisibilidade e universalidade. Do mesmo modo, essas atividades devem ser de natureza prática e devem estar encaminhadas ao estabelecimento de uma relação entre os direitos humanos e a experiência dos educandos na vida real, permitindo que eles se inspirem nos princípios de direitos humanos existentes no seu próprio contexto cultural. Mediante essas atividades, os educandos são dotados dos meios necessários para determinar e atender as suas necessidades no âmbito dos direitos humanos e buscar soluções compatíveis com as normas desses direitos. Tanto o que é ensinado como o modo como é ensinado devem refletir os valores dos direitos humanos, estimular a participação a esse respeito e fomentar ambientes de aprendizagem nos quais não existam temores nem carências.” (Plano de ação do Programa Mundial para educação em direitos humanos, p. 1) A educação em direitos humanos abrange, portanto, os conhecimentos e as técnicas para aprender e proteger os direitos humanos e a capacidade de aplicá-los na vida cotidiana; a promoção de atitudes, valores e comportamentos que respeitem os direitos humanos; e a adoção de medidas para a defesa e promoção dos direitos humanos. De acordo com o plano, os objetivos do Programa Mundial para a educação em direitos humanos são: “a) Contribuir para o desenvolvimento de uma cultura de direitos humanos; b) Promover o entendimento comum com base em instrumentos internacionais, princípios e metodologias básicas para a educação em direitos humanos; c) Assegurar que a educação em direitos humanos receba a devida atenção nos planos nacional, regional e internacional; d) Proporcionar um marco coletivo comum para a adoção de medidas a cargo de todos os agentes pertinentes; e) Ampliar as oportunidades de cooperação e associação em todos os níveis; f) Aproveitar e apoiar os programas de educação em direitos humanos existentes, ilustrar as práticas satisfatórias e dar incentivos para continuá-las ou ampliá-las e para criar novas práticas.” (Plano de ação do Programa Mundial para educação em direitos humanos, p. 11). Em síntese, nota-se que o programa objetiva desenvolver uma cultura de direitos humanos, mediante a fixação de entendimento comum sobre os princípios e metodologias básicas para a educação em direitos humanos e através da cooperação e associação em todos os níveis, para que a educação em direitos humanos seja assegurada e fomentada nos planos nacional, regional e internacional. Na sequência, o plano define os princípios condutores da atividade de educação em direitos compreendidos no Programa Mundial: “a) Promover a interdependência, a indivisibilidade e a universalidade dos direitos humanos, inclusive dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, bem como o direito ao desenvolvimento; b) Fomentar o respeito e a valorização das diferenças, bem como a oposição à discriminação por motivos de raça, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra índole, origem nacional, étnica ou social, condição física ou mental, ou por outros motivos; c) Encorajar a análise de problemas crônicos e incipientes em matéria de direitos humanos, em particular a pobreza, os conflitos violentos e a discriminação, para encontrar soluções compatíveis com as normas relativas aos direitos humanos; d) Dotar as comunidades e as pessoas dos meios necessários para determinar suas necessidades em matéria de direitos humanos e assegurar sua satisfação; e) Inspirar-se nos princípios de direitos humanos consagrados nos distintos contextos culturais e levar em conta os acontecimentos históricos e sociais de cada país; f) Fomentar os conhecimentos sobre instrumentos e mecanismos para a proteção dos direitos humanos e a capacidade de aplicá-los em nível mundial, local, nacional e regional; g) Utilizar métodos pedagógicos participativos que incluam conhecimentos, análises críticas e técnicas para promover os direitos humanos; h) Fomentar ambientes de aprendizado e ensino sem temores nem carências, que estimulem a participação, o gozo dos direitos humanos e o desenvolvimento pleno da pessoalidade humana.” (Plano de ação do Programa Mundial para educação em direitos humanos, p. 11). Da análise dos princípios apresentados, percebe-se a preocupação com a promoção da interdependência, indivisibilidade e universalidade dos direitos humanos e com o direito ao desenvolvimento. Ademais, destaca-se o foco na pessoa do educando, pois a educação deve dotar a pessoa de meios para identificar as suas necessidades em matérias de direitos humanos, de acordo com as peculiaridades de seu contexto cultural, e se desenvolver através de métodos pedagógicos participativos, que permitam o pleno desenvolvimento da personalidade. Após contextualizar e definir a educação em direitos humanos, os objetivos do Programa Mundial e os princípios condutores da atividade de educação em direitos humanos, o plano passa a tratar da educação em direitos humanos nos sistemas de ensino primário e secundário. Tem-se como premissa que a educação em direitos humanos faz parte do direito à educação, conforme estabelecido na observação geral nº 1 do Comitê sobre os Direitos da Criança, que prevê, em seu parágrafo 2º, que “a educação à qual toda criança tem direito é a que tem como objetivo prepará-la para a vida cotidiana, fortalecer sua capacidade de desfrutar de todos os direitos humanos e fomentar uma cultura onde prevaleçam valores de direitos humanos apropriados” (parágrafo 2º) (Plano de ação do Programa Mundial para educação em direitos humanos, p. 14). Em complementação, o parágrafo 3º prevê que essa educação “oferece a toda criança uma ferramenta indispensável para que, com seu esforço, consiga no transcurso de sua vida uma resposta equilibrada e respeitosa dos direitos humanos para as dificuldades que acompanham um período de mudança fundamental impulsionado pela globalização, pelas novas tecnologias e por fenômenos conexos” (Plano de ação do Programa Mundial para educação em direitos humanos, p. 14). No mesmo sentido, a Convenção sobre os Direitos da Criança, que estabelece, em seu artigo 29, 1, “b”, “embutir na criança o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, bem como aos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas” (Plano de ação do Programa Mundial para educação em direitos humanos, p. 14). O plano apresenta uma educação em direitos humanos com enfoque holístico, pensando que todos os componentes e processos de aprendizagem (planos de estudo, materiais didáticos, métodos pedagógicos e capacitação) conduzam ao aprendizado dos direitos humanos. São destacados cinco componentes pelo plano para o êxito na educação em direitos humanos – políticas educativas, aplicação de políticas, ambiente de aprendizagem, ensino e aprendizagem e formação e aperfeiçoamento do pessoal docente – e apresentadas diretrizes práticas sobre a forma de implementar esses componentes no sistema de ensino. No tocante às políticas educativas, as normativas, diretrizes e planos de ensino devem sempre considerar uma educação baseada no gozo de direitos, com os direitos humanos como parte de todo o sistema educativo, o qual deve ser desenvolvido de forma participativa, garantindo-se uma educação de qualidade. A aplicação de políticas deve ser feita de forma de forma estratégica, levando em conta a participação de todos os interessados, com a destinação de recursos suficientes, a criação de formas de coordenação e a observância da coerência, a supervisão e a prestação de contas. Para que a educação em direitos humanos possa se desenvolver, faz-se necessária a criação de um ambiente em que todos os direitos humanos de todos os agentes sejam respeitados, permitindo-se, além do aprendizado cognitivo, o desenvolvimento social e emocional e a possibilidade das crianças expressarem suas opiniões de forma livre, participarem da vida escolar e interagirem com a comunidade em geral. De acordo com o plano, o ensino e aprendizagem devem adotar um enforque holístico, de modo que “o conteúdo e os objetivos dos planos de estudo devem ser embasados nos direitos humanos, os métodos devem ser democráticos e participativos e todos os materiais e livros de texto devem ser compatíveis com os valores dos direitos humanos” (Plano de ação do Programa Mundial para educação em direitos humanos, p. 14). Necessário, ainda, que a formação e aperfeiçoamento do pessoal docente estimulem o conhecimento e a promoção dos direitos humanos, bem como que o trabalho e aprendizado ocorram em um contexto que respeite a dignidade e os direitos do pessoal docente. Após cuidar da educação em direitos nos sistemas de ensino primário e secundário, o plano estabelece as estratégias em nível nacional, tratando das etapas das estratégias de execução, da adoção de medidas mínimas, dos agentes e do financiamento. Embora sejam reconhecidas as diferentes realidades dos países, considera-se que a educação em direitos humanos deve estar presente nos programas de educação de todas as nações. Portanto, são fixadas quatro etapas para os processos nacionais de planejamento: etapa 1 – análise da situação atual da educação em direitos humanos no sistema de ensino, com a elaboração de estudos e divulgação dos resultados; etapa 2 – estabelecer prioridades e elaborar uma estratégia nacional de aplicação, considerando os cinco componentes básicos; etapa 3 – atividades de execução e supervisão, com a difusão e aplicação das estratégias e supervisão da execução; etapa 4 – avaliação dos resultados como método de prestação de contas e meio de aprender, com a divulgação de relatórios e recomendações. São estabelecidas como medidas mínimas as atividades previstas nas etapas 1 a 3 durante a primeira fase (2005-2007), sendo que a responsabilidade primordial para a execução do plano de ação é dos ministérios de educação, com a colaboração de outras entidades e interessados, como associação de professores e de pais e alunos. O financiamento deve ser feito através de recursos do sistema nacional de ensino em geral e de outros fundos nacionais comprometidos com a educação de qualidade, além de fundos externos e decorrentes de associações entre setores público e privado. Em seguida, o plano estabelece a coordenação da execução do plano de ação, tanto em nível nacional quanto internacional. No âmbito nacional, é sugerido aos ministérios da educação que criem um departamento para elaboração e supervisão da estratégia nacional de ensino dos direitos humanos no sistema escolar, que se relacionariam com as Nações Unidas, além de um centro de coordenação que reúna e difunda informações e práticas. Já no plano global, é proposta a criação de um comitê interinstitucional de coordenação das Nações Unidas, integrado por representantes do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e outros organismos internacionais pertinentes. O Escritório do Alto Comissariado ficou responsável por oferecer serviços de secretaria ao comitê, para acompanhar, em reuniões periódicas, o Plano de Ação, mobilizar recursos, apoiar atividades em nível nacional e solicitar a supervisão em cada país por órgãos das Nações Unidas. Ademais, foi estabelecido, no artigo 51 do plano, que, ao final da primeira etapa do Programa Mundial, cada país avaliaria suas medidas e apresentaria um relatório sobre o assunto ao comitê interinstitucional de coordenação das Nações Unidas, o qual elaboraria um relatório final, a ser apresentado na Assembléia Geral de 2008. Ao final, o plano trata da cooperação e apoio internacionais, prevendo a possibilidade de apoio do sistema das Nações Unidas e de outras organizações intergovernamentais, internacionais e regionais, de organizações de ministros da educação, de ONGs e de instituições financeiras. Observa-se que a Resolução 10/3, de 25 de março de 2009, do Conselho de Direitos Humanos, solicitou ao Escritório do Alto Comissariado para direitos humanos que consultasse os Estados e organizações intergovernamentais e governamentais sobre a temática da segunda etapa do Programa Mundial para educação em direitos humanos, mas nenhuma manifestação foi apresentada pelo Brasil e nem por qualquer organização brasileira.[8] Em seguida, a Resolução 12/4, de 1º de outubro de 2009, do Conselho de Direitos Humanos, recordou aos Estados Membros que apresentassem informes nacionais de avaliação ao Comitê Coordenador, para que pudesse ser elaborado o relatório final, nos termos do artigo 51 do plano. A resposta do Brasil foi apresentada tardiamente, motivo pelo qual não foi incluída no relatório final.[9] Posteriormente, a Resolução 15/11, de 30 de setembro de 2010, aprovou, na 31ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, o plano de ação para a segunda etapa (2010-2014) do Programa Mundial para a educação em direitos humanos[10]. O plano de ação para a segunda etapa do Programa Mundial para a educação em direitos humanos foca-se na educação em direitos humanos no ensino superior e nos programas de formação sobre direitos humanos para docentes e educadores, funcionários públicos, forças armadas e militares. Em sua introdução, ao tratar do contexto e da definição da educação em direitos humanos, o plano observa que a comunidade internacional tem expressado cada vez mais consenso de que a educação em direitos humanos contribui decisivamente para a realização dos direitos humanos e estabelece que a educação em direitos humanos tem por objetivo fomentar o entendimento de que cada pessoa tem responsabilidade de alcançar a realização dos direitos humanos em cada comunidade e na sociedade em geral. Como objetivos concretos, o plano apresenta: a) promoção e inclusão da educação em direitos humanos no ensino superior e nos programas de formação para funcionários públicos, forças armadas e militares; b) apoio à elaboração, adoção e aplicação de estratégias nacionais sustentáveis de educação em direitos humanos; c) proporcionar diretrizes sobre componentes fundamentais da educação em direitos humanos no ensino superior e nos programas de formação para funcionários públicos, forças armadas e militares; d) facilitar a prestação de apoio pelas organizações internacionais, regionais, nacionais e locais às instituições de educação superior e aos Estados membros; e) apoiar o estabelecimento de redes de contato e a cooperação entra as instituições e organizações locais, nacionais, regionais e internacionais, tanto governamentais quanto não governamentais. O plano menciona, expressamente, nos itens 36, “a”, e 48, “a”, a possibilidade atuação conjunta dos ministérios da administração pública, das forças armadas e militares com os meios de comunicação para que sejam alcançadas as metas e objetivos do plano. O Brasil e as instituições nacionais de direitos humanos, mesmo após solicitação do Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, não prestaram informações sobre as medidas adotadas para implementação do plano de ação para a segunda etapa do Programa Mundial para educação em direitos humanos.[11] Observa-se que o processo de elaboração do plano de ação para a terceira etapa do Programa Mundial de Direitos Humanos já se iniciou e, de acordo com a Resolução 21/14 do Conselho de Direitos Humanos, o Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos aguarda opiniões dos Estados sobre o possível enfoque da terceira etapa do Programa Mundial (2015-2019).[12] 1.3 A Declaração das Nações Unidas sobre educação e formação em matéria de direitos humanos Por fim, ainda no plano global, em 23 de março de 2011, o Conselho de Direitos Humanos aprovou a Declaração das Nações Unidas sobre educação e formação em matéria de direitos humanos através da Resolução 16/1 e recomendou à Assembleia Geral que adotasse a referida Declaração, o que ocorreu em 19 de dezembro de 2011, por meio da Resolução 66/137 da Assembleia Geral das Nações Unidas.[13] O artigo 1º bem sintetiza o espírito da Declaração ao estabelecer que toda pessoa tem o direito de obter, buscar e receber informação sobre todos os direitos humanos e liberdades fundamenta/is e de ter acesso à educação e formação em matéria de direitos humanos, pois são essenciais para a promoção do respeito universal e efetivo de todos os direitos humanos, em conformidade com os princípios da universalidade, indivisibilidade e interdependência. A declaração considera que educação e formação em matéria de direitos humanos significam o conjunto de atividades educativas, de formação, de informação, de sensibilização e de aprendizagem que têm por objetivo promover o respeito universal pelos direitos humanos e que engloba atividades de educação sobre os direitos humanos, educação através dos direitos humanos e educação para os direitos humanos (artigo 2º). Trata-se de um processo que se prolonga por toda a vida, que atinge todos os setores sociais e níveis de ensino (artigo 3º) e que deve ser baseada nos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos demais tratados pertinentes, com vistas a fomentar o conhecimento e compreensão dos direitos humanos, desenvolver uma cultura universal de direitos humanos, efetivar os direitos humanos e promover a tolerância, a não discriminação e a igualdade, garantir a igualdade de oportunidades mediante acesso à educação e formação em matéria de direitos humanos com qualidade e contribuir para a prevenção das violações aos direitos humanos e combate a todas as formas de discriminação, racismo, estereótipos e incitação ao ódio e preconceitos (artigo 4º). Segundo a Declaração, a educação em direitos humanos deve se basear nos princípios da igualdade, especialmente de gênero, da dignidade humana, da inclusão e da não discriminação, ser acessível a todos, superando os obstáculos com que se defrontam as pessoas em situações vulneráveis, a fim de lhes garantir empoderamento, desenvolvimento e permitir o exercício de todos os direitos (artigo 5º). A educação em direitos humanos deve considerar as diversas civilizações, religiões, culturas e tradições dos diferentes países, circunstâncias econômicas, sociais e culturais, bem como aproveitar as diferentes tecnologias de informação e comunicação, inclusive a arte (artigos 5º e 6º). O texto da Declaração estabelece que os Estados e as autoridades governamentais competentes são os principais responsáveis pela promoção e garantia da educação em direitos humanos, bem como pela criação de um ambiente adequado para participação da sociedade civil e de particulares, sendo que a educação em direitos humanos deve ser desenvolvida, individualmente e com cooperação internacional, através de políticas e medidas legislativas e administrativas, que também incluam a formação adequada dos funcionários públicos, juízes, agentes de manutenção da ordem pública, militares, professores e educadores em geral (artigo 7º). As estratégias, políticas, programas e planos de ação desenvolvidos pelos Estados devem levar em consideração o Programa Mundial para a Educação em Direitos Humanos e as prioridades locais, estabelecendo-se formas de avaliação e acompanhamento que incluam a participação da sociedade civil em geral e das instituições nacionais de direitos humanos (artigo 8º), as quais devem ser fomentadas e apoiadas pelos Estados, conforme os “Princípios de Paris”, incluindo, se necessário, a função de coordenação na promoção da educação em direitos humanos (artigo 9º). A Declaração reconhece que diversos atores sociais, como as instituições educativas, os meios de comunicação social, as famílias, as comunidades locais, as instituições da sociedade civil, incluindo as organizações não-governamentais, os defensores dos direitos humanos e o sector privado podem contribuir, de maneira importante, para a promoção e disponibilização da educação e formação em matéria de direitos humanos, sendo que tais atores são encorajados a garantirem que seus funcionários recebam a educação e formação adequadas em matéria de direitos humanos (artigo 10º). Também é reconhecida a responsabilidade das Nações Unidas e das organizações internacionais e regionais de ministrar a educação e formação em direitos humanos ao pessoal civil, assim como ao pessoal militar e policial que prestem serviços no âmbito dos seus mandatos (artigo 11º), bem como a necessidade de cooperação internacional para apoio e reforço das atividades nacionais de forma coordenada (artigo 12º). A Declaração acrescenta que os mecanismos internacionais e regionais de direitos humanos devem atuar com educação em direitos humanos e que os Estados devem incluir em seus relatórios informações sobre as medidas adotadas nesse âmbito (artigo 13º). Por fim, o texto prevê que os Estados devem promover as medidas para assegurar a efetividade da Declaração e o seu acompanhamento, disponibilizando os recursos necessários para essa finalidade (artigo 14º). 2 A normativa nacional da educação em direitos humanos Neste capítulo será analisado o regramento nacional, com foco no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos e nas principais medidas realizadas para sua efetivação e para a implementação da educação em direitos humanos, e especial a Lei Maria da Penha, o Programa Nacional de Direitos Humanos – 3, as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos e o Estatuto da Igualdade Racial. 2.1 O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos Conforme descrito na apresentação do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, “o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) é fruto do compromisso do Estado com a concretização dos direitos humanos e de uma construção histórica da sociedade civil organizada. Ao mesmo tempo em que aprofunda questões do Programa Nacional de Direitos Humanos, o PNEDH incorpora aspectos dos principais documentos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil e signatário, agregando demandas antigas e contemporâneas de nossa sociedade pela efetivação da democracia, do desenvolvimento, da justiça social e pela construção de uma cultura de paz.” (Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos: 2006/ Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. – Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministério da Educação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2006, p. 11. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/edh/pnedhpor.pdf> Acesso em: 25 jul 2013). Resulta de uma articulação institucional entre os três poderes da República, organismos internacionais, instituições de educação superior e a sociedade civil organizada, e deve ser coordenado, executado e avaliado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República em parceria com o Ministério da Justiça e Secretarias Especiais. A apresentação do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos explica o longo processo participativo de elaboração do plano, iniciado em 2003 e concluído em 2006: “O processo de elaboração do PNEDH teve início em 2003, com a criação do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (CNEDH), por meio da Portaria n° 98/1993 da SEDH/PR[14], formado por especialistas, representantes da sociedade civil, instituições públicas e privadas e organismos internacionais. Fruto de um trabalho concentrado do CNEDH, a primeira versão do PNEDH foi lançada pelo MEC e a SEDH em dezembro daquele ano, para orientar a implementação de políticas, programas e ações comprometidas com a cultura de respeito e promoção dos direitos humanos. Ao longo do ano de 2004, o PNEDH foi divulgado e debatido em encontros, seminários e fóruns em âmbito internacional, nacional, regional e estadual[15]. Em 2005, foram realizados encontros estaduais com o objetivo de difundir o PNEDH, que resultaram em contribuições de representantes da sociedade civil e do governo para aperfeiçoar e ampliar o documento. Mais de 5.000 pessoas, de 26 unidades federadas, participaram desse processo de consulta que, além de incorporar propostas para a nova versão do PNEDH, resultou na criação de Comitês Estaduais de Educação em Direitos Humanos e na multiplicação de iniciativas e parcerias nessa área. Em 2006, foi concluído um trabalho que precedeu este documento, sob a responsabilidade de uma equipe de professores e alunos de graduação e pós-graduação, selecionada pelo Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CFCH/UFRJ), instituição vencedora do processo licitatório simplificado lançado pela SEDH/PR, em parceria com a UNESCO. A referida equipe teve as atribuições de sistematizar as contribuições recebidas dos encontros estaduais de educação em direitos humanos; apresentar ao CNEDH as propostas consolidadas; coordenar os debates sobre as mesmas, em seminário organizado no Rio de Janeiro, e formular uma versão preliminar do PNEDH, apresentada ao Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Coube ao Comitê Nacional, a análise e a revisão da versão que foi distribuída para os participantes do Congresso Interamericano de Educação em Direitos Humanos, realizado no mês de setembro em Brasília. A partir daí, o documento foi submetido à consulta pública via internet e posteriormente revisado pelo CNEDH, o qual se responsabilizou por sua versão definitiva. Como resultado dessa participação, a atual versão do PNEDH se destaca enquanto política pública em dois sentidos principais: primeiro, consolidando uma proposta de um projeto de sociedade baseada nos princípios da democracia, cidadania e justiça social; segundo, reforçando um instrumento de construção de uma cultura de direitos humanos, entendida como um processo a ser apreendido e vivenciado na perspectiva da cidadania ativa. O país chega, assim, a um novo patamar que se traduz no compromisso oficial com a continuidade da implementação do PNEDH nos próximos anos, como política pública capaz de consolidar uma cultura de direitos humanos, a ser materializada pelo governo em conjunto com a sociedade, de forma a contribuir para o aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito”. (Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, p. 12-13). Em sua introdução, o PNEDH contextualiza a realidade dos direitos humanos no plano global, regional e nacional e, em seguida, estabelece objetivos gerais e linhas gerais de ação. Com relação ao contexto, o plano observa que, até então, diversas haviam sido as conquistas advindas da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), do processo de internacionalização e de internalização normativa dos direitos humanos e da promulgação da Constituição Federal de 1988, que criou um Estado Democrático de Direito, fundado na dignidade da pessoa humana e que garantiu os direitos humanos como cláusulas pétreas. O direito à educação foi disciplinado no artigo 205 e seguintes da Constituição Federal, sendo que o artigo mencionado estabeleceu que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. O dispositivo constitucional asseverou a imprescindibilidade da educação para o exercício da cidadania, fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, inciso II, da Carta Magna), o que também foi reafirmado pela lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.396/96). Evidente, portanto, que o direito à educação em direitos, para exercício da cidadania, foi inserido no complexo de direitos necessários para o pleno desenvolvimento da dignidade humana, pois é essencial para a participação ativa e responsável nos destinos da própria existência e da vida política e social.[16] No plano infraconstitucional, à época da elaboração do PNEDH, merecia destaque, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.396/96), que já previa, como uma das finalidades da educação, a preparação para o exercício da cidadania. Na área da educação ambiental, a Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispôs sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, no inciso X do artigo 2º, já estabelecia que a educação ambiental deveria ser ministrada a todos os níveis de ensino, objetivando a capacitação para a participação ativa na defesa do meio ambiente, o que foi reproduzido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e pela Lei 9.795/99, que instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental e concretizou o artigo 225, §1º, inciso VI, da Constituição Federal (que determinava que o Poder Público deveria promover a Educação Ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente). Não obstante o avanço normativo, pontuou-se que inúmeras violações de direitos humanos vinham ocorrendo e que o processo de globalização vinha aprofundado a desigualdade e exclusão social, mas, padoxalmente, abrindo novas oportunidades de reconhecimento de direitos humanos[17]. Nesse cenário, observou-se que a educação em direitos humanos aparecia em destaque para a formação de uma concepção de cidadania planetária e exercício da cidadania ativa: “Em tempos difíceis e conturbados por inúmeros conflitos, nada mais urgente e necessário que educar em direitos humanos, tarefa indispensável para a defesa, o respeito, a promoção e a valorização desses direitos. Esse é um desafio central da humanidade, que tem importância redobrada em países da América Latina, caracterizados pelo histórico de violações dos direitos humanos, expressos pela precariedade e fragilidade do Estado de Direito e por graves e sistemáticas violações dos direitos básicos de segurança, sobrevivência, identidade cultural e bem-estar mínimo de grandes contingentes populacionais.” (Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, p. 22). É nesse ambiente que nasce o PNEDH, que considera os direitos humanos como universais, indivisíveis e interdependentes e observa a necessidade de que as políticas públicas de efetivação dos direitos humanos respeitem a diversidade e sejam dirigidas à construção de uma sociedade igualitária e à consolidação de uma cultura democrática e cidadã. O plano estabelece o compromisso maior de promover a educação de qualidade para todos e a tarefa prioritária de promover a universalização do ensino fundamental, a ampliação da educação infantil, do ensino médio, da educação superior e a melhoria da qualidade em todos os níveis e nas diversas modalidades de ensino, além do dever de garantir a educação de pessoas com necessidades especiais, a profissionalização de jovens e adultos, a erradicação do analfabetismo e a valorização dos educadores da educação. Não há dúvidas que o plano nacional apóia-se nos documentos internacionais já mencionados, como o Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos e seu plano de ação. Ademais, no plano regional do MERCOSUL, Países Associados e Chancelarias, foi criado um Grupo de Trabalho para executar ações de direitos humanos na esfera da educação e da cultura e, na esfera nacional, além do plano nacional, foram criados Comitês Estaduais de Educação em Direitos Humanos[18], para bem operacionalizar a política pública da educação em direitos. Uma definição inaugural de educação em direitos humanos é apresentada na introdução do PNEDH, nos seguintes termos: “A educação em direitos humanos é compreendida como um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação do sujeito de direitos, articulando as seguintes dimensões: a) apreensão de conhecimentos historicamente construídos sobre direitos humanos e a sua relação com os contextos internacional, nacional e local; b) afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que expressem a cultura dos direitos humanos em todos os espaços da sociedade; c) formação de uma consciência cidadã capaz de se fazer presente nos níveis cognitivo, social, ético e político; d) desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de construção coletiva, utilizando linguagens e materiais didáticos contextualizados; e) fortalecimento de práticas individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da promoção, da proteção e da defesa dos direitos humanos, bem como da reparação das violações.(…) Desse modo, a educação é compreendida como um direito em si mesmo e um meio indispensável para o acesso a outros direitos. A educação ganha, portanto mais importância quando direcionada ao pleno desenvolvimento humano e às suas potencialidades, valorizando o respeito aos grupos socialmente excluídos. Essa concepção de educação busca efetivar a cidadania plena para a construção de conhecimentos, o desenvolvimento de valores atitudes e comportamentos, além da defesa socioambiental e da justiça social.” (Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, p. 25). Ainda na introdução do PNEDH, são apresentados os diversos objetivos gerais para o fortalecimento da educação em direitos[19] e são descritas as linhas gerais de ação, que envolvem o desenvolvimento normativo e institucional, a produção de informação e conhecimento, a realização de parcerias e intercâmbios internacionais, a produção e divulgação de materiais, a formação e capacitação de profissionais, a gestão de programas e projetos e a avaliação e monitoramento. Após a introdução, o PNEDH é dividido em cinco capítulos, que estabelecem as concepções, princípios e as ações programáticas na educação básica, na educação superior, na educação não-formal, na educação dos profissionais dos sistemas de justiça e segurança e na educação e mídia. Ao tratar da educação básica, a concepção de educação é direitos humanos apresentada é a que “vai além de uma atividade cognitiva, incluindo o desenvolvimento social e emocional de quem se envolve no processo ensino-aprendizagem (Plano Mundial de Educação em Direitos Humanos – PMEDH/2005). A educação, nesse entendimento, deve ocorrer na comunidade escolar em interação com a comunidade local. Assim, a educação em direitos humanos deve abarcar questões concernentes aos campos da educação formal, à escola, aos procedimentos pedagógicos, às agendas e instrumentos que possibilitem uma ação pedagógica conscientizadora e libertadora, voltada para o respeito e valorização da diversidade, aos conceitos de sustentabilidade e de formação da cidadania ativa.” (Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos,, p. 31). A universalização da educação básica com qualidade, garantida constitucionalmente, é considerada elemento essencial, pois a escola é o ambiente de vivência onde se aprende o saber sistematizado, as regras de convivência e os valores sociais, de forma que o processo formativo deve reconhecer a pluralidade e a alteridade. São expostos como princípios norteadores da educação em direitos humanos na educação básica o desenvolvimento da cultura de direitos humanos em todos os espaços sociais, assegurando-se que os objetivos e as práticas sejam coerentes com os direitos humanos; a garantia de espaços de entendimento mútuo, de respeito e de responsabilidade; estruturação na diversidade cultural e ambiental; a presença da educação em direitos humanos no currículo, na formação inicial e continuada dos profissionais de educação; a prática deve observar o caráter transversal e a relação dialógica dos atores sociais. Vinte e sete ações programáticas são apresentadas pelo plano no que se refere à educação básica, entre elas a inserção da educação em direitos humanos nas diretrizes curriculares da educação básica, o desenvolvimento de pedagogia participativa, a promoção do diálogo sobre a aplicação prática dos direitos humanos na vida cotidiana, o apoio a projetos de educação em direitos humanos para adolescentes internados e adultos recolhidos no sistema penitenciário e a promoção de pesquisas nacionais sobre experiências de educação em direitos humanos na educação básica. No tocante à educação superior, observa-se que a autonomia universitária e a finalidade da educação superior prevista no artigo 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional exigem que as universidades participem da construção de uma cultura em prol dos direitos humanos[20]. O Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos “aponta para as instituições de ensino superior a nobre tarefa de formação de cidadãos(ãs) hábeis para participar de uma sociedade livre, democrática e tolerante com as diferenças étnico-racial, religiosa, cultural, territorial, físico-individual, geracional, de gênero, de orientação sexual, de opção política, de nacionalidade, dentre outras.” (Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, p. 38). Os princípios norteadores da educação em direitos humanos na educação superior são expostos pelo PNEDH em oito itens, valendo ressaltar que a educação em direitos humanos deve ser aplicada como princípio ético-político orientador da formulação e crítica da prática das instituições de ensino superior, fomentando-se a cultura da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. As ações programáticas para o ensino superior são apresentadas em vinte e um itens, entre eles a propositura da temática da educação em direitos humanos para subsidiar as diretrizes curriculares, a divulgação do PNEDH junto à sociedade, o fomento e apoio a projetos de educação em direitos humanos, a realização de pesquisas, a criação de um setor específico de livros e periódicos de educação em direitos humanos nas bibliotecas, o estímulo à realização de projetos de educação em direitos sobre a memória do autoritarismo no Brasil e a propositura da criação de um Fundo Nacional de Ensino, Pesquisa e Extensão para dar suporte aos projetos da área. Ao cuidar da educação não-formal, o PNEDH observa que o processo de reflexão e aprendizado ocorre permanentemente, não apenas nas escolas, mas nas moradias, locais de trabalho, nas famílias, organizações sociais etc. Aponta, ainda, que “A educação não-formal em direitos humanos orienta-se pelos princípios da emancipação e da autonomia. Sua implementação configura um permanente processo de sensibilização e formação de consciência crítica, direcionada para o encaminhamento de reivindicações e a formulação de propostas para as políticas públicas, podendo ser compreendida como: a) qualificação para o trabalho; b) adoção e exercício de práticas voltadas para a comunidade; c) aprendizagem política de direitos por meio da participação em grupos sociais; d) educação realizada nos meios de comunicação social; e) aprendizagem de conteúdos da escolarização formal em modalidades diversificadas; e f) educação para a vida no sentido de garantir o respeito à dignidade do ser humano.” (Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, p. 42). Considerando os princípios de orientação da educação em direitos humanos no plano da educação não-formal, o PNEDH indica que a educação não-formal deve ser vista como organização de processos participativos em defesa de grupos vulneráveis, instrumento fundamental para a formação das organizações populares em direitos humanos e de lideranças sociais, promoção de conhecimento sobre direitos humanos, instrumento de leitura crítica para a análise e transformação da realidade, diálogo entre o saber formal e informal sobre os direitos humanos e articulação de formas educativas diferenciadas, com a integração e participação direta de agentes sociais e grupos populares. As ações programáticas na área de educação não-formal são divididas em catorze itens, entre eles a identificação de iniciativas de ações de educação não-formal, a promoção de cursos de capacitação em direitos humanos para a população, a sociedade civil, grupos vulneráveis, servidores públicos, gestores e defensores de direitos humanos e o fomento de temas de direitos humanos nas produções artísticas, publicitárias e culturais. A educação em direitos humanos para os profissionais dos sistemas de justiça e segurança justifica-se em virtude dos direitos humanos serem essenciais para a boa aplicação da justiça e da segurança pública, de modo que a educação é medida estratégica para garantir a democracia. O PNEDH apresenta catorze princípios que regem a educação dos profissionais dos sistemas de justiça e segurança, valendo salientar o respeito à lei, à dignidade humana e aos direitos humanos, a liberdade de expressão e opinião, a leitura crítica dos conteúdos e das práticas dos órgãos do sistema de justiça e segurança, a vivência de cooperação e respeito às diferenças, uso legal, legítimo, proporcional e progressivo da força para proteger os cidadãos, promoção da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade nas ações de formação e capacitação dos profissionais. Também são estabelecidas vinte e seis ações programáticas, entre elas o apoio a projetos de capacitação da sociedade civil em educação em direitos humanos na área da justiça e segurança, a criação de conteúdos curriculares obrigatórios nos programas de formação dos profissionais, o oferecimento de condições adequadas para as ouvidorias, corregedorias e órgãos de controle, construir bancos de dados com informações sobre os agentes que passaram por processo de formação em direitos humanos, o incentivo ao envolvimento dos profissionais com questões de diversidade e exclusão social, a promoção da implementação do Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil, a promoção de pesquisas sobre as experiências de educação em direitos humanos nas áreas de segurança e justiça. Por fim, o PNEDH, em seu último capítulo, trata da Educação e Mídia, considerando a força dos meios de comunicação e a importância deles para a democracia. Observa que as mídias “São espaços de intensos embates políticos e ideológicos, pela sua alta capacidade de atingir corações e mentes, construindo e reproduzindo visões de mundo ou podendo consolidar um senso comum que freqüentemente moldam posturas acríticas. Mas pode constituir-se também, em um espaço estratégico para a construção de uma sociedade fundada em uma cultura democrática, solidária, baseada nos direitos humanos e na justiça social. A mídia pode tanto cumprir um papel de reprodução ideológica que reforça o modelo de uma sociedade individualista, não-solidária e não-democrática, quanto exercer um papel fundamental na educação crítica em direitos humanos, em razão do seu enorme potencial para atingir todos os setores da sociedade com linguagens diferentes na divulgação de informações, na reprodução de valores e na propagação de idéias e saberes. A contemporaneidade é caracterizada pela sociedade do conhecimento e da comunicação, tornando a mídia um instrumento indispensável para o processo educativo. Por meio da mídia são difundidos conteúdos éticos e valores solidários, que contribuem para processos pedagógicos libertadores, complementando a educação formal e não-formal. Especial ênfase deve ser dada ao desenvolvimento de mídias comunitárias, que possibilitam a democratização da informação e do acesso às tecnologias para a sua produção, criando instrumentos para serem apropriados pelos setores populares e servir de base a ações educativas capazes de penetrar nas regiões mais longínquas dos estados e do país, fortalecendo a cidadania e os direitos humanos. Pelas características de integração e capacidade de chegar a grandes contingentes de pessoas, a mídia é reconhecida como um patrimônio social, vital para que o direito à livre expressão e o acesso à informação sejam exercidos. É por isso que as emissoras de televisão e de rádio atuam por meio de concessões públicas. A legislação que orienta a prestação desses serviços ressalta a necessidade de os instrumentos de comunicação afirmarem compromissos previstos na Constituição Federal, em tratados e convenções internacionais, como a cultura de paz, a proteção ao meio ambiente, a tolerância e o respeito às diferenças de etnia, raça, pessoas com deficiência, cultura, gênero, orientação sexual, política e religiosa, dentre outras. Assim, a mídia deve adotar uma postura favorável à não-violência e ao respeito aos direitos humanos, não só pela força da lei, mas também pelo seu engajamento na melhoria da qualidade de vida da população.” (Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, p. 53-54). O plano apresenta, como princípios da educação em direitos humanos na relação com a mídia, a liberdade de expressão e opinião, o compromisso com conteúdos que valorizem a cidadania, reconheçam a diferença e promovam a diversidade cultural, a responsabilidade social das empresas de mídia com a promoção da educação em direitos humanos, inclusive por meio das novas tecnologias e a adoção, pelos mídia, de linguagens e posturas que reforcem a não-violência e o respeito aos direitos humanos, em perspectiva emancipatória. Vinte e três são as ações programáticas descritas pelo PNEDH, como a criação de incentivos à publicidade e programas que difundam os direitos humanos, a realização de convênios para produção de material de orientação sobre direitos, a promoção de campanhas para orientar os cidadãos a denunciarem os abusos dos direitos humanos cometidos pela mídia, o incentivo à regulamentação das disposições constitucionais relativas à função educativa dos meios de comunicação que operam mediante concessão pública, o apoio de iniciativas de regularização dos meios de comunicação de caráter comunitário, a propositura ao Conselho Nacional de Educação da disciplina “Direitos Humanos e Mídia” nos currículos de cursos de Comunicação Social. 1.2 As demais medidas de implementação da educação em direitos humanos e do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos Diversas medidas foram afotadas como forma de implementação da educação em direitos humanos e do PNEDH no Brasil. A Coordenação Geral de Educação em Direitos Humanos, desde 2004, desenvolveu uma série de ações, entre elas: ”Operacionalização do Prêmio Direitos Humanos[21]; Disseminação dos referenciais do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos; Apoio para a realização de reuniões ordinárias e extraordinárias do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos; fomento para projetos de Capacitação em Direitos Humanos; Implantação de Comitês de Educação em Direitos Humanos nos Estados e Municípios; Apoio às instituições de educação superior para o desenvolvimento de estudos e pesquisa na área da Educação em Direitos Humanos; implantação de Núcleos de Estudos e Pesquisas em Educação em Direitos Humanos em Universidades e Apoio para publicações e produção de materiais relativos à Educação em Direitos Humanos” (disponível em: <http://www.sedh.gov.br/acessoainformacao/acoes-e-programas/educacao-em-direitos-humanos> Acesso em: 20 jul 2013); parcerias com Organismos Internacionais[22]. Houve, ainda, a criação do Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos[23] e do Concurso Nacional Sistema Interamericano de Direitos Humanos[24]. Além do PNEDH, planos estaduais foram criados em diversas unidades da federal como produto dos trabalhos desenvolvidos pelos Comitês de Educação em Direitos criados nos Estados e Municípios.[25] Em 2006, foi publicada a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06), que prevê várias medidas de educação em direitos humanos em seu artigo 8º. O inciso V do referido artigo estabelece a diretriz de promoção de campanhas educativas de prevenção da violência contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade, e a difusão da lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres. Já o inciso VII prescreve a necessidade de capacitação das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes às áreas do Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da segurança pública, da assistência social, da saúde, da educação, do trabalho e da habitação. Ademais, o inciso VIII prevê a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, enquanto o inciso IX estabelece a necessidade de destaque, nos currículos escolares, dos conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), lançado em 2007, pelo Ministério da Educação, ainda que não trate diretamente sobre educação em direitos humanos, está em sintonia com o tema e com o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Em suas razões e princípios, o plano “reconhece na educação uma face do processo dialético que se estabelece entre socialização e individuação da pessoa, que tem como objetivo a construção da autonomia, isto é, a formação de indivíduos capazes de assumir uma postura crítica e criativa frente ao mundo” (Plano de Desenvolvimento da Educação, p. 5. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/arquivos/livro/livro.pdf> Acesso em: 20 jul 2013). Observa, ainda, que “o objetivo da política nacional de educação deve se harmonizar com os objetivos fundamentais da própria República, fixados pela Constituição Federal de 1988: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Não há como construir uma sociedade livre, justa e solidária sem uma educação republicana, pautada pela construção da autonomia, pela inclusão e pelo respeito à diversidade” (Plano de Desenvolvimento da Educação, p. 5-6). No mesmo sentido, o projeto de novo Plano Nacional de Educação – PNE, que, após aprovação na Câmara dos Deputados[26], ainda tramita no Senado Federal[27]. Referido plano, apresenta vinte metas para serem atingidas no prazo de dez anos e dez diretrizes, entre elas a formação para o trabalho e a cidadania e a promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade ambiental. Vale destacar, também, o papel do Programa Nacional de Direitos Humanos – 3 (Decreto nº 7.037, de 21 dezembro 2009, alterado pelo Decreto nº 7.177, de 12 de maio de 2010), que trouxe, em cinco diretrizes (18-22), disposições sobre educação em direitos humanos no “Eixo Orientador V: Educação e Cultura em Direitos Humanos” (Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3)/Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República – rev. e atual. – Brasília: SDH/PR, 2010. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf> Acesso em: 20 jul 2013). Segundo o referido programa, “a educação e a cultura em Direitos Humanos visam à formação de nova mentalidade coletiva para o exercício da solidariedade, do respeito às diversidades e da tolerância. Como processo sistemático e multidimensional que orienta a formação do sujeito de direitos, seu objetivo é combater o preconceito, a discriminação e a violência, promovendo a adoção de novos valores de liberdade, justiça e igualdade.” (PNDH-3, p. 150). Na apresentação do Eixo V, o PNDH-3 observa que a educação em Direitos Humanos é mais do que educação permanente e de qualidade, pois constitui um “canal estratégico capaz de produzir uma sociedade igualitária”[28], que consolide uma nova cultura dos Direitos Humanos e da Paz. O Programa Nacional de Direitos Humanos – 3 (PNDH-3) está em sintonia com o PNEDH, tanto que, na “Diretriz 18: Efetivação das diretrizes e dos princípios da política nacional de educação em Direitos Humanos para fortalecer a cultura de direitos”, estabelece o “Objetivo estratégico I: Implementação do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos” e “Objetivo estratégico II: Ampliação de mecanismos e produção de materiais pedagógicos e didáticos para Educação em Direitos Humanos”, fixando ações programáticas para atingir esses objetivos e fornecendo bases para serem adotadas nas unidades federativas. O programa também cuida do “fortalecimento dos princípios da democracia e dos Direitos humanos nos sistemas de educação básica, nas instituições de ensino superior e nas instituições formadoras” (Diretriz 19), do “reconhecimento da educação não formal como espaço de defesa e promoção dos Direitos Humanos” (Diretriz 20), da “promoção da educação em Direitos Humanos no serviço público” (Diretriz 21) e da “garantia do direito à comunicação democrática e ao acesso à informação para a consolidação de uma cultura em Direitos Humanos” (Diretriz 22). No que concerne à educação básica, o programa objetiva formar sujeitos de direitos desde a infância. Para tanto, busca-se o convívio pacífico com a diferença para afastar preconceitos e mudanças curriculares, nos ensinos fundamental e médio, que incluam a educação transversal e permanente de temas que envolvam Direitos Humanos, sobretudo o estudo da questão de gênero, orientação sexual e das culturas indígena e afro-brasileira. No âmbito do ensino superior, o que se pretende é incluir e valorizar os Direitos Humanos nas diferentes modalidades acadêmicas. No plano da educação não formal em Direitos Humanos, objetiva-se sensibilizar e formar consciência crítica sobre os Direitos Humanos, em observância aos princípios da autonomia e emancipação, por meio da inclusão do tema na capacitação de lideranças comunitárias e programas de qualificação profissional, alfabetização de jovens e adultos etc., estabelecendo diálogo e parcerias permanentes com a sociedade civil. O programa considera que os servidores públicos, especialmente os envolvidos com o sistema de Justiça e segurança pública, necessitam de formação e educação continuada em Direitos Humanos, para que se consolide o Estado Democrático e se garantam os direitos fundamentais dos usuários e a promoção dos Direitos Humanos. Na última diretriz, o PNDH-3 ressalta o papel estratégico dos meios de comunicação de massa para a construção de um ambiente de respeito e proteção aos Direitos Humanos e observa a necessidade da realização de mudanças para garantir a democratização dos meios de comunicação e a importância da sensibilização dos profissionais e empresas para o compromisso ético de afirmação histórica dos Direitos Humanos.[29] Vale salientar, no que se refere à implementação do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, que foram estabelecidas as seguintes ações programáticas, a serem desenvolvidas pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, pelo Ministério da Justiça e pelo Ministério da Educação: a) Desenvolver ações programáticas e promover articulação que viabilizem a implantação e a implementação do PNEDH; b) Implantar mecanismos e instrumentos de monitoramento, avaliação e atualização do PNEDH, em processos articulados de mobilização nacional; c) Fomentar e apoiar a elaboração de planos estaduais e municipais de educação em Direitos Humanos. Recomendação: Recomenda-se aos estados e ao Distrito Federal a elaboração de seus Planos Estaduais de Educação em Direitos Humanos (PEEDH’s), tendo como diretriz o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos; d) Apoiar técnica e financeiramente iniciativas em educação em Direitos Humanos, que estejam em consonância com o PNEDH; e) Incentivar a criação e investir no fortalecimento dos Comitês de Educação em Direitos Humanos em todos os estados e no Distrito Federal, como órgãos consultivos e propositivos da política de educação em Direitos Humanos. Recomendação: Recomenda-se aos estados e ao Distrito Federal a criação de órgãos responsáveis pela efetivação das políticas públicas de Educação em Direitos Humanos. Importante medida para a implementação e normatização da educação em direitos humanos foi a aprovação, pelo Conselho Nacional de Educação, da Resolução nº 1, de 30 de maio de 2012, que estabelece as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos e atende ao anseio de inclusão da questão no ensino formal dos níveis básico e superior[30]. As Diretrizes foram formuladas com base em dois documentos produzidos, em 2009 e 2010, pela Secretaria de Direitos Humanos – “Bases para uma definição Curricular de Educação para os Direitos Humanos”, de autoria do Professor Carlos Roberto Jamil Cury, e “Conteúdos Referenciais para a Educação em Direitos Humanos”, elaborado pelo Professor Paulo Carbonari – os quais foram aprovados pelo Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Ademais, em 2010, foi realizada uma reunião pelo então Ministro Chefe da Secretaria de Direitos Humanos, com representantes da SDH e com o Presidente do Conselho Nacional de Educação para requerer apoio para o processo de elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação em Direitos Humanos, o qual passou a ser priorizado pelo referido Conselho em 2011, que criou uma Comissão Bicameral (composta por representantes do Conselho Nacional de Educação, da Secretaria de Direitos Humanos, do Ministério da Educação e do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos). Referida Comissão Bicameral realizou sete reuniões e elaborou um texto preliminar, que foi analisado por especialistas em Direitos Humanos em Reunião Técnica e submetido a audiência pública para, após, ser encaminhado ao Ministério da Educação, qua acabou por aprovar a resolução.[31] As Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos estabelecem que a Educação em Direitos Humanos se refere ao uso de concepções e práticas educativas fundadas nos Direitos Humanos (conjunto de direitos que garantem a igualdade e a dignidade humana) e em seus processos de promoção, defesa e aplicação na vida cotidiana e cidadã de sujeitos de direitos e de responsabilidades individuais e coletivas, bem como prevê que as instituições de ensino devem efetivar a Educação em Direitos Humanos de forma sistemática (artigo 2º e parágrafos). As Diretrizes mencionam que a educação em Direitos Humanos se fundamenta nos princípios da dignidade humana, igualdade de direitos, reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades, laicidade do Estado, democracia na educação, transversalidade, vivência e globalidade e sustentabilidade socioambiental (artigo 3º) e se articula em múltiplas dimensões que permitam compreender e promover os direitos humanos de forma contextualizada, em todos os níveis, por meio de processos pedagógicos participativos e de construção coletiva (artigo 4º). De acordo com a resolução, “a Educação em Direitos Humanos tem como objetivo central a formação para a vida e para a convivência, no exercício cotidiano dos Direitos Humanos como forma de vida e de organização social, política, econômica e cultural nos níveis regionais, nacionais e planetário” (Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=17810&Itemid=866> Acesso em: 20 jul 2013), sendo certo que este objetivo deverá orientar os sistemas e instituições de ensino, cabendo aos Conselhos de Educação fixar estratégias para acompanhamento das ações de Educação em Direitos Humanos (artigo 5º). A construção dos Projetos Político-Pedagógicos, dos Regimentos Escolares, dos Planos de Desenvolvimento Institucionais, dos Programas Pedagógicos de Curso das Instituições de Educação Superior; dos materiais didáticos e pedagógicos, do modelo de ensino, pesquisa, extensão e gestão e os processos de avaliação deve considerar a Educação em Direitos Humanos (artigo 6º). Especificamente sobre a inserção da Educação em Direitos Humanos nos currículos da Educação Básica e da Educação Superior, o artigo 7º prevê que ela poderá ocorrer de forma transversal, como um conteúdo específico de uma disciplina já existente, de forma mista ou de outro modo, conforme as especificidades dos níveis e modalidades da Educação Nacional. Os artigos 8º e 9º da resolução estabelecem que a Educação em Direitos Humanos deverá ocorrer na formação inicial e continuada de todos os profissionais das diferentes áreas do conhecimento e ser inserido como componente curricular obrigatório nos cursos destinados a profissionais da educação. Cabem aos sistemas de ensino e às instituições de pesquisa fomentar e divulgar estudos e experiências exitosas nas áreas dos Direitos Humanos e Educação em Direitos Humanos, bem como criar políticas de produção de materiais didáticos e paradidáticos nessas áreas (artigos 10 e 11). Por fim, o artigo 12 traz a necessidade das Instituições de Educação Superior estimularem ações de extensão voltadas para a promoção dos Direitos Humanos, em diálogo com os segmentos sociais excluídos, com os movimentos sociais e com a gestão pública. Não bastasse as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, que tem como fundamento, entre outros, a sustentabilidade socioambiental, a Resolução do Conselho Nacional de Educação nº 2, de 15 de junho de 2012, estabeleceu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Amiental[32], que também se relaciona, intimamente, com a Educação em Direitos Humanos, especificamente, na esfera ambiental. O Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/10)[33], entre outros preceitos, prevê a realização de campanhas educativas, inclusive nas escolas, para que a solidariedade aos membros da população negra faça parte da cultura social (artigo 10, inciso III). Ademais, estabelece a obrigatoriedade de estudo, no ensino médio e fundamental, da história geral da África e da população negra no Brasil (artigo 11), bem como incentivos às instituições de ensino superior a pesquisas e estudos de temas relacionados às questões étnicas, aos quilombos e à população negra (artigo 12) e a incorporar nos currículos nos cursos de formação de professores temas relativos à pluralidade étnica e cultural da sociedade brasileira (artigo 13, inciso II). Conclusões Do estudo formulado, verificou-se que a educação em direitos encontra-se regrada tanto no plano global das Nações Unidas quanto no plano nacional. No plano global, diversos instrumentos normativos foram formulados, merecendo destaque o Programa Mundial para a educação em direitos humanos, aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 2004, por meio da Resolução 59/113, e seu respectivo plano de ação. Analisou-se, minuciosamente, o plano de ação para a primeira etapa do Programa Mundial para a educação em direitos humanos, aprovado por todos os Estados Membros da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 14 de julho de 2005, o qual se centra na educação em direitos humanos nos sistemas de ensino primário e secundário. Abordou-se, ainda, o plano de ação para a segunda etapa do Programa Mundial para a educação em direitos humanos, aprovado através da Resolução 15/11, de 30 de setembro de 2010, na 31ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, que se foca na educação em direitos humanos no ensino superior e nos programas de formação sobre direitos humanos para docentes e educadores, funcionários públicos, forças armadas e militares. Ainda no plano global, constatou-se a recente Declaração das Nações Unidas sobre educação e formação em matéria de direitos humanos, aprovada em 19 de dezembro de 2011, por meio da Resolução 66/137 da Assembleia Geral das Nações Unidas, que manifesta um sinal claro à comunidade internacional para que intensifique esforços para efetivar a educação e formação em matéria de direitos humanos, por meio de um compromisso coletivo de todas as partes interessadas. Por outro lado, no plano interno, além do tratamento dispensado pela Constituição Federal aos direitos humanos e à educação para exercício da cidadania e da existência de normas infraconstitucionais que objetivam garantir a educação em direitos humanos, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a Política Nacional de Educação Ambiental, apresentou-se o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, que se encontra vigente desde 2006. Estudou-se, detidamente, o PNEDH, que traz diversos objetivos gerais para o fortalecimento da educação em direitos, descreve as linhas gerais de ação e estabelece as concepções, princípios e as ações programáticas na educação básica, na educação superior, na educação não-formal, na educação dos profissionais dos sistemas de justiça e segurança e na educação e mídia. Ao final, verificou-se que diversas medidas foram realizadas no Brasil com o objetivo de efetivar a educação em direitos humanos e implementar o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, com destaque a Lei Maria da Penha, o Programa Nacional de Direitos Humanos – 3, as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos e o Estatuto da Igualdade Racial. Contudo, observou-se que o Brasil não se manifestou sobre a temática da segunda etapa do Programa Mundial para educação em direitos humanos, apresentou fora do prazo relatório com informações sobre a efetivação da primeira etapa do plano e não prestou informações sobre as medidas adotadas para implementação do plano de ação para a segunda etapa do Programa Mundial para educação em direitos humanos, a despeito de ter sido instado, em todas as ocasiões, pelo Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos. Ademais, não se pode deixar de reconhecer que as violações de direitos humanos têm sido constantes no país, de forma que ainda há muito a evoluir na efetivação dos direitos humanos e da educação em direitos humanos.
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Pontos e aspectos relevantes sobre os direitos humanos
O presente trabalho versa sobre breves apontamentos sobre os direitos humanos. Seu conceito, fundamentos, características, gerações, além de um apanhado histórico sobre os movimentos que os ensejaram, o debate entre relativismo x universalismo do ponto de vista doutrinário, o processo de democratização brasileiro e algumas considerações sobre os tratados internacionais.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO Os Direitos Humanos pertencem à categoria de direitos essenciais à pessoa humana. Em um regime democrático, toda e qualquer pessoa deve ter a sua dignidade respeitada independentemente de sua origem, etnia, raça, convicção econômica/política/social, idade, identidade sexual, orientação ou credo religioso.  De modo a garantir tal classe de direitos, o Poder Constituinte Originário, ao dar origem à Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988, optou por adotar como epicentro do ordenamento jurídico pátrio o princípio da dignidade da pessoa humana, esbarrando em evidente sintonia com o princípio da isonomia, em que todos são tratados como humanos iguais e de mesmos direitos. Antes da referida Carta Magna, outros instrumentos jurídicos e experiências vividas deram início à construção deste que é o maior patrimônio da humanidade. O objetivo do presente artigo é auxiliar de forma didática, indicar os principais pontos relevantes sobre os Direitos Humanos, conceito, fundamentos e suas características, além do debate jurídico entre relativismo e universalismo, as considerações da influência desses direitos na CRFB e nos tratados internacionais, dando destaque à análise da chamada “virada Kantiana” e o posicionamento de diversos doutrinadores a respeito do tema. 1. CONCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE DIREITOS HUMANOS Os direitos do homem podem ser traduzidos como os direitos natos, universais e independem de positivação.  Trata-se de uma perspectiva universalista. Os direitos ditos fundamentais são os direitos positivados na constituição, enquanto os direitos humanos são os positivados em tratados internacionais, definidos como acordos firmados entre países para proteger pessoas humanas. 1.1. CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS São normais jurídicas internas e externas, que visam proteger a pessoa humana. Nas palavras de Alexandre de Moraes:  “Um conjunto institucionalizado (positivado) de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade o respeito à sua dignidade por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e o desenvolvimento da personalidade humana.” (MORAES, 2006). Segundo Flávia Piovesan: “Os direitos humanos são inerentes à existência humana e objeto de regulação internacional.” (PIOVESAN, 1996). 1.2. FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS Na perspectiva da mesma autora, o fundamento base dos direitos humanos é a dignidade, visto que se trata de uma qualidade que define a essência da pessoa humana, um valor que confere humanidade ao sujeito. Em suas palavras:  “A dignidade da pessoa humana, (…) está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora “as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro.” (PIOVESAN, 2000, p. 54) Diz ainda:  “É no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. Consagra-se, assim, dignidade da pessoa humana como verdadeiro super princípio a orientar o Direito Internacional e o interno.” (PIOVESAN, 2004, p. 92) Necessário mencionar que a dignidade possui também outros enfoques, quais sejam, o teológico, o racionalista e o contemporâneo. Enfoque teleológico: Fundamentado na imagem e semelhança de Deus. Enfoque racionalista: Fundamentado no movimento iluminista, em que se privilegia a natureza racional do ser humano. Enfoque contemporâneo: Trata-se da noção de autonomia, ou seja, nas normas construídas pelo próprio sujeito. Enfoque idealizado por Immanuel Kant, traduzido na capacidade de viver através de regras estabelecidas por si mesmo. 1.3. VIRADA KANTIANA Immanuel Kant afirmava que o direito só é legítimo quando existe para garantir nossa liberdade. Liberdade essa que se traduz na dignidade, que por sua vez, pode ser convertida em autonomia, que é fundamento do Direito.  Para aprofundar no tema, necessário se faz percorrer a linha do tempo e entender o jusnaturalismo e o positivismo. O jusnaturalismo assenta-se na ideia da existência de um direito natural, em valores que vão além do direito positivo. Trata-se de uma concepção universalista, em que limites ao Estado são impostos. No entanto, há outras vertentes como o jusnaturalismo moderno, responsável por influenciar revoluções. Dois grandes exemplos são a revolução francesa e a revolução americana. No caso da francesa, importante destacar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), o preâmbulo versando sobe direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem e o art. 2º, também sobre direitos naturais, que foca na liberdade, na propriedade, na segurança e na resistência à opressão. Na revolução americana, temos a Declaração da Independência (1776), as chamadas “leis da natureza” e “Deus da natureza”, além da menção aos direitos inalienáveis como a vida, a liberdade e a busca pela felicidade, viabilizada pelos direitos sociais. Atualmente tem ganhado força no debate sobre direitos humanos o reconhecimento do direito à felicidade/busca pela felicidade. Inclusive a mesma já fora citada em âmbito nacional através do senador Cristovam Buarque em sua “PEC da felicidade”, influenciada, principalmente, pelo Gross National Happiness, espécie de índice de avaliação do desempenho do Estado proposto e experimentado pelo Butão em substituição ao PIB (Produto interno bruto). O constitucionalismo moderno se afirma com as revoluções liberais e se traduz na exigência de que o Estado se institucionalize e atue através de uma constituição, ou seja, em um texto escrito que visa garantir direitos fundamentais e limitar o exercício do poder estatal. A partir desse ponto começa a superação do jusnaturalismo, ou seja, a entrada para o positivismo, na união do constitucionalismo moderno com a codificação do direito. O positivismo jurídico prega que a norma emana do Estado e não da natureza como no jusnaturalismo. Ou seja, há o reconhecimento de uma ciência jurídica, da nítida separação entre moral e Direito e da validade de direitos somente quando os mesmos são positivados. A crise do positivismo surgiu através das duras críticas de que toda e qualquer ação pudesse ser fundamentada e legitimada através da simples permissão da constituição. Ou seja, toda justificativa para determinado ato tinha grande ênfase no Direito positivo, o que possibilitou inadmissíveis barbáries aprovadas na forma da lei, como o nazismo e o fascismo. Em outras palavras, puro legalismo acrítico. O pós-positivismo teve como proposta retomar uma reaproximação entre Direito e ética, focando na importância do ordenamento positivo no que tange aos direitos humanos, a separação do legalismo acrítico e a almejada volta aos valores e a reafirmação da dignidade como fundamento de Direito e dos direitos humanos. Há, por outro lado, o reconhecimento da normatividade dos princípios, ou seja, uma nova hermenêutica constitucional, de uma pluralidade política e jurídica e da essencialidade dos direitos fundamentais, uma vez que esses são a essência do Estado e possuem origem no jusnaturalismo. Portanto, a dita “virada Kantiana” nada mais é que o pós-positivismo em si, ou seja, a reaproximação entre ética e Direito – posicionamento adotado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, uma vez que a mesma determina a primazia dos direitos humanos e o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como epicentro do ordenamento jurídico brasileiro. Segundo o ponto de vista de Flávia Piovesan, os direitos humanos não nascem todos de uma vez, nem de uma vez por todos. Ou seja, são frutos de construção humana e criados de um ponto de vista histórico, de amplo lapso temporal. Diante disso, pode-se afirmar que tais direitos entram em constante processo de reconstrução e aperfeiçoamento. 1.4. DEBATE ENTRE RELATIVISMO X UNIVERSALISMO Para o Relativismo, os direitos humanos e o seu fundamento são produtos da cultura de cada povo, isto é, de seu sistema político, econômico, cultural, social e até moral. Possui um viés de historicidade ao invés de universalidade, motivo pelo qual critica o eurocentrismo da afirmação universal dessa classe de direitos. Aqui, a autodeterminação dos povos/soberania e o princípio da não-ingerência são exaltados. Já o Universalismo detém a perspectiva de que os direitos humanos e seu fundamento decorrem da dignidade da pessoa humana percebida universalmente. Também se caracteriza pela defesa de um mínimo ético irredutível, uma espécie de núcleo indivisível. Flávia Piovesan detém um posicionamento universalista, mas se revela pluralista e aberta ao diálogo intercultural, além de defender a existência do mínimo ético comum a todas as pessoas do planeta. Aqui prevalecem a primazia dos direitos humanos e o princípio das intervenções humanitárias, externado na redução/mitigação da soberania de um Estado. A dicotomia entre universalistas e relativistas é superada quando do reconhecimento concomitante da universalidade e historicidade dos direitos humanos pela doutrina. Boaventura de Sousa Santos propõe concepção universalista multicultural de DH. Para Jürgen Habermas, os mesmos devem ser afirmados através de um diálogo intercultural que viabilize a construção e reconstrução de acordos comunicativos (tratados). Flávia Piovesan é clara na proposta de um universalismo de confluência, baseada no diálogo entre as culturas e na atuação da sociedade civil internacional. 2. CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS HUMANOS Universalidade: Todo ser humano é sujeito ativo de direitos humanos. Podem pleitear os mesmos em qualquer foro, seja nacional ou internacional. Indivisibilidade: Único conjunto de direitos. Interdependência: A eficácia de um direito humano depende da eficácia dos demais. Interrelacionariedade: Existe uma relação não hierárquica entre os direitos humanos e entre seus sistemas de proteção. Imprescritibilidade: Os direitos humanos não se perdem com o passar do tempo. Individualidade: Os direitos humanos são exercidos pelo indivíduo. Complementariedade: Os direitos humanos abarcam aspectos distintos e complementares da proteção da dignidade da pessoa humana. Inviolabilidade: Os direitos humanos não podem ser descumpridos por qualquer pessoa e/ou autoridade. Indisponibilidade: Não se pode renunciar ou abrir mão dos direitos humanos. Inalienabilidade: Os direitos humanos estão fora do comércio. Historicidade: Os direitos humanos são afirmados historicamente. Vedação do retrocesso/Efeito Cliquet/Efeito ampliativo: Uma vez estabelecido, os direitos humanos não podem ser limitados. Se determinado direito foi afirmado, não pode ser retirado. Inerência: Os direitos humanos são inatos/naturais, ou seja, inerentes ao ser humano. Efetividade: Os direitos humanos constituem-se como dever do Estado. Prestações positivas (obrigações de fazer) e prestações negativas (obrigações de não-fazer). Limitabilidade: Os direitos humanos podem ser limitados em situações exepcionais, pois não são absolutos. Ex: a prisão limita o direito de ir e vir. O estado de defesa e o estado de sítio (art. 136 e 138, CRFB). Limite ao direito de reunião (art. 136, §1º, I, CRFB). Caráter principiológico: Os direitos humanos são normas jurídicas do tipo “princípio”. A partir da “virada Kantiana”, do pós-positivismo e da nova hermenêutica constitucional, os direitos humanos são vistos como normas jurídicas que são cumpridas como mandados de otimização, isto é, no maior grau possível. Isto viabiliza o reconhecimento da possibilidade de colisões entre direitos humanos e direitos fundamentais na configuração do que Ronald Dworkin nomeou de “hard cases” (casos difíceis), em que há legítima batalha principiológica. Inesgotabilidade: Os direitos humanos fazem parte de um rol não-taxativo, ou seja, não fechado. A inesgotabilidade fortalece o reconhecimento da historicidade – baseada na construção e reconstrução – e acaba por negar uma concepção eurocêntrica de direitos humanos. 3. GERAÇÕES/DIMENSÕES DE DIREITOS HUMANOS A divisão dos direitos humanos é fortemente difundida e criticada pela doutrina. Por isso, serve apenas como um facilitador didático, uma vez que tais direitos são universais. Os grupos foram criados a partir de gerações/dimensões distintas em função de suas características e do momento histórico em que sua afirmação se deu de modo mais intenso. Para Antônio Augusto Cançado Trindade, jurista brasileiro e membro do Tribunal Internacional de Justiça: “O fenômeno que testemunhamos em nossos dias, em meu entendimento, não é o de uma fantasiosa e indemonstrável sucessão ´generacional´ de direitos (que poderia inclusive ser invocada para tentar justificar restrições indevidas ao exercício de alguns deles, como já ocorreu na prática), mas antes o da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados, todos essencialmente complementares e em constante interação.” (ALVES, 2003). Em outras palavras, a divisão dos DH em gerações acaba por estabelecer obstáculos à sua efetividade. 1ª geração: *Direitos de liberdade, direitos políticos; Fruto das revoluções liberais, prestações negativas do Estado (obrigações de não-fazer); Exemplos: Vida, liberdade de ir e vir, liberdade de opinião, privacidade, intimidade (Direitos individuais). 2ª geração: *Direitos de igualdade; Revolução industrial e péssimas condições de trabalho; Constituição de Weimar de 1919; Constituição mexicana de 1917; Prestações positivas (obrigações de fazer); Exemplos: Direitos trabalhistas, direito à saúde, educação, transporte público. 3ª geração: *Direitos de fraternidade/solidariedade; Número indeterminado e interminável de indivíduos (direitos difusos); Exemplos: Direitos do consumidor, do meio ambiente. Fraternidade entre os povos – para parte da doutrina. 4ª geração: *Engenharia genética; Proteção intergeracional; Direitos da humanidade; Biotecnologia ou Democracia/Direito dos povos; Exemplos: Limites bioéticos ao avanço científico, direitos ligados ao acesso à informação, democracia de alta intensidade. 4. A CRFB E OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS 4.1. O DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL Trata-se de ramo interdisciplinar. O Direito Constitucional Internacional é formado pelo agrupamento entre o Direito Constitucional e o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Importante a observação no tocante à diferença entre Direito Internacional dos Direitos Humanos e Direito Internacional Público. O primeiro objetiva garantir o exercício dos direitos da pessoa humana, enquanto o segundo visa disciplinar relações de reciprocidade e equilíbrio entre Estados. 4.2. O PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO NO BRASIL E A CRFB Guillermo O’Donnell afirma:  "É útil conceber o processo de democratização como processo que implica em duas transições. A primeira é a transição do regime autoritário anterior para a instalação de um Governo democrático. A segunda transição é deste Governo para a consolidação democrática ou, em outras palavras, para a efetiva vigência do regime democrático." (Transitions, continuities, and paradoxes. In: Scott Mainwaring & Guillermo O’Donnell e J. Samuel Valenzuela (org.), Issues in democratic consolidation: the new South American democracies in comparative perspective, Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1992, p.18). Piovesan divide a mesma linha de argumentação de O’Donell ao afirmar que o processo de democratização se dá por duas transições. A primeira, do regime autoritário ao governo democrático – já realizada. A segunda, da instalação do governo à vivência efetiva de um regime democrático – ainda está se concretizando. 4.3. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS A Constituição da República Federativa do Brasil é responsável por instituir um regime democrático e representa um avanço na consolidação legislativa dos direitos fundamentais, sendo, portanto, o documento mais abrangente e detalhado. Durante a reaproximação entre ética e Direito através de pós-positivismo, a dignidade passou a ser base/fundamento do Direito, fazendo com que valores fossem instituídos sob a forma de princípios, realidade bem distinta do jusnaturalismo, em que os valores se encontravam fora do mesmo. Os direitos fundamentais são elementos básicos para a realização do princípio democrático. Portanto, não há como se falar em democracia sem a devida efetivação dos direitos fundamentais. A relação entre direitos humanos/fundamentais e democracia deve manter interdependência e coesão, de modo a objetivar harmonia entre uma coisa e outra. No primeiro campo, pode-se citar a autonomia privada, a tradição liberal, a influência de Immanuel Kant, o Constitucionalismo e a universalidade dos direitos humanos. No segundo, o da democracia, a soberania popular, a autonomia pública, a tradição republicana, a influência de Jean-Jacques Rousseau e autodeterminação dos povos. 4.4. DILEMA DO SUPER-HERÓI A oposição entre a tradição liberal e a tradição republicana é ilustrada pelo recorrente dilema dos super-heróis entre salvar a mocinha (indivíduo) ou salvar a comunidade. Os filmes norte-americanos resolvem esse problema pela sobreposição da tradição liberal. O problema desse ponto de vista é ignorar que o indivíduo não se emancipa, não tem seus direitos fundamentais garantidos sem que a sociedade também se emancipe. Um exemplo de desdobramento concreto é o confronto entre o princípio das intervenções humanitárias e o da não-intervenção. Trata-se, basicamente, de um dilema ético-jurídico sobre a intervenção excessiva do Estado no plano de vida individual – aborto, eutanásia, uso individual de drogas, entre outros. 4.5. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL 4.5.1. FUNDAMENTOS DA REPÚBLICA (ART. 1º) Princípio Republicano: Noção de coisa pública, res publica. Governantes são gestores da coisa pública, com mandato determinado. Com relação à coisa pública, há que se priorizar e garantir a efetividade dos direitos fundamentais. Princípio do Estado Democrático de Direito: Coesão interna entre os direitos humanos/fundamentais e democracia. Incidência do princípio da legalidade e da dignidade da pessoa humana. Menciona o art. 1º da CRFB: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político.” I. Soberania: Reinvenção do conceito de soberania. Segundo Canotilho: “[…] não se vê como “esta vontade de constituição” pode deixar de condicionar a vontade do criador. Por outro lado, este criador, este sujeito constituinte, este povo ou nação, é estruturado e obedece a padrões e modelos de conduta espirituais, culturais, éticos e sociais radicados na consciência jurídica geral da comunidade e, nesta medida, considerados como “vontade do povo”. Além disto, as experiências humanas vão revelando a indispensabilidade de observância de certos princípios de justiça que […] são compreendidos como limites da liberdade e onipotência do poder constituinte.” (CANOTILHO, 1999). A dignidade da pessoa humana e os direitos humanos são, portanto, limites ao Poder Constituinte Originário. Flávia Piovesan defende a relativização e flexibilização do conceito de soberania em prol da proteção dos direitos humanos. II. Cidadania: Exercício de direitos e deveres, estabelecendo-se como condição de possibilidade para efetivação dos direitos humanos e do princípio democrático. Viabiliza a possibilidade de interferência popular nas decisões estatais. Nesse ponto há a presença do cosmopolitismo e a crise do nacionalismo, prevalecendo uma noção universal, de cidadão do mundo. III. Dignidade da pessoa humana: Fundamento dos direitos humanos. Piovesan considera como “super-princípio”, um núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico, que serve como critério de valoração e interpretação do sistema constitucional. Há aqui a presença do mínimo ético essencial, já citado anteriormente. Segundo a linha de Immanuel Kant, a dignidade se mistura com autonomia, ou seja, uma pessoa realmente digna é aquela que possui uma variedade de escolhas aceitáveis disponíveis. O grande problema nesse ponto é o risco de iconização e esvaziamento semântico da dignidade da pessoa humana pelo seu uso recorrente, o que tem se tornado algo rotineiro no universo jurídico. IV. Valores sociais do trabalho e da livre iniciativa: A CRFB destaca a interpendência dos direitos humanos e que a efetivação dos mesmos exige a inclusão sócio-econômica. V. Pluralismo político: Pluralismo de ideias políticas, que significa um contraponto à adesão de teses universalistas. Ideias de liberdade serão sempre discutidas, afinal de contas, fazem parte de processos históricos e são frutos de revoluções. 4.5.2. SEPARAÇÃO DOS PODERES (ART. 2º) A finalidade da separação dos poderes é coibir a concentração de poder e a decorrente violação dos direitos humanos, o que nos leva à clássica ideia de Montesquieu de que somente o poder limita o poder. No que diz respeito à vinculação dos três poderes: o Legislativo é obrigado a criar leis que respeitem os DH; o Executivo é responsável pelos atos que violem os DH; o Judiciário controla a coerência dos demais poderes aos direitos fundamentais e também é obrigado a decidir conforme a proteção aos mesmos. 4.5.3. OBJETIVOS DA REPÚBLICA Os objetivos fundamentais são metas e não deve ser confundidos com fundamentos, que são bases ideológicas, isto é, em que se acredita. I. Construir uma sociedade livre, justa e solidária: Em uma sociedade livre, os membros experimentam todo tipo de liberdade. Em uma sociedade justa, cada pessoa possui aquilo que lhe é de direito e não há exploração do trabalhador, nem impunidade, nem violação aos DH. Em uma sociedade solidária, há meta social de superação do individualismo, um legítimo engajamento cívico pela efetivação dos direitos fundamentais dos outros indivíduos e grupos sociais. II. Garantir o desenvolvimento nacional: Trata-se não somente de desenvolvimento econômico, mas também democrático, social, cultural, entre outros. Baseia-se no fortalecimento de índices alternativos ao PIB (Produto Interno Bruto), como o Gross National Happiness (citado anteriormente) e o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). III. Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais: Inclusão sócio-econômica necessária à efetivação dos DH. IV. Promover o bem de todos sem preconceitos/discriminação: Reconhecimento da dignidade da pessoa humana como valor universal. 4.5.4. PRINCÍPIOS QUE REGEM AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS I. Independência nacional: soberania externa, traduzida na igualdade/reciprocidade de condições de participação na comunidade internacional. II. Prevalência dos direitos humanos: Interesse na efetivação dos DH prevalece sobre os demais interesses (políticos, econômicos, etc.); a proteção dos DH prevalece à soberania nacional no que esta for contrária à sua efetivação. III. Autodeterminação dos povos: Cada povo é dono do seu próprio destino, desde que não viole os direitos humanos. A CRFB antecipa o posicionamento da 2ª Convenção de Viena de 1993, afirmando concomitantemente os princípios da prevalência/primazia dos DH e da autodeterminação dos povos, ambos influenciados pelo Pós-positivismo. IV. Não-intervenção; V. Igualdade entre os Estados (soberania externa); VI. Defesa da paz; VII. Solução pacífica dos conflitos; VIII. Cooperação entre os povos para progresso da humanidade; IX. Repúdio ao racismo e ao terrorismo: Racismo é inafiançável e imprescritível. Terrorismo é equiparado a crime hediondo. X. Concessão de asilo político: Desdobramento da defesa do pluralismo político na ordem internacional. Importante frisar que os princípios elencados nos incisos VI, VII, VIII e IX aplicam-se também à ordem interna. 4.6. CONSIDERAÇÕES SOBRE OS TRATADOS INTERNACIONAIS A palavra “tratado” é usada genericamente como referência às cartas, convenções, pactos e demais acordos internacionais. A Convenção de Viena de 1969 é conhecida como a “lei dos tratados internacionais”, sendo o tratado internacional uma expressão de consenso e que, uma vez firmado, está vinculado ao princípio do “pacta sunt servanda”, devendo, portanto, ser respeitado. Nesse sentido, elucida a Convenção de Viena que todo tratado em vigor é obrigatório e deve ser cumprido pelas partes de boa-fé, haja vista que uma parte não pode invocar disposições de seu direito interno como justificativa para o não cumprimento do mesmo. Com o objetivo de contribuir com a adesão de maior número possível de Estados aos tratados, permite-se que estes sejam formulados com reservas. Tais reservas excluem ou modificam o efeito jurídico de certas previsões do tratado no que se refere à sua aplicação diante de determinado Estado. No entanto, são inadmissíveis reservas que se mostrem incompatíveis com o objeto do tratado internacional. CONCLUSÃO Voltando às ideias de Flavia Piovesan no que tange ao processo de democratização brasileiro e a CRFB, nota-se claramente a dualidade entre uma democracia formal x uma ditadura social. Em outras palavras, o Brasil – do ponto de vista textual – é democrático em sua plenitude, mas a realidade – no contexto – não condiz com isso. O objetivo deste breve trabalho é o de chamar a atenção do leitor ou do profissional do campo do Direito e convidá-lo à reflexão do tema em voga, uma vez que se trata de assunto de imensa importância no campo jurídico e que diz respeito, além de tudo, à humanidade.
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A ética na dialogicidade entre o sujeito e a alteridade em instituições democráticas: a política com vistas à emancipação humana
A Ética na dialogicidade entre o sujeito e a alteridade em instituições democráticas. Nesse sentido as instituições sociais representadas pelo Executivo, Legislativo e Judiciário precisam repensar as novas mutações capazes de contemplar a ética com vistas à emancipação humana. E o campo de política é o caminho capaz de romper com a tradição de privilégios para poucos. O ato de julgar no ‘trágico da ação’ precisa dar conta da superação do sofrimento humano (egocentrismo) diante do caos social (crise da razão iluminista). Repensar a existência na pólis com dignidade humana pelo bem da comunidade em instituições justas e equânimes.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A uma concepção de justiça identificada na ética do humano pela revelação da vulnerabilidade existencial e que vai além da moral para o campo do viver bem em instituições legítimas tendo o “ser” como o centro das decisões se aproxima da visão kantiana do homem como “um fim em si mesmo”. Nesse sentido, para além da obrigação e da vinculação da norma, o sujeito responsável exerce papel social pela participação política na tomada de decisões (consciência, organização, reflexão e ação) na pólis com vistas à emancipação humana. A República diz respeito ao governo que inclua a todos e visa o bem da coletividade para além de determinados grupos e/ou clãs. Os dilemas e os conflitos permeiam as histórias de vida. Valores e crenças muitas vezes são frustrados por sentenças de apenação (ditadas pelo agente judiciário em nome do Estado) que não fazem justiça, que não preveem o perdão, tampouco promovem a reabilitação, isso por causa da impossibilidade de mensuração do bem que se perdeu. As relações sociais deveriam ser permeadas pela ética do humano (ética aristotélica da virtude com equidade e ética kantiana das obrigações vinculadas à garantia da dignidade humana). Assim, portanto, mais que viver em instituições formalmente isonômicas, faz-se primordial o retorno ao “mito” na compreensão filosófica do direito: a linguagem como espaço de comunicação do “eu” com o “outro” pelo respeito à pluralidade cultural e social e pela formação de um campo da legitimidade política como espaço de inclusão das diferenças com vistas ao bem comum. Nesse sentido, as variáveis cíclicas rompem com as tradicionais relações patrimonialistas egocêntricas calcadas na tradição, família e propriedade privada dos meios de produção como centro de interesses e passa-se das relações do “ter” em direção às relações do “ser” na valorização à pluralidade étnico-cultural e social. 1. A LEGITIMIDADE DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS NO ACESSO À JUSTIÇA Com vistas à ideia de justiça e injustiça, em Aristóteles (2001) podemos refletir acerca das diferentes acepções do justo enquanto uma relação de poderes. É nas relações de poder entre as diversas instâncias de governo e deste com a comunidade que os homens se revelam (ARISTÓTELES, 2001, p. 93): “[…]  ‘na justiça se resume toda a excelência’ Com efeito, a justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente em relação a si mesmas como também em relação ao próximo […]. […] praticamente a maioria dos atos prescritos pela lei é constituída de atos prescritos tendo em vista a excelência moral como um todo; de fato, a lei nos manda praticar todas as espécies de excelência moral e nos proíbe de praticar qualquer espécie de deficiência moral, e as prescrições para uma educação que prepara as pessoas para a vida comunitária são as regras produtivas da excelência moral como um todo […]. Se, então, o injusto é iníquo (ou seja, desigual), o justo é igual, como todos acham que ele é, mesmo sem uma argumentação mais desenvolvida. E já que o igual é o meio termo, o justo será um meio termo […]”.  (ARISTÓTELES, 2001, p. 93-95). Assim, portanto, a ideia de justiça diz respeito, na concepção aristotélica, aos atos que produzem a felicidade da comunidade política, a excelência moral pela imposição da prática de certos atos e proibição de outros. É o bem dos outros. É também a justiça uma virtude intrínseca ao ser humano em busca do bem que lhe é próprio. A justiça, portanto, enquanto meio-termo, é proporcional (ARISTÓTELES, 2001). Quem condena ou quem absolve, esse faz a justiça ou a injustiça dando ou retirando o que há de mais precioso na vida do homem: a dignidade. Esse operador da justiça, em geral, em vez de aplicar uma decisão adequada ao sujeito, acaba por subjugar a própria pessoa (geralmente o mais fraco) e, como resultado, as relações subjetivas, interpessoais e institucionais ficam ainda mais assimétricas. A ideia de sujeito de direito capaz se expressa no plano moral, jurídico e político. Nessa perspectiva, a noção de identidade narrativa do sujeito capaz é associada ora à ideia ética de bem, ora à ideia de obrigação, a partir das ações julgadas como boas ou más, permitidas ou proibidas, enquanto sujeito de imputação. Há também um nexo mútuo entre autoestima e a avaliação ética das ações que visam à vida boa (concepção aristotélica), assim como há um nexo entre o autorrespeito e a avaliação moral das ações submetidas à prova da universalização das máximas da ação enquanto concepção kantiana. Assim, portanto, autoestima e autorrespeito definem a dimensão ética e moral do si-mesmo, como dimensão do homem sujeito de imputação ética, jurídica e política. O princípio da observação aos pactos enquanto regra de reconhecimento engloba a todos os que vivam sob as mesmas leis. O meio, no entanto, para realização das potencialidades humana, é o âmbito político. Assim, podemos identificar algumas características norteadoras do campo ético-político. Entre as quais a democracia direta no plano social para além da democracia representativa, no liberalismo econômico. Outra seria a da política com papel norteador e civilizador, o que seria realizado por meio de instituições sociais adequadas a esse ideal. Tal política teria como centro a ética pública a partir de relações subjetivas, interpessoais e institucionais que conduzam à emancipação humana que passa pelo respeito à pluralidade étnico-cultural e social. A ideia de governo justo e legítimo diz respeito à própria noção de democracia em suas várias acepções enquanto exercício da política. Aristóteles, em “Política” (2001), é singelo nas suas reflexões: “Um princípio fundamental de uma forma democrática de governo é a liberdade […]. É um dos princípios da liberdade que todos possam revezar-se no governo e, de fato, a justiça democrática é a aplicação de uma igualdade numérica e não de uma igualdade proporcional, consequentemente a maioria deve ser soberana, e o que a maioria aprove deve ser o resultado justo e final. Afirma-se que todo cidadão deve ser tratado com igualdade e, portanto, na democracia os pobres possuem mais poder que os ricos, pois há mais pobres que ricos, e a vontade da maioria é soberana.  […] outra característica é que cada homem deve viver como quer; diz-se que esse é o privilégio do homem livre, uma vez que, por outro lado, não viver como se quer é a marca da vida de um escravo […]. […] mas a democracia e o poder do povo em suas formas mais genuínas baseiam-se no princípio reconhecido de justiça democrática, segundo o qual todos têm a mesma importância numérica; esse princípio igualitário implica que os pobres não tenham uma participação maior no governo do que os ricos, e não deveriam ser governantes exclusivos, mas sim que todas as classes deveriam governar igualmente, de acordo com os seus números. É dessa maneira que os homens acreditam que podem assegurar a igualdade e a liberdade em sua Cidade”. (ARISTÓTELES, 2001, p. 217-219). A democracia representativa e participativa é baliza da Constituição Federal do Brasil de 1988, herança desde a Grécia antiga, passando pelos modernos ideais franceses de igualdade, liberdade e fraternidade. A previsão constitucional é de uma democracia com instituições sociais livres, justas e solidárias, com efetividade dos direitos humanos fundamentais (cidadania, dignidade humana, pluralismo político, desenvolvimento para todos com justiça social), sem fome, sem miséria, sem preconceitos e sem discriminação, conforme apregoado nos artigos 1º a 3º da Magna Carta.  Holanda (2008), em "Raízes do Brasil", enfatiza que, no Brasil, a democracia foi sempre um mal-entendido, pois fora importada e acomodada por uma aristocracia rural e semifeudal em benefício dos seus próprios direitos ou privilégios (HOLANDA, 2008, p. 160). Entre os direitos políticos assegurados no artigo 14, caput e incisos I, III e III da Constituição Federal, como expressão da cidadania, destacam-se os instrumentos de democracia participativa: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. As instituições públicas dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário devem, portanto, nortear-se, entre outros princípios, pela legalidade, publicidade, impessoalidade, moralidade nos seus atos.  Na administração direta ou indireta, as diretrizes norteadoras da administração pública devem, portanto, estar voltadas ao interesse público, conforme dispõe o artigo 37, caput, do texto constitucional e carente de efetividade. A dignidade humana como princípio está expressa como direito fundamental nos artigos 1º (inciso III), 170 (III) e 226 (VII) da Constituição Federal, enquanto estrutura do Estado de Direito, como salienta Jacintho (2006). E perpassa, no campo principiológico as relações subjetivas, interpessoais e institucionais, envolvendo liberdades civis, étnicas e culturais, que dizem respeito às dignidades. “Neste século XXI, partimos da consciência de que a supremacia da Constituição e a aplicabilidade direta de suas normas se fundam no princípio da democracia, que a tutela da autonomia da vontade não é suficiente para proteger a dignidade, especialmente em sociedade desiguais como as nossas, e que métodos aparentemente neutros e mecânicos como a subsunção servem a encobrir escolhas valorativas, inevitáveis a qualquer processo de interpretação”. (BODIN DE MORAES, 2008, p. 39). Numa perspectiva de Ricoeur (2008) para além do “eu” e do “tu” e pautada na pluralidade de atores que compõem nossa história, podemos estudar as formas de democracia enquanto construção republicana com instituições sociais justas e éticas, apesar da emblemática realidade de não efetividade para os excluídos. Montesquieu é favorável à democracia representativa: “Como, em um Estado livre, todo homem que supostamente tem uma alma livre deve ser governado por si mesmo, seria necessário que o povo em conjunto tivesse o poder legislativo. Mas, como isto é impossível nos grandes Estados e sujeito a muitos inconvenientes nos pequenos, é preciso que o povo faça através de seus representantes tudo o que não pode fazer por si mesmo”. (MONTESQUIEU, XI, 6). Rousseau, por sua vez, em "O Contrato Social", no capítulo XV, livro III, defende a democracia direta: “A soberania não pode ser representada, pela mesma razão que não pode ser alienada. Ela consiste essencialmente na vontade geral e a vontade não se representa. Ela é a mesma ou é outra; nisso não há meio termo. Os deputados do povo não são, pois, nem podem ser seus representantes. São, quando muito, seus comissários e nada podem concluir definitivamente. Toda lei que o povo, em pessoa, não ratificou é nula; não é sequer lei”. (ROUSSEAU, 2008, III, 15). Acerca da ideia de democracia representativa podemos destacar que o governo ideal é o representativo ou, nas palavras de Stuart Mill, após longas considerações sobre os governos desde a Grécia: “[…] é evidente que o único governo capaz de satisfazer completamente todas as exigências do estado social é aquele em que o povo todo possa participar; onde qualquer participação, mesmo na função pública mais modesta, é útil; um governo no qual a participação deverá ser, em toda parte, tão grande quanto permita o grau geral de aprimoramento da comunidade; e no qual, nada menos possa ser desejado do que a admissão de todos a uma parte do poder soberano do estado. Porém, uma vez que é impossível, em uma comunidade maior do que uma única cidade, que todos participem pessoalmente de todos os negócios públicos, a não ser de muito poucos, conclui-se que o tipo ideal de governo perfeito deve ser o representativo”. (MILL, 2006, p. 65). Para além da democracia representativa, não podemos ignorar que viver em instituições justas e que promovam políticas públicas efetivas visando à vida boa para todos é um dos dilemas do capitalismo contemporâneo. Assim, vejamos que é possível conciliar liberalismo e socialismo, por outro lado há a dificuldade em conciliar democracia e liberalismo. “[…] a relação entre o socialismo e democracia foi bem mais, desde a origem, uma relação de complementaridade, assim como houvera sido até então a relação entre democracia e liberalismo. […] Para reforçar o nexo de compatibilidade (melhor: de complementaridade) entre socialismo e democracia, foram sustentadas duas teses: antes de tudo, o processo de democratização produziria inevitavelmente, ou pelo menos favoreceria, o advento de uma sociedade socialista, fundada na transformação do instituto da propriedade e na coletivização pelo menos dos principais meios de produção; em segundo lugar, apenas o advento da sociedade socialista reforçaria e alargaria a participação política e, portanto, tornaria possível a plena realização da democracia, entre cujas promessas – que a democracia liberal jamais seria capaz de cumprir – estava também a de uma distribuição igualitária (ou ao menos mais igualitária) do poder econômico e político. […] fica claro que o contraste contínuo e jamais definitivamente resolvido (ao contrário, sempre destinado a se colocar em níveis mais altos) entre a exigência dos liberais de um Estado que governe o menos possível e a dos democratas de um Estado no qual o governo esteja o mais possível nas mãos dos cidadãos, reflete o contraste entre dois modos de entender a liberdade, costumeiramente chamados de liberdade negativa e de liberdade positiva, e em relação aos quais se dão, conforme as condições históricas, mas sobretudo conforme o posto que cada um ocupa na sociedade, juízos de valor opostos […]”. (BOBBIO, 1994, p. 81-97). 2 A ÉTICA COMO CAMPO POLÍTICO NAS RELAÇÕES DIALÓGICAS Identificamos que deva estar no campo político, jurídico e social a ética como superação do “eu e do tu” para o mundo plural “nós”, portanto, ética cuja existência seja digna para todos. Haja vista que se fala em pacto social quando desigualdades já estão naturalizadas e já não há mais condições existenciais de dignidade a todos os seus participantes. Também se apela para o pacto social quando se negam ao dito cidadão os bens básicos da vida e este tem que se endividar para custear seus instrumentos de trabalho necessários à sobrevivência ou escolher entre sua saúde e vida ou pagar suas dívidas. Poderia haver ética nesse debate? Trata-se de moralismo burguês: “O novo individualismo, o enfraquecimento dos vínculos humanos e o definhamento da solidariedade estão gravados num dos lados da moeda cuja outra face mostra os contornos nebulosos da ‘globalização negativa’. Em sua forma atual, puramente negativa, a globalização é um processo parasitário e predatório que se alimenta da energia sugada dos corpos dos Estados-nações e de seus sujeitos. […]”. (BAUMAN, 2007, p. 30). O liberalismo é a doutrina do chamado Estado Mínimo. E por neoliberalismo entende-se uma defesa intransigente da liberdade econômica, da qual a liberdade política é apenas um corolário. No sentido de que uma sociedade é tanto melhor quanto mais extensa é a esfera da liberdade e restritiva de poder, porém, pela participação de todos. (BOBBIO, 1994, p. 87-88). Wolfgang Leo Maar, em “O que é Política”, discute o papel da política como missão civilizadora: “Quando se classifica algo de ‘autoritário’, isto quer dizer mais do que simplesmente lhe atribuir uma atividade política que se impõe pela força. Significa atribuir-lhe um valor, uma referência que possui um sentido além do político. Do mesmo modo, quando consideramos uma pessoa ‘democrática’, emitimos uma opinião sobre as suas qualidades que não se esgota unicamente na sua prática. Neste sentido, a democracia seria algo mais do que uma determinada forma de governo ou de atividade política. Seria um valor, uma referência cotidiana que diz respeito ao conjunto de uma experiência humana e social, objetiva, acumulada ao longo da história na cultura”. (MAAR, 1994, p. 90-91). A democracia moderna passa pelas diversas formas de entendimento do papel do Estado, entendido como sendo a sociedade civil organizada na sua pluralidade de atores sociais enquanto exercício de papel ético-político. Assim, o pensamento de Ricoeur (2008), na medida em que tangencia a relação do eu com o outro, trata da vida boa na pólis mediante instituições justas, equânimes, que promovam o bem de todos, pelo respeito às diversidades sociais, culturas (de sotaques), pensamentos e não espaço em que alguns se acham privilegiados em detrimento da maioria. Para discutir a autoridade é importante entender se há a legitimidade, pois a distinção entre autoridade enunciativa e autoridade institucional é apenas provisória e de ordem didática, uma vez que não se trata de um consenso social, mas de instituições que usam dos discursos e escritos produzidos, enunciados e publicados para o convencimento. Uma autoridade legítima é essencial para evitarmos os totalitarismos do Estado, muitas vezes representados por juízes engessados a uma dogmática jurídica elitista. Arendt (2011), em “Origens do Totalitarismo”, nos traz à luz algumas reflexões fundamentais sobre o tema: “A política totalitária não substitui um conjunto de leis por outro, não estabelece o seu próprio consensus iuris, não cria, através de uma revolução, uma nova forma de legalidade. O seu desafio a todas as leis positivas, inclusive às que ela mesma formula, implica a crença de que pode dispensar qualquer consensus iuris, a ainda assim não resvalar para o estado tirânico da ilegalidade, da arbitrariedade e do medo. […] Essa identificação do homem com a lei, que parece fazer desaparecer a discrepância entre legalidade e a justiça […] nada tem em comum com o lúmen naturale ou com a voz da consciência, por meio dos quais a Natureza ou a Divindade, como fonte de autoridade para o ius naturale ou para os históricos mandamentos de Deus, supostamente revela a sua autoridade no próprio homem”. (ARENDT, 2011, p. 514-515). É no espaço público que se permite a pluralidade das relações inter-humanas para além do eu e o tu, do ter em direção ao ser. Segue-se que a justiça se realiza como instituição social aplicando as regras às interações humanas, por um sistema de partilha de papéis sociais e de tarefas para além da simples distribuição de valores no plano econômico. Assim, portanto, se o indivíduo precede ao Estado, os direitos vinculados às capacidades e às potencialidades humanas, enquanto membros da comunidade política estão sujeitos à mediação institucional de um terceiro que conduza à autonomia, à emancipação e não à submissão repressiva. A técnica disciplinar na modernidade se constitui na normalização do sujeito pela produção de uma individualidade marcante que condena o “criminoso”. Aponta suas características peculiares, rotula, julga e pune severamente. O poder normalizador define o lugar do sujeito na sociedade pelas qualidades ou defeitos que marcam sua autonomia de parte orgânica do corpo social e pressupõe a vontade, o querer, o poder-saber, a consciência de si. A técnica-ciência é tida como o espírito da modernidade, portanto normalizadora na produção e na reprodução de poderes. A norma jurídica é uma dessas técnicas. Ela produz uma refinada definição das posições sociais, econômicas e políticas enquanto ferramenta nas mãos de quem sabe e pode fazer o direito (valoração do fato em norma). Por isso o direito serve a quem pode fazê-lo na hierarquia social. A vontade de verdade é libertação ou prisão, absolvição ou condenação na luta interna das partes que unem o corpo social (BERTEN, 2011, p. 131-157). Chaui (2001), no artigo “Acerca da moralidade pública”, destaca a Justiça Comutativa, Distributiva e Social a partir de Aristóteles. A justiça distributiva se refere aos bens partilháveis (é a economia), no sentido de dar a cada um o que lhe é devido, e sua função é dar desigualmente aos desiguais para torná-los iguais. A justiça comutativa se refere às penas e às recompensas legais que reparam danos cometidos contra cidadãos (o tribunal); mas a justiça fundante se refere a um bem que não pode ser partilhado e distribuído, somente participado: o poder político. “Todavia não podemos pensar apenas a idéia de justiça política entendida como o direito de participação de todos os cidadãos no poder. O pensamento político moderno, exatamente ao propor a distinção entre virtudes privadas e poder político, afirmou dois princípios nucleares da lógica do poder com os quais podemos nos acercar da moralidade propriamente política. Em primeiro lugar, a compreensão de que toda a sociedade está dividida originalmente entre o desejo dos grandes de comandar e oprimir e o desejo do povo de não ser comandado nem oprimido, definindo o lugar do governante não acima das classes e sim como aliança necessária com o desejo do povo e como contenção do desejo dos grandes (pois o desejo destes aniquila a instância pública da política). […] Em segundo lugar, a compreensão de que a moralidade pública não depende do caráter dos indivíduos e sim da qualidade das instituições com expressões concretas do lugar e do sentido da lei. A lei é o pólo da universalidade numa sociedade dividida em classes (ou cindida em particularidades conflitantes e contraditórias); pólo no qual se definem a cidadania e as formas de exercício”. (CHAUI, Folha de São Paulo, 24/5/2001). Chaui (2001) analisa a mentira política como um mal que aflige a sociedade. “Se nos recordarmos do clássico estudo de Hannah Arendt sobre a mentira política, haveremos de lembrar que ela aponta os dois instrumentos empregados pelo governante para realizar o embuste. Um deles são os ‘relações públicas’, que operam com os recursos da publicidade e têm como princípio a idéia de que os cidadãos são inteiramente manipuláveis pelas opiniões vendidas no mercado político; são os agentes da propaganda do governo. O outro instrumento são os ‘resolvedores de problemas’, caracterizados pela autoconfiança extrema e pela certeza de sempre prevalecerem porque sabem se livrar dos fatos, tanto destruindo documentos, memórias e testemunhos, como produzindo uma irrealidade que vem à existência, por meio de discursos, chantagens, coações, distribuição de benesses, ameaças veladas ou diretas e, sobretudo pela desqualificação sumária dos opositores; são os assessores do governo. Juntos, relações públicas e resolvedores de problemas criam as condições para que o governo nunca possa ser desmentido, pois toda contraprova é invalidada por princípio, graças ao ocultamento da realidade sob a imagem irreal e graças à desqualificação prévia dos oponentes”. (CHAUI, Folha de São Paulo, 24/5/2001). A política tem como finalidade a vida justa e feliz, ou seja, a vida humana digna de seres livres, portanto, é inseparável da ética (CHAUI, 2006, p. 359). CONCLUSÃO O resgate da ética como virtude se constitui um dos maiores desafios do cotidiano da nossa cidade e do país pela construção da democracia em instituições justas, haja vista que a subjetividade do juiz, na construção do discurso normativo, na argumentação e na interpretação, conduz, muitas vezes, a decisões frustrantes, reveladoras de não legitimidade. Isso ocorre em especial, nos casos chamados difíceis, em que os juízos reflexivos, atendendo muitas vezes aos clamores midiáticos, acabam optando pela manutenção de desigualdades. Isso ocorreu no já acima mencionado “caso pinheirinho”, em São Paulo, em que oito mil pessoas foram retiradas à força de área ocupada quando vínculos afetivos, sociais, culturais, familiares já estavam sedimentados há anos. Nesse caso, em nome da lei e da ordem negou-se a relação de justiça a partir da pluralidade de sujeitos enquanto campo ético-político, próximo não só da obrigação, mas do homem como fim em si mesmo, enquanto resgate da dignidade e, ao mesmo tempo, em instituições equânimes. Ética com emancipação humana aos cidadãos da pólis, eis a finalidade primeira da justiça. Para atingir tal fim, é essencial dispensar um tratamento de vida digno a todos, sem discriminações étnicas, sociais, culturais, de preferências sexuais ou afetivas, idade ou sexo. O novo constitucionalismo, para além de qualquer Constituição formal, se realiza mediante a materialização de direitos humanos fundamentais, ou seja, com a efetivação dos bens básicos à vida com dignidade para todos, o que inclui alimentação adequada, saúde preventiva e curativa, educação de qualidade, moradia digna e renda mínima. Esse desafio resume a ética como espaço da política na compreensão nas relações subjetivas, interpessoais e institucionais. Esses são desafios primordiais do novo milênio. Em especial diante da crise da pós-modernidade, por mais que se busque a justiça, esta tem escapado pelas mãos no conflito existencial com o outro e, por consequência, há a exclusão. Enfrentar essa realidade é um desafio muito especial. Nesse quadro, praticamente globalizado, o caso mais grave nas relações verticais e horizontais diz respeito à “invisibilidade” do outro como sujeito de direitos, não havendo nem mesmo reconhecimento da sua existência, deixando-o, portanto, em espaço de indiferença, de ignorância.
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A possibilidade de limitação ao poder constituinte brasileiro através dos tratados internacionais de direitos humanos
Será apresentado neste presente trabalho as possibilidades de influências dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil sobre o poder constituinte como instrumentos de limitação dentro da Constituição Federal, em especial, sobre sua forma originária, apontada sempre pelo pensamento majoritário como inicial e ilimitado.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO A temática dos Direitos Humanos (e sua internacionalização) vem elevando a cada instante sua importância dentro das ciências jurídicas e humanas. Atualmente, os diversos pensamentos sobre aquele campo humanístico, mesmo divergente em alguns pontos, adotam a ideia da necessidade de se ter os Direitos Humanos como uma nova base para a construção do pensamento contemporâneo, não apenas em um sentido jurídico, mas científico em geral e social. Discute-se muito sobre a influência dos Direitos Humanos (materializado, por meio de Tratados Internacionais de Direitos Humanos) como paradigma limitador e modelo para a estrutura de uma sociedade. Tal ideia também tem sido analisada em no âmbito do direito constitucional, dentre inúmeros temas, sobre sua influência dentro do poder constituinte, uma das figuras mais relevantes dentro do Direito Constitucional. O presente trabalho discorrerá, por meio de análise doutrinária, a possibilidade de se admitir a influência dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos sobre o poder constituinte, em especial sobre a possível limitação desse mesmo poder constitucional em sua forma originária. 1. PODER CONSTITUINTE Para um melhor aproveitamento do presente trabalho, se faz necessário apresentar breves apontamentos sobre a figura jurídica do Poder Constituinte, a qual passasse a expor. 1.1. Conceito e traço histórico Por poder constituinte se entende na possibilidade de elaborar uma Constituição (denominado como “poder constituinte originário”), como também modificá-la (denominado como “poder constituinte derivado”). A ideia do poder constituinte é tida como uma grande ferramenta dentro do Direito Constitucional, afinal, por meio do poder constituinte fica visível a legitimidade de não apenas elaborar uma Constituição, mas também elementos basilares de valores jurídicos dentro de um determinado Estado. O pensamento sobre a necessidade de um poder constituinte originou por meio de um pequeno panfleto meses antes de iniciar a Revolução Francesa por Emmanuel Joseph Sieyès, o abade de Chartres, intitulado Quem é o Terceiro Estado? (“Qu’est-ce que le tiers État?”)[1]. Sieyès entendia que o Terceiro Estado era a nação, o povo que exercia toda atividade privada e pública em um Estado, porém, havia certos pontos, partes do Estado que eram dominados por uma minoria representada pelo clero e nobreza, uma parte ínfima e desnecessária ao Estado e, portanto, descartável. Todavia, diante a situação que a França se encontrava naquele tempo, essas minorias havia tomado os principais direitos dos povos, sendo que não poderia o povo descartá-los, portanto, reivindicaria o que lhe seriam de direito, menos que em fração pequena, em especial, pela possibilidade de representantes desse Terceiro Estado no governo. Para haver essas reivindicações, o abade de Chartres, desenvolveu um pensamento político-jurídico, dividindo três épocas de formação de uma sociedade política. A primeira, os indivíduos começando a se agrupar criam em si o direito de ser nação; A segunda, tais indivíduos discutem sobre as necessidades do todo reunido e formas de satisfazê-las, começando a observar que existe a impossibilidade deles, em conjunto, atingirem uma vontade em comum; Por fim, a terceira época, torna-se necessária a ideia de governo, sendo que os indivíduos, agora vistos como associados, vendo a impossibilidade observada na segunda época, confiam o exercício de governo e sustento da vontade da nação a alguns membros[2]. Para ter esses representantes da nação se faz necessário uma Constituição, um documento que determine a estrutura de um Estado, em especial sobre a organização e funções dos poderes constituídos (corpos), por essa mesma razão, as leis constitucionais não podem sofrem interferência desses próprios corpos constituídos, apenas quem pode mudar tais leis constitucionais é a própria nação, assim, os limites de um poder constituinte derivam apenas do direito natural, esse decorrentes da nação. Porém, os poderes constituintes não possuem esse mesmo poder de criar uma nova Constituição, pois são presos a suas normas, porém, podem modificá-la, na forma como a própria Constituição prevê[3]. Por mais que nesse manifesto elaborado foi, em partes, adotado, o que se observou tanto na França como na Europa foi a adoção de regimes parlamentaristas, que no início aumentavam o poder do executivo e do legislativo frente até a própria Constituição. Após a Segunda Guerra Mundial, quando a Europa observou as atrocidades cometidas pela guerra e a falha do sistema parlamentarista em respeito aos direitos dos indivíduos, a ideia de Justiça Constitucional (ou seja, proteção a Constituição) passasse então a ser respeitado. “Não se pode mais tolerar a produção de norma contrária à Constituição, porque isso seria usurpar a competência do poder constituinte. Este, sim, passa a ser voz primeira do povo, condicionante das ações dos poderes por ele constituídos. A Constituição assume o seu valor mais alto por sua origem – por ser o fruto do poder constituinte originário”[4]. Contudo, no decorrer dessa experiência europeia sobre a construção da ideia do poder constituinte, nos Estados Unidos, desde o século XIX, a Carta Constitucional tem reconhecido seu valor político-jurídico e proteção[5]. Inspirados por ideais democráticos, os Estados Unidos, levando também a influência do domínio britânico em suas terras, perceberam que, para estabelecer a proteção dos indivíduos, seria necessário a limitação dos corpos constituintes para evitar possíveis abusos na própria Carta Constitucional, tornando assim esse documento um texto absoluto, pensamento este que só aparecerá anos depois na Europa. Tem-se então, a ideia de um sistema rigoroso para futuras modificações na Constituição, observando então o surgimento da supremacia do Texto Constitucional sobre as demais leis, sendo que o controle dessa supremacia seria exercido pelos juízes, ou seja, o controle jurisdicional de constitucionalidade, nascendo assim a doutrina do judicial review[6]. Por mais que o trajeto histórico americano não fale precisamente em um poder constituinte, seu trajeto histórico é fundamental para a análise daquele instituto, pois, foi com o modelo americano que se observa uma real importância político-jurídico em cima da Constituição, afinal, como pôde se observar a ideia da supremacia constitucional em um Estado – não apenas em seu sistema jurídico – não decorre da essência da própria Constituição, mas por meio de um desenvolver histórico. 1.2. Titularidade e finalidade do poder constituinte Realizado um pequeno trajeto histórico sobre a figura do poder constituinte, percebe-se que a ideia inicial sobre sua criação por Sieyès é que os poderes de criar e modificar uma constituição são atribuídos à nação, pois, apenas se tem a ideia de soberania e estruturação de um Estado caso sua nação deseja assim elaborar. Demonstrando assim a influência do direito natural[7]. Todavia, modernamente, já não mais se admite a titularidade do poder constituinte a nação, mas ao povo, pois, contemporaneamente, aceita-se a ideia que é a soberania popular que determina a vontade constituinte. “Necessário transcrevermos a observação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, de que “o povo pode ser reconhecido como o titular do Poder Constituinte, mas não é jamais quem o exerce. É ele um titular passivo, ao qual se imputa uma vontade constituinte sempre manifestada por uma elite”. Assim, distingue-se a titularidade e o exercício do Poder Constituinte, sendo o titular o povo e o exerce aquele que, em nome do povo, cria o Estado, editando a nova Constituição”.[8] Tal titularidade do povo pode ser visualizada na Constituição Federal de 1.988 em seu artigo 1°, parágrafo único. 1.3. Espécies de poder constituinte Atualmente são admitidas, pacificamente, duas espécies de poder constituinte: originário e derivado. O primeiro trata-se do poder de elaborar uma Constituição, enquanto o segundo se trata da possibilidade de modificar formalmente uma Constituição já existente. Essas duas formas de poder constituintes serão melhores analisados adiante. Além dessas duas formas clássicas de poder constituinte, doutrinas mais moderna admitem a existência de mais duas espécies: poder constituinte difuso e poder constituinte supranacional[9]. Poder constituinte difuso é manifestado por meio de mutações constitucionais. Por mutações constitucionais se entende como mudanças interpretativas no texto da Constituição, há uma mudança apenas fática de determinada norma constitucional, não ocorrendo uma alteração em sua estrutura formal. A norma expressa permanece com a mesma redação, modificando apenas seu sentido interpretativo, ou seja, é adotada uma nova interpretação ao texto constitucional. Vale apontar que esse fenômeno, de mutação constitucional, não ocorre nos princípios norteadores da Constituição. Já por poder constituinte supranacional tem influência na ideia de cidadania universal, em uma maior relativização no princípio da soberania estatal, em que as Constituições aderem ao direito comunitário, tornando Textos Constitucionais supranacionais, globalizando o direito constitucional, aceitando, em especial, a influência do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Atualmente o maior modelo de Constituição Supranacional se encontra na Europa, com a integração dos Estados-membros a União Europeia. 1.4  Poder constituinte originário Como apontado anteriormente, poder constituinte originário, é o poder, emanado do povo, para desenvolver uma nova Constituição. “Essas noções sobre o poder constituinte originário chegam até nós e inspiram os atributos que se colam a esse ente. Dizem os autores que se trata de um poder que tem na insubordinação a qualquer outro a sua própria natureza; dele se diz ser absolutamente livre, capaz de se expressar pela forma que melhor lhe convier, um poder que se funda sobre si mesmo, onímodo e incontrolável, justamente por ser anterior a toda normação e que abarca todos os demais poderes; um poder permanente e inalienável; um poder que depende apenas da sua eficácia.”[10] A doutrina aponta cinco características dessa forma de poder constituinte: inicial, ilimitado, incondicionado, político e permanente. Dizer que o poder constituinte originário é inicial se dá ao fato de que é por meio dele que se determina como será o ordenamento jurídico de um Estado, essa característica é, normalmente, extremamente ligada a ideia de poder incondicionado, afinal, já que não esta sujeito a nenhum sistema jurídico, mas justamente pretende criar um, tem poder autônomo de guiar essa criação[11]. Em razão do seu caráter ilimitado este mais relacionado na independência do poder constituinte originário elaborar uma nova Constituição sem precisar estar vinculado a Constituição anterior, exemplo clássico, esta na Constituição Federal de 1.988 em razão a Constituição Federal de 1.967. O poder constituinte originário é um poder político justamente por ser um poder pré-jurídico, criando uma nova ordem jurídica, aqui classificado em poder constituinte originário histórico (quando se cria uma Constituição em um Estado novo) e em poder constituinte originário revolucionário (quando ocorre a substituição de uma Constituição em um Estado já existente)[12]. Por fim, a característica de permanência dentro do poder constituinte originário se trata que o mesmo não se esgota com a elaboração de uma nova Constituição[13], ficando sempre disponível ao povo em exercer novamente tal poder, desde que ocorra um momento constituinte oportuno para se valer novamente do poder constituinte originário, em nome do princípio da segurança jurídica. O poder constituinte originário é dividido em formal e material. Poder constituinte formal é a forma propriamente dita do poder constituinte originário, aonde existe um novo Texto Constitucional. Já poder constituinte material, é o poder que atribui as normas que farão parte da Constituição o status de norma constitucional. Ao fim, o poder constituinte originário também é dividido em relação a sua forma de exercício. Quando o poder constituinte originário é atribuído a uma pessoa ou a um grupo que não se trata de um órgão representativo, fala-se que a Constituição é outorgada, v.g., as Constituições Brasileiras de 1.824 e 1.937. Por outro lado, quando o poder constituinte originário é atribuído a uma Assembleia representativa popular, diz que a Constituição é promulgada, nascendo as Constituições votadas. Essas Constituições votadas, podem ser por meio de procedimento constituinte direto – em que ocorre a participação direta do povo por meio de plebiscito e referendo – ou por meio de procedimento constituinte indireto – em que a participação do povo se dá de forma indireta, ou seja, por meio de representante, a exemplo da Constituição Federal de 1.988.  1.5. Poder constituinte derivado O poder constituinte derivado[14] (também descrito como instituído, constituído, secundário ou de segundo grau), criação do poder constituinte originário, é regulamentado na própria Constituição, tendo como finalidade a possibilidade de modificar, dentro dos limites explícitos e implícitos no próprio Texto Constitucional, determinadas normas constitucionais. O poder constituinte derivado apenas é possível nas Constituições consideradas rígidas, ou seja, Constituições que adotam um modelo de procedimento de modificação em suas normas mais complexo, rigoroso do que na elaboração de normas infraconstitucionais. “Os conjuntos de fatores influenciam a adoção desse tipo de Lei Maior. De um lado, a convicção de que as constituições não devem pretender ser imodificáveis – já que isso seria um convite ao recuro fatal das revoluções -; de outro, a impressão de que a vontade do constituinte originário não deve ficar ao alvedrio de caprichos momentâneos ou de maiorias ocasionais no poder”.[15] Possuindo como características ser um poder jurídico, derivado, subordinado e condicionado. Poder jurídico por ser parte de um sistema jurídico já existente, elaborado pelo poder constituinte originário. Derivado por resultar de uma criação do poder constituinte originário, possuindo finalidades quase idênticas (alteração no mundo político-jurídico), porém limitado a apenas modificações no Texto Constitucional. Sua subordinação é ligada com a ideia de ser condicionada, uma vez que o poder constituinte derivado deve obedecer às regras – e com ela, suas limitações e procedimentos – estabelecidas pela própria Constituição, como por exemplo, a atual Constituição Federal de 1.988, determina em seu artigo 60, § 4°, a vedação de modificações das cláusulas pétreas (característica de subordinação), e, ainda em seu artigo 60, nos demais parágrafos o procedimento para aprovação de emenda constitucional (característica de condição). O poder constituinte derivado subdivide-se em reformador e decorrente. O poder constituinte derivado reformador é o modelo mais tradicional, sendo aquele que é exercido para modificar o texto constitucional obedecendo às limitações e procedimentos dispostos no próprio corpo constitucional, por exemplo, como apontado anteriormente, a vedação em modificar cláusulas pétreas. Ele é materializado através de emendas constitucionais[16], apresentados nos artigos 59, inciso I e 60 da Constituição Federal de 1.988. Exigindo o quórum qualificado, com a aprovação da maioria de 3/5 em ambas as Casas do Congresso Nacional em dois turnos de votação em cada uma. Já o poder constituinte derivado decorrente, é o poder-dever que a Constituição Federal atribui aos Estados-membros em se auto-organizarem e regerem constituições estaduais, observando os princípios da Carta Magna, conforme disciplina em seu artigo 25, caput, e, artigo 11, caput, da ADCT[17]. 2. OS LIMITES NO PODER CONSTITUINTE Até o presente momento foi apresentado um esboço sobre o poder constituinte e suas espécies, dando ênfase ao poder constituinte originário e derivado. Como pode se observar, a doutrina majoritária concede ao poder constituinte originário a característica de ilimitado, ao passo que o derivado é limitado. Todavia, como objetivo do presente trabalho, há necessidade de se analisar de forma mais aprofundada tais características atribuídas a ambas as formas de poder constituinte, a qual passasse a expor. 2.1. Limitação ao poder constituinte originário O pensamento majoritário brasileiro é atribuir ao poder constituinte originário a característica de ilimitado. Isso se dá em razão da forte influência do direito positivista ao se estudar sobre essa forma de poder constituinte, pois, caso fosse ainda utilizado as lições iniciais de Seyèrs, perceberíamos que o poder constituinte originário estaria subordinado ao Direito Natural (em especial devido a titularidade da nação), como foi descrito anteriormente. Atualmente o pensamento jusnaturalista não mais influencia significativamente o pensamento jurídico moderno, sendo estudado mais em um sentido histórico, representando assim uma corrente minoritária[18]. Contudo, mesmo assim, não é de se aceitar a imposição juspositivista de ser absoluto o poder constituinte originário. Inicialmente por uma questão política[19], como se sabe, o poder constituinte originário deriva da soberania popular, é o povo que determina a vontade política em se criar uma nova ordem jurídica em um Estado. Caso algum representante do corpo constituinte elabora nova Constituição (mesmo com representando o povo) contrário aos anseios dos subordinados, não há que falar em exercício do poder constituinte originário por excelência. “Por isso, sustenta-se que a Constituição é o normado pela vontade constituinte e, além disso, o que é reconhecido como vinculante pelos submetidos à norma. Sem a força legitimadora do êxito do empreendimento constituinte não há falar em poder constituinte originário, daí não se prescindir de uma concordância da Constituição com as ideias de justiça do povo.”[20] Portanto, defende-se que há possibilidade, assim, de se afirmar que o poder constituinte originário não é ilimitado, possuindo limites, no mínimo, em um ângulo político. Todavia, o objetivo do presente trabalho é analisar a possibilidade de se afirmar a existência de limitação do poder constituinte, em especial em sua forma originária, em decorrência do Direito Internacional dos Direitos Humanos, representados por meio de Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Haveria possibilidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos serem elementos materiais limitadores do poder constituinte originário? “Alguns constitucionalistas fazem a ressalva de que o poder constituinte originário deve ser visto como ilimitado e incondicionado somente no âmbito do ordenamento jurídico pátrio, porque, no plano externo, não estaria legitimado a violar regras mínimas de convivência com outros Estados soberanos, estabelecidas no Direito Internacional. O Direito Internacional funcionaria, pois, como uma limitação ao poder constituinte originário, visto que seria juridicamente inaceitável, contemporaneamente, por exemplo, a elaboração de uma Constituição que contivesse normas frontalmente contrárias às regras internacionais de proteção aos direitos humanos”[21]. Atualmente existe posicionamento em defesa da limitação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos sob o poder constituinte originário, porém, para a melhor aceitação desse posicionamento necessário se faz discorrer melhor sobre o tema. 2.2. Da internacionalização dos Direitos Humanos e uma visão dentro do ordenamento jurídico brasileiro Para analisar melhor a possibilidade de limitação material ao poder constituinte originário pelos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, inicialmente, se faz necessário discorrer breves linhas sobre o processo de internacionalização dos Direitos Humanos que servirá como base para melhor aproveitamento da problemática. A ideia da internacionalização dos Direitos Humanos é decorrente de um processo histórico, em especial, pela desumana experiência que foi a Segunda Guerra Mundial, como também pela crescente uniformização dos sistemas políticos mundiais, adotando o modelo de Estado Democrático de Direito, após o fim da Guerra Fria, e, “a crescente convergência internacional ao redor da ideia de que os direitos humanos consistem em verdadeiros “padrões jurídicos mínimos”[22], que passam a serem aceitas por grande parte de Estados na comunidade internacional. Além desses fatores apontados, dentre outros, cita-se também que o processo de internacionalização dos Direitos Humanos resultou na relativização do princípio da soberania nacional antes sempre vista como absoluta. Com a relativização do princípio da soberania nacional resultou na garantia dos Estados aos indivíduos que estes gozariam de proteção aos diversos direitos previstos em Tratados Internacionais de Direitos Humanos. A necessidade de relativização da soberania se fazia devido ao fato que o sistema de proteção internacional de direitos humanos passou a conceder ao indivíduo o caráter de sujeito internacional, possuindo direitos e obrigações de natureza internacional. Caso ainda se admiti o absolutismo no princípio da soberania nacional, seria impossível responsabilizar um Estado por violação de direitos, previstos internacionalmente, do indivíduo. Tal ideia, de respeito ao indivíduo e relatividade da soberania foi aderido pelo Brasil na Constituição Federal de 1.988 como se observa no artigo 4°, inciso II, a qual disciplina que a República Federativa do Brasil terá suas relações internacionais regidas por determinados princípios, dentre eles o da prevalência dos direitos humanos. Isso “é consequência direta do processo de redemocratização que encerrou o momento histórico vivido entre 1964 e 1985 e que teve como seu principal marco a Constituição de 1988”[23]. Esses trajetos históricos remetem muitos autores a afirmarem que, em razão do processo de internacionalização dos direitos humanos, e a entrada do Brasil ao sistema de proteção internacional aos Direitos Humanos, ampliaram os Tratados Internacionais de Direitos Humanos ao status de direito supralegal. “Quanto à existência de um direito supralegal, este pode ser identificado nos princípios fundamentais que informam toda ordem democrática, qual seja, a dignidade da pessoa humana, compreendida em toda a sua extensão, e o pluralismo político, compreendido como elemento indispensável na configuração de um Estado democrático.”[24] Todavia, o status dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos dentro do ordenamento jurídico brasileiro ainda não é posicionamento pacífico, ainda mais com o acréscimo do artigo 5°, § 3°. Contudo, observa-se que, em razão da posição do Brasil em razão da proteção internacional de Direitos Humanos transforma os Direitos Humanos e até o Direito Internacional de Direitos Humanos não apenas como uma questão jurídica, mas também política. “Assim, de modo a assentar em bases firmes os princípios democráticos que devem nortear a estrutura política dos Estados e preservar sua legitimidade, não pode o poder constituinte, ao elaborar o documento que institucionalizará “o domínio de homens sobre homens”, afastar-se dos direitos da pessoa humana. Significa dizer, que, nos Estados de matriz democrática ou que, ao menos, tenham a consolidação da democracia por objetivo, a estrutura de domínio só resta plenamente justificada quando o poder se institua pela vontade do povo e tenha por finalidade a emancipação humana, por meio, sobretudo, da garantia de acesso àqueles direitos universalmente reconhecidos aos indivíduos.”[25] Feito essas breves considerações, passasse a analisar a possibilidade de limitação material dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ao poder constituinte originário. 2.3. A limitação material dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos sobre o poder constituinte originário Conforme analisado, o Brasil passou a fazer parte do sistema de proteção internacional de Direitos Humanos, ratificando importantes Tratados Internacionais de Direitos Humanos e prevendo em seu Texto Constitucional a prevalência da dignidade humana como formas redemocratização. Trata-se de uma manifestação político-jurídico adotado pelo Brasil. E mesmo, independente da corrente doutrinária adotada sobre o status daqueles Tratados frente ao ordenamento jurídico interno, a ratificação de tais Tratados e os direitos previstos neles serem disciplinados como direitos fundamentais traduzem uma atitude política que muitas vezes esta ligada a vontade popular em determinado momento histórico. Aliás, afirmar-se que até em razão dos Direitos dos Tratados, a adesão de um Tratado por um Estado-membro e seu respeito aos seus termos e até a suas penalidades, transmitem a natureza política internacional do Brasil. Alegar que o poder constituinte originário ainda deve ser visto como ilimitado significa também afirmar que o princípio da soberania nacional ainda é absoluto, contrariando o próprio Texto Constitucional em seu artigo 4°. “Nesses termos, a conclusão é a de que atualmente o Poder Constituinte Originário para a doutrina mais adequada (dotada de maior razoabilidade) não pode ser entendido como algo absoluto, pois ele, sem dúvida, guarda limites internos na própria sociedade que o fez emergir e limites externos em princípios de direito internacional (cânones supranacionais) como os princípios da independência, da autodeterminação e da observância dos direitos humanos”[26]. Tais ideias até então apresentadas representam defesa ao Estado Democrático de Direito, aonde, longe de qualquer forma de arbítrio de poder, a dignidade da pessoa humana é respeitada. “É possível afirmar, deste modo, que os tratados que cuidam da temática dos direitos humanos expressam as necessidades sociais que surgem e se desenvolvem na vida dos homens ao longo do tempo, em âmbito internacional, o que explica a contínua elaboração de novos documentos, abordando não só assuntos inéditos como expressando novas visões sobre matérias mais antigas. E, sendo assim, no momento em que um Estado decide aderir a um determinado tratado internacional que verse sobre direitos humanos, comprometendo-se a adotar, em seu âmbito de jurisdição, certos valores de promoção da pessoa humana que vê m a ser agregados aos que eventualmente já eram reconhecidos pelo mesmo, estabelecido ali um marco que não admitiria supressão, sob pena de um odioso retrocesso, o que se estende também para a hipótese de elaboração de uma nova Constituição, situação em que o poder constituinte originário restaria limitado por aqueles documentos internacionais.”[27] Assim, afirma-se que os Tratados Internacionais de Direitos Humanos são limitações materiais ao poder constituinte originário. Pois, tanto uma figura como outra possuem fins idênticos, a ideia de democratização de um Estado e seus indivíduos, a luta pelo respeito da vontade popular garantindo o direito da dignidade humana em expressão máxima. 2.4. Limitação ao poder constituinte derivado A limitação no poder constituinte derivado é mais fácil de visualizar, uma vez que, sua própria limitação é vista como característica. Conforme apontado anteriormente, o poder constituinte derivado só ocorre nas Constituições classificadas como rígidas. Sua limitação é prevista no próprio Texto Constitucional, sendo que acaso ocorra desobediência aos limites estipulados pela própria norma constitucional, o ato insubordinado fica sujeito ao controle de inconstitucionalidade. Existem dois tipos de poder constituinte derivado: o reformador e o decorrente. A limitação ao poder constituinte derivado reformador – aquele que visa modificar o Texto Constitucional – ocorre em duas hipóteses: material e formal. Inicialmente sobre a limitação formal diz sobre o procedimento de elaboração de emenda constitucional, sendo que, para que ocorra a aprovação deste é necessário o respeito ao artigo 60 da Constituição Federal de 1.988, como, por exemplo, a proibição de emenda constitucional por aqueles não legitimados nos incisos I, II e III; da impossibilidade de emenda na vigência de interferência federal, de estado de defesa ou de estado de sítio (§ 1°), e; a obrigatoriedade de respeito ao quorum qualificado (§2°). A limitação material esta ligado ao conteúdo das emendas constitucionais, sendo que essas não podem apresentar propostas tendentes a abolir os incisos elencados nos incisos do §4° do artigo 60 da Carta Magna, onde se encontram as cláusulas pétreas. Adiante, no poder constituinte derivado decorrente a limitação é encontrada na parte final do artigo 25 da Carta Magna, ao dispor que os Estados devem observar os princípios estabelecidos na Constituição Federal para poderem se organizarem e regerem-se. Por princípios que devem ser observados no poder constituinte derivado, a doutrina estabelece três: princípios constitucionais sensíveis, princípios constitucionais estabelecidos (organizatórios), e, princípios constitucionais extensíveis[28]. Princípios constitucionais sensíveis são aqueles previstos no artigo 34, inciso VII, aliena a-e, do Texto Constitucional, que determinam limitações de atuação dos Estados-membros, autorizando a intervenção federal caso desrespeitados. Princípios constitucionais estabelecidos (organizatórios) são aqueles que limitam o poder de auto-organização dos Estados, podem ser limites expressos (artigo 19, da Constituição) como implícitos. Princípios constitucionais extensíveis (paralelismo, simetria) são regras de organização da União em que os Estados também são obrigados a cumprir, não estão expressos na Constituição Federal. Dentro da limitação material no poder constituinte derivado é relevante discutir se os Tratados Internacionais de Direitos Humanos adentraria como elemento limitador, a qual passasse a expor. 2.5. Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos como limitação material ao poder constituinte derivado Assim como no poder constituinte originário, os Tratados Internacionais de Direitos Humanos não possuem uma aceitação pacífica como limitador material no poder constituinte derivado. Em relação ao poder constituinte derivado reformador, há uma corrente doutrinária, defendida por autores como Flávia Piovesan, que defendem que os Tratados Internacionais de Direitos Humanos devem ser tratados como cláusulas pétreas, isso pela interpretação dada ao § 2°, do artigo 5° da Carta Magna, que trata que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais, e outros doutrinadores, como Valério de Oliveira Mazzuoli pela interpretação dada ao § 3° da mesma norma. “A segunda consequência em se atribuir aos tratados de direitos humanos equivalência às emendas constitucionais, exposta no número 2 visto acima, significa que tais tratados não poderão ser denunciados nem mesmo com Projeto de Denúncia elaborado pelo Congresso Nacional, podendo o Presidente da República ser responsabilizado caso o denuncie (o que não ocorria à égipe em que o § 2°, do art. 5° encerrava sozinho o rol dos direitos e garantias fundamentais do texto constitucional brasileiro). Assim sendo, mesmo que um tratado de direitos humanos preveja expressamente a sua denúncia, esta não poderá ser realizada pelo Presidente da República unilateralmente (como é a prática brasileira atual em matéria de denúncia de tratados internacionais), e nem sequer por meio de Projeto de Denúncia elaborado pelo Congresso Nacional, uma vez que tais tratados equivalem às emendas constitucionais que são (em matéria de direitos humanos) cláusulas pétreas do texto constitucional.”[29] Atualmente esse não é o pensamento predominante, em especial na jurisprudência, uma vez que tal discussão – se os Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos vistos como cláusulas pétreas – é ligada a discussão do status dos Tratados dentro do ordenamento jurídico, vistos hoje, os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, como normas equivalentes a emenda constitucional caso sujeitos ao § 3°, do art. 5°, e, caso não sujeitos a essa norma, adquirem o status supralegal. Todavia, em respeito à posição do Brasil frente a proteção internacional de Direitos Humanos (em especial a leitura ao artigo 1°, inciso III e artigo 4°, inciso II) o melhor posicionamento deve ser visto por aquele adotado por Valério de Oliveira Mazzuoli, conferindo aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos como equivalentes à emendas constitucionais e, por consequente, vistos também como cláusulas pétreas. Por fim, em razão ao poder constituinte derivado decorrente, a qual não apresenta nenhuma dificuldade, caso adota-se o pensamento majoritário atual sobre a hierarquia dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos dentro do ordenamento jurídico brasileiro, ou seja, caso algum Tratado Internacional confronte algum princípio limitador constitucional, dificilmente fará parte do ordenamento jurídico interno, influenciando no poder constituinte derivado decorrente, logo, aceita-se apenas aqueles Tratados Internacionais de Direitos Humanos que estariam de acordo com a Constituição Federal. Porém, adotando o pensamento moderno em que os Tratados Internacionais de Direitos Humanos gozam de status constitucional, o conteúdo destes englobaram o conceito de “princípios constitucionais” que devem ser respeitados no poder constituinte derivado decorrente, ou seja, a obrigatoriedade de respeito a mais em um Estado Democrático de Direito. CONCLUSÃO Não há como negar sobre a grande evolução constitucional que representou a adoção do pensamento do poder constituinte. Porém, no decorrer da história, o pensamento político-jurídico sobre o poder constituinte foi se modificando, sendo que atualmente predomina a ideia juspositivista que o poder constituinte, em sua forma originária, é vista como inicial, ilimitada, política, incondicionada e permanente, abandonando até a influência do Direito Natural que influenciaram na criação desta figura jurídica. Todavia, manter essa característica de ilimitado ao poder constituinte originário já não mais acompanha o atual sistema jurídico mundial. Tema de extrema relevância histórica, os Direitos Humanos passaram por uma fase de expansão significativa após a Segunda Guerra Mundial, passando-se a tratar de internacionalização dos direitos humanos. A ideia de uma divulgação maior da necessidade de adoção do modelo de Estado Democrático de Direito no mundo, em respeito aos indivíduos (vistos agora também em um âmbito internacional) relativizaram diversos posicionamentos anteriormente vistos como absolutos, como por exemplo, o princípio da soberania nacional. Porém, caminhando em sentido contrário, ainda permanece predominante a ideia de que o poder constituinte originário não sofre limitação pelos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, ou seja, não teria como falar sobre garantias de proteção a dignidade humana, ao indivíduo, quando se se elabora uma nova Constituição, levando a questionamentos como se realmente estaria sendo atendido a vontade popular com uma nova ordem jurídica de um Estado. Tal pensamento majoritário se encontra ultrapassado no tempo, pois, vive-se na era do Direito Internacional de Direitos Humanos, onde, existe a influência deste no ordenamento jurídico interno de um Estado, seja ele já constituído ou em fase de criação. Entretanto, percebe-se que existe ainda a necessidade de maiores discussões sobre a existência de limitação ao poder constituinte, em sua forma originária ou não, para que então parte da doutrina perceba que o Brasil a cada momento se insere mais nos meios de proteção internacional aos Direitos Humanos.
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A proteção dos direitos humanos dos povos indígenas à luz do direito internacional dos direitos humanos: A tutela coletiva dos povos indígenas do Brasil pela Defensoria Pública
O presente artigo parte de um apanhado quantitativo da população indígena no Brasil, ressaltando o grande crescimento desses povos e afirmando a necessidade de se garantir a proteção do patrimônio ambiental, territorial e cultural dos povos indígenas. Destaca os avanços dessa proteção em nosso ordenamento jurídico interno com o advento da Constituição Federal de 1988, bem como os avanços obtidos no plano internacional, sobretudo com a aprovação da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que afirmou a natureza coletiva dos direitos dos povos indígenas. Ao fim, destaca o importante papel da Defensoria Pública na proteção dos direitos humanos dos povos indígenas, enquanto instituição incumbida, como expressão e instrumento do regime democrático, da promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, dos direitos individuais e coletivos dos índios, reafirmando a sua legitimidade para a propositura de Ações Civis Públicas versando sobre direitos coletivos indígenas.
Direitos Humanos
Introdução Estima-se que o Brasil é habitado por 305 povos indígenas, falando 274 línguas indígenas, perfazendo um total de cerca de 896.900 pessoas, habitando cerca de 12,5% de todo o território nacional.[1] Tendo por base tais dados, o IBGE revela que a população indígena no país cresceu 205% desde 1991, quando foi feito o primeiro levantamento no modelo atual. “À época, os índios somavam 294 mil. O número chegou a 734 mil no Censo de 2000, 150% de aumento na comparação com 1991. A pesquisa mostra que, dos 896,9 mil índios do país, mais da metade (63,8%) vivem em área rural. A situação é o inverso da de 2000, quando mais da metade estava em área urbana (52%).”[2] Tais números refletem que as previsões sobre o desaparecimento dos povos indígenas estavam equivocadas, sendo bastante significativa a presença indígena no nosso país. Para se ter uma ideia, existem na Amazônia cerca de 405 tribos indígenas, quase 98,61% das terras indígenas do país, isto porque o processo de ocupação agropecuária ocorrido nos territórios do Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste diferencia-se do ocorrido na Amazônia, onde os povos indígenas mantêm seus territórios de origem.[3] A título de exemplo, o Município de São Gabriel da Cachoeira, localizado no noroeste do Amazonas, primeiro lugar entre os que concentram maior população indígena em área urbana e em segundo lugar entre aqueles com maior população em área rural, conta com uma população indígena de aproximadamente 29.017 pessoas, sendo 18.001 indígenas em área rural e 11.016 em área urbana.[4] Ao longo dos séculos, os povos indígenas desenvolveram modos de vida que lhes permitiram viver mantendo o equilíbrio do ecossistema e conheceram um número significativo de variedades de plantas medicinais e frutíferas, representando uma importante sociodiversidade e contribuindo significativamente para a preservação do meio ambiente e da biodiversidade (OLIVEIRA, 2011, p. 139). Dessarte, faz-se necessário garantir a proteção do patrimônio ambiental, territorial e cultural de tais povos como pressuposto para a consolidação de um Estado Democrático de Direito, que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, segundo a nossa Constituição, artigo 1º, inciso III. 1. Direitos Indígenas no ordenamento jurídico brasileiro Em um primeiro momento, os direitos indígenas no Brasil foram regulados pela Lei nº 6.001/73 (Estatuto do Índio), que definiu o desenvolvimento dos indígenas a partir do processo de integração com a sociedade, conforme se vê em seu artigo 1º: “Art. 1º Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.” (grifo nosso) Em que pese o Estatuto do Índio tenha previsto importantes direitos, a política de integração era conflitante com o respeito às peculiaridades inerentes à condição dos indígenas, conflito este que prejudicou os sistemas tradicionais de saúde, educação e sustentação econômica, inclusive no tocante à organização social e autonomia dos povos indígenas (OLIVEIRA, 2011, p. 140). Com a Promulgação da Constituição Federal de 1988, houve uma importante mudança de perspectiva, tendo sido dada nova regulamentação à matéria, especialmente através do artigo 231:  “Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” Desse modo, foi reconhecido aos povos indígenas o direito a continuar vivendo de acordo com sua organização social, usos e costumes, e que suas terras deveriam ser demarcadas e protegidas pela União. Com base no novo texto constitucional, passou-se a redesenhar as políticas públicas nas áreas de saúde, educação e desenvolvimento econômico sustentável, levando em consideração os valores culturais dos povos indígenas (OLIVEIRA, 2011, p. 141). Como forma de garantir tais direitos, o artigo 232 da Constituição assegurou aos índios o acesso à justiça em defesa de seus direitos e interesses, devendo o Ministério Público intervir em todos os atos do processo. A garantia do acesso à justiça aos índios permite o controle de políticas públicas pelo Poder Judiciário, como forma de tornar efetivos os direitos fundamentais de todas as dimensões assegurados às populações indígenas, sendo importante destacar que a nossa Carta Magna não impõe qualquer restrição à tutela coletiva dos direitos indígenas, tendência que se verifica no âmbito do Direito Internacional de Direitos Humanos, especialmente na tutela direitos dos povos indígenas. 2. A proteção internacional aos direitos dos povos indígenas A aplicação dos direitos humanos em relação aos povos indígenas necessariamente deve considerar a organização social, os usos, costumes e tradições dos povos indígenas, bem como a natureza coletiva dos bens que formam seu patrimônio cultural, territorial e ambiental (OLIVEIRA, 2011, p. 144.) A proteção aos direitos humanos dos povos indígenas, além de seus direitos individuais, deve ser realizada de forma coletiva, uma vez que “o reconhecimento com ênfase tradicional sobre os direitos individuais implica em uma proteção inadequada e insatisfatória para os povos indígenas, que possuem características coletivas que são únicas (MACKAY, p. 53.)”. Ocorre que este entendimento foi objeto de resistência por parte de alguns Estados, sobretudo no que se refere ao alcance de um consenso mínimo sobre termos como populações ou povos indígenas, territórios indígenas e livre determinação. Assim, durante as sessões preparatórias à Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em 2002, em Durban, África do Sul, o Reino Unido defendeu que os direitos indígenas fossem abordados como direitos individuais. Entretanto, a decisão consensual daquela Conferência, ao aprovar a Declaração e o Plano de Ação contra o Racismo, reconheceu os direitos coletivos dos povos indígenas. A partir daí, houve um importante avanço no trato da questão dos direitos indígenas. 2.1. A Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas Em 13 de setembro de 2007, após mais de 20 anos de tramitação, foi aprovada a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que consagrou os direitos coletivos desses povos, reconhecendo e reafirmando que tais direitos coletivos são “indispensáveis à sua existência, bem estar e desenvolvimento integral, enquanto povo.” Referida Declaração foi aprovada por 143 países, contando com a adesão do Brasil, com 11 abstenções, dentre estes a Argentina, e apenas quatro votos contrários, entre os quais estão os Estados Unidos da América, Nova Zelândia, Canadá e Austrália. Ressalte-se que o Estado brasileiro, ao posicionar-se favoravelmente à Declaração, manifestou-se no sentido de que o texto adotado pelo Conselho de Direitos Humanos era o mais hábil para lidar com os assuntos em questão e que o exercício dos direitos dos povos indígenas é consistente com a soberania e integridade territorial dos Estados em que residem. Em seu texto, a Declaração aborda tanto direitos individuais como coletivos, tais como os direitos culturais e de identidade, os direitos à educação, saúde e emprego, o direito à língua, entre outros. Dezessete dos 46 artigos da Declaração se referem à cultura indígena e as formas de protegê-la e promovê-la pelo respeito às demandas diretas dos povos indígenas no processo de tomada de decisão. Ademais, reconhece que as pessoas indígenas têm o direito de viver com integridade física e mental, liberdade e segurança, reconhecendo-lhes o direito a não serem forçosamente assimilados ou destituídos de suas culturas. A Declaração também considera a estreita relação dos povos indígenas com o meio ambiente, lembrando que as terras ancestrais dos povos indígenas constituem o fundamento de suas existências coletivas, suas culturas e espiritualidade, a exemplo do que já era reconhecido pela Constituição Federal de 1988. Afirma que os povos indígenas têm o direito a que a diversidade de suas culturas, histórias e anseios sejam adequadamente considerados na educação pública e nos meios de comunicação. A Declaração confirma o direito dos povos indígenas de autodeterminação e reconhece o direito de subsistência e o direito a terras, territórios e recursos, além de estabelecer a obrigação dos Estados de fazer consultas aos povos indígenas antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem, a fim de obter seu consentimento prévio, livre e informado. Essencialmente, a Declaração condena a discriminação contra os povos indígenas, promove a sua efetiva e plena participação em todos os assuntos relacionados a eles, bem como o direito a manter sua identidade cultural e tomar suas próprias decisões quanto às suas maneiras de viver e se desenvolver. Segundo o Secretário-Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, “a adoção da Declaração é um marco na história da ONU, quando os Estados-Membros e os representantes dos povos indígenas conseguiram se reconciliar com seu doloroso passado e se dispuseram a seguir em frente no caminho que leva aos direitos humanos, à justiça e ao desenvolvimento para todos. O Secretário-Geral pede aos governos e à sociedade civil que incluam em suas agendas as questões indígenas para que o estabelecido na Declaração se transforme, urgentemente, em realidade.”[5] Diante desse panorama de afirmação dos direitos humanos dos povos indígenas, é importante que o Brasil coloque em prática os compromissos defendidos e firmados internacionalmente, dotando-os de máxima efetividade, evitando-se que as disposições da Declaração em exame sejam tidas como meramente programáticas. Nesse aspecto, conforme denuncia André de Carvalho Ramos em sua obra Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional: “A postura atual do Supremo Tribunal Federal vem se mostrando ambígua e incondizente com os compromissos internacionais de adesão à jurisdição internacional de direitos humanos assumidos pelo Brasil: o Brasil ratifica os tratados de direitos humanos, mas não consegue cumprir seus comandos normativos interpretados pelos órgãos internacionais.” (2013, p. 162) Sublinhe-se que apesar de a Declaração da ONU não ter natureza jurídica própria de Tratado Internacional de Direitos Humanos e, consequentemente, não ter força vinculante, deve ser reconhecida como reflexo de norma de costumes internacionais de proteção dos direitos humanos dos povos indígenas e, ainda, elemento de interpretação dos demais documentos internacionais de proteção a tais direitos. 3. O papel da Defensoria Pública na tutela coletiva dos direitos dos povos indígenas Tomando por base as premissas estabelecidas no presente trabalho, dentre as quais a importância dos povos indígenas para a formação da identidade cultural brasileira, do reconhecimento dos direitos individuais e coletivos assegurados pelo sistema jurídico nacional e internacional e a necessidade de tornar efetivos tais direitos, verifica-se que a Defensoria Pública tem um papel fundamental na efetivação dos direitos dos povos indígenas, enquanto instituição incumbida, como expressão e instrumento do regime democrático, da promoção dos direitos humanos, conforme as alterações promovidas pela Lei Complementar nº 132/09, que modificou amplamente a Lei Complementar nº 80/94 (Lei Orgânica nacional da Defensoria Pública). A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 134, dispõe que “a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV)”. Assim, conforme sustenta José Augusto Garcia de Souza, a Defensoria Pública está constitucionalmente assentada em cláusulas generosamente abertas, como essencial, necessitados, assistência jurídica integral, de modo que não se sustenta mais a percepção individualista dessa instituição e de suas funções. Além disso, a Defensoria Pública tem legitimidade para a propositura de ações civis públicas, estando tal legitimidade positivada no artigo 5º, II, da Lei nº 7.347/1985, bem como no artigo 4º, X, da Lei Complementar nº 80/94, não havendo dúvida alguma quanto à constitucionalidade de tal legitimação, em que pese a insurgência da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP) contra tal fato, que moveu Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3943, atacando a legitimidade da Defensoria Pública, certamente esquecida do artigo 129, § 1º, da Constituição Federal: “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; § 1º – A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei.” (grifo nosso) Desse modo, estando assegurado que os direitos coletivos dos povos indígenas são indispensáveis à sua existência, bem estar e desenvolvimento integral, enquanto povo, forçoso reconhecer que a Defensoria Pública tem como função institucional a defesa coletiva dos direitos dos índios, podendo propor Ações Civis Públicas para exigir do poder público políticas públicas que garantam a efetividade dos direitos das populações indígenas. Somado a isso, a defensoria tem o dever legal de promover a conscientização dos direitos humanos dos povos indígenas, sendo a realização de audiências públicas um grande instrumento de cumprimento desse mister.  Outrossim, a Defensoria tem legitimidade para representar aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, postulando perante seus órgãos. Em que pese pareçam óbvias tais afirmações, por estarem expressamente previstas nos incisos do artigo 4º da Lei Complementar nº 80/94, ainda hoje são proferidas decisões negando a legitimidade da atuação coletiva da Defensoria Pública, impedindo a ampliação do acesso à justiça, a pretexto de adotar um critério puramente econômico para dizer quem é o “necessitado” do 5º, LXXIV, da Constituição.  Entretanto, além da sua função típica de defesa dos economicamente necessitados, a Lei Orgânica nacional da Defensoria, prevê funções atípicas, de promoção da defesa de direitos dos hipossuficientes em geral, sejam eles necessitados organizacionais, informacionais, minorias étnicas ou quaisquer minorias, tendo como escopo a ampliação do acesso à justiça. A título de exemplo do ranço individualista acima mencionado, serve-nos trecho da decisão do M.M. Juízo da 2ª Vara da Fazenda Pública de São José dos Campos, proferida nos autos do processo número 0009769-96.2013.8.26.0577, em Ação Civil Pública movida pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que pedia a responsabilização da Administração Pública estadual pela ação truculenta da Polícia Militar bandeirante na desocupação da área denominada Pinheirinho, por força de ordem de reintegração de posse exarada pelo M.M. Juízo da 6ª Vara Cível da mesma Comarca: “(…)E o caput do art. 134 da Carta Magna dispõe que a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV. Ou seja, por expressa disposição constitucional, a Defensoria Pública tem legitimação apenas para a defesa dos necessitados. Assim, a legitimidade conferida pela legislação infraconstitucional à Defensoria Pública para a propositura de ações civis públicas para a defesa de direitos difusos – da sociedade como um todo – não prevalece frente à Constituição Federal. Em síntese, a legitimação ativa da Defensoria Pública para a propositura de ações civis públicas está condicionada apenas à defesa dos hipossuficientes, como a jurisprudência deixa claro.” [6] (grifos originais) Data vênia, deve ser superado o ideário individualista aliado a critérios puramente econômicos para a garantia do acesso à justiça, pois, em um Estado Democrático de Direito, deve ser possível a tutela de toda sorte de direitos de um número cada vez maior de indivíduos, sobretudo, dos pertencentes a minorias, dentre os quais os povos indígenas, merecedores de tratamento condizente com a dignidade da pessoa humana. Conclusão Em decorrência do exposto, concluímos que os números referentes à população indígena no Brasil indicam elevado crescimento desta etnia, o que, dentre outros fatores, está relacionado ao tratamento preconizado pela Constituição de 1988, que reconheceu aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, foi aprovada, em 2007, a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que consagrou os direitos coletivos dos povos indígenas, reconhecendo e reafirmando que tais direitos coletivos são indispensáveis à sua existência, bem estar e desenvolvimento integral, enquanto povo. Apesar de a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas não ter força vinculante, deve ser reconhecida como reflexo de norma de costumes internacionais de proteção dos direitos humanos dos povos indígenas e, ainda, elemento de interpretação dos demais documentos internacionais de proteção a tais direitos. O Brasil deve colocar em prática os compromissos defendidos e firmados internacionalmente, dotando-os de máxima efetividade, evitando-se que as disposições da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas sejam tidas como meramente programáticas. A Defensoria Pública tem, dentre suas funções institucionais, o dever de promover os direitos humanos dos povos indígenas, tanto em sua acepção individual como coletiva, conforme preconizado pela Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas; Além disso, deve ser reconhecida a legitimidade da Defensoria Pública para propor Ações Civis Públicas para exigir do poder público políticas públicas que garantam a efetividade dos direitos das populações indígenas. Por fim, entende-se que em um Estado Democrático de Direito, deve ser possível a tutela de toda sorte de direitos de um número cada vez maior de indivíduos, sobretudo, dos pertencentes a minorias, dentre os quais os povos indígenas, merecedores de tratamento condizente com a dignidade da pessoa humana.
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O Direito construído na prática: direitos indígenas na perspectiva sociológica de Rouland, Beck e Deleuze
Já se passaram quatros anos do julgamento do STF pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, mas ainda não podemos dizer que os conflitos ficaram no passado. O presente artigo trata o conflito na discussão do tema pluralismo da sociedade e unicidade da constituição na garantia dos direitos humanos pelo Estado Constitucional sob o risco permanente de uma visão de unidade que não incorpore o policromatismo das identidades constitucionais. Quando garante direitos o Estado é mesmo “benevolente” ou atrás da proteção aos indígenas existe um objetivo principal de alienação desses povos? O texto discute a questão na perspectiva de uma sociedade complexa e contingente[1].
Direitos Humanos
Introdução: Quem não se lembra da repercussão que teve o caso Raposa Serra do Sol, nas telas pelas principais emissoras de televisão e demais fontes de comunicação, mostrando como é difícil mesmo após uma longa evolução dos direitos humanos reconhecermos uma sociedade diversa e democrática, e os indígenas como sujeitos de direito como consta a nossa Constituição. O nosso objetivo principal é discutir a pluralidade do sujeito constitucional na unidade constitucional a partir do caso Raposa Serra do Sol. O presente artigo vem tratar dos conflitos gerados pela demarcação e discutindo a questão dos direitos indígenas presentes na Constituição. Sobre esse mesmo enfoque, colocamos a tese de Norbert Rouland (2004) sobre o direito como mantedor do multiculturalismo e meio de proteção aos povos autóctones. Ao final do trabalho, frisa-se que essa preocupação com os direitos dos indígenas, desenvolvimento e o meio ambiente reflete-se em convergência ao que Ulrich Beck chama de sociedade de risco, fase da modernização reflexiva que traz em suas entranhas a preocupação com os direitos das minorias, e se contrapõe a esse suposto interesse. 1.  O caso Raposa Serra do Sol A terra indígena Raposa Serra do Sol localiza-se no nordeste do estado de Roraima e é uma das maiores áreas indígenas do país. Essa região durante muitos anos foi palco de conflitos em virtude da luta pelas terras entre índios e produtores de arroz. O conflito é anterior ao século XXI, que de acordo com o Ministério da Justiça, o processo de demarcação da reserva começou na década de 70.  Desde 1998 a reserva passou a ser alvo de contestação judicial entre o Estado de Roraima e a União e nesse mesmo ano tem como marco importante a publicação pelo ministério da justiça da Portaria nº 820. Mas foi com a tomada de posição pelo poder executivo que o conflito acirrou em 2005, quando o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva executou a demarcação homologando a Portaria 534. O documento apresenta seis artigos que delimitam a Reserva e excluem delas algumas áreas. Com essa nova configuração passa a abranger as fazendas instaladas em volta da reserva, não respeitando a dimensão territorial original e configurando os fazendeiros como invasores. E o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da portaria, por unanimidade. Em 2007, o STF determinou a desocupação da Reserva indígena Raposa Serra do Sol por parte dos não índios. Esta decisão desagradou muitos grupos locais e se iniciaram conflitos entre índios e não índios, pois segundo os produtores o ato do STF era um desrespeito ao direito de propriedade. Percebemos aqui o papel um pouco complexo do STF, sobre qual a melhor decisão a ser tomada de forma com que nenhum dos direitos sejam violados, mas isso parece impossível. Os proprietários não atenderam a determinação do STF e não se retiraram da área. A edição da Portaria 534 suscitou não apenas ações judiciais, mas, também, fez surgir no Congresso Nacional um movimento contrário à demarcação. Vários Fundamentos jurídicos contrários à legalidade da demarcação da reserva foram utilizados. Em dezembro de 2008, o STF define o caso decidindo pela legalidade da Portaria 534, portanto, pela manutenção da demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol. O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ação popular nº 3388, na qual se contestava a demarcação em forma contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, já tem uma decisão: a favor da demarcação. Podem-se resumir os fundamentos dos votos dos oito ministros que definiram o caso da seguinte forma. Em princípio, todos os ministros afirmaram que a Constituição estabelece que é direito originário dos índios a posse das terras que ocupam. A Constituição Federal prevê tratamento diferenciado aos povos indígenas, com dispositivos específicos de tutela, de forma que os índios brasileiros não precisem recorrer à tutela jurídica estrangeira. Os índios detêm um direito preexistente, histórico, que remonta a períodos anteriores à colonização.  O STF reafirmou a aplicação do artigo 231 da Constituição de 1988, que garante a propriedade aos índios, garantindo assim a proteção dos povos autóctones e da reafirmação das diferenças culturais que compõe a nação brasileira. 2. Rouland e o direito como aparato normativo e antropológico na proteção dos povos autóctones O que somos no Estado democrático de Direito? Essa pergunta nunca foi tão conflitante como neste século XXI. É certo que até chegarmos nesse estágio onde se encontra os Direitos Humanos muito caminho foi percorrido. Indagamo-nos se estamos vivendo uma revolução democrática e no qual o papel dos juristas é fundamental na resolução de conflitos e como reconhecimento do nosso pertencimento na sociedade. Norbert Rouland (2004) em sua obra “Direitos das minorias e dos povos autóctones” nos convida a refletir os direitos humanos como parte desse novo universalismo que se faz necessário detalhar nessa perspectiva do caso Raposa Serra do Sol. Não cabe aqui discutir direitos humanos apenas como ideais capazes de proteger manifestações culturais sem assegurar condições de sobrevivência física e cultural. A sociedade brasileira é formada por diferentes grupos sociais e étnicos, a sobrevivência de uma sociedade multicultural requer dispositivos constitucionais que vão além dos paradigmas individualistas. No caso Raposa Serra do Sol evidencia um conflito de interesses entre os povos indígenas e fazendeiros. É importante salientar que neste trabalho ao falar de direitos indígenas ou dos povos autóctones, inclui-se essa categoria também como minorias. De acordo com Rouland (2004), os autóctones se distinguem das minorias por um vínculo ao território e com a história, como os indígenas e os quilombolas. As minorias são coletividades particulares que sofrem processos de discriminação, desigualdade e exclusão social. Essa categoria incluem negros, indígenas, imigrantes, mulheres, homossexuais, portadores de deficiências, dentre outros. Fábio Comparato (2003) aponta quatro critérios conceituais de natureza objetiva, para o reconhecimento de uma minoria populacional: “O primeiro critério corresponde à existência de diferenças étnicas, religiosas ou linguísticas em relação ao restante da população. O segundo critério classifica em ordem numérica, tais grupos não devem constituir a maioria da população. Em terceiro lugar, a noção de minoria discriminada pressupõe o fato político de que tais grupos não se encontram em situação de poder na sociedade. E em quarto e último critério, a discriminação violadora desse direito humano supõe que discriminadores e discriminados pertencem ao mesmo Estado” (COMPARATO, 2003, pag. 319). Esses critérios objetivos são definidores de uma minoria. Então isso significa que os índios são duplamente marginalizados? A resposta é sim, pois além da luta pelo reconhecimento territorial, a subjetividade é o marco principal das minorias como para os autóctones, seja em quaisquer dos grupos discriminados se manifesta o desejo de preservar sua identidade cultural. O primeiro ponto a se destacar na perspectiva de Rouland (2004) é a atuação do Estado na proteção dos direitos das minorias e dos povos autóctones: “Certos direitos dizem respeito a todos os homens, o que estabelece em toda parte a obrigação do Estado de respeitá-los e permitir seu florescimento” (ROULAND, 2004, pag.10). Rouland (2004) considera que no mundo até o século XX o direito a minoria era inconcebível. A Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (1981) não mencionava o conceito ou nenhuma palavra sobre minorias e muito menos sobre povos autóctones. Os indígenas que até a Constituição Federal de 1988, eram vistos como integrantes da comunhão nacional, ou seja, as características culturais desses grupos estavam inseridas no restante da população. Antes para a sociedade nacional o reconhecimento de terra indígena significava o Estado conceder terras aos índios, depois da Constituição a terra passa a ser um direito dos índios, cabe ao Estado promover a legalização desse direito. A partir desse contexto surge uma questão: Por que tão somente há aproximadamente vinte e cinco anos que a terra é um direito constitucional que reconhece o direito histórico dos indígenas? Segundo Rouland (2004) a cultura é utilizada como justificativa para o desrespeito aos povos autóctones, certos estados persiste em limitá-los. E isso aconteceu durante aproximadamente os quinhentos anos de existência do nosso país, iniciando-se do período colonial e estendendo-se até o século XXI. Mas, apesar desse marco para os povos indígenas no reconhecimento como sujeitos de direitos, isto não significa que o etnocentrismo foi destruído assim como os indígenas foram massacrados pelos europeus. Em pleno século XXI, a luta pelo respeito aos direitos indígenas e dos povos autóctones em geral permanece constante. Sem dúvida, a longa descrição do Julgamento da Petição nº 3388 em Ação Popular evidencia o papel do Supremo Tribunal Federal conjuntamente com o Estado na garantia do território aos índios da tribo Raposa Serra do Sol. A Constituição de 1988 legitima a terra como direito fundamental no seu artigo 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. A Constituição como instrumento material do direito é uma forma de reconhecimento das lutas das minorias e dos povos autóctones, pois reconhece as reivindicações e luta dessas classes. A mesma reconheceu o direito de permanecerem como tais e de manterem sua identidade cultural como povos etnicamente diferentes, o direito de permanecerem sobre as terras que ocupam, destinando-lhes sua posse permanente e o uso exclusivo de suas riquezas naturais. Entretanto, cabe salientar que o direito contido nas normas não é suficiente, principalmente, quando se fala em indígenas. Além do instrumento material normativo, Rouland (2004) considera o Direito como concepção antropológica, resultado de prática e de representações sociais. No caso, percebe-se bem a utilização dessas duas concepções, primeiro a concepção material do Direito, na qual a nossa Constituição foi soberana ao reconhecer em seu artigo 231 a demarcação da terra Raposa Serra do Sol; e a segunda, a concepção antropológica do direito, é percebida nas práticas do STF e da FUNAI, ou seja, o direito como decisão judicial e como política pública foi firmada um entendimento do índio como sujeito constitucional com o direito original e histórico dessas terras, como ocorre com um laudo antropológico elaborado pela FUNAI, que demonstrou a ocupação permanente da área pelas cinco etnias que ali vivem, configurando-se um direito mais policromático nas normas e na prática, nos valores, tradições e crenças como elementos essenciais de respeito e reconhecimento do índio na formação cultural do país. Em parte, é possível correlacionar o referido acima com os argumentos utilizados pelo Ministro Relator Carlos Ayres Britto e também pelos demais ministros que determinaram a demarcação: “Os aspectos sociais e antropológicos: os índios fazem parte essencial da política e cultura brasileira não somente por se tratar um grupo étnico, mas também por representar um segmento da sociedade brasileira. Para esse entendimento foram fundamentais o artigo 231 e 232 que reconhecem os índios como sujeitos de direito; a competência constitucional da União para proteger os indígenas, que iniciara pela declaração da Portaria 534/2005. A Lei Maior brasileira atribui a União à função de proteção dos interesses indígenas, opondo se necessário aos estados e munícipios; e também no que diz respeito a eventual ameaça à integralidade do território brasileiro e à soberania nacional”. Outra argumentação do Ministro Relator que pode ser destacada foi considerar um despropósito falar que o “índio só atrapalha o desenvolvimento” e relacionar a afirmação de que “o desenvolvimento econômico não foi para os povos autóctones sinônimos de progresso. Em muitas regiões do mundo, as necessidades desse desenvolvimento são a causa de sua devastação” (ROULAND, 2004, pag. 21). Com a expansão da Colonização europeia, que se estendeu a todas as partes do Brasil, as terras indígenas representam parcelas menores dos antigos territórios tradicionalmente ocupados. Os conflitos de terras estiveram presentes ao longo do contato histórico entre indígenas e europeus. Para os indígenas, a terra é muito mais do que um meio de produção, representa a fonte cultural, histórica, religiosa, econômica, política, etc. Por isso de acordo com o autor “Para a preservação e a sobrevivência de uma cultura é necessário buscar aparatos jurídicos que permitam a grupos caluniados e colocados pela história em situações de inferioridade definirem suas particularidades” (ROULAND, 2004, pag. 20). Após analisar os principais pontos da perspectiva de Norbert Rouland fazendo comparações convergentes dos ministros da Suprema Corte brasileira não há dúvidas do reconhecimento Constitucional das minorias e dos povos autóctones como sujeitos constitucionais. O caso Raposa Serra foi uma longa luta de conflitos de interesses, enfatiza-se de “interesses”, ou seja, duas partes, de um lado os índios e de outros os fazendeiros.  Então surgem algumas questões que faltam ser respondidas. O Estado de Direito respeitou os interesses assim como os direitos fundamentais dos fazendeiros? Seguindo esse enfoque não seria possível pensar, ou melhor, enquadrar os fazendeiros como maioria ou minoria? O Estado democrático de direito está fundamentado no principio majoritário, segundo o qual prevalece o poder da maioria na escolha de seus representantes e consequentemente na representação dos seus interesses. Entretanto, nem sempre que a vontade da maioria prepondera, pois uma maioria parlamentar pode representar uma minoria dominante. Cabe ao Estado de Direito respeitar o regime democrático e garantias dos direitos fundamentais. Para Habermas (2003), a sociedade se faz com práticas discursivas numa perspectiva de racionalidade comunicativa que por assim se configurar exige, como comunicação, igualdade mesmo que performativa que se estruturam com entendimentos precários, temporários e contextuais, o que leva o projeto iluminista de democracia junto com a maioria a proteção aos interesses das minorias não sejam suprimidos, caso aconteça é legítimo aplicar o princípio Contramajoritário. As considerações acima possibilitam retomar as questões anteriormente levantadas. O Estado de Direito respeitou os direitos fundamentais dos fazendeiros? Não, mas isso não significa uma violação. E a segunda indagação era se os fazendeiros representavam uma maioria ou minoria. É óbvio que os interesses dos fazendeiros dizem respeito a uma maioria. Há um “modelo gaúcho de agricultura”, onde há terras, os colonos vão ocupando e devastando, o que existe são grupos de produtores de grande capital intensivo, integrando o chamado agronegócio. Aqui é relevante a aplicação do principio contramajoritário, de acordo com tal a Constituição é absoluta em relação à vontade de uma maioria que tem por objetivo desrespeitar as minorias. Dessa forma a decisão do STF a favor da demarcação da tribo indígena Raposa Serra do Sol foi importante ao dar um passo à frente juntamente com a atuação do Estado na garantia dos direitos das minorias e dos povos autóctones. Como afirma o autor Norbert Rouland, o “Direito necessita-se de uma visão mais policromática do mundo” (ROULAND, 2004, pag. 19), que só se configura no caso concreto. No Brasil, após cinco séculos, essa decisão resgata uma pequena parcela da dívida que se tem a pagar pela opressão aos povos indígenas e, sobretudo no reconhecimento de sua dignidade como sujeito de direito. 3. Beck e o multiculturalismo como risco É importante frisar que a história da exploração e dizimação dos povos indígenas vem desde a colonização que se utilizou da guerra, da escravidão e da ideologia cristã para violentar a cultura indígena e atacar as suas bases, além disso, os europeus ao chegar ao território brasileiro trouxeram consigo um grande número de doenças do qual os índios não tinham genes de imunidade o que contribuiu ainda mais para a catástrofe demográfica das tribos indígenas do Brasil. Mas, a história do ataque do "cara pálida", o homem branco, à cultura indígena não parou por ai, posteriormente os territórios que abrigavam os sobreviventes do massacre etnocêntrico da colonização foram alcançados pelo extrativismo da borracha, que levou levas de nordestinos, na condição de semiescravos, a invadir os territórios indígenas e com esses entrar em conflito, para enriquecer a elite da borracha, e mais recentemente, nas décadas de 1960 e 1970 as políticas de integração da Amazônia (local de maior concentração de tribos do Brasil), começaram a rasgar sua floresta e adentrar nos territórios indígenas para a construção de vias de ligação como a Transnordestina. É também sobre essa perspectiva que se deve discutir a questão da demarcação de terra no Reserva Raposa Serra do Sol, como uma forma de pagamento pela dívida que temos com os povos indígenas bem como uma forma de proteção a cultura desses povos que já foram tão massacrados ao longo da história e subordinados aos ideais da produção capitalista, mas sobre essa mesma visão refletir sobre as circunstâncias como essa demarcação de terras foi feita e se isso não se constituiu apenas mais uma forma disfarçada do capitalismo de roubar e aculturar, trazendo para debaixo de suas asas a diversidade cultural. Para fazer a análise nesse sentido, deve-se usar o autor Ulrich Beck (1997), que fala que hoje vivemos uma nova forma de modernização, a modernização reflexiva. Para o autor em questão, o capitalismo foi afetado diretamente pela queda do mundo socialista e que aquele, com seu meio de produção exploratório, consumismo exacerbado e emprego das desigualdades vai consumindo suas próprias bases e será vencido não a partir da revolução do proletariado, como acreditava Marx, mas suas estruturas são corroídas pela própria radicalização da modernidade e pelos ganhos da produção. Para Beck (1997), características que pode ser observadas na sociedade atual são as provas do nascimento desse novo tipo de modernização como a ascensão da mulher no mercado de trabalho, a suavização do papel dos sexos na formação familiar, a quebra da ideia de trabalho como laço empregatício (ascensão dos trabalhos autônomos) são alguns exemplos. Ele defende que estamos vivendo a primeira fase dessa modernização reflexiva, que denomina sociedade de risco, onde os riscos sociais, ambientais e jurídicos são trazidos à tona para debate entre os indivíduos. É nesse sentido, que a demarcação de terras na Reserva Raposa Serra do Sol, pode ser considerado um reflexo dessa sociedade de risco, onde o direito das minorias e a preocupação com o desenvolvimento e meio ambiente permeia a sociedade num ambiente de risco permanente. A proteção à minoria e ao meio ambiente afirmada pelo Estado pode significar o risco de vulnerabilizar as fronteiras do Brasil para interesses externos do âmbito do debate para internacionalização da Amazônia, como forma de manter o controle fora do Estado brasileiro sobre aquela região e sobre os índios, prendendo-os na teia de dominação de todos os indivíduos e de controle sobre o multiculturalismo. 4. Deleuze e o controle constitucional do Estado Pensar nessa linha de raciocínio é aliar a tese de Ulrich Beck (1997) sobre a modernização reflexiva e de Deleuze (1992) sobre a sociedade de controle, mesmo esses fazendo parte de correntes diferentes dentro do estudo da sociologia. A sociedade de risco, para Deleuze (1992), vem para substituir a sociedade da disciplina de Foucault, que já não era capaz de controlar a ação da grande massa de indivíduos que permeava todos os meios sociais. Nessa sociedade as pessoas já não são mais reguladas por palavras de ordem, mas se amarram nessa teia de controle para que possam ter acesso a informação e não há mais necessidade de manter o indivíduo confinado pois a forma de contenção é baseada no endividamento. O caso da demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol significa proteção aos direitos dos indígenas, mas também pode se constituir apenas uma forma de localizar aqueles indígenas no mapa, enraizando em todas as áreas o domínio do capitalismo, não deixando nenhum "grão" fora da plantação planejada, adequando todos a essa forma de produção, limitando as diferenças e controlando as "evas daninhas" que podem interferir negativamente na plantação do novo capitalismo posteriormente. Conclusão: Discutir sobre a questão da demarcação de terras da Reserva Raposa Serra do Sol é muito mais do que se preocupar com apenas a proteção ao território indígena daquele povo, é um meio de trazer à mesa a questão do respeito aos direitos das minorias e dos povos autóctones, enfatizando o processo de dominação que sofreram ao longo do tempo, sendo obrigados ao aculturamento e adestração à cultura do "homem branco" e a dificuldade de se aceitar, em ênfase no Brasil, a questão do multiculturalismo. Desse modo, é importante frisar o papel do Estado de Democrático de Direito como regulador das diversas pretensões e conflitos que permeiam a sociedade. Além disso, é importante que se busque analisar de maneira criteriosa o processo de demarcação de terras indígenas, em especial o caso da Reserva Raposa Serra do Sol, procurando analisar se isso se constitui uma verdadeira preocupação com o meio ambiente e com o direito dos povos autóctones ou apenas mais um jogo da política brasileira.
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Direitos indígenas: um instrumental de regulação da relação entre direito, estado e os povos indígenas
Este artigo analisa a invisibilidade sobre os povos indígenas frente ao arcabouço jurídico brasileiro e como os povos indígenas no processo constituinte se tornaram protagonistas nos artigos específicos que concerne aos seus direitos, partindo da abordagem de elementos históricos determinantes que possibilitam a visualização deste cenário tenso, cheio de conflitos e contradições, procurando estabelecer a relação das populações indígenas com o Estado e com a sociedade envolvente, estabelecendo dois marcos legais importantes, o processo Constituinte e a aplicação desta nova norma jurídica, e a legislação internacional, com base na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), trazendo a tona uma visão dos povos indígenas, para além dos livros didáticos e do universo midiático, caminhou-se de uma condição onde há a negação destes enquanto pessoas humanas, à emergência étnica e seu protagonismo na construção de um Estado multicultural.[1]
Direitos Humanos
Introdução Disse certa vez o Sub – Comandante Marcos:[3] “Somos um exército de sonhadores, por isso somos invencíveis.” É com este espírito de um sonho possível, de quem acredita na causa indígena, como uma causa que deveria ser coletiva, que resolvi escrever o presente artigo, objetivando provocar uma discussão jurídica sobre o tema, apresentando a Constituição Federal de 1988 como um elemento divisor de águas na nova forma de pensar a relação com os povos indígenas em nosso território, reconhecendo-os enquanto grupo/etnias diversificadas em sua cultura e como habitantes originais desta terra a que intitulamos de Brasil, logo, detentores de direitos especiais e específicos. A tutela indígena que até então se baseava no mero reconhecimento de sua existência se ampliou para garantia do direito a diferença e a preservação de suas identidades. Através de seu protagonismo os povos indígenas foram demarcando, literalmente, seus espaços. Este arcabouço de informações se constitui em memórias que precisam e merecem ser registradas, reproduzidas e compartilhadas com aqueles que vieram depois ou até mesmo com os que ainda virão e não tiveram a oportunidade de vivenciar esse marco histórico que determinou o passado, o presente e o futuro de comunidades inteiras. Sabe-se que por muito tempo, podia-se comumente perceber nos livros didáticos, e até mesmo na historia brasileira, dizer-se que o índio não foi escravizado, por não se adaptar à organização do trabalho imposta pelos colonizadores, ora, a situação não lhes dava nenhuma condição de preservarem suas terras e assim manter a forma de vida que até então estavam acostumados, diante disso, não lhes restou outra alternativa a não ser tornar sua mão de obra barata, como uma maneira de manter a ligação com seus territórios passando a viver  a mercê da vontade dos fazendeiros uma vez que estes, caso se desagradassem dos serviços prestados poderiam recorrer ao Judiciário alegando que suas terras haviam sido invadidas e possivelmente conseguiam ordem de despejo sob alegação de “esbulho à propriedade privada”, nessa dinâmica imposta pelos ditos “donos” da terra, comunidades inteiras foram despejadas por ordem judicial. O fato é que no decorrer da história nos foi passada uma imagem um tanto quanto destorcida do que realmente fora esse processo de invasão das terras indígenas e, sobretudo a forma de dominação destes povos. Ainda hoje são muitas as dificuldades de compreensão sobre a forma como vivem ou estão organizados, ao invés de se fazer justiça às conquistas dos povos indígenas, ainda preferem tratá-los como maus, preguiçosos, violentos ou romantizados, fora da realidade.  A partir da Constituição Federal de 1988 a situação de desigualdade a qual foram submetidos esses povos começou a ser revista e alguns dos muitos problemas criados nessa época foram atenuados/amenizados (reconhecidos enquanto problemas), ou seja, aquiinaugurou-se um novo paradigma para os povos indígenas do Brasil, que passaram a vivenciar um processo de mobilização pela recuperação de seus territórios tradicionais e pela reafirmação da identidade étnica, em especial dos índios do Nordeste (SOUZA FILHO, 2004, p. 98), devido ao reconhecimento institucional da diversidade étnico-cultural da sociedade brasileira, enquanto direito fundamental.  Para alguns críticos da área a legislação brasileira nunca se preocupou em esclarecer o que significa emancipar-se de uma condição étnica, partindo do principio que: “Até a Constituição de 1988, não se era índio, estava-se índio, como uma criança cujo destino inapelável é tornar-se adulta. A premissa inabalada durante séculos era a de que os índios mais cedo ou mais tarde, deixariam de ser índios para se tornar brasileiros como quaisquer outros” (RAMOS, 1991, p. 04). 1. Povos Indígenas: A formatação histórica de um direito indigenista Estudos afirmam que os povos indígenas no Brasil estão divididos em várias etnias, que se difere entre si por apresentarem culturas, línguas e organizações sociais e políticas específicas. Apesar de algumas peculiaridades, toda esta sociedade indígena possui elementos em comum e um dos mais significativos na história de vida dessas pessoas está relacionado ao longo e difícil processo de exploração econômica, social e cultural vivenciados em contextos históricos diversos.  De acordo com os dados do censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE, 2010) o Brasil contava com uma população de 817.963 indígenas correspondentes a 0,5% do total da população brasileira. Atualmente acredita-se que esses dados oscilaram bastante mostrando um crescimento considerável desta categoria populacional, por exemplo, e apontam dois de fenômenos diferentes. Primeiramente, confirmam uma tendência notória de aumento dos povos indígenas, que, segundo os estudiosos, tem crescido em média 3,5% ao ano, o que corresponde a mais que o dobro da média de 1,6% população brasileira em geral (AZEVEDO, 2000, p. 102). Em um segundo momento poderíamos dizer que, este aumento também está relacionado ao fato de que um número crescente de indivíduos passou a assumir a sua identidade indígena, autoidentificando-se dentro desta categoria, ao invés de se enquadrar na categoria de “pardos”, nesta mesma perspectiva acrescenta SANTOS (2012), “A população indígena atual do Nordeste corresponde a 20,13% da população indígena do Brasil, sendo as regiões Norte e Centro-Oeste as de maior concentração indígena no país com 47,55% e 20,27% respectivamente. Dos Estados do Nordeste, Pernambuco é o de maior contingente populacional indígena, com uma população  de 34.689 índios. É portanto o 4º estado em população indígena, vindo logo após  Amazonas, Mato Grosso do Sul e Roraima. Na composição étnica do Nordeste identifica-se uma diversidade grande de grupos. Trata-se de uma região multicultural. Nesse cenário aparecem também os povos indígenas”.  (SANTOS, 2012, p. 11) Segundo (VERGILIO, 2008, p. 41), a presença de indígenas no Brasil, em termos demográficos, é das menores verificadas no panorama latino-americano, contrastando radicalmente com outros países como Bolívia e Guatemala onde, dependendo dos critérios adotados, a participação indígena, na população total, pode ser destacada ou até mesmo predominante. Esse fato, todavia, está longe de significar que,no Brasil, a relevância política, social e cultural dos povos indígenas seja inexpressiva.                                  Durante o processo de expansão do Estado-Nação brasileiro, tal como este foi concebido, não se admitia a existência de grupos sociais com identidades e culturas próprias. Nada de específico poderia haver, todos deveriam, mesmo que forçosamente, assimilar e viver segundo uma só identidade genérica, integrados à comunhão nacional, como se toda a diferença étnica e cultural deixasse de existir e se transformasse numa única cultura homogeneizada (PACHECO, 2004, p. 35). Ora, aqui percebemos claramente o quanto e em que proporção foi estimulado o processo de integração dos múltiplos sistemas culturais e legais sob o fundamento da igualdade de todos os indivíduos perante um bem comum ou uma legislação comum.  Nesse processo, a história nos dá conta de que se ensaiava um discurso de proteção aos direitos indígenas que se repetiriam em inúmeras leis, cartas, decretos e alvarás, durante todo o período colonial, monárquico e republicano, situação que somente começaria a mudar com a Constituição de 1988, passando-se do plano teórico à efetivação dos direitos indígenas. Essa proteção era retórica, porque, mesmo com algumas legislações conferindo direitos territoriais aos indígenas, estas não tiveram efetiva aplicação (PACHECO, 2004, p. 47). Dessa forma, aos poucos, foram-se construindo institutos jurídicos que puderam enquadrar as populações indígenas distribuídas pelo território historicamente denominado brasileiro. Percebe-se que, ao longo dos anos, as políticas exercidas, tanto pelo SPI (Serviço de Proteção ao Indio) quanto pela Fundação Nacional do Índio, não consideraram o aumento da população indígena, suas formas de reprodução social e modos adaptativos aos diversos ambientes. Já no início do século XX, com a República, o Brasil passa a ter uma ação governamental protecionista, embasada em um pretexto assistencialista, que passa a apresentar restrições aos direitos civis dos indígenas (VERGÍLIO, 2008, p.14). É o que se observa do Código Civil de 1916, que equiparava os indígenas aos menores de idade (entre 16 e 21 anos), ao determinar que aqueles denominados silvícolas eram classificados como relativamente incapazes para realizarem certos atos da vida civil (CC de 1916, art. 6) e estavam, portanto, sujeitos a um regime tutelar. 2. O Lugar do Indio no Processo Constituinte Em 1985 no início do governo Sarney, havia toda uma mobilização política para se constituir uma Assembleia Nacional Constituinte, estavam desenvolvendo o projeto calha norte, e havia muito segredo destes projeto, e de outros que estavam em curso de olho na exploração mineral em terras indígenas. Neste período, o CIMI (Conselho Indigenista Missionário) descobriu e denunciou que o governo da nova republica era continuidade das forças militarista, com isso a entidade delimitou de forma radical sua postura em defesa da causa indígena e foi para frente de uma batalha que tem seus altos e baixos, porém continua acesa. O Estado por outro lado, reintera a perseguição a essa instituição, e a todos os seguimentos que buscaram apoiar a causa indígena, se aliando a essa entidade da Igreja Católica.  Muitos foram os fatos que envolviam agentes indigenistas, a exemplo de abordagens em estradas e até nos barcos no rio negro, exatamente por volta de 1985 e 1986, os agentes do CIMI, Francisco Loebens e Felisberto, foram presos no rio negro e foram escoltados e levados a detenção, por estarem invadindo terras indígenas, esses episódios marcaram um momento forte dentro da entidade e nas aldeias, já se aproximava a convocação para a constituinte, e o CIMI como órgão anexo á CNBB (Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil) constitui aliança com importantes dirigentes da Igreja e com um grupo de antropólogos indigenistas, onde adotaram a metodologia e a estratégia de mobilizar os povos indígenas a refletirem sobre suas cidadanias dentro do Brasil. A reflexão parte do questionamento: Qual é o lugar do índio? E os indígenas chegaram inclusive a cogitarem candidaturas próprias, mas isso não vingou de forma alguma, porém as articulações estaduais, as assembleias indígenas e as articulações políticas em todas as frentes surtiram efeitos bastante positivos, no que se referia a consolidação de um arcabouço jurídico consistente para a defesa dos povos indígenas. No livro Povos Indígenas e a Constituinte 1987 – 1988, publicado em 2008 de autoria da Drª Rosane Lacerda, advogada assessora da referida entidade, revela que os indígenas em seus trabalhos juntos aos Constituintes, expressavam as agruras de suas comunidades, de suas aldeias e de suas regiões e não poupavam esforços para que a ANC (Assembléia Nacional Constituinte), não desse apoio as propostas que violavam seus direitos. Desta forma um dos indígenas representante do povo APURINÂ, Antonio Apurinâ se expressou, “Qual é o nosso destino daqui pra frente? O índio, como um todo, precisa de força política, precisam que os constituintes reconheçam o massacre dos seus antepassados; hoje, precisamos estar atentos para que isso não mais aconteça no futuro. (…) Nós pretendemos impor dentro da constituinte o nosso respeito, do nosso povo índio, na defesa de nossa terra. (…) Nós deveríamos ser mais respeitados, a constituinte deveria nos assegurar isto. Existe uma lei, mas essa lei não é cumprida, que é o Estatuto do Indio. (…) O que nos traz aqui é exatamente isso: é que sejamos respeitados, que as leis sejam cumpridas (…)”. (LACERDA, 2008, p. 62) Isso aconteceu nos embates travados pelos indígenas, e que muita das vezes era motivo de  frustração diante de rejeições a propostas que eram submetidas a ANC. O processo Constituinte teve a duração de quase dois anos, num clima de muita animosidade, tensões das mais diversas, e contradições das mais variadas, porém, havia um diferencial, que determinou e conduziu a Constituição Federal de 88 para um resultado marcante e profundamente progressista, havia mobilização, encontrava-se ONGs (Organizações Não Governamentais), partidos políticos, Igrejas, movimentos sociais, até alguns grupos de empresários neste processo. Eram grupos sedentos por liberdade, havia de se querer liberdade, liberdade está que fora represada durante toda a ditadura militar, e que queria defender posições, sair da invisibilidade histórica, levantando bandeiras de lutas diversas. Esse é o período que marca a catarse de uma sociedade que clamava por liberdade e que podia-se defender temas como: direitos dos negros, liberdade de religião, orientação sexual, reforma agrária, causa indígena, etc. A Constituição Brasileira que foi promulgada em 1988 é inegavelmente, até por quem não gostou do processo, conhecida por Constituição Cidadã, por que ela é consequência de movimentos e contra movimentos, ora avançando e ora retroagindo, podendo ser citado, no caso dos avanços, o debate e uma nova concepção da norma jurídica brasileira a respeito da temática indígena e ambienta, e em caso de retrocesso que em que as elites brasileiras e a Igreja fizeram suas manobras para não haver avanços nas temáticas agrárias e de orientação sexual. Segundo, Iara Pietricovsky (2008), em seu texto, “Constituição de 1988 e os Povos Indígenas – Democracia brasileira” disponível no site do INESC os debates aconteciam de forma muito intensa e acalorada. Por exemplo, no debate sobre Reforma Agrária, houve uma cena de embate emblemática dentro do Salão Verde da Câmara dos Deputados, onde o movimento dos ruralistas e o dos Sem Terra e aliados se posicionaram em blocos, um de frente para o outro, num debate agressivo que quase transformava o local num campo de batalha. Como já dissemos até o presente momento, o espaço do índio garantido na Constituição Federal é, sem sombra de duvidas uma expressão do avanço da sociedade brasileira rumo a efetivação da incansável busca democrática. No que diz respeito ao reconhecimento legítimo e legal dos direitos dos povos indígenas não há como desconsiderar esse marco, uma vez que desde a aprovação da proposta de realização de uma Assembléia Constituinte, em 1985, as organizações indígenas e de apoio a esta causa, além de juristas, articularam-se para debater a questão. Sabe-se que foram produzidas propostas de estudos no campo do Direito Internacional; inovação de leis; todos apresentados ao governo brasileiro por meio do Ministro da Justiça e ao Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais, Afonso Arinos, nomeado na época pelo Presidente da República. Na ocasião, documentos que sintetizavam os anseios e demandas das populações indígenas também foram elaborados e enviados ao Congresso Nacional, além da repercussão de intensa discussão no âmbito da sociedade civil organizada em conjunto com o movimento indígena, juristas, academia e mídia. Dentre muitas discussões pautadas, algumas questões foram incisivas, a exemplo das terras indígenas que nos faz constatar que, passados 25 anos, houve um lento avanço mais que ainda existe parcela importante desses povos destituída de seus direitos. 3. Povos Indígenas: Sujeitos coletivos de direitos e produtores de normas jurídicas próprias Antes mesmo de chegarmos a nova legislação é preciso entender os processos que antecedem ao que resultou a Constituição Federal de 88, se faz necessário dizer que depois de se consolidar o processo de colonização por meio da coerção e violação constante de direitos fundamentais e originários, com o esbulho total das terras dos indígenas pelo império e pelas forças da republica, que sempre normatizaram na direção de uma política indigenista que sempre prezou pela assimilação, integração dos povos indígenas.  Existiu um vácuo tanto na Constituição de 1824 como na Carta Republicana de 1891 onde os direitos dos índios se quer é citado ou reconhecido, apenas na Constituição de 1934, portanto muito recentemente, é que desvela-se artigos que tratam dos interesses dos índios, estabelecendo a tutela desses direitos, em especifico ao respeito a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados (artigo 154). Ficou evidenciado neste caminho jurídico, a intencionalidade de se institucionalizar uma política de integração dos considerados como silvícolas (aqueles que habitavam as selvas, viviam em contato constante com a natureza e distante da sociedade “civilizada”). Desta forma fica estabelecido que o modo de organizar-se, as crenças, costumes destas populações estão fora da comunhão nacional, sendo obrigado para estes povos estabelecerem integração a uma sociedade imposta pelo contato violento ou atraídos por “vantagens” que sempre se traduziram em imposição da sociedade envolvente. Esta visão se perpetuou na legislação que se seguiu até o Estatuto do Índio (Lei n. 6.001/73) que evidencia em seu artigo 1º a defesa e a preservação da cultura das comunidades indígenas, embora se contradiga, na redação que se segue, quando aponta a integração progressiva e harmoniosa à comunhão nacional, como processo irreversível. Embora o Estatuto seja a contradição em seu conjunto jurídico, é nele ainda que os povos encontra sua defesa, nas questões que ainda não se regulamentou na texto da constituição atual, como se observa, “Art. 2° Cumpre à União, aos Estados e aos Municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indiretas, nos limites de sua competência, para a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos”: II – prestar assistência aos índios e às comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional; (…) IV – assegurar aos índios a possibilidade de livre escolha dos seus meios de vida e subsistência; (…) Os povos Indígenas no Brasil, sempre tiveram um tratamento jurídico conectado à concepção de que estes são entraves e/ou penduricalhos que tentam procrastinar o desenvolvimento do país, por sempre se contraporem a forma que o capital se arvora sobre o que ainda lhes restam de suas terras, de sua cultura e consequentemente de suas vidas, tratando-as por vezes de modo preconceituoso sem que haja uma preocupação efetiva com suas necessidades, com o seu “ser diferente” sendo este confundido erroneamente com uma suposta incapacidade de exercício dos seus próprios direitos, característica esta que sempre se fez presente no processo legislativo indigenista. Em 1988 com o advento da Constituição houve o rompimento, em parte, com algumas dessas concepções, uma vez que muitos dos mitos construídos a partir do século XVI a respeito dos indígenas contaminaram de tal forma o pensamento jurídico brasileiro, que ali permanecem até hoje, sendo um dos mais fortes a visão de que os indígenas são incapazes e portanto, sujeitos à tutela, havendo algumas controvérsias elencadas por estudiosos da área.  Este tratamento para com a questão indígena ao invés de garantir direitos têm se mostrado ineficiente e muitas vezes fator de estagnação de acesso aos direitos fundamentais. A legislação indigenista, historicamente sempre esteve ligada a aspectos que pressupunha o extermínio, a integração ou assimilação, como previsto por Darcy Ribeiro, e apenas em 1988, por ocasião da promulgação da Constituição Federal, é que se estabeleceu, ou podemos dizer, que se reconheceu os direitos originários e ampliação de garantias. Estas normas constituem na verdade um novo paradigma para o arcabouço jurídico vigente, evidenciandouma evolução no tratamento jurídico indígena, atingindo este uma nova dimensão, qual seja, o de reconhecimento de direitos originários, assim dispondo, “Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”. Diante disso,o texto em questão põe em evidencia o direito à diferença, reconhecendo a organização social dos povos indígenas, preservando assim o direito de serem e permanecerem como índios, sujeitos de direitos originários e/ou naturais, elemento este considerado primordial e que já estava presente na vida do povo muito antesda instituição do regime normativo proposto pela Constituição atual. Nesta perspectiva, como forma de concretizar e ampliar o nível de reconhecimento de direitos originários, encontra-se em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 2.057/91, o qual preconizando a extinçãoda tutela reducionista apontada pelo Estatuto do Índio prevê a criação de um Estatuto das Sociedades Indígenas,reconhecidas enquanto coletividades diferentes culturalmente devido suas raízes ameríndias,mas detentoras de uma tutela holística (Enfatizando o todo levando em consideração as partes e suas inter-relações), respeitando as devidas peculiaridades, e umas das inovações do novo Estatuto  é o reconhecimento da plena capacidade civil dos índios,como forma de garantir o exercício efetivo de seus direitos. Será esse um dos motivos fortes para o demasiado adiamento da aprovação do novo estatuto? Contudo, percebe-se que o processo objetivado pelo Estado, de erradicação das culturas indígenas, não foi exitoso. Apesar de todos os entraves apresentados, as comunidades têm resistido de forma incansável, até que foram adotadas pela CF de 88 e, a cada dia que passa, têm obtido resultados mais animadores, o pedido de reconhecimento por um modo de vida peculiar, como explica a assessora Jurídica do Núcleo de Direitos Indígenas, em seu artigo intitulado “Direitos Culturais dos Povos Indígenas – Aspectos do seu reconhecimento”, publicado na obra “Os direitos indígenas e a Constituição” a seguir,  “À luz da Constituição em vigor, portanto, os povos indígenas deixaram de ser consideradas culturas em extinção, fadadas à incorporação na assim denominada comunhão nacional, nos moldes do que sempre fora o espírito a reger a legislação brasileira desde o início do processo de colonização em nosso país. Toda a legislação anterior continha referências expressas à integração ou à assimilação inevitável e, por outro lado, desejável dos índios pela sociedade brasileira. A nova mentalidade assegura espaço para uma interação entre os povos e a sociedade envolvente em condições de igualdade, pois que se funda na garantia do direito à diferença”.  (LEITÃO, 1993, p. 228). Como fora dito anteriormente a Constituição Federal foi pioneira em reconhecer tal  diversidade cultural, porém, vale ressaltar que até hoje existem casos de direitos indígenas estabelecidos na mesma Constituição  que não foram sequer aplicados, já que ainda dependem de regulamentação legal. 4. A Relação Jurídica e Estatal com os povos indígenas Embora o Brasil seja signatário de vários acordos internacionais que também regulam e estabelecem a relação do Estado com as populações indígenas, a exemplo da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (é o instrumento internacional vinculante mais antigo que trata especificamente dos direitos dos povos indígenas e tribais no mundo), e da Constituição Brasileira de 88, ainda persiste uma relação clientelista e de tutela com os grupos indígenas e a regulação dos artigos principais que definem os direitos territoriais, são violados constantemente. O Estatuto do Índio, como é conhecido a Lei de 1972, caducou com relação a constituição e sua nova versão que deveria já está pronta,  vive de mesa em mesa, de comissão em comissão, dentro do congresso nacional, ficando cada vez mais a mercê dos interesses do capital com seus representantes no congresso. É comum, o Estado, ao invés de concluir e aprovar o novo Estatuto do Índio, ficar criando o que poderíamos chamar de “legislação separada” que trata de aspectos da vida do indígena e sem estabelecer uma linha sistemática do que está previsto na Constituição Federal 88 e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Nos últimos tempos a criação de uma Portaria pelo Ministério da Justiça e outra pela Advocacia Geral da União, mostram o desrespeito e a falta de compromisso do Estado em regular adequadamente o que poderia se tornar uma legislação indigenista[4] que estabelece um processo de oitiva das comunidades em situações que diz respeito as suas vidas. Este Estado elitista e de inspiração burguesa não compreendera jamais que os povos indígenas devem ter suas autonomias respeitadas e que o direito deles, está intrinsecamente ligado ao primeiro direito que deve-se estabelecer, o direito a vida, mas o estado neodesenvolvimentista, prioriza, o  que sem sombra de dúvidas é a negação deste direito,  o desenvolvimento em detrimento do direito sagrado a vida e não mede esforços para salvaguardar a propriedade individual em detrimento do que o direito a propriedade coletiva, exibindo desta forma que a consagração de um direito indígena é cada dia mais difícil, porém, o direito, é algo constituído a partir de vários elementos e ele pode se estabelecer também a partir da mobilização dos grupos envolvidos. Podemos observar a coragem e a propriedade desse povo ao se expressar sobre os mecanismos para assegurar a garantia de seus direitos, e a ousadia desses povos ao enfrentar as elites, o Estado, os poderes coloniais, em buscarem os seus direitos históricos e demais direitos humanos enquanto direitos étnicos culturais diferenciados, lamentavelmente tem custado à vida de muitas lideranças como afirma SANTOS (2012), “Passados mais de 500 anos desde a invasão/colonização do Brasil, os povos indígenas continuam sendo perseguidos por fazendeiros, posseiros e governos, que tentam apoderar-se das suas terras”. As lideranças indígenas são participes de seu protagonismo e nas suas representações têm ênfase da clareza do que simbolizam como sujeitos de direitos específicos e diferenciados. Assim, cacique Marcos do povo Xucuru dá seu testemunho durante a realização da XX Assembléia do Povo Xucuru[5], do que entende sobre a relação dos povos indígenas com o Estado, “Eu quero dizer que nossa relação com o Estado, sempre foi difícil, mas é necessário nos relacionarmos com os órgãos, e isso é complexo e confuso para alguns ministérios, porque não existe algo bem definido, mas o básico está previsto no Estatudo do Indio, na CF 1988, em convenções internacionais, como a convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e em legislações especificas que tratam de aspectos de nossa vida cotidiana, a exemplo das leis que regulam a educação e a saúde. Sempre é muito conflituoso, e o pior é quando se trata de crimes, ai o bicho pega, o Estado se utiliza muitas vezes das leis para criminalizar nosso povo, nossas lideranças, principalmente quando estamos correndo a traz do nosso direito sagrado a terra.” (Marcos Luidson- Cacique Marcos Xukuru, Pesqueira-PE, 2012. Este pronunciamento reflete um novo tempo, também de contradições, mas expressa um legado de lutas de resistência e são herdeiros de uma nova concepção do acesso ou garantias de direitos, instituído pela Constituição cidadã de 88. Essas lideranças surgem no bojo do processo constituinte, forjadas na luta pela terra e dentro de seus povos enquanto exemplos de lideres que primam pela garantia do direito em suas histórias, assim, eles apontam nas suas práticas uma relação com o Estado. Embora sejam sempre ameaçados por esse Estado clientelista, elitista e eminentemente estruturalista, por questionarem, uma vez que este Estado não atende a multiculturalidade existente, resultando numa certa prontidão por parte dos povos indígenas para questionarem a forma fria e excludente que esse mesmo Estado impõe, forma essa que constitui uma injustiça histórica a essas populações. Portanto essa representatividade do Povo Xucuru é posta aqui, não como único a exercer esse resgate de divida, mas como um exemplo no Nordeste de um povo que vem resistindo ao longo dos últimos 500 anos, diante um intenso processo de criminalização de lideranças, a despeito acrescenta Santos (2004), “Contrariando a lógica do professor Darcy Ribeiro, o profeta de uma legião de seguidores que advogam o desaparecimento em longo prazo dos indígenas nas áreas mais antigas da colonização a exemplo do Nordeste, os povos indígenas em Pernambuco e na Região continuadamente denunciaram a situação de perseguições, violências e desrespeito em que vivem, enfrentaram os latifundiários e invasores dos seus territórios com a omissão ou conivência das autoridades oficiais, exigem do poder público o reconhecimento e o respeito e garantia dos seus direitos históricos: a demarcação de suas terras, uma saúde e educação diferenciada, enfim o respeito as suas formas próprias de organização sócio-cultural”. (SANTOS, 2004 p. 06.) Assim, no tocante ao respeito aos direitos indígenas, o Estado contemporâneo e seu direito sempre negou a possibilidade de convivência, num mesmo território, de sistemas jurídicos diversos, razão pela qual o ente estatal lavrou e impôs normas de forma coercitiva, isto sem prévia consulta aos indígenas, que sãos os mais interessados na questão. Este fato acabou por influenciar o Direito Consuetudinário, ou seja, o direito interno que cada comunidade indígena possui, o direito primeiro, muitos destes influenciados por costumes impregnados pelos antepassados. Seria uma espécie de normas de conduta próprias para o povo sem necessidade de codificação, podemos classifica-lo como o Direito não escrito. Souza Filho (1992, p.20) aponta que, ao mesmo tempo em que a construção do Direito brasileiro manteve como inexistente qualquer manifestação jurídica das sociedades indígenas, foram sendo construídos institutos próprios para eles, cujo conjunto se convencionou chamar de Direito Indigenista.   5. Do Direito a autonomia: Protagonismo dos Povos Indígenas Durante um período considerável muitos indígenas submetidos ao controle dos senhores de engenho ou dos jesuítas procuravam resgatar sua liberdade através de revoltas violentas, outros articulavam complexos movimentos de protesto e resistência. Porém a estratégia mais eficaz a alternativa ao confronto e a submissão residia na fuga coletiva e na reconstituição da sociedade em regiões distantes dos conquistadores, durante o século XVI, muitos agrupamentos abandonaram seu território e foram para áreas longínquas com o objetivo principal de restabelecer a sua autonomia, não nos custa repetir e relembrar o impacto de todo esse processo, sob a história desses povos como observa Santos (2012), “O processo de “ocupação” do território brasileiro, pode-se afirmar, que foi um grande crime contra a humanidade, por que de fato, ocorreu uma invasão territorial, revestida de uma violência perpetrada contra os povos indígenas (povo originário), um verdadeiro banho de sangue, um e etnocídio, uma forma de desterritorialidade pervesa”. (SANTOS, 2012 p.02) É possível também perceber como os indígenas passaram da condição de sujeitos inexistentes, invisíveis a protagonistas do cenário indígena nacional, o que modificou consideravelmente o contexto emque vivem e a sua capacidade de interferir em defesa dos seus próprios interesses e direitos, porém as elites do capital continuam dentro do território forçando-os a continuarem  numa invisibilidade histórica. Os direitos dos povos indígenas, hoje fundamentados na Constituição brasileira de 1988, foram sendo conquistados e amadurecidos no curso de uma história nem sempre justa pra não dizer, nada justa. Este panorama vai sendo pouco a pouco modificado para dar lugar a uma construção coletiva dos direitos indígenas, que gera protagonismo visível e exercido hoje pelos povos indígenas, não por representantes, mas junto a outros setores da sociedade que foram e continuam parceiros na caminhada, buscando mais e mais colocar a lei em prática, sem esquecer a dificuldade ainda existente no que concerne a aplicação fática das garantias jurídicas por parte de órgãos estatais responsáveis pela aplicação dos dispositivos legais. É preponderante o formalismo de nossas instituições e suas respectivas normas. Observa-se que, na prática, o discurso jurídico nem sempre coincide com a diversidade amparada pela Constituição Federal, os direitos específicos estabelecidos pelo o ordenamento jurídico vigente passaram por um longo processo de transformação mais ainda há muito por fazer. Ao atribuir-lhes “direitos especiais” a Constituição discrimina de forma positiva os índios. Não os iguala, simplesmente, aos demais brasileiros, nem omite seus direitos especificos. Para Pascual (2003, p. 39), discriminar positivamente significa assegurar direitos especiais ás minorias diferenciadas, como condição para relações efetivas mais igualitárias com os demais brasileiros, e implementar as políticas compensatórias correspondente. Mesmo diante de um cenário desafiador diz Dom Pedro Casaldáliga: “a causa indígena consiste na maior, mais inveterada dívida que a Nossa América tem; a mais radical dívida, interna mesmo, da entranha do nosso ser e de nossa história”. 6. Considerações A realidade atual aponta para a necessidade urgente de superação de velhos preconceitos, tendo em vista, sobretudo, as experiências de protagonismo dos povos indígenas no Brasil e na América Latina, que resultaram em importantes conquistas na positivação de direitos, seja no plano constitucional, seja no plano dos direitos internacionais a eles reconhecidos. É lamentável e absurdo que em pleno século XXI, os índios ainda sejam vistos como cidadãos não plenamente capazes de determinarem as suas próprias vontades, um órgão de Estado sendo o seu tutor e encarregado de intermediar (autorizando e desautorizando) as inúmeras relações de contato em que já se encontram efetivamente envolvidos. A condição de tutelados cerceia sua livre expressão política, a administração direta dos seus territórios, seu acesso aos serviços públicos, ao mercado de trabalho, às linhas oficiais de crédito. Além de reduzir a capacidade civil dos índios, a tutela é um obstáculo à autogestão das terras e dos projetos para as perspectivas das futuras gerações indígenas. Atualmente, o maior desafio, entorno, dos direitos indígenas não consiste apenas no seu reconhecimento jurídico, mas em sua aplicação no caso concreto, que muitas vezes se mostra lenta e mórbida. Uma das ferramentas que pode orientar sobremaneira essa intervenção é a Convenção 169 da OIT que traz como proposta norteadora abrir o caminho para que os povos indígenas pressionem os governos a implementar seus direitos e até mobilizem outras pressões internacionais. Além de necessária parece ser urgente uma mudança brusca por parte das atitudes do Estado diante da causa indígena. Estado este que estamos o tempo todo reproduzindo ser um país onde há lugar para todos. Então, onde está o lugar dos legítimos donos desta terra? Parece que os fatos não correspondem com o discurso, observemos, “O Estado Brasileiro não tem uma política para as populações indígenas. O Estado brasileiro trata as populações indígenas como inimigos de guerra. Somos remanescentes de um processo de guerra de extermínio, ainda não foi assinado um tratado de paz entre o Estado brasileiro e as populações indígenas”. (LACERDA, 2008. p 192) Sabe-se que um pouco já foi feito, mais o que deve ter claro é que a dívida para com esses povos não cessa por aqui. Os dados estatísticos que parte desde a população resistente até as terras homologadas parecem causar uma sensação de desconforto? Sim, isto é fato, para muitos daqueles que abraçam a causa indígena em algum momento tem-se a impressão de se estar navegando contra a maré, ao perceberem, frente aos interesses do grande capital, do tal “desenvolvimento” econômico e as alianças políticas, que os povos indígenas são o que menos conta, mesmo que à beira do genocídio. Torna-se imprescindível que a sociedade de um modo geral tenha conhecimento da verdadeira situação povos indígenas e também compreendam que esse deve ser um processo irreversível em nosso país. E este é sim um problema de todos.  Continua o desafio do desenvolvimentismo contrariando a vida dos povos indígenas, seja pelo coronelismo, com as suas máscaras recentes ou com os PACs (Programa de Aceleração do Crescimento) que ao atenderem os interesses desse grande capital, estão implementando hidrelétricas e barragens em terras indígenas, novos esbulhos de terras como o caso da terra baú no Pará e o caso recente da hidrelétrica de Belo Monte, o caso do Guarani Kaiwa no Mato Grosso do Sul e anda o caso dos Guarani que vivem nas beiras de estrada no Paraná, todos esses casos, sendo impulsionado, por interesses escusos do capital transnacional  dirigido por corporações que muitas vezes não são visíveis aos olhos da população, no entanto vale salientar a resistência desses povos frente a essas lutas. Isso sim é um instrumental de força inquestionável para esse enfrentamento, força esta que nasce do coração e do chão onde habitaram e habitam esses guerreiros. Na verdade, os indígenas são orientados por uma cosmogonia que também os diferem da lógica cartesiana ocidental que tanto norteia o Estado e a sociedade brasileira. E é essa força religiosa, que mesmo vendo que o Estado não tendo cumprido com o prazo dado pela CF/88 de que todas as terras indígenas seriam demarcadas em 5 anos após a homologação e publicação da Constituinte, eles continuam persistindo e lutando por seus direitos constitucionais de acesso a suas terras tradicionais e as suas formas próprias  de governarem seus territórios que sempre estão em disputa, com o agronegócio, com o PAC, onde se revela a podridão do Capital. É importante ainda, destacar o que o professor Drº Paulo de Bessa Antunes quando se referia aos artigos da Constituição Federal de 88 que trata das terras indígenas afirma, "A Constituição de 1988 não criou novas áreas indígenas. Ao contrário, limitou-se a reconhecer as já existentes. Tal reconhecimento, contudo, não se cingiu às terras indígenas já demarcadas. As áreas demarcadas, evidentemente, não necessitavam do reconhecimento constitucional, pois, ao nível da legislação infraconstitucional, já se encontravam afetadas aos povos indígenas. O que foi feito pela Constituição foi o reconhecimento de situações fáticas, isto é, a Lei Fundamental, independentemente de qualquer norma de menor hierarquia, fixou critérios capazes de possibilitar o reconhecimento jurídico das terras indígenas. Não se criou direito novo. É preciso estar atento ao fato de que as terras indígenas foram pertencentes aos diversos grupos étnicos, em razão da incidência de direito originário, isto é, direito precedente e superior a qualquer outro que, eventualmente, se possa ter constituído sobre o território dos índios. A demarcação das terras tem única e exclusivamente a função de criar uma delimitação espacial da titularidade indígena e de opô-la a terceiros. A demarcação não é constitutiva. Aquilo que constitui o direito indígena sobre as suas terras é a própria presença indígena e a vinculação dos índios à terra, cujo reconhecimento foi efetuado pela Constituição Brasileira." (ANTUNES,1988, p. 02) É através desta compreensão jurídica, agregada a memória histórica, que os grupos conseguem socializar informações transmitir símbolos e valores de suas culturas, com o objetivo de que se perpetre sempre o respeito a diferença e se enalteça o principio da alteridade entre todos os povos.
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A proteção aos direitos humanos no direito brasileiro
O presente trabalho tem por objetivo estudar a evolução dos direitos humanos no direito brasileiro. Abordaremos para tanto alguns conceitos básicos em matéria de direitos humanos, ressaltando a importância da diferenciação terminológica entre direitos humanos e direitos fundamentais, bem como as manifestações e os instrumentos de sua efetiva proteção nas Constituições pátrias até a Constituição de 1988.
Direitos Humanos
1. Introdução: A ideia de direitos humanos tem seu surgimento ligado à necessidade de defesa do cidadão contra as ingerências do Estado, de seus agentes, e também contra os excessos de poder e violações praticadas por entes privados. Com o escopo de atender aos anseios dos cidadãos neste sentido, foi estabelecido um conjunto de valores intangíveis, os quais terminaram por serem manifestados em instrumentos normativos internos, consubstanciados, nos ordenamentos jurídicos contemporâneos, nas Constituições de cada Estado soberano. Tais valores, que no início eram tratados como assuntos domésticos de cada Estado, passaram por um processo de internacionalização, de forma a permitir ingerências externas no plano nacional em prol de sua proteção. Não obstante a grande importância dos mecanismos de proteção próprios da esfera internacional, o presente estudo será voltado à trajetória histórica dos direitos humanos positivados, ou seja, das garantias e direitos fundamentais nas sucessivas ordens constitucionais brasileiras. 2. Conceituação e terminologia: Direitos Humanos e Direitos Fundamentais O termo “direitos humanos” é um dos mais utilizados na cultura jurídica e na política atual, pelos profissionais do direito e pelos cidadãos. Pode-se dizer que é bem próximo da idéia de Direito Natural, presente nos séculos XVII e XVIII, uma vez que, tal qual este, funciona como uma garantia para a dignidade da pessoa humana e de igualdade entre os seres, além de ter a função reguladora da legitimidade dos sistemas políticos e ordenamentos jurídicos. Definir direitos humanos não é tarefa fácil. Contudo, todas as definições convergem para algo que, pela própria nomenclatura, é inerente à natureza do homem. Neste sentido, o relator da Comissão de Direitos Humanos (CES – ONU), Charles Malik, afirmava em 1947, que: “A expressão ‘Direitos do Homem’ refere-se obviamente ao homem, e com ‘direitos’ só se pode designar aquilo que pertence à essência do homem, que não é puramente acidental, que não surge e desaparece com a mudança dos tempos, da moda, do estilo ou do sistema; deve ser algo que pertence ao homem como tal”. [1] Seriam dotados, portanto, dos caracteres da universalidade e da generalidade, a saber, válidos para todos os homens, em todos os tempos. Entretanto, tais características são de difícil realização e a inobservância se justifica em virtude da diversidade cultural. Critica-se, então, essa suposta universalidade, pois ela é baseada em uma ética universal que não existe e abstrai os homens de seu contexto social, olvidando-se que o ser humano se define por sua cultura. À guisa de explicação, os direitos humanos seriam conceituados como os direitos supra-positivos, ou seja, os que não resultam de uma concessão da sociedade política, mas constituem prerrogativas inerentes à condição humana. A princípio, é primordial ressaltar a confusão terminológica e a equivocidade do vocábulo, além do costume dos doutrinadores e dos aplicadores do Direito de utilizarem distintas palavras para expressar o mesmo fenômeno. Aliás, a própria Constituição Federal não foi conseqüente na terminologia, empregando, em vários momentos, expressões distintas como sinônimas, a despeito de consagrar o termo “direitos fundamentais”. É de se ver: a) direitos humanos (art. 4º, II; art. 5º, § 3º; art. 7º do ADCT); b) direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI); c) direitos e liberdades constitucionais (art. 5º, LXXI); d) direitos fundamentais da pessoa humana (art. 17, caput); e) direitos da pessoa humana (art. 34, VII, b); f) direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, IV); g) direito público subjetivo (art. 208, § 1º). Na realidade, cada um dos termos utilizados para designar os direitos essenciais à pessoa humana tem uma conotação diversa, derivada do contexto histórico, sobretudo, dos interesses e das ideologias da época. Por exemplo, as expressões “liberdades fundamentais” e “liberdades públicas” carregam estreitas ligações com as concepções de tradição individualista, abarcando apenas as liberdades individuais clássicas, os chamados “direitos de liberdade”, olvidando-se dos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais. Além dessas, a expressão “direitos morais” mutila a faceta jurídica desses direitos e cumpre a mesma função que “direitos naturais”, remetendo-nos à dicotomia jusnaturalismo e juspositivismo. Não obstante, na busca de uma expressão adequada os doutrinadores, em sua maioria, apontam para os “direitos fundamentais”, instrumentos jurídicos, necessariamente submetidos a determinado ordenamento jurídico. Existem normas de direitos fundamentais, pertencentes a um sistema, que situam os sujeitos titulares desses direitos em uma determinada posição, com satisfação aos critérios de validade formal e material. No entendimento de J. J. Gomes Canotilho, os direitos fundamentais: “Cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)”. [2] Todavia, costuma-se aceitar a utilização das expressões “direitos humanos” e “direitos fundamentais” indistintamente, como sinônimas. Tal posicionamento é comum à maioria dos autores, manifestando-se, neste sentido Ingo Wolfgang Sarlet: “Em que pese sejam ambos os termos (‘direitos humanos’ e ‘direitos fundamentais’) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo ‘direitos fundamentais’ se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional)”.[3] Paulo Bonavides, por sua vez, afirma que razões de vantagem didática recomendam, para maior clareza e precisão, o uso das duas expressões com leve variação de percepção, sendo a fórmula “direitos humanos”, por suas raízes históricas, adotada para se referir aos direitos da pessoa humana antes de sua constitucionalização ou positivação nos ordenamentos nacionais, enquanto “direitos fundamentais” designam os direitos humanos quando trasladados para os espaços normativos.[4] Extrai-se, portanto, a diferenciação entre ambos os termos. Os direitos humanos se identificam com as pretensões morais vinculadas ao indivíduo, que o acompanham independentemente do amparo do ordenamento e os direitos fundamentais, em contrário, são direitos cuja titularidade depende do reconhecimento jurídico dessas pretensões morais, por seu conteúdo e importância, e da articulação efetiva de mecanismos de proteção e garantia. 3. As gerações de direitos fundamentais Como direitos humanos positivados, os direitos fundamentais encontram-se divididos, em virtude da paulatina evolução, em quatro gerações. As três primeiras correspondem ao lema revolucionário do século XVIII, a saber: liberdade, igualdade e fraternidade. Consoante explica Walber de Moura Agra, a doutrina moderna prefere o termo dimensão ao termo geração, pois ele sugere que não existe uma alternância nas prerrogativas, mas uma evolução, contribuindo cada fase anterior na elaboração da fase posterior. A terminologia geração poderia produzir um falso entendimento de que uma geração substituiria a outra, sem uma continuidade temporal entre elas. [5] Esclarece o doutrinador: “As dimensões de direitos são quantitativas e qualitativas. Uma dimensão posterior incorpora direitos da anterior e acrescenta uma nova densidade de prerrogativas aos cidadãos que até então não existia. Não se pode precisar um término para a evolução dos direitos fundamentais. Ela é infinita, consolidada uma dimensão, imediatamente outra começa a se consolidar. Enquanto o ser humano continuar a produzir valores, as suas necessidades a cada dia se avolumarão, sem se poder precisar um final para a saciedade dos interesses humanos”. [6] No mesmo sentido, Ingo Sarlet aduz que: “Num primeiro momento, é de se ressaltarem as fundadas críticas que vêm sendo dirigidas contra o próprio termo “gerações” por parte da doutrina alienígena e nacional. Com efeito, não há como negar que o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementariedade, e não de alternância, de tal sorte que o uso da expressão “gerações” pode ensejar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual há quem prefira o termo “dimensões” dos direitos fundamentais, posição esta que aqui optamos por perfilhar, na esteira da mais moderna doutrina”.[7] Sem embargo das consagradas opiniões, o termo geração ainda é o mais utilizado em matéria de direitos fundamentais, até mesmo porque, tradicionalmente, é reservado ao termo “dimensões” outro significado nesta seara. [8] Assim, a primeira geração dos direitos fundamentais é composta dos direitos de liberdade, os quais abrangem os direitos civis e políticos, igualmente chamados de direitos de resistência, de defesa e direitos negativos. São, em geral, direitos contra o Estado, que deve se abster de certas práticas a fim de preservar a esfera de autonomia privada do cidadão. A gênese dessa geração de direitos foi a resistência (da classe burguesa) contra o Estado opressor, contra os privilégios da realeza, contra o modelo feudal que oprimia a burguesia incipiente. Para a realização dos direitos de primeira geração, bastou o surgimento do Estado de Direito, em que a atuação dos entes estatais deveria ser feita mediante lei, suprimindo a vontade despótica do rei. [9] Correspondem à fase inicial do constitucionalismo e hoje, já concretizados, todas as Constituições democráticas os reconhecem em toda a extensão. Em contraposição, a segunda geração dos direitos fundamentais elenca direitos que exigem atividades do Estado, no sentido de atender às necessidades da população. Leciona Walber Agra: “os direitos de segunda dimensão produzem uma simbiose entre o Estado e a sociedade, propiciando que a igualdade saia da esfera formal e adentre na esfera material, garantindo direitos a todos, principalmente àquela parte da população que é carente de recursos”. [10] Quanto a esses direitos de segunda geração, sintetiza Paulo Bonavides: “São os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado social, depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do século XX. Nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula”. [11] A primeira Constituição que garantiu uma longa lista de direitos sociais foi promulgada no México em 5 de fevereiro de 1917. Posteriormente, também a Constituição de Weimar, em 1919, nascida em um período de profundas perturbações, organizou as bases da democracia social, trazendo em seu bojo uma série de disposições sobre educação e direitos trabalhistas e previdenciários. Como direitos que exigem uma atuação do Estado, os direitos de segunda geração foram remetidos à esfera programática por não conterem, em si, os elementos de sua aplicação, embora, assim como os direitos de fundamentais de liberdade, tenham aplicabilidade imediata. Os direitos de terceira geração são identificados, de forma geral, como sendo o direito à fraternidade (ou solidariedade), abrangendo o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente equilibrado, direito ao patrimônio histórico, artístico e cultural e à autodeterminação dos povos. É possível, entretanto, que haja outros em fase de gestação, típicos de tal dimensão do direito. Pode-se falar na globalização desses direitos, pois eles ultrapassam os limites do país. No âmbito internacional, se manifestam nas relações entre os Estados, para que sejam de cooperação, em que a ajuda dos países mais ricos aos mais pobres seja estimulada. Preceitua Paulo Bonavides: “Com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem se acrescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta. Os publicistas e juristas já os enumeram com familiaridade, assinalando-lhe o caráter fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos anos na esteira da concretização dos direitos fundamentais”. [12] Conforme se depreende dos ensinamentos do multirreferido autor, a titularidade passa a ser difusa, pois o destinatário é o homem em termos de gênero humano. Assim, a responsabilidade para a concretização dos direitos de terceira geração também será coletiva, não mais dependendo apenas da atuação estatal, o cidadão adquire especial participação. É inegável que tais direitos têm sido incorporados nos ordenamentos constitucionais positivos e vigentes de todo o mundo, sendo exemplos a Constituição da República do Chile (art. 19, § 8º), a Constituição republicana da Coréia (art. 35, 1) e a Constituição brasileira (art. 225). Por fim, a quarta e última geração de direitos fundamentais ainda está em fase de construção teórica. Em linhas gerais são os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo e têm por escopo integrar o cidadão nas decisões políticas tomadas pelos entes governamentais, intensificando o grau de democracia. De acordo com Walber Agra: “Nessa evolução dos direitos fundamentais chama atenção o relevo que adquirem a democratização da informação e os mecanismos da democracia participativa. A primeira não se caracteriza apenas pela existência de uma mídia plural, sem nenhum tipo de monopólio, mas deve ser concebida como a obrigação que todos os cidadãos têm de tomar consciência dos graves problemas que afligem a coletividade. Os segundos concebem a cidadania em uma extensão muito superior à do voto, abrangendo a interferência direta do cidadão nas decisões governamentais, mediante vários mecanismos jurídicos, como o plebiscito, o recall, o orçamento participativo etc”. [13] Exemplificando, o mesmo autor cita como direitos de quarta geração: a participação política efetiva, a garantia de institutos da democracia participativa, a liberdade ampla de informação, a pluralidade de informação, o aprimoramento do regime democrático, a manipulação genética, a liberdade de mudança de sexto etc. 4. Desenvolvimento histórico-constitucional: a proteção aos direitos humanos nas Constituições brasileiras A proteção aos direitos humanos no Brasil está vinculada, diretamente, à história das Constituições brasileiras, marcada por avanços e retrocessos. A primeira Constituição do Brasil, a Constituição Imperial de 1824, proclamou os direitos fundamentais nos 35 incisos de seu art. 179. Apesar de outorgada, mostrou-se uma Constituição liberal, elencando direitos semelhantes aos encontrados nos textos constitucionais dos Estados Unidos e da França, pregando a inviolabilidade dos direitos civis e políticos. A efetivação de tais direitos foi prejudicada, contudo, pela criação do Poder Moderador que concedia ao imperador poderes constitucionalmente ilimitados, interferindo no exercício dos demais Poderes.[14] A Constituição Republicana de 1891 manteve, em seu art. 72, composto de 31 parágrafos, os direitos fundamentais especificados na Constituição de 1824. Além disso, no rol de direitos e garantias fundamentais, previu o instituto do habeas corpus, anteriormente garantido tão somente em nível de legislação ordinária, e com a rígida separação entre o Estado e a Igreja houve intensa liberdade de culto a todas as pessoas.[15] Observe-se, também, que houve uma ampliação na titularidade dos direitos fundamentais, pois eles passaram a ser garantidos “a brasileiros e estrangeiros residentes no país” (art. 72, caput), enquanto a Constituição de 1824 os reconhecia somente aos “cidadãos brasileiros” (art. 179).[16] Uma lista de direitos fundamentais, semelhante àquela especificada na Constituição de 1981, pode ser encontrada na Constituição de 1934. Destaque-se importante inovação ocorrida: com a ruptura da concepção liberal do Estado, foram positivados nos textos constitucionais elementos sócio-ideológicos, típicos da segunda dimensão. Foram estatuídas normas de proteção ao trabalhador, tais como a proibição de diferença de salário em razão de sexo, idade, nacionalidade ou estado civil, proibição de trabalho para menores de 14 anos de idade, repouso semanal remunerado, limitação da jornada a 8 horas diárias, estipulação de um salário mínimo, entre outras, e também foram criados os institutos do mandado de segurança e da ação popular (art. 113, incs. 33 e 38). A Constituição de 1937, inspirada na Carta ditatorial polonesa de 1935, instaurando o Estado Novo, reduziu os direitos e garantias individuais, empreendendo a desconstitucionalização do mandado de segurança e da ação popular, os quais foram restaurados e ampliados com a Constituição de 1946, bem como os direitos sociais.[17] Em seguida, a Constituição de 1946 foi derrubada com a ditadura e a próxima Carta, a de 1967, trouxe inúmeros retrocessos, suprimindo a liberdade de publicação, tornando restrito o direito de reunião, estabelecendo foro militar para os civis, mantendo todas as punições e arbitrariedades decretadas pelos Atos Institucionais, etc. No âmbito dos direitos sociais, o constituinte de 1967 continuou retrocedendo: reduziu a idade mínima de permissão para o trabalho para 12 anos, restringiu o direito de greve, acabou com a proibição de diferenciação de salários por motivos de idade e de nacionalidade, recompensando o trabalhador com ínfimas vantagens, como por exemplo, o salário-família. A partir de 17 de outubro de 1969, a Constituição brasileira de 1967 sofreu significativa e substancial reforma, através de emendas aditivas, modificativas e supressivas. Contudo, doutrinadores[18] sustentam que, a rigor, vigorou apenas até 13 de dezembro de 1968, quando foi baixado o Ato Institucional nº 5, o qual repetiu todos os poderes discricionários conferidos ao presidente pelo AI-2 e ainda ampliou a margem de arbítrio, deu ao governo a prerrogativa de confiscar bens e suspendeu a garantia do habeas corpus nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. O AI-5, então, não se coaduna com a doutrina dos direitos humanos, tampouco a Emenda de 1969, que incorporou em seu texto as medidas autoritárias dos Atos Institucionais. Por fim, após enérgica luta do povo brasileiro pela volta ao Estado de Direito, a Constituição brasileira de 1988, conhecida por “Constituição Cidadã”, veio para proteger os direitos do homem, sendo uma das mais avançadas do mundo neste sentido, merecendo destaque em tópico apartado. 5. A Constituição Federal de 1988 Iniciado o processo de redemocratização, depois de 21 anos de regime ditatorial, foi convocada pela Emenda Constitucional n. 26, em 27 de novembro de 1985, a Assembléia Nacional Constituinte, a qual desembocou na promulgação da Constituição brasileira de 1988, propiciando um significativo avanço no que se refere aos direitos e garantias fundamentais, pois pela primeira vez, na história do constitucionalismo pátrio, a matéria foi tratada com a devida relevância.  [19] A sedes materiae é o Título II, que trata “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, regulamentando os direitos individuais, coletivos, sociais e políticos, assim como as respectivas garantias.[20] Não obstante, a Constituição de 1988 refere-se aos direitos fundamentais em diversas partes de seu texto, não se caracterizando pela sistematicidade, exempli gratia, os direitos fundados nas relações econômicas foram insertos nos artigos 170 a 192. Em seu artigo 5º, traz um extenso rol de direitos, preponderando as chamadas liberdades individuais, direitos do cidadão contra o Estado. Ao lado destes, prescreve também direitos coletivos e deveres individuais coletivos. O art. 6º define os direitos sociais a serem concretizados por todos os órgãos estatais. O art. 7º eleva os direitos dos trabalhadores a nível constitucional, o que traz relevantes conseqüências dogmáticas, como a incidência do dever estatal de tutela, sendo que a omissão ou não cumprimento deste dever pelo Estado dá azo a ações constitucionais. [21] Consoante observa Ingo Sarlet, sobre a Constituição de 1988: “A marca do pluralismo se aplica ao título dos direitos fundamentais, do que dá conta a reunião de dispositivos reconhecendo uma grande gama de direitos sociais, ao lado dos clássicos, e de diversos novos direitos de liberdade, direitos políticos, etc. Saliente-se, ainda no que diz com este aspecto, a circunstância de que o Constituinte – a exemplo do que ocorreu com a Constituição Portuguesa – não aderiu nem se restringiu a apenas uma teoria sobre direitos fundamentais, o que teve profundos reflexos na formação do catálogo constitucional destes”. [22] Mais adiante, afirma o autor: “A amplitude do catálogo dos direitos fundamentais, aumentando, de forma sem precedentes, o elenco dos direitos protegidos, é outra característica preponderantemente positiva digna de referência. Apenas para exemplificar, o art. 5º possui 78 incisos, sendo que o art. 7º consagra, em seus 34 incisos, um amplo rol de direitos sociais dos trabalhadores. (…) Neste contexto, cumpre salientar que o catálogo dos direitos fundamentais (Título II da CF) contempla direitos fundamentais das diversas dimensões, demonstrando, além disso, estar em sintonia com a Declaração Universal de 1948, bem assim com os principais pactos internacionais sobre Direitos Humanos, o que também deflui do conteúdo das disposições integrantes do Título I (dos Princípios Fundamentais)”.[23] O constituinte de 1988, ademais, previu uma inovação, ao dispor, no art. 5º, § 2º que “Os direitos e garantias expressos nesta constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte”. Assim, houve uma ampliação do bloco de constitucionalidade[24], cuja intenção foi proteger, in continenti, os direitos humanos, ou seja, além dos que estão escritos no texto constitucional, incluindo-se os direitos decorrentes dos tratados, pactos, cartas, convênios, protocolos, entre outros. 5.1. As cláusulas pétreas Uma das normas mais importantes da Constituição de 1988, dentro da temática dos direitos fundamentais, é a que implantou o sistema das cláusulas pétreas, fixadas no art. 60, § 4º, da Lei Maior. Impõe-se uma restrição material ao Poder Constituinte Reformador, como uma manifestação, nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet, da chamada “eficácia protetiva” dos direitos fundamentais, pois não se permitem alterações na Constituição que desvirtuem o conteúdo desses direitos. Nas palavras do referido autor: “A existência de limites materiais justifica-se, portanto, em face da necessidade de preservar as decisões fundamentais do Constituinte, evitando que uma reforma ampla e ilimitada possa desembocar na destruição da ordem constitucional, de tal sorte que por detrás da previsão destes limites materiais se encontra a tensão dialética e dinâmica que caracteriza a relação entre a necessidade de preservação da Constituição e os reclamos no sentido de sua alteração”. [25] Ademais, logo adiante observa: “Com efeito, se a imutabilidade da Constituição acarreta o risco de uma ruptura da ordem constitucional, em virtude do inevitável aprofundamento do descompasso em relação à realidade social, econômica, política e cultural, a garantia de certos conteúdos essenciais protege a Constituição contra os casuísmos da política e o absolutismo das maiorias (mesmo qualificadas) parlamentares. Os limites à reforma constitucional, de modo especial, os de cunho material, traçam, neste sentido, a distinção entre o desenvolvimento constitucional e a ruptura da ordem constitucional por métodos ilegais (neste caso, inconstitucionais), não tendo, porém, o condão de impedir (mas evitar) a frustração da vontade da Constituição, nem o de proibir o recurso à revolução, podendo, em todo caso, retirar a esta máscara da legalidade”. [26] No mesmo sentido, para Gilmar Mendes, as cláusulas pétreas traduzem, em verdade, um esforço do constituinte para assegurar a integridade da Constituição, obstando que eventuais reformas provoquem a destruição, o enfraquecimento ou impliquem profunda mudança de identidade, pois a Constituição contribui para a continuidade da ordem jurídica fundamental, à medida que impede a efetivação do término do Estado de Direito democrático sob a forma de legalidade. [27] Estando resguardadas contra as reformas constitucionais, para alguns autores, são normas “super-fundamentais”. [28] Não obstante, o legislador constituinte atribuiu o mesmo valor jurídico a todos os direitos fundamentais, preconizando a fundamentalidade formal, ou melhor, preceituando a inexistência de hierarquia entre os direitos estabelecidos na Constituição, quaisquer que sejam. Cumpre esclarecer, entretanto, a imprecisão terminológica do legislador, ao prever no art. 60, § 4º, IV que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir “os direitos e garantias individuais”. Ora, é equivocado apegar-se à literalidade do dispositivo, deixando à margem da proteção outros direitos e garantias que não sejam os individuais. Portanto, a doutrina é uníssona em afirmar que o inciso IV vai além das liberdades públicas clássicas de primeira geração. Desse modo, como explica Uadi Lammêgo Bulos: “(…) o inciso IV cumpre ser concebido como elemento protetor dos direitos e garantias fundamentais. O qualificativo “individuais”, se tomado na sua acepção literal, gramatical ou filológica, gera problemas muito complexos, dentre os quais a própria possibilidade de supressão de garantias intocáveis, sob o argumento de se estar empreendendo correções constitucionais. Acabaríamos esbarrando na tese da dupla revisão, inadmissível, do ponto de vista jurídico. (…) Sendo assim, além das liberdades públicas tradicionais, os direitos sociais, econômicos, coletivos, difusos e individuais homogêneos não poderão ser objeto de emendas tendentes a aboli-los, quiçá, modificá-los, adaptando-lhes a esta ou àquela contingência. Ou se faz uma nova Constituição, ou se cumpre a que já foi promulgada, desde 5 de outubro de 1988, com os seus óbices, imperfeições, atecnias, vícios, virtudes, inovações, avanços e minúcias”. [29] De modo bastante genérico, essas vedações materiais – equivalentes às cláusulas pétreas – já estavam presentes naquelas velhas constituições do século passado. Com a Segunda Grande Guerra Mundial elas proliferaram, em decorrência das mudanças de regime, a exemplo da Alemanha, onde a ordem jurídica se consolidou através da subversão dos processos de reforma constitucional. [30] As cláusulas pétreas, portanto, são universais. Há muito tempo vêm consolidadas nos mais diversos ordenamentos constitucionais, a exemplo das Cartas albanesa de 1925 (art. 141), francesa de 1946 (art. 95), italiana de 1947 (art. 139), grega de 1951 (art. 108) e portuguesa de 1976 (art. 290)[31], e constituem instrumento indispensável à proteção dos direitos e garantias fundamentais e do Estado Democrático de Direito. 5.2. As garantias fundamentais As garantias fundamentais correspondem às disposições que objetivam prevenir ou corrigir violações aos direitos fundamentais protegidos pelo ordenamento jurídico. Observam-se, no corpo da Constituição, normas que enunciam direitos e normas que prescrevem os instrumentos para assegurá-los. Não raras vezes, encontram-se ambas inseridas em um mesmo dispositivo. Aliás, a Constituição de 1988 não separa com exatidão os direitos das garantias fundamentais, elencando-os, indistintamente, em seu Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais). Nesta matéria, a doutrina consagra a lição de Rui Barbosa, segundo o qual é possível distinguir as disposições constitucionais meramente declaratórias, que positivam os direitos e a estes reconhecem existência legal, das de natureza assecuratórias, que protegem os direitos e limitam o poder. [32] No atinente às garantias fundamentais, Uadi Lammêgo Bulos apresenta a seguinte classificação: “1ª) garantias fundamentais gerais: vêm convertidas naquelas normas constitucionais que proíbem os abusos de poder e todas as espécies de violação aos direitos que elas asseguram e procuram tornar efetivos. Consignam técnicas de limitação das arbitrariedades do Poder Público, contra toda e qualquer forma de discriminação à pessoa humana. Esboçam-se através de princípios insculpidos pelo constituinte, eg., princípio da legalidade (art. 5º, II), princípio da liberdade (art. 5º, IV, VI, IX, XIII, XIV, XV, XVI, XVII etc.), princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV), princípio do juiz e do promotor natural (art. XXXVII e LIII), princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV), princípio do contraditório (art. 5º, LV), princípio da publicidade dos atos processuais (arts. 5º, LX e 93, IX) etc. 2ª) garantias fundamentais específicas – são as garantias propriamente ditas, porquanto são estas que instrumentalizam, verdadeiramente, os direitos, fazendo valer o conteúdo e a materialidade das garantias fundamentais gerais. Através das garantias fundamentais específicas os titulares dos direitos encontram a forma, o procedimento, a técnica, o meio de exigir a proteção, incondicional, de suas prerrogativas. Veja-se o exemplo do habeas corpus, do mandado de segurança, do mandado de segurança coletivo, do mandado de injunção, do habeas data, da ação popular, da ação civil pública – lídimos instrumentos de tutela constitucional, concedidos pela constituição aos particulares e, em alguns casos, a uma pluralidade de indivíduos, a fim de terem, ao seu dispor, institutos de natureza processual. Estes, vertidos em normas constitucionais, encarregam-se de manter o respeito e a exigibilidade dos direitos fundamentais do homem. Numa palavra logram o caráter instrumental, propiciando a obtenção de vantagens e benefícios que defluem dos direitos que visam tutelar”.[33] Paulo Bonavides, de outra forma, elucida as chamadas garantias institucionais, definidas como “a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais providos de um componente institucional que os caracteriza”.[34] Como exemplos de garantias institucionais, vide as normas que protegem a propriedade (art. 5º, XXII), a herança (art. 5º, XXX) e o Tribunal do Júri (art. 5º, XXXXVIII). Destarte, feitos os devidos esclarecimentos, restringimo-nos a ilustrar a importante diferenciação entre direitos e garantias fundamentais, sendo estas últimas um meio de proteção àqueles, porquanto uma análise mais apurada das diversas espécies de garantias escapa à finalidade do presente trabalho. 6. Conclusão: Observa-se que desde a primeira constituição brasileira, outorgada em 1824, já havia uma nítida preocupação com a inviolabilidade dos direitos fundamentais. Esta Carta, em que pese não ter sido democraticamente promulgada, proclamou os direitos civis e políticos nos 35 incisos de seu artigo 179. Sem embargo de sua importância como início do amparo a tais direitos no ordenamento jurídico pátrio, somente com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a chamada “Constituição Cidadã”, é que pode se falar em efetiva proteção aos direitos fundamentais no Brasil. Como se vê, a Constituição Federal de 1988, além de arrolar direitos individuais, também elenca vasto rol de direitos coletivos, sociais, direitos de nacionalidade e direitos políticos, os quais podem ser encontrados também fora de seu corpo, define as garantias aptas à proteção de tais direitos e torna-os intangíveis, vedando alterações que reduzam a esfera do cidadão.
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A dignidade da pessoa humana desde a questão social da pobreza como dimensão de direitos humanos no século XXI
No século XXI vivenciamos uma globalização perversa. Sobra comida e riqueza, mas, por falta de solidariedade, há falhas brutais na distribuição. A dimensão da dignidade da pessoa humana desde a questão social da pobreza como nova dimensão dos direitos humanos se traduz numa necessidade do Estado Democrático de Direito que por meio das políticas públicas garanta efetividade aos direitos sociais básicos do cidadão.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO No mundo globalizado as novas tecnologias também têm sido usadas como instrumentos que potencializam o consumo, bem como criam cotidianamente novos valores e padrões de comportamento que banalizam a vida, como, por exemplo, a violência como valores passados pela mídia. Na crença de que é possível um mundo globalizado, em que a informação impulsione não só o capital, mas também a distribuição da riqueza produzida, pelo acesso à justiça, a equidade. Defendemos a dignidade humana como dimensão de direitos humanos fundamentais como mecanismo de luta pela efetividade das políticas públicas de erradicação da fome, da indigência, e contra os preconceitos em suas diferentes formas, pela pluralidade social, étnica, cultural, religiosa. Na construção de um diálogo para um mundo mais equânime e isso inclui o fortalecimento das instituições democráticas, em especial por meio de políticas públicas que tragam a efetividade dos direitos existenciais mínimos, bem como pelo ativismo judicial como acesso à justiça. 1. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA DESDE A QUESTÃO SOCIAL DA POBREZA COMO DIMENSÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO SÉCULO XXI Identificamos no século XXI a preocupação com a dignidade humana como questão relacionada à erradicação da pobreza em suas diversas formas. Essa preocupação é tida como dimensão dos direitos humanos fundamentais diante do dilema a ser superado entre a globalização real e a globalização possível, entendendo-se que esta última consistiria num mundo em que todos pudessem ter vida digna, mediante o acesso ao mínimo existencial: saúde, educação, segurança, alimentação, moradia, renda. E o respeito à pluralidade cultural, social e política. O direito à diversidade de culturas, religiões, modo de ser e agir, e, ao mesmo tempo, o acesso aos bens e serviços que nos faz singulares, no sentido daquilo que nos torna dignos – não, porém, enquanto consumidores, mas como cidadãos. Trata-se do campo da efetividade dos direitos fundamentais e sociais presentes na mais moderna de todas as constituições, a brasileira. Trata-se, pois, de unir a função econômica da globalização econômica com a função social do direito que traga a felicidade e longevidade para todos e não apenas para alguns. A dignidade humana como princípio está expresso nos artigo 1º (inciso III), no artigo 170 (inciso III) e no artigo 226 (inciso VII) da Constituição Federal enquanto estrutura do Estado de Direito, como salienta Jacintho (2006), passando de uma necessidade metafísica e, portanto, transcendental, para uma imprescindibilidade da própria condição humana, enquanto elevado desenvolvimento da própria sociedade no presente. Mais do que a leis, é preciso, por meio dos princípios tendo como fundamento a dignidade humana, que ocorra a efetividade dos direitos, levando-se em conta as assimetrias sociais, a norma e a realidade social. É preciso efetividade para erradicar a pobreza pela concretização dos direitos fundamentais enquanto dialética social do direito. BRANCO (2009), em análise do direito à vida como direito de defesa e dever de proteção, aponta duas acepções do direito à vida: (i) a de impedir que os poderes públicos e outros indivíduos cometam agressão à vida ou cometam atos de alguma forma contrários à existência humana (dimensão negativa) e (ii) a da pretensão jurídica à proteção do direito à vida pelo Estado por meio da criação de serviços de polícia, sistema prisional e organização judiciária (dimensão positiva). O direito à vida, portanto, segundo BRANCO, (2009), não se confunde com a mera liberdade de optar por não viver, haja vista que os poderes públicos têm o dever de proteção à vida mesmo contra a vontade do titular, no caso de haver tentativa de suicídio. O dever de proteção inclui a proteção à vida pelo Estado dos indivíduos que se encontram sob sua tutela ou custódia, cabendo responsabilidade civil mesmo nos casos em que o homicídio não seja imputado ao agente público. Cabe à autoridade pública, sabendo da existência de risco à vida humana (por exemplo, em caso de ameaça), o dever de proteção e, se há omissão dos meios preventivos, há falha do Estado no dever de garantir o direito à vida. Inclui-se, no dever de proteção por parte do Estado, utilizar toda a diligência no sentido de investigar e apurar as suspeitas aos casos de violação ao direito à vida e nos casos de morte não natural. A investigação deve ser a mais ampla, imediata e imparcial possível. Paulo Gustavo Gonet Branco, acima referido, acentua ainda o dever de proteção no caso de extradição, expulsão ou deportação de indivíduos sujeitos à pena de morte, inclusive firmando compromisso formal de comutação da pena para que haja a entrega. (BRANCO, 2009, p. 398-399). No contexto do Estado Moderno, a Lei, como instrumento dos dominantes, insere a ideologia dos direitos humanos e, nessa perspectiva, o que seria uma luta pela dignidade humana das gerações do presente e do futuro acaba por se transformar em instrumento político de cobrança dos países ricos sobre os pobres. Esse parece ser o novo pensamento da ordem mundial, onde os direitos ultrapassam as fronteiras dos países e onde os direitos são repetidamente desrespeitados pelos países centrais na prática de genocídios. Esses “direitos” têm por base a manutenção da dominação dos países ricos sobre os países pobres, em que aqueles decidem os destinos do novo milênio, onde muito se discute, mas os problemas são velhos e continuam sem solução. Nesse sentido, a globalização tem sido muito mais uma via de mão única, em especial no aspecto social, com os países ditos centrais procurando manter seu poder e controle sobre os demais da periferia: “O processo de globalização altera e, sob alguns aspectos, reduz os atributos de soberania dos Estados nacionais. É preciso, porém, considerar as reações destes diante das questões propostas pela própria globalização. Os Estados nacionais posicionam-se diante do processo de globalização conforme interesses de classe que expressam, empregando os meios de pressão e persuasão de que dispõem.” (GORENDER, 1995, p. 98. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0 103-40141995000300007>. Acesso em:  9 nov. 2011). A política belicista dos Estados Unidos da América utiliza do falso discurso democrático e das liberdades para desmantelar ditaduras pelo mundo, tendo capítulo à parte, no pós-11 de setembro, a chamada doutrina Bush de combate ao terrorismo por meio do Patriot Act[1]. Esse mesmo país, no entanto, não respeita os direitos humanos dos países que invade, cometendo genocídios em nome da democracia. Basta lembrar a Guerra do Iraque, em que milhões de vidas de iraquianos foi ceifada por interesses econômicos da indústria bélica e petrolífera dos norte-americanos e de seus aliados, em nome do combate ao “eixo do mal”. Não custa lembrar que, em passado recente, os mesmos norte-americanos financiaram e apoiaram o autoritarismo via regimes ditatoriais na América Latina, numa postura que atenta contra as liberdades públicas. A mesma contradição se encontra no episódio recente em São Paulo em que a Justiça paulista, em nome do legalismo, autorizou a reintegração de posse e o governo do Estado autorizou a retirada à força de mais de oito mil moradores que viviam na comunidade de Pinheirinho, em São José dos Campos, 2004. Ações como essa revelam um modelo de globalização perversa e utilitarista no plano jurídico pela manutenção da visão tradicionalista da propriedade privada em detrimento da sua função social: “Juristas denunciam caso Pinheirinho ao CNJ e à Justiça internacional Um grupo de juristas apresentou nesta semana uma representação ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) com denúncias de abusos no caso da reintegração de posse de Pinheirinho, em São José dos Campos (interior de SP). A área, que pertence ao empresário Naji Nahas, foi desocupada violentamente pela Polícia Militar em janeiro. Na terça-feira (19), o grupo — integrado, entre outros, por Fabio Konder Comparato, Cezar Britto, Celso Antonio Bandeira de Mello e Dalmo Dallari — se reuniu com a ministra corregedora do CNJ, Eliana Calmon, para pedir a apuração de irregularidades na ação do TJ (Tribunal de Justiça) e da PM. […] Para os juristas, houve quebra do pacto federativo já que houve um conflito de competências entre as justiças Estadual e Federal que só poderia ser solucionado pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) e não pela presidência do TJ. Na quinta-feira (21), o grupo enviou para Washington, sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, uma denúncia solicitando indenização e apuração de responsabilidades do Executivo e do Judiciário pela desocupação do Pinheirinho. Caso a comissão acate a denúncia, a representação será julgada pela Corte Internacional de Justiça, como aconteceu no caso da Lei Maria da Penha e da Anistia. ‘Foi um crime de Estado e por isso o Brasil foi denunciado a um órgão internacional de defesa dos direitos humanos’, afirmou o procurador do Estado Marcio Sotelo Felippe, que assina a denúncia e acompanha o caso desde o início”. (Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/ 1109326-juristas-denunciam-caso-pinheirinho-ao-cnj-e-a-justica-internacio nal.shtml>. Acesso em: 30 set. 2012). Todos são cidadãos, mas a lei e a ordem se estabelecem a favor de um lado, dando proteção ao patrimônio individual em detrimento das famílias (que lutam pelo direito a moradia), assegurando, assim, a repressão policial como medida corretiva de dominação. Para além da discussão da regra, é relevante ao exegeta interpretar e criar a norma a partir de bases principiológicas considerando as contradições entre si, e destas com a realidade social, e observar, no sopesamento das posições conflitantes, a melhor adequação levando em conta a dignidade humana, a realidade social, entre outros princípios basilares, numa construção dialética do direito. A visão dialética vem alargar o foco do Direito para além da lei e indica princípios e normas libertadoras, independendo se o Estado é democrático ou autoritário. Eis, portanto, que o direito está num campo de legitimidade para além da pura legalidade. Superando-a para além do sistema fechado e único legitimado em si mesmo. Quanto à própria Constituição Federal de 1988, denominada "cidadã", passados 13 anos da sua promulgação, discute-se ainda a possível efetivação dos direitos sociais para a maioria pobre, como moradia popular, alimentação, saúde, educação de qualidade, renda mínima para a maioria, entre outros direitos fundamentais sociais mínimos. Aliás, falar em pobreza no Brasil é um tema que, para muitos juristas, não diz respeito ao jurídico, mas a outros campos, como sociologia, política. Agem esses juristas como se todas as ciências sociais não estivessem relacionadas e, mais, as políticas públicas passam ainda por leis que possam assegurar a todos o acesso aos bens e serviços públicos, enquanto justiça comutativa, distributiva e social: “Neste século XXI, partimos da consciência de que a supremacia da Constituição e a aplicabilidade direta de suas normas se fundam no princípio da democracia, que a tutela da autonomia da vontade não é suficiente para proteger a dignidade, especialmente em sociedade desiguais como as nossas, e que métodos aparentemente neutros e mecânicos como a subsunção servem a encobrir escolhas valorativas, inevitáveis a qualquer processo de interpretação.” (BODIN DE MORAES, 2008, p. 39). 2. A DIGNIDADE HUMANA E O FORTALECIMENTO DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS: DAS POLÍTICAS PÚBLICAS AO ATIVISMO JUDICIAL Nessa perspectiva da dimensão dos direitos fundamentais, tendo como marco a dignidade da pessoa humana desde a questão social da pobreza, deparamo-nos com o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal enquanto realizador do acesso à justiça próximo da dimensão por nós defendida, em especial nas recentes decisões, que passam pelo sistema de pesos e de contrapesos da democracia a ser efetivada. São decisões que garantem, por outro lado, a segurança e o princípio da reserva legal, alargado para uma análise da ratio legis que leve em conta os demais princípios que norteiam o ordenamento jurídico numa perspectiva neopositivista: “[…] a vagueza e ambigüidade intrínsecas às normas jurídicas não são ampliadas pela utilização dos princípios; ao contrário, é a identificação dos princípios que as justificam que fornecem a segurança jurídica. O papel que os princípios exercem como ratio (razão) em cada interpretação-aplicação jurídica é que garante a coerência entre elas. Necessário o estudo cuidadoso do significado de cada princípio, daí a enorme relevância do art. 93, IX, que determina a fundamentação argumentativa das decisões judiciais.” (BODIN DE MORAES, 2008, p. 40). Moraes (2003), em análise dos artigos 1º ao 5º da Constituição Federal, aponta o direito à vida como o mais fundamental de todos os direitos enquanto dupla acepção: a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de termos uma vida digna com o mínimo de subsistência. Cabe ao Estado a garantia de um nível de vida adequado com a condição humana e valores sociais do trabalho com respeito aos princípios fundamentais da cidadania e da dignidade humana e que permita uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo-se o desenvolvimento de todos pelo combate às desigualdades sociais e regionais e, principalmente, visando à erradicação da pobreza extrema e da marginalidade: “[…] Ao Estado cria-se uma dupla obrigação: – obrigação de cuidado a toda pessoa humana que não disponha de recursos suficientes e que seja incapaz de obtê-los por seus próprios meios; – de efetivação de órgãos competentes públicos ou privados, através de permissões, concessões ou convênios, para a prestação de serviços públicos adequados que pretendam prevenir, diminuir ou extinguir as deficiências existentes para um nível mínimo de vida digna da pessoa humana”. (MORAES, 2003, p. 87-88). A dignidade humana como libertação deve ser entendida como a “igual dignidade social”, nas palavras de Perlingieri (1999): “Os princípios da solidariedade e da igualdade são instrumentos e resultados da atuação da dignidade social do cidadão. Uma das interpretações mais avançadas é aquela que define a noção de igual dignidade social como o instrumento que “confere a cada um o direito ao ‘respeito’ inerente à qualidade de homem, assim como a pretensão de ser colocado em condições idôneas a exercer as próprias aptidões pessoais, assumindo a posição a estas correspondentes” […]”. (PERLIGHIERI, 1999, p. 37). E, nesse sentido, quando se toma a iniciativa de combater a corrupção e de realizar a própria democracia, como no caso do julgamento da Lei de Ficha Limpa, então nos aproximamos do legítimo Estado Democrático de Direito por meio do acesso à justiça mediante a base principiológica de igualdade material, portanto que aponta na dimensão da dimensão da dignidade e de uso de mecanismos indiretos do combate à pobreza. O debate ocorre a partir do ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal, que passa a atuar de maneira brilhante em questões polêmicas, questões a que o Legislativo não tem dado a devida atenção, como no caso do julgamento da Lei da Ficha Limpa para impedir a candidatura em eleições a cidadãos em débito com a Justiça. Trata-se de um avanço na política brasileira: “[…] Lei da Ficha Limpa não deve ser aplicada às Eleições 2010 Por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a Lei Complementar (LC) 135/2010, a chamada Lei da Ficha Limpa, não deve ser aplicada às eleições realizadas em 2010, por desrespeito ao artigo 16 da Constituição Federal, dispositivo que trata da anterioridade da lei eleitoral. Com essa decisão, os ministros estão autorizados a decidir individualmente casos sob sua relatoria, aplicando o artigo 16 da Constituição Federal. A decisão aconteceu no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 633703, que discutiu a constitucionalidade da Lei Complementar 135/2010 e sua aplicação nas eleições de 2010. Por seis votos a cinco, os ministros deram provimento ao recurso de Leonídio Correa Bouças, candidato a deputado estadual em Minas Gerais, que teve seu registro negado com base nessa lei.” (Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe. asp?idConteudo=175082>. Acesso em: 20 maio 2012). O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal tem sido objeto de júbilos num processo exuberante que permite o acesso à justiça por meio de instrumento de combate à corrupção como a Lei de Ficha Limpa nas eleições 2012, a Declaração de Constitucionalidade do Sistema de Cotas nas Universidades Públicas, para alunos da escola pública, entre os quais afrodescendentes. como relevantes instrumentos para o combate a pobreza e dignidade de milhões de brasileiros excluídos dos seus direitos sociais básicos. Portanto, esse processo envolve a realização da justiça comutativa, distributiva e social pela efetivação de políticas inclusivas. Outro avanço histórico foi o reconhecimento da união homoafetiva e, enquanto política legislativa que, pela primeira vez na história, aproxima o Judiciário, em especial a instância máxima do Poder Judiciário, no caso a Suprema Corte, enquanto órgão legítimo e em sintonia com a Constituição Cidadã. “[…] Supremo reconhece união homoafetiva Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgarem a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, reconheceram a união estável para casais do mesmo sexo. As ações foram ajuizadas na Corte, respectivamente, pela Procuradoria-Geral da República e pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. (Disponível em: <http://www.stf.jus.br/ portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178931>. Acesso em: 20 maio 2012). […] STF confirma validade de sistema de cotas em universidade pública Por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou nesta quarta-feira (9) a constitucionalidade do sistema de cotas adotado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE 597285), com repercussão geral, em que um estudante questionava os critérios adotados pela UFRGS para reserva de vagas. A universidade destina 30% das 160 vagas a candidatos egressos de escola pública e a negros que também tenham estudado em escolas públicas (sendo 15% para cada), além de 10 vagas para candidatos indígenas […].” (Disponível em: <http ://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=207003>. Acesso em: 20 maio 2012). Nesse sentido, há de ser destacada a atuação legislativa na interpretação e criação da norma enquanto, mutatis mutandis, reveladora de uma justiça mais próxima da realidade social enquanto justiça social, ou seja, por meio do debate acerca do feto anencéfalo, que tinha como vítima justamente uma mãe pobre, conforme Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54): “[…] Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal, contra os votos dos Senhores Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello que, julgando-a procedente, acrescentavam condições de diagnóstico de anencefalia especificadas pelo Ministro Celso de Mello; e contra os votos dos Senhores Ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso (Presidente), que a julgavam improcedente. Ausentes, justificadamente, os Senhores Ministros Joaquim Barbosa e Dias Toffoli. Plenário, 12.04.2012.” (Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcesso Andamento.asp?inci dente=2226954>. Acesso em:  20 maio 2012). Avanço importante no campo dos direitos humanos na atualidade no Brasil, foi a criação da Comissão Nacional da Verdade como mecanismo de acesso à Justiça. Atende, em especial, à necessidade de preservação da memória de todos aqueles que morreram lutando pela liberdade e pela democracia. Representa, portanto, simbolicamente, a lei 12.528/20011, referente ao direito à memória, ao pluralismo político e de ideias e, em especial, ao resgate à dignidade humana. Configura-se, portanto, em importante instrumento para o conhecimento da verdade para que familiares possam contar e resgatar a história de seus parentes desaparecidos, bem como indenizá-los. E para que possam enterrar seus entes queridos vítimas de torturadores e de assassinos que agiram em nome do Estado. “LEI Nº 12.528, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2011. Art. 1o É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.  Art. 2o  A Comissão Nacional da Verdade, composta de forma pluralista, será integrada por 7 (sete) membros, designados pelo Presidente da República, dentre brasileiros, de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificados com a defesa da democracia e da institucionalidade constitucional, bem como com o respeito aos direitos humanos”. (Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528. htm>. Acesso em: 30 set. 2012). Essa questão da Comissão da Verdade diz respeito à luta pela dignidade não só do passado, mas para gerações do presente e do futuro. A responsabilização do Estado permite o combate à impunidade em especial a violência policial presente como cultura autoritária nos dias de hoje. Não custa lembrar que, historicamente, a violação de direitos humanos está associada às periferias das cidades, portanto é a maior vítima de desmandos de maus policiais, por exemplo, é a população pobre, contra a qual, em nome do Estado, agentes públicos cometem crimes contra a humanidade. Questão relevante por parte do governo federal no combate à impunidade e aos desmandos de governos autoritários, diz respeito à legislação contra os agentes que usam das funções públicas para esconder o acesso à informação necessária à defesa contra abuso de autoridade de governos. Trata-se do Decreto nº 7724, de 16/5/2012, que regulamenta a Lei Federal nº 12.527/2011, que dispõe sobre o acesso à informação pelo cidadão. Trata-se do acesso a informações previsto no inciso XXXIII do caput do artigo 5o, também no inciso II do § 3o do artigo 37 e, enfim, no § 2o do artigo 216 da Constituição: “Art. 1o  Este Decreto regulamenta, no âmbito do Poder Executivo federal, os procedimentos para a garantia do acesso à informação e para a classificação de informações sob restrição de acesso, observados grau e prazo de sigilo, conforme o disposto na Lei no 12.527, de 18 de novembro de 2011, que dispõe sobre o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do caput do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição.  Art. 2o  Os órgãos e as entidades do Poder Executivo federal assegurarão, às pessoas naturais e jurídicas, o direito de acesso à informação, que será proporcionado mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão, observados os princípios da administração pública e as diretrizes previstas na Lei no 12.527, de 2011. Art. 4o  A busca e o fornecimento da informação são gratuitos, ressalvada a cobrança do valor referente ao custo dos serviços e dos materiais utilizados, tais como reprodução de documentos, mídias digitais e postagem.” (Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/Decreto/D77 24.htm>. Acesso em 30 set. 2012). CONCLUSÃO No mundo globalizado em que as corporações mundiais, alimentadas pelo sistema financeiro em crise, ditam as regras do modelo desenvolvimentismo, prevalece o caos e a decadência do modelo industrial fordista-taylorista, bélico, financista e consumista ao extremo. As novas tecnologias alcançam progressos inimagináveis como a impressora 3D entre outras técnicas apuradas da terceira revolução industrial. Por outro lado identificamos massas famélicas, com aumento consideravelmente do desemprego e novas formas de “escravidão” do homem pelas multinacionais das grandes potências mundiais. Reflexos dessa realidade são detectados nos próprios países centrais a partir da lógica da descentralização do trabalho como forma de aumentar o lucro e de explorar as populações e as nações empobrecidas. Há, portanto, no modelo neoliberal em vigor no mundo atual uma má distribuição de bens e serviços entre nações desenvolvidas e em desenvolvimento ou que vivem abaixo da linha da pobreza, numa globalização econômica autoritária e excludente. Essa apropriação imoral se dá, em especial, pelo aumento da exploração e privatização da riqueza entre proprietários dos meios de produção e despossuídos, cidadãos tratados como mero consumidores. O que resulta num aumento do contingente populacional pobre como reflexo da desigualdade social produzida pela lógica cumulativa e consumista, lógica que leva a condições desumanas ou degradantes, como o trabalho análogo à escravidão e a negação do respeito às diferenças sociais e étnicas. Vida digna, na concepção do mínimo existencial, é entendida como direito a alimentação digna, a saúde, a educação de qualidade, a trabalho, a moradia, a liberdade, inclusive de ocupação dos espaços públicos pelo povo, inclusive à população pobre em situação de rua, ou seja, de ser tratado com respeito e dignidade por meio de políticas públicas que garantam o mínimo existencial ao cidadão. O Direito, enquanto ética do humano, envolve a dignidade humana como núcleo estruturante, visando à realização da justiça, por isso o entendimento dessa dimensão no século XXI como direito humano fundamental. A igualdade fundamenta a moderna concepção do direito tendo em vista o campo da legitimidade numa perspectiva neopositivista, observada a axiologia (valores sociais) que rompe com o mero individualismo (ideologia neoliberal) e orienta o comportamento humano à luz da solidariedade. Portanto, a dignidade humana enquanto dimensão dos direitos fundamentais, no século XXI se fará pelo acesso à justiça relacionada com a justa medida (equilíbrio e a proporção), em que todos sejam tratados como cidadãos de fato e de direito e em especial por políticas públicas que visem superar a pobreza, um mundo de oportunidade para todos ricos e pobres. Essa questão passa pelo reconhecimento do outro e fortalecimento das instituições democráticas para o exercício da cidadania plena.
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A auto-atribuição para a identificação dos remanescentes de quilombos e o Decreto 4.887/03
O presente artigo trata da criação do Decreto 4.887/03 que veio para regulamentar o processo de identificação reconhecimento delimitação demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes dos quilombos de que trata o art. 68 do ADCT. Enfatizou-se o critério de auto-definição como um elemento essencial para atender ao direito fundamental à memória das comunidades remanescentes de quilombos.[1]
Direitos Humanos
1 INTRODUÇÃO É inegável a contribuição da cultura africana na brasileira, uma vez que não se consegue retirar do cotidiano do brasileiro vários costumes e modos de viver que encontram sua base cultural no continente africano. Não se consegue pensar em um Brasil sem o samba, a feijoada e a mistura entre as religiões afro. Entretanto, a sua contribuição não se esgota aí, uma vez que foi crucial para a economia e desenvolvimento do país. Nesse sentido, tem-se por mais que necessário, ou seja, é um dever de todos lutar para que essa presença permaneça no cotidiano brasileiro. A importância da afirmação dos direitos dos negros constitui-se em um pilar na luta do resgate de sua cultura, enraizada no Brasil com a vinda dos africanos para servir como mão de obra escrava, inicialmente, nos engenhos de açúcar no Nordeste. Apesar de todo o sofrimento e humilhação vividos pelos negros durante o seu processo de chegada e sua permanência no país, podemos considerar que a sua presença foi crucial para a existência da enorme sincretismo que hoje compõe a cultura brasileira. No contexto de lutas empreendidas pelos negros para poderem conquistar um espaço de afirmação de sua identidade, tem-se a formação dos quilombos, que simbolizaram uma resistência à opressão de seus “senhores”. Ainda, segundo Daniel Sarmento (2010, p. 276), existem hoje mais de três mil comunidades remanescentes de antigos quilombos, o que denota um importante “museu vivo” presente em território nacional. Dessa forma, busca-se demonstrara importância da afirmação identitária pelas próprias comunidades. Após 100 anos de silêncio do legislador, uma grande conquista realizada em prol dos direitos desse grupo minoritário foi realizada em 1888, período até o qual criar quilombo era considerado crime. Tal conquista encontra-se na Constituição de 1988, no Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que reconhece a propriedade dos remanescentes de comunidades de quilombo, o que se constitui em um preceito fundamental para que seja possível a existência de tais minorias. Vale destacar também os artigos 215 e 126 da Constituição, que conferem importância ao resgate  da cultura afro: “Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º – O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. […] Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: […]” Logo, percebe-se que as diversas formas de manifestação da cultura afro encontram proteção constitucional, sendo dever do Estado garantir que as mesmas possam ser exercidas de maneira a preservar a memória dos mesmos. Nesse sentido, criou-se também o Decreto 4.887/03, que veio para regulamentar o processo de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes dos quilombos de que trata o art. 68 do ADCT.  Porém, antes da criação do referido Decreto, estava em vigência o Decreto 3.912, de 10 de setembro de 2011, que disciplinava a mesma questão e foi revogado pelo último. Com efeito, reforça o direito à terra de tais comunidades. Não se pode deixar de mencionar que um dos importantes critérios utilizados no referido decreto é a auto-atribuição para a identificação dos remanescentes de quilombos, estabelecido pelo art. 2º, caput e § 1º, que se mostra essencial para respeitar a memória dos mesmos. Além disso, encontra-se respaldado na Convenção 169 da OIT[2], que o estabelece mesmo como fundamental para identificar os sujeitos de sua aplicação. De acordo com Fabiana Dantas (2010, p. 66) “[…] a memória é uma necessidade fundamental, pode-se afirmar queo direito à memória existe e consiste no poder de acessar, utilizar, reproduzir e transmitir o patrimônio cultural, com o intuito de aprender as experiências pretéritas da sociedade e assim acumular conhecimentos e aperfeiçoá-los através do tempo.” Logo, a memória das comunidades quilombolas é um direito que encontra proteção no Decreto 4.887/03, o que possibilita que os seus integrantes possam reproduzir e ter acesso a esse patrimônio cultural. Ciente da importância do assunto abordado, tem-se como questão central a ser tratada no presente artigo: até que ponto o critério de auto-definição atende ao direito fundamental à memória das comunidades remanescentes de quilombos? 1 O ART. 68 DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS COMO CONSAGRADOR DE UM DIREITO FUNDAMENTAL Antes de adentrar propriamente no critério de auto-atribuição, necessário se faz tecer algumas considerações a respeito do Art. 68 do ADCT, que diz: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Tal artigo configura um preceito fundamental para assegurar que seja possível a existência de um grupo minoritário, possuidor de cultura e identidade étnica própria, que está amplamente relacionado a um passado de opressão do colonizador europeu. Vale ressaltar que sem seu território, esse grupo estaria sujeito a desaparecer e misturar-se à sociedade que os envolve, o que ocasionaria uma perda significativa para a pluralidade identitária presente no Brasil. Dessa forma o referido artigo confere a um grupo que está à margem, isto é, que se compõe basicamente por pessoas muito pobres e discriminadas, o direito de possuir sua terra. Além disso, é uma forma encontrada para trazer de volta uma dívida que o país tem com essas pessoas, uma vez que durante séculos foram duramente oprimidas e tiveram seus direitos humanos violados. Vale ainda destacar que a terra representa para os quilombolas não apenas um espaço físico, mas um elemento que constitui a sua identidade e que é de extrema relevância para manter a união deste grupo, que assim pode, portanto, viver conforme sua cultura, suas tradições, seus costumes e valores. É de extrema importância destacar ainda que o art. 68 do ADCT está amplamente relacionado à dignidade humana, pois faz referência direta ao direito de moradia dos quilombolas, que integra o mínimo existencial, explicado por Gilsilene Passon P. Francischetto e Júlia Silva Carone (2009, p. 91) da seguinte forma: “O mínimo existencial surgiu, então, com o objetivo de garantir ao cidadão o fundamento da República, denominado dignidade da pessoa humana, que possui status de princípio na ordem normativa brasileira, previsto no artigo 1o, inciso III, da Constituição Federal e, de outro lado, como uma maneira de obrigar o Estado a garanti-la. De acordo com tal princípio, o indivíduo deve ter assegurado, pelo Esta- do, um mínimo de condições para sua existência digna.” Portanto, o mínimo existencial constitui-se em um elemento essencial para que seja garantido pelo Estado a dignidade da pessoa humana, que se reflete no art. 68 do ADCT. Não se pode esquecer ainda que o direito dos remanescentes de quilombo à terra constitui um direito fundamental cultural (art. 215, CF). Assim, se este direito é retirado deste grupo, o mesmo perde sua identidade própria. As consequências de permitir que tais grupos desapareçam não está relacionada apenas a eles próprios, mas também à sociedade brasileira como um todo, pois esta perde um patrimônio cultural nacional. Nesse mesmo sentido Gilsilene Passon e Júlia Carone (2009, p. 110) também discorrem que: “Isto é, acesso à moradia deve ser analisado sob um prisma garantista, sob a perspectiva de um conjunto de direitos fundamentais, e não a partir de uma visão estreita que abarcaria tão somente a casa em si. A moradia envolve dignidade, bem-estar, segurança.” Assim, a moradia deve ser vista como um direito fundamental garantido para as comunidades remanescentes de quilombo através do artigo 68 do ADCT, como uma forma de possibilitar um mínimo de dignidade para tais comunidades. Portanto, pode-se concluir que uma vez que se caracteriza pelo direito fundamental, este artigo possui aplicabilidade imediata, conforme o art. 5º, § 1º da CF/88. Aliás, segundo Daniel Sarmento (2010, p. 282), o artigo 68 é denso de forma suficiente para permitir a sua própria aplicabilidade imediata. À luz dessa discussão, André Luiz Videira de Figueiredo, (1996, p.78) afirma que: “A disposição constitucional acerca dos quilombos” seria “um dispositivo de natureza constitucional e preservacionista, afirmando um direito cujo sujeito pode ser entendido como a sociedade brasileira como um todo, sugerindo uma política de reconhecimento da diversidade cultural brasileira”. Logo, deve-se entender que o artigo 68 do ADCT contribui para proteger a própria sociedade brasileira e garantir as diversas formas de manifestações culturais, estabelecidas pela própria Constituição. De acordo com André Luiz Videira de Figueiredo (1996, p. 80) “[…] o direito relativo aos remanescentes de quilombos não apenas constitui direito coletivo, mas direito étnico; portanto direito que, mais que o sentido de reparação de injustiças raciais, traz consigo significados relativos ao reconhecimento de formas próprias de organização da vida social”. Vê-se, portanto, que o direito à terra conferido aos remanescentes de quilombo abrange uma grande quantidade de sentidos, os quais fazem referência primordialmente à proteção de uma determinada forma de organização social presente no Brasil. A propriedade quilombola possui um aspecto coletivo e não meramente voltado à interesses particulares. Desse modo, o art. 68 do ADCT, ao mesmo tempo em que confere proteção aos direitos fundamentais dos remanescentes dos quilombos, objetiva salvaguardar os interesses da sociedade brasileira. Não se pode olvidar também que a moradia constitui um direito fundamental a todos os brasileiros, portanto, deixar as comunidades quilombolas de lado seria o mesmo que não cumprir um dos caros preceitos constitucionais. Isto porque a moradia está incluída no art. 6º como um direito social que deve ser garantido e protegido pelo Estado. 2 A IMPORTÂNCIA DO CRITÉRIO DE AUTO-ATRIBUIÇÃO PARA A IDENTIFICAÇÃO DAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBOS À LUZ DO DECRETO 4887/2003 Cabe enfatizar que anteriormente ao implemento do Decreto 48887/03, vigia o artigo 8.912/01 e ambos tratam sobre o processo de titulação e reconhecimento da terras provenientes de antigas comunidades quilombolas. No mesmo sentido, no art. 2º do Decreto 4887/03 consta que: “Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.” Vale destacar a enorme importância do referido artigo, que traz consigo um caráter democrático para o processo de titulação das terras quilombolas, isto é, o critério de auto-atribuição. Segundo Dantas (2010, p.66), “Tomando por base o conceito material de direitos fundamentais… a memória é uma necessidade fundamental, pode-se afirmar que o direito fundamental à memória existe, e consiste no poder de acessar, utilizar, reproduzir e transmitir o patrimônio cultural, com o intuito de  aprender as experiências pretéritas da sociedade e assim acumular conhecimentos e aperfeiçoá-los através do tempo.” Nesse sentido o critério de auto-atribuição constitui-se em um recurso para tornar possível a efetivação de um direito fundamental à memória dos descendentes de quilombo, isto é, de terem sua terra preservada para poderem continuar cultivando sua cultura. Assim, não somente o passado será resguardado, como o presente também será utilizado em benefício dos próximos descendentes de quilombo. Vale destacar o seguinte poema de Míriam Alves (1985, p. 23): “Nas casas e quintais esmagam flores do passado antes de murcharem Calam minha boca antes muito antes das palavras brotarem Esmagam a superfície não extirpam as raízes nem as flores nem as palavras Teimosamente numa lei de resistência elas brotam sempre sempre numa nova primavera de plantas e palavras.” Assim, percebe-se que o eu lírico demonstra um sentimento de opressão que sofre enquanto tenta se manifestar diante de seu opressor, o qual impede que ele possa ter acesso à sua memória. As suas experiências passadas estão sujeitas a uma ação repressora e, com isso, sua resistência acaba por ser árdua. No mesmo sentido, a situação vivida pelas comunidades quilombolas é perfeitamente retratada pelo sentimento do eu lírico, tendo em vista que estão ligadas a um passado de opressão e a um presente que quer calá-los a qualquer custo. 2.1 A CONVENÇÃO 169 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), vigente no ordenamento jurídico brasileiro, discute sobre povos cujos aspectos sociais, culturais e econômicos os diferem das demais esferas da sociedade, e que se apresentam conduzidos, total ou parcialmente, por suas próprias culturas ou hábitos, ou por legislação específica. Dessa forma, o dispositivo acima abrange os remanescentes de quilombos. Dessa forma, a referida convenção abre portas para que os direitos dos remanescentes de quilombos não estejam apenas no plano jurídico escrito, mas para que sejam realmente aplicados, uma vez que conta com o Sistema Internacional para poder exigir o seu cumprimento. Assim, é também levado em consideração a realidade circundante da sociedade brasileira. Como tal convenção é considerada lei, é dotada de significativa importância, no sentido de que também complementa a Constituição, tendo em vista que está em acordo com seus preceitos.   Cabe mencionar que o artigo 14 da referida Convenção garante o direito à propriedade das regiões tradicionalmente ocupadas, bem como o dever dos Estados de estabelecer métodos apropriados de acordo com o sistema jurídico nacional para resolver conflitos envolvendo propriedades estabelecidas pelos povos interessados. Sendo assim, a Convenção 169 apresenta subsídio normativo para a edição do Decreto 4.887/03. Cabe destacar que a mesma, como os demais dispositivos internacionais, teve a presença de duas esferas do poder, a executiva e a legislativa, para serem incorporados pelo país. Nesse sentido, houve pleno consentimento para inclusão das disposições presentes na Convenção 169 da OIT ao ordenamento interno. Apesar de a Convenção 169 ter sido promulgada em 2004, após a edição do Decreto 4.887/03, e de que, segundo o STF, o tratado internacional só será inserido ao direito interno após sua promulgação, é inaceitável atribuir inconstitucionalidade a um dispositivo compromissado com a proteção e promoção dos direitos humanos, devido à antecipação de um procedimento formal. Tal atitude representa uma postura extremamente formalista e inadmissível com o dever moral, internacional e constitucional dos Estados de garantir proteção aos direitos humanos. Vale ressaltar que, ao ratificar um tratado relativo aos direitos humanos, o Estado membro deve ajustar o seu ordenamento interno às disposições internacionais de proteção dos direitos humanos. Para isso, pode acrescentar ou alterar normas jurídicas. Nesse sentido, se o Brasil adota tal postura para efetivação do tratado internacional ao qual está inserido, é contraditório o Estado suprimir o dispositivo internacional em questão. 3 A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 3239 A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239 proposta pelo PFL, hoje denominado como Democratas, envolve contestação da validade do Decreto nº 4887/03 e teve seu julgamento suspenso, devido a um pedido de vista da ministra Rosa Weber. A referida ADI ainda aponta a possibilidade dos processos de desapropriação de áreas particulares sejam revisados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o que mostra se mostra como um retrocesso para todo o processo de conquistas realizadas para possibilitar a efetivação do direito fundamental à memória das comunidades remanescentes de quilombo. Conforme mencionado, tal Decreto regulamenta “o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes dos quilombos de que trata o art. 68 do ato das Disposições Constitucionais Transitórias”. De acordo com Daniel Sarmento (2010, p. 275) a ADI baseou-se em quatro fundamentos: não é possível fazer um regulamento autônomo para a questão devido ao princípio da legalidade; uma vez que a constituição já transferiu a propriedade das terras de seus antigos proprietários para os remanescentes de quilombos, seria inconstitucional usar de desapropriação segundo o art. 13 do Decreto 4.887/03, bem como indenização aos detentores de títulos incidentes sobre as áreas quilombolas; inconstitucionalidade do emprego do critério de auto atribuição para identificação dos remanescentes de quilombos; e a inconstitucionalidade da forma como são caracterizadas as terras quilombolas, julgando como amplo o conceito a ela atribuído no art. 2º, §2º do Decreto 4887/03, além da impossibilidade da utilização de critérios dos próprios quilombolas para demarcação das suas terras, pois isto sujeitaria o procedimento administrativo aos indicativos fornecidos pelos próprios interessados. Ainda nas palavras de Daniel Sarmento (2010, p. 276), levando em consideração que se estima que existem hoje mais de três mil comunidades remanescentes de quilombo distribuídas pelo território nacional, que envolvem centenas de milhares de pessoas, com sua identidade étnica própria e em sua maioria pobres, acolher as teses da ADI 3239 seria acabar com qualquer possibilidade de tutela atual dos direitos dessas pessoas, ocasionando um risco à sobrevivência das comunidades quilombolas, bem como suas tradições culturais, que abrangem o patrimônio imaterial da Nação. Portanto, percebe-se que o critério de auto-atribuição é a melhor forma encontrada para atender ao direito fundamental à memória das comunidades remanescentes de quilombo, tendo em vista que para que se defina quem são as mesmas, não há ninguém melhor que os próprios. Não faria sentido pedir para alguém de fora, que não conhece a realidade das comunidades, para poder defini-la. CONSIDERAÇÕES FINAIS Buscou-se demonstrar a importância do tema, cuja discussão é de interesse social, em um contexto de exclusão e subestimação das minorias étnicas. Cabe destacar que os excluídos da sociedade brasileira nunca tiveram oportunidade de participar das decisões institucionais do país, nem ao menos tiveram acesso aos meios de produção e a propriedade da terra. Essa raiz histórica se arrasta até os dias atuais, em que se vê os descendentes de escravos, predominantemente negros, se submetendo a formas degradantes de trabalho para garantir sua subsistência. Nesse sentido cabe ressaltar a dívida social do país em relação a essa minoria étnica, que reivindicao seu direito mínimo existencial à terra. Como é possível notar, todo sofrimento e violação do princípio da dignidade humana através dos maus tratos a que os escravos eram submetidos ao longo da história do Brasil reforça o argumento de que há uma dívida histórica em face dos descendentes desse grupo, uma vez que as terras em que constituíam os quilombos representavam não apenas um espaço físico, mas um elemento definidor de sua identidade. Conclui-se que essa dívida histórica deve ser quitada para com as famílias de descendentes de quilombolas, aqueles que contribuíram imensamente e sem nenhuma forma de remuneração, não somente para a construção da história do povo brasileiro, da identidade e da cultura nacional, como também, para uma economia e um modo peculiar de trabalho e luta pela terra. Assim, torna-se necessária uma reparação que se faz através do reconhecimento e efetivação dos direitos das comunidades advindas dos antigos escravos, oportunizando-lhes, finalmente, a titulação da propriedade de suas terras. Por conseguinte, também se conclui que o critério de auto-atribuição para a definição das comunidades quilombolas se constitui em um preceito essencial para o processo de titulação das referidas terras quilombolas. Nesse contexto, vê-se que a invisibilidade das comunidades quilombolas deve ser tratada seriamente e medidas menos morosas devem ser efetivadas para que o processo de titulação de suas terras possa realmente ser realizado. Assim, confirmar as teses da ADI Nº 3239 seria o mesmo que ensejar a invisibilização das referidas comunidades, o que apenas contribui para acabar com a conquista de direitos tão arduamente adquiridos após um longo período de  repressão dos negros no país. Cabe ressaltar o histórico das lutas empreendidas pela conquista de direitos do referido grupo no país, sempre tratado com descaso pelos grupos majoritários. Até mesmo a abolição da escravidão se insere nesse contexto, tendo em vista que ainda tardia, nada contribui para possibilitar a inserção do negro na sociedade brasileira. Não se pode deixar de mencionar que o art. 68 do ADCT, ao conferir o direito à terra das comunidades quilombolas, possibilita que o direito à memória, a possibilidadede poder reproduzir a sua cultura, possa ser efetivado. Vale também relembrar que a terra para os quilombolas representa não apenas uma noção individualista de propriedade, mas uma baseada na ideia de compartilhamento da terra. Nesse sentido, o referido artigo seria também um meio de tornar o processo de titulação menos moroso e trazer mais facilidade para as comunidades quilombolas. Cabe, pois, concluir que apesar do histórico de injustiça com as comunidades quilombolas, a falta de preocupação do Estado com as mesmas e a sua invisibilidade, torna-se necessário assinalar a devida importância do critério de auto-atribuição no processo de identificação das comunidades quilombolas estabelecido pelo Decreto 4.887/03, de extrema relevância para garantir o direito fundamental à memória das comunidades remanescentes de quilombo.
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O acesso à Justiça das pessoas com deficiência
O presente trabalho tem por finalidade demonstrar a efetividade ou não da legislação brasileira e das políticas públicas nacionais para garantir ao deficiente físico acesso à justiça efetivo.
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por finalidade demonstrar a efetividade ou não da legislação brasileira e das políticas públicas nacionais para garantir ao deficiente físico acesso à justiça efetivo. Não se pretende aqui apontar soluções para o tema, mas sim localizar a sua problemática, caso se verifique a existência da mesma. O objetivo proposto não é somente analisar a base teórica da problemática da inclusão das pessoas com deficiências, que invariavelmente passa por todas as esferas de nossa sociedade, mas também abordar as formas através da qual o acesso à justiça pode ser facilitado e até mesmo encorajado e as possíveis conseqüências oriundas desta posição junto à sociedade. Para tanto, buscaremos desenvolver a concepção de acesso à justiça, que se baseia nos dogmas fundamentais do direito, bem como o conceito de deficiência, para que posteriormente, possamos abordar  o acesso à justiça das pessoas com deficiência. Afinal é a falta de informação que muitas vezes acarreta na existência ou mesmo no nascimento dos problemas sociais, entre eles a dificuldade do acesso à justiça. A concepção que se pretende conferir a esse estudo, consiste na constatação de que nosso sistema de acesso à justiça para os deficientes é por muitas vezes falho, seja na questão física de nossas instalações, ou até mesmo no que se refere a quem possa salvaguardar os interesses daqueles que possuem algum tipo de incapacidade. DEFICIENTES É evidente que a existência de deficiência no ser humano, em qualquer de suas modalidades e tipos, é assunto antigo e perene, porém, somente agora atingimos a maturidade política e social suficiente e necessária para iniciarmos o enfrentamento da inclusão de fato do deficiente na sociedade contemporânea. Neste diapasão verificamos que se faz necessário, mesmo que de maneira singela, que conheçamos o conceito do que é ser deficiente, muito embora o referido tema possa até mesmo se desviar, mesmo que momentaneamente, de nosso artigo, haja vista que se trata em verdade de uma questão médica. Mas antes mesmo de que a referida matéria seja invocada mister se faz afirmar que o conceito aqui abordado não é o mesmo utilizado na Lei 8.742/93, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Na assistência social o conceito utilizado, que envolve a capacidade da pessoa não tem relação com a forma e conceito aqui utilizados. Assim, buscando simplificar o conceito de “deficiente” temos que se trata daquela pessoa que tenha dificuldade de se relacionar, de se integrar na sociedade. É esse grau de dificuldade para a inclusão social que definirá quem tem ou não alguma deficiência, seja ela física, mental, auditiva, auricular, etc. Não se pode negar que com a evolução das técnicas de guerra acarretou-se que uma grande parcela da população mundial, que não nasceu deficiente, acabou se tornando deficiente, o que, somados aos deficientes que assim o nasceram, compões um grande número de pessoas com deficiência de locomoção, audição, visão, mental e etc. E foi esse aumento do número de deficientes que originou ao Estado a obrigação de amparar e zelar por essa significativa parcela da população. Entretanto, infelizmente a inclusão social dos indivíduos deficientes não é exercitada por toda a sociedade, haja vista que muitos ignoram tão nobre causa. Ressalta-se ainda que o problema das pessoas com deficiência não se refere somente a uma proteção estatal que busque à inclusão, mas também a políticas públicas que atuem também na prevenção da deficiência. De acordo com a Organização Mundial de Saúde os deficientes se dividem em: deficiência física (tetraplegia, paraplegia e outros), deficiência mental (leve, moderada, severa e profunda), deficiência auditiva (total ou parcial), deficiência visual (cegueira total e visão reduzida) e deficiência múltipla (duas ou mais deficiências associadas). A Declaração Universal dos Direito Humanos adotada e proclamada pela Resolução número 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, assinada pelo Brasil na mesma data, em seu artigo 1º estabelece que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.” Feitas as considerações supra esclareço que neste trabalho vamos nos valer do conceito de deficiente contido em nossa legislação, mais precisamente o artigo 3º, I e II do Decreto nº 3298/99, regulador da Lei nº 7853/89, que dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, que possui a seguinte redação: “Art.3º Para os efeitos desse Decreto, considera-se: I- deficiência- toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano; II- deficiência permanente- aquela que ocorre ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos.” Muito embora o conceito não seja inclusivo, ao passo que sua terminologia é antiga e que ser deficiente é sim considerado normal, apenas para fins didáticos vamos nos valer do mesmo. DISCRIMINAÇÃO, PRECONCEITO E O PRINCÍPIO DA ISONOMIA Neste tópico procuraremos abordar o que é discriminação, preconceito e a sua existência frente ao princípio da isonomia, haja vista que acreditamos que este paralelo é fundamental para a compreensão do tema do acesso à justiça pelo deficiente físico, que será abordado mais a frente. Porém vale ressaltar que a discriminação aqui abordada é a meramente conceitual e não aquele justa e necessária a todo e qualquer ordenamento legal. De uma maneira bem singela temos que preconceito é a idéia, enquanto que discriminação é a idéia colocada em "prática". A discriminação é um conceito maior e dinâmico do que o preconceito. Discriminação pode ser provocada por indivíduos e por instituições, enquanto que o preconceito, só pelo indivíduo, mesmo que de maneira coletiva. Certamente o preconceito e a discriminação ao deficiente se referem a um sério problema enfrentado por esta grande parcela de nossa população, mas que de fato é um problema de toda a sociedade. E quando falamos em grande parcela da população para que seja dimensionado este número, o Censo demográfico realizado pelo IBGE em 2010 verificou que no Brasil temos aproximadamente 190.755.799 de habitantes, sendo que 45.606.048 declararam possuir algum tipo de deficiência. O respeito às diferenças entre as pessoas é amplamente difundido em nossa legislação, sendo que inclusive existe menção no Preâmbulo de nossa Constituição Federal à proteção dos interesses difusos, bem em nossa legislação infraconstitucional. Interesses difusos são aqueles indivisíveis e inerentes a um grupo de interesses ou categoria indeterminável de pessoas, que são reunidas entre si pela mesma situação de fato, como no nosso caso, os deficientes. A referida conceituação está prevista no Código de Defesa do Consumidor, mais precisamente, em seu art. 81, I, que tem a seguinte redação: “Art. 81. A defesa dos interesses e direitos …. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;” A Constituição Federal declara que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza […] (art. 5º caput). Já o artigo 3º do nosso supremo ordenamento legal dispõe em seu inciso IV, onde se lêem os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, entre eles a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. O tema ora discutido sem sombra de dúvida não pode ser analisado sem que se mencione o tema da “vida social”, cujo significado simplista é a possibilidade de plena autonomia sobre a própria vida, reunir a capacidade de trabalhar, de constituir família, de manter atividades na comunidade onde se vive. É neste sentido que a redação dos artigos 5º e 6º da nossa Magna Carta , no Título II DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS aponta mandamentos que buscam garantia ao respeito à vida humana. Todas as pessoas têm graus de saúde diferentes e peculiaridades físicas e mentais próprias. O que se busca são instrumentos capazes e eficazes de proteção ao respeito às diferenças. Dito isto verificamos que o princípio basilar da isonomia deve ser tratado à exceção quando nos referimos aos deficientes. O princípio da isonomia, ou princípio da igualdade, a destarte do verdadeiro chavão jurídico que se tornou o caput do artigo 5º de nossa Constituição Federal, seguramente abrange muito além do brocardo “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…”. Quando a discussão sobre o princípio da isonomia e sua aplicação se inicia temos que nos valer de que o mesmo pretende não somente nivelar os cidadãos do Estado de Direito, mas pretende sim que toda legislação seja elaborado em consonância com este princípio. Afinal no que se refere ao princípio da igualdade aplicado as pessoas com deficiência devemos cuidar de resguardar a obediência à isonomia de todos diante do texto da lei, evitando discriminações desnecessárias e não inclusivas, pois se faz necessário colocar as pessoas com deficiência em situação privilegiada em relação aos outros cidadãos, e este benefício é perfeitamente justificados e explicados pela própria dificuldade de inclusão natural desse grupo de pessoas. Se conclui com facilidade com isso que as tutelas positivas devem ser aplicadas de acordo com a necessidade dos interesses difusos de determinado grupo social. O princípio constitucional da igualdade é, pois, diretriz voltada tanto para o aplicador da lei quanto para o próprio legislador que, a despeito de utilizar-se, por vezes, de critérios discricionários, encontra neste cânone iniludível e vital freio. Conforme o supra transcorrido percebemos que a Constituição Federal, proíbe de maneira absoluta qualquer tipo de discriminação, seja por raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política, origem nacional. Todavia, a lei se incumbe em algumas situações a “discriminar”, com o intuito de conceder reparação em supostas desigualdades. Com isso verificamos que o princípio da isonomia (ou igualdade) assume uma característica de dupla aplicação:“qual seja: uma teórica, com a finalidade de repulsar privilégios injustificados; e outra prática, ajudando na diminuição dos efeitos decorrentes das desigualdades evidenciadas diante do caso concreto” (SILVA, 2003). E é justamente neste ponto que nasce para nós a necessidade de analisarmos e entendermos a igualdade material e a igualdade formal. Como igualdade formal temos a pura e limpa letra da lei, onde se prega o tratamento igual de todos os cidadãos através da legislação e também de tratamento identicamente igual conferido pelos magistrados aos litigantes em um processo. Já a igualdade material é aquela que surge em nosso ordenamento através de normas, constitucionais positivadas, ou seja, o próprio legislador constitucional conferiu tratamento diferenciado a alguns cidadãos em casos específicos. A igualdade material é a detentora de mais um jargão jurídico, onde somente poderemos tratar de maneira igual os desiguais se os tratarmos desigualmente. A igualdade material busca de fato diminuir as desigualdades, para que assim possamos de fato atingir um tratamento igual. A título de exemplo em nossa legislação extravagante temos o Código de Defesa do Consumidor, onde o consumidor, por supostamente ter uma condição econômica desfavorável em relação as empresas, assume uma condição de hipossuficiente, podendo litigar com a inversão do ônus da prova, embora seja que alega o fato. Outro exemplo se trata da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.343/06), onde se reconhece a diferença entre os homens e as mulheres e se busca o meio jurídico adequado  de proteger a integridade física da mulher. Este fator de “discrimen”, apresentado pelo Estado nos exemplos supra não se trata de uma violação ao princípio da isonomia, mas se trata sim de uma forma de aplicação exata do mesmo, relativisando quando necessário, vez que o seu objetivo não é conferir vantagem não fundada. “É preciso que se faça a interpretação deste dispositivo levando-se em conta que o mesmo não quer significar igualdade perante a lei, mas igualdade em direitos e obrigações, tornando inaceitável a utilização deste fator diferencial para desnivelar materialmente o homem da mulher, pois é justamente atenuar os desníveis de tratamento a finalidade desta norma”. Neste sentido, de grande valia a lição do filósofo Hans Kelsen: “A igualdade dos sujeitos na ordenação jurídica, garantida pela Constituição, não significa que estes devem ser tratados de maneira idêntica nas normas e em particular nas leis expedidas com base na Constituição. A igualdade assim entendida não é concebível: seria absurdo impor a todos os indivíduos exatamente as mesmas obrigações ou lhes conferir exatamente os mesmos direitos sem fazer distinção alguma entre eles…” O ACESSO À JUSTIÇA Antes de adentrarmos ao tema do presente artigo, é evidente que se faz necessário que o tema do “acesso à justiça” também seja conceituado, afim de permitir uma maior compreensão. Como terminologia temos que “acesso” vem do latim accessus, que significa ingresso, entrada, trânsito, passagem. Desta feita, na medida em que o princípio da ação, ou o direito da ação, determina que o judiciário deve ser provocado para aplicar a sua jurisdição (nemo iudex sine actore) o acesso à justiça ganha papel preponderante quando falamos de lesão a qualquer direito. O acesso à justiça visa permitir que qualquer indivíduo, desde que legitimado para tanto, reúna condições para que, se assim desejar, possa ingressar com uma demanda perante o Poder Judiciário. Mas algumas considerações sobre a evolução do processo também se fazem necessárias para elucidação daquilo que se pretende discutir. Afinal a função pacificadora do Estado passa pelo acesso à justiça. Ademais com o advento da fase instrumentalista do processo, onde este se tornou um verdadeiro instrumento, os princípios informativos se tornaram ainda mais fundamentais para que o Estado pudesse dar a parte o devido e necessário provimento judicial. Os princípios informativos também vieram com o intuito de garantir que o processo seja lógico, bem como para garantir a igualdade das partes no processo (Princípio Jurídico), o máximo de garantia social com o mínimo de sacrifício individual (Princípio Político), bem como que processo seja acessível a todos no que se refere aos custos e o mais breve possível (Princípio Econômico). Campilongo, em o Direito na Sociedade Moderna, citando Cappelletti, adverte que Juristas em geral e processualistas de modo particular são concordes, que o acesso à justiça pode ser "encarado como requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar, os direitos de todos". Ada Pelegrini Grinover em sua obra destaca que: “Seja nos casos de controle jurisdicional indispensável, seja quando simplesmente uma pretensão deixou de ser satisfeita por quem podia satisfaze-la, a pretensão trazida pela parte ao processo clama por uma solução que faça justiça a ambos os participantes do conflito e do processo. Por isso é que se diz que o processo deve ser manipulado de modo a propiciar às partes o acesso à justiça, o qual se resolve, na expressão muito feliz da doutrina brasileira recente, em “acesso à ordem jurídica justa”.”(2002, p.33). Mister se faz afirmar que acesso à justiça não é acesso físico aos tribunais, que são prédios públicos,e para tanto podem ser visitados por todos os brasileiros, desde que preenchidos alguns requisitos. Acesso à justiça de uma maneira resumida é o conjunto de instrumentos que possibilitam aos cidadãos o acesso ao Poder Judiciário, sendo que este é um direito fundamental em todo Estado Democrático de Direito. Isto porque inexiste norma constitucional sem um mínimo de eficácia e o que torna inafastável do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça de direito (ARAÚJO, 1997, P. 99). Estes instrumentos supra-citados, que são oferecidos pelos Estado aos cidadãos se referem aos elementos necessários para trazer ao processo efetividade, o que de acordo com um dos princípios informativos do processo se trata de trazer pacificação social com o menor sacrifício possível. O acesso à justiça também pode ser considerado como a forma existente de se recorrer ao sistema jurídico em busca de reparação contra a violação dos direitos. Mas para que essa busca de reparação, de pacificação social, possa ser totalmente atingida é preciso que se entenda os elementos existentes nesse “caminho”. O primeiro ponto a ser analisado se refere ao ingresso em juízo propriamente dito. Isto porque, por mais que se difunda os meios, é preciso que se elimine os óbices econômicos, físicos e até mesmo culturais para que o tutelado possa demandar ou se defender em juízo, para que assim o direito fundamental do acesso à justiça integral e gratuito previsto em nossa Magna Carta (art. 5º, inciso LXXIV) seja de fato oferecido ao povo. A assistência judiciária gratuita para aqueles hiposuficientes economicamente com certeza é um dos acertos de nossa legislação com o fim de conceder acesso à justiça à todos aqueles que entendam ter um direito lesado. Afinal, em nosso ordenamento e na maior parte das sociedades contemporâneas, é fundamental a existência de um advogado no processo para interpretar o direito e as leis. E em todos estes Estados existe uma parcela da população que não tem condições de arcar com sua própria subsistência, quiçá com o pagamento de advogado e custas processuais. Nestes casos, os Estados, cumprindo até mesmo com uma função social tem arcado com o pagamento dos causídicos, e isentados os litigantes hiposuficientes do pagamento das custas processuais. No Brasil os estados membros oferecem assistência judiciária gratuita através da defensoria pública ou de convênios realizados com Ordem dos Advogados do Brasil. Essa forma de atuação do Estado busca romper de certa forma as barreiras ao acesso individual à justiça, buscando de alguma forma mitigar a desinformação jurídica pessoal dos hiposuficientes. Porém o sistema adotado não é totalmente eficaz, haja vista que mesmo o serviço jurídico estando a disposição de todos, não significa necessariamente que aquele que teve o seu direito lesado sabe desta lesão ou reúne condições de buscar ajuda. Além da ausência de eficácia em algumas situações outro “contra” do sistema adotado no Brasil para garantir a todos o acesso à justiça reside no fato de que invariavelmente dependemos de políticas governamentais para garantir a eficácia do atendimento da assistência judiciária gratuita. O Código de Defesa do Consumidor e as reformar referentes a legislação ambiental de tal sorte também são instrumentos importantes para a defesa dos interesses difusos, o que por sua vez também contemplam o acesso à justiça. Acesso à justiça se trata de um conceito que necessariamente deve estar atrelado ao progresso e a evolução da sociedade, e tal como qual deve evoluir, buscando sempre novos mecanismos para a representação dos interesses “públicos”. Representação legal não é único enfoque que o acesso à justiça engloba, afinal de maneira contemporânea temos enfrentando verdadeiro desafio de buscar formas de aplicar a todos os indivíduos uma justiça mais igualitária. O que se busca são formas de que a capacidade econômica do litigante não seja tão relevante para que o mesmo obtenha êxito em sua demanda. O que sabe é que o sistema existente não é totalmente livre de vícios, mas de fato as políticas públicas aplicadas pelos governantes tem de fato levado o acesso à justiça à uma evolução, embora o mesmo ainda não seja pleno. O devido processo legal e o princípio do contraditório também devem ser observados e cumpridos, para que o acesso à justiça, tal qual como aqui explicado, seja de fato assegurado, para que o magistrado possa de maneira participativa resolver a lide. Magistrado este que deve apreciar as provas produzidas na lide e enquadrar os fatos em nosso ordenamento, resguardando o direito material, buscando de maneira absoluta a justiça. Porém, é necessário que a decisão aplicada no caso concreto seja útil, e utilizando o velho brocardo jurídico temos que quem tem direito deve receber tudo aquilo e precisamente aquilo que tem direito de obter, nada mais. Para que o acesso à justiça seja efetivo é necessário que o maior número de pessoas seja admitido a demandar e a se defender de maneira correta e formal e obtenham do judiciário efetividade em suas decisões. A tutela Estatal deve realizar e julgar os direitos aos cidadãos e o referido está previsto na Constituição Federal, mais precisamente no artigo 5º, incisos XXXV e LXXVIII, que tem a seguinte redação:  “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.” (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). Importante salientar que em nossa sociedade existe a vedação da autotutela, o que reforça a importância do acesso à justiça e do direito de ação. Assim, mais uma vez resumidamente percebemos que com o acesso à justiça se busca intensamente a pacificação social com justiça, através dos meios legais. ACESSO À JUSTIÇA DO DEFICIENTE Superadas as questões do acesso à justiça e da conceituação de deficiente vamos adentrar o tema do presente trabalho propriamente dito. Como o anteriormente dito, deficiência engloba uma série de fatores, sendo que a conceituação aqui utilizada se dá no individuo que por algum motivo tem algum tipo de dificuldade de se incluir socialmente. Sob esta ótica destaca-se que o presente trabalho enfoca somente o direito individual do deficiente e não as tutelas coletivas. Ressalta-se ainda que conforme o dito alhures acesso à justiça não é somente o acesso físico ao tribunal ou ao fórum, portanto, o acesso à justiça do deficiente não se refere a acessibilidade dos prédios do Poder Judiciário apenas. Via de regra esta problemática (a existência da deficiência) já acarreta ao seu portador uma série de dificuldades, que também está presente no acesso à justiça. O acesso à justiça do deficiente não envolve somente as questões processuais, como há existência de interesse de agir, possibilidade jurídica do pedido e legitimidade de partes ou mesmo ataques a omissões legislativas que lhe causem prejuízo. Este acesso envolve inclusive capacidade econômica, física e mental de litígio. Afinal o deficiente como o já amplamente discutido tem uma condição extremamente vulnerável e até mesmo hiposuficiente diante das situações que lhe apresentam o dia a dia. Vejamos como exemplo o caso de um deficiente físico que não consegue ingresso no já disputado mercado de trabalho. Seria justo exigir dele custas processuais ou mesmo lhe aplicar o ônus da sucumbência em caso de revés? Um deficiente mental ou mesmo físico, já com as sérias dificuldades que o dia a dia lhe oferece não mereceria prioridade de tramitação tal qual os idosos? O deficiente mental que tem um direito tolhido, a quem poderá recorrer para ingressar em juízo? As perguntas acima são elucidativas, isto porque aqui não se pretende comprovar que a proteção ordinária existente não permite a utilização de qualquer medida ou processo existente em nosso ordenamento, o que se pretende discutir é se as medidas existentes trazem ou não efetividade ao deficiente, e  para tanto lhe conferem efeito acesso à justiça. Tanto é verdade que eventual acesso ao Poder Judiciário ou defesa processual de interesses de pessoa com deficiência também pode ocorrer contra o Estado, ou qualquer ente que lhe impeça o exercício regular de um direito. Todavia aqui não se pretende minimizar e importante abrangência e atuação do Ministério Público e das associações. As associações de defesa dos deficientes constituem um grupo grande, fundamental para nossa sociedade, tão carente de políticas públicas para o deficiente, e legitimado legalmente para representar os seus associados em juízo. Já o Ministério Público, por força do artigo 129, inciso III, da Constituição Federal, está expressamente autorizado a litigar como autor para defender os interesses dos deficientes. Mas fica a pergunta, as associações e o Ministério Público são suficientes para garantir o acesso à justiça de todos os deficientes? E mais, o acesso à justiça do deficiente hoje ocorre de maneira satisfatória? Ademais não podemos nos furtar de analisar a necessidade de adaptação de algumas normas processuais ao tipo de litígio, que no nosso caso se refere especificamente ao deficiente. Afinal cada litígio possui suas próprias peculiaridades, e da mesma forma cada caso possui diferentes barreiras ao acesso à justiça e por conseqüência temos soluções diferentes. Conforme o já citado alhures percebemos muitas políticas públicas no sentido de facilitar o dia a dia do deficiente, tais como restituição de Imposto de Renda, vagas específicas em concursos públicos, leis de acessibilidade aos prédios públicos entre outras, mas de fato verificamos pequena ou quase nenhuma atuação governamental no sentido de facilitar ao deficiente efetivo acesso à justiça. Nesse sentido ressaltamos que o decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinada em Nova York, em 30 de março de 2007, que tem valor de emenda constitucional, em razão do §3, do artigo 5º da Constituição Federal, que em seu  artigo 13º, que possui a seguinte redação:  “1- Os Estados Partes deverão assegurar o efetivo acesso das pessoas com deficiência à justiça, em igualdade de condições com as demais pessoas, inclusive mediante a provisão de adaptações processuais e conformes com a idade,  de facilitar seu efetivo papel como participantes diretos ou indiretos, inclusive como testemunhas, em todos os procedimentos jurídicos, tais como investigações e outras etapas preliminares.  2- de assegurar às pessoas com deficiência o efetivo acesso à justiça. Os Estados Partes deverão promover a capacitação apropriada daqueles que trabalham na área de administração da justiça, inclusive polícia e pessoal prisional.” Deixa bem claro a responsabilidade do governo brasileiro de garantir em seu território acesso à justiça de maneira efetiva a todos os deficientes. O fato é que no Brasil o acesso à justiça efetivo ao deficiente ainda está no papel, e está análise é relativamente simples quando nos focamos por exemplo na expressão “acessibilidade”, que está presente nas diversificadas áreas da atividade governamental e tem um importante significado. Ela representa de uma maneira geral não só o direito de que a pessoa possa litigar em juízo, mas também o direito de serem rompidas as barreiras arquitetônicas, de disponibilidade de comunicação, de acesso físico, de equipamentos e programas adequados, e treinamento do pessoal para lidar com a referida situação. Afinal, quando uma pessoa portadora de deficiência e que se utiliza de uma cadeira de rodas ou de muletas, por exemplo, e se vê diante de uma grande escadaria, que é o único acesso ao interior de um fórum de justiça. Essa escadaria é chamada de barreira arquitetônica, que pra ele, deficiente, é intransponível, o que, no mínimo, o afasta de uma livre busca a justiça. Atualmente não existe nem um processo judicial sequer, mesmo tendo um de seus litigantes comprovadamente deficiente visual, traduzido para o braile, o que de fato é um óbice para o acesso à justiça deste deficiente. As deficiências muitas vezes podem gerar uma incapacidade de ver, falar, ouvir, deslocar-se, ou mesmo de interpretar certos tipos de informação, e estas dificuldades devem ser levadas em conta pelos responsáveis das políticas públicas de acesso à justiça para que os mesmos possam de fato ter o seu acesso grantido. A criação de órgãos de controle como o CONADE (Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência), que é um órgão colegiado criado para acompanhar e avaliar o desenvolvimento de uma política nacional para a inclusão da pessoa com deficiência, não atende por completo ao acesso à justiça do deficiente. Ressalta-se que o CONADE faz parte da estrutura básica da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, criado pela lei 10.683/03, em seu artigo 24º, parágrafo único. Dentre as competências do CONADE esta a propositura e realização de campanhas visando à promoção dos direitos da pessoa com deficiência, e entre estes direitos com certeza está o acesso à justiça. Além da ausência de políticas públicas efetivas para garantir o acesso à justiça do deficiente, também devemos levar em consideração nessa análise os óbices colocados aos deficientes pela legislação vigente. Um exemplo do aludido está no teor do artigo 192, do Código de Processo Penal, que tem a seguinte redação: “Art. 192. O interrogatório do mudo, do surdo ou do surdo-mudo será feito pela forma seguinte: I – ao surdo serão apresentadas por escrito as perguntas, que ele responderá oralmente; II – ao mudo as perguntas serão feitas oralmente, respondendo-as por escrito; III – ao surdo-mudo as perguntas serão formuladas por escrito e do mesmo modo dará as respostas. Parágrafo único. Caso o interrogando não saiba ler ou escrever, intervirá no ato, como intérprete e sob compromisso, pessoa habilitada a entendê-lo.” O exemplo utilizado contém impropriedades que devem urgentemente serem alteradas sobre as formas de interrogatório da pessoa surda. (do surdo-mudo: perguntas e respostas formuladas por escrito). É clarividente a maneira inapropriada em que a legislação aborda o tema, especialmente a pessoa surda, ao passo de que a própria lei já sentencia que a pessoa surda não sabe falar, o que não é uma verdade absoluta. É sempre bom lembrar que a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS (Lei 10.436/02) é reconhecida como meio legal de comunicação e expressão da comunidade surda, portanto ela poderá não saber a língua portuguesa para poder responder a formulação de perguntas por escrito. Daí a imposição de existência de pessoal habilitado em interpretar a língua de sinais para o atendimento à pessoa surda, que faça uso dessa forma de expressão para se comunicar. A inexistência de pessoa habilitada para interpretar e traduzir a língua dos sinais em processo que envolva pessoa surda de fato tolhe o acesso à justiça dessa pessoa, afinal qual a capacidade desta pessoa em poder formular um processo, depor ou ainda ser testemunha? As leis da acessibilidade impõem aos órgãos públicos de atendimento, principalmente aos órgãos que administram a justiça, que disponibilizem o intérprete de LIBRAS para o interrogatório de pessoa surda para viabilizar a adequada comunicação. Mister se faz a necessidade deste dispositivo, como de outros similares e retrógrados que existem em nossa legislação. Na bem da verdade é que tanto o Poder Judiciário, o CONADE, e o Estado brasileiro de uma maneira ampla precisam promover atos que favoreçam e contribuam para a independência das pessoas, e o acesso à justiça está intimamente ligado a este tema, haja vista que ele é pilar fundamental para a manutenção do nosso Estado Democrático de Direito. CONCLUSÃO Promover a inclusão das pessoas portadoras de deficiência é, dentre outras coisas, permitir que as mesmas possam agir por si próprias, quando apresentam capacidade civil plena para tanto. Entretanto, também é função estatal tutelar aquele hiposuficente e/ou incapacitado para tanto, seja processualmente, ou criando condições de acesso. A isonomia deve ser observada de maneira relativa para que de fato exista igualdade de condições. E no que se refere ao acesso à justiça do deficiente temos que no Brasil existem uma série de interesses e boas intenções para que o mesmo exista de fato, mas infelizmente nossas políticas e públicas e legislações são ineficazes no propósito de garantir acesso à justiça ao deficiente. Esta problemática com certeza deverá ser enfrentada por nosso Estado nos próximos anos, que deve incluir esta significante parcela da população em suas prioridades.
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O princípio da celeridade processual à luz do jushumanismo e do direito processual moderno
É crescente o enfoque doutrinário e jurisprudencial acerca dos princípios e seu peso no ordenamento jurídico pátrio. Outrora dominado pelo positivismo, o pensamento jurídico brasileiro tem manifestado crescente influência do pensamento pós-positivista. Tal enfoque cresce à medida em que ganha aceitação a linha filosófica dos direitos humanos. Hoje nota-se maior inclinação do Judiciário em decidir com base, às vezes unicamente, em princípios. Trata-se de algo que seria impensável sob a égide do positivismo, e que nos conduz a novos paradigmas. Feitas essas considerações, trataremos do princípio da celeridade processual, analisando sua influência na jurisprudência as implicações práticas de ele ter sido alçado ao nível constitucional, indicando soluções possíveis para o problema da morosidade processual no Brasil.[1]
Direitos Humanos
INTRODUÇÃO É crescente o enfoque doutrinário e jurisprudencial acerca dos princípios e seu peso no ordenamento jurídico pátrio. Outrora dominado pelo positivismo, o pensamento jurídico brasileiro tem manifestado crescente influência do pensamento pós-positivista. Tal enfoque cresce à medida em que ganha aceitação a linha filosófica dos direitos humanos. Hoje nota-se maior inclinação do Judiciário em decidir com base, às vezes unicamente, em princípios. Trata-se de algo que seria impensável sob a égide do positivismo, e que nos conduz a novos paradigmas. Apesar de já estar previsto em pactos internacionais, foi com a emenda constitucional n. 45/04 que o princípio da celeridade processual ganhou previsão expressa na Lei Maior, na forma de garantia aos litigantes. Outrora, tal previsão, programática e genérica, poderia ter se tornado letra morta, tal como tantos outros princípios constitucionais, não gerando qualquer resultado prático. Não que a jurisprudência negue validade a esse princípio. Muito pelo contrário, corteja-o em diversas decisões. Ocorre que nada disso tem sido sentido no mundo real. Os processos seguem demorando além do esperado, em todas as esferas e instâncias, com as raras exceções que confirmam a regra. CAPÍTULO I – A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO “El que quiera hacer Derecho sin Historia, no es um jurista, ni siquiera un utopista; no traera a la vida espiritu de ordenación social conciente, sino mero desorden y destrucción.” (Teodoro Sternberg, 1930, p. 29) Com a vida em sociedade surge o direito. Essa afirmação contém a gênese da evolução histórica do direito. Dizemos isso pois daí não podemos avançar sem adentrar nas suas correntes filosóficas[2], que nascem com sua evolução histórica. Da comunidade tribal às modernas megalópoles, a organização social do ser humano tem se sofisticado, e o direito necessariamente seguiu-se nesse esforço evolutivo. Qualquer análise histórica fatalmente nos remete ao conceito do chamado movimento histórico pendular (ou, melhor ainda, helicoidal), em que conceitos são criados, sendo posteriormente contrapostos e por fim alcança-se o sincretismo dessas visões opostas, em uma terceira que contenha alguns de seus elementos. Seria o conceito dialético de Tese, Antítese e Síntese em uma visão histórica. Com o direito não foi diferente. Aceito originalmente como construção social, obra de equidade, fruto da razão ou de emanação divina, foi contraposto como manifestação pura e incontrastável do poder estatal, tendo sido substituído no momento em que ficara aquém das expectativas sociais em seus respectivos momentos históricos. Depois, em outro período, procurou-se amainar a rigidez do direito posto, da norma fria, em favor do arbítrio judicial, no qual também não se obteve sucesso completo em satisfazer os anseios sociais. Por fim, cremos ter alcançado novo equilíbrio com a teoria dos direitos humanos, que insere a pessoa como foco do direito, adotando as normas positivas, porém sem abrir mão de valorá-las de acordo com princípios superiores. Ou seja, sem abrir mão de afastá-las caso não se encontrem de acordo com os objetivos maiores do direito, expressos em seus princípios gerais. Passemos então à uma breve análise das principais correntes filosóficas do direito, de modo a alcançarmos historicamente a corrente filosófica que fundamenta o presente trabalho. 1.1 A CRISE DO DIREITO NATURAL E A ASCENSÃO DO DIREITO POSITIVO A escola clássica do direito natural pugna pela prevalência de um conjunto de normas que antecede a criação do Estado. Seriam leis não escritas, nascidas no seio social e atemporais, que nos remetem ao conceito de equidade, um sentido maior de Justiça.  Bobbio relata que, na Idade Antiga, o direito natural e o positivo tinham uma relação de especialidade, e não superioridade. Assim, o direito natural era tido como geral, enquanto o positivo era tido como específico de determinada localidade, prevalecendo o último quando contrapostos.[3] Nisso é confirmado pela conhecida Fala de Antígona, relatada na obra Antígona de Sófocles, quando a cidadã grega em questão insurge-se contra determinação do governante, que pretendeu impedir o sepultamento de um de seus irmãos. Desse esclarecedor diálogo, prevalece moralmente a razão e a força do direito natural sobre a determinação do tirano (apesar de que na prática prevaleceu a força do governante). No período Romano ainda prevalecia o direito enquanto formação social, convalidado nos julgamentos dos pretores, apesar de que isso mudou acentuadamente com o tempo. “No desenvolvimento histórico sucessivo, considera-se o direito romano como um direito imposto pelo Estado (ou mais precisamente, pelo Imperador Justiniano)”.[4] Relata ainda Bobbio que a relação de especialidade entre direito natural e positivo se inverte na Idade Média, quando o direito natural ganha chancela de direito divino pela Igreja Católica, sendo considerado superior ao direito posto. Mesmo então, porém, ambos eram tidos como direito, em acepção válida do termo. Com o fim da sociedade medieval, pluralista e descentralizada, isso começa a mudar. A criação da figura do Estado-Nação soberano impõe-se com a criação de normas incontrastáveis, contra as quais o direito natural não poderia prevalecer, nem ao menos pretender questionar. Iniciou-se a decadência do direito natural. O surgimento dos Estados, porém, não pode ser responsabilizado como o único causador da crise do direito natural. O fato é que, não sendo necessariamente escrito, podendo ser justificado em diversas linhas (como a divina, a racional e a valorativa), e tendo suas fontes na própria sociedade (que não possui somente valores universais), o direito natural gerava grande insegurança jurídica. Esse fator ficou ainda mais marcante com o desenvolvimento das sociedades, que demandavam respostas mais prontas e rápidas, menos valorativas, às suas demandas e lides. Tal argumento foi usado pelos governantes para não só diminuir sua relevância como para simplesmente excluí-lo do debate jurídico. Inicia-se então o período dominado pelo positivismo. Bobbio define o termo como “aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo.”[5] É aceito que o positivismo jurídico teria se firmado definitivamente com a Revolução Francesa, visando resolver o problema de insegurança jurídica que então se instalara, mas também reforçar o mando dos novos detentores do poder. Nos dizeres de Tércio Sampaio Ferraz Jr: “o positivismo jurídico, na verdade, não foi apenas uma tendência específica, mas também esteve ligado, inegavelmente, à necessidade de segurança da sociedade burguesa. O período anterior à Revolução Francesa caracterizara-se pelo enfraquecimento da justiça, mediante o arbítrio inconstante do poder da força, provocando a insegurança das decisões judiciárias.”[6] Do ponto de vista filosófico cremos que o positivismo iniciou uma fase empobrecedora do direito. Lembramos o maior expoente do positivismo no Brasil, Hans Kelsen, com a afirmação que reduz direito à norma jurídica[7]. João Maurício Adeodato critica bem isso, ao lembrar que “a objeção mais comum ao positivismo é que ele considera o direito auto-referente”.[8] Em verdade, se trazer segurança jurídica foi a intenção, o positivismo falhou miseravelmente. Uma vez entendido que o conceito primordial era inserir normas no ordenamento jurídico, de forma a resolver questões jurídicas unicamente pelo peso da legalidade, essas começaram a se multiplicar a ponto de gerar todo tipo de conflitos normativos. Conflitos esses cujas soluções não tinham o esperado grau de previsibilidade. O direito se tornara incerto pela excesso de diplomas legais positivados, e a moral decaiu pois a lei era moralmente incontrastável. Nos dizeres de Tácito: Corruptissima in republica plurimae leges (As leis abundam nos Estados mais corruptos).[9] 1.2 – O REALISMO JURÍDICO Mais recentemente, entre os séculos XIX e XX, surge uma nova corrente filosófica do direito. Tudo indica que se tratou de reação aos excessos lógico-formais do positivismo, que limitavam o juiz a aplicar a lei fria, mesmo em situações em que isso se mostrava aberrante. O realismo jurídico surgiu enquanto doutrina e alcançou maior peso nos Estados Unidos da América, país que já contava com forte influência judicial em seu sistema jurídico, por conta da adesão à common law, mas também nos países escandinavos, onde adquiriu contornos mais radicais. Inicia-se assim uma visão do direito fortemente influenciada pela sociologia. Seus defensores encaram o direito como fato social, a ser devidamente analisado pelo Poder Judiciário, sendo lá que devem ser buscadas as fontes do direito. A jurisprudência ganharia contornos de fonte primordial do direito. Ao analisar os escritos de alguns dos principais realistas, como Oliver Holmes, John Gray, Jerome Frank e Alf Ross, nota-se forte inclinação empirista. Subvertendo a exegese tradicional do direito, os defensores dessa escola defendem que o juiz não encontra limitado à obediência normativa, mas que essa seria apenas umas das opções do qual dispõe ao julgar.[10] Para eles, o direito é o que é decido nos tribunais, independentemente das fundamentações invocadas. Uma crítica que tem recebido a Escola Realista foi por conta da aparente falta de foco de seus membros, que pretenderam substituir a ditadura normativa, pela judicial. Pretenderam substituir as más leis pela jurisprudência, sem se dar conta de que estas também podem não ser boas. Por essas e outras o realismo jurídico pode ser classificado como variante do positivismo.[11] A despeito de seus próprios excessos, como o ora relatado, o realismo jurídico serviu a um propósito construtivo: o de mudança de paradigma. Permitiu que os intérpretes do direito mudassem o foco da norma para a causa, para a realidade sendo julgada. Isso permitiu que se ajustasse esse foco posteriormente, da causa para a pessoa em questão, sua titular. Abre-se espaço, assim, para o jushumanismo. 1.2 – OS DIREITOS HUMANOS Diversos autores evocam o III Reich como prova cabal da inadequação do positivismo. Isso pois as atrocidades do nazi-fascismo foram cometidas sob a égide da mais absoluta legalidade. Não que o positivismo não se prestasse anteriormente – e ainda se presta – a legitimar toda sorte de injustiças. Ocorre que as ideologias que culminaram na Segunda Guerra Mundial deixaram isso por demais evidente. Nos dizeres de Luis Roberto Barroso: “Em busca de objetividade científica, o positivismo equiparou o direito à lei, afastou-o da filosofia e de discussões como legitimidade e justiça e dominou o pensamento jurídico da primeira metade do século XX. Sua decadência é emblematicamente associada à derrocada do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, regimes que promoveram a barbárie sob a proteção da legalidade. Ao fim da 2ª. Guerra, a ética e os valores começaram a retornar ao direito.”[12] Encerrado o conflito em 1945, e após os Julgamentos de Nuremberg, é curiosamente o Tribunal Constitucional Alemão que deu o tom do jushumanismo em seus julgamentos. Foi feita a triagem das leis editadas no período do Reich, ocasião em que foram revistas com base em princípios como sua justiça, e não sua mera adequação ao ordenamento vigente. Esse novo paradigma não ficou restrito à década de 50, tendo influenciado o direito alemão fortemente. Em interessante julgado do Tribunal Constitucional Alemão, proferido em 1968, temos a síntese que se segue:  “o direito e a justiça não estão à disposição do legislador. A ideia de que um legislador constitucional tudo pode ordenar a seu bel-prazer significaria um retrocesso à mentalidade de um positivismo legal desprovido de valoração, há muito superado na ciência e na prática jurídica. Foi justamente a época do regime nacional-socialista na Alemanha que ensinou que e legislador também pode estabelecer a injustiça (…). Por conseguinte, o Tribunal Constitucional Federal afirmou a possibilidade de negar aos dispositivos ‘jurídicos’ nacional-socialistas sua validade como direito, uma vez que eles contrariam os princípios fundamentais da justiça de maneira tão evidente que o juiz que pretendesse aplicá-los ou reconhecer seus efeitos jurídicos estaria pronunciando a injustiça, e não direito (…).”[13] O direito retorna assim à sua raiz valorativa. Em patente releitura do direito natural valorativo, o jushumanismo insere o Homem em seu núcleo e se concetra nele, e não na norma. Não é correto, porém, entendermos que essa corrente rompe com o positivismo. A lei não perde sua força normativa ou sua eficácia. Na complexa sociedade moderna não haveria como fazê-lo. Da mesma força, é aceito o realismo moderado. Não aquele que autoriza ao juiz fazer o que bem entender, mas aquele que, dentro do objetivo maior de proteger o cidadão, lhe dá a possibilidade invalidar leis que atentem contra os princípios maiores da nação. O jushumanismo, na verdade, aceita traços de todas as linhas filosóficas vistas até então, realizando um interessante sincretismo. Numa curta digressão pessoal, cremos somente que essa linha deva afasta-se da ideologia. Notamos forte influência do pensamento progressista nos valores e princípios mais caros ao jushumanismo. Algo de certa forma inevitável, haja vista a força dominante desse pensamento nas altas esferas jurídicas na atualidade. Nesse aspecto nos parece relevante que se dê maior ênfase ao conceito naturalista de Justiça, que não confere em muitos pontos com o conceito progressista de justiça social. Da mesma forma, registramos nosso receio de que o jushumanismo nos afaste ainda mais do postulado da segurança jurídica, por conta do que Lenio Luiz Streck chama de “panpricipiologismo”. Nas palavras do autor: “uma espécie de patologia especialmente ligada às práticas jurídicas brasileiras e que leva a um uso desmedido de standards argumentativos que, no mais das vezes, são articulados para driblar aquilo que ficou regrado pela produção democrática do direito, no âmbito da legislação.”[14] 1. 2.1. PRINCÍPIOS E REGRAS – SUAS RELAÇÕES Não há como entendermos concretamente a proposta da teoria dos direitos humanos sem adentrarmos, ainda que brevemente, na questão dos princípios, sua valoração e eficácia normativa. Para Celso Antônio Bandeira de Mello: “princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome de sistema jurídico positivo”.[15] [16] Diversos autores se debruçam sobre o tema dos princípios, especialmente visando distingui-los das regras. Assim, segundo a visão tradicional, dentre outras distinções, regras teriam efetividade, ao contrário dos princípios. Regras seriam mandamentos objetivos, enquanto princípios somente apontariam um caminho ideal a ser seguido, esse nem sempre possível. Seriam os chamados “mandamentos de otimização”, nos dizeres de Alexy.[17] Distintas seriam, ainda, as formas de resolução de conflitos entre princípios e regras. Quando dois mandamentos legais se contradizem, um será declarado inválido, ou será introduzida uma cláusula de exceção. Assim, temos a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[18], que trata das formas de resolução de conflitos normativos. Já o embate entre princípios resulta em ponderação, como lecionado por Humberto Ávila. Nenhum deles precisa “sumir” do ordenamento por conta do conflito. Certamente haverá valoração e um acabará por se sobrepor ao outro, sem, no entanto, anulá-lo. Tratemos da relação entre normas e princípios então. Segundo Kelsen, o ordenamento jurídico pode ser conceituado enquanto sistema hierárquico de normas. Já Ávila rompe com essa conceituação, apresentando um modelo completamente distinto. Os motivos que o levam a tanto são justamente uma falta de clareza nas relações entre regras e princípios. Para o autor, essa falta de clareza seria insolúvel, gerando “perguntas sem resposta”. Na verdade Ávila responde tais perguntas, por meio de uma nova formulação que ele mesmo cria. Assim, a própria hierarquia das leis é atacada. Hierarquia essa que era vista num conceito de sistematização linear, e passaria a ser entendida no plano de um sistema circular. Ou seja, propõe a abolição do conceito de normas superiores fundamentando normas inferiores, em prol do entendimento de que ambas se inter relacionam. Assim, as superiores ainda condicionariam as inferiores, mas estas últimas também contribuem para determinar elementos das superiores. Uma relação “circular”, por assim dizer, no lugar de uma relação “vertical”. No lugar do que se entendia por hierarquia o autor propõe o postulado da coerência. Assim, derruba qualquer ideia de hierarquia pronta de princípios constitucionais. 1.2.2. – A EFICÁCIA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS Acerca da principiologia constitucional, Paulo Bonavides define a axiologia dos princípios enquanto “pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais”, de forma que “a teoria dos princípios hoje é o coração das Constituições”.[19] Já Luis Roberto Barroso, discorrendo sobre a eficácia dos princípios constitucionais, esclarece: “A Constituição, uma vez posta em vigência, é um documento jurídico, é um sistema de normas. As normas constitucionais, como espécie do gênero normas jurídicas, conservam os atributos essenciais destas, dentre os quais a imperatividade. De regra, como qualquer outra norma, elas contêm um mandamento, uma prescrição, uma ordem, com força jurídica e não apenas moral. Logo, a sua inobservância há de deflagrar um mecanismo próprio de coação, de cumprimento forçado, apto a garantir-lhe a imperatividade, inclusive pelo estabelecimento das conseqüências de insubmissão ao seu comando. As disposições constitucionais são não apenas normas jurídicas, como têm um caráter hierarquicamente superior, não obstante a paradoxal equivocidade que longamente campeou nesta matéria, considerando-as prescrições desprovidas de sanção, mero ideário não-jurídico”. [20] Assim, não faria sentido interpretar o ordenamento de modo a conferir eficácia a uma norma infra-constitucional específica e não a um princípio constitucional. Seria a própria inversão de valores. Expoente dessa visão, Humberto Ávila parece romper com a dogmática clássica e defende de forma eloquente a eficácia normativa dos princípios. Defende ainda o autor que normas não se reduzem aos textos onde foram escritas (visão limitadora seguida por tantos), mas que seriam “os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos”.[21] Nesse sentido, vai de encontro à posição de Paulo de Barros Carvalho, que distingue norma dos seus meros veículos normativos.[22] Nada mais distante da visão jurídica avalorativa por excelência, a positivista, que induz a pensarmos exclusivamente em termos de subsunção, hipótese e consequência. Nesse sentido teríamos a norma, tida como a lei escrita, para resolver todos os problemas do mundo jurídico. Como visto anteriormente, a moderna visão pós-positivista procurou se afastar dessa linha, apesar de não abandoná-la por completo, o que foi salutar. Claro que o conceito de subsunção é válido e tem seu motivo de ser, mas deve ser encarado como aplicável somente às normas. Não se aplica a princípios, que são parte integrante, e das mais relevantes, da ciência jurídica, justamente por expressar o que há de mais essencial nela: seus valores fundamentais. Na realidade, tanto uns quanto outros devem constituir sistema harmônico. Sem normas não haveria um mínimo de segurança jurídica e sem princípios – agora isso é claro – não haveria fundamento válido para as normas, restando somente o arbítrio legislativo. Feitas essas considerações, resta demonstrar que, apesar de ainda criticado por diversos expoentes doutrinários, princípios vêm sendo utilizados de forma cada vez mais recorrente pelos tribunais para fundamentar suas decisões. Tomemos o exemplo do Supremo Tribunal Federal, maior expoente dessa postura, ao decidir que “a prisão civil do devedor fiduciante, no âmbito do contrato de alienação fiduciária em garantia, viola o princípio da proporcionalidade…”[23], além de invocar o Pacto de Jan Jose da Costa Rica. Da mesma forma, o STF se pautou pela valoração de princípios ao decidir no HC 82.424/RS[24], que tratava da publicação de material antissemita, em prol do direito à honra, e em detrimento do direito de livre expressão. Outro bom exemplo é o acórdão em HC 71.373/RS[25], onde foi contraposto o direito de uma criança de determinar sua paternidade e o do suposto pai em não submeter-se à colheita forçada de sangue para exame de DNA. Ao final, por cinco votos contra quatro, decidiu-se pela inconstitucionalidade da colheita forçada, com fundamento nos princípios da dignidade da pessoa humana, da intimidade e da intangibilidade do corpo humano. São claros exemplos práticos do confronto entre princípios constitucionais, analisados sob a ótica do caso concreto, de forma que um ou mais prevaleceram, sem em nada diminuir a força dos outros.[26] Trata-se também de claro exemplo da dificuldade envolvida na ponderação entre princípios. 1.3 – SÍNTESE DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PROCESSUAL O direito processual enquanto ciência pode ter sua evolução dividida em três fases: a imanentista, a autonomista e a instrumentalista. Na primeira o direito processual era tido como mero apêndice do material. Daí o termo outrora usado, de direito adjetivo. Até então, não era sentida a necessidade de um processo verdadeiramente complexo, com normas muito particulares. O processo era, na verdade, relegado a segundo plano, sob o prisma jurídico-doutrinário, enquanto o direito material recebia toda atenção. Na segunda fase, a autonomista, o direito processual foi ganhando características de ciência e tornou-se autônomo. Nos dizeres de Ada Pellegrini Grinover: “Até meados do século passado, o processo era considerado simples meio de exercício dos direitos (…). A ação era entendida como sendo o próprio direito subjetivo material que, uma vez lesado, adquiria forças para obter em juízo a reparação da lesão sofrida. Não se tinha consciência da autonomia da relação jurídica processual em face da relação jurídica de natureza substancial eventualmente ligando os sujeitos do processo. Nem se tinha noção do próprio direito processual como ramo autônomo do direito e, muito menos, elementos para a sua autonomia científica”.[27] Ocorre que só o desenvolvimento científico do direito processual, com suas garantias aos litigantes, não serviu para torná-lo efetivo em tantos casos. Na terceira e atual fase do direito processual (no característico movimento histórico, como mencionamos anteriormente), temos a busca que visa conciliar as garantias processuais com a efetividade do direito material buscado. “A fase instrumentalista, ora em curso, é eminentemente crítica. O processualista moderno sabe que, pelo aspecto técnico-dogmático, a sua ciência já atingiu níveis muito expressivos de desenvolvimento, mas o sistema continua falho na sua missão de produzir justiça entre os membros da sociedade. É preciso agora deslocar o ponto-de-vista e passar a ver o processo a partir de um ângulo externo, isto é, examiná-lo nos seus resultados práticos. Como tem sido dito, já não basta encarar o sistema do ponto-de-vista dos produtores do serviço processual (juízes, advogados, promotores de justiça): é preciso levar em conta o modo como os seus resultados chegam aos consumidores desse serviço, ou seja, à população destinatária.”[28] Nessas breves linhas já fica clara a conexão entre a evolução processual ora vista e a evolução filosófica do próprio direito, tratada anteriormente. Em ambas o foco é deslocado de considerações técnico-normativas para o destinatário final, o Homem, a quem o direito e o processo se referem. É chegado o momento de se dar efetividade as garantias constitucionais. Não basta que estejam previstas em lei. Elas devem ser sentidas no mundo real. CAPÍTULO II – DO PRINCÍPIO DA CELERIDADE PROCESSUAL 2.1 – A QUESTÃO DA CELERIDADE PROCESSUAL NO DIREITO POSITIVO “A justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta.” (Rui Barbosa) Feitas as considerações acima, cremos que é chegado o momento de finalmente tratarmos do princípio da celeridade processual. Trata-se de princípio com ampla previsão legal, a começar pelo próprio Código de Processo Civil (Lei n. 5.869/73), que, desde sua promulgação conta com a previsão do art. 125, II, no sentido de competir ao magistrado perseguir a "rápida solução do litígio". Não obstante, o Código de Processo Civil vem sendo alterado sucessivamente de forma a contemplar uma prestação jurisdicional mais rápida e efetiva. Tomemos as “reformas” instituídas pelas leis n. 10.173/01, 10.352/01, 10.358/01, 10.444/02, 11.187/05, 11.232/05, 11.276/06, 11.277/06, 11.280/06 e 11.341/06, cujas alterações foram tantas que seria necessário outro trabalho para adentrar no tema, mas que, em suma, procuraram atender a questão da celeridade processual, alterando diversos disposições que pareciam anacrônicas e instituindo novidades, como o processo eletrônico, por exemplo. Como se não bastasse, já se contava com o princípio da instrumentalidade das formas, aplicável em matéria recursal, que atende e contribui ainda mais para o princípio em estudo. Não que o direito processual brasileiro já não contemplasse instrumentos e medidas de natureza célere e simplificada. Exemplos são o regramento da antecipação de tutela (art. 273 CPC), bem como as ações de cunho mandamental (Mandado de Segurança e Habeas Corpus), ações cautelares e os próprios Juizados Especiais (Leis 9.099/95 e 10.259/01). A bem da verdade, não poderíamos deixar de mencionar o discutível caso da Lei de Execuções Fiscais (Lei n. 6.830/80), que buscou acelerar ao máximo a recuperação do crédito fiscal, privilegiando a celeridade processual, ainda que somente em favor do Estado. Atualmente, conta-se ainda com a Súmula Vinculante (art. 103-A da Constituição da República), a Repercussão Geral (Lei n. 11.418/06) e a Lei dos Recursos Repetitivos (Lei n. 11.672/08) para impedir recursos protelatórios às Cortes Superiores[29] [30]. Está claro que normas que se atentam a essa questão não faltam.[31] No plano internacional, o Brasil ratificou em 1992 o Pacto Internacional dos Direito Civis e Políticos, adotado pela Resolução n. 2.200-A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966. Referido instrumento preconiza o princípio em exame em seu art. 14, parágrafo 3º: “Art. 14 – 1.(…). 3. Toda pessoa acusada de algum delito terá direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:(…) c) ser julgada sem dilações indevidas.” Como se não bastasse, temos também a Convenção Americana dos Direitos e dos Deveres do Homem, mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, ratificada pelo Brasil também em 1992 por meio do Decreto 678. Tal convenção estabelece, em seu art. 8º, as garantias a serem observadas pelos Estados-Parte: “Art. 8º. – Garantias Judiciais Toda pessoa terá direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.” (negrito nosso) Em 2004, a questão da celeridade processual foi formalmente inserida na Constituição pela emenda n. 45, com a seguinte redação: “Art 5º. (…) LXXVIII – A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.” [32] Agora, inserido no rol de direitos e garantias individuais, esse princípio está classificado como cláusula pétrea pelo art. 60, § 4º, inciso IV, da Constituição da República de 1988. 2.2 – O PRINCÍPIO DA CELERIDADE PROCESSUAL NA DOUTRINA E NA JURISPRUDÊNCIA Alfredo Buzaid, na exposição de motivos ao Código de Processo Civil, já tratava das duas exigências que concorrem para aperfeiçoamento do processo: a rapidez e a Justiça. De fato não é fácil determinar de antemão o que seria uma “duração razoável” para um processo. A maioria dos autores simplesmente reafirma o Princípio da Celeridade Processual, sem maiores considerações de ordem prática. Seguindo a diretriz adotada pela Corte Europeia de Direitos do Homem[33], porém, José Rogério Cruz e Tucci aponta três variáveis a serem levadas em consideração: a) a complexidade do assunto; b) o comportamento dos litigantes e, c) a atuação do órgão jurisdicional.[34] Nesse sentido, cremos somente que faltou inserir uma quarta variável na definição acima, de ordem prática, ligada à “urgência” de tutela jurisdicional para as partes em litígio. Conforme bem lembrado por Edilberto Barbosa Clementino: “O princípio da celeridade dita que o processo para ser útil deve ser concluído em um lapso temporal razoável suficiente para o fim almejado e rápido o bastante para que atinja eficazmente os seus objetivos”[35] Assim como há extensa previsão legal, o Judiciário vem decidindo de forma reiterada, reafirmando a importância desse princípio, como podemos ver em inúmeros julgados em todo País.[36] Em geral, notamos que os julgados pesquisados tendem a reafirmar o principio com enfoque processualístico puro, relevando alguma formalidade processual (principio da instrumentalidade das formas) ou rejeitando produção de prova de natureza manifestamente protelatória, por exemplo. Assim, vemos que o principio da celeridade processual, na maior parte das vezes, é utilizado com relação a atos processuais isolados. São decisões que, quando muito, impactam na duração processual dos próprios litígios onde foram dadas. Afetam os litigantes envolvidos. E mais ninguém. Não se viu julgados que reafirmassem o direito a uma prestação jurisdicional rápida e efetiva, com enfoque em seus efeitos práticos. Elaboraremos esse ponto mais adiante.   Resumindo, notamos que: 1) há previsão constitucional e legal extensa reafirmando o princípio da celeridade processual; 2) que a doutrina é unânime a respeito de sua validade; 3) que a jurisprudência reconhece claramente o princípio; 4) há mecanismos processuais dos mais diversos que se prestam a conferir a prestação jurisdicional rápida e efetiva. 2.3 – OBSTÁCULOS À PRESTACAO JURISDICIONAL CÉLERE Em virtude do que vimos, tudo levaria a crer que o processo judicial e administrativo no Brasil seria extremamente ágil e rápido, mas não é isso que se nota. Muito pelo contrário. Trata-se de algo, à primeira vista, paradoxal. É nesse ponto que queríamos chegar. Se todos os fatores confluem para a célere prestação jurisdicional, porque isso não se verifica na prática? Queremos crer na seguinte resposta. Pois as providências tomadas para acelerar o andamento processual são todas de ordem legislativa. Trata-se de claro resquício do pensamento positivista, tão arraigado ainda na cultura jurídica nacional, que nos faz crer que tudo se resolve com a edição de uma nova lei. Buscou-se acelerar a tramitação dos processos eliminando etapas, suprimindo instâncias, simplificando ritos. Não se nega que muitas dessas medidas tenham tido efeito salutar, no que as aplaudimos, mas passaram longe de resolver a questão central da lentidão processual, que é o problema de excesso de processos por julgador e falta de investimento adequado. Hoje dispõe-se de dados para fundamentar o que sempre foi intuído pelos profissionais que militam no foro: falta investimento compatível com a missão do Poder Judiciário. Partindo-se de dados compilados pela Conselho Nacional de Justiça – CNJ [37], ressaltamos as seguintes médias do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em 2010, que são particularmente emblemáticas: despesa total do Tribunal em relação ao PIB do Estado (0,42%), o valor gasto com o Judiciário, dividido por habitante do Estado (R$ 121,57), percentual da receita do Tribunal gasto com pessoal (91,3%), o número de juízes por cem mil habitantes (6), casos novos por cem mil habitantes (12.343) e número de processos por ano, por desembargador (3.010). Em face desses dados fica difícil concluir em sentido diverso. O investimento no Judiciário é proporcionalmente baixo, gasta-se quase tudo com o pagamento de folha de salários, o que inviabiliza investimentos de ordem estrutural,  a litigiosidade é alta e o número de juízes é insuficiente, o que resulta em lentidão processual. Não dispomos de dados, mas é crível supormos que o mesmo se aplica aos departamentos de processos administrativos das Fazendas Públicas e às Procuradorias das Fazendas, que não dispõem de condições minimamente adequadas para fazer frente às suas respectivas cargas de trabalho, de modo a cumprir o que a lei já determina. Em face desse estado de coisas, que não é recente, criou-se o famigerado conceito de “prazo impróprio”, que são aqueles que, apesar de legalmente previstos e destinados aos juízes e aos servidores do Poder Judiciário, não se sujeitam ao fenômeno da preclusão. Vale dizer, são validos mesmo quando praticados fora do prazo que lhes foi prescrito.[38] Assim, o juiz teria prazo de dois dias para despachos de expediente e dez dias para decisões. Ao serventuário incumbiria remeter os autos conclusos no prazo de 24 horas e executar os atos processuais no prazo de 48 horas (arts. 189 e 190 do CPC). Trata-se de algo que não se pode mais admitir, à luz do que foi exposto. A mera existência de norma jurídica sem sanção no direito é aberrante. Considerar que há prazos processuais cujo não atendimento tempestivo gera prejuízos de monta à parte implicada, enquanto os prazos aplicáveis ao magistrado e às Fazendas Públicas seriam mera orientação é inaceitável. Afronta direta ao princípio da isonomia. Afronta essa à que nos acostumamos, e que não causa mais a espécie que merece. Afinal, o que seria o atendimento efetivo do principio da celeridade processual? Qual seria a duração razoável do processo senão aquela em que se sigam os prazos previstos nas normas processuais? Teríamos a perfeita harmonização entre o direito positivado e a sua finalidade humanística. Afinal, não seria exagerado crer que, se todos os prazos previstos nos diplomas processuais fossem rigorosamente cumpridos por todas as partes, haveria uma tramitação processual célere. Tomamos como paradigma as decisões cada vez mais numerosas do Poder Judiciário no sentido de orientar e interferir nas políticas públicas, no caso da garantia do direito à saúde. Assim, no caso de manifesta inércia estatal que resulte em negação dos princípios constitucionais, no caso, o direito à saúde (arts. 196 a 200 da Constituição), tem-se admitido a tomada de posição mais enérgica, com relação a atos que até então eram tidos como dependentes exclusivamente da “possibilidade” do Executivo. Nesse sentido o STF segue com importantes precedentes[39], como o Pedido de Suspensão de Tutela Antecipada n. 175, de 17 de março de 2010, onde foi rechaçada a pretensa ofensa ao princípio da separação de poderes, e o Judiciário ordenou ao Executivo que fornecesse medicamentos e tratamentos necessários para sobrevida de um paciente, mesmo sendo considerados de alto custo. É desse tipo de posicionamento que se precisa para garantia dos princípios constitucionais. Só assim podemos adequar a realidade jurídica à fática. Havendo impossibilidade, que a realidade jurídica seja adequada, via processo democrático, tal como foi instituída, mas que não se negue validade aos princípios da Lei Maior da nação. CONCLUSÃO Iniciamos o presente estudo com o intuito de analisar um principio. Um principio cuja inobservância traz serias conseqüências aos litigantes em todo pais. Desde o momento em que o Estado avoca para si a competência de resolver os litígios da nação, fica incumbido de fazê-lo a contento. Infelizmente não é isso que temos visto, não só no Brasil, mas especialmente nos países de tradição jurídica romana. Pelo menos não no que tange à duração dos litígios administrados pelo Estado. O fato é que o pensamento do direito evoluiu. O mundo tornou-se mais complexo e o direito, outrora fruto exclusivo de construção social, foi paulatinamente substituído pelo direito enquanto ato de poderio estatal. A evolução social seguiu-se e novamente ficou clara a inadequação de uma filosofia jurídica puramente avalorativa. Era chegada a hora de trazer o Homem ao núcleo do direito, sem desprezar os pontos de interesse das demais filosofias do direito. É justamente sob uma ótima pós-positivista, dita jushumanista, que se constrói o presente trabalho. Sob a ótica humanista, volta-se a enfocar os princípios do direito, reiterando sua força normativa. Trata-se de novo paradigma, e para tanto passamos brevemente pela temática de resolução de conflitos entre princípios. À luz dessa evolução, mostramos como ela é condizente com a evolução do próprio direito processual, que deixou sua fase autonomista, formalista ao extremo, para melhor relacionar-se com os próprios objetivos do processo. É o processo tido como instrumento para consecução de um direito material, em que se busca sua efetividade, mas sem abrir das garantias aos litigantes. Um direito processual mais principiológico e menos formalista. Outrora mencionado somente nas doutrinas processuais, o princípio da celeridade processual foi alçado ao nível constitucional por força da emenda n. 45/04, bem como por meio da ratificação de acordos internacionais. Mesmo antes, mas especialmente após a referida emenda, nota-se intensa atividade legislativa, visando reformar de diversos modos o processo civil, procurando traduzir em atos a nova visão do direito processual que ora tratamos. Quando possível, simplificou-se o processo, sempre visando aumentar sua efetividade e celeridade. Passados alguns anos, nota-se inegável avanço quanto a esses objetivos, mas o fato é que os dados compilados pelo CNJ demonstram que ainda estamos longe de alcançar a garantia constitucional da celeridade. Os Tribunais seguem “congestionados” e os investimentos não são compatíveis com sua elevada missão. Procuramos demonstrar como isso é resquício do pensamento positivista, tão arraigado em nossa cultura jurídica. Cremos que problemas são resolvidos pela edição de novas leis, quando na verdade bastaria a aplicação das já existentes. Ou seja, bastaria cumprir os prazos prescritos nos diplomas processuais para termos a tão almejada celeridade processual. Não se critica o Poder Judiciário e os demais órgãos públicos envolvidos no contencioso por uma suposta letargia. Sabe-se que a carga de trabalho é incompatível com suas estruturas. Clamamos maior investimento estatal de forma a possibilitar que cumpram suas respectivas missões, na forma e tempo fixados em lei. Hoje o Judiciário tem se manifestado de forma mais enérgica no sentido até de orientar e interferir em políticas públicas, de forma a viabilizar os direitos constitucionalmente assegurados. Exemplificamos o que vem sendo decidido em casos ligados ao direito à saúde. Quando alcançarmos esse ideal dessa forma, poderemos estar seguros de tê-lo feito conciliando o princípio da celeridade processual sem agredir o princípio da segurança jurídica, o que pode eventualmente estar ocorrendo.[40]
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